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MÚSICA HOJE (título provisório)

http://materialmaterial.blogspot.com/
http://camarilhadosquatro.wordpress.com
http://www.factmag.com/pt/

***

IDEIAS E REFERÊNCIAS PARA INCLUIR:

1. Minimalistas: centro da argumentação.


– “technology of speed” (Ross, 518)
– “a drift away from narrative and towards landscape, from performed event to sonic
space” (Eno, apud Ross, 517)
– “intentionless music” (Glass apus Schwarz, “stasis”)
alterar a percepção do tempo (narrative x landscape) Schwarz
“contemplative, time-suspending qualities” (Schwarz, 9)
Cage: “sonic liberation”/“the sounds of environment”
– Contra o serialismo (Schoenberg e Webern) e a “indeterminação” (Cage), “Musical as a
gradual process” (artigo assinado por Reich em 1968: “a political manifesto”, escreve
Schwarz, 11): reivindica o estreitamento (ou até mesmo o espelhamento) do logos e da
téchne, aisthesis e poiésis. O autor não insinua apenas uma perspectiva crítica com sua
obra. Não-intencionalidade significa abertura para conflui com a experiência do outro.

Mudança da percepção/diferentes adaptações: pag. 12, segundo parágrafo.

2. Técnica e Terror: Promessa de Felicidade


Deleuze e o Finito Ilimitado (operacionalidade/fragmentação)
TOOP, Sinister Resonance
(“Toop begins the book with the concept that “sound is a haunting, a ghost, a
presence whose location in space is ambiguous and whose existence in time is
transitory.”) – O Som ao Redor: som e terror.
Os “fins” em detrimento dos meios (contra Kant, contra Heidegger)
A arte antes e depois do “Belo”: Técnica e Terror
Benjamin (Magia e técnica) e Agamben (O Homem sem Conteúdo)

3. Som e barulho
Sterne: “The Audible Past” e MP3
Hagarty: Noise
Attali: The Politcal Economy of Music

4. Improvisação: Bailey e Prevost


5. “A construção do gosto”
Maurício Monteiro contra Simon Reynolds?
6. Nodari e Peixoto…
7. Flynt (http://www.henryflynt.org/)
8. Campos: A Arte no Horizonte do Provável
9. Microbionic?
INTRODUÇÃO
O blog colaborativo Matéria tem por objetivo produzir um corpo crítico que dê conta do
manancial de artistas e trabalhos que configuram a geopolítica sonora contemporânea.
Porém, não se trata exatamente de uma proposta "eclética". Ao contrário, apenas
adotamos uma postura "cageana" (relativa ao compositor americano John Cage) em
relação à música: a priori, tudo o que é som nos interessa. Da música litúrgica hindu à
música cosmopolita japonesa, do shangaan sul-africano ao blues americano, da eletrônica
germânica e inglesa, passando pelo samba carioca, o tecnobrega paraense, a eletrocumbia
portenha, os trabalhos de noise, drone e "field recordings" (gravações de campo), e tudo
mais o que vier pela frente.

Natural, portanto, que ignoremos muitas das oposições e práticas que enclausuram o
sentido da produção musical em nichos rarefeitos e insuficientes – por exemplo, alta
cultura x baixa cultura, nacional x popular, popular x erudito, eletrônico x acústico,
nacional x internacional, etc. O interesse pela música ultrapassa tais oposições, pois se
manifesta de forma mais rica e complexa do que a política dos rótulos, das marcas e do
gosto subjetivo podem supor. Ao mesmo tempo, buscamos considerar as obras e os
artistas à luz de seu próprio contexto histórico, dos debates acerca dos modelos de
produção e divulgação, dos hibridismos culturais e da acessibilidade aos meios técnicos
que caracterizam a produção musical contemporânea.

***

Tem alguma razão aqueles que, soterrados pela avalanche da produção cultural dos
tempos "internáuticos", reivindicam o tempo do álbum, que é o tempo do filme e do livro,
isto é, um tempo que suspende necessariamente o ritmo da produção e do trabalho, que
exige um outro grau de concentração, que de alguma forma está associado à ideia de
infinito, de suspensão da identidade, de radicalização do ponto de vista de quem quase se
mistura à obra... Eles reivindicam seu próprio tempo, e como poderiam fazer diferente?
No século passado, a sala de cinema, o álbum de vinil, o teatro, a biblioteca constituíram
espaços e dispositivos que, paradoxalmente, favoreciam uma tal dilatação do tempo do
capital e, assim, do(s) sentido(s) da obra.

Mas também não há como negar que esta reivindicação não deve ser encarada como um
modo absoluto da percepção e da intelecção das obras de arte. É evidente que esta
perspectiva não se aplica a tudo o que acontece hoje, não só em termos de artes e
adjacências, mas também em relação à política. Geralmente se identifica a situação atual
pela velocidade e pela superficialidade, mas antes de tomar essas palavras como
sinônimo de uma experiência "vazia de sentido", ninguém se pergunta pelas
potencialidades efetivas de uma política da fruição estética que é majoritariamente
caótica, apátrida, atemporal. Como poderiam, se esses modos de perceber a obra estão
sendo reformulados e ressignificados a todo instante? A "verdade" não está
necessariamente na profundidade, nisso estou com Nietzsche, que foi um filósofo da
superficialidade, atento à "pele das coisas"...

A bem da verdade, quem critica o estado de coisas como Simon Reynolds ou Lorena
Calábria (que em seu Twitter clama para que "parem de vazar tantos discos!") apenas
reivindica seu próprio "tempo infinito", em outras palavras, sua formação, seus hábitos,
sua cultura, sua mentalidade. Não adianta bradar aos quatro ventos que "é impossível
ouvir 5 discos em um dia, ou ver 3 filmes..." O que define a virtude em nossa época não é
uma certa capacidade de fruir/consumir/armazenar cultura e informação, mas ter clareza
quanto a o que você está fazendo com tudo isso...
A OFENSIVA CULTURAL
Compartilhamento de Arquivos, Audiofilia e Capitalismo

Capital Universal
Duas realidades no atual estágio do capitalismo ficam a cada dia mais evidentes.
Primeiro, a substituição da linguagem do marketing pela linguagem do design, como a
principal depositária das estratégias de comunicação vinculadas à reprodução do capital.
Não se concebe mais a relação entre produção e consumo como um fator relativo à libido
direcionada, “consumista”, mas à própria libido em si. Assim, o ato de consumir não se
resume à mera satisfação de vontades pontuais, mas refere-se à construção de uma
identidade clara e distinta, ainda que eventualmente ilusória.1

Igualitariamente distribuída entre os indivíduos abstratos que o marketing, assim como a


filosofia moderna, se ocuparam em consolidar, a inclinação desenfreada ao consumo
passou a se amparar não em necessidades gerais, mas em um território estilhaçado e
fragmentário, cujo imaginário refletiria escolhas e processos muito diferentes entre si.
Assim, o fetiche da “auto-imagem” se apresentou como uma versão categórica do fetiche
da mercadoria. As redes sociais apenas catalisaram essa inclinação, como exacerbação e
triunfo da noção eminentemente moderna de “sujeito”.

O efeito imediato deste deslocamento é o gap entre a linguagem universalizante do


capital e a construção de particularidades pontuais. Advoga-se em favor de seu próprio
raio cultural – costumes, hábitos, gostos, moral, supostamente quantificáveis – lançando
mão de uma linguagem capaz somente de expressar-se através de “universais”. Os

1
Como na perspectiva ordenadora do jornalista e designer David McCandless, que trabalha com os
chamados Dataviz, gráficos multicoloridos nos quais cada cor exprime o resultado de pesquisas e
estatísticas. Através desses “mapas”, McCandless tem por objetivo “retirar o véu de algumas conexões que
estavam encobertas pelo excesso de informação que às vezes não conseguimos interpretar”, e completa:
“mapas nos ajudam a achar caminhos quando estamos perdidos, (..) como um guia que permite navegar
através dele. Você acaba engajando as pessoas através de um fascínio visual. E isso é lindo – e muito
poderoso”. Assim, o jornalista suprime os conflitos e as nuances do jogo político, para favorecer a
produção de um desenho informacional redutor, achatando a realidade complexa das coisas, em favor de
maior compreensão. Cf.: http://blogs.estadao.com.br/link/informacao-conceito-desenho/
exemplos mais graves podem ser elencados a título de exemplo: "justiça", "consciência",
"sexo". Francamente, quem endossaria hoje uma compreensão unívoca e universal destes
termos, a não ser pela mais inconfessável inclinação etnocêntrica?

Por conseguinte, e este é o segundo fator, não interessa mais valorizar a mera
universalidade. Antes, é preciso fazer jus a este processo de autoreificação localizada, o
que leva o foco do capitalismo não para os consumidores universais, que figuram nas
“pesquisas de mercado”, mas para os particularismos de cada tribo, de cada povo,
território, enfim, de cada “cultura”.

Enquanto a fragmentação dos mercados serviu aos propósitos da grande indústria, ela se
manteve como uma contingência do próprio mercado, na pior das hipóteses, um acidente
de percurso. Mas agora, começa a lhe trazer problemas, pois tanto a aceleração da
comunicação, como a crise financeira dos grandes centros, ocasionam o fortalecimento
de outros centros, costumes, rituais, imagens, palavras e sons. Sua hegemonia não perdeu
a validade, mas apresenta sinais de um paradoxo: o desgaste perene.

Como esta perspectiva pode introduzir uma série de contrasensos no âmago de uma
geopolítica instável, trataram de domesticar o assunto. Assim, no início da década
passada, vimos emergir o discurso multiculturalista, sob a forma de políticas públicas nos
chamados países de primeiro mundo. Um multiculturalismo falso, porém investido de
propósitos muito claros: tratava-se de uma última e vã tentativa de apaziguar os conflitos
sócio-raciais, nivelando as expectativas em prol de uma “nova ordem mundial”.

Hoje, com a democratização radical da informação, contraditoriamente a “cultura” se


tornou o último bastião entre os grupos empresariais hegemônicos, mas também em meio
a cultivadas elites intelectuais europeias e americanas. Através de argumentos “culturais”,
e não mais financeiros ou morais (“tu deves…”), empresários, políticos, jornalistas,
pensadores e cientistas, defendem a restituição, a qualquer custo, do patrimônio cultural e
financeiro que a internet solapou.
Com a significativa diferença de que antes, argumentavam em favor da indústria – como
no caso de Fred 04, no Brasil ou Lars Ulrich, baterista do Metallica, nos EUA –,
compreendendo que ao menos ela sustentava condições mínimas de produção: “ruim com
ela, pior sem ela”. Mas esta argumentação somente expôs o desdobramento das
contradições do capital, que anuncia alegremente “a banda larga mais rápida do mundo”,
mas busca desesperadamente regular a troca de informação na internet. Trata-se de uma
reação à modulação do valor da mercadoria, que se apresenta sob o seguinte paradoxo:
tornou-se maleável em relação à cultura local, em desacordo com regras impostas pela
linguagem universalizante do mercado.

Crise do Formato
Na primeira parte busquei identificar a modulação do valor da mercadoria,
particularmente no que diz respeito ao compartilhamento online de arquivos digitais, que
se apresenta sob o seguinte paradoxo: a mercadoria “tornou-se maleável em relação à
cultura local, em desacordo com regras impostas pela linguagem universalizante do
mercado.” A fricção entre universalidade abstrata do deusmercado (com a moral em
baixa…) e o turbilhão libidinal proveniente das diversas culturas, implodiu a própria
noção de mercadoria. EMI? Som Livre? Contrato? “Advanced”? Charts, jabáculês e
demais dispositivos de manipulação? E o que restou disso tudo, se não a própria música?

Otimismo? Talvez. No entanto, não importa que você seja um otimista ou um pessimista,
um cínico ou um militante, pois com relação a esse assunto estamos implicados em um
futuro que coabita o presente e se debate com o passado, para o qual se buscam respostas
que nunca virão de forma ampla e definitiva. A respeito de um tema que anda em voga, a
autoria, percebe-se que um campo de batalha marcado por questões insolúveis e disputas
vacilantes, alvejado diariamente de forma implacável por situações com um alto grau de
ineditismo. Neste contexto, alguns veem um prejuízo irreversível para as noções de obra
e autoria, com o agravante de que, para o autor propriamente dito (o compositor, o
escritor, o roteirista), a vida nunca foi fácil...
Não obstante, a defesa da autoria aderiu ao liberalismo como mais uma tentativa de
naturalização do capitalismo, devidamente acompanhada pela força policial e o serviço
secreto. Porém, dificilmente se pode ignorar as objeções pertinentes de Bernardo
Carvalho, um dos poucos a fazer um defesa da autoria de forma a extrair consequências
plausíveis de um futuro que já está aqui, mas que não equacionamos devidamente. E, em
sentido oposto, Hermano Vianna contribuiu para desconstruir a universalidade aparente
do direito autoral, descentralizando o sentido vigente da expressão, citando um ensaio do
antropólogo Alexandre Nodari, que expõe a relação conflituosa entre a posse e
propriedade.

Nesse debate, porém, a discussão acerca da relação ambígua do autor com o valor-
mercadoria ficou de fora. Flexibilizando ou conservando os direitos autorais, ainda assim
conserva-se, de ambos os lados, uma forma de se escutar a música gravada. Assim,
convém sublinhar a aderência imediata do autor à mercadoria universal, sob a forma de
um modelo específico de apresentação: o formato, não o contrato. Independente da
internet e do "contrato", o autor pereceria no sistema montado pelas grandes empresas na
medida em que a petrificação do formato já lhe prejudicaria – antes da internet,
compactos, singles e outros formatos menores, adequados para autores menos
conhecidos, já eram coisa rara no Brasil... Portanto, não é a ausência de leis ou o seu
descumprimento que prejudica os autores e a indústria, muito menos a flexibilização das
relações comerciais, mas a cumplicidade cínica entre autores, indústria e uma noção
comum do que vem a ser a “forma-mercadoria”. É o apego oportunista à mercadoria
clássica, fundada sobre a noção de propriedade e apresentação material, o elemento
cambiante que joga todo esse universo em uma crise sem precedentes.

Autoria/Audiofilias
Em contraponto a esta guerra, um grupo de jornalistas e pensadores insistem em defender
o legado histórico e político do capitalismo anglo-saxão sob a perspectiva de elementos
que são mais produto de um desenvolvimento ulterior do que propriamente o centro do
universo. Me refiro à cultura audiófila anglo-saxã, que submete a vivacidade desses
conflitos à prerrogativas técnicas e culturais, sedimentadas sobre o termo "audiofilia". Por
isso gostaria de me ater a um exemplo determinado, no sentido de demonstrar ao leitor de
que forma a maleabilidade dos formatos, da estética, das trocas culturais, políticas e
econômicas, pode criar as condições para que eclodam soluções singulares, de maneira a
repercutir no modo como as pessoas avaliam sua relação com a arte e seus respectivos
suportes.

No caso da música, essa questão ressoa de forma particular, mais do que no cinema e nas
demais artes. Não só porque os sons estranhos, ocasionados por dificuldades técnicas de
amplificação e reprodução, podem ser incorporadas à concepção musical, como no caso
do Konono N.1 – na medida em que o timbre estridente das kalimbas do grupo congolês
é resultado da experiência "mal-sucedida" de amplificação. Mas porque indica que o
contexo audiófilo comporta toda sorte de experiências, respaldando-se nas respectivas
formas de se escutar e reproduzir a música.

Muitas vezes os processos de registro e reprodução são marcados pelo desequilíbrio,


reproduzindo sonoridades sujas, fora de rotação, degeneradas, mixadas em tecnologias
arcaicas, marcadas pela vulnerabilidade material do suporte diante dos maus tratos, entre
outras características. Mas, ao mesmo tempo, encerram valores específicos que indicam
outros modos de escuta. De tal forma que vale perguntar: diante da desconfiguração do
formato na interação entre cultura digital e cultura online (pois elas não são
correspondentes!), é possível cogitar a audiofilia como um campo de disputa? O que pode
a apropriação criativa da tecnologia intermediária contra a grande indústria que sustenta a
cultura audiófila ocidental, responsável pela aceleração do processo de produção
tecnológica?

Encontrar uma arma...


No final do ano passado, correu à boca pequena o primeiro volume de uma compilação
chamada Music from Saharan Cellphones Vol. 1, editado através do blog Sahelsounds. O
americano Christopher Kirkley, responsável pelo blog, viajou para a Mauritânia e coletou
MP3 extraídos de cartões de memória de telefones celulares, vendidos e trocados em
feiras populares. Nessas localidades, na falta de computadores pessoais e internet banda
larga, os celulares servem como suporte para armazenamento de dados e troca de
informação digital. Através de conexões bluetooth, a troca de MP3 é intensa, o que
incrementa a divulgação de um farto e precioso material musical oriundo da África
Ocidental, como também nos traz mais um contra-exemplo de como a necessidade – a
“escassez”, como escreveu Mark Richardson em artigo para a Pitchfork – pode fundar
formas pregnantes de relação com a mercadoria. Este contexto propicia o amplo e
irrestrito intercâmbio sonoro, fundado sobre outras bases de negociação política, estética
e comercial.

Estética porque essa música, anteriormente escondida em condições extremas em lojas e


espaços de armazenamento “presencial”, retornou à circulação com um raio de alcance
bem maior, que extrapola o contexto africano. Os resultados da confluência de ritmos e
estilos ainda serão medidos conforme a música influenciar o resto do mundo, tal como
ocorreu com artistas americanos e ingleses, como Vampire Weekend, Franz Ferdinand ou
Damon Albarn. Music from Saharan Cellphones Vol. 2 trouxe mais uma seleção de
faixas da Mauritânia, a leste de Shinqit, mas não se sabia ao certo se havia uma
procedência musical determinada, falha agravada pela ausência de informação nos pentes
de memória, mas suprida parcialmente por trocas de informação pelo Facebook entre
Kirkley e amigos.

O evento aparente traz consigo um conjunto de situações peculiares, comparado ao tipo


de relação que o mundo ocidental desenvolvido mantém com a mercadoria. Alguns
elementos que constituem o fenômeno são:

a) troca de arquivos sonoros através de conexão bluetooth, armazenados em cartões de


memória para celulares;
b) conteúdo diversificado, na maioria contendo música da África Ocidental — afrobeat
da Nigéria, salsa de Dakar, Highlife, Funana do Cabo Verde, Mbalax do Senegal, blues
tamasheq, sintetizadores africanos como na excelente “Autotune”, do Níger, etc.
c) Faixas sem nome; disposição das faixas desvinculadas de álbuns e demais formatos
consolidados nos grandes mercados;
d) resolução sonora relativa, embora muitas vezes haja uma variação considerável no
resultado da digitalização de fitas cassetes e elepês.

Em cada um dos cartões de memória trocado nas feiras da Mauritânia e do Mali,


podemos acessar uma avalanche sonora, mas Kirkley fez uma seleção particular para os
dois volumes de Music from Saharan Cellphones. Para cada uma das faixas que integram
a coletânea, pode-se supor uma imensa e longeva cadeia produtiva que perfaz este
processo:

a) Os músicos e técnicos que realizaram a gravação;


b) Os profissionais que fizeram a arte gráfica, prensagem e distribuição;
c) A venda, a loja, os funcionários;
d) A sucessão de percalços que levam os álbuns a percorrerem um verdadeiro calvário até
parar em alguma coleção europeia ou em um cartão de memória, tal como o balão
vermelho de Hou Hsiao-hsien (para uma história dos objetos…) – ou, ainda, na coleção
empoeirada de Ahmed Vall, dono da loja Saphire D'Or.
e) Convém destacar o trabalho de Kirkley, que viaja para os países da África Ocidental
compilando músicas e registrando práticas artísticas e comerciais.
f) O Megaupload demais serviços de armazenamento de dados, que possibilitam a
disseminação dos arquivos.
g) E os serviços de internet pelo mundo inteiro – o que em certa medida decide pela
economia de downloads em cada região do planeta.

Pois, seguindo essas pistas, evitando situá-las à contraluz do valor-mercadoria, chegamos


a uma cultura audiófila diferente em relação a que é preconizada pela perspectiva anglo-
saxã. Não somente uma outra perspectiva “musical” (melômana), mas uma outra
perspectiva “audiófila”. Nem uma perspectiva evolutiva, nem uma perspectiva exótica,
mas a própria perspectiva, imanente e insubstituível. O prazer, a fruição, a religiosidade,
o mercado, a miséria, e uma tradição musical antiga e multifacetada, somadas às
condições políticas, técno-tecnológicas e históricas, resultam em uma fragmentação
radical da perspectiva audiófila, compartilhada por uma variedade de segmentos.
Esta fragmentação contrasta com a submissão ao valor-mercadoria convencional,
prescrita pelos ideólogos do desenvolvimento, a respeito dos quais os povos africanos
devem ter as piores opiniões. Se por um lado, o colonialismo ressoa na cultura africana
sob a forma do ressentimento e do prejuízo psicológico ("O mais grave é que a miséria
material se transformou em miséria afetiva e psicológica", como afirma Célestin Monga),
não se pode negar a forma extremamente criativa com que a África Ocidental vem
criando suas "linhas de fuga".

Com este argumento, não pretendo desvalorizar a reflexão a respeito das perdas de
frequências, fidelidade, etc, ocasionadas pelo hábito de se escutar música no computador.
Mas existem ganhos que não são passíveis de uma avaliação puramente técnica. Por este
motivo a audiofilia não deve ser abordada como um conceito absoluto, meramente
técnico ou histórico, uma tendência geek que valeria por si só. Antes, convém apreciá-la
como uma noção antropológica, que comporta muitas possibilidades de relação com a
escuta. É uma tendência da escuta – das muitas escutas possíveis – ambientar-se no seu
universo sonoro específico e contingente, tanto no que diz respeito às demandas estéticas,
quanto nas relações possíveis com o formato, o suporte, a resolução e o tipo de aparelho
que opera a execução das faixas. A virtude aqui consiste em encontrar um conjunto de
soluções culturais e ambientar-se nele de forma positiva, a despeito da precariedade
técnica e da miséria.

A "burguesia assalariada" não compreendeu que no capitalismo contemporâneo, o “lucro


virou renda”, ocasionando a sobrecodificação desproporcional da mercadoria. E, no
entanto, há uma contrapartida evidente em relação a esse tipo de apropriação, mesmo que
ainda emerja sob o signo de uma nova hegemonia da comunicação, capitaneada pelo
Google e o Facebook. A despeito de toda a polêmica a respeito da política de privacidade
duvidosa dessas empresas, há que se reconhecer que ao menos promovem uma dinâmica
cognitiva mais estimulante e abertas às linhas de fuga. Traçar uma linha de fuga
corresponde a “produzir algo real, criar vida, encontrar uma arma”, e não se perder no
imaginário... São exemplos de como a própria ausência de uma regulação mais rígida
pode gerar situações alternativas (e factíveis) às que são hoje oferecidas pela grande
indústria.
RESSONÂNCIAS INCOMUNS
Experiência e Procedimento na Produção Musical Contemporânea

Experiência e Procedimento
Em “On Jazz”, célebre e polêmico ensaio datado de 1936, Adorno contribuiu
decisivamente para elevar a tensão entre dois universos supostamente inconciliáveis: o
erudito e o popular. Com o objetivo de produzir uma crítica social do jazz, relacionando-
o ao caráter alienante da indústria cultural, o filósofo alemão empregou um conjunto de
palavras e expressões nada amistoso, que expuseram, para além de suas ideias e artifícios
de argumentação, o sentimento de antipatia e incompreensão. Segundo Adorno, nos idos
da década de 30, a chamada hot music se caracterizava por uma “fraqueza neurótica” e
pela “excentricidade”, por constituir uma expressão “alienada”, “castrada”, “excêntrica”,
“banal”, “vital”, “inconsciente”, “escrava”, “ornamental” e “sexualmente exacerbada”.
Por fim, conclui: “Talvez por este motivo, os povos oprimidos podem ser considerados
especialmente preparados para o jazz.”2 Mais do que uma defesa eurocêntrica da cultura,
ou de uma reflexão acerca da nascente indústria cultural, “On Jazz” perdura como um
documento incontornável na abordagem de uma suposta oposição entre “cultura erudita”
e “cultura popular”. Deixemos de lado sua miopia antropológica e nos concentremos no
subtexto: como antídoto à alienação trazida pelo jazz (leia-se, “pela cultura de massas”),
prescreve-se tão simplesmente o pensamento e a obra de autores inscritos na tradição
musical do Ocidente, como Debussy e Ravel. Contra o ritmo “narcísico” do jazz
(imagino que Adorno se refira ao caráter precípuo do improviso jazzístico), prescreve-se
a “arte das síncopes” em “A Sagração da Primavera”, de Stravinsky. Ora, o que Adorno
reproduz, para além de uma crítica da dinâmica social da arte inserida nas injunções do
capitalismo, é a distinção entre a “alta cultura”, o “highbrow” — um sistema de
referências paralelas e complementares que circunscrevem o corpus teórico e o cânone da
música ocidental —, e, de outro, as particularidades assistemáticas da “cultura”, do
folclore e, finalmente incorporada às necessidades e dinâmicas da cidade industrializada,
as noções de “indústria cultural” e “cultura de massas”.

2
ADORNO, Theodor. W.. Essays on Music. Califórnia: University of California Press, 2002, pg. 491.
Décadas mais tarde, artistas e intelectuais asseveraram que em algum momento do século
XX, essas duas dimensões foram como que fundidas, variando o diagnóstico conforme a
formação, a perspectiva e o gosto do intérprete. As apropriações do folclore russo
perpetradas por Stravinsky, as experiências com a materialidade dos objetos sonoros de
Edgard Varèse, o jazz, a música concreta e eletrônica, o minimalismo, e, no Brasil, a
Bossa Nova, o Tropicalismo, Arrigo Barnabé, entre outros, constituiriam alguns
exemplos esparsos nos quais elementos da música dita popular e approach erudito seriam
apresentados em conjunto, em um só e mesmo patamar. Não se trata de questionar o
diagnóstico desses artistas e pensadores, que me parece pertinente. Mas até que ponto
essas fronteiras foram borradas, não a partir de reflexões teóricas ou do estabelecimento
de um cânone, mas através da resposta pungente dada pelas próprias obras, em suas
respectivas singularidades? E qual o estatuto desta questão na atualidade, desdobrada pela
potencialização das trocas culturais e pela consolidação de uma interação peculiar, entre a
internet e a tecnologia digital? Tornou-se habitual considerar a experiência fragmentária
da produção musical contemporânea sob o signo de condições técnicas e culturais,
determinada não apenas pela acessibilidade de novos meios tecnológicos, mas também
em função de uma sensibilidade estética cada vez mais tensionada entre o global e o
local. E embora possa ser avaliada a partir da reunião de diversos aspectos, existem
razões consistentes para considerar decisiva a interação entre técnica e estética na música
que se faz hoje nos quatro cantos do mundo. Mas qual seria o impacto dessa mudança
sobre os escombros da “guerra cultural” que se desenrolou durante o século XX, por obra
da constituição de uma indústria cultural que pôs em xeque uma forma determinada de
avaliação das obras de arte e da arte como um todo? Nos últimos quinze, vinte anos, os
termos deste problema se ampliaram de forma radical, e algumas manifestações indicam
que as relações entre os discursos erudito e popular adquiriram novos contornos,
alterando consideravelmente os termos do problema.

Marcada pela aceleração da informação, pela tecnologia digital e pela cultura online, a
música produzida atualmente centra-se de forma peculiar na experimentação e no
procedimento, o que repercute de forma inequívoca sobre o tema em questão. Entendo o
procedimento como os diversos modos da ação criativa em sua ampla diversidade, que
pode ser desenvolvido dentro de um modelo ou referência — por exemplo, as técnicas
que perfazem a historicidade e o fudnamento do chamado cânone erudito, ou o canto
gutural mongol, ou ainda a batucada digital dos sound systems. A técnica corresponde a
um procedimento passível de reprodução, mas nem todo procedimento é uma “técnica”.
A técnica participa, mas não se confunde com o procedimento, na medida em que deve-se
incluir nesta noção a prática da improvisação.3 Já a experimentação, compreendo como o
ato de pesquisar por novos procedimentos, seja a partir de modos pré-existentes4, seja na
pesquisa por sonoridades inexploradas — como, por exemplo, na partituração da música
estocástica de Iannis Xenakis ou nos experimentos com música eletrônica capitaneados
por Karlheinz Stockhausen. Contudo, na medida em que se constituem como
componentes da música de todos os tempos, o procedimento e a experiência adquiriram
outro estatuto no contexto tecnológico e cultural da primeira década do século XXI, em
virtude não da técnica (ou da tecnologia) em si, mas em relação ao tipo de ferramenta de
que dispomos hoje, cuja influência se exprime basicamente sobre duas formas distintas e
eventualmente complementares. Em primeiro lugar, a operacionalidade dos apetrechos
tecnológicos tornaram banal o exercício da gravação e da edição, possibilitando um
panorama sonoro centrado no intercâmbio entre a concepção, o processo de elaboração
e o produto final. Esta característica possibilita ao compositor estender a duração de cada
gravação, interferindo consideravelmente no processo de composição5, e conduzindo o
foco criativo para a transcorrência do processo, a improvisação, o acaso e outras
possibilidades abertas à experimentação.6 A leitura de uma partitura se configura como

3
Mesmo quando a improvisação se reveste de alguma técnica específica — como no caso do repente
nordestino, nos improvisos do jazz ou no rap free-style — considera-se o acaso e a livre associação de
ideias como o leitimotiv desta prática, que segundo o músico inglês Derek Bailey, possui exemplos em
todas as culturas musicais. v. BAILEY, Derek. Improvisation: Its Nature And Practice In Music. Londres:
Da Capo Press, 1993.
4
Uma observação discreta, mas que vale como “exemplo”: a palhetada do Thrash Metal dos anos 80 em
relação à que era praticada no Hard Rock dos anos 70; ou, ainda, a transformação do MPC em objeto
percussivo no funk carioca.
5
Basta recordar que a duração média das faixas, segundo o modelo da indústria fonográfica do século XX,
não costuma passar dos 3 ou 4 minutos.
6
O comprova não só a valorização da improvisação e a implosão dos formatos, mas sobretudo o fato de
que muitos artistas hoje dispõem de uma série de máscaras, codinomes e “projetos”, evidenciando a
diversificação de seus interesses estéticos. Por exemplo, o inglês James Leyland Kirby assina como Billy
Ray Cyrix, Butcher Claus, Dr. Fred, The Edgeley Musher, Leon And Hits, MC V/Vm, The Notorious
P.I.G., The Stranger, V/Vm Allstar Marching Band, V/Vm And The Hog Chorus, V/Vm With Garry's
Glitter ou, simplesmente, Leyland Kirby.
um processo linear: os compassos sucedem-se uns aos outros, e o seguinte não faz
sentido sem o precendente. A ligação entre os dois momentos é condição necessária para
que a composição se apresente ao ouvinte. Da mesma forma, um compositor de canções,
munido de seu violão, ordena acordes e versos em sequência linear. Mas a tecnologia do
presente — particularmente, o sampler, os programas de edição digital — permite que os
elementos sonoros sejam manipulados como se fossem blocos autônomos, favorecendo
um processo de composição não-linear7. A repercussão deste tipo de edição sobre o
processo de composição é perceptível não somente no caráter bricoleur da estética atual,
mas também pelo fato de que a história da música revém de forma positiva, retrabalhada
de forma a alimentar uma perspectiva para o futuro. E, então, chegamos a um terceiro
ponto, tão importante quanto os anteriores: a aplicação da tecnologia P2P (peer to peer,
“entre pares”), ao compartilhamento de arquivos sonoros, através de programas como o
Napster e o Gnutella. Se antes o indivíduo se fechava em seu próprio universo musical,
instrumentalizando passivamente suas escolhas pessoais, agora ele é convocado a
misturar-se forma positiva com sonoridades que jamais seriam ouvidas se dependesse
apenas dos investimentos da indústria do disco. Custo a rememorar outro período
histórico no qual os seres humanos tiveram acesso, na ponta dos dedos, à diversidade
cultural e à possibilidade de manipulação e combinação de diversas matrizes culturais.
Essa verdadeira “biblioteca de Alexandria” da música mundial está à disposição para
reconfigurações as mais inusitadas — chorões japoneses e black metal da Indonésia são
apenas um pequeno capítulo desta história.

Na medida em que um procedimento se aplica tanto a operações técnicas, quanto


estéticas, cabe considerar esses respectivos domínios como elementos indissociáveis,
peças de uma máquina cujo funcionamento depende justamente da articulação entre todos
os elementos listados acima. Em função da criação de uma nova sonoridade, ou mesmo
da interpretação de uma obra acabada, o artista deve buscar um novo procedimento, o que
implica, muitas vezes, na pesquisa por um equipamento determinado ou uma forma de
utilização específica. O aprimoramento e a acessibilidade do aparato tecnológico,
combinados à aceleração da dinâmica informacional e aos contrastes culturais,

7
Leia sobre a edição não-linear aplicada ao audiovisual no Wikipedia.
possibilitaram um mapa sonoro salpicado por pontos de convergência, ocasionando
inevitáveis contaminações entre os domínios erudito e popular. Tais pontos de
convergência determinaram a alteração do paradigma mercadológico, que deixou de
centralizar-se nas grandes empresas para destacar pequenos selos, artistas independentes
e até mesmo muitas das cenas musicais que não chegavam ao Brasil, em virtude das
estratégias equivocadas do mercado — que por muitos anos ignorou a exuberância da
música malinesa e nigeriana, do free-improv inglês, da energia radical da música
japonesa contemporânea, etc. A noção de que a música e o espaço sonoro são mais
amplos do que o catálogo das grandes gravadoras faz supor, concorre para a difusão de
uma cultura aberta às mais diversas nuances da técnica, da tradição e da criação.

Não se trata, porém, do anúncio de uma ruptura, mas de indicar que as fronteiras do
erudito e do popular não foram propriamente apagadas, ao contrário, se tornaram
cambiantes ao sabor do contexto político, social e cultural. A assimilacão mútua reforçou
e afrouxou simultaneamente as relações entre o “erudito” e o “popular”, trazendo à tona
sonoridades incomuns, refletindo a instabilidade do papel hegemônico desempenhado
outrora pela chamada “música ocidental”. Assim, nota-se a presença de outros
paradigmas para o pensamento e a criação musical, que põem em xeque a hegemonia do
discurso europeu. Longe de dissolver a intolerância etnocêntrica que delineou fronteiras
culturais em favor da criação de tais instrumentos ideológicos, estes paradigmas
evidenciam justamente a instabilidade da geopolítica contemporânea, na qual há uma
ressonância estridente em cada novo discurso sonoro que emerge no contexto da cidade,
manifestando uma inclinação à subjetivação, não somente dos meios de produção, mas
sobretudo, à conquista de uma linguagem que seja adequada para reforçar a tensão entre
o global e o local. No contrapé do “amadorismo” que a internet supostamente favoreceu8,
fortalece-se igualmente uma perspectiva segundo a qual a produção estética deva se
pautar cada vez mais em fenômenos geográfica e culturalmente delimitados. Não importa
o país, a cultura, a classe social, pois esta característica pode ser apreciada tanto no funk
dos morros cariocas (ou o juke dos guetos negros de Chicago), quanto nos hibridismos
radicais do ensemble alemão Zeitkratzer. Subsiste, portanto, uma tensão entre o conteúdo

8
Cf. KEEN, Andrew. O culto do amador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.
veiculado pela grande indústria do disco — embora enfraquecida, ainda amparada por
grandes meios de comunicação — e o aporte cultural local dos artistas. De um lado,
considera-se a acessibilidade dos equipamentos digitais e a fragmentação de culturas
audiófilas, por exemplo, na reabilitação de formatos como o LP e a fita cassete, ou, ao
contrário, na dissolução da própria noção de “formato” por conta da fluidez dos arquivos
digitais. E, em paralelo, observa-se a intensificação das trocas propriamente culturais, na
medida em que o compartilhamento de arquivos implodiu qualquer referência
“universalizante”, seja da chamada “alta cultura”, seja da cultura de massas. Uma ampla
gama de vertentes musicais, técnicas de composição e aparatos tecnológicos, indicam que
as relações entre o erudito e o popular adquiriram novos contornos, influindo
decisivamente no panorama sonoro do século XXI.

Ressonâncias Incomuns
Muitos autores defenderam a ideia de que o discurso chamado “erudito” edificou-se a
partir da transformação (e, falando a língua do etnocentrismo, do “refinamento”) de
manifestações populares, mas vale destacar a interpretação do jornalista e escritor
americano Alex Ross. Comparando técnicas de composição, como os contrapontos de
Bach, à característica melódica descendente dos lamentos entoados em diversas épocas
por toda a Europa (Romênia, Itália, Espanha, etc.), Ross investiga a evolução histórica e
estética do discurso musical ocidental, destacando os nexos profundos entre esferas
consideradas “eruditas” e “populares”. Costurando aspectos políticos, técnicos, sociais e
filosóficos, o autor desarticula as razões e os mecanismos ideológicos subjacentes a
determinadas ideias e movimentos musicais durante os séculos XIX e XX, indicando que
muitos dos antagonismos que marcaram determinadas questões estéticas se originaram da
necessidade de legitimação cultural. Em parte, estas demarcações manifestavam uma
forte entonação hieráquica, a partir da qual os indivíduos se predisporiam a reificar o
passado — ou seja, aquilo que já foi codificado e inscrito na tábua dos valores correntes
— em detrimento da dinâmica veloz e desestabilizadora do presente — como Adorno,
diante da novidade absoluta que representava o jazz àquela altura. Com efeito, configura-
se uma interpretação plausível diante da produção musical do pós-guerra, que pode
fornecer bases consistentes para se pensar o sentido da música produzida no século XX.
Porém, tal situação está igualmente amparada por condições materiais, culturais e
históricas, cuja determinação envolve um sem número de variáveis — desde o suporte
financeiro e as condições do mercado, até à mentalidade política e o aparato técnico. Se
por um lado, esta posição parece afinada com os conflitos políticos do século XX,
tomando o espectador e o crítico como sismógrafos para avaliar as condições do debate,
por outro Ross faz uma observação curiosa, que diz respeito diretamente à ação dos
artistas.

A fetichização do passado teve um efeito degradante sobre o


moral dos compositores. Eles começaram a duvidar da sua
capacidade de agradar a esta plateia implacável, que parecia
disposta a rejeitar suas obras, independentemente do estilo em
que eram escritas. Se ninguém se importa, raciocinavam os
compositores, então é melhor escrever uns para os outros. Essa
foi a atitude que levou à mentalidade intransigente e, às vezes,
antissocial da vanguarda do século XX. 9

Se se pode afirmar que a música do século XX tornou-se hermética devido aos


descompassos entre autores e o público, isto de forma alguma deve depor contra a atual
situação, na qual os músicos são como que constrangidos a apresentar uma sonoridade
estranha aos códigos vigentes — basta escutar o rap ultracomercial de Jay-Z e Kanye
West, para perceber sonoridades atípicas, como os chamados “glitches”, ruídos
eletrônicos, em nada óbvios, que há dez anos atrás seriam classificados na seara da
música “experimental”. Isto certamente pouco representa enquanto caso isolado, mas
indica o alargamento do raio de tolerância da escuta geral. Porém, a tolerância aumenta
no mesmo compasso que a maleabilidade dos apetrechos digitais remediam antigas
dificuldades técnicas e abrem o caminho para novas combinações estéticas:

Um dia, quando eu estava estudando com Schönberg, ele


apontou para a borracha em seu lápis e disse: ‘Este lado é mais
importante do que o outro.’ Depois de 20 anos, aprendi a

9
ROSS, Alex. Listen to this. Farrar, Straus and Giroux, New York: 2010, pág. 13.
escrever diretamente com a tinta. Recentemente, quando David
Tudor retornou da Europa, ele me trouxe um lápis alemão
moderno, que aceita qualquer tamanho de grafite. (…) Um
apontador veio juntamente com o lápis. O apontador oferece
não uma, mas várias possibilidades. Isto é, pode-se escolher o
tipo de ‘ponta’ que se deseja. Não há borracha. 10

Como John Cage sugere no excerto acima, se a elaboração do procedimento incide sobre
a questão propriamente estética, esta não ocorre nos termos de uma relação de causa e
efeito. Um compositor popular pode se utilizar do contraponto, técnica de composição no
qual duas ou mais vozes se apresentam simultaneamente, ou, por outro lado, um
compositor inscrito nos códigos “eruditos” pode se utilizar de samplers. Embora não
circunscreva exatamente uma atitude de indiferença diante da separação entre erudito e
popular, ao menos a troca simbólica entre aspectos técnicos e sua consequente
generalização no mundo contemporâneo, propicia, dia após dia, o desmonte do edifício
ideológico que confinou o pensamento, as técnicas e procedimentos da música erudita a
um universo impotente e desbotado. “Eu odeio "música clássica": não a coisa, mas o
nome. Ele aprisiona uma arte tenazmente viva num parque temático do passado”11, afirma
Ross. Trata-se, portanto, de um tema multifacetado, que constrange o observador a
considerar, não somente a análise da conjuntura, mas, sobretudo, a resposta específica
que certos autores elaboram através de suas obras. Deste cenário tão complexo quanto
instigante, pode-se reunir um número considerável de artistas que atestam a presença
específica do procedimento e da experiência na produção das ressonâncias incomuns que
caracterizam a totalidade da música produzida durante as duas primeiras décadas do
século XXI. A começar pela consolidação de um firme interesse, tanto na produção,
como no consumo, de gêneros essencialmente experimentais, que de alguma forma,
possuem inegáveis afinidades com os compositores eruditos da atualidade: o estudo do
10
CAGE, John. Silence: Lectures and Writings. Wesleyan University Press, 1961, p. 270-271. “One day
when I was studying with Schoenberg, he pointed out the eraser on his pencil and said, "This end is more
important than the other." After twenty years I learned to write directly in ink. Recently, when David Tudor
returned from Europe, he brought me a German pencil of modern make. It can carry any size of lead.
Pressure on a shaft at the end of the holder frees the lead so that it can be retracted or extended or removed
and another put in its place. A sharpener came with the pencil. This sharpener offers not one but several
possibilities. That is, one may choose the kind of point he wishes. There is no eraser.”
11
ROSS, Alex. Listen to this. Farrar, Straus and Giroux, New York : 2010, pág. 13.
barulho, ou noise, bastante difundido no Japão através de nomes como Masami Akita
(Merzbow); ou o chamado “Modern Classical”, de Jacaszek e Nico Muhly, que investem
de forma indiscriminada em composição nos moldes “eruditos” junto a canções e
improvisos. O ensemble alemão Zeitkratzer, que além de gravar autores e obras
problemáticas (de Cage a Xenakis), fizeram parceria com grandes nomes da música
popular, como Lou Reed, e discos inteiros de improvisos, prática outrora execrada na
seara da música erudita.12 O trabalho do compositor erudito Raphaël Cendo, que usa
samplers e batidas pré-gravadas como parte da composição, baseado em artistas
“populares” como Richard D. James (Aphex Twin). Ou ainda a afinidade entre certos
compositores de música eletrônica, ligados a tradições impopulares, mas interessados na
exploração dos limites do espaço sonoro, como por exemplo, o alemão Florian Hecker e
o americano Kevin Drumm. Há artistas que operam por conversão de dados digitais em
som, como Alva Noto e Ryoji Ikeda, e outros que manipulam experiências com fitas
deterioradas, como William Basinski. Há também os artistas que incorporam a
experimentação a partir da releitura pontual de procedimentos relacionados a certos tipos
de aparelhagem. O emprego do Theremin por Luigi Russolo, ou ainda, a utilização da
mesa de som no dub jamaicano são exemplos de como a tecnologia determina o produto
criativo, incluindo-se aí uma certa apropriação da tecnologia “intermediária”13,
influenciada pelos processos não-lineares. Operando com equipamentos de segunda mão,
utilizados de forma criativamente “incorreta”, destacam-se o aparecimento do shangaan
sulafricano, do dabke sírio, dos desenvolvimento da música eletrônica urbana (UK
Garage, drum'n'bass, techno, etc.) e dos chamados “critical beats” (ramificações da dance
music eletrônica anglosaxã, tais como o dubstep, o wonky e o witch house). Em todas
essas manifestações, o claro indício de que há uma abertura sem precedentes nas relações

12
A improvisação sempre foi comum na prática musical dita “erudita”, desde a música dos gregos (o que
seria o berço de tal “música erudita”), passando pela Idade Média (onde começou a se esboçar uma escrita
musical ainda precária), Renascimento e, principalmente, o Barroco (onde podemos perceber uma
verdadeira arte da improvisação). A musica “erudita” passou a ser escrita com precisão e sem espaço para a
improvisação a partir do Classicismo exatamente devido a uma falta de “erudição” da nova burguesia que
se consolidou com a Revolução Francesa. No lugar do aristocrata culto que, além de ter uma boa formação
musical, também tocava muito bem um instrumento, surge o burguês rico, porém sem cultura, que deseja a
cultura do aristocrata. O burguês passa então a contratar músicos e professores para ter essa cultura, daí a
necessidade de precisão e, ao mesmo tempo, simplificação da escrita no classicismo. Cf. GROUT, D. J. &
PALISCA, C. V. História da Música Ocidental. Lisboa: Gradiva, 2001, p. 19, 312,313, 410,411, 478, 479,
480, 481, 482, 483.
13
Isto é, que não é “de ponta”, como mesas de som, sintetizadores, caixas de eco, gravadores de rolo, etc.
entre aportes antes considerados distintos, para além da alteridade enquanto valor de
mercado ou da frivolidade do multiculturalismo europeu. Não tenho razões para duvidar
de que esta abertura seja um fenômeno mundial, que repercute sobre as ideias e práticas
que definem os vários modos da música, como a percebemos, a criamos e a entendemos
nos dias de hoje.

A “Exterioridade” em John Cage


Na parte dois, desloquei o eixo de análise, buscando demonstrar que o erudito e o popular
sempre estiveram em contato, e que ainda hoje esta relação se dá para além da supressão
ou consolidação de seus respectivos domínios ideológicos. No entanto, não pretendo
diagnosticar um estado de coisas, nem destilar argumentos que se estabeleçam como
“verdade”, ou mesmo como “verdade provisória”. Ao contrário, afirmei que o aspecto
dinâmico e multifacetado da música de nosso tempo advém de uma abertura para a
“mixagem” múltipla e acelerada de faixas culturais outrora consideradas distintas, a
reboque da tecnologia vigente e das noções de procedimento e experimentação. Busquei
elaborar uma perspectiva a respeito de questões que marcaram os debates estéticos do
século XX, mas que hoje se encontram enredadas em inúmeras outras possibilidade de
apreensão. Nas configurações geopolíticas do território sonoro, a própria noção de
“música” se encontra relativizada, e uma série de novos elementos — estéticos,
históricos, técnicos — perfazem uma imensa variedade de perspectivas sobre a criação e
a fruição musical. Mas seriam essas reconfigurações exclusivamente pautadas pela
tecnologia e pelo contraste com os sistemas de referência da música erudita tradicional?
Arrisco uma resposta: para uma compreensão (ou ainda, por uma compreensão
determinada e parcial) do emaranhado de sonoridades que caracteriza a música hoje, faz-
se necessário evocar todos os discursos possíveis a respeito do assunto. Diante de uma
tarefa tão árdua quanto impossível, convém trazer à tona a específica, porém relevante,
contribuição dos compositores de ontem e de hoje. As forças engatadas no presente, que
lhe dão sentido e substrato, são liberadas pela virtualidade de concepções que não
partilharam necessariamente das mesmas condições técnicas e históricas. Exemplos,
técnicas, mercados, contextos, conceitos, ideias, procedimentos, técnica e tecnologia nos
graus mais diversos, confluem para estimular esta pluralidade. Tal variedade de
concepções e problemas desdobraram-se hoje de tal forma, que já não parece tão
fundamental prestar-lhes a devida atenção, pelo menos não tanto quanto se dá ao aparato
tecnológico e à implosão do “cânone da música ocidental”. Esta contribuição pode ser
parcial, pois permanece atrelada ao universo do artista e seu tempo, mas pode situar-se
também em relação às perspectivas que marcam a produção musical propriamente dita.
Ideias que, a despeito da época e do contexto em que foram produzidas, ainda hoje
repercutem sobre o trabalho dos vivos.

Considero não somente os compositores contemporâneos, mas aqueles que, de alguma


forma, se mantiveram como uma referência em sentido forte, seja a partir de suas ideias,
seja a partir de suas obras. John Cage, por exemplo, nutriu seu trabalho de forma muito
particular por um diálogo demiúrgico com elementos exteriores tanto ao discurso musical
tradicional, como também à uma percepção “auricular” da música. Em Cage, as noções
de experiência e procedimento se entrelaçam para criar, não uma obra, ou um conjunto de
obras, mas uma renovação em dois tempos: primeiro, uma crítica radical ao estatuto da
música ocidental, depois, uma liberação das potencialidades criativas ligadas ao trabalho
com sons. Por outro lado, promove o alargamento do raio de tolerância a respeito do que
pode (ou do que não pode) ser considerado sob o rótulo “música”, problemática que
ressoa ainda hoje, não somente nos debates acadêmicos referentes à música
contemporânea, mas sobretudo na produção musical abundante da atualidade. Pelo seu
esforço de fazer emergir novas perspectivas para a música, escolhi a análise de um
aspecto determinado da música de John Cage como forma de iluminar um dos aspectos
mais fundamentais da música de hoje: “deixar que os sons sejam eles mesmos”.

O percurso de John Cage na música do século XX pode ser comparado ao de Marcel


Duchamp nas artes: não é propriamente o conteúdo de sua obra que marca decisivamente
a produção musical do século XX, mas sobretudo o teor revolucionário de suas
experiências e procedimentos. Quando Duchamp leva seu ready made “Fonte” para o
Salão dos Independentes de Nova Iorque em 1917, seu intuito não era simplesmente fazer
troça com seus amigos ou “épater la bourgeoisie”, como muitos o acusavam na época,
mas inserir no circuito da arte uma série de questões que as velhas concepções da
chamada “pintura retiniana”, voltada exclusivamente para a percepção imediata, com
prejuízo do exercício intelectual e do jogo, deixavam comodamente de lado: o mercado
das artes, o “papado” dos merchands, o privilégio desmedido dos autores, a incorporação
de novos hábitos e costumes à reboque da urbanização galopante. Mais do que uma obra
de arte e uma provocação, o urinol duchampiano se configurava como ruptura com um
passado que subsistia cadavérico nos museus do Velho Mundo. O procedimento que gera
a “Fonte”, isto é, a conversão de um objeto cotidiano em objeto artístico por obra de um
gesto, a “assinatura”, desloca o foco e o sentido da arte, promovendo a liberação de
forças criativas recalcadas como efeito de um comércio acrítico e passivo. Sua obra é,
antes de tudo, gesto crítico, mas de uma crítica positiva, que devasta o campo
“epistemológico” da arte de seu tempo e abre espaço para o novo.

Não parece um exagero atribuir a John Cage um papel semelhante. Antes de um grande
compositor, Cage é um crítico em sentido positivo como poucos em sua seara. Com isso
não se quer dizer que a obra de Picasso não possuía um sentido crítico, ou mesmo o
Dadaísmo e o Futurismo não buscavam instaurar, cada um à sua maneira, uma outra
ordem política, social e estética. É bem verdade que sua situação em relação à música da
primeira metade do século XX é bem menos desoladora que a de Duchamp, haja visto
que Cage foi contemporâneo do serialismo dodecafônico de Schoenberg, da Segunda
Escola de Viena (Webern e Alban Berg, discípulos de Schoenberg), do serialismo
integral de Olivier Messiaen e Pierre Boulez, da música eletrônica de Stockhausen, entre
outras manifestações musicais relevantes. Mas, para além da introspecção dos debates
estéticos da música da primeira metade do século XX, presente nas modulações do
serialismo, mas também na proposta de alargamento do espectro sonoro contida na
música eletrônica/concreta, Cage propôs a “emancipação” dos sons através da
permeabilização do discurso sonoro por ideias, práticas e procedimentos de outras esferas
culturais e artísticas. Como Duchamp, que questionava a “pintura retiniana” porque seus
autores abriam mão de mobilizar o pensamento, Cage também questionava o que
podemos chamar de “música auricular”, isto é, uma certa inclinação dos compositores em
reproduzir a escala de valores da composição ocidental. Com esse movimento, o autor
dava o primeiro passo em seu projeto de crítica à introspecção e à racionalidade da
chamada musical ocidental.

Destilando de forma particular suas influências juvenis, Stravinsky e Scriabin, Cage


emerge no cenário musical a partir de 1948, com as “Sonatas and Interludes”14,
compostas a partir de um procedimento até então inédito: o piano preparado. Inserindo
objetos como plásticos e borrachas sobre as cordas do piano, o autor elaborou sua própria
interpretação do serialismo integral de Messiaen, mas se valeu também das lições do
escultor Richard Lippold e do crítico de arte Ananda K. Coomaraswamy, com quem ele
aprendera a respeito da filosofia Hindu. A partir deste arsenal de referências externas ao
discurso propriamente musical, tendência antagônica às manifestações musicais do seu
círculo de interesses – na medida em que, a partir do dodecafonismo, a música se
embrenhou mais e mais dentro de si mesma e de questões relativas à composição – Cage
construiu uma obra polêmica desde sua primeira apresentação. Porém, este aspecto
inclusivo de sua obra já estava presente em “Imaginary Landscape No. 1”, de 1939,
composição na qual Cage empregava duas vitrolas, piano em surdina e pratos, e que é
considerada a primeira composição eletroacústica. Posteriormente, o autor lançou mão de
operações que se utilizam do acaso em “Music of Changes” (1951), na exploração do
silêncio em “4’33’’”, da poesia e seus elementos “musicais” (ritmo e melodia), nas
coletâneas de escritos e leituras “Silence” e “A Year From Monday”, na série de peças
eletrônicas que deram sequência à “Imaginary Landscape” (em 1951 e 1952), e sobretudo
no emprego do elemento aleatório em diversas obras improvisadas, como “cComposed
Improvisations”, entre outras atravessadas pela indeterminação do acaso.

Neste sentido, um momento particular no percurso de sua produção musical, e que


exemplifica a originalidade marcante de seu pensamento, se dá no início dos anos 50.
Como afirma um de seus biógrafos mais célebres, “para os editores do Times, bem como
para muitos outros, considerar Cage como compositor se torna claramente um problema a
partir de 1951.”15 Neste período, o autor se torna um adepto do Zen budismo, além de
somar à clara influência de Marcel Duchamp (que ele conhecera anos antes, em 1943),
14
Apresentada em 1946 ainda de forma incompleta.
15
PRITCHETT, James. The Music of John Cage. Cambridge University Press, 1996, p. 01.
três outras possibilidades. A primeira, crítica em um sentido negativo, retoma o dadaísmo
heróico de 1915, menos em função da espontaneidade irreverente, do que do sentido de
esvaziamento da linguagem corrente, que confere significado às artes de forma
generalizada. Depois, a revalorização do trabalho meticuloso de Erik Satie, que ele
levaria como influência e inspiração até mesmo nas peças da década de 60 e 70, como
“Cheap Imitation for Piano” (1969). Por fim, para conferir operacionalidade a esses dois
interesses, Cage passou a trabalhar com a noção de acaso e indeterminação16, o que
propiciou um vasto campo de possibilidades. As peças de 1951 representam esses novos
interesses de forma radical: o “Concerto para piano preparado e orquestra de câmara”, a
continuação de uma peça de 1939, “Imaginary Landscape n. 4” e “Music of Changes”,
cujo método de composição remete ao oráculo chinês, o I Ching. Cage se utilizou do I-
Ching para elaborar gráficos que indicam dinâmicas, sobreposições, tempi, durações,
timbres, etc. É a partir daí que, para o bem e para o mal, o “caso John Cage” se apresenta
e se consolida no cenário da música contemporânea. Impõe-se em sua obra a utilização
do acaso, acompanhado da indistinção entre som “musical”, composto e executado por
instrumentos musicais, e sons advindo da natureza e da vida cotidiana:

Eu vi a arte não mais como uma forma de comunicação que


parte do artista em direção ao seu público, mas como uma
atividade na qual o artista encontra uma maneira de deixar os
sons serem eles mesmos17

Deixar os sons serem eles mesmo, ao invés de veículos de


teorias construídas pelo homem ou expressão de sentimentos
humanos.18

“Deixar os sons serem eles mesmos”. O conteúdo polêmico desta frase não pode de
forma alguma obnubilar seu conteúdo crítico, de forma que gostaria de propor uma

16
Cf. CAGE, John. “Indeterminacy”. Silence: Lectures and Writings. Wesleyan University Press, 1961, p.
35-40.
17
KOSTELANETZ, Conversations avec John Cage, Paris: Syrte, 2000, p. 77.
18
CAGE, John. Silence: Lectures and Writings. Wesleyan University Press, 1961, p. 10.
interpretação que demonstra a forma como ele ecoa sobre a música que se produz hoje.
No sentido de expor a relação de Cage com a exterioridade do discurso musical, três
possibilidades de interpretação são viáveis para esta frase célebre. Primeiramente, “deixar
os sons serem eles mesmos” corresponde a uma atitude crítica que vai de encontro ao
projeto “racional-auricular” da música ocidental, sobretudo a música chamada erudita e
seus esquemas e processos de controle e auto-referenciação. Neste sentido, Cage
promove a indiferenciação absoluta entre os sons considerados “musicais” e os sons
considerados “não-musicais”, com o intuito de liberá-los das escolas e circunscrições
conceituais. Mais do que um contraponto, o autor permite ampliar a percepção geral dos
sons, considerando o espaço sonoro como um processo de construção ilimitado,
restituindo aos sons um caráter vital que o cerebralismo franco-germânico havia
destituído. Não se trata, obviamente, de uma tentativa de dialogar com a “musique
concrète” de Pierre Schaeffer, na medida em que esta possui um credo propriamente
estético e bem delimitado, o que não é o caso de Cage. Os sons acusmáticos e os
processos eletroacústicos também seriam emancipados de sua escala de valores, bem
como aqueles subscritos ao credo futurista de Luigi Russolo. Os sons, eles mesmos, isto
é, independentes do suporte ou da escala de valores, poderiam se despir de eventuais
extrapolações promovidas por sua representação estética. Como escreve Cage em
resposta a Boulez, num de seus textos mais célebres: “Meu amigo Pierre Boulez está
interessado em música com parênteses e itálicos! Essa combinação de interesses me
parece excessiva em número. Prefiro minha própria escolha pelos cogumelos. Além do
mais, isso é avant-garde.”19

A escolha pelos “cogumelos”, para além do conteúdo irônico, indica a tendência de Cage
em trazer à tona seu interesse pela indeterminação, mas sobretudo, pela possibilidade de
dinamizar a escala de valores referentes à reprodução sonora. Por outro lado, “deixar os
sons serem eles mesmos” remete também à anulação da importância desmedida dada ao
compositor, o que, contraditoriamente, reforça sua presença na composição. Se é possível
restituir aos sons o seu caráter vital, que vem a se constituir pela relação do som com as
coisas e com a natureza em geral, esta possibilidade só pode se dar em virtude da

19
Idem, p. 274-276.
interferência do compositor. Não se trata, portanto, de afirmar a natureza estática de
exemplares sonoros consolidados (como o som de instrumentos musicais), mas de
reconhecer a pluralidade na dinâmica de reprodução sonora, processo que justamente
desenraiza a possibilidade de estabelecer um conteúdo ontológico para os sons. Caberia
ao compositor reconhecer essa dinâmica para desenraizá-la de suas significações
correntes. Nesta perspectiva, não somente os sons ocasionados por aparelhos eletrônicos,
ou mesmo os sons oriundos da cidade e sua “música” peculiar, mas também aqueles
produzidos por sintetizadores e máquinas afins.

Acredito que o uso dos ruídos (noise) para fazer música


continuará e aumentará até alcançarmos uma música produzida
com a ajuda de instrumentos elétricos, que disponibilizará para
fins musicais quaisquer sons que podem ser ouvidos. 20

“Deixar os sons serem eles mesmos”, enfim, também pode significar a permeabilização
total do discurso sonoro por elementos supostamente “externos”. Não somente os sons
seriam emancipados do controle moral e acadêmico, mas também as palavras, imagens e
sentidos em interação com outras possibilidades de expressão artística. A própria
formulação do problema indica o paradoxo: a noção de exterioridade que fundamenta a
obra de John Cage como um todo, não circuscreve propriamente um conceito ou uma
categoria, como se de fato houvesse um “dentro” e um “fora” dos sons. Antes, se afigura
como um elemento operacional, com o qual o compositor promove o deslocamento do
eixo de compreensão dos diversos discursos sonoros do nosso tempo em direção à
emancipação dos sons destes mesmos esquemas. Independente da compreensão moral
que cada indivíduo tem dos sons, bem como das escalas de valores da chamada música
ocidental, haveria o interesse geral, a inclinação à renovação e, sobretudo, um sentimento
de que a relação entre a música e os sons se dá cada vez mais a partir de um campo de
interesses comuns.

John Cage foi o primeiro autor no século XX a formalizar essa percepção de modo a
promover mais do que uma “escola” ou um método de composição, mas uma percepção
20
Idem, p. 3-6.
geral que ainda hoje ressoa naquilo que chamamos “música”. Seu pensamento musical é
talvez o maior exemplo de questionamento das bandeiras ideológicas que demarcam
diferenças entre o credo erudito e a chamada “música popular”. Se essas fronteiras, ou
ainda, as fronteiras entre os sons e suas respectivas representações, foram embaralhadas,
sem ser propriamente anuladas, tal como ocorre entre os diversos registros da produção e
do pensamento musical contemporâneo, isto se dá porque, a despeito das diferenças de
procedimento, resta a experiência como uma prática fundamental para a produção e a
reflexão acerca da música e seu objetos estéticos. Que ela tenha se generalizado a
reboque de condições técnicas e comunicacionais, isso apenas estimula o interesse nas
combinações e justaposições estéticas do futuro.

A “Horizontalidade” em John Oswald


a) Sobre o processo de composição horizontal em John Oswald
b) Diferenças entre cultura digital e cultura online
c) A cultura do sampler (para além das questões legais)

A “Fragmentação” no Zaitkratzer
Análise do trabalho do pianista alemão Reinhold Friedl e do Ensemble Zeitkratzer, que
combinam procedimentos populares e eruditos.

Anomalias
Estudos de caso:
A tecnologia intermediária; Stockhausen encontra Konono N.1;
Leyland Kirby e o acaso no procedimento de composição através computadores;
A música Japonesa e o estudo do ruído;
o Chiptune (música feita a partir de gadgets eletrônicos);
a retomada dos minimalistas e da vanguarda americana: Steve Reich, Moondog, La
Monte Young;
as “batidas críticas”.
Conclusão provisória
Um conclusão provisórias deve apontar para um futuro indeterminado, ainda que
balizado por todos os elementos abordados

Sim, na esfera do pop anglosaxão é possível detectar traços da retromania e da new


aesthetics, mas ainda se trata de conceitos vagos e particulares, que dizem respeito a um
contexto sócio-técnico-histórico-estético que é parcial, mas não se sabe particular: o
nome disso é etnocentrismo — ora, e o mundo do samba e da salsa não foi sempre
pautado em uma “retromania”?

Procedimento e experiência implodem estes universos contextuais; o que nos resta é


abraçar o terror e a dança…
DISCOS

1. Melhores da década que falta escrever:

Hermano Vianna, Beto Villares (org.) – Música do Brasil [Abril Music/Abril


Entretenimento; 2000]
Em quatro cds, o antropólogo Hermano Vianna e o músico Beto Villares gravaram e
compilaram 82 registros: carimbós, cocos, marujadas, maracatus, tambor de crioula e
outros ritmos catalogados pelos cadernos de antropologia, mas interpretados à luz de
perspectivas culturais específicas, que transformam o sabido em não sabido, o conhecido
em desconhecido, e transborda vivacidade rítmica e poética. Isto fica evidente em faixas
como “Boa tarde povo”, com as Baianas Mensageiras de Santa Luzia e “Toque da
Zambiapunga”, da Zambiapunga do Taperoá, com uma percussão toda realizada por
enxadas (!). Silenciosamente revolucionário.

Aphex Twin – Drukqs [Warp; 2001]


Ora, não bastasse Richard D. James ter ditado norma para a música eletrônica, não
bastasse a genial parafernália conceitual de “Windowlicker”, não bastasse representar
inovação sob muitos aspectos na música eletrônica mundial, o cara me sai da toca depois
de ficar alguns anos em recesso com um álbum duplo cuja primeira audição traduziu-se
em maravilhamento e espanto. Burilando as formas rítmicas do drill’n'bass como
ninguém, ampliando sua gama de timbres com a utilização acentuada do piano preparado,
mas também abrindo espaço para faixas mais palatáveis como “Bbydhyonchord” e
samples de conversas estranhas (?),Drukqs apresenta uma série de clássicos imediatos:
“Gwarek2”, “Jinweythek Ylow”, “Meltphace 6”. Como poucos, James tem a manha de
renovar em diversas searas ao mesmo tempo, construindo uma obra-prima de estranheza
e vanguarda, extremamente diversificada.

Portishead – Third [Universal Island Records; 2008]


Desde que foi lançado em 2008, Third não sai da minha lista de audição pessoal.
Arranjos secos, percussões preciosas e belas canções entoadas pelo canto desesperado de
Beth Gibbons: desta combinação, surgem pérolas absolutas como “We Carry On”, “The
Rip” (aqui belamente executada por Thom Yorke e Jonnhy Greenwood) e a comovente
“Machine Gun”. Um disco que surpreende não só pela radical correção de rumo, mas
pela própria excelência do trabalho.

Prefuse 73 – One Word Extinguisher [Warp; 2003]


Talvez tenha feito a opção mais reacionária, já que Vocal Studies… contém de fato a
novidade concentrada, com a obra-prima “Point to B” e um punhado generoso de samples
os mais interessantes de que se tem notícia. Mas One World Extinguisher é uma
enxurrada quase vinte minutos maior que a anterior, um excesso de energia criativa, um
aperfeiçoamento e abertura de perspectiva que serviu para confirmar o nome de Herren
entre os grandes produtores da década. Basta escutar “Detchibe”, com sua estranha
dinâmica de volumes e andamentos, a saturação dos timbres em “Plastic”, o aspecto
aphextwínico de “90% of My Mind Is With You” para entender do que estou falando.

Radiohead – Hail to the Thief [Capitol; 2000]


Em Hail to the Thief, os experimentos presentes em Kid A e Amnesiac, que ainda
negociavam com sonoridades mais dóceis que o grupo parece ter evitado dali em diante,
foram adequados a um excesso, a uma despreocupação com as convenções e a um
extravasamento criativo. Deste contexto surgiram faixas geniais como “The Gloaming” e
“Myxamatosis”, que afastaram defintivamente os fãs da banda indie.

Rhythm & Sound – With The Artists [Burial Mix; 2003]


Mais um capítulo da carreira de Moritz Von Oswald e Mark Ernestus, a segunda
coletânea do Burial Mix com Rhythm & Sound é uma obra prima que com certeza
prenuncia o dubstep, mas não se reduz a ele. Ao lado de verdadeiras legendas do reggae
como Cornel Campbell, Paul St. Hilaire, The Chosen Brothers, Love Joy, Jennifer Lara e
Jah Batta, Oswald e Ernestus cria uma série de riddims personalíssimos, delicados e
etéreos. Absolutamente maravilhoso e precursor, como tudo o que a dupla em questão
costuma fazer.
Caetano Veloso – Noites do Norte [Universal Music; 2000]
Entre o período em que confiou os arranjos de seus discos e shows a Jacques
Morelembaum e a fase atual, a obra de Caetano Veloso foi absorvida por uma
experiência intermediária mas de primeira ordem. Noites do Norte contempla tanto a
combinação de orquestrações com virtuosa percussão baiana que caracaterizava Livro,
como já apresentava os maneirismos roqueiros que ganharam espaço com a parceria com
Pedro Sá. A esperteza da letra de “Rock’n'Raul”, o arranjo em loop de “Cobra Coral”, a
regravação bluesy de “Zumbi” e, sobretudo, o ritmo quebrado e a letra genial de “13 de
Maio” são apenas grandes momentos de um disco cheio de surpresas.

Four Tet – Rounds [Domino USA; 2003]


A vida é dura. Muitos discos importantes ficaram de fora, mas eu não poderia ser
desonesto comigo mesmo a ponto de deixar este Rounds. Sua presença nesta lista se deve
a um descompromisso total com a correspondência entre o suporte e o gênero musical,
isto é: não é preciso fazer música dançante caso você se utilize de um equipamento
eletrônico. Mesmo após ouvir Stockhausen, Ligeti, Kraftwerk, Aphex Twin e outros
monstros da eletrônica, este disco permanece para mim um dos mais adoráveis
experimentos que já ouvi nesta seara, pela exploração indiscriminada de ambient, hip
hop, jazz, etc.

Spring Heel Jack with Matthew Shipp, Evan Parker, J. Spaceman, William Parker
& Han Bennink, Live
Fennesz, Endless Summer
Four Tet, Rounds
M.I.A., Kala
William Basinksi, Disintegration Loops

Críticas completas
Matthew Shipp, John Medeski – Scotty Hard’s Radical Reconstructive Surgery
(2006; Thirsty Ear, EUA)
Tenho pra mim que rótulos como melting pot, crossover, funk’o’metal carregam uma
intenção didática, qual seja, indicar que um ou dois gêneros musicais consolidados se
misturaram, e formaram um terceiro elemento que confunde jornalistas e estudiosos,
desafia os marketeiros e, geralmente, deliciam o público. No entanto, mesmo o jazz, o
soul, o samba e outros “gêneros” aparentemente consolidados… Ora, eles também são
constituídos a partir de fragmentos sem rótulo, de pequenas e preciosas singularidades
que, por ocasião de condições e opiniões diversas, acabam se cristalizando. Me parece
que a música é, por definição, “misturada”, cacos de procedimentos, pesquisas,
formações esquecidas… A “mistura” tão apregoada hoje pelo mundo musical mais
delimita um período de histeria coletiva do que propriamente um ritmo, ou um gênero…
O mercado influi nesse processo de forma decisiva, às vezes nociva, mas não definitiva.
A riqueza e a vivacidade da música hoje residem na demonstração e confirmação de
como o “gênero” não é nem desejável e até mesmo, desconfio, possível. A mistura criada
por Scotty Hard mostra que a música hoje está mais viva do que nunca, e isso num
sentido muito específico: sua produção escapa do gênero não por obra de um “niilismo”
(a explicação corriqueira), mas sobretudo porque, ao que parece, a música hoje é, de fato,
supra-nacional, apátrida… Talvez por este motivo esta cirurgia seja operada justamente
por indivíduos que, em seus respectivos trabalhos, ampliam a indeterminação na música
contemporânea. Scotty Hard’s Radical Reconstructive Surgery não se posiciona como
“sintoma”, mas causa. Um disco que não define o futuro ou o passado, mas, com rigor e
sagacidade, um delicioso, insuportável e profundo “agora”.

Vampire Weekend – Vampire Weekend (2008; XL Recordings, EUA)


Os fissurados em música que, em busca de informação, experimentaram a vida dura dos
anos 80, sabem que o advento do mp3 promoveu a emergência de compositores, músicos
e instrumentistas antes negligenciados pela dinâmica de um mercado limitado e bilateral.
O mp3 reforçou a “cultura do culto” e facilitou algumas trocas inusitadas entre artistas e
público, mas também entre artistas e artistas. Toda gama de informação antes considerada
periférica, emerge e se estabelece como “matriz”, ainda que provisória… nesse sentido,
um dos discos mais interessantes do último mês é o homônimo do Vampire Weekend,
curioso afro-pop novaiorquino. Observo entretanto que as inserções das células
elaboradas a partir do rock africano, parecem absolutamente descompromissadas com a
fidedignidade e o “culto”, mas, de outro modo, aproximam-se de um processo de
instrumentalização de elementos isolados da música africana. Nada contra, pelo
contrário. Mas que se registre: o burburinho em torno do vampire weekend relaciona-se
mais à inclusão tímida dos elementos africanos, do que com o que o grupo propriamente
tem a dar: melodias, harmonia e ritmos absolutamente afinados com o que se
convencionou chamar indie rock… Por este motivo, destaco aqui as faixas “Mansard
Roof”, “Cape Cod Kwassa Kwassa” e “Bryn”, capazes de ferir os paradigmas que
caracterizam a vulgata do gênero – 4/4, guitarras e roupas largadas, cara de entediado…
Me parece de um pessimismo atroz afirmar que esse disco possa chegar entre os melhores
do ano, mas, com a fissura em dia, vale encará-lo com otimismo.

Vários Artistas – Soundboy Punishments (2007; Skull Disco, Inglaterra)


Lemos e ouvimos por aí algumas opiniões generalizantes e preconceituosas sobre o
assunto “música”. Com uma ingenuidade medonha, alguns dizem: “música eletrônica”,
“música isso”, “música aquilo”… Penso que não é nem possível nem proveitoso
distinguir e identificar a música em termos ‘genéricos” como, por exemplo, “acústico”,
“eletro-acústico” ou mesmo “eletrônico”… Pois o que ela nos oferece são experiências-
forma, experiências-timbre, experiências-idéia, todas acontecendo ao mesmo tempo
agora, de forma instável… E isso tanto em relação ao criador, quanto ao fruidor… É por
essas e outras que, na modesta opinião de quem escreve, esta coletânea capitaneada por
Shackleton e Appleblim é o melhor disco de 2007. Mas o que significa escolher como o
melhor disco de 2007 uma compilação com faixas de anos anteriores? Enquanto Burial,
Pinch e Kode9 arquitetam o dubstep, a dupla já o desconstrói, imprimindo uma dinâmica
absolutamente diversa (e arrepiante!) a esta combinação de 2step, técnicas de dubbing e
experimentação rítmica e timbrística. Basicamente, o disco exibe uma arte rara da
transfiguração, sonora e intelectualmente arrojada, em que se percebe que toda a estrutura
clássica da música (a trinca melodia-harmonia-ritmo) é posta em questão. O que ouvimos
são melodias rítmicas (como em “Stalker”), ritmos melódicos (como em “Naked”, ou
“Girder”), e assim sucessivamente. Mas, sendo esse um caráter mais ou menos geral da
música de hoje, cabe ressaltar que a força do som de Shackleton e Appleblim reside na
forma com que eles trabalham suas batucadas digitais, complexas e entrelaçadas camadas
preenchidas por dinâmicas sonoras e detalhes que fazem a diferença. Reparem na
“melodia” de “I Am a Animal”, como tem uma força “percussiva” peculiar. Nesse
sentido, destaco também o tratamento dado às vozes em “Blood in my hands”. Seguindo
este método rítmico-transfigurador, Shackleton e Appleblim apontam para o futuro de um
gênero que, em pleno 2008, ainda esboça seus primeiros clichês.

Frank Bretschneider – Rhythm (2007; Raster-Noton, Alemanha)


Frank Bretschneider não é propriamente o que se poderia chamar de um pioneiro na
exploração das relações entre música e imagem. Mas, sem dúvida, seu trabalho
caracteriza-se por uma consistência temática, por uma persistência no trabalho com
estruturas musicais que exploram as possibilidades de um discurso mais atrelado à
imagem do que ao som. Como Marcel Duchamp buscava uma pintura “anti-retiniana”, o
trabalho de Frank Bretschneider é muito pouco musical. Daí decorre uma das
características fundamentais de seus discos: a presença tímida de “harmonia” e “melodia”
no sentido tradicional do termo. Claro que uma concepção de harmonia desprendida dos
cânones da música ocidental considerará absurda esta visão: Frank explora, sim, uma
dimensão da harmonia que, entretanto, não se esgota na sobreposição de notas ou
acordes, mas, sobretudo, se esmera na elaboração de estruturas compostas por peças mais
“sonoras” que propriamente “musicais”. Para que esses comentários não passem por
abstratos, sugiro a audição dos discos Rand, de 1999 e a etérea parceria com Ralph
Steinbüchel, Status, de 2005.

Influência para artistas como Ricardo Villalobos e Vladislav Delay, o trabalho de


Bretschneider aponta uma indistinção entre música e imagem. Porém, não num registro
onde imagem e música se completam, como no videoclipe. Trata-se, antes, de um
contexto em que o próprio som, através de ruídos e loops, evoca uma dimensão em que a
audição é necessariamente deslocada de seu sentido “auricular” apelando para o corpo,
para os olhos… Em suma, para uma dimensão mais sensível da forma… E isso de modo
a privilegiar o ritmo, que, de fato, sempre esteve presente nos seus discos. Pois bem, seu
último disco, de 2007, chama-se Rhythm.

Quando soam as primeiras notas (?) de “A Soft Throbbing Of Time”, somos levados a
pensar: ok, mais um trabalho do artista plástico que viu no Kraftwerk e na “música
eletrônica” a abertura de precedente ideal para expressar suas idéias musicais, tão
racionais quanto chapantes… Mas não: dessa vez o Kraftwerk deu de encontro com o
Public Enemy mais lavado, com aquela batida afro-sacolejante de “Don’t Believe the
Hype” e “Black Steel…”, que sentimos simultaneamente no corpo e na alma (como, de
fato, corpo e alma são…). Estruturas mais dançantes, timbres mais agressivos, alguma
referências aos trabalhos anteriores, este Rhythm pode ter passado em branco pelas
listinhas de fim de ano – na renomada e vanguardista The Wire ficou injustamente atrás
dos discos mornos de Pram, Kassin+2 e LCD Soundsystem… Mas, ao contrário deles,
figura certamente como uma peça consistente (e prazerosa) na discografia desta década
que já vai.

Om – Pilgrimage (2007; Southern Lord, EUA)


Baixo e guizos orientalizados descortinam o assombroso espetáculo que se seguirá. O
ritmo acelera, uma atmosfera modal ganha espaço… Subitamente, o som pára, mas
recomeça: a mesma cama de baixo e guizos, desta vez marcada por um tambor grave e
elegante, configurando um novo estágio. Estamos a oito minutos da primeira faixa,
“Pilgrimage”, e ela é suficiente para manter o ouvinte vidrado na cadeira. A primeira
faixa se vai…

A segunda faixa se inicia no mesmo tom da anterior: desta vez, a marcação é brevemente
realizada por um instrumento grave. Poucos segundos se passam, quando eclode uma
tradicional cozinha metaleira, estilo Black Sabbath, composta por baixo e bateria. (Uma
característica bacana da bateria de Bill Ward é esse toque duplo na caixa que confere um
suingue característico, e que Chris Hakius segue fielmente…). O vocal é comedido, nada
de gritos e agudos espalhafatosos, mas, ao contrário, uma continuidade tonal que se
modula imperceptivelmente…
A terceira faixa se parece com a segunda, mas percebe-se mais agudamente que o ritmo
volta e meia é ralentado, depois acelera, configurando um minimalismo sutil… A música
pára: o baixo limpo retorna, desenvolvendo uma melodia aparentemente comum às outras
faixas. A cozinha e o vocal, dessa vez, elevam o tom. A letra evoca doutrinas militares,
personagens bíblicos, epifanias, contribuindo para aquele clima de baixo astral e mistério
tão caro e condizente com o discurso musical do metal.

Chega a quarta faixa: é a reprise da primeira. O mesmo baixo, o mesmo tambor, o tom de
voz inusual para os padrões do gênero, indicam que este álbum rigoroso e denso está
chegando ao fim. E neste momento, vem à minha mente um daqueles pensamentos
nostálgicos contra os quais forma-se nosso gosto.

No auge da paixão metaleira, eu sonhava com um disco como Pilgrimage: seco,


intelectualizado, minimalista, em nada afetado… Embora esse disco não existisse ainda,
nada me impedia de entrar no universo de unicórnios, demônios, caveiras e médicos
nazistas que compunham o ideário headbanger. Sequioso por outras sonoridades,
divergentes da suavidade do jazz, do samba e da mpb, eu buscava no metal algo que
somente ele podia me dar, muito embora parcialmente. Havia sangue, vontade, força no
som do Metallica, Slayer, Anthrax, mas no conceito… que lástima! Om, bem como
Orthrelm, Aluk Todolo e outros metaleiros do pensamento, conferiram uma dignidade ao
gênero. Pilgrimage representa fielmente essa nova dignidade do metal.

Carlinhos Brown Presents Candombless (2005; Candyall Music, Brasil)


Aqueles que procuram pensar o Brasil e a própria dimensão das noções de nação, cultura,
popular/nacional, etc., costumam tomar certos acontecimentos como testemunhos das
contradições e singularidades inerentes às construções culturais e sistemas de valores que
aqui vigoram. Assim ocorre com o Hermano Vianna de “O Mistério do Samba”,
referindo-se ao encontro de Donga e Pixinguinha com Villa-Lobos; ou o Sérgio Buarque
de “Visão do Paraíso” em relação à descoberta da América; Rogério Sganzerla em
relação à estadia de Orson Welles no Brasil; e mesmo o Euclides da Cunha de “Os
sertões”, em relação a Canudos. No meu caso, modesto em relação aos pensadores e
artistas citados, conservo na memória, como um acontecimento revelador, o encontro de
dois Browns, o Mano e o Carlinhos, no palco de uma dessas premiações ridículas
organizadas pela MTV. De um lado, o luto, o protesto e os modos austeros daquele que
foi um dos propulsores decisivos do hip hop no Brasil; de outro, o colorido, a
descontração alegre de um verdadeiro artista e agitador cultural. Os dois se estranham:
Carlinhos, mestre de cerimônias, brinca com Mano, que, sisudo, lhe nega uma resposta.
O ocorrido foi comentado pelos meios de comunicação, mas especificamente na imprensa
paulista adquiriu uma dimensão beligerante. É claro que, de um ponto de vista mais
aprofundado, não se pode admitir que mais coisas separam do que unem os dois artistas.
Em ambos os casos, percebe-se uma redefinição dos modos e trejeitos da negritude
brasileira, despojada de subserviência que, por exemplo, caracteriza, ainda hoje, a grande
maioria dos sambistas – salvo gloriosas exceções de Geraldo Pereira, Antônio Candeia,
Nei Lopes, Wilson Moreira e mais meia dúzia… Mas, ainda assim, os “militantes” de
uma revista que nem vale citar o nome desqualificaram a poesia e até mesmo a condição
social do Mano e se indignaram com o colorido e os trejeitos alucinados de Carlinhos.
Sendo que, notoriamente, a imprensa paulista cultiva um ódio a priori de Carlinhos, a
ponto de pôr um desses já clássicos mequetrefes recém saídos da Faculdade de
Comunicação pra desqualificar o álbum que comento aqui. Candombless passou
praticamente desapercebido pelo grande público, e mesmo pela crítica especializada. É
que, segundo a opinião vigente, os pontos de candomblé são arrolados num registro
essencialmente folclórico, vistos de forma estagnada por uma perspectiva ignorante das
possibilidades de reprocessamento da cultura. Assim como Mano e Carlinhos
abandonaram o script, isto é, fugiram dos estereótipos que antes identificavam o
comportamento do “bom negrinho”, da mesma forma Candombless foi mal
compreendido e subinterpretado. Carlinhos Brown desafia o preconceito e afirma uma
percepção oposta em Candombless, incorporando elementos diversificados,
aparentemente estranhos, aos pontos religiosos: pianos “dodecafônicos”, guitarras e
vozes com efeito, samplers, batidas eletrônicas que, ao se unirem às composições,
adquirem uma dimensão expressiva para além dos rótulos. Sintetizados nos pontos de
candomblé, esses elementos não funcionam como mero adereço, simploriamente
anexados no sentido de uma “atualização” – como faz Marcelo D2 com o rap e o samba –
mas, ao contrário, reforçam a vivacidade e atualidade desta música especificamente
religiosa. Longe de querer desafiar a tradição, Candombless acaba por impor uma
percepção avançada da questão cultural: o rótulo folclórico não interdita a “influência”,
pois, pelo contrário, é na mistura, e não na conservação hipócrita, que se dá vida e
expressão à música, seja ela qual for.

Group Inerane – Guitars from Agadèz (Music of Niger) (2007; Sublime


Frequencies, Níger)
Antes de mais nada, desfaçamos uma confusão disseminada pelos sites que comentaram
este lançamento espetacular: Níger e Nigéria são países e contextos diferentes, apesar de
vizinhos. Uma diferença fundamental entre os dois países, além do país colonizador,
reside no fato de que a Nigéria não faz fronteira com o deserto do Saara, de modo que
não herda os conflitos étnicos e os costumes que caracterizam essa região. Faz toda a
diferença: a presença dos rebeldes tuaregues que, em meados da década de 60, foram
massacrados pelo governo local, com a ajuda dos colonizadores franceses, propiciou uma
situação tal de miséria e desolação que o grupo passou a investir na música como canal
de denúncia dos abusos cometidos por seus opositores, mas também como forma de
“gerar renda”. Munido dessas informações genéricas, adentrei nesse pequeno universo
musical do Group Inerane. Mas não descobri se as faixas aqui registradas foram dispostas
pelo próprio grupo, isto é, se o disco é “autoral” ou apenas uma compilação de gravações
esparsas. Se o “enigmático” Bibi Ahmed de fato é um rebelde, se participa de alguma
organização política? Quais as suas influências musicais? O que dizem as letras? Sei
muito pouco… Entretanto, o disco me cativou, depois chamou uma atenção que eu não
esperava e, por fim, me flagrei absolutamente viciado. E admirado com a quantidade de
possibilidades rítmicas e melódicas exploradas, com a tênue divisão entre o que é
“nativo” e “adquirido”, com a gama de possíveis influências do blues, do soul, do rock.
Algumas bases são tocadas num 3/4 veloz, outras num ritmo muito parecido com uma
soca. Eventualmente, sobre uma levada hipnótica de tambor, ecoam solos de guitarra
entrecortados por gritos e coros femininos. As possibilidades da guitarra elétrica são
elevadas a um patamar ainda desconhecido: são glissandos, estacatos, solos tocados com
velocidade de guitar hero, mas uma seqüência de notas absolutamente inusitada. É certo
que em “Nadan Al Kazawnin” a levada e as guitarras lembram Velvet Underground;
“Kamu Talyat“ evoca Durutti Column. Mas a mera comparação não exprime
adequadamente a experiência que este som evoca, experiência essa tomada de momentos
surpreendentes. É claro que muitas das impressões positivas que tive em relação ao som
do Group Inerane decorrem da distância cultural que mantenho dele, uma curiosidade
que, infelizmente, pode ser confundida com a pasmaceira multiculturalista comum no
discurso institucional contemporâneo. Mas, superadas essas contradições, superados os
possíveis incômodos que o fetiche da novidade pode trazer para o espírito, o que
ganhamos com este álbum do Group Inerane é a certeza de que a produção musical hoje
obedece ao estímulo do díptico “pesquisa” e “descoberta”. E isto tanto na criação musical
propriamente dita, quanto na divulgação de manifestações que não encontravam espaço
antes do advento da internet e de suas formas particulares de produção e difusão cultural.

Sir Richard Bishop – Polytheistic Fragments (2007; Drag City, EUA)


Uma máxima, polêmica: músico não entende música. Virtuosismo e vanguarda nem
sempre se entendem, como se pode observar, por exemplo, na música instrumental
brasileira contemporânea de Yamandú Costa e Hamilton de Holanda ou no jazz
“tradicional” de Joshua Redman. Ocorre neles um excesso de técnica e um déficit na
criação e concepção, como se a única particularidade que a música pudesse oferecer a
seus ouvintes fosse a presença instruída do músico e seus dotes. Por outro lado, o
conservadorismo do instrumentista, e não da música, nem sempre interdita a criação,
como é o caso de Hermeto Pascoal e Edu Lobo, dois instrumentistas geniais no aspecto
criativo, mas que em entrevistas desqualificam preconceituosamente a “musiquinha” e os
“musiquinhos” – o primeiro referente à música estrangeira, o segundo àqueles que não
correspondem à técnica necessária para reproduzir a “boa música”. Tanto o primeiro tipo
– o instrumentista competente e conservador – quanto o segundo – competente e criativo
– se caracterizam por um culto do approach técnico, ora no contexto da linguagem
musical, ora num contexto xenófobo. De um modo geral, trata-se de uma certa fidelidade
não à música propriamente, mas à uma visão da música como “estilo”, como expressão
nacional, ou algo que o valha…
Sir Richard Bishop é um músico de outra cepa. Embora extremamente virtuoso como os
artistas citados, não se importa com nada que não seja a música, não contrai
“compromissos” de qualquer natureza, e, se os tem, não os enuncia orgulhosamente. Ex-
guitarrista do prolífico e espetacular Sun City Girls, Bishop mantém um trabalho solo
igualmente admirável. Destes trabalhos, Polytheistic Fragments é o mais palatável e bem
humorado, mas também o mais “estranho”, pois leva justamente esse descompromisso
com estilo e gênero a níveis espetaculares. Nele, podemos escutar uma slide guitar
bluesística, com interferências elétricas em “Hecate’s dream”, um new age intrigante em
“Saraswati”, um flamenco histérico em “Cross My Palm With Silver”, uma polca elétrica
em “Canned Goods & Firearms”… E “Cemetery Games”, na minha opinião a mais
interessante do disco, que lembra um daqueles baiões dissonantes de Hermeto Pascoal,
temperados por uma percussão hindu fake. Por outro lado, não acho que seja possível
dizer que a principal característica de Polytheistic Fragments seja a diversidade, mas
justamente seu oposto, a unidade. O trabalho de Bishop move-se numa região onde já não
é mais necessário nem produtivo orientar-se por concepções genéricas. A unidade de seu
trabalho reside na ampla expressão dos arranjos, das composições e mesmo das intenções
de cada álbum. Bishop, como Miles Davis, é um músico para além da música,
supraestilístico, para quem a música não é simplesmente um meio de expressão, mas, a
própria expressão, a própria vida “falando” sua linguagem caótica.

Flying Lotus – Los Angeles (2008; Warp, EUA)


Dentre as possíveis interpretações para a música de Flying Lotus, duas me parecem
inescapáveis. A primeira e mais óbvia, inscreve seu trabalho num contexto de
desconstrução radical do hip hop, no qual se destacam Madlib e, sobretudo, Guillermo
Scott Herren. Inclusive, refinando esta primeira percepção, se pode até dizer que o
trabalho de Flying Lotus quase “padece” da comparação com o Prefuse 73, tamanha a
semelhança dos cuts e colagens com os quais ambos desafiam a estrutura do hip hop,
enfatizando mais a decomposição rítmica do que o suingue, operando mais através da
manipulação das timbragens do que do respeito pela unidade sonora e identificável do
sampler. Ainda nesta chave de interpretação, poderíamos atribuir ampla dimensão
intelectual à música desta turma, já que, combinando revisão epistemológica com
pesquisa vertiginosa, alçariam a linguagem do hip hop a um nível de elaboração jamais
experimentado pelo gênero. Vamos dizer que Flying Lotus, Madlib, Scott Herren e os
recém-chegados Food for Animals, por exemplo, representam não tanto os Beatles do
gênero, ficando este papel a cargo de Jay Z e Kanye West, mas algo próximo de Frank
Zappa e David Bowie. Mas aí, eu me pergunto se o fato destas experiências já terem sido
relativamente difundidas e, num certo sentido, cristalizadas, não põe em xeque o trabalho
de Flying Lotus, pois, de certo modo, ele acabaria por constituir um experimentalismo
redundante, ainda preso às contribuições de seus precursores. Seguindo por este caminho,
Los Angeles até é um bom disco, mas traria consigo a marca de uma empreitada
incompleta, desprovida de uma linguagem própria que pudesse fornecer um sentido
efetivo à sua sede de originalidade.

Felizmente, para o bem e para o mal, o pensamento caracteriza-se pela possibilidade de


simulação: por mais que a força de um argumento pareça incontornável, ainda assim
podemos programar o cérebro para superá-lo. Pois embora eu não disponha de muitos
argumentos para desinscrever Los Angeles do contexto acima, há algo nele que encerra
uma assinatura, uma sonoridade característica, um passo à frente de 1983 e mesmo do
excelente EP Reset, de 2007. Assim, poderíamos passar a considerar o álbum na
perspectiva de um processo de amadurecimento, no qual as texturas percussivas e
sonoridades peculiares criadas pelo produtor adquirem um sentido próprio. Talvez por ser
grande demais, Los Angeles não mantém uma regularidade satisfatória, o que nos leva a
cogitar a hipótese de que a música de Flying Lotus se adequa melhor ao formato de EP.
Mas, por outro lado, pode-se dizer que alguns dos momentos mais interessantes do ano
nesta seara se encontram aqui. A o que me refiro? Primeiro, à preponderância da
percussão, e mais especificamente da percussão “eletrônica”, na composição das batidas,
sobretudo em “GNG BNG”, “Melt” – reparem nos toques percussivos de “vidro” de
“Camel”; na diversificação vertiginosa das texturas, alternando ora timbres estridentes,
glitch, ora seqüências mais jazzísticas e harmônicas, como em “SexSlaveShip” e
“Breathe . Something/Stellar ST”; e também na excelente disposição e consecução das
faixas, que muitas vezes remete a uma experiência conceitual.
Mas o grande destaque entre as faixas de Los Angeles são duas das três canções,
“Roberta Flack” e “Testament”, cantadas respectivamente por Dolly e pela voz feminina
do excepcional Gonja Sufi, um cantor com trejeitos vocais semelhantes aos de Sarah
Vaughan. As duas se caracterizam por belas melodias jazzy, que no entanto contrastam
com a sobreposição variada de texturas abrasivas e polirrítmicas. Nota-se, entretanto, que
a abrasividade e a polirritmia presentes tanto no riff distorcido que pontua o final de
“Roberta Flack”, como no cluster ligetiano que inicia “Testament”, não representam
elementos ornamentais, mas constituem a própria natureza conflituosa do som de Flying
Lotus. É no embate entre os sons, e não no cultivo de sua carga histórica, que Los
Angeles se desembaraça do legado desconstrutivo de Madlib e Scott Herren. Não que sua
música careça ou se ressinta disso, mas talvez Los Angeles demonstre, ao menos
parcialmente, uma vontade bem sucedida de seguir outros caminhos.

Philip Jeck – Sand (2008; Touch, Inglaterra)


Ouvindo Sand, um amigo contrariado acusou a existência de recortes harmônicos e
melódicos nas músicas, como se estivesse apontando uma contradição comprometedora
em relação às ousadas pretensões do álbum. Para ele, esta suposta ousadia referia-se
meramente à estrutura abstrata e instrumental da música de Jeck, automaticamente
inscrita num contexto de música experimental, no qual geralmente inverte-se o ônus da
prova, tendo o artista que explicar a criação sob pena de cair na desconfiança. Em
resposta a este amigo, eu diria que o privilégio dos elementos tradicionais da música
ocidental exprime um preconceito, mas sobretudo impede o acesso à novidade melódica
de Sand. Ao contrário do Treny de Jacaszek, cujo sentido melódico atrapalhava um
pouco a construção das texturas, Sand se impõe porque Jeck constrói a melodia um tanto
quanto deslocada de seu eixo harmônico, fazendo-a sobrevoar o drone e evocar uma
sensação constante de instabilidade. Aliás, a diferença entre estes álbuns arquitetados
sobre prerrogativas bem semelhantes, mas de resultados tão diferentes, reside no fato de
que as construções melódicas propostas por Jeck não são tão simplórias e emocionais
como as de Jacaszek, mas repetitivas e ásperas, muitas vezes corroboradas por uma
timbragem abrasiva ou por um sutil deslocamento de clima (como “Chime again”), mas
geralmente por um phaser que percorre todo o álbum. E aí temos um segundo trunfo de
Sand, porque as estratégias harmônicas de Jeck se casam perfeitamente com a ambiência
das gravações, dando origem a uma sonoridade extremamente ambígüa, que trafega entre
elementos musicais e outros nem tanto. Não constitui exatamente uma novidade a
interação entre diferentes domínios artísticos, mas o trabalho de Philip Jeck nesta seara é
bastante pessoal e inventivo. O autor aliou toda a sua experiência de artista plástico,
compositor, experimentador (com a utilização precípua de toca-discos) para produzir uma
sonoridade rústica, polimorfa, que muitas vezes, sobretudo em alto volume e no fone, nos
toma pela materialidade incisiva, situando a audição numa experiência sensorial tão
fascinante quanto indeterminada.

Boom Bip & Dose One – Circle (2000; Mush, EUA)


1. O que será do hip hop no futuro? Mesmo sem fazer muito sentido, é curioso observar
como esta pergunta determina não só a avaliação, como a produção do hip hop dos
últimos dez anos. Ora, mas somente aos tolos interessa pertencer ao futuro: para quem
produz agora, importam as “flores em vida”, importa sobretudo ser consumido e digerido
aqui e agora.

2. Quando uma atitude ou comportamento é nocivo para o convívio social, suspende-se


estrategicamente o direito de ir e vir do infrator, elimina-se qualquer possibilidade de que
ele venha a pertencer a um futuro onde suas ações se prolonguem. Mas na arte é
diferente: quanto mais intempestivo e desestabilizador, mais “visionário” será
considerado o artista. Quanto mais ele investe em algo que não vende, impossibilitando
tanto a indústria quanto a economia libidinal dos consumidores, mais será isolado no
“futuro”, isto é, num local bem distante do momento presente.

3. Um olho encara o ouvinte. O que ele quer? O que espera? Será que espera algo? Ou
simplesmente olha através do círculo? Será que olha pro futuro ou para o passado? Seu
raio de visão se adequa as suas aspirações? Estará satisfeito? Alimenta ingenuamente
ideologias e bandeiras, ou, pelo contrário, adotou para si um niilismo estratégico,
condizente com seu ambiente, suas distrações, seus hábitos? O futuro não importa e essas
perguntas sao inúteis: o olho simplesmente… olha.

4. Se o hip hop é a rima, então que esta rima se vincule logo a toda a gama de rimas
possíveis (por isso, tantas alusões à poesia…); se o hip hop é o ritmo, então cabe
desestabilizá-lo, buscá-lo fora do 4/4 convencional; se o hip hop, como idéia, é a rima e a
poesia, que se expanda então o campo de possibilidades: field recordings, rock, funk,
jazz, faixas sem ritmo, apenas com vozes e sons, atestando uma inflexão vanguardista
que denota cultura universitária, para o bem e para o mal. Contudo, esse olhar possui a
virtude de se saber perspectivo, parcial, fragmentário. Por isso olha “para” e nao “pelo”
buraco, isto é, nao aprecia passivamente, mas corta, cola e recorta, tal como de fato se
constitui a matriz do hip hop.

5. Confesso que sempre impliquei um pouco com o hip hop à moda da Anticon, e isso
por motivos que, confesso, são relativamente bobos: é que o trabalho desses rappers
brancos e cultos, experimentando o conceito do hip hop como um método de criação,
acaba por se precipitar em excessos um tanto quanto juvenis. Afinal, depois de John
Cage, o que leva um artista a criar uma faixa com cinco gratuitos minutos de silêncio, ou
com um telefone tocando durante vinte segundos, se não um misto de excesso de cultura
e puerilidade?

6. Mas Circle é como um manifesto, um marco inaugural. Ele traz virtudes e defeitos de
uma forma tão incisiva e alucinada que mesmo a implicância se desmancha diante da
segurança com que Boom Bip e Doseone constróem cada experimento, cada passagem de
uma faixa à outra, cada clima que percorre todo o disco. E é claro que esta segurança é
algo presente, vinculado ao aqui e agora, e não prospectiva como se pensava em 2000,
quando Circle representava o futuro do hip hop.

7. E aí, fica a questão: Circle soa datado porque oito anos de Anticon nos acostumou aos
seus trejeitos iconoclastas e sua sede por representar o futuro? Ou pelo contrário,
documenta fielmente o processo de individuação do estilo Anticon? Opto pela segunda,
já que, no frigir dos ovos, o álbum apresenta momentos realmente inspirados, além de
demonstrar uma altivez criativa digna de todos os aplausos.

The Bug – London Zoo (2008; Ninja Tune, Inglaterra)


Quem quiser compreender a afinidade entre a Inglaterra e o reggae, procure nos livros de
história, por exemplo, pelos duzentos anos em que vossa majestade explorou, com mão
de obra africana, a adocicada matéria-prima jamaicana. A influência do reggae na
Inglaterra está ligada diretamente à afluência dos grupos étnicos provenientes da colônia
inglesa, herança com a qual os ingleses ainda não souberam lidar com a devida gratidão e
reconhecimento. Mas vamos deixar a ingenuidade de lado, pois muito já se escreveu e
teorizou sobre as relações culturais entre “ocupantes” e “ocupados”, e não pretendo aqui
fazer sociologia. Mas é importante frisar que, o contexto musical europeu e americano,
tanto no que diz respeito ao mainstream como às vanguardas, têm na música caribenha
seu elemento fundamental: mesmo o hip hop é tributário da música jamaicana em
diversos aspectos, técnicos e artísticos. Não menos curioso é o embranquecimento do
dub, apropriado conceitualmente por jovens oriundos dos países desenvolvidos, que o
expandiram através de uma nova abordagem. Guardemos as críticas a este processo de
apropriação e mitificação da cultura negra, e iluminemos o caráter de parceria entre a
suscetibilidade do “ocupante” e a revalorização do “ocupado” que caracteriza o gosto
inglês pela música jamaicana: ele representa uma realidade irreversível para a música
européia contemporânea.

The Bug é um produtor que reafirma e ultrapassa esse contexto em diversos aspectos.
Juntamente com o Basic Channel/Rhythm & Sound de Moritz Von Oswald e Mark
Ernestus, Kevin Martin é responsável pelos momentos mais interessantes da exploração
eletrônica da música caribenha, constituindo uma fonte criativa incontornável para o
dubstep. Não me lembro de outra assinatura tão inconfundível como a que ele imprimiu
nos discos Pressure e Aktion Pak, ou em sua parceria com o pioneiro Rootsman. Esses
trabalhos se diferenciavam de toda a produção do gênero por conferir uma timbragem
agressiva àquela batida característica do ragga, que tanto lembra o nosso baião e,
dependendo da acentuação rítmica, algumas inflexões dos ritmos do candomblé. Dessa
combinação surgiram clássicos como “Imitator”, “Politicians & Paedophies” e “Aktion
Pak”, que, embora muito inovadores do ponto de vista formal, contavam com o flow
irresistível de experientes MC’s anglo-caribenhos como Paul St. Hilaire, Wayne
Lonesome, Tippa Irie, entre outros. É certo que Burial, Kode 9, Martyn, 2562, e todos os
representantes dessa cena foram influenciados pela liberdade com que Kevin Martin
manipulou a música jamaicana, com que destreza ele soube cooptar o trabalho dos Mc’s,
embora o dubstep tenha tormado uma orientação bem mais reflexiva e suave.

Ocorreu que, em sendo o preceptor muito antenado e disponível, sua produção


incorporou as inovações de seus discípulos. Assim, em 2007, The Bug editou três singles
que, embora sonoramente distantes de suas produções anteriores, podem ser considerados
verdadeiros clássicos da cena dubstep/grime: “Jah War”, “Skeng” e “Poison Dart”. A
primeira, um grime pesadão com uma batida indescritivelmente sincopada, conta com os
incríveis MC’s, Killa P e Flowdan; a segunda, somente com Flowdan, uma das melhores
faixas de 2007; e a terceira, também um reggae, conta com a voz inconfundível de
Warrior Queen. Alguns dirão que estes singles representam uma concessão de Martin no
sentido de garantir sua vaga no bonde da história. Esses certamente não perdoarão a
correção de rumo que estes singles e, particularmente, seu novo álbum, London Zoo,
representam. É que as faixas de London Zoo têm, como os singles citados, uma pegada
mais palatável, um inédito apelo melódico e, sobretudo, contorna o peso
contrabalanceando-o com a intervenção dos Mc’s. Em uma comparação rápida, podemos
dizer que, do ponto de vista da estrutura, enquanto o Rhythm & Sound cultivava a
suavidade como meio de ressaltar as canções (“Jah Rule”, “Poor People Must Work”…),
The Bug construía texturas sonoras para receber a intervenção free-style dos MC’s.
London Zoo, no entanto, traz verdadeiros refrões: além das já citadas “Poison dart” e
“Skeng”, podemos considerar como exemplo “Too much pain”, a belíssima incursão soft
“You and me” e os hits potenciais “Angry” e “Murder we”. Em todas elas, a marca
concisa e afiada do produtor, mas revestida de uma roupagem mais vigorosa que
propriamente agressiva. Lamento somente a última faixa, “Judgement”: melodia piegas
sobre uma batida sem graça, sem justificativa.
The Bug se tornou menos áspero para dar espaço ao discurso, ao intrincado trabalho da
rima e da poesia, e, creio eu, para conferir ainda mais credibilidade ao seu trabalho. Pode
haver, nas bordas da produção artística, algumas questões de cunho sócio-cultural, como
a garantia de paridade civil por parte do parlamento inglês e da rainha, questões que me
incomodam certamente e que estão longe de se resolverem: a mãe preta continua
enchendo a mamadeira do melting pot universal, sem que isso se converta em uma
melhoria real da vida dos imigrantes na Europa. O rap bling bling deu sua resposta, mas
alardear ascensão social não me parece um caminho razoável. A música que emana desse
disco é exitosa graças à interação efetiva, e não mítica, entre membros de diferentes
realidades históricas. É claro que ninguém permanece irremediavelmente preso a elas, e
London Zoo documenta uma relativa emancipação, testemunhada pelo teor político das
letras. Se o álbum reflete de alguma forma essas questões, isso obviamente não
compromete sua audição, pelo contrário: a torna mais irresistível, mais interessante e, no
meu caso particular, dia a dia mais prazerosa.

Nico Muhly – Mothertongue (2008; Bedroom Community, EUA)


Não que Mothertongue seja exatamente uma obra-prima, mas é impressionante o
preciosismo com que Muhly produz sonoridades híbridas, que remetem ao folk, ao
minimalismo, ao dodecafonismo, ao canto gregoriano e por aí afora. Nas três suítes e na
faixa avulsa que compõem o álbum, a marca de um produtor que, ainda jovem, cria uma
linguagem tão desafiadora quanto instigante. Me admiro muito com trabalhos como este,
produzidos mais precisamente nos últimos cinqüenta anos, que habitam uma zona de
indistinção entre procedimentos e sonoridades do universo pop e erudito. Mas também
me coloco a seguinte questão: ao invés de indicar onde se produz o suposto intercâmbio
entre os dois universos, não deveríamos de fato analisar a obra sem “distinguir a
indistinção”? Porque, no fim das contas, é o que os críticos acabam fazendo: relevando
aquilo que a obra põe como irrelevante, destacando justamente aquilo que muitas obras
propõem como superado e desgastado. E cá estou eu, gastando algumas linhas sobre o
assunto enquanto Nico Muhly já se encontra anos-luz desta discussão. O crítico que se
vire para criar uma abordagem compatível com a novidade desta música.
2562 – Aerial (2008; Tectonic, Inglaterra)
Recorro a um exemplo excepcional para expor a novidade e o barato deste Aerial,
primeiro álbum de Dave Huismans, conhecido pela alcunha 2562. Outro dia, conversando
com meio tio jazzófilo, falávamos sobre uma característica ambígüa da música do
pianista americano, Lennie Tristano. Apesar de toda particularíssima frieza de sua
concepção musical, as melodias, ricas em contrapontos, emanam um balanço morno e
aconchegante. Sua música é hipercalculada, mas automaticamente envolve o ouvinte.
Nem tão estranho o paradoxo, nem tão sem valor, já que sua genialidade se alimenta dele.
Assim é Aerial: avis rara em seu próprio contexto – tal como a coletânea da Skull Disco
com Shackleton e Appleblim. Paradoxalmente simples e minucioso, soturno e dançante,
traz um trabalho admirável sobre um conceito aparentemente simples: a sobreposição de
estruturas. Sejam as estruturas de composição, basicamente impressionistas; sejam as
estruturas rítmicas, compostas por recortes do reggae, do techno (e da soca, notadamente
em “Morvern” e “Kameleon”); sejam as estruturas timbrísticas, evocando por vezes a
abrasividade, outras vezes o silêncio. Operando sobre estas estruturas, Huismans cria
“peças” intrigantes, como os reggaes “Moog dub” e “Basin dub”, o big beat estilizado
“Enforcers” e a inominável “Grayscale”. A batida marcial de “The times”, que lembra
“Drugs” dos Talking Heads, finaliza o disco de forma dura e seca, me levando a divagar
acerca do teor das letras, caso o álbum as tivesse. Aerial nos surpreende pela desenvoltura
com que Huismans articula estes diversos níveis, desenvolvendo o plano conceitual de
sua música sem prejudicar a fruição, pois sabor, jovialidade e um alto teor de novidade
atravessam todo o álbum.

Keiji Haino & Tatsuya Yoshida – Hauenfiomiume (2008; Magaibutsu, Japão)


A sopa de letrinhas que batiza cuidadosamente as dezesseis faixas deste Hauenfiomiume,
indicam que Keiji Haino e Tatsuya Yoshida têm plena consciência de que seus
respectivos trabalhos operam sobre o campo do inominável e, portanto, do imprevisível –
embora isso se possa dizer também da música dos Boredoms, do OOIOO e de Otomo
Yoshihide, por exemplo. Tanto as faixas, quanto a disposição interna do álbum evocam
no ouvinte uma tensão constante, uma prontidão: aguardamos o próximo passo, a
próxima cartada. O que acontecerá?
Uma das primeiras vezes que me deparei com esse sentimento de instabilidade e fascínio
musical foi com o “Quarteto para o fim dos tempos”, de Messiaen. A cada momento eu
me surpreendia com as modulações absurdas que o compositor francês propunha como
apanágio do fim do mundo. Minha impressão era de que, a cada seqüência de acordes,
emergia uma sonoridade contígua à monstruosidade. E esta é uma questão: porque o
monstro nos parece “monstruoso”? Será que é meramente uma questão de hábito, que
refutamos por trazer instabilidade para a vida prática? Será que “monstruosas” são as
experiências sensoriais que afastamos por não sabermos lidar com elas? Neste caso, sou
pragmático. Para mim é muito claro que, como escreveu Gilles Deleuze, inspirado no
filósofo holandês Espinosa, “nós não tendemos para uma coisa porque a julgamos boa,
mas, ao contrário, julgamos que ela é boa porque tendemos para ela.” Da mesma forma, o
monstruoso e a repulsa que ele nos provoca são imanentes aos nossos valores, não ao
“monstro”.

Se eu não estiver delirando, podemos dizer que Haino e Yoshida são bandoleiros fora-da-
lei, extremamente prejudiciais ao convívio social. Como os álbuns anteriores da dupla,
Hauenfiomiume opera justamente sobre a reificação do monstruoso: cada faixa remete a
uma experiência fragmentária, a um encontro da sensibilidade ordinária com a conjuração
de estranhas formas musicais, a destilarem o espectro de canções (em “Mkdoijadihffo”),
de improvisos jazzísticos (em “Yeudhujiuasich”), de riffs e seqüências do mais puro
noise, da mais singela japanese bamboo flute (em “Mdjofollswufph”), das manipulações
digitais mais estapafúrdias (reparem em “Lakdddffkouwwe” como esta manipulação
chega a um nível demencial…). Digo espectro, porque trata-se de um processo de
descodificação, no qual a dupla trabalha por deslocamento de certas formas musicais
consolidadas, manipulando-as e sintetizando-as nas composições. Hauenfiomiume
agrupa, de forma coesa e admirável, uma série heterogênea dessas experiências.

O que Keiji Haino e Tatsuya Yoshida nos oferecem é sua expressão. E aqui devo ser
taxativo: é sob o ponto de vista da expressão que devemos avaliar os trabalhos artísticos.
Mesmo que, eventualmente, esta expressão nos pareça estranha e despropositada.
Hauenfiomiume exprime a síntese de duas visões musicais extremamente cultas e
intelectualizadas, mas que conseguem agregar surpresa e sabor à sua produção. A
despeito de eventuais momentos em que os ouvidos menos acostumados chiarão, e da
capa tenebrosa, desde já a pior do ano. (Bernardo Oiveira)

The Caretaker – Persistent Repetition of Phrases (2008; V/VM Test, Inglaterra)


No site do produtor The Caretaker, lê-se: “The Caretaker começou em 1996, inspirado na
seqüência do salão em O Iluminado de Stanley Kubrick”. Adiante, ele afirma: “depois, o
som foi ficando soturno e ainda mais abstrato com o tempo, mudando da idéia inicial do
salão mal-assombrado para territórios envolvendo a mente e sua habilidade de reaver
memórias.” Com estas linhas em mente, tomemos a constituição da faixa-título: uma
nuvem de ruídos – mais especificamente estática e white noise manipulados por efeitos –
envolve uma breve seqüência harmônica ao piano, retirada de um velho disco de
ballroom music – valsas e foxtrotes que animavam os salões europeus até meados do
século XX. Conforme os ruídos poeirentos envolvem a harmonia repetida à exaustão, a
faixa vai adquirindo uma forma sonora evocativa, que, como pretende o produtor, tem o
poder de reportar aos mecanismos mais recônditos da memória humana. O resultado
musical pode soar um tanto quanto árido para aqueles que tem dificuldades com a música
abstrata, mas faz delirar aqueles que não abrem mão de um hermetismo mais arrojado.

Sei que alguns amigos leitores não simpatizam muito quando ligo a particularidade de
certos trabalhos a contextos mais amplos, mas agora será inevitável, já que o que mais me
admira aqui é uma certa perspectiva sobre a criação musical, a qual poderíamos chamar
provisoriamente “música de procedimentos”. E, ao afirmar isso, pretendo indicar duas
características de Persistent Repetition of Phrases que definem as coordenadas desta
perspectiva. Primeiro, que na fronteira entre o serialismo e a música eletrônica, sucedeu-
se o alargamento do pensamento musical na esteira da multiplicação e interação de
meios. A integração entre meios técnicos e culturais, propiciou um outro registro do
pensamento musical, calcado mais na experiência e no background individual do
compositor do que em sua cultura propriamente musical. Wagner e Stravinsky também
dialogaram com outras esferas que não a musical, mas visando a volatilização e a
expansão do discurso musical. Na “música de procedimentos” não se tem por objetivo
principal o discurso musical, mas a própria experiência: ela se torna o elemento que
possibilita o extravasamento do som, sua ramificação nos mais diversos âmbitos da vida.
A “música de procedimentos”, portanto, é essencialmente voltada para o exterior, em
oposição à interioridade da música chamada “erudita”. Persistent Repetition of Phrases é
um exemplo contudente de uma música que recorre quase que exclusivamente a
elementos extra-musicais e para-musicais para produzir um discurso sonoro que dialoga
com o cinema, a fotografia, a memória e, de um modo geral, com as imagens.

Esta relação com a imagem, embora projete o compositor a um grau de manipulação mais
sutil da matéria sonora, o prende também à dialética própria desta matéria. Quero dizer:
se por um lado, a música é produzida a partir de experiências e procedimentos que
remetem a um contexto imagético, ela, no entanto, não é imagem, mas som. De forma
que, na contradição, ocorre a dissolução da dialética sonora, e conseqüente
“dramatização” da música, isto é: não se trata mais de notas, harmonias e ritmos, mas de
climas, ambientes e tramas sonoras. Podemos dizer que, em detrimento do equilíbrio que
dá o tom da palavra harmonia, a “música de procedimentos” privilegia a tensão
decorrente das sonoridades extra-musicais. A música é composta como um quadro,
contra o qual os sons se lançam na intenção do drama. The Caretaker representa
perfeitamente este aspecto musical contemporâneo, assim como o trabalho de Phillip
Jeck, Daisuke Miyatani e Jacaszek. No caso particular de Persistent Repetition of
Phrases, o drama vem em favor dos mais profundos objetivos do produtor, já que The
Caretaker deseja operar no campo da evocação e da memória.

Por exprimir uma relação muito específica com a exterioridade e com o alargamento da
dimensão musical; por propor a desmusicalização da música como forma de acelerar a
dramatização do discurso sonoro; e por operar nessas duas frentes de combate,
engrossando as fileiras contra a estagnação do som e a petrificação do sentido, The
Caretaker e Persistent Repetition of Phrases representam o que há de mais inovador e
desafiante na música contemporânea. Ainda que, a esta altura, a palavra música já me soe
tão problemática quanto insuficiente.
São Paulo Underground – The Principle of Intrusive Relationships (2008;
Submarine Records, Brasil)
Para o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, a tragédia grega era resultado da comunhão
entre dois princípios: Apolo e Dionísio. O primeiro se caracterizava pela unidade
individual, pela capacidade de contemplar a vida como um todo. O segundo ocorria
quando esta individualidade era ultrapassada pela dinâmica monstruosa da vida, pelo
caos, por assim dizer. A grandeza da tragédia, para ele, resultava do modo como ela
afirmava o sentido da vida através dos dois aspectos. Se a Apolo, o herói, se atribuía o
vigor da perspectiva e da unidade, ao coro era dada a capacidade de dissolver as
individualidades e mergulhar nas profundezas indistintas do real. Assim, mundo e
existência se vêem justificados como fenômeno estético, pois é através de uma
transformação extática que cada indivíduo se percebe dissolvido numa realidade mais
ampla que a do sujeito. Nem a individualidade apolínea, nem a dissolução dionisíaca,
muito menos a síntese dos dois princípios. Trata-se de uma dupla afirmação, radical, que
açambarca a dor e o prazer, que aceita a vida com todos os seus percalços, sem lancar
mão dos argumentos benévolos e frágeis da religião ou do consumo dócil. Mas que
também é capaz de trazer à tona o seguinte problema: excessivamente técnica e racional,
não teria se tornado nossa cultura desproporcionalmente apolínea? E, às antípodas deste
processo, não teria se tornado a música mais dionisíaca, através do jazz, das experiências
eruditas pós-serialistas e do fortalecimento da música eletrônica criada para a pista de
dança e para o transe? Não haveria um desequilíbrio entre as duas forças que propiciaria
uma separação entre a arte e outros ramos da vida e que, por conseqüência, teria tornado
a vida menos trágica? Em contrapartida, arrolada à dinâmica do capitalismo, não teria a
música sido tomada por um princípio excessivamente dionisíaco, visando a mera e
simplória satisfação dos sentidos, sem que depreenda nenhuma inflexão própria? Na
contramão desse processo, me parece que a música do São Paulo Underground pode ser
analisada perfeitamente dentro de uma perspectiva efetivamente trágica.

Preenchido pelo caos, mas rigorosamente composto como um projeto, The principle of
intrusive relationships desafia os rótulos, as classificações e até mesmo a perspectiva que
temos da música, configurando-se como um dos grandes lançamentos do ano. Do caos
dionisíaco, mantém a capacidade de proporcionar não somente uma saudável confusão
mental, ocasionada pela sonoridade polirrítmica e polifônica, mas também por reportar a
outras “vozes”: o Coltrane de Meditations, o Ornette de Free Jazz, o Miles Davis de
Bitches brew e o highlife de E.T. Mensah, especificamente condensados na irônica “Final
feliz”, que abre o disco – inclusive, o aspecto dionisíaco se torna ainda mais patente
quando percebemos que o álbum pode ser escutado como uma grande faixa de 45
minutos. Já do heroísmo apolíneo, percebe-se a sagacidade, a capacidade de
manipulação, a perspectiva culta, que vê a música com abrangência e perspicácia, que
apesar de se saber dissolvida numa individualidade mais abrangente, sabe impor sua
própria dinâmica criativa. Assim, admira muito o trabalho que M. Takara e Rob Mazurek
operam não somente na execução instrumental das faixas, mas sobretudo pela
manipulação digital realizada após a gravação. Em “Barulho de ponteiro 2”, por exemplo,
podemos ouvir que o suingue desconjuntado criado pela dupla é posteriormente
manipulado por computador, adicionado de pequenos “estragos” e reproduzindo um teor
de abrasividade sonora tão incômodo quanto fascinante.

A propósito, incômodo e fascínio definem bem a música da dupla. Trágica por definição,
caótica por impulso, mas concebida como uma obra aberta aos mais diversos olhares.

Kevin Drumm – Imperial Distortion (2008; Hospital Productions, EUA)


Da arte de se ouvir três vezes – Um dos procedimentos combinados aqui na Camarilha é
o compromisso de ouvir cada disco pelo menos três vezes antes de escrever. De forma
que os cem minutos deste Imperial distortion tiveram que ser negociados, bem como a
caixa do Gas, Nah und Fern, escolhida para a próxima semana: são álbuns densos e
longos, repletos de questões interessantes, mas que demandam uma disponibilidade nem
sempre ao nosso alcance. O fato é que decidimos, sim, postar álbuns com duração acima
da média, sendo o primeiro este do experimentador americano Kevin Drumm. E ai, devo
dizer que me ocorre algo curioso com a prática de ouvir os álbuns da semana por três
vezes: dependendo do enfoque e da pegada, alguns deles se revelam somente na terceira
audição, como o Diario de Daisuke Myiatani, cujos detalhes emergiram tardiamente, mas
com uma força inequívoca. Outros já me ganham de primeira, como o The Bug, London
Zoo, que põe para dançar já na primeira faixa. Com Imperial distortion, Kevin Drumm
me revelou a seguinte possibilidade: não só desde a primeira audição, mas desde a
primeira faixa, fui tomado por um suspense, uma sensação eletrizante de curosidade pelo
que viria a seguir. Aqui, a primeira audição se constitui inevitavelmente como nos filmes
noir, que têm na surpresa seu trunfo maior…

Da arte de ouvir no fone – Apesar de extremamente desaconselhável para a saúde


auricular, tenho o hábito de ouvir música no fone. Gosto de perceber as minúcias do
intercâmbio entre a execução e a disposição dos sons – pois a forma como se grava
também encerra uma dimensão criativa. É com os fones no ouvido que acessamos a
materialidade do discurso musical. No caso de Imperial distortion, esta modalidade de
audição permite compreender o papel do silêncio no trabalho de Drumm, uma
particularidade deste álbum, já que o anterior, Sheer Hellish Miasmah, primava pela
relação com a cacofonia. A duração das faixas reforça as articulações entre as pequenas
variações de textura, intensidade e freqüência com o silêncio latente, já que após alguns
minutos, o tom contínuo do drone acaba por evocar o vazio característico do silêncio…

Da arte de surpreender – Mas, ao mesmo tempo, a música de Drumm conduz o ouvinte


como que por entre o labirinto: entramos por ele, tomamos contato com suas primeiras
modulações, nos afeiçoamos com seu aspecto soturno, mas, ainda na primeira faixa,
somo surpreendidos pela diversidade complexa que constitui as aparentes repetições.
Tamanho preciosismo cria no ouvinte uma tensão pelo que virá: que tipo de manipulação,
qual o clima com que Drumm construirá a seqüência? E aquele cenário que se tornara
familiar desaparece para dar lugar a uma outra modulação, e assim será durante cem
minutos de música. Dizem que Kevin Drumm é guitarrista, e isso faz com que fiquemos
ainda mais intrigados, pois, se não me engano, a não ser pelas eventuais notas sintéticas
que salpicam a segunda “Snow”, não há nenhuma evidência de trabalho de guitarra em
Imperial distortion. E aqui, vale notar que, apesar da riqueza das alterações digitais, da
inteligência característica deste trabalho minucioso, o tom e a relativa estabilidade de
cada seqüência mantem-se intocado…
Das conclusões – A apavorante reviravolta que marca seus últimos minutos apenas
confirma a tensão primordial que marca e caracteriza o trabalho. Imperial distortion tem
mérito por sua concepção audaciosa, mas também por demonstrar como se produz com
rigor e elegância no universo drone. O tamanho de suas faixas não impede que a música
se torne, aos poucos, interessante e prazerosa, pelo contrário: é através de sua capacidade
de criar ambientes e envolver o ouvinte, que a música de Drumm se impõe como uma das
mais intrigantes da atualidade. (Bernardo Oliveira)

Gas – Nah und Fern (2008; Kompakt, Alemanha)


A cidade de Colônia, na Alemanha, representa uma espécie de plataforma de pesquisa
avançada no que diz respeito à manipulação eletrônica do som. Foi em Colônia que, por
volta de 1953, e sob a influência de Messiaen e Milhaud, o compositor Karlheinz
Stockhausen desenvolveu no Westdeutscher Rundfunk o chamado “serialismo
integrado”; lá, György Ligeti se refugiou de uma Romênia conturbada politicamente,
para experimentar outros parâmetros da produção sonora; lá também surgiu um grupo
visionário como Can. Em todos esses casos, uma característica comum: a pesquisa e a
criação em favor da expansão do som e do deslocamento crítico dos cânones da música
ocidental. Era de se esperar que, neste ambiente propício, surgisse, em meados da década
de 90, produtores e compositores que procurassem redimensionar o espectro sonoro do
techno, visto que a turma de Detroit, notoriamente ligada a Derrick May, tinha como
objetivo central a produção de músicas para fins de festa e celebração. E aqui, ocorre
mais um capítulo curioso das trocas que marcaram a produção cultural dos últimos
cinqüenta anos: se por um lado, os produtores de Chicago e Detroit beberam neste
ambiente experimental, por outro, a consolidação do techno proporcionou a matéria-
prima adequada para que alguns produtores, como os alemães Moritz Von Oswald e
Mark Ernestus, do Basic Channel e o produtor de ponta Wolfgang Voigt, entre outros,
criassem uma série de álbuns minimalistas, intelectualizados e extremamente reflexivos.
No caso de Voigt, esta inflexão se deu de forma contundente através do projeto Gas.
Lançados a princípio pelo pioneiro selo alemão Mille Plateaux, seus quatro álbuns foram
luxuosamente reeditados pelo selo de Voigt, o Kompakt, acompanhado por um livro de
fotos e outro breguetés que, obviamente, não vieram no P2P (por enquanto…).

Através do Gas, Voigt criou uma sonoridade intrincada, que opera mais sobre a
organicidade do som do que sobre a harmonia e a melodia, construindo massas sonoras
que desenham fluxos e intensidades ora sobre o quatro por quatro cardíaco do techno, ora
sob a característica forma ambient (aquele hipnótico “tãããããã…”). Pode-se dizer,
entretanto, que Gas, Zauberberg e Königsforst diferem de Pop em relação à timbragem e
ao tipo de construção harmônica. Os três primeiros obedecem a critérios rigorosamente
determinados; ao passo que Pop é mais livre, joga mais abertamente com as dissonâncias,
se utiliza menos do baticum techno (apenas em duas faixas) e até arrisca algo próximo de
um reggae na quarta faixa. Entretanto, esses aspectos gerais não traduzem exatamente a
genialidade do projeto. Aqui, a estrutura importa menos que a experiência singular, pois,
a cada faixa, somos conduzidos a um território sonoro exclusivo, ao qual poderíamos
votar as mais sinestésicas expressões. Às vezes a percepção nos prega uma peça, e
entrevemos uma melodia aqui, um tema acolá, quando o que ocorre é uma prodigiosa
sucessão de diferentes imbricações harmônicas, que atestam a filiação de Voigt ao mais
alto e complexo pensamento musical germânico. A música do Gas impressiona pela
forma sucinta e singular com que ele condensa a emancipação tonal característica do
dodecafonismo de Arnold Schöenberg, a parcimônia nebulosa da ambient de Brian Eno e
a pulsação segura do techno. Ao final da audição dos quatro volumes, tive a nítida
impressão de estar diante de um universo sonoro autônomo, com regras e dinâmicas
próprias. E, sobretudo, com uma densidade rara na música contemporânea.

Nah und Fern é um pavoroso testemunho do caráter singular que reveste toda a arte
relevante de hoje, que tanto delicia pela exuberância, quanto intriga pela autonomia. E
aqui, peço licença para uma divagação. Como escreveu o filósofo italiano Giorgio
Agamben, “tudo nos conduz a pensar que, caso se confie atualmente aos próprios artistas
o dever de julgar se a arte deve ser admitida na cidade, julgando a partir de sua própria
experiência, eles concordariam com Platão sobre a necessidade de bani-la.” O “terror
divino” — expressão utilizada por Platão para explicar o êxtase da criação artística —
devidamente deslocado de seu contexto platônico e aplicado à cultura de massas,
representaria justamente a cristalização de um processo caro à estética ocidental, e que
constituiria uma gradativa reação dos artistas frente à vitória do espetáculo. Se, como
supõe Agamben, os artistas contemporâneos desejam banir a arte da cidade, é sobretudo
porque, como previra Hegel, e a despeito de seu esforço, a arte se tornou, para o
espectador, um projeto autônomo e, para o artista, uma terrível e abismal “promessa de
felicidade”. O terror divino não é somente o delírio da representação, o prazer do êxtase e
do encanto que estimulou críticas severas de Santo Agostinho contra os jogos cênicos,
mas sobretudo uma reação dos artistas ao projeto regulador dos filósofos, notadamente da
filosofia alemã. Se a arte contemporânea se torna gradativamente menos “interessada”
que “interessante”, é porque o artista, desembaraçando-se do caráter regulatório da
estética prescritiva, assume o terror. Em outras palavras, a arte hoje segue o rumo da
singularidade radical, e é para afirmar o interesse do artista como irrepresentável que o
terror pode ser considerado nos dias de hoje. Não sei se Voigt seria expulso da cidade,
nem se aceitaria se colocar neste contexto de singularização da experiência criativa. Mas
não há dúvida que Nah und Fern encerra um dos mais pavorosos e irredutíveis
ecossistemas musicais da atualidade.

Kasai Allstars – In the 7th Moon, the Chief Turned into a Swimming Fish and Ate
the Head of his Enemy by Magic (2008; Crammed, EUA/Congo)
Em nossa já complexa gestação étnica, observa-se uma pluralidade de grupos oriundos da
África, que por muito tempo foram classificados em duas categorias gerais e
contrapostas: de um lado os sudaneses, supostamente letrados, islamizados; de outro, os
bantos, geralmente considerados de estirpe e expressão cultural inferiores. Este equívoco
foi possível graças à informação histórica deficitária, pois descobriu-se mais tarde que
muitos escravos considerados “sudaneses”, vinham na verdade de Angola e Congo,
regiões marcadamente bantas. Em suma, como escreve o poeta e historiador Nei Lopes,
“confundiram etnias com portos de embarque”. O fato é que somos, em nossa maioria,
constituídos por traços culturais bantos. Vale dizer, primeiramente, que os bantos são um
grupo étnico-lingüístico nômade, cujo rastro se pode traçar desde o século 100 a.C.. Em
segundo lugar, em se constituindo como uma variedade de grupos étnicos-lingüístico, e,
portanto, ramificando-se em outros tantos rumos e encontros, tanto impuseram uma
determinada inflexão cultural – notadamente no que diz respeito à língüa e às técnicas
agrícolas – quanto absorveram os elementos próprios das regiões e dos povos com que
topavam. A batucada, a visão estética da vida, o modo de falar repleto de vogais, a
culinária, o amor à desproporção e à assimetria: muitos elementos indicam a presença da
bantuidade na cultura brasileira. No entanto, não conheço sequer uma só voz que
compare esta característica banta ao legado antropofágico do Modernismo de Oswald e
da Tropicália de Caetano; mas me parece que um dos aspectos fundamentais da nossa
cultura, vocalizado inclusive pela intelligentsia, é a bantuidade enquanto capacidade de
misturar, seja na vida, seja na arte. Assumir este traço cultural é que são elas… Assumir,
entenda-se: capacidade de compreender e introjetar nossa gestação étnica com todas as
suas particularidades.

Essa é uma questão que me aporrinha há muito tempo. Claro que, em sendo uma velha
questão, velhas também me soam as reações sempre que abordo o assunto num meio
social composto por poucos negros – aqui note-se que, por razões de classe social,
sempre fui um dos dois ou três negros da sala… E aí, o padrão é o mesmo: ou sou
arrolado no discurso vitimizante dos movimentos sociais; ou me entulham de inúteis
argumentos bio-sociológicos; ou então me deparo com o despreparo miserável dos
próprios indivíduos que se consideram “negros”… Mas não quero resolver isso aqui na
Camarilha (ufa!). Ocorre que a questão me foi trazida novamente por este lançamento da
Crammed, o terceiro volume da série Congotronics dedicada ao Kasai Allstars. O grupo,
que já havia nos maravilhado com duas faixas no volume dois, é formado por vinte e
cinco músicos oriundos de cinco diferentes grupos étnicos do Congo: os Luba, os
Songye, os Lulua, os Tetela e os Luntu. Sabendo que estes grupos étnicos habitam o
Congo, e que, portanto, fazem parte do grupo étnico-lingüístico banto, a questão
retornou. Pois a música do Kasai Allstars é gloriosa porque assume plenamente sua
bantuidade. Inclusive, no release, disponível pelo site da Crammed no link acima, consta
que os integrantes destes cinco grupos, apesar de representarem uma tradição musical e
cultural específicas, simplesmente se encontram e, sem adaptações e adequações, criam
suas músicas, demonstrando uma extraordinária capacidade de sintetizar elementos
culturais. Kasai Allstars é mais um exemplo do ethos transformador da cultura banta.
Essencialmente extática, plena de um conhecimento vivo, sua música é complexa, repleta
de climas e tramas habilidosas. Mas sobretudo fiel a uma espécie de experimentalismo
básico e primordial, constantemente disposto às mais inusitadas configurações culturais.
Inclusive, repete-se aqui, como no grupo Konono n. 1, a amplificação criativa das
kalimbas, que demonstram como o vigor deste experimentalismo se reflete também nos
aspectos técnicos.

Herança de um passado longinqüo e simbólico? Claro que não. Mas como dizia o
historiador francês Fernand Braudel, a mentalidade é a matéria mais delicada e antipática
a mudanças bruscas, mesmo àquelas operadas pela mais característica e improdutiva
violência europeia.

Alva Noto – Unitxt (2008; Raster-Noton, Alemanha)


Carstein Nicolai é músico e artista plástico. Até aí nada de novo: Duchamp fez cinema,
Cildo Meireles fez música e há tempos já não é novidade para ninguém que uma
tendência interrelacional toma conta da arte contemporânea. E, no que diz respeito à
música, não me refiro somente à exploração descompromissada dos gêneros, mas
também da interlocução entre técnicas de captação, gravação e reprodução, entre os mais
diversos níveis da criação e difusão musical. Este contexto não assinala um oba-oba
formal; antes, realça um campo criativo propício às expressões musicais mais singulares.
Sob o pseudônimo alva noto, Castein Nicolai desenvolve um trabalho que tanto exprime
esse contexto mais abrangente, como também se insere no rol das grandes assinaturas
contemporâneas – tanto que para exercê-la com autonomia fundou um selo, o noton.
archiv für ton und nichtton, mais tarde anexado ao rastermusic de Olaf Bender e Frank
Bretschneider, transformando-se em raster-noton. Baseada na disposição musical de
elementos sonoros não-musicais, a música de alva noto exprime um esmero particular no
tratamento do som, através da captação e conversão, por exemplo, de ruídos de máquinas
de xerox como em Xerrox vol. 1, de 2007. No caso de unitxt, trata-se de um sistema de
conversão de dados digitais em sons, no caso arquivos do windows tais como programas
e plug-ins. Mas o que parece simplesmente um experimento intersemiótico e uma
pesquisa por novas timbragens – por si só meritória, vale dizer – se transforma em uma
manipulação artística gratificante para os ouvidos mais livres e descompromissados com
a música “tradicional” – quero dizer: com o tríptico melodia-harmonia-ritmo. À
semelhança de seu parceiro Frank Bretschneider, que explorou uma senda mais suingada
dos clicks and cuts em seu último álbum Rhythm, alva noto reforça a abrasividade dos
timbres, enquadrando-os porém numa escala rítmica precisa e, eventualmente, dançante.
Noto somente que as últimas faixas do álbum, que contém os clicks retirados da
conversão dos dados digitais em sons, exprimem, por assim dizer, um desagradável
aspecto catalográfico de “arte contemporânea”. Conforme a audição vai, aos poucos,
criando uma percepção sonora apta a ultrapassar esse aspecto, vamos apreciando as
qualidades “musicais” do álbum, que embora não cheguem a empolgar, mantém o
interesse e a curiosidade no que virá.

Dusk + Blackdown – Margins Music (2008; Keysound Records, Reino Unido)


É possível fazer política através da música? Ou a música, como expressão da cultura, é
política por natureza? E hoje, será que ainda se acredita que um solo de guitarra pode
mudar o mundo? Ou esta forma caricatural vem sendo substituída por uma micropolítica
da criacão e da comunicação? E mesmo essa revolução silenciosa, na esteira da evolução
digital, como se desvinculará das dinâmicas nefastas do capital?

Não é raro hoje (como eu acredito que nunca foi) flagrarmos verdadeiras “aberrações”
psicológicas criando as sínteses culturais mais inusitadas: são etnológos que se
interessam por eletro-acústica, engenheiros civis peritos em tiro ao alvo, dançarinos que,
desempregados, se tornam DJ’s… todos produzindo, embora nem sempre aplicando ao
seu trabalho somente as técnicas e teorias concernentes a ele, muitas vezes
esquematizando-o a partir de outras formas e linguagens. Há também a apropriação e
sobreposição de uma disciplina sobre a técnica, e vice-versa, ambas trocando não
somente suas informações específicas, como também certos esquemas de pensamento
como, por exemplo, quando se utilizam métodos da matemática para criar música, ou
quando alguns americanos recriam as técnicas de djing dos jamaicanos, imprimindo-lhes
outra dinâmica. Podemos considerar ainda a mistura de diversos contextos nacionais,
reforçados pelo convívio social e pela imigração, mas insuficientes como representação,
visto que num mesmo contexto nacional se observam muitas tendências e modalidades.
Ou ainda o modo como certos compositores eruditos se apropriam de técnicas do
universo popular e vice-versa… Em todos esses exemplos, há um elemento estranho, que
certamente se intensifica a cada dia com o aperfeiçoamento e barateamento dos aparelhos
digitais e, sobretudo, com o acesso ilimitado à informação que a internet propicia. Este
estranhamento está relacionado com as afinidades entre estruturas de saber e de poder
que se cristalizaram na camisa de força do estado-nacão. Sempre rezou o “bom senso” a
regra recém-popularizada “cada um no seu quadrado”. E quem há de negar que a unidade
do saber garante a unidade do poder? Se cada um se mantém adequado à sua função,
quem poderia descuidar da agenda, quem negaria o poder? Mas isso não ocorre, pois os
territórios estão se volatilizando, o que não quer dizer absolutamente que haverá terra
para todos. De forma que a guerra está ai, e tem a forma da ordem moderna: é preciso
constituir elos cada vez mais prolíficos, alianças que intensifiquem a horizontalização do
saber e o conseqüente estímulo à tolerância. O etnocentrismo e a reproducão mecânica do
capital andam de mãos dadas e se baseiam no estranhamento. É possível que, nesse
contexto, política e música andem de mãos dadas, mas obviamente dentro de limitações
muito específicas.

A foto da capa de Margins Music me chamou atenção porque são claras as intenções
críticas e políticas do álbum: as calçadas de Londres, as diversas frutas e legumes que
estão ali, dispostas e misturadas… Blackdown vêm há tempos, através de seu blog,
insistindo na tecla de uma música londrina total, isto é, que representasse a
heterogeneidade étnica de Londres. A mistura musical e cultural não atinge o parlamento,
mas ao menos evidencia os refluxos coloniais e sua influência estranhamente benéfica,
embora nem sempre oficializada, nem sempre disseminada pela imprensa. Ou melhor,
muitas vezes oficializada, mas não efetivamente praticada. Semelhante a um sociólogo do
terceiro mundo, Clarke afirma, a respeito do contexto social londrino que “nada ilustra o
abismo entre os que crescem em condições desprivilegiadas e aqueles poucos habilitados
para alterar as coisas, daí o tosco, ofensivo modo com que a imprensa mainstream se
apropria de algumas frases feitas e as utiliza para derrubar as pessoas”. Neste contexto a
informação, a mídia, representa um elemento fundamental no acirramento das relações
políticas e culturais, e detém assim um papel político importante. Tão importante quanto
o papel que a música pode e deve desempenhar, e não só ela: quanto mais se misturam as
informações, quanto mais projetamos um saber sobre o outro, diversificando a
comunicação e produção da “verdade”, mais condições se criam para relativizar o
discurso liberal e racista veiculado pela imprensa institucional.

Martin Clarke é jornalista e trata desses assuntos em seu blog, além de tecer
considerações acerca do caráter revolucionário do dubstep. Com seu parceiro Dusk, criou
um álbum cujo caráter político reside na incorporação de certas tendências que haviam
sido recalcadas pelo jungle em favor não sei bem do quê. Me refiro à presença do
raggamuffin e da música oriental, particularmente do bangra, que aos poucos foi sendo
inexplicavelmente substituída pelo peso rock’n’roll de projetos reacionários, como o
Pendullum. Assim como na música de Shackleton, em que preponderam os ritmos e
timbres orgânicos e multitonais dos ragas indianos, Margins Music traz esses elementos
como parte própria dinâmica do álbum. A começar pela incrível presença de Farrah, uma
cantora descoberta por Clarke através de seu blog, que desenha belíssimas escalas
indianas sobre as batidas alucinadas da dupla. Muitas são as faixas em que o bangra, as
cítaras e tablas dos ragas são sintetizados à malícia soturna do dubstep, além, claro, da
presença grime de Durrty Goodz e Trim, respectivamente nas faixas “Concrete streets” e
“The Bits”. Note-se também o talento de D&B no desenvolvimento das texturas, como
por exemplo na balbúrdia sonora de “Rolling Raj Deep”, na inominável “Kuri Pataka” e
nas ambiências de “Darker than East”. Aliás, uma das formas utilizadas pela dupla para
reportar à micropolítica das ruas, é a manipulação criativa das ambiências sonoras,
através de keysounds de estações de rádio e da chuva, como eles já haviam realizado em
“Drenched”, de 2005. Ressalto também a dobradinha final, formada pela desafiadora (e
shackletoniana) “The Drumz of Nagano” e pelo techno safado, porém bacana, “Focus”.
Margins music: a “música da calçada”, mas também da “margem”, das lojas, feiras,
vielas, das relações interpessoais, etc.. Uma miríade sonora apta a evocar uma
humanidade suprema, senhora e apreciadora de suas diferenças. Eu disse: simplesmente
“evoca”…
Será que a boa intenção basta para sustentar todo o discurso ideológico que subjaz às
propostas musicais feitas pela dupla? Será que a pujança criativa da síntese é capaz de
estimular uma dinâmica social sintética? Como expressão de uma perspectiva, Margins
Music é um dos discos de dubstep mais originais até agora, mas sua limitação está aí: ao
exprimir seu conteúdo como uma perspectiva e abrir o diálogo pelo canal do prazer, o
disco reflete a tendência a que me referi no início, de estabelecer outras forma de “sentir”
o caráter político que inunda a vida urbana. O método é o cruzamento horizontal entre
diferentes técnicas, saberes, etnias… Embora não intervenha diretamente na política
institucional, a música e, especificamente, Margins Music, têm o poder de despertar esse
sentimento, político até a medula.

Maryanne Amacher – Sound Characters 2 (2008; Tzadik, EUA)


Não admira que este segundo álbum da veterana Maryanne Amacher apareça quase dez
anos após o primeiro. E mesmo o primeiro, Sound characters 1, foi editado em 1999,
quando Amacher já somava mais de três décadas de experimentação em instalações
sonoras eletroacústicas, particularmente vinculadas à otoacústica. Sua música, ou, mais
precisamente, seu pensamento musical, reporta mais a uma experiência comuntária in situ
do que à relação unilateral da fruição doméstica. Suas apresentações são apocalípticas, os
corpos sendo tomados de diversas formas pelo som, imersos numa dimensão “tátil” do
som. São “ventanias”, “insetos”, “tempestades”, “nuvens” e outras ilusões sonoras que,
de acordo com o volume e a emissão, produzem sensações que variam do leve incômodo
ao pavor absoluto. Com suas peças, Maryanne pretende despertar no ouvinte uma
percepção multissensorial da música, tanto na relação do artista com o ouvinte, quanto na
do ouvinte consigo próprio, o que certamente se efetiva mais adequadamente de corpo
presente (como Thurston Moore comprova aqui). Mas o fato controverso é que Maryanne
lança discos. Através deles, no entanto, ela não demonstra o desejo de traduzir o
conteúdo experiencial de suas obras para o formato do disco, como se quisesse
disponibilizar ao ouvinte a reprodução das propostas realizadas nas apresentações. Pelo
contrário. Sound characters 2 firma a aposta do primeiro volume, expondo uma dimensão
mais contemplativa de seu trabalho. Nas duas primeiras faixas, a continuidade e o
equilíbrio em favor do transe drone; nas duas últimas, a instabilidade que instiga os que
se interessam por sons abstratos e desafia a paciência dos que não se interessam
absolutamente. Ora entrecortado por rompantes sonoros, ora tomado por modulações
imprevisíveis, Sound… joga com as respostas mais imediatas da percepção, atingindo o
ouvinte com violência, conduzindo-o a um estado de falso relaxamento, para logo depois
pregar-lhe uma peça. Se estou certo quanto à proposta do álbum, o primeiro Sound
Characters soa mais coerente, embora este fato não tire a elegância limitada deste
segundo.

William Parker – Double Sunrise Over Neptune (2008; AUM Fidelity, EUA)
Sim, existem ainda aqueles artistas que ultrapassam os ditames da indústria, que não
compactuam com a suposta mesmice que apregoam os que se encontram perdidos na
selva de referências do dias de hoje; artistas que exercitam a mais honesta criatividade,
que produzem uma música para além dos rótulos e das concepções mais ordinárias;
artistas, enfim, que mais desafiam do que conservam, mais questionam do que
confirmam, e no entanto, ainda assim, deleitam, elevam. William Parker é um desses
artistas. Por isso, cada novo trabalho que ele edita é motivo de curiosidade atenta, para
não dizer nervosa por parte dos que gostam de música nova e criativa. Pois bem, Double
Sunrise of Neptune contém quatro faixas gravadas ao vivo, imediatamente inscritas no
que de melhor foi realizado no mundo da música em 2008. Convém lembrar que aqui,
trata-se do William Parker maestro, compositor, soando ao mesmo tempo “livre” e
rigoroso, com uma forte alusão à música oriental, particularmente a indiana, fato que
valeu para sua música o rótulo “ethno-jazz fusion”. Desta vez, ele utiliza o ostinato como
método, isto é: parte de uma escala que, repetida inúmeras vezes, serve de horizonte para
que os instrumentos se imbriquem numa delirante miríade sonora. Como por exemplo, na
seqüência melódica realizada pelo contrabaixo de Shayna Dulberger, que pontua a faixa
de abertura, “Morning Mantra”, e se estende por mais de treze minutos, enquanto, sobre
ela, os instrumentos desenham movimentos inusitados, abruptos. Destaca-se a voz de
Sangeeta Bandyopadhyay, que, em meio a todas as outras “vozes”, desfila seu canto
policromático com uma naturalidade assustadora. A faixa culmina em uma tensão
abstrata, intensificada pelo solo de banjo, que evoca o shamisen japonês. A contribuição
do canto hindu com instrumentos orientais de outra cepa torna ainda mais robusta e
profunda a música de Parker. A segunda faixa, um tour de force de vinte e sete minutos
entitulado “Lights of Lake George”, é mais complexa, e conta com uma pegada ainda
mais indiana. A sessão percussiva reproduz um desenho rítmico que se aproxima do
ritmo indiano, chegando a lembrar uma tabla, dividida nas peças de bateria do jazz.
Enquanto isso, os instrumentos de sopro não ficam atrás, explorando ao máximo a
polifonia e o policromatismo, buscando não somente reiterar a marcação do contrabaixo,
mas relativizá-lo em meio às diversíssimas possibilidades de cada instrumento. Em
alguns momentos, percebemos como que inserções, pequenas composições e
intervenções pré-concebidas, como o naipe de metais que, lá pelos vinte minutos, emerge
em “Lights of Lake George”, prenunciando o caos que se seguirá.

Entre o rigor e o descontrole, a música de Double Sunrise over Neptune não pode ser
arrolada como produto de um crossover, como se Parker propusesse a mera transposição
e assimilação do background da música indiana para enriquecimento ou simplesmente
adorno do free jazz. Não. Antes, trata-se de uma música total, uma profunda e sincera
busca por uma sonoridade que (re)conecte passado e futuro, oriente e ocidente, som e
música, natureza e cultura…

Anthony Braxton, Milford Graves, William Parker – Beyond Quantum (2008;


Tzadik, EUA)
Esqueçam a capa tenebrosa e concentrem-se na curiosa metáfora que batiza esse
encontro. Ela reforça uma aliança longeva entre o free jazz e a idéia de “expansão”:
reviravoltas políticas e revoluções científicas se afinam ao ideário free com uma
naturalidade ímpar. Curioso também o emprego do epíteto “meeting”, reiterando o
compromisso do trio que encabeça este album não só com o pensamento libertário que
marcou o nascimento do free jazz – na medida em que não subordina a música aos limites
do disco -, mas também reforçando a idéia de que o gênero não é propriamente “livre”.
Antes, o free jazz demanda dos músicos o compartilhamento de uma assombrosa
capacidade de adivinhação: eles não só se adiantam ao que os parceiros executarão, quais
caminhos escolherão, mas, também, se colocam de modo a materializar a composição.
Autores como Braxton, Coleman, Ayler, Sharrock, Taylor demonstram uma habilidade
“mediúnica” para promover esses encontros musicais nos quais vigoram a interseção de
aspectos lógicos e instintivos, ora seguindo linhas prévias, ora deixando soar a
imaginação mais imediata. Geralmente, se percebe aqueles característicos momentos em
que todos os instrumentos solam alucinadamente, uma espécie de clichê do free jazz. Mas
a excelência de Beyond Quantum reside no equilíbrio com que eles sondam o caos: cada
faixa vai como que esculpindo uma linha de “argumentação” sonora dentro de uma ampla
gama de possibilidades, produzindo modulações e texturas surpreendentes.

No segundo “meeting”, esta característica pode ser percebida mais agudamente nos
primeiros minutos, quando um dos três, possivelmente Graves, dialoga literalmente com
o sax de Braxton, emitindo sons guturais; e lá pelos oito minutos, quando a faixa se
aquieta e a bateria nervosa de Graves, juntamente com o contrabaixo “escorregadio” de
Parker, diminuem o volume para que Braxton desenvolva uma melodia bela e sinuosa. A
música segue e, quando nos apercebemos, já estamos no quarto “meeting”, como que
envolvidos por uma nuvem sonora. Já o quarto e o quinto “meetings” parecem ter sido
construídos com o intuito de explorar a variação das dinâmicas. No quarto, mais lento e
parcimonioso, Parker utiliza o arco, abrindo um diálogo com Braxton que resulta num
polifonia absolutamente surpreendente. No quinto encontro, um coro de espirros se
entrelaça: Parker abandona o contrabaixo para, junto a Braxton, intensificar este duelo tão
rico quanto perturbador. Mas o destaque do álbum é o percussionista, professor,
acupunturista e herbalista Milford Graves, ex-baterista de Albert Ayler, Don Pullen e
John Zorn, que surpreende pela criatividade com que manipula os tambores, praticamente
determinando o direcionamento das faixas. E, assim, não me parece um acaso que num
album tão comprometido com a expansão da música, da consciência, etc, sejam os
tambores o principal destaque: pois todos os instrumentos aqui parecem soar com o vigor
e a agressividade dos instrumentos de percussão, seja a inteligência “harmônica” do
sopro de Braxton, sejam os devaneios de Parker. Inclusive, devo notar que Parker está
muitíssimo bem cotado para as listas de fim de ano. Pelo menos aqui na Camarilha.

Guizado – Punx (2008; Diginóis Records/Urban Jungle Records, Brasil)


Instigante e provocante. Estes seriam alguns adjetivos bem apropriados para descrever a
música que emana do primeiro álbum do projeto Guizado. No entanto, estas
características parecem coextensivas a outros artistas próximos ao projeto, muitos deles já
comentados aqui na Camarilha mais de uma vez, que na minha opinião representam uma
nova inflexão da vanguarda paulista: um grupo de músicos originais, aplicados na
exploração e miscigenação de diversas correntes musicais, entre elas a tradição
instrumental brasileira, que tem em Moacir Santos e Hermeto Pascoal suas expressões
mais celebradas; a cultura hip hop, e, mais especificamente, as colagens delirantes de
Guillermo Scott Heren e do Prefuse 73; o black rock (sic) de Hendrix e Clinton; a música
africana, notadamente o afrobeat de Fela Kuti e Tony Allen; o jazz de Miles Davis, John
Coltrane e Charles Mingus, mas também suas inflexões free e fusion… A despeito do
fato de não ser a poesia o foco principal desta turma (à exceção talvez das letras de
Curumin, como “Kyoto”, por exemplo), penso que muito têm a ver com a verve de
Itamar, Arrigo e Tatit. As ambições parcimoniosas de Takara, Curumin e Guizado, no
que diz respeito à motivação experimental, à curiosidade e à exploração vertiginosa da
música atestam a semelhança. Mas há também o seguinte aspecto: ambos os movimentos
constituem respostas concretas e contundentes a problemas culturais específicos.
Enquanto que, com a vanguarda que habitava o teatro “Lira Paulistana”, tratava-se de
uma espécie de “desrepressão” estética frente à afasia mental ocasionada pela ditadura,
no qual os artistas buscavam propositalmente a estranheza como forma de dissolver um
suposto rebaixamento do gosto e da produção cultural da época, a “nova lira” constitui,
guardadas as devidas proporções, uma resposta à banalidade alimentada pela indústria
musical, atônita diante do advento de um público exigente, cultivado pela acessibilidade
irrestrita dos formatos digitais e do cipoal de referências que, por sua vez, alimenta não
só o gosto mas também a produção propriamente dita. O declínio da indústria abriu um
caminho irreversível, que se ramifica em segmentos específicos, muitas vezes eles
próprios ligados à faixa popular, como no caso da Banda Calipso e de fenômenos
localizados, como o techno brega. Neste contexto, Guizado e Punx atestam que a “nova
lira” se fortaleceu a ponto de representar um dos pólos mais interessantes da música
instrumental da atualidade, de modo amplo e consistente. Hurtmold, Bodes & Elefantes,
M. Takara, Curumin, São Paulo Underground, Anelis Assumpção, Beto Villares e mesmo
o trabalho mais antigo do Instituto e de alguns artistas ligados à gravadora Trama,
representam uma liberdade e um cuidado no trato com a concepção sonora que tanto
exprime este contexto, como o extrapola.

Em Punx podemos ouvir o melhor dessa turma: é um poderoso trabalho instrumental,


caótico e experimental, mas que, ao mesmo tempo, reflete um esmero na composição,
apresentando harmonias e melodias fortes, saborosas e assobiáveis. Quando escrevemos
na Camarilha sobre o São Paulo Underground, foquei o meu texto numa característica do
álbum que é a capacidade de reportar a uma síntese entre duas dimensões, instintiva e
lógica, o trabalho dos músicos se caracterizando pela criação gradativa de uma espécie de
caos controlado. Há também em Punx um aspecto de equilíbrio entre o free e as
estruturas harmônicas e melódicas, mas devo notar que se trata de um “outro” equilíbrio.
Enquanto o trabalho do São Paulo Underground tende à desconstrução radical, o trabalho
de Guizado pode se resumir mais pela utilização simpática da elementos históricos, por
assim dizer. Assim, “Zonzo” e “Afroka”, as faixas que finalizam o álbum, referem-se,
sim, de forma direta e quase respeitosa, ao legado de Fela Kuti e Manu Dibango. Digo
“respeitosa” não pelo resultado, absolutamente original, mas pela clara intenção em
respeitar a unidade rítmica que fornece a referência. O rock’n’roll está presente na levada
malemolente de “Miragem” e nos rompantes funk-rock de “Rinkisha”. Com sua
percussão abrasiva, quase marcial, e seu baixo marcado, “Maya” tem uma melodia que
lembra bastante as melodias de Miles Davis. Mas a faixa que mais impressiona, tanto
pela lindíssima harmonia, como pelo crescendo que culmina em zoeira, é “Sagitariu’s
Dream”: não sei se pelo modo como foi gravada, ou se por algum efeito, esta música
possui uma ambiência que faz os metais ressoarem de uma maneira diferenciada,
aludindo tanto às orquestras, como ao free jazz e ao krautrock.

A unidade de um disco composto a partir de tantas referências advém da manipulação


criteriosa com que o Guizado constrói cada peça. Apesar de surpreender pelos timbres
abrasivos, pelos ritmos quebrados e pelo improviso e espontaneidade, sua música poderia
ser resumida numa síntese entre a beleza simples e eficaz de Moacir Santos, com a
ousadia de On the Corner. Já seria grande coisa, mas, além disso, o Guizado produz sem
os maiores cacoetes da música brasileira contemporânea: não é auto-indulgente como os
trabalhos atuais da velha MPB, nem simplório como a nova MPB, não se deixa aprisionar
por rótulos, representações vazias ou dinâmicas de mercado. Ao contrário, exprime uma
tranquilidade, uma parcimônia diante de um mundo tão rico em manifestações musicais,
cada vez mais deflorado e recortado pelas redes digitais, cada vez mais ciente de sua
diversidade. Ao mesmo tempo, exprime a certeza de que é possível pensar para além das
influências, com criatividade e altivez. Uma altivez que há muito não vemos na música
criada e produzida pelas bandas de cá.

Russell Haswell – Second Live Salvage (2008; Editions Mego, Reino Unido)
Me parece que Second Live Salvage é mais do que uma compilação de apresentações do
artista multimídia Russell Haswell, batizadas pela descrição de suas respectivas cidades,
locais, ano e tempo de duração. Apesar de ter sido absolutamente improvisada, se afigura
como uma obra minuciosamente pensada, elaborada e construída e, nesse sentido, uma
verdadeira obra conceitual. Cada uma dessas faixas constitui, filosoficamente falando,
uma escultura sonora que se desenha num tempo e espaço determinados, mas que,
agrupadas no formato do disco, se desembaraçam de seu sentido histórico e acabam por
evocar uma rede de experiências de relativização do tempo e do espaço. E isso podemos
deduzir do próprio título do álbum, que remete diretamente ao sentido do happening e seu
correlato “salvamento”, possibilitado pelo registro.

Ocorre, no entanto, que Second Live Salvage não se concentra exatamente em


experiências com o tempo e o espaço, mas nas aproximações possíveis entre esses dois
elementos. A sonoridade fora de controle, caótica, exclusivamente extraída da
manipulação de softwares e de um DJ mixer, dialoga paradoxalmente com uma
organicidade radical. Cada uma das seis faixa de Second Live Salvage traz um
experimento musical que remete imediatamente a sonoridades “naturais”, por assim
dizer, às vezes remetendo a tempestades, movimentos geológicos, sons de animais, etc. É
claro que este é um recurso manjado para explicar obras abstratas que tem na exploração
da cacofonia, do microtonalismo e da polifonia seu maior trunfo. É assim com a obra de
Xenakis, influência confessa de Haswell, de quem ele tomou emprestado o UPIC, um
sistema digital de conversão de dados gráficos em informação sonora (à semelhança do
Unitxt de alva noto, mas em sentido inverso). Mas o que impressiona nas composições de
Haswell e no modo como ele apresenta essas faixas é a presença do imponderável: seu
trabalho surpreende não somente pelo fato de reportar às “forças da natureza”, mas
também por seu registro datado, geográfico; pela inclusão das manifestações do público,
que realçam a ambivalência entre natureza e cultura, especialmente na faixa “1837.59,
2004, Engine Rooms, Brighton” onde a fala dos presentes é como que incorporada à
faixa; e pelas inflexões mais “musicais” do trabalho, como alguns acordes sugeridos na
primeira faixa (“08:12.14, 2000, Museu de les Ciències, Valencia”), os zunidos
microtonais, xenakianos, que perfazem a segunda faixa (“1053.82, 2002, Färgfabriken,
Stockholm”). É claro que temos também as faixas puramente cacofônicas, com forte
influência de Merzbow, como as duas últimas, especialmente na abrasividade aguda e
inegociável de “1012.81, 2007, Ikki, Kita Kyushu”.

Second Live Salvage pode ser incluído numa nova modalidade musical, o “salvage”: o
artista dá um sentido fonográfico à experiência que propõe in loco. Incorpora toda a
ambiência, misturando-a mesmo à composição. Propõe também que o “salvage” não
constitua simplesmente um registro que salva a experiência do apagamento no vão do
tempo, mas uma renovação da experiência. A audição do álbum não é propriamente
prazerosa, mas impactante e incômoda, embora sugestiva do ponto de vista “musical”.
Certamente uma das pérolas deste ano, um pérola bruta, irascível, mas não exito em
afirmar que dá ao seu ouvinte uma sensação inominável, única no cenário
contemporâneo.

Lindstrøm – Where You Go I Go Too (2008; Smalltown Supersound, Noruega)


Já se tornou tradicional e secular na música alemã um interesse na expansão da música e
do som: expansão conceitual, mas, sobretudo, experiencial. Com o aprimoramento dos
equipamentos de manipulação sonora e consequente aumento da gama de possibilidades
timbrísticas, penso que a música do Kraftwerk, por exemplo, pôde ficar mais interessante,
como comprovei em seus últimos concertos por essas bandas. Na mesma direção, mas em
outro sentido, o que mais me impressionou neste Where you go I go Too do multi-
instrumentista e produtor norueguês Hans-Peter Lindstrøm não foi exatamante a tour de
force, análoga a do alemão Göttsching em E2-E4, mas a força da produção, do resultado,
literalmente do som que emana das caixas: cada percussão, cada harmonia, cada
sonoridade tão bem esculpida, tão cristalina e, ao mesmo tempo, rascante e poderosa…
Alguns alemães de sua cepa trabalham conceitos através do som, mas Lindstrøm opera
sobre a recíproca: o som é seu conceito. Em Where you go I go Too, pouco importa se as
peças que ele manipula soem como elementos estabelecidos e adquiridos, conclusão que
se pode chegar remetendo o álbum não só à peça de Göttsching, mas a Giorgio Moroder e
ao já citado Kraftwerk. O diferencial de seu trabalho reside no fato de que ele exerce
sobre esses elementos uma manobra que se assemelha mais à escultura que à arquitetura,
que até resvala no fascínio, mas não da forma besta que caracteriza muitas vertentes
retrôs da atualidade. O sorrisão que o cara exibe na capa não esconde suas intenções:
Lindstrøm está nos dando uma simpática e irônica piscadela de olho, das mais pungentes
e pessoais dos últimos tempos. Ele diz que vai para onde a música for, insinuando que
tem plena consciência das influências que balizam seu trabalho; ele inclui sons de
respirações ofegantes, quando se trata de um turning point, como na kraftwerkiana e
soberba faixa-título; sua camadas e texturas vão se alternando com parcimônia de gênio,
mas se o ouvinte incauto vacila, negligencia o fato de que “Grand ideas” contém trechos
de “Musikal Overtones”, já executada numa mixtape de 2007. Isto é, além da devoção
criativa com que criou o álbum, Lindstrøm debocha, ironiza, manipula, mas com muita
elegância e inteligência. “Take the long way home” atesta esse deboche, com seu groove
amansado, sua guitarra inacreditavelmente brega, mas seu diálogo intermitente com as
faixas anteriores. E toda esta operacão cheia de gueri-gueri resulta não só em um dos
álbuns do ano, mas sobretudo, numa experiência sonora talvez sem paralelos em meio a
esse maldito revival disco que assola o mundo. Ouçam alto, no fone e confirmem.

Mestres da Guitarrada – Música Magneta (2008; Candeeiro Records, Brasil)


Mesmo levando em consideração suas diversíssimas manifestações e contextos, a música
realizada no Brasil hoje conserva uma permeabilidade muito particular em comparação
com a música mundial, mais especificamente a música européia e americana. Me refiro
não somente à capacidade de mesclar gêneros, mas também de desafiar os critérios de
gosto e misturar as faixas culturais. A sofisticação de Noel Rosa e Cartola, a era do rádio,
a bossa nova, o tropicalismo, mas também a música de Moacir Santos e Clementina de
Jesus já davam provas suficientes desta tendência. E isto ficou claro mais uma vez na
última edição do mais notório festival de música do país, que apresentou alguns mestres e
supostas novidades, mas que, no geral, patinou na obviedade. No entanto, já nos
finalmentes, já quando a cortina parecia baixar pelo segundo ano consecutivo de forma
triste e soturna, eis que a verve mais desembestada da música brasileira emergiu com a
força do funk carioca e da guitarrada paraense, trazendo algum sabor de novidade.
Nenhuma apresentação que assisti teve a força e a energia da que fizeram Sany Pitbull e
os Mestres da Guitarrada, autores deste Música Magneta. O primeiro teve um
desempenho empolgante, destilando infusões inusitadas do funk carioca com a música
eletrônica européia e americana. Já os Mestres da Guitarrada iniciaram sua apresentação
com uma platéia praticamente vazia, e aos poucos conquistaram um a um com sua
mistura de carimbó paraense com… bem, quase tudo, já que a guitarrada nasceu do vasto
repertório com o qual Joaquim Vieira animava os bailes dos ribeirinhos no Pará. Como
meio de amplificar o som de seu violão, Vieira, 74 anos, transpôs para a guitarra o amplo
cardápio musical dos bailes, criando o estilo, muito popular na Amazônia. Após lançar
diversos álbuns, inclusive sob a alcunha de “Lima, o guitarreiro da Amazônia”, Mestre
Vieira, como ficou conhecido a partir da década de 80, lidera o grupo, junto a outros
mestres do gênero, Curica e Aldo Sena. Choros, xotes, salsas, cumbias, merengues e até
rock jovem guarda dão forma à música dos Mestres da Guitarrada. De tão empolgante,
sua música foi ovacionada, deixando kanyes e klaxons (sic) para trás.

Mas além de empolgante, os Mestres destilam algumas características peculiares, a


começar pelo modo original com que dedilham sua guitarra, um toque cândido e
malemolente, insinuante de gêneros latinos como o merengue e a salsa, mas ao mesmo
tempo, precursor da lambada e do axé. Nas faixas executadas por Curica, mais um
detalhe: o estilo que ele imprime no banjo quando executa o carimbó, como se assemelha
com a cumbia colombiana, e ao mesmo tempo, como é tão próximo de ritmos mais
brasileiros. Me esforço para dar precisão ao que fazem esses instrumentistas, mas a única
ferramenta disponível é a comparação, porque a música dos Mestres é única, e pode-se
dizer de fato que eles criaram uma escola da guitarra genuinamente brasileira, o que já
seria digno de nota e atenção. E no caso de Curica, uma segunda escola do banjo
brasileiro, sendo a primeira criada pelo sambista Almir Guinéto. Trata-se portanto de um
feito extra-ordinário, que destoa da mediocridade que caracteriza o mainstream do eixo
Rio-SP.

Essas observações, formais, não dão conta dos verdadeiros objetivos de Música Magneta,
para os quais ele serve tão bem: tal qual na cumbia (cuja etimologia remete à expressão
cumbé, festa), no xote, no frevo, no carimbó, e outros gêneros, o álbum é principalmente,
música de festa, comemoração e produção de alegria em massa. Assim como o funk
carioca de Sany Pitbull, a “música magneta” dos Mestres da Guitarrada é igualmente
tomada pela celebração, mas não abre mão de inovar o aspecto formal. Assim como as
kalimbas elétricas do Konono n. 1, as guitarras elétricas dos Mestres nasceram de uma
necessidade, mas a transcenderam. O disco de remixes mostra que nem sempre o que
parece mais “moderninho”, o é: nenhuma versão se equipara às originais, nem ao menos
pode criar o mesmo interesse – com exceção talvez das produzidas por Dolores e da
versão dubstep de “Banjo amigo” por um tal Missionário José que, desde já,
acompanharei de perto.

Tom Zé – Estudando a Bossa (2008; Biscoito Fino, Brasil)


O barquinho: A primeira vez que ouvi uma crítica negativa à bossa nova foi pela voz
grandiosa de Jorge Mautner. Para ele, o estardalhaço que se seguiu ao estranhamento que
os modos de João Gilberto causaram no público brasileiro, a reboque da apresentação (e
consequente aprovação) do público presente ao concerto do Carnegie Hall, tinha um quê
de deslumbramento e implicava num apagamento das principais virtudes da música
realizada no Brasil anteriormente. Mautner entrevia o “Brasil profundo” nas vozes do
Brasil supostamente moderno, e uma modernidade abrupta nos exageros de Marlene e
Vicente Celestino. E foi justamente através de um disco de Marlene que pude
compreender o que Mautner dizia. Gravado um ano após às Canções do amor demais de
Elizeth, justamente no ano do debut de João Gilberto, batizado sugestivamente de
Explosiva!, este disco poderia ser considerado uma espécie de “eminência parda” do
tropicalismo, graças ao canto rascante de Marlene, à pluralidade de ritmos e à ironia.
Destas observações, resulta uma daquelas conclusões paradoxais que só um país com a
dinâmica cultural que o nosso possui pode doar ao mundo: os tropicalistas emergiram sob
o signo do rock’n’roll, de Carmem Miranda, do Brasil profundo de outrora, mas
sobretudo de João Gilberto e Jorge Mautner, o mesmo que desqualificara a fascinação
inócua que o público letrado nutria diante do arrojo que a bossa nova supostamente
representava. Mas Caetano e Gil se mantiveram como grandes defensores deste
movimento, embora devamos ressaltar que nunca o fizeram contra Marlene e Vicente
Celestino, enquanto Mautner se posicionava contra o barquinho festeiro do Carnegie
Hall.

A flor: “Se João Gilberto / tivesse um processo aberto / e fosse nos tribunais / cobrar
direitos autorais / de todo samba-canção / que com sua gravação / passou a ser bossa nova
/ qualquer juiz de toga / de martelo e de pistola / sem um minuto de pausa / lhe dava
ganho de causa”. Com esses versos, Tom Zé assinala o tema central deste novo álbum: é
em João Gilberto que se encontra a chave para compreender o que é mais rico e valoroso
na bossa nova, sua síncope, sua criatividade solar e sem igual em modular as sílabas e
melodias, sua capacidade de reabilitar um passado que teve que se revestiu de
modernidade à forceps. Mas Tom Zé escapa da euforia bossanovista quando lembra o
“Tico Tico no fubá” de Abreu Gomes, quando, como Mautner, afirma ironicamente que
“diante do desafinado / o mundo curva-se e desova / tudo até então louvado / foi jogado
numa cova”, quando revaloriza o passado “bárbaro” que precedeu João. Mas, ressalte-se:
não se trata de um disco tropicalista, porque aqui não se louva a bossa nova. Trata-se de
um álbum conceitualmente fecundo, no qual Tom Zé fornece, à sua maneira, uma
interpretação criativa da bossa nova. Para ele, a bossa é João, e, sobretudo, a síncope de
João. Inclusive, nos delírios lógicos e criativos de Tom Zé, a síncope gilbertiana seria
responsável até mesmo pela sinuosidade da ponte Rio-Niterói, afirmação que pode causar
risos e estranhamento, mas que assinala precisamente o jogo de cintura “sincopado” com
que artistas, políticos e pensadores passaram a abordar o problema Brasil a partir dos
anos 50.
O espinho: “Mulher de música / melhor ficar na música / porque mulher de música é
coisa de utilidade pública”. Há quem implique com a fase pós-Byrne de Tom Zé, graças a
essa mania que ele vem cultivando, tornando seus álbuns depositários de grandes
problemas, aproximando o esmero poético de discussões teóricas, crítica cultural, crítica
de costumes, tudo misturado como convém à verve do autor. Eu também impliquei muito
com o bric-à-brac de Defeito de fabricação, e toda aquela mise en scène teatral com
direito a figurino e tudo mais… Mas era só uma implicância pontual, que, no entanto, não
impedia que minha admiração aumentasse conforme a confusão que ele promovia. Em
Estudando o pagode ele abordou a questão da mulher, aproveitando o ensejo criado pela
temática romântica; no genial Danç-Eh-Sá eram os modos da canção, sua estrutura, quase
um estudo à moda de Luiz Tatit. Desta vez, trata-se da bossa nova, essa canção-problema,
esta representação problemática do Brasil. Reza a lenda que João Gilberto advertiu sua
filha Bebel para que, nas efemérides que marcaram os 50 anos de bossa nova, não se
metesse com Carlos Lyra e Roberto Menescal, segundo ele, impostores. Como se pode
observar, a questão está longe de encerrar, seja pelo mal estar ocasionado por um
cancioneiro popular que não consegue se livrar de sua influência, seja pelo bem da conta
bancária dos oportunistas. E mesmo Tom Zé, mesmo este grande gênio, mesmo ele
prefere elogiar personagens insossos como Mallu Magalhães e Fernanda Takai a
reabilitar um velho e conhecido personagem deste debate, o grande pesquisador José
Ramos Tinhorão, sem o qual muito pouco saberíamos a respeito do passado de nossa
música, e um dos primeiros a reconhecer a genialidade exclusiva de João Gilberto e sua
presença decisiva, não em relação à farra da bossa, mas sobretudo como mais um belo
capítulo da história do samba [Tinhorão, 1969].

O samba de uma nota só: À exceção dessa bola fora (“Tinhorão que horror!”), Estudando
a bossa é um álbum luminoso, que traz momentos sublimes de plena criatividade e
reflexão, além de uma forma de compor e cantar únicas, características que têm conferido
a Tom Zé o estatuto de um dos grandes personagens do underground mundial. “O Céu
Desabou” e sua jogada primorosa com o nome dos críticos musicais, “Brazil, Capital
Buenos Aires” com sua piada matadora, “Solvador, Bahia de Caymmi” com seus versos
em inglês na bela voz de Anelis Assumpção, a vocação soft-pop de “Roquenrol, Bim-
Bom”, o sambão “Síncope Jãobim”, tudo com aquele molho característico de Tom Zé,
com seus riffes e dribles poéticos. A lamentar somente o fato de que, infelizmente, todo
esse trabalho não impedirá que o barquinho prossiga sua longa caminhada pela afirmação
classista e insensata de que a música brasileira nasceu e morreu numa esquina de
Ipanema. Mas isso não é problema dele…

Fennesz – Black Sea (2008; Touch, Reino Unido)


Existem muitos artistas interessantes hoje, mas a poucos podemos atribuir a qualidade de
“decisivos”. Christian Fennesz é um artista decisivo não porque inaugura escolas ou
movimentos, mas porque trilha um caminho único. Um artista que se desembaraça das
limitações de época, gênero ou subgênero e as retorce até atingir uma perfeição que nem
sempre pode ser admirada a olho nu. Por outro lado, a audição de Black Sea não denota
nem ruptura, nem colorário, mas continuidade de um projeto ao mesmo tempo
consistente e ousado. Sua novidade é, portanto, relativa, mas arrebatadora. Poderíamos
dizer que a música de Fennesz tem como característica principal a transfiguração de sons
acústicos e orgânicos com o auxílio de computadores. Mas fornecer esses dados técnicos
não basta, pois trata-se sobretudo de busca incessante por “certas” sonoridades, certos
achados que, combinados, soam de forma absolutamente diferentes de tudo o que
ouvimos por aí. Sua inteligência musical, no entanto, não se esgota na manipulação de
timbres e estruturas: Fennesz é também um músico inacreditavelmente consciente,
especializado em arranjar e compor seqüências não propriamente inusitadas, mas que
sintetizam vertentes sonoras com arrojo. Desta vez, o noise e o glitch emergem em
comunhão radical com sons orgânicos, o que sugere que Black Sea é um álbum,
sobretudo, de síntese de seu trabalho, pois traz tanto a abrasividade dos primeiros como o
lirismo de Endless Summer e Venice. Todas as faixas em Black Sea sugerem esse
contexto de aproximação, cada uma à sua moda, mas todas de forma exuberante. A
alternância entre camadas de barulho e belíssimos acordes de violão e guitarra fazem da
faixa-título uma das obras-primas do ano – inclusive, devo reforçar a atenção a esta
composição e ao modo minucioso com que Fennesz explora os acordes, que me revelam,
para além do bricoleur, um exímio violonista. Os sininhos gélidos em “Glass Ceiling”,
mas, paradoxalmente, a melodia singela que eles entoam. Em “Saffron Revolution”
Fennesz explora uma dramaticidade que, se tomarmos sua obra como um todo,
percebemos que ganhou campo a partir de Endless Summer. Enfim, caberia aqui
deslindar todos os meandros que as faixas de Black Sea evocam, mas podemos também
afirmar que uma característica central do álbum é a síntese tranqüila, realizada por um
autor à vontade para operar com o complexo vocabulário que ele próprio desenvolveu. E
o que é isto se não o despontar de uma maturidade que devemos, por obrigação,
acompanhar de perto?

Juana Molina – Un Día (2008; Domino, Reino Unido)


Un día é um disco que pode ser avaliado tanto em contraste como em conformidade com
o panorama musical contemporâneo – pelo menos o panorama europeu e americano. Em
contraste, poderíamos afirmar que o álbum valoriza a cumbia colombiana, gênero
infelizmente pouco conhecido entre nós, mas muito popular não somente em sua terra
natal, mas também no Peru e na Bolívia. Esta valorização, no entanto, resvala naquilo que
atribuímos a uma conformidade do álbum com algumas vertentes do panorama: tal como
o Person Pitch de Panda Bear e o Alegranza de El Guincho, sua estrutura é constituída
basicamente por repetições de temas que se interpenetram, ocasionando uma sonoridade
hipnótica; tal como eles, Molina também age sozinha, executando todos os instrumentos
e programações; tal como os dois, Molina também explora os ritmos e as vozes,
modulando-os conforme uma percepção de harmonia extremamente competente e sagaz.
Por outro lado, não se pode dizer que Un día é um disco de cumbia, até porque o gênero
só se insinua abertamente em duas ou três faixas. Também não afirmo que Un día seja
um disco de folktronica, como sugerem as revistas especializadas. O fato concreto, que se
pode enunciar com toda a certeza é a consistência, a beleza e os momentos de
maravilhamento que Un día proporciona a seus ouvintes. Experimentem, por exemplo,
escutar “No Llama”: um dedilhado singelo que lentamente vai crescendo; a percussão
eletrônica soa no entanto como os tambores que a grande Mercedes Sosa percute em seus
concertos; uma série de vozes fantasmagóricas sobrevoam a faixa até eclodirem numa
cumbia suave e bucólica; durante pouco mais de cinco minutos, a faixa varia entre
assovios, pausas e detalhes até o seu fim abrupto e sorrateiro. Imediatamente entra “Dar
(Qué dificil)”, um soft rock que, a exemplo de todo o disco, prima pela inteligência no
posicionamento dos detalhes e numa esperteza admirável com relação à composição dos
vocais; de repente, algo como um xilofone de ferro delineia uma melodia, e a voz doce de
Molina retorna em modulações inesperadas e, ainda, repetitivas e mântricas. A faixa-
título que abre o disco é assombrosa: um coro eletrônico repete “one day”, enquanto
Juana canta com a voz mais esganiçada de todo o disco; a pauleira percussiva que se
segue é indescritível. Da música poderosa até a capa assustadora, o que se percebe em Un
día é o eco de experiências contemporâneas, mas que extrapola a mera adesão e penetra
no universo da novidade. Candidato certo para as listas de fim de ano, Un día pode ter
revelado uma artista do top de Björk ou PJ Harvey. Mesmo que esta previsão não se
confirme, o álbum justifica a aposta, fato que saudamos como um grande acontecimento.

Zomby – Where Were U in ’92? (2008; Werk Discs, Reino Unido)


“Zomby come’s from nowhere and is already dead”, afirma o myspace do misterioso
produtor e dj londrino. Embora a frase incremente o suspense em torno de sua enigmática
figura, o álbum em questão prima por características muito precisas. Trata-se de tributo a
uma época, ou, mais precisamente, à uma cultura musical específica. Mas isso não faz
com que o produtor se perca em homenagens, pelo contrário: se este pode ser
considerado um dos grandes discos do ano, podemos atribuir esse fato a uma
ambigüidade conceitual que perpassa todo o álbum. O título nos pergunta onde
estávamos em 92, período em que se consolida o boom eletrônico e a cultura rave,
buscando pela reminiscência uma cumplicidade capaz de percorrer e identificar as
referências ao uk garage, ao jungle, ao house, ao techno… Por outro lado, não busca o
mero resgate, mas a reafirmação destes gêneros através de uma releitura minimalista e
energética que evoca a urgência catártica da ressaca pós-Tatcher, mas também se vale da
economia e da precisão do dubstep. Em 38 minutos, Where were u in 92’ concatena
pequenos achados musicais, se utilizando de timbragens secas, revalorizando algumas
sonoridades peculiares, como o gravão sombrio do jungle, ou a quebradeira do uk garage,
além de sirenes, vozes manipuladas, e aquele amor bandido pelo minimalismo e a
repetição. Destaco momentos brilhantes como “Daft Punk Rave”, com seu vocal suave e
batida quebrada; “Pillz”, um grime-disco tinhoso; o pancadão sugestivo de “Fuck
Mixing, Let’s Dance”, o jungle ralentado de “Hench” e os gritos irônicos da faixa-título.
Mas noto que não cabe aqui destacar faixas específicas: Where were u in 92’ é um álbum
conceitual, para ser ouvido de uma vez só, em um só fôlego. De preferência dançando e,
por que não?, sob os efeitos psicotrópicos de uma época que passou, que passará…

Kieran Hebden & Steve Reid – NYC (2008; Domino, Reino Unido)
Encontros como esse, que tem por base a sólida e justa reputação de seus autores, podem
descambar para um perigoso aspecto de celebração ou de laisser allez, o que na maioria
das vezes resulta em um som meio frouxo. Mas o caso da dupla em questão neste álbum
precioso é bem diferente: trata-se de uma interação perfeita entre a imaginação delirante
de Hebden e o ritmo pulsante de Reid, na qual o improviso adquire a forma de método. E
notamos que, embora os álbuns pregressos não sejam tão coesos e ricos em soluções
como este NYC, cabe recordar que tanto as Exchange Sessions, como Tongues e Spirit
Walk, operam basicamente sobre alguns elementos básicos, como a improvisação, a
desconstrução de ritmos como o funk e o jazz e da implementação de diálogos entre
timbres acústicos e eletrônicos. Com isto quero ressaltar que o que há de melhor em NYC
decorre de uma série de experiências anteriores que foram e vem sendo aprimoradas. Não
que os álbuns anteriores já não fossem impressionantes, mas, em NYC, mesmo seguindo
caminho semelhante, a música da dupla dá um salto em termos de estrutura e controle das
dinâmicas, escolha dos samples e dos timbres, e composição das camadas e texturas.
“Departure”, a faixa que encerra o álbum, exemplifica o aperfeiçoamento do método
Hebden/Reid, como eles conseguiram atrelar a improvisação a uma sequência de
modulações coerentes e extremamente instigante ao nível da composição. “25Th Street”,
segunda faixa do álbum, também impressiona: um groove sincopado, salpicado por
sutilezas e interferências que desestabilizam o ritmo, como um baixo funk, sons de
percussões eletrônicas e um som estranho, algo como uma descarga de banheiro (?)…
Logo depois dela, entra “Arrival”, com um contrabaixo sampleado, guitarras psicodélicas
e a bateria vigorosa de Reid. Quando o álbum termina, temos a certeza de que acabamos
de escutar o resultado de uma colaboração prolífica e, possivelmente, longeva. Mas,
sobretudo, a certeza de que, no meu caso pessoal, cometi a primeira injustiça em relação
ao ano de 2008: NYC é um dos discos mais eletrizantes do ano que passou.
The Very Best – Esau Mwamwaya and Radioclit Are The Very Best (2008;
Ghettopop/Green Owl, Reino Unido)
Na semana passada, finalizei o texto sobre NYC, da dupla Hebden/Reid, com a
consideração de que, após as listas, inicia-se a dupla tarefa de receber e assimilar os
títulos de 2009 e, paralelamente, reparar as possíveis injustiças que só o tempo faz ver.
Neste balaio, percebe-se que ora as seguidas audições prejudicam o álbum, ora atingem a
maturidade, mas somente após os prazos requeridos. London Zoo, do The Bug e Margins
Music, da dupla Dusk + Blackdown pertencem ao primeiro grupo; do segundo grupo,
destaco não só o supracitado NYC, como também este divertidíssimo e tardio álbum do
trio The Very Best. Divertido, mas também algo profundo, pela natureza melancólica do
canto de Mwamwaya, grande expressão do disco. Combinada ao aparato electro da dupla
Radioclit, seu timbre espetacular e inspiração particular em criar versões são acrescidos
de uma energia antes improvável, pela suavidade característica de certas manifestações
musicais da África Oriental, como o soukous e a kwassa kwassa. Desta combinação,
surge um álbum empolgante e festivo na justa medida, mas ao mesmo tempo irônico e
desafiador.

Irônico porque as faixas foram compostas a partir de dois elementos principais que,
associados, estimulam o riso: bases de artistas renomados como M.I.A. (“Paper Planes”,
rebatizada “Tengazako”), Beatles (“Birthday”), Michael Jackson (“Will You Be There”),
Architecture in Helsinki e Vampire Weekend (“Cape Cod Kwassa Kwassa”), somadas a
arranjos vocais criados por Esau Mwamwaya, em sua língua nativa, o chichewa. Algo
como uma fórmula pop perfeita, em uma combinação que transborda descontração e bom
humor. Desafiador porque nos situa de outra forma diante do problema da reapropriação
dos elementos sonoros, e mais especificamente, da questão do remix, do refix, do mash
up, e de toda a gama de manifestações que tem no cut and paste sua profissão de fé. No
caso do The Very Best, estamos em contato se não com uma modalidade absolutamente
nova, ao menos com uma forma um tanto quanto peculiar de recriação e síntese de
elementos supostamente alienígenas. Destaco algumas versões bem engraçadas, como
“Bithday” e as que remetem ao Vampire Weekend e a Michael Jackson. Mas há também
que se prestar atenção em faixas como “Hide & Seek” e “Funa Funa”, que possivelmente
dão o tom do álbum autoral que está por vir.

Despretensioso, mas ao mesmo tempo cheio de viço e novidade, este primeiro álbum do
The Very Best nos mostra que estamos longe de esgotar as possibilidades de explorar
novos talhos do cut and paste. E isso significa não só uma questão de procedimento, mas
sobretudo de ampliação de perspectiva sobre a criação musical no contexto atual. O que
nos faz aguardar ansiosamente pelo álbum propriamente dito. (Bernardo Oliveira)

Animal Collective – Merriweather Post Pavilion (2009; Domino, EUA)


Já se tornou consenso o fato de que a originalidade da música do Animal Collective
advém de um talento específico para sintetizar elementos díspares num todo imprevisível
e inacreditavelmente coerente. Transitando com naturalidade através dos mais diversos
gêneros, mas também experimentando timbres e andamentos inusitados, sua música se
constitui por uma série de sínteses as mais idiossincráticas da seara pop contemporânea.
Sim, porque, a despeito do amplo manancial de sonoridades exploradas pelo grupo, o que
vem chamando a atenção nos últimos trabalhos é o modo prodigioso com que eles
concatenam este approach ao excepcional acabamento e relativa acessibilidade das
canções. Esta orientação pôde ser observada com mais precisão a partir de 2005, com o
álbum Feels, se estendendo pelo aclamado Strawberry Jam e pelo ep Water Curses.
Agora, neste excessiva e ansiosamente aguardado novo álbum, o grupo reforça a
estratégia e a intensifica: Merriweather Post-Pavilion (ao que tudo indica, referência a
uma venue americana construída pelo renomado arquiteto Frank Gehry, thanks Letty…) é
uma coleção de canções arrebatadoras, ao mesmo tempo singelas e bizarras, com um
toque inequívoco do cancioneiro pop dos anos sessentas, emoldurada, no entanto, por
uma roupagem inspirada e desafiadora. De tal forma que não seria exagero afirmar que
estes modos mais palatáveis do Animal Collective permitem compará-los com os Beach
Boys, por conjugar excelência na composição e novidade nos arranjos, embora não
permita reduzi-los a esta comparação. Com Merriweather Post Pavilion o grupo adentra
aquela dimensão seleta e restrita dos grandes grupos, capazes de alçar a música em outra
esfera, ainda que muitos duvidem que isso seja possível ainda hoje.
Se o viés a ser tomado aqui é a canção, cabe considerar os dois estilos dispostos em
Merriweather…. De um lado, as canções de Avey Tare, com suas letras psicodélicas e
uma densa concepção harmônica e melódica. Deste rol, destacam-se a faixa de abertura,
“In the Flowers”, que dá o tom do álbum com suas enigmáticas frases introdutórias (“A
dancer who was high in a field from a moment, caught my breath on my way home”) e
“Bluish”, uma faixa com sotaque Beatles, mas com um estilo de arranjo que poderíamos
comparar a uma mistura do pop avant-garde de Kate Bush com a corrosividade da Björk
de Homogenic. De outro lado, as canções de Noah Lennox, o autor de um dos álbuns
mais intrigantes da década, Person Pitch. Elas não são tão imagéticas como as de Tare,
pois exprimem o ponto de vista de uma vida simples e produtiva. E embora não possuam
as virtudes melódicas das canções de Tare, se impõem por força de um talento pop
inequívoco: “My Girls” exemplifica perfeitamente esta força (a propósito, Noah também
produz filmes bastante condizentes com este universo interior…). Mas a grande faixa do
álbum, pela novidade e por ser emblemática, é “Brothersport”: melodia no estilo
american country, sob uma batida muito similar a uma escola de samba, letra abstrata,
percussão alucinada e uma cacofonia dos infernos. Desde já uma das faixas do ano,
encerra o disco convergindo a sensibilidade profunda de Tare e a personalidade lúdica de
Panda Bear.

Transitando entre essas duas “vozes”, Merriweather… traz um som ao mesmo tempo rico
em referências e, atualmente, único em sua habilidade sintética. O que mais admira nele é
a capacidade de demonstrar interesse por tudo o que ocorre hoje no território da música,
mas transformando a informação em uma obra profundamente original. Na dicotomia
entre referência e originalidade, o álbum se constrói. E arrisco-me a dizer que aqui nasce
algo próximo de Ok Computer ou Nevermind: Merriweather… possui a aura dos grandes
discos. Nada como uma força demiúrgica, mas talvez esta não seja mais a questão.
(Bernardo Oliveira)

John Butcher – Resonant Spaces (2008; Confront, Reino Unido)


Suspense, apreensão: um artista com o currículo de John Butcher inspira sempre grande
expectativa, além de demandar uma audição cuidadosa. Convém manter os ouvidos e,
eventualmente, os olhos bem abertos para as nuances que emergem de seus álbuns, pois
sua música se faz a partir delas. No caso deste Resonant Spaces, celebrado com justiça
pelas publicações dedicadas à música inventiva, trata-se de uma desafio a partir do qual
Butcher deveria explorar sonoridades em três ambientes específicos: um mausoléu, uma
caverna e um tanque de armazenamento de combustível. Resulta desta concepção um
álbum extremamente rico sob diversos aspectos.

Primeiro, pode-se dizer que a forma com a qual Butcher lida com a acústica dos espaços
propostos pode ser situada como algo entre as pesquisas da eletroacústica e uma
dimensão da improvisação que dialoga direta (e estranhamente) com as ressonâncias. Por
outro lado, cada sonoridade adquire uma dimensão crítica única, que põe em questão boa
parte dos cânones que regem a música como um todo hoje, como por exemplo, a contínua
ladainha que reza ser o acústico e eletrônico universos distantes ou, ainda, diferentes. Na
experiência musical proposta por Butcher não há o menor sentido em se afirmar essa
distinção. Assim, não seria exagero dizer que o drone, o noise, o ambient, o minimal, o
dubstep, o free-improv e outras formas que marcam a música contemporânea com esta
indistinção são não só evocadas nestas faixas, como também relativizadas e deslocadas
de seu eixo central, isto é, suas estratégias e procedimentos. Variando os volumes e
intensidades de seu saxofone, se utilizando de efeitos eletrônicos para extrair dinâmicas
inusitadas, muitas vezes extremamente agudas, ele estabelece modulações e rompantes
raros, mas que ainda assim aludem ao campo de experiências da atualidade. Em “Calls
From a Rusty Cage”, por exemplo, ele exarcerba o volume, tateando repetições com seu
sax que ressoam de forma específica dentro do tanque de combustível. Em “Close By, a
Waterfall”, as intervenções dos instrumentos eletrônicos se torna mais perceptível, mas
não decisiva na construção do improviso, e a indistinção apontada acima aflora de
maneira surpreendente. Em “Frost piece”, Butcher se aproxima do noise com uma
riqueza de detalhes e originalidade timbrística assustadora.
Assim, alguém poderia afirmar que Resonant Spaces é o tipo de álbum que não contém
“música” propriamente, mas algo que transita entre a dimensão conceitual da música e os
estudos de eletrônica e eletroacústica, alocando-se na esfera da produção erudita. Mas
devo notar que muitos trabalhos arrolados hoje na gama erudita não possuem a
profundidade e o arrojo contidos em Resonant Spaces e, muito menos, a inspiração.
Porque apesar de árido e cerebral, o álbum intriga e, assim, emociona. Que a crusada
deste cavaleiro contra a mediocridade e a petrificação do som e do sentido prossiga,
produzindo outros álbuns tão impressionantes quanto este. (Bernardo Oliveira)

Christina Carter – Masque Femine (2008; Many Breaths, EUA)


Christina Carter trabalhou muito em 2008. Entre CD’s, CD-Rr’s e colaborações, dois
discos autorais impecáveis, Original Darkness e este, Masque Femine. Embora muito
diferentes em seus respectivos propósitos, ambos têm por base a utilização inteligente do
vocabulário folk, ora o desconstruindo através de detalhes sutis e dissonâncias, ora
jogando com a duração das faixas, dos acordes, etc. Estes elementos até podem unir os
dois álbuns no contexto da carreira de Carter e de sua banda, o Charalambides, mas não
os reduzem a uma questão de procedimentos. Ao contrário, os tornam ainda mais
contrastantes, já que o eixo central deste Masque Femine não é o manejo da repetição que
caracteriza Original Darkness, mas o trabalho com a voz que Carter desenvolve com
maestria de artista absolutamente segura do que deseja expressar. Pois a dimesão vocal
explorada por ela neste álbum extrapola o canto em direção a outras possibilidades: aqui,
a voz soa como instrumento musical. Carter a controla com a consciência de certas
inflexões acústicas ocasionadas pelo volume da emissão e pela proximidade da boca com
o microfone. Ou, ainda, explorando de forma inusitada os sussurros, ressaltando aqueles
estalos que são peculiares no contato entre a língua e o palato, criando overdubs
inusitados com frases melódicas imperfeitas, mas extremamente expressivas. Estas
características intimistas casam perfeitamente com o aspecto confessional das canções,
sobretudo nas três primeiras: a sussurrada “All Alone”; “Ask Me Now” e as oitavas que
ela inclui na melodia, justamente por cantar em volume tão baixo de forma a ressaltar as
imperfeições a que chamei atenção acima; e o tom grave e incômodo que prenuncia
“Centerpiece”, já cantada com uma intensidade mais forte que as anteriores. Seu violão
aparece em apenas quatro faixas, emoldurando interpretações que destoam um pouco do
conceito como um todo, mas que no fim das contas acrescentam como que um refresco à
aridez da maioria das faixas. Uma aridez sofisticada, que pode ser destacada como a
grande característica de Masque Femine: pois são os mínimos detalhes que emanam da
interpretação ultraeconômica de Carter que fazem deste álbum uma das experiências mais
bem sucedidas de 2008. E confirma que, muitas vezes, a novidade habita de forma
despretensiosa e, às vezes, invisível, a imensa gama de CD-R’s que são jogados na rede
todos os dias. (Bernardo Oliveira)

Toumani Diabaté – The Mandé Variations (2008; World Circuit, Mali)


Bako Dagnon, Tinariwen, Terakaft, Yaala Yaala… A música do Mali está aí para mostrar
que o epíteto “música africana”, e mesmo o rótulo genérico África, já não bastam, já não
dizem muita coisa. Reparem, por exemplo, no universo de questões que habitam a música
de Toumani Diabaté neste segundo álbum, The Mandé variations. Por ser improvisada,
ela pode até parecer desprovida de regras, mas obedece não somente à lógica harmônica
do kora, como também a uma lógica improvisacional que demanda certos procedimentos,
como a inclusão primeiramente da linha de baixo e do acompanhamento para que venha o
improviso. Por vir da África é considerada uma música regional, “cultural” do ponto de
vista do multiculturalismo de mercado em curso, mas Diabaté vem tocando com artistas e
músicos das mais diversas áreas e nacionalidades, como Taj Mahal, Björk e Damon
Albarn. É centrada em um instrumento e nas virtudes do instrumentista, mas a música de
Diabaté representa mais que uma prestidigitação insípida: ela revela algo nem tão comum
nos dias de hoje, um pensamento musical. Improvisada, mas nas regras do kora,
simultaneamente local e global, virtuosística e lírica, local e original, a música de Diabaté
é apenas um reflexo da imensa quantidade de artistas, artes e perspectivas musicais que
se desenvolvem no continente africano neste exato momento.

A música africana tem em Toumani Diabaté uma parcela nobre de sua representatividade,
mas é apenas uma parcela, e estaríamos enchendo lingüiça se enumerássemos aqui todos
os artista que legitimam essa percepção. Não importa, portanto, se a África está “na
moda” ou fora dela, mas que, em primeiro lugar, não há uma só África, muito menos uma
África “coitada”. O que existe sem dúvida é uma África pobre, mas culturalmente
imponente, a despeito de toda a exploração, uma África que apesar da pobreza, da
colonização, das suas próprias guerras e das guerras trazidas pelos colonizadores,
mantém-se como um pólo produtor de espécimes musicais em abundância. E mais:
Toumani Diabaté e The Mandé Variations exemplificam uma situação espaço-temporal
curiosa: a demanda por uma colocação no mercado obriga o artista a apresentar sua
música como um espécime “novo” e original, quando na verdade esta música é
tradicional, o público local já está careca de conhecer, ouvir etc. Deve este ter sido o caso
do Konono n. 1, de Esau Mwamwaya, do Tirariwen, do Group Inerane e, mais
agudamente, com o cantor sírio Omar Souleyman, tido por muitos como exótico.

Quanto mais se aprofundarem as relações entre músicos de diversas nacionalidades,


quanto mais este aprofundamento incorrer em uma imensa produtividade musical, tanto
mais o crítico terá que ser sensível às questões levantadas pelos antropólogos Franz Boas,
Lévi-Strauss, Edmund Leach, Darcy Ribeiro, entre outros: de que o olhar antropológico
deverá atentar com muito cuidado para o outro. Não por benevolência, mas por
verdadeiro amor à verdade. O crítico de música deverá ser mais pensador que observador,
deve assumir o relativismo cultural sob pena de perder de vista as dinâmicas extra-
mercadológicas, extra-ocidentais, extra-jurídicas… Se posicionarmos Diabaté em relação
à música feita no Mali não estaremos incorrendo num erro tão grande quanto posicioná-lo
no contexto da “música africana”, ou ainda, no contexto do melting pot mundial, no qual
o concerto de Diabaté certamente abriria desgraçadamente o de Peter Gabriel ou algum
decadente que o valha. (Bernardo Oliveira)

Black Dice – Repo (2009; Paw Tracks, EUA)


Quem tem medo da porcaria? Quem está disposto a morrer por seu “bom gosto”? De que
importa a música? Ela pode vir a morrer, como prenunciam as teorias apocalípticas
amparadas pelo capital e pelos órgãos de comunicação? Sim, pode! E daí? Antes de mais
nada é preciso perguntar para aquele que enuncia o fim: mas de que música se trata,
rapaz? A música como comércio? A música como ideologia, pensamento, como
“promessa de felicidade”? Esta música, aquela outra? Nada mais do que inflexão
religiosa embutida em reflexão metida a iconoclasta, a opinião dos arautos do fim da
música mostra que eles se esquecem de que a “música” não importa (e, neste caso, utilizo
o plural porque percebo que está opinião é comum…). Ela pode “acabar”, por assim
dizer, e ser rebatizada com o mesmo nome: música. Ou ainda ser misturada a outros
prefixos: protomúsica, submúsica, metamúsica… Não importa o que é a música, mas
saber qual é a música, maestro! E também se ela exprime algo para além da ordem, da
competência, da lei e do dinheiro. Perdoem o excesso deste primeiro parágrafo, mas ouço
Repo na semana em se enuncia em moldes fukuyamescos o “fim da música”? Como, se
me parece que ela está ainda começando?

Dois princípos se entrelaçam e norteiam o veredito dos arautos do fim: a ética da


competência e a lógica da conservação. Ambas são responsáveis pela reprodução e
sublimação de todos os elementos que, embora históricos e determinados, foram alçados
por uma geração que ascende ao poder à qualidade de “eternos”. Em boa parte, este
equívoco não leva em consideração o aspecto moral do conceito “boa música”,
construído, de um lado, sobre a idéia de que a boa música é a conhecida ou reconhecível
– e sobretudo, é a que “eu conheço” – e, de outro, de que se a boa música é realmente
“boa”, todas as outras músicas que se opõem a ela são, portanto, a má música, a porcaria.
E existem muitas maneiras de se opor à boa música, se levarmos em conta a “boa
música” para aqueles que foram jovens nos anos 60: a bossa nova, o jazz, o rock and roll
inglês, o soul, o funk, o afrobeat, a juju, as orquestras, o samba, o reggae, a salsa, etc,
tocados numa determinada timbragem, respeitando certas inflexões, certos andamentos…
A boa música para os que hoje tem entre 50 e 70 anos é uma música autoral, produzida
de forma a afirmar um gênero, seja através de um aprofundamento de suas características,
como no jazz, seja através de sua síntese com outros gêneros, como no caso do rock and
roll, filho do blues e do rhythm and blues… Mas como este indivíduo pode compreender
a música hoje, se hoje ela não procede somente através de aprofundamentos e sínteses?
Como ele poderá entender o caráter precípuo da grande música hoje, que é a retorção e
transfiguração de elementos históricos. A grande maioria dos artistas que produzem
música inventiva e instigante hoje adotam este procedimento como perspectiva sobre o
trabalho musical. Excesso de informação e facilidade de veiculação não estão embotando
o processo criativo, mas modificando-o de forma a alterar de alto a baixo o estado de
coisas da música. Mesmo uma banda como Charlie Brown Jr., aparentemente uma
emulação insípida de bandas punks dos anos 80, pode ser avaliada como uma retorção de
elementos destas bandas, adequada às aspirações do grupo – pode-se dizer, invertendo a
fórmula de Paulo Emílio, que eles detém uma certa “competência criativa em copiar”.
Um grupo como o Menahan Street Band, cujo álbum Make the road by walking foi
lançado em 2008 mas soa como se fosse feito em 72, olha para o legado musical dos anos
60 de forma semelhante, ao passo que o Grizzly Bear já cria sua música a partir de uma
transfiguração dos anos 70, mas coma habilidade de songwriter e arranjador de Daniel
Rossen para soar como música contemporânea. A transfiguração como método de
composição é portanto um caráter da música contemporânea que tanto dá conta de sua
sensibilidade, como esclarece, à contragosto de Adorno e Nelson Motta, o vínculo entre
criação e reprodutibilidade, pois requer do criador que ele disponha de uma bagagem
consistente como fruidor, ao menos condizente com seus propósitos criativos (no fim da
vida, o filósofo francês Gilles Deleuze afirmou que só lia para escrever…)

Afirmar que Repo, do Black Dice, é um disco que dá conta deste contexto é diminuí-lo,
pois o que se ouve aqui é um passo além na música, que não só intercepta qualquer
pessimismo preguiçoso, como também o desafia. Sua música é pura transfiguração
(assim como a de Richard D. James, Shackleton, John Butcher, M. Takara, etc.): ao
contrário da música realizada na primeira grande fase da música mecânica, “a era do
disco” (isto é, quando toda a produção musical se tornou subscrita às dinâmicas
industriais de registro e difusão, tornando-se também componente de grandes linhas de
produção, ou gêneros), a música desta segunda fase não é produção genérica, nem
movimento, mas comentário individual. O Black Dice tece em quarenta e cinco minutos
seu comentário arrojado e irônico sobre a dimensão onírica da sociedade de consumo, em
que dispomos e assimilamos diariamente uma gama de sons e imagens, que alteram
consideravelmente a percepção e, portanto, a sensibilidade criativa. Mas isso é apenas
uma explicação genérica e conceitual para um acontecimento experiencial que extrapola
explicações: ouçam por exemplo “Earnings Plus Interest”, “La Cucaracha” ou a faixa de
abertura, “Nite Creme”, que permitem entrever o método e a singularidade do som.
Mas talvez muitos achem essa música uma “porcaria”, o prenúncio do fim… Estarão
certos ou errado? Mas isso também não importa! E, aqui, vale mais uma vez citar o poeta
greco-romano Marcial, apud Augusto de Campos:

Só admiras os velhos, só a arte


Dos mortos move a tua pena.
Sinto muito, meu velho, mas não vale
a pena morrer para agradar-te

Mulatu & The Heliocentrics – Inspiration Information (2009; Strut Records, Reino
Unido)
Aparentemente, haveria entre a invenção e o retrô algo como um abismo, uma verdadeira
incongruência de propósitos e metas. A invenção seria algo próprio de uma voracidade
criativa vital, que emerge tanto sob o signo da desordem como do trabalho árduo e sem
tréguas. O retrô já seria subproduto da sociedade de consumo, e operaria suas mudanças
estéticas de acordo com o gosto do freguês, seja apelando para a nostalgia geracional,
seja requentando gêneros. Mas eu compreendo que estas duas perspectivas são parte de
um passado não tão longínquo, mas certamente… passado. Pois, hoje, detecta-se uma
habilidade em criar o “novo” dentro de uma linguagem até mesmo excessivamente
trabalhada e, portanto, “histórica”. Na semana passada citei o álbum do Menahan Street
Band como exemplo de um retrô nostálgico. Poderia acrescentar também o álbum do
Budo’s Band como um segundo exemplo no qual timbres e arranjos se ajustam
perfeitamente aos propósitos dos autores: para além da homenagem, eles desejam trazer
de volta esses gêneros e timbres, reabilitar uma certa perspectiva musical que,
supostamente, teria se perdido graças aos famigerados “novos tempos”, às intempéries da
indústria, à alta tecnologia etc. Talvez pudéssemos arrolar o trabalho do The
Heliocentrics ao desta turma. Mas isto só é possível parcialmente, na medida em que eles
buscam “modernizar” a música de Sun Ra através não só de elementos genéricos como o
hip hop, mas também incorporando sons eletrônicos, distorções, percussões desenfreadas
e outros detalhes que não são próprios aos gêneros a que fazem referência. Ocorre aqui
uma delicada distinção entre uma perspectiva de reabilitação e uma outra, de
reapropriação e sutil comentário: se a primeira deseja trazer à tona, a segunda pretende
ajustar à uma sensibilidade mais atual, procedimento que muitas vezes pode acabar
atingindo algum grau de invenção – como por exemplo no trabalho de Antony,
Tindersticks, Grizzly Bear, Will Odham, etc.

Mas e quando um medalhão, um demiurgo, alguém que já criou um corpus musical digno
de receber um nome particular é convidado a tocar com artistas que assumem sua
influência e lhe prestam homenagem? Muitos são os exemplos de encontros entre
músicos de gerações diferentes, os mais jovens pagando tributos e soldos para os mais
velhos. Mas aqui ocorre uma anomalia. Em sendo a obra de Mulatu Astatke
reduzidíssima, poucos são os subsídios para compreender a especificidade de seu Ethio-
jazz. Claro, há um sabor inusitado nas concepções harmônicas e timbrísticas de seus
álbuns mais conhecidos, Afro-Latin Soul Volumes 1 & 2, ambos de 1966, e Mulatu of
Ethiopia, de 1972, mas me parecem ainda insuficientes para justificar o rótulo. Então,
toda a rica gama sonora que dá forma ao som do Heliocentrics, serve como base sólida
para que Mulatu amplie o espaço sonoro de seu Ethio-jazz. Portanto, não se trata de um
inofensivo álbum-tributo, nem são os Heliocentrics meros anfitriões atentos e preparados.
Ao contrário, o disco é a continuação de um trabalho que, devido a sabe-se lá a quais
fatores, não prosseguiu seu curso natural. Guardadas as devidas proporções, podemos
comparar Inspiration Information Vol. 3 ao último filme de José Mojica, já que tanto
Mojica como Mulatu demoraram muitos anos para retomar o pensamento e a produção
criativa, vivendo mais de louros e experiências pregressas do que produzindo
efetivamente. Neste sentido, Inspiration Information é um disco sensacional, capaz não só
de justificar o Ethio-jazz, como também estimular os amantes do passado a tomarem
atitudes musicais menos retrógradas.

“Masengo”, a maravilhosa faixa de abertura, mescla uma melancólica linha de piano,


percussões, guitarras distorcidas e barulhos eletrônicos a um belíssimo e semitonado tema
etíope. “Live From Tigre Lounge” também sobrepõe um canto feminino à batucada e
guitarras funky. Pela incursão dos tambores, notadamente o bongo e a conga, “Cha Cha”
possui tempero latino. A tensa “Addis Black Widow” também surpreende pelas pausas
que entremeiam o diálogo entre a flauta e a bateria, até a entrada triunfal dos metais,
reproduzindo um tema tipicamente mulatiano. Algumas faixas lembram os discos
anteriores de Mulatu, como “Esketa Dance”, “Chik Chikka” e a regravação de “Mulatu”,
tema do álbum de 1972. Mas ainda assim são executadas com uma pegada maliciosa e
arrojada, cortesia de Malcom Catto e sua turma.

Não é à toa que os Heliocentrics têm sua morada no selo de Madlib, o Stones Throw,
justamente o local onde o cultivo do passado e a invenção se confundem a cada
lançamento. E também não me parece fruto do acaso que Mulatu tenha retornado nos
braços deste combo admirável. Ou teria sido o oposto? Não sei, mas certamente
Inspiration Information Vol. 3 é desde já um dos “jogos de comadre” mais excitantes do
ano. (Bernardo Oliveira)

Martyn – Great Lengths (2009; 3024, Holanda)


Com seus singles de 2007 e 2008, respectivamente “Broken/Shadowcasting” e “All I
Have Is Memories/Suburbia”, o Dj e produtor holandês Martyn já demonstrava duas
tendências de seu trabalho que se confirmaram com Great Lenghts. Sem que a
antecipação destas tendências prejudicasse o alto teor de novidade do álbum, Martyn
dobra suas apostas em um interesse obsessivo na exploração dos mais diversos gêneros
de música eletrônica surgidos nos últimos 25 anos, dentro porém da linguagem de
timbres rascantes e andamentos soturnos do dubstep; e também numa espécie de caminho
oposto ao anterior, isto é, numa tentativa bem sucedida de criar coesão e estilo para este
gênero alimentado pela história dos gêneros que o precederam. Claro que este
procedimento é comum às modulações da música eletrônica dos anos 90: mesmo para
nós brasileiros, que não acompanhamos de forma tão intensa o auge do UK garage, é
bastante compreensível a passagem deste gênero ao jungle, e do jungle ao dubstep. Mas,
não sei exatamente o porquê, Martyn consegue destilar em Great Lenghts uma expressão
do dubstep que surpreende sobretudo pelo resultado vigoroso que emerge, no entanto, de
um diálogo franco com o passado.
Talvez, por ter vivido os anos noventas e, nesta época, ter adquirido experiência como
DJ, ele disponha hoje de uma bagagem musical um tanto quanto mais ampla que a de
“vândalos” geniais como Darkstar e TRG. Ocorre que Great Lenghts testemunha o
trabalho de um artista de ponta, que embora recorra a num determinado recorte histórico,
não produz para homenageá-lo, como o Zomby de Where Were U in 92’, nem para
destacar seu lastro ideológico, como o Pinch de Underwater Dancehall. Ao contrário,
Martyn é profundamente original em sua viagem às vertentes mais variadas da música
eletrônica: ao 2 step matador de “Is This Insanity?”, ao techno de “Seventy Four” e
“Elden St.”, ao UK garage de “Little Things”, à levada funky da segunda parte de
“Natural Selection”, e mesmo ao ambient, na espalhafatosa “Brilliant Orange” e na
belíssima incursão glitch de “Bridge”. Mas onde o talento de produtor brilha para valer
são nas sensacionais “The Only Choice”, “Vancouver”, single de 2008, “Far Way”,
“Right? Star!” e “Hear Me”: batidas poderosas, que lembram as pancadas de “Metal on
metal”, somadas a linhas de baixo e teclados firmes, impenetráveis e repetitivas, que
conferem às faixas um clima de tensão constante. Tensão, inclusive, que perpassa todo o
álbum e aumenta a sensação de que sua música não se dá meramente à contemplação,
como muitos podem supor do dubstep. Ao contrário, Great Lenghts é agressivo e
minimalista, mas vai além do flerte com a pista de dança; é, de fato e de direito, música
para dançar.

Se Shackleton, com o emprego crítico da percussão, pode ser considerado o grande


iconoclasta do dubstep; Kode 9, com suas tentativas de torná-lo mais palatável, o seu
embaixador; Burial, a grande assinatura, o grande mistério; Clouds, a demonstração de
sua condição transnacional, para além da influência massacrante do 2 Step e do UK
Garage; Cotti e Pinch, as testemunhas mais incisivas de sua relação atávica com a música
jamaicana; e, por fim, Blackdown, o seu historiador, o seu pensador: eis Martyn, um
artista que se dispôs a converter a efervecência intensa de um gênero relativamente novo
em uma síntese simultaneamente histórica e vigorosa. Talvez aqui ele encarne aquele
artista, que por vezes passa desapercebido, mas deixa marcas sobre todos os outros, seja
situando-os sob outra perspectiva, seja colhendo deles o que têm de melhor e
retraduzindo-os para sua própria linguagem. Tarefa ingrata, cujo resultado, porém, alça
Great Lenghts a um dos grandes acontecimentos do dubstep em 2009. (Bernardo
Oliveira)

Valerio Cosi – Collected Works (2008; Porter Records, Itália/EUA)


Três motivos pelos quais admiro o trabalho de Cosi, e que me fazem eleger Collected
Works como seu álbum mais consistente.

1. Em primeiro lugar, admiro o coeficiente entre a idade do artista e a maturidade dos


resultados. Talvez por ser muito jovem, Cosi ainda se encontre um pouco deslumbrado
com seus ídolos, reproduzindo experiências semelhantes as de Terry Riley e Ornette
Coleman. Mas também é verdade que ele tem um “sotaque”, algo que o distingue da
maioria dos saxofonistas de sua geração, mais preocupados em emular Parker e cia..
Embora Collected Works seja uma compilação de trabalhos relativamente antigos,
podemos reinvidicar que este álbum traz o melhor e o mais diversificado material até
então gravado por Cosi, já que estas faixas nem possuem tanto tempo. Todo o álbum é
calcado em reedições de faixas gravadas em CD-R’s de 2005 a 2007, editadas antes de
seus álbuns pelo selo Foxglove. É uma espécie de suma e também de introdução à sua
música.

2. Apesar de trabalhar a experimentação de uma maneira semelhante aos artistas de sua


época, colhendo e sintetizando um amplo espectro sonoro, Valerio Cosi demonstra ter
uma percepção especial tanto para a composição como para o tratamento conceitual de
seus álbuns. Como ocorre com estes mesmo artistas, muito desta versatilidade advém de
condições tecnológicas específicas, que possibilitam o compartilhamento de tradições e
experiências musicais. Mas se repararmos atentamente à sua já extensa discografia,
perceberemos que a maioria dos álbuns não só encerram diversidade estilística, como
possuem características próprias. É o exemplo da mistura de drone, field recordings e
noise em And The Spiritual Committee; das suítes brötzmannianas dos três volumes de
Freedom Meditation Music; do estranho diálogo traçado entre rock e minimalismo de
Heavy Electronic Pacific Loop; e, no caso de Collected Works, da compilação de faixas
aparentemente díspares, mas coesas do ponto de vista da ironia do título: os Collected
Works são coleções de experimentações avulsas, unidas por sua própria natureza caótica.
Aqui, parece que em meio a uma coleção imensa de gravações, oriundas de um contexto
prolífico e favorecido pela reprodutibilidade digital, Cosi concebeu um álbum coeso, e
que ao mesmo tempo faz o balancete de sua curta e promissora carreira.

3. Nota-se nas faixas uma habilidade em articular o saxofone a toda uma parafernália de
samplers, eletrônicos e acústicos, manipulando tudo com destreza e eficiência, mas,
sobretudo, com emoção. Se há uma imensa frieza nos procedimentos utilizados por Cosi,
isto não obstrui os momentos em que sua música intriga e, portanto, comove. Até mesmo
em faixas mais experimentais como “”Mozambico”, praticamente composta por saxofone
e field recordings, somos levados a um universo de referências árabes, africanas e
americanas que impressiona por sua qualidade sintética. Em “I Wanna Be Free”, Cosi
vocaliza as experiências free, seu espaço musical por definição, com a incorporação
abismal de elementos noise que fazem da primeira faixa um a experiência acachapante.
“Harmonia Raag”, com suas tão bem resolvidas nuances orientais; e a ingênua “O
Ngoko”, demonstração de uma vivacidade pueril, que configura uma atração à parte.
Porém, na seqüência, com “Lovely Blue Cream”, uma espécie de “Take 5” mais
expressionista, esta mesma puerilidade é dissolvida pela força de um improviso maduro,
plenamente conectado com os “monges” do free. Collected Works possui esses saltos,
mas também demonstra habilidade no saltar.

Por sintetizar a obra de Cosi de forma ampla e paradoxalmente coesa; por exemplificar
uma faceta curiosa do método conceitual com o qual ele cria seus álbuns; e por confirmar
o compositor sagaz e o instrumentista instigado por descobrir novos caminhos, Collected
Works foi um dos lançamentos mais promissores de 2008, que nos passou despercebido.
Que esta nota repare o erro e chame atenção para este trabalho recente, porém instigante.
(Bernardo Oliveira)

Grizzly Bear – Veckatimest (2009; Warp, EUA/Reino Unido)


Uma questão me intriga quando me flagro completamente entregue à música de Daniel
Rossen e do Grizzly Bear. Me pergunto que dinâmica musical é esta que permite a eles se
situarem em pé de igualdade com porta-vozes de sonoridades e ritmos mais recentes,
quando o assunto é eleger o melhor da música produzida hoje? Ora, mas porque advogar
em favor do senso comum, quando sabemos muito bem que não é o suporte ou a
impressão de atualidade que determina aquilo que é novo – levando em consideração que
o “novo” é tanto combustível vital quanto erupção parcial e fragmentária. Assim, à
primeira vista, o Grizzly Bear pode ser considerado um grupo retrô, mas somente à
primeira vista. Sim, os arranjos lembram indie rock, Neil Young, soul, country, folk
inglês, Beatles e possuem um approach de rock progressivo e psicodelia, com todos os
instrumentistas dando aula de precisão e virtuosismo. Sim, as melodias evocam Paul
McCartney, Brian Wilson e, aos poucos, vão entrando em nosso espírito, com a força da
canção pop, mas com uma consistência ímpar, que, sugere, permanecerá conosco até o
fim. Que mistério é esse, então, plenamente destilado em Veckatimest?

Penso que uma combinação de elementos muito especiais explicam porque o Grizzly
Bear é mais interessante e repleto de surpresas que seus colegas retrô, como Devendra
Banhart, Franz Ferdinand e afins – afinal, o retrô não é a emulação pálida e reverente dos
anos sessentas, mas da música produzida em qualquer época. Além de excelentes
músicos, os integrantes do Grizzly Bear reproduzem uma cultura musical específica
através de seus próprios instrumentos. Não se trata de uma visão de fundo, teórica, mas
algo que se exprime na dinâmica de cada instrumentista, e que não pode ser confundido
com a reprodução do clichê. Assim, por vezes o contrabaixo adota uma sonoridade
próxima ao estilo seco e marcado de Paul Mccartney como em “Cheerleader”, a bateria
incorpora ritmos deslocados do folk e do rock, como na coda de “Two Weeks” e o violão
folk é como que assolado por uma gana riffeira de primeira linha, como na extraordinária
“Southern point”. Trata-se portanto de uma dimensão onde a música é construída a partir
de retalhos, tratados porém de forma a reproduzir um comentário sobre o clichê: não se
trata de mera reverência, mas de um processo criativo cuja característica conceitual é o
“corta e cola”, o mesmo “corta e cola” tão decantado por seus contemporâneos, embora
sob uma outra forma, talvez mais surpreendente justamente pelo tal descompasso a que
me referi acima. Eles não fazem música eletrônica (embora se utilizem dela de forma
convincente, como na maravilhosa “I Live With You”), nem “dubstep”, ou hip hop, mas
pensam e operam sua música em franca relação com o espírito mais arrojado da época.
Isso faz toda a diferença, incorporada à excelência das canções de Rossen, esse menino
prodígio, que é, já aos vinte e seis anos, um patrimônio do cancioneiro do século XXI.

O resultado final é inspirado, preciso, maduro, digno de figurar como a continuidade do


grande disco que é Yellow House, certamente um dos melhores da década – sem contar
com In Ear Park, do Department of Eagles, cuja sonoridade demonstra parentesco com o
Bear. No entanto, suspeito que audições sucessivas possam elevar Veckatimest para mais
além, para uma espécie de indicativo: o caminho está aberto a surpresas, cabe ao ouvinte
transpor as barreiras da aparência em busca do suprassumo sensorial e conceitual criado
por Rossen e seus parceiros. (Bernardo Oliveira)

Hecker – Acid in the Style of David Tudor (2009; Emego, Áustria)


A julgar por sua colaboração com Russel Haswell e, mais recentemente, com Aphex
Twin, a música de Florian Hecker dialoga mais com a dimensão conceitual das artes
plásticas do que com a seara musical própria (ou supostamente) dita. Longe de se
configurar como um demérito, esta característica permite com que ele trafegue com
desenvoltura entre exposições e eventos os mais diversos, tanto na Bienal de arte de
Sevilha como no concerto de comemoração pelos 20 anos do selo Warp. Na verdade, esta
tendência, que nas colaborações emerge como um elemento a mais, se torna mais claro e
adequadamente acessável no álbum em questão. Acid in the style of David Tudor é ao
mesmo tempo suma e resultado parcial das pesquisas que Hecker desenvolve há mais de
dez anos. Com Russel Haswell, ele produziu três obras que já indicavam uma inclinação
para os aspectos mais conceituais da eletroacústica, esmerando-se em constituir uma
relação entre método e acaso que implicava em formulações sonoras que, para alguns
ouvidos, podem soar como não-musicais. Com relação à parceria com Richard D. James,
imagino, caberia mais a palavra simbiose do que complemento, pois enquanto o primeiro
dialoga abertamente com a “música” estabelecida (notadamente o hip hop e o industrial),
pode-se dizer que Hecker abre mão completamente de produzir algum sentido musical
nas peças que compõe. Seu interesse se relaciona abertamente com a eletroacústica e,
portanto, diz respeito tanto à exploração de potencialidades sonoras, mas também às
relações entre o espaço e a propagação das ondas sonoras. Desde a capa, parte de um
artigo de Robin Mackay que pergunta “what is a sound of?”, até a propedêutica da
audição indicada no release, tudo conspira em favor de um deslocamento radical das
concepções musicais em curso, teóricas e práticas, em direção a uma dimensão sonora
simultaneamente analítica e criativa. A “música” de Florian Hecker é, como a de Xenakis
e Cage, um experimento que desafia o ouvinte, por jogar o tempo inteiro com um
elemento que não se coaduna com o que as pessoas esperam da música: a
imprevisibilidade – já que são os problemas e os métodos, e não o resultado, que
determinam o experimento.

Mas esta experiência, por seu conteúdo imprevisível, não ocasiona somente a insegurança
mas também o espanto e, às vezes, a dor. Muitas vezes somos acometidos por tensões
inesperadas, sopros granulados, distorcidos, revirados, transfigurados… Mesmo as três
faixas denominadas ASA 1, 2 e 3, que funcionam a princípio como uma espécie de trégua
em relação à quebradeira das outras, adquirem gradualmente um aspecto nocivo, que se
for mal administrado pode causar sérios problemas ao aparelho auditivo e à sanidade
mental do indivíduo. Não levem este comentário como elogio exagerado de entusiasta,
porque como Hecker explora o espaço em torno do ouvinte, procurando não só situar e
mover o som no espaço, mas também penetrando em seus ouvidos de forma agressiva,
cabe advertir que trata-se de uma experiência que pode causar, nas palavras do próprio
Hecker, “desorientação espacial”. A audição, portanto, é árdua. Na verdade, eu diria que
ela é necessariamente árdua, já que trata-se de uma descodificação radical, o que implica
em apresentar algo estrangeiro, alienígena e, consequentemente, difícil.

Para os que se aventuram na empreitada proposta por Hecker, para os que ultrapassam a
virulência e até mesmo o mal-estar ocasionado por sua “música”, o resultado é
fascinante. Eu diria até que, desde o Imperial distortion de Kevin Drumm, os “ouvidos”
da época não eram afrontados de forma tão franca e direta. A música de hoje tem em
Florian Hecker uma espécie de demiurgo, mas ao mesmo tempo ele age como um
vândalo, atingindo a noção de “audição” em cheio. É claro que muitos leitores devem
estar se perguntando o que este álbum tem de tão revolucionário para que valha tantos
elogios e sugestões de cautela, tantas advertências e cuidados? É porque nele, como na
literatura de William Burroughs, os corpos são fluxos de experimentações, para os quais
as noções de “saúde” e “política” não fazem o menor sentido. Se esta experiência fará
mal, trará desprazer, o que importa? Se a proposta de Hecker é legítima, se é condizente
com questões pertinentes à música de hoje – como por exemplo a distinção “moral” entre
barulho e música – isto o ouvinte descobrirá expondo seus ouvidos a ela. (Bernardo
Oliveira)

Maja S. K. Ratkje – River Mouth Echoes (2008; Tzadik, EUA [Noruega])


Esqueçam as comparações com o trabalho de voz que Christina Carter desenvolve em
carreira solo e em seu grupo, o Charalambides, aventadas no segundo podcast da
camarilha. River Mouth Echoes revela uma autora com preocupações bem diferentes das
de Carter. É bem verdade que esta semelhança fica mais clara no álbum Voice, de 2004,
bem como em parcerias com Lasse Marhaug. Mas neste álbum, a norueguesa Maja
Ratkje opera no contexto música contemporânea, notadamente a da segunda metade do
século XX, com fortes influência de Stockhausen e Xenakis – embora não se possa
descartar a influência de Várese e de alguns compositores da primeira metade do século,
como George Crumb. Aliás, pode-se dizer que seu trabalho está mais para Stockhausen
do que para Björk, mais para o campo do raciocínio e da estratégia do que para o
deslocamento e a tradução de procedimentos eruditos para o universo das canções. E
mais: está mais para o expressionismo de Stockhausen do que para as modulações de
Ligeti e as repetições de Glass e Riley. Reside portanto num plano não muito acessível no
que diz respeito às estrutura de composição. Se se pode afirmar que Stockhausen se
“popularizou” de uns anos para cá, isto ocorreu, em primeiro lugar, por conta da
proximidade que ele manteve com alguns artistas pop, e por ser pioneiro na manipulação
de suportes eletrônicos, não pelo caráter formal de suas composições. Muito do “modern
classical” contemporâneo prefere trabalhar no plano das polifonias de Ligeti e das
repetições dos minimalistas a se arriscarem no terreno minucioso da composição.
Questão de estilo, mas, me perdoem o termo, de culhão também.
Ao remeter River Mouth Echoes a tantas referências eruditas, não desejo repisar a velha
distinção popular/erudito. Mas é que mesmo quando velhas querelas prescrevem, não
interditam a constituição de novos sotaques, não evitam que alguns autores retrabalhem
procedimentos e sonoridades mais ou menos pré-estabelecidas. A música de Maja Ratkje
possui um forte sotaque erudito e talvez uma comparação justa devesse atentar para os
autores contemporâneos desta seara, como Pascal Dusapin. Contabilizando o número de
informações que listei para dar conta de River Mouth Echoes, pode-se mensurar o
tamanho da encrenca: música erudita contemporânea da primeira e da segunda metade do
século, trabalhos com vozes, eletrônicos, manipulação de fita magnética, pesquisas de
timbre, Christina Carter… Entretanto não se pode dizer que a síntese seja sua estratégia,
porque, embora se utilize de muitas linguagens e tradições, cada faixa em River Mouth
Echoes representa um universo particular. É, assim, um álbum para ser acompanhado
passo a passo, degustado como as compilações de artistas contemporâneos: obra a obra.

Para os desavisados, o álbum já começa “quente”: uma peça para sax alto e manipulações
eletrônicas, de cunho abertamente erudito, chamada “Øx” que, para fins de exposição,
posso de dizer que vincula de alguma forma a sonoridade esquiva de John Butcher com o
noise de Merzbow, sem que se pareça com nenhum dos dois. Depois, “Essential
extensions”, para acordeão, sax alto e double bass. Eu diria que essa dupla formaria o
primeiro bloco do álbum, onde se demonstra mais claramente a habilidade técnica e
criativa de Ratkje, além de constituírem as peças onde se percebe mais claramente a
influência de Stockhausen. Mas é a partir de “Wintergarden” que a música de Ratkje se
torna realmente peculiar, onde ela de fato passa a desenvolver um sotaque, uma forma
própria de criar dentro desse universo espinhoso da composição. “Wintergarden” é um
peça constituída a partir de sobreposição de vozes, onde a autora explora diversas
possibilidades: falas, risadas, suspiros, gargalhadas, berros, solfejos, etc, se misturam
progressivamente compondo um espaço musical em que a tensão permanece como fio
condutor. Nos últimos segundos, ouve-se uma linha melódica até simplória, executada
talvez por um sintetizador, mas que confere à faixa uma doçura surpreendente. Mas são
nas faixas seguintes que a surpresa se instala de vez. “River Mouth Echoes”, com seus
quase 20 minutos de volutas “messiaênicas”; a varesiana e eventualmente lúdica “Waves
IIB”, composta para uma série de instrumentos como flautas piccolos, sax soprano, tubas,
sintetizadores, percussões, etc.; e “Sinus Seduction (Moods Two)”, talvez a faixa mais
interessante do álbum, em que se pode observar um equilíbrio quase perfeito dos
elementos com os quais Rajtke mais trabalha: o noise, a manipulação digital de elementos
acústicos e a exploração de timbres e frequências em uma escala complexa e
multifacetada.

Se os álbuns anteriores, como Voice, de 2004, ainda suscitavam dúvidas quanto ao


caráter peculiar do trabalho de Maja Rajtke, e muitas vezes faziam crer estarmos diante
de uma experimentadora ao nível de Björk ou Carter, as faixas de River mouth echoes
mostram que ele não é mero fogo de palha ou brincadeira pretensiosa de conservatório.
Tem carisma, tem estilo e desenvoltura própria para figurar entre os poucos repertórios de
relevância na atualidade. E isso, para quem acompanha a aridez e os excessos intelectuais
dos compositores contemporâneos, é um feito e tanto e demanda um acompanhamento
mais que atento. Mais um furo nas listas de fim de ano de 2008, paciência… (Bernardo
Oliveira)

Dan Deacon – Bromst (2009; Carpark, EUA)


Bromst (ao que tudo indica, uma interjeição…) não surpreende somente por sua
sonoridade tremendamente instigante, produzida sob o signo do exagero, repleta de neons
e ironia festeira. Em seu primeiro álbum, Spiderman of the Rings, Dan Deacon já
apontava esses elementos. De um ponto de vista formal, poderíamos afirmar que ele
aplica uma textura fuzzy sobre a colcha de retalhos dos restos do capitalismo ocidental.
“Woody Woodpecker”, faixa que abre Spiderman…, pode exemplificar esta
característica à perfeição, com suas modulações vocais criadas sobre a legendária
gargalhada do Pica-pau. Mas há um elemento que, se não é uma exclusividade de
Deacon, ao menos ele o manipula com uma destreza ímpar: a capacidade de soar
ambíguo, ao mesmo tempo simples e complexo, doce e bizarro, maduro e imaturo… E
talvez resida aí o diferencial de Bromst, que o faz até melhor do que Spiderman…
Conforme ouço as faixas, passo então a questionar a suposta ingenuidade do autor.
Impossível não se abalar com a sutilezas embutidas na balbúrdia sonora armada por este
indivíduo. Me pergunto: trata-se de um selvagem intuitivo ou de um iconoclasta frívolo?
Uma olhada mais detida sobre sua biografia e descubro que apesar de toda a aura de
vandalismo nerd que ronda seus trabalhos, e até mesmo sua própria figura, Dan Deacon é
formado em composição eletroacústica e computer music pelo Conservatório de Música
no Purchase College, em Nova Iorque. Embora seus dois álbuns possam sugerir um
temperamento niilista, trata-se de um indivíduo antenado com um amplo repertório de
informações, atento e conectado à dinâmicas culturais e tecnológicas de ponta. Esta
selvageria controlada, elaborada por uma mente que quer produzir uma impressão de
debilidade mental, mas sofisticada e afinada com o espírito da época, consegue elencar
muitas questões e sonoridades num todo coeso e, repito, impressionante.

Em termos de infraestrutura musical, Bromst se ampara sobre o barulho, a repetição e


uma incontrolável veia pop – tecnopop, para ser mais preciso. Contam-se muitos tipos e
níveis de ruído, representados na maioria das vezes pela gama de sons sintetizados dos
anos 80, ao passo em que a repetição, algo que na cultura cut and paste parece inevitável,
torneia cada uma das faixas. “Red F”, por exemplo: sobreposição de loops, vocoders,
uma melodia singela e, ao mesmo tempo, tensa, que se inicia com um som sintetizado de
campainha que para algumas pessoas não faria nem sentido figurar numa canção.
“Paddling Ghost”, a faixa seguinte, inclui os inacreditáveis vocais de Pato Donald, que,
junto a suas performances, fizeram a fama de Deacon, surpreende também pelos arranjos
de bateria, e até pela terna melodia que se insinua por trás da cacofonia. Ambas lembram
um teclado Casiotone, com o pitch acelerado a níveis alarmantes… “Snookered” também
é digna de nota, por conta de seu aspecto etéreo, como se dentro da estética proposta por
Deacon coubessem também elementos estruturais do rock progressivo e da new age. Mas
é do meio para o fim que o álbum atinge o clímax. A começar por “Wet wings”, sutil
manipulação da voz de Jean Ritchie entoando a canção “The Day Is Past And Gone”.
Depois, “Woof Woof”, com seu riff enérgico e batida tribal, além da voz de pato, a esta
altura já assimilada e digerida dentro dos propósitos do autor – lá pelo meio, a barulheira
chega ao paroxismo e, subitamente, xilofones cristalinos tomam conta da faixa, trazendo
à tona a tal ambiguidade a que me referi acima. O trio final é estarrecedor. A dobradinha
instrumental “Slow With Horns/Run For Your Life”, com seu andamento à la Joy
Division; a acelerada “Baltihorse” e, talvez a faixa mais representativa do álbum, “Get
older”, uma espécie de suma do disco, com sua levada tecnopop, seus xilofones digitais e
timbres pavorosos. Só faltou a voz de pato.

Mas, dentre todas as referências que pesquei no mar revolto de Bromst, uma delas me
intriga, talvez porque eu não saiba bem o porque. O fato é que tanto as faixas deste como
as do primeiro disco me lembram muito uma única faixa de Brian Eno, do disco Another
Green World, “St Elmo’s Fire”. É claro, lá estão os xilofones, a repetição e a melodia ao
mesmo tempo agradável e pobre em recursos. É verdade que ela não é noisy e ainda tem
um solo de guitarra firulento à beça… Não é uma comparação que eu consiga, por ora,
dar conta de forma lógica e racional. Mas me parece que ela tem um fundamento
intuitivo, na medida em que, guardadas as devidas proporções, Eno e Deacon são mais
exploradores musicais do que músicos, mais pensadores que artistas, mais inovadores que
conservadores… E, neste sentido, é preciso pôr Deacon lado a lado com Kevin Drumm,
Omar Souleyman, Hecker, Siba e a Fuloresta, Animal Collective, etc. Isto é, com o que
de mais interessante e inovador se tem feito neste ano que já caminha para sua metade.
(Bernardo Oliveira)

Omar Souleyman – Dabke 2020: Folk And Pop Sounds of Syria (2009; Sublime
Frequencies, EUA [Síria])
Com Highway To Hassake, Omar Souleyman foi apresentado ao ocidente como uma
espécie de herói nacional, simbolizando algo entre a autonomia do Calipso e a
apropriação inovadora de tecnologia intermediária levada a cabo no Brasil por DJ
Marlboro e MC Catra. Mark Gergis, também conhecido como Porest, parceiro de Alan
Bishop do Sun City Girls, pesquisador, colecionador e colaborador do selo Sublime
Frequencies foi quem o descobriu, e a quem confiamos a opinião de que a música de
Souleyman é algo absolutamente anômalo no contexto musical da Síria. Mas o que se
ouve tanto em Highway To Hassake como neste novo lançamento, Dabke 2020, me soa
anômalo independente de qualquer contexto musical. Se tomarmos a música apresentada
neste álbum por uma definição abstrata não há muita novidade, pois trata-se de uma
miríade sonora composta por muitos estilos e técnicas musicais encontrados no Oriente
Médio, mas também integrada a práticas culturais e tecnológicas que se propagam em
todas as partes do globo. A diferença está na proporção de elementos díspares (do dabke
sírio, do choubi iraquiano, etc.), no modo de gravar e compor (incorporando elementos
eletrônicos e acústicos) e nos resultados propriamente ditos. Neste sentido, se Dabke
2020 não é mais representativa do trabalho de Souleyman, já que a primeira coletânea era
composta por uma variedade maior de ritmos, ao menos ela demonstra de forma mais
concentrada o poder de fogo e a urgência de seu trabalho.

“Atabat” (“entrada” ou “limiar” em árabe) inicia o disco com um clima etéreo, temperado
pelo bouzouk elétrico e pelo sintetizador, ambos executados pelo multi-instrumentista
Rizan Sa’id. Então, Souleyman abre os trabalhos, entoando os versos escritos pelo poeta
Mahmoud Harbi, executando com maestria os trêmolos vocais (mawal) característicos do
canto árabe. Na seqüência, talvez a faixa mais impressionante do álbum: “Lansob
Sherek”, um dabke eletrônico composto por timbres carregados e uma sobreposição de
ritmos e improvisos que beira às raias da saturação. Aliás, os solos que se alternam entre
os vocais de Souleyman são geralmente saturados de efeitos, como o delay, o que, com a
batida, confere um clima caótico às faixas. Uma outra característica é a insistente
inclusão de solos de percussão e instrumentos, como que reproduzindo as variações por
exemplo da tabla indiana, mais um elementos que contribui para o estilo arrojado das
composições. “Shift Al Mani”, um choubi veloz, com a alternância de vocais e solos de
sintetizador, dá prosseguimento ao álbum. De um modo geral, Dabke 2020 é frenético e
agitado. Mas a faixa final, “Kaset Hanzal”, a mais lenta e melancólica, também possui
seus encantos, com seu início ralentado por obra da ação do programador, o que nos faz
perguntar se foi propositadamente atrasada ou se constitui um erro de gravação. De
qualquer forma, encantador.

Destaco também “La Sidounak Sayyada”, com seu suingue “malemolente”, e “Qalub An
Nas”, com vocais saturados de efeito e solo de tabla, momentos brilhantes que nos
conduzem ao “conceito” não do álbum, mas da própria música de Souleyman: como a de
Catra e Marlboro, é música de festa, para beber e dançar até cair. Papel que esta coletânea
cumpre com folgas. (Bernardo Oliveira)
The Naked Future – Gigantomachia (2009; ESP-Disk’, EUA)
Atenção: este álbum não é exatamente um marco, mas indica um gênio musical capaz de
criar reviravoltas. No horizonte do free-jazz (ou mesmo free-improv) contemporâneo, o
trabalho do The Naked Future representa uma faceta extremamente peculiar, para não
dizer única. Assim como o punk-jazz do Lounge Lizards de John Lurie, Gigantomachia
traz uma dicção jazzística que de tão anômala aponta para um limiar, um limite onde se
percebe a estrutura de improviso e composição em xeque. Trata-se de uma música crítica,
uma dimensão onde o jazz é questionado, ou melhor, uma música que traz embutida uma
crítica construtiva a alguns clichês do free jazz. Claro, alguns poderão opor-se ao que
estou afirmando lembrando o caráter iconoclasta do segundo quinteto de Miles Davis, as
pirotecnias de Ornette Coleman ou até mesmo a própria condição moderna, que impele o
músico a buscar a destruição das formas pregressas, o paradoxo e a superação.
Entretanto, The Naked Future não propõe a desconstrução como método, mas a
incorporação quase “desrespeitosa” destes clichês, bem como de outros, às vezes
alienígenas, às vezes inomináveis. Durante a audição, têm-se a impressão de que a
música vai de nenhum lugar a lugar algum, e isto não por obra de uma desorientação
juvenil, muito pelo contrário. Muitas vezes o próprio jazz é situado em segundo plano em
favor de uma aventura cujos riscos parecem estar fora da previsão e do controle. O título
tem o mérito de indicar o caráter central do álbum: Gigantomachia, alusão direta à
batalha primordial dos deuses gregos, representa o aspecto demiúrgico com que
Arrington de Dionyso e seus companheiros constróem sua música.

Enfim, está dito: Gigantomachia abre portas para um jazz novo e desafiador. Mas onde
precisamente reside esta novidade? Eu arriscaria a tese de que The Naked Future opera
com uma combinação original de improviso controlado e apropriação timbrística do free
jazz dos anos 60 e 70. Nota-se porém que o próprio rótulo free jazz se vê aqui
questionado. E isso porque o que conta em Gigantomachia não é mais o aspecto
instintivo e imediato da improvisação, elemento que justifica e endossa o termo free. Ok,
percebe-se uma inclinação especial à criação de estruturas ríspidas, tensas, que remetem
diretamente à ideia de batalha implícita no título. Mas a improvisação do grupo tende a se
manifestar através de uma racionalização do espaço rítmico e harmônico, como se pode
notar nos diversos momentos da faixa de abertura, “We Binge on a Bloodthirsty God”.
Às vezes, a simplicidade elegante das estruturas a que eles chegam é tanta que
lembramos mais do drone e do dubstep do que propriamente do jazz. O outro aspecto
relevante é a produção destas texturas a partir da utilização de timbres característicos do
gênero. Em Gigantomachia ouvimos timbres familiares, como o saxofone irascível, o
contrabaixo executado com arco, as sucessivas viradas de bateria, o piano
harmonicamente descentralizado são reinterpretados sob a ótica de Dionyso e seus
companheiros. O resultado emana agressividade e vigor, tornando a audição um desafio
para ouvidos sensíveis, apesar da rica variedade de momentos sutis e silenciosos –
sobretudo na faixa final, “We Sleep in a Rabbit Hole” e em variados compassos de “We
Engage the Monstrous With Our Mirrors”. Destaque para o pianista Thollem McDonas,
responsável por alguns desses momentos.

Pode-se afirmar, no entanto, que apesar de promover uma desorientação sonora singular,
The Naked Future é um grupo estritamente apolíneo, tributário de certas inflexões
estruturais da música contemporânea, particularmente no que diz respeito à economia e
ao trabalho com repetições. Me parece também que de Dionyso é o personagem central
desta trama, a julgar por seu álbum solo I See Beyond the Black Sun. Nele, o autor
também desfila, dentro de uma estrutura de improvisação, uma ampla variedade de
texturas criadas a partir de seu canto gutural e do bass clarinet que executa com ímpeto
pueril. Enquanto os medalhões do free, como Parker e Coleman, valorizam
(brilhantemente!) cada vez mais o aspecto intuitivo do gênero, este jovem de trinta e
poucos anos propõe uma abordagem estrategicamente fria, mas que resulta em
sonoridades curiosamente intensas. Ao contrário do jazz de proveta da ECM, pálido
investimento da música de conservatório em formas soltas, a música de Dionyso é alegre
e furiosa, características centrais das grandes obras do jazz. Motivo mais que suficiente
para que fiquemos de olho em seus próximos movimentos. (Bernardo Oliveira)

Wolf Eyes – Always Wrong (2009; Hospital Productions, EUA)


A capa de Always Wrong é ao mesmo tempo bela e assustadora. Sobre o fundo negro-
azulado, uma ondulação composta por uma malha de linhas brancas sugere algo parecido
como um monstro, mantendo a já antiga identificação entre o barulho e terror. Três
braços protuberantes indicam um centro gravitacional, uma orientação clara e distinta,
ainda que situada no olho do furacão. Nada mais ambíguo. Nada mais adequado e
surpreendente também. Always Wrong remete exatamente a o que esta capa parece
representar: três indivíduos absorvidos por uma prática rigorosa e contumaz, sondando o
caos e promovendo uma zona onde já não opera a distinção barulho/música. Como no
caso das expressões realmente interessantes do noise, o Wolf Eyes tem personalidade
forte – como quando nos referimos a uma comida ou a um remédio – mas depreende um
aspecto extático inegável. Para quem entra no clima, muitas vezes somos sugados por
esta sonoridade tão embrigante quanto desafiadora.

O fato concreto é que ainda não consegui escutar com atenção todos os discos do Wolf
Eyes, e talvez não consiga fazê-lo até morrer. Mas como situar este trabalho em relação a
um grupo que soma mais de 150 lançamentos? Só este ano, entre fitas cassetes e CDr’s,
já são dez álbuns. No caso deste, sugestivamente batizado como Always Wrong, trata-se
de um álbum de estúdio, lançado por um selo específico, o Hospital Records. Presumo
que haja uma diferença entre os cassetes e CD-R’s e os álbuns lançados por selos
especializados, o que fica mais ou menos claro quando faço a comparação. Os
lançamentos independentes guardam dinâmicas mais soltas, improvisos, um modo
autêntico de se trabalhar o noise nos dias de hoje. De forma que, para analisar este álbum,
julgo adequado compará-lo aos de mesma cêpa, isto é, os álbuns de estúdio lançados por
majors, como o álbum homônimo de 2000, a parceria com Anthony Braxton, Black
Vomit e Slicer, de 2002. Entre a brutalidade, o vandalismo e a minúcia, neles o Wolf
Eyes consegue obter resultados mais interessantes.

Mas, ainda que encarado nesta perspectiva, Always Wrong me parece um álbum especial.
Os timbres soam mais estranhos, as estruturas de composição se mostram com mais
clareza, as vozes se articulam de forma consistente, sem espaço para rap ou canção, os
ritmos estão mais interessantes, super quebrados e detalhistas… Podemos até dizer que,
tal como o Animal Collective, o Wolf Eyes parece buscar uma forma mais seca e coesa
em relação à radicalidade dos experimentos anteriores, incorporando esta radicalidade a
estruturas mais inteiriças e amarradas. Como em “Cellar”, a faixa de abertura, instigante
mistura de doom e noise dos melhores. Ou em faixas mais “tranquilas”, como “Living
Stone” ou a faixa final, a dobradinha “Droll/Cut the Dog”, onde eles encontram, à moda
de um Black Dice, uma perspectiva noise que aposta mais no incômodo dos sons
abrasivos do que na cacofonia desbragada.

Mas não se engane o leitor, pois o resultado por isso não se mostra mais palatável ou
menos criativo, pelo contrário. Em pouco mais de meia hora de música, o Wolf Eyes
propõe a deseducação de nosso ouvido. Mas esta deseducação implica em uma abertura
da percepção e da fruição. “Broken Order”, título de uma das faixas, reitera a imagem do
terror embriagado que descrevi acima, um terror que conduz a uma pureza sem
mediações, a uma forma musical que expurga do ouvido todos os excessos, mas de
irritabilidade e intolerância. Um terror que ensina a expandir a audição, não tolhi-la ou
acostumá-la.

Por denotar essa dimensão pedagógica, mas também por manter o prazer do início ao fim,
conjugando as características mais nobres da arte, Always Wrong pode até soar como um
trabalho impenetrável. Mas é, sem sombra de dúvida, uma dos mais indispensáveis do
ano. (Bernardo Oliveira)

The Books – Thought for Food (2002; Tomlab, Alemanha [EUA])


A arte é um fenômeno fascinante porque testemunha a diversidade dos povos e a
idiossincrasia de alguns indivíduos “especiais”. Para dar conta de sua amplitude no
âmbito ocidental, alguns pensadores criaram teorias acerca da especificidade da arte
moderna, buscando geralmente equilibrar umas perspectiva conceitual (geralmente
tributária da estética de Kant) com a diatribe de estilos e possibilidades estimuladas pela
reprodutibilidade técnica. Alguns anos antes, porém, Baudelaire já afirmava que o sentido
do moderno se expandia em diversas direções, ora designando uma reação contra o
desinteresse kantiano, ora assumindo seu aspecto deliberadamente “interessado”. Muito
tempo depois, o italiano Giorgio Agamben julgou que a modernidade produzia ao invés
de obras interessadas, obras interessantes, dirigidas a um público e uma fruição
determinadas. A arte interessante resultaria de uma mediação entre a nostalgia da aura e
sua perda, preconizada por Benjamin e consolidada na generalização de toda a arte em
“cultura de massas”. Por outro lado, quase que na contramão de Kant e Baudelaire, o
mesmo Benjamin previu para o futuro da arte uma aderência cada vez mais incisiva entre
obra e crítica, variando somente o grau de “criticidade” da obra em relação a si própria e
a seu contexto. Mas esta subjetividade, esta profunda interiorização do autor e da obra,
corresponderia paradoxalmente a uma ampla exteriorização da mesma, e isto, me parece,
constitui a “modernidade”, a saber: esta expansão para dentro e para fora, esta
característica particular de comungar modos particulares e elementos externos é
característica precípua das grandes obras de arte do século XX: Duchamp e o
deslocamento do contexto, Stockhausen e a ampliação do espaço sonoro, Bob Wilson e a
relativização do tempo teatral, etc. Perfaço brevemente este caminho teórico para notar
uma característica de Thought for Food que o faz um dos mais fascinantes registros
musicais da década. Thought for Food condensa elementos que se cristalizaram no
percurso da arte moderna e contemporânea: colagem de referências externas, criticismo,
incorporação de elementos aleatórios e, ao mesmo tempo, um alto grau de controle…
Mas, apesar de redutível a este contexto, ao mesmo tempo, o álbum tem um aspecto
exclusivo, uma sorte de sutileza musical que se destaca, mesmo em uma década por
demais “interessante”. Deleita, e traz problemas concernentes à arte moderna e a toda
arte, como aparência, beleza, autoria… Mas sua beleza (ou interesse) está para além
destas questões.

A sensação de aleatoriedade que o disco emana contrasta com o fato de tratar-se de uma
série de composições altamente controladas. Há aqui de tudo um pouco: violões folk,
sobreposição de percussões inusitadas, sonoplastia, programas de rádio, barulhinhos de
animais, samplers, utilização de vozes de diversos modos, incorporação de elementos do
cotidiano, títulos sugestivos, noise, field recordings, resquícios de canções, de melodias,
etc. A miscelânea de estilos musicais e procedimentos resulta em uma sonoridade
confusa e embaralhada, mas uma atenção cuidadosa demonstra que não é bem assim. Os
próprios autores estimulam a confusão, quando, no final da segunda faixa, “Read, Eat,
Sleep”, ouvimos alguém dizer, com voz de locutor: “By digitizing thunder and traffic
noises, Georgia was able to compose aleatoric music.” Mas o que se ouve é uma colagem
de momentos esparsos, que buscam construir uma painel sonoro a partir de elementos do
cotidiano, ou pelo menos elementos musicais que constróem um ambiente em que a
regularidade das atividades cotidianas pode ser evocado, ainda que em tom de deboche.
Um violão, uma voz masculina que soletra pausadamente o título, percussões eletrônicas,
manipulações de estúdio configuram o painel, a partir do qual podemos supor um elevado
nível de construção sonora– “elevado” porque concentra som e significado de modo
eficaz, ao mesmo tempo divertido e reflexivo. E aí reside a maravilha de Thought for
Food: a pregnância conceitual (ou problemática) de sua música é concomitante a um
prazer, a uma dimensão de jogo, que pode sugerir tanto o “zeitgeist”, como uma inflexão
absolutamente sem igual e sem comparações. Um misterioso distúrbio de linguagem.

A senha para esta linguagem misteriosa é a ironia. E ela se constrói justamente no espaço
entre o fato desta música soar “interessante”, no sentido pejorativo proposto por
Agamben, mas também encerrar uma “promessa de felicidade”, segundo a estética
radical atribuída a Nietzsche – uma estética do ponto de vista do criador e não do
espectador. Como a música de Maja Ratkje, Hecker, Asa-Chang, Aphex Twin e Kevin
Drumm, ela assume uma série de dificuldades impostas por um contexto massificado e
descentralizado para afirmar uma estratégia, um rompante, uma pesquisa ou,
simplesmente, um ponto de vista… Sem dúvida, um dos mais autênticos e geniais dos
últimos anos. (Bernardo Oliveira)

Asa-Chang & Junray – Jun Ray Song Chang (2002; Leaf, Reino Unido [Japão])
Coube aos antropólogos a árdua tarefa de definir um elemento teórico extremamente
fugidio e problemático chamado cultura. E apesar de todos os debates e até mesmo
correções de rumo que marcaram o advento e desenvolvimento do conceito, uma
conclusão parece ter se cristalizado entre as almas bem-pensantes. De que todas as
culturas se equivalem a despeito de suas diferenças; e, como consequência desta
premissa, de que toda cultura é miscigenada a priori. Não me estenderei neste assunto,
mas apenas notarei que por mais bem intencionada que pareça esta opinião, ela já toma
hoje uma forma simplória e simplista, que mais estimula um perigoso nivelamento
cultural do que expõe e problematiza as diferenças. Pois bem, deixemos de lado essa
visão para afirmar a diferença de um ponto de vista supranacional e, sobretudo,
supracultural. Trata-se aqui de identificar a diferença no extrato das ramificações e
sobreposições culturais mesmas, ainda que, em primeiro plano, toda cultura seja, desde
sempre, “miscigenada” – mesmo aquelas que cresceram e se constituíram nas franjas de
um processo de autonomia radical. A questão no entanto não se fecha aí, pois existem
milhões de situações culturais, e mais ainda, de contextos e exemplares que testemunham
misteriosas formas de síntese. Tantas que, suspeito, com o antropólogo Edmund Leach,
de que não há mais sentido em nos referirmos à cultura no plural: culturas. Na arte, este
processo traz no entanto uma série de problemas. Porque as distâncias “culturais”, sendo
cada vez menores, sendo cada vez mais arroladas no nivelamento produzido pela
economia de mercado, traz em contrapartida uma exigência, um rigor na mistura e no
modo de misturar cada vez mais desafiador para aqueles que buscam escapar da ética
“jornalística” do melting pot. Ora, tudo pode ser Melting Pot e, regra geral, a utilização
desta expressão deixa entrever um cosmopolitismo benévolo, alienado e, como o tiro que
sai pela culatra, etnocêntrico.

Assim, eu poderia definir Jun Ray Song Chang de uma forma burocrática, elencando as
influências de música tradicional japonesa (o shomyo, o gagaku, etc), a incorporação
absurda e prodigiosa da tabla indiana, a utilização minuciosa dos aparelhos eletrônicos…
Mas isto justamente remeteria o álbum ao contexto do “caldo cultural”. Não. Como todo
grande álbum Jun Ray Song Chang não é produto de contexto, mas de uma subjetividade
disposta a unir esforços em prol de uma expressão sonora sem par, sem comparação.
Provém de um contexto, mas ainda assim lhe é alienígena. Uma disposição que tem seu
trunfo na transfiguração dos sons e ritmos, na ironia, no humor, e em um excesso de
expressão, uma sorte de equilíbrio entre exagero e minúcia que faz diferença. “Hana”, a
faixa que celebrizou Asa-Chang e seus comparsas, é sem exagero, uma das aberturas de
disco mais fascinantes de todos os tempos, com sua repetitiva cama de cordas que
contrasta com a dinâmica rítmica variada formada pela sobreposição de tabla e voz.
“Preach” e “Kobana” estão inseridos no contexto da música para o teatro kabuki, o
nagauta. No entanto, muito embora conserve a dimensão dramática do gênero,
rapidamente se converte em um experimento com ritmos e um belíssimo entrelaçamento
de diferentes linhas melódicas. A histeria de “Goo-gung-gung” e a saga polirítmica
“Jippun” também se encaixam na dinâmica rarefeita entre o contexto e sua superação, e
podem até se tornar uma imolação aos ouvidos mais sensíveis e acostumados com
determinadas sonoridades. Ao contrário, para os que se deleitam com o incômodo que
algo absolutamente desconhecido pode evocar, trata-se de um desafio, motivo de júbilo e
loas.

O trabalho de Asa-Chang & Junray pode ser arrolado no discurso do melting pot, sem
dúvida. Porém, tal como a música dos grandes nomes dessa década, ela não se define por
gêneros nem modelos, se não que pela confluência de determinados estilos e modos de
produzir música. Mas, em sendo toda a música, assim como toda cultura, produzida a
partir de matrizes heterogêneas, como se pode identificar a diferença? Semana passada,
Ruy se referiu ao The Books como um OVNI, algo que à primeira vista não identificamos
ou estranhamos demasiadamente. Uma boa imagem, mas que mantém o mistério da
diferença, reportando o desconhecido a uma dimensão metafísica. O mistério, para mim,
se localiza no paradoxo entre uma linguagem que se exprime de forma heterogênea e
sintética, mas que, ao cabo de sua apresentação, torna-se irredutível não somente ao
contexto de onde emergiu, mas a qualquer contexto. É o caso de Jun Ray Song Chang,
sem dúvida. Um OVNI, um mistério, uma música que intriga, transtorna, torna tudo ao
redor irrelevante e inócuo… Certamente um mistério para mentes acostumadas a
distinção entre cultura de massas, folclore, cultura erudita, e outros currais conceituais
que há muito perderam o sentido. Para os fãs de “sonoridades exóticas” o trabalho do
Group Inerane ou do Konono n. 1 pode trazer uma novidade que depende tão somente da
distância cultural, constituindo-se numa forma pobre e institucional de enquadrar a
diferença. Mas o que estes grupos apresentam é a diferença radical, fora do âmbito seguro
e domesticado do melting pot. (Bernardo Oliveira)

Keith Fullerton Whitman – Dream House Variations (2009; Arbor, EUA)


Keith Fullerton Whitman é um cara obcecado por música eletrônica. E como tal, carece
tanto de um ambiente propício a pesquisa, como de todo um aparato técnico
extremamente caro e sensível que torna comum a adesão de certos artistas a instituições
acadêmicas e estatais, como rádios federais por exemplo. Foi o caso de Stockhausen e
Ligeti no Nordwestdeutscher Rundfunk em Colônia, e, mais recentemente, Dan Deacon
em relação ao Purchase College, de Nova Iorque. A intenção geral pode ser resumida não
só nas possibilidades de ampliação do universo sonoro e manipulação da repercussão no
espaço, mas na própria possibilidade de criar interações entre suportes oriundos de
épocas diversas. Foi nesta seara que Whitman se especializou, unindo suportes da pré-
história da música eletrônica como toca-fitas e sintetizadores analógicos a aparelhos de
última geração, como um macbook rodando Max-MSP. Se um outro pesquisador do
gênero, Kevin Drumm, se concentra na produção da minúcia e da intensidade, Whitman é
mais inconsequente e “técnico”, pois se concentra na noção de interface entre suportes,
fontes e materiais de difusão. E o que mais impressiona é que ele o faz de forma
plenamente integrada a um objetivo criativo. Quero dizer: longe de se configurar como
fetiche técnico, o interesse de Whitman na interação entre esses elementos favorece a
criação, ainda que englobe ao mesmo tempo um monástico aspecto de pesquisa.

Alguém pode notar uma certa sisudez, uma ausência de graça e irreverência, que
caracteriza por exemplo o trabalho de outros experimentadores americanos, como Ives e
Cage. De fato, há uma seriedade no projeto, mas vale notar que ele não é sisudo à toa.
Seus objetivos que, sendo ambiciosos, produzem uma aura de concentração e dedicação
tal que por vezes pode ser mal interpretada. Há leveza e liberdade nas intenções de
Whitman, não no som que ele produz. O caso desta caixa contendo quatro fitas cassetes,
Dream House Variations, é exemplar neste contexto. A proposta adquire sentido quando,
seguindo as instruções do autor, nos posicionamos no meio de quatro toca-fitas, na
“casa”, experimentando as “variações”, nuances de altura, dinâmica e intensidade que
soam conforme tocamos as quatro fitas simultaneamente. Dentro da “casa” proposta por
Whitman vamos aos poucos sentindo um clima de laboratório, vamos experimentando
uma sensação aguda da recepção, como se estivéssemos de fato participando de um
experimento científico. Mas o que ocorre aqui se aproxima mais de uma aberração do que
de um a experimentação controlada, para fins de reiteração. Como escrevi acima,
Whitman atenta mais para as possibilidades de criar interfaces sonoras – técnicas, mas
também estéticas – do que em criar exclusivamente na seara da música propriamente dita,
como ocorria em suas primeiras criações, sob a alcunha Hrvatski. De forma que se torna
curioso encaixar Dream House Variations no contexto pós-Hrvatski. Percebe-se que as
preocupações do autor não se vinculam a nenhum gênero específico; sua música vaga
tanto entre o ambient, o noise, o drill and bass, o IDM, etc., sem se importar com a noção
de identificação, mas com o alcance e a possibilidade de mobilizar outras vertentes de
exploração do espaço sonoro. Após assumir o nome próprio, ele deixou para trás as
formas musicais para abraçar o inominável.

As variações propostas por Whitman operam não somente interações técnicas, mas
evocam também um entrelaçamento entre a parcimônia do drone e a cacofonia do noise,
construindo passo a passo uma proposta que não se esgota na audição. Seu trabalho diz
respeito a uma dimensão conceitual da música que não só experimenta os aspectos
propriamente sonoros, mas também o explora de forma crítica, problematizando as fontes
e revelando conexões que se exprimem também no campo extra-sonoro. A música não
está somente no ouvido, parece gritar uma corrente que começa com Stockhausen e tem
em Hecker, Drumm e Whitman seguidores fiéis. Prejuízo para uma certa inflexão de
pensamento que deseja encurralar a música nas formas cristalizadas da chamada “cultura
de massas”. De forma que só tenho a dizer: sorte a nossa vivenciarmos uma época em
que estas intenções atuam a todo vapor. (Bernardo Oliveira)

Mu – Afro Finger and Gel (2003; Output, Reino Unido)


O hábito de ouvir música antes de dormir já me fez perder o sono. Aconteceu na primeira
vez que escutei Fun House e Olé Coltrane: ambos acenderam o fogo inexorável da
curiosidade, me fazendo perder a noite. Não que Afro Finger and Gel esteja no mesmo
patamar das obras citadas, não está. Mas, assim como Thought for Food e Jun Ray Song
Chang (e imagino que o Marcus esteja tomado pela mesma inclinação dos proponentes
destes álbuns, qual seja, compilar o que melhor se fez nesta década) trata-se de um objeto
não identificado, estranho e irredutível a suas referências. Alguns álbuns do mesmo ano
são bastante surpreendentes, como o segundo do Prefuse 73, Hail to the Thief do
Radiohead, Black Album do Jay-Z, Rounds, do Four Tet… Mas nenhum desses carrega a
qualidade alienígena como Afro Finger… Quando parece que será mais um tributo
enviesado aos famigerados anos 80, toma o rumo de um Cassiber; quando se espera que,
agora sim, o turbilhão de ritmos digitais nos encaminhará para uma sonoridade próxima
do eletro, as percussões cubanas e o samba (sim, o samba!) tomam de assalto. E assim
vamos, aos trancos e barrancos, tentando decodificá-lo, inseri-lo em algum movimento,
em alguma perspectiva mais ou menos reconhecível que dê alguma segurança ao
crítico… Pobre crítico! Fracasso ante fracasso, ele simplesmente deixa o álbum soar,
como quem, absolutamente tomado por sua irreverência, desiste e se deixa levar por um
caminhão desgovernado, um navio prestes a naufragar…

Fulton, sabemos, abandonou a biologia marinha para se dedicar a produção musical,


tendo colaborado com Jimi Tenor, !!!, e produzido um clássico de Crystal Waters,
“Gypsy Woman (She’s Homeless)”, entre outras façanhas… Mas quem é Mutsumi
Kanamori, sua esposa? Ela é tudo o que Peaches, M.I.A., Marina Vello, Santigold e
outras meninas metidas a bad girl queriam ser. Sua voz não é bela, nem potente, não
conheço sua performance… Mas gravada e manipulada, Kanamori soa como uma
promessa de que não haverá segurança: balbucios, gritos guturais, grunhidos e um amplo
arsenal de obscenidades conduzem o ouvinte a um ambiente plenamente instável e
imprevisível. E a instrumentação, como afirmei acima, não fica atrás: mistura de samba,
salsa, techno, disco, reggae, dub, punk, noise, etc., nas suas mais variadas vertentes,
compondo um painel sonoro áspero, difícil, permeado ao mesmo tempo por um clima de
festa e celebração. Algumas comparações possíveis, ainda que desproporcionais: ouvindo
“Afro Finger” e “Hello Bored Biz Man” lembrei do Van Dyke Parks de Song Cycle,
devido a qualidade radicalmente heterogênea de suas composições e arranjos (o que é
aquela coda meio samba de “Afro Finger”?). E do Captain Beefheart de Trout Mask
Replica, pelo mesmo motivo. Entre o distúrbio sonoro e a “quebra de decoro”, o álbum
lembra também a ironia festeira de Diplo, Santigold e Spank Rock, embora, em termos
propriamente artísticos, esteja anos luz à frente de todos eles. Às vezes recordamos a
urgência de um Atari Teenage Riot… Mas são apenas evocações.
Afro Finger and Gel é um indivíduo impróprio, deslocado. Impróprio para menores, para
o relaxamento antes do sono, para a pista de dança… Devemos inclusive cuidar de nos
prepararmos adequadamente até mesmo para sua audição. Algumas vezes pode parecer
pobre e simplório, quando, já compreendendo o caminho do trabalho, nos deparamos
com demoradas sessões dançantes, como em “Chair Girl” e “Tell You Something”. Mas
mesmo nesses momentos, pode ter certeza de que mil sugestões serão emitidas de forma
a descontextualizar um eventual efeito vagabundo, ou um ritmo básico demais. Essas
sugestões, essas “dicas” que aos poucos o álbum nos fornece em nada alteram a
percepção de que este incômodo foi cuidadosamente previsto. Mais que isso, Afro Finger
and Gel me parece uma conjunção de esforços e aportes musicais muito diversos e
maquiavelicamente articulados em prol de uma sonoridade singular. Afinal, o que esperar
de uma dupla formada por um americano e uma japonesa que moram em Londres e
lançam discos na França? (Bernardo Oliveira)

Moritz von Oswald Trio – Vertical Ascent (2009; Honest Jons, Reino Unido)
A ansiedade é inimiga da análise, do cuidado e da atenção. Somente na vigésima audição
se comeca a entender e a gostar de verdade de Vertical Ascent. De primeira, isto é,
tomado por uma exultante empolgação, esperei o paroxismo de uma vida, mas o
paroxismo não é a senha para Vertical Ascent, muito embora Moritz von Oswald seja o
arquiteto de um dos mais influentes e geniais panoramas sonoros das últimas décadas.
Com seu parceiro Mark Ernestus fundou o selo Basic Channel, de onde saiu uma
verdadeira revolução no mundo techno. Através de singles assinados sob diversos
pseudônimos, o Basic Channel ditou algumas tendências que vigoraram desde então,
algumas mais ligadas ao minimal e ao acid techno, outras aparentadas do dub jamaicano
e do ambient, mas todas extremamente inovadoras no que diz respeito a incorporação de
sons e procedimentos oriundos de pesquisas eletrônicas e eletroacústicas. Quase que
simultaneamente, eles tocavam também o projeto techno Maurizio e, mais tarde,
capitanearam outro trabalho tão inovador quanto o BC, o Rhythm & Sound. Contando
com a participação de toasters e djs jamaicanos, como Paul St. Hilaire e Sugar Minott,
criaram uma sonoridade atmosférica, antecipando algumas inclinações que pouco mais
tarde seriam exploradas pelo dubstep. Depois, a vida e a obra de Oswald tomaram um
rumo estranho. Primeiro, uma parceria inócua com Carl Craig que lhe rendeu opiniões as
mais controversas; depois, um derrame em outubro de 2008, que o obriga a operar e
mixar apenas com uma mão. Vertical Ascent, portanto, justifica uma certa ansiedade,
uma curiosidade irresistível. Tenho certeza que os mais interessados em música nova e
criativa já se perguntavam o que viria pela frente. Anunciado, o álbum demorou para vir
à tona, e durante alguns meses vivi o suspense de ouví-lo. O que nos aguarda, como será
a viagem, a onda? Representará mais uma revolução? O que a mente de Moritz von
Oswald nos proporcionará desta vez?

E a resposta veio sob a forma de um trio de música improvisada, com o produtor e


baterista Sasu Ripatti (AKA Vladislav Delay, que a propósito acaba de lançar o excelente
Tummaa) e um velho parceiro, Mark Loderbauer (nsi. e Chica and the Folder). Segundo
Oswald, os planos do Trio se concentram na gravação de álbuns ao vivo, sendo Vertical
Ascent seu primeiro volume. Coube ao band leader a execução dos teclados, efeitos e a
manipulação da mesa de som, enquanto Ripatti executa instrumentos de percussão e
Loderbauer, sintetizadores e laptop. E mais uma vez, ainda que mais discretamente, o
som é algo difícil de descrever, de analisar, a não ser através de referências mais ou
menos conhecidas, na medida em que não se explica pela abrasividade techno do Basic
Channell, nem pela letargia do Rhythm & Sound. Tal como o Fellini de Amarcord,
Oswald parece sondar os primórdios, a música que o fez aderir de forma contundente a
sua profissão de fé, o experimentalismo. O jazz está presente através do improviso; sob
um ponto de vista formal, Vertical Ascent é um disco de jazz, onde cada um dos
participantes é chamado a intervir nos quatro “patterns” (ironia?) que o compõem. Um
outro aspecto tão importante como fascinante é a construção rítmica dos “patterns”, que
cobre um amplo espectro de possibilidades, desde um techno “arabizado” até o dub
arrastado; mais uma vez a palavra “pattern” soa como uma ironia, devido a quantidade
vertiginosa de alterações que estruturam as faixas. Nota-se também que Ripatti explora
brilhantemente uma série de timbres percussivos, utilizando aço, madeira, percussões
digitais e até mesmo um berimbau. E, last but not least, a utilização do estúdio enquanto
instrumento musical, princípio fundamental do dub, pelo qual o jovem Oswald se
apaixonou em meados da década de 80 e através do qual vem perfazendo seu caminho
musical. Talvez em nenhum outro álbum ou faixa produzida por ele este aspecto se
apresentou com tanto vigor, através de inserções ao vivo e intervenções posteriores sobre
todos os “patterns”.

Vertical Ascent é um disco fabuloso, para ser degustado aos poucos, com calma e
parcimônia. E mesmo assim se torna um desafio para aqueles que desejam expor seu
conteúdo em palavras. Podemos até afirmar que o improviso (o jazz), a exploração de
timbres (a música eletrônica) e a manipulação posterior em estúdio (o dub) constituem as
linhas mestras de sua singularidade. É pouco. Poderíamos dizer que é uma música
“mundial”, que incorpora influências norte-americanas, inglesas, jamaicanas, árabes, etc.
Ainda é muito pouco. De resto, assumo a incapacidade de atribuir rótulos à minúcia de
suas sínteses, texturas e modulações. E advirto, não perca tempo: Mortitz von Oswald
voltou, e voltou por cima, com um dos melhores álbuns do ano. Capaz até mesmo de
desafiar o já-ganhou e a majestade de Merriweather Post Pavilion. (Bernardo Oliveira)

Sufjan Stevens – Illinois (2005; Asthmatic Kitty, EUA)


Projetos inacabados exercem fascínio sobre as pessoas interessadas em arte, constituem
uma espécie de paradoxo fetichista neste mundo devotado à forma e ao acabamento.
Auspiciosos ou não, a fama de tais projetos corre mundo, concorrendo para alimentar
mitos, descrever rotas de colisão e afins, de tal forma que o artista passa a carregar aquilo
ou como fardo ou como tabu. No cinema são inúmeros os exemplo, ainda que seja
possível apreciar alguns resquícios compilados e editados, como por exemplo Dom
Quixote, de Orson Welles e Queen Kelly, de Erich von Stroheim. E o que chama atenção
nos casos citados é a absoluta singularidade com que os autores comunicam sua
genialidade através de um simples detalhe, um plano ou uma mera citação moral que
demonstra grandeza a despeito do fato de não constituir uma obra fechada… O fetiche
reside na ânsia pelo produto final, “acabado”, nascida da certeza de que ele encerra um
ecossistema com significante e significado, começo-meio-e-fim, procedência, etc. Trata-
se, intuo, de uma necessidade contígua às necessidades sociais, tais como estabilidade,
segurança e continuidade. Uma forma um tanto equivocada de se avaliar e refletir sobre
arte, o território justamente do embaralhamento de sentidos, da desordem, do pensamento
singular e irredutível… Enfim, quero chegar na questão que talvez se coloque
categoricamente diante deste álbum, sobretudo em uma primeira audição: sendo Illinois
parte de um projeto inacabado (pelo jeito definitivamente inacabado, para não dizer
natimorto…) caberia definir a música de Sufjan Stevens por ele? E mais: caberia definir o
próprio Illinois sem a sequência de estados norte-americanos dos quais ele faz parte? A
busca aos álbuns anteriores não ajuda: Illinois parece o mais zappeano, o mais
abertamente eclético, abraçando afrobeat, salsa, minimalismo, country, rock, baladas,
vinhetas, num mesmo caldeirão. O problema é que Illinois já é, por si só, um projeto
interno, uma admirável articulação de observações poéticas e musicais que, no entanto, se
fixam na nossa mente através da mais atávica modalidade musical: a canção. E, o mais
intrigante, uma espécie de álbum derradeiro, já que os outros álbuns não vieram, e nem
posso aqui considerar o projeto natalino de 2006 por não conhecer adequadamente.

Essas perguntas e considerações podem parecer despropositadas. Mas a audição do álbum


me leva a perguntar pelas intenções, que talvez respaldassem a extrema variedade de
gêneros, ritmos e tipos de canção que o perpassa. De forma que, apesar de estar inserido
em um projeto, e de ser um álbum aberto a muitas influências, trata-se de uma
experiência que muitas vezes não oferece um eixo que não seja meramente temático.
Muitas vezes o work in progress se reflete no inacabamento de certas idéias musicais, de
uma irregularidade que faz com que algumas faixas espetaculares compartilhem o mesmo
âmbito de faixas medianas. Qual o mistério particular de Illinois enquanto parte de um
projeto inacabado? E observe-se aqui: o inacabado pode ser tanto a incompletude do
roteiro proposto inicialmente, como também uma estética alquebrada e fragmentária, ora
por conta da voracidade criativa de Stevens, ora por conta de sua falta. Pense em Zappa
(“Come On! Feel the Illinoise!), em Beach Boys (“Decatur…”, entre outras), em Simon
& Garfunkel (“John Wayne Gacy, Jr.”), e até mesmo em indie rock (“The Man of
Metropolis…”) e Steve Reich (“Out of Egypt…”), mas pense sobretudo em uma verve
poética singular, antenada com o procedimento mais comum em arte hoje, a colagem e
sobreposição de informações gerais, tanto musicais, como cinematográficas, filosóficas,
políticas, etc. Se o procedimento é comum, o resultado é, como já afirmei, irredutível: a
música de Sufjan Stevens tem sotaque e descreve, de forma crítica e irônica, mas ao
mesmo tempo afetuosa, uma visão sobre o modo de vida da cidade em questão. Lembra
às vezes o David Byrne de “Don’t worry about government” e True Stories, tamanha a
proximidade expressa em versos como “Logan, Grant, and Ronald Reagan…”. E é
justamente a capacidade de criar uma comunhão entre ironia e afeto, através de canções
que literalmente grudam no cérebro, que faz de Illinois um grande disco. Para se escutar
até o fim da vida, sem dúvida. (Bernardo Oliveira)

Konono n°1 – Congotronics (2004, Crammed Discs, Bélgica [Congo])


Se existe algum caso onde a problemática local/global alcança sua expressão máxima,
isto ocorre com o trabalho do Konono N°1. De um ponto de vista pragmático, alguns
artistas e álbuns podem variar entre representar os sintomas de uma época ou a mais
contundente extemporaneidade. Tanto num caso como no outro, podemos identificar a
“vanguarda”, a “inovação”, aquele elemento que faz com que cogitemos a possibilidade
de que algo mais venha a acontecer para além do que já é conhecido e assimilado. Entre
um e outro porém, ocorre uma terceira modalidade perspectiva: quando o artista exprime
não uma corrente, não uma sonoridade, mas define um contexto, um marco que tomará
definitivamente as práticas e valores de toda uma época. Me refiro a capacidade de
articular inovações técnicas e procedimentos artísticos em um todo a partir do qual as
futuras gerações poderão criar outras linguagens etc. O exemplo mais corriqueiro é o do
dub jamaicano, que concerne à criação e proliferação de técnicas de gravação e
reprodução que se espraiaram pelas mais diversas searas da música mundial. Ou ainda o
jazz, isto é, o modo específico com o qual os negros americanos se apropriaram dos
instrumentos das fanfarras militares conferindo-lhes outra utilidade. Haveria então um
ingrediente de superação nestes caso, pois os artistas em questão não exprimiram
contextos nem o superaram, se não que eles sobrevoaram as condições técnicas e
artísticas alterando a percepção musical da região e, no caso do dub e do jazz, do mundo.
Nem local, nem global, portanto, mas uma tensão entre aspectos locais e globais.

É evidente que este é o caso do Konono N°1, embora o alcance de sua pequena revolução
se reduza a Kinshasa, onde proliferam bandas semelhantes. Desenvolvendo um sistema
de amplificação para as kalimbas e microfones feito com peças de carro, e articulando a
sonoridade peculiar que daí resulta às percussões em pele e aço, o Konono N°1 criou uma
das sonoridades mais espantosamente criativas e enérgicas da década. Para alguns críticos
e mesmo no site do selo Crammed podemos ler que se trata de uma sonoridade “electro-
tradicional”, ou ainda uma espécie de “trance music”… É claro que por razões comerciais
e jornalísticas, as pessoas tendem a identificar o desconhecido a partir do que é
conhecido, e geralmente o fazem alocando o desconhecido ou no curral do “primitivo-
tradicional” ou na benevolência eurocêntrica que se flagra surpresa e quase pergunta
“como eles puderam?…” Mas a questão é que, a despeito das sonoridades elétricas que
caracterizam o Konono N°1, eles nada tem a ver nem com Jimi Hendrix, nem com o Can,
nem com trance, nem com “música eletrônica”, muito menos com a preconceituosa
alcunha “proto-techno”… Sua sonoridade é irredutível a estas manifestações européias e
representa uma realidade cultural da qual nada conhecemos, sobre a qual nada podemos
falar – a menos que tenhamos alguém por aí especializado na etnia bazombo… Como eu
não quero aqui vender o grupo, arrisco uma primeira opinião sobre a peculiaridade de seu
som: trata-se de uma expressão musical que, tal como o Kasai All-Stars, condensa uma
série de contribuições musicais advindas de etnias próximas àquele contexto. Se o
resultado se assemelha ao trance, pouco importa, na medida em que este álbum traz uma
sonoridade particular e mil vezes mais interessante que qualquer trabalho trance… E
mesmo levando em consideração a alusão ao transe, me parece mais uma vez que as
coisas desandaram: não se trata de uma música para o transe, mas para a dança. Tanto é
que o grupo incorpora as dançarinas nas apresentações ao vivo… Enfim, repito: ao
contrário do que foi amplamente alardeado pela imprensa, o Konono N°1 é um grupo
irredutível às expressões musicais americanas e européias. Trata-se de outra coisa. E,
mais grave: dentro desta outra “coisa” eles também representam algo além.

Deixando de lado o enfoque exagerado na criatividade técnica desses músicos, tratemos


da matéria sonora. Certa impessoalidade no resultado final advém da forma de captação,
in loco, e a forma de disposição do álbum. O que a matéria fonográfica não permite
entrever, a matéria musical integra: trata-se de um álbum coeso, graças a algumas
características que não sei se podem ser atribuídas ao gênio desses músicos ou se a
cultura que integram. O ritmo, por vezes semelhantes a um afoxé (em “Kule Kule”), em
outras faixas como um kuduro acústico (“Lufuala Ndonga” e “Mama Liza”); o timbre dos
instrumentos de percussão de ferro e das três kalimbas precariamente eletrificadas,
emitindo uma energia ao mesmo tempo rascante e suave; algumas chamadas musicais de
kalimba ou percussão que iniciam e terminam as faixas, que provavelmente funcionam
como marcas para fins de orientação dos músicos; a forma de dispor os versos, que
obedecem aos critérios de pergunta (cantor) e resposta (coro), característicos de muitas
manifestações musicais africanas; a prosódia desses versos, que num certo sentido
recortam o ritmo e resultam em um suingue que se poderia chamar “matador”; e uma
certa afeição a repetições melódicas, que talvez tenha estimulado nos críticos a
comparação com o trance e com a música eletrônica em geral. Com esses elementos,
podemos afirmar com segurança que o Konono N°1 extrai uma sonoridade única,
comparável somente a outras sonoridades contíguas, muitas delas apresentadas na série
Congotronics II. Talvez por isso, por esta ausência total de familiaridade com a tradição
local, aliada ao talento e a energia do grupo, que o Konono N°1 me fascina e, ao que
parece, todo o resto do mundo.

Nem sintoma, nem vanguarda, o Konono N°1 é mais que isso: é expressão singular que
define um campo de ação para os habitantes do Congo e de Angola. Como o dub e o jazz,
o grupo expandiu as possibilidades de uma expressão sonora que possivelmente
permaneceria atrelada aos rótulos etnocêntricos de admiradores e detratores. Tal como
Coxsone Dodd e Lee Perry, que com suas experimentações inusitadas criaram um campo
de ação técnico e estético, Mawangu Mingiedi e sua turma também propiciam aos jovens
de todo mundo um exemplo fundamental: de que a criação do novo emerge da
experimentação contínua e obstinada, por vezes em meio à precariedade, mas sempre
antenada com todos os elementos que constituem a perspectiva do criador. (Bernardo
Oliveira)

Ghédalia Tezartès – Repas froid (2009; [ tanzprocesz ]; Itália [França])


Muitas são as dificuldades e particularidades apresentadas pelo trabalho de Ghédalia
Tazartès, especialmente neste Repas froid. Diante do mistério que envolve seu nome e o
caráter esporádico e desafiador de seus álbuns, somos tentados a falar mais do artista que
do disco em questão, o que não faremos. Mas, visto que muito do aspecto anômalo de sua
obra advém da capacidade de a cada momento reportar as obras anteriores, numa espécie
de autofagia cíclica, cabe notar que Repas froid não é seu álbum mais impressionante,
ficando com o de 1982, Une éclipse totale de soleil, o papel de representar o extremo
criativo deste artista idiossincrático. Nele, ainda que algumas características recorrentes
estejam ainda presentes, como a aproximação com o canto árabe (ou talvez arabo-
andaluso) e a inclusão de vozes cotidianas, Tazartès explora de forma mais ampla a
música eletrônica, criando sonoridades que podem alçá-lo tranquilamente a precursor de
um Autechre, por exemplo. Assim, para tentar compreender o estatuto de Repas froid na
obra de Tazartès, procurei conhecer todos os seus álbuns, o que me levou não somente a
surpresas de ordem estética, como também tive acesso a uma sorte de reflexão que
ultrapassa a própria questão musical em direção ao campo da reflexão sobre arte. Pois, na
minha opinião, Guédalia Tazartès é um “artista plástico”, no sentido contemporâneo do
termo, que se utiliza da música para propor questões próximas da arte.

De Duchamp, por exemplo, percebemos a influência no modo com que ele descodifica
certas formas musicais, como a música árabe e a música concreta, utilizando-as de outra
forma, geralmente irônica ou fake. Ou ainda como sua música tem uma dimensão de
jogo, de gadget, projetando e recortando formas musicais avulsas e sintonizando-as com
contextos absolutamente diferentes dos originais. De Kurt Schwitters percebemos um
desenvolvimento particular da idéia de “obra de arte total”, na medida em que ele
transforma em matéria artística até mesmo as sonoridades que não se identificam com o
discurso musical. O método também ecoa nos modos da música: reza a lenda que, como
um colecionador de objetos, Tazartès produz trechos e os compila em um enorme
arquivo, de onde podem sair excertos diversos, compostos em datas variadas. Muitas
vezes, graças a este procedimento, somos surpreendidos por vozes e sonoridades que já
existiam em álbuns anteriores, mas que retornam como meio de autorremissão, mas
também de descontextualização. Extremamente particular e ousada, a música que emana
deste Repas froid é inseparável deste contexto: tanto é uma experiência sonora que joga
com as noções de “música”, “autoria” e “ineditismo”, como também coloca em
perspectiva o pensamento inaudito deste verdadeiro autor.

A audição, por sua vez, não é simples nem fácil. Requer do ouvinte que ele jogue o jogo
e se deixe inebriar pela sequência de faixas sem título repletas de momentos esculpidos
com delicadeza e espírito. Em Repas froid, discussões familiares são entrecortadas por
fanfarras poliétnicas, barulhos diversos, interlúdios chopinianos, cantos de variadas
procedências e tipos, corais, orquestras, sons eletrônicos, repetições, conversas, bate-
boca, balbucios, coisas quebrando, cenas cotidianas, minutos de silêncio… Sem dúvida
são elementos variadíssimos, mas posso estar passando a falsa impressão de que se trata
de uma balbúrdia… Ocorre porém que algumas audições vão dando contorno a uma
concepção muito bem delineada. Sim, trata-se de uma bricolage, mas, ao contrário da
gratuidade que percorre muitas bricolages contemporâneas, as criadas por Tazartès são
preenchidas por altas carga de expressão poética e dramática, tanto no que diz respeito ao
seu poder de maravilhar, como também na capacidade de criar nexos surpreendentes e
reportar a questões de ordem reflexiva. E começo até a me contradizer, tamanha a
confusão que Repas froid causa: não sei se ele intriga mais que leva a reflexão, ou vice-
versa.

Embaralhamento de sentido, poder de transfiguração, carga reflexiva. Se estas


características definem o álbum e, em certa medida, todo o esforço de Tazartès, isso fica
claro assim que passsamos a ouvi-lo. Pois o sabor de Repas Froid não se manifesta
enquanto não encaramos a estrada árdua que leva ao cerne da dimensão filosófica de seu
trabalho, a saber: que a música nada mais é do que aquilo que elegemos como parte
integrante do discurso musical, e mesmo a vida pode ser música conquanto está em nosso
poder exprimir uma perspectiva; que o discurso musical é apenas um enfoque
determinado por condições morais que se refletem diretamente na fruição e que a
expressão humana contém potencialmente todas as formas da arte; e que, por fim, a
imaginação de um artista não carece necessariamente de diálogo com a arte, mas
sobretudo com o “fora” da arte, com o movimento propriamente dito da vida. A música
de Tazartès é um fervoroso louvor a este “fora”, ao movimento das coisas, e Repas froid
exprime de forma admirável este pensamento. (Bernardo Oliveira)

PS.: Será este garoto que fala no disco é o mesmo que fala em Une éclipse totale de
soleil? Será que é o jovem Tazartès em gravação de arquivos?

Harappian Night Recordings – The Glorious Gongs of Hainuwele (2009; Bo’


Weavil, EUA)
Entre as possíveis reações à primeira audição deste álbum do Harappian Night
Recordings, consta certamente em primeiríssimo lugar a opinião de que se trata de uma
compilação de field-recordings de música oriental e africana. Um passo à frente e pode-se
aventar a hipótese de que se trata de uma série de reconstituições e apropriações sonoras
da mal chamada “música étnica”, num trabalho de verdadeira ourivesaria musical. Este é,
inclusive, o enfoque dos poucos sites e publicações que se dignaram a escrever sobre este
lançamento tão misterioso quanto obscuro. Mas eu, sinceramente, tenho algumas
suspeitas a respeito desse álbum. Não que duvide de sua força de expressão, muito pelo
contrário. Mas, em primeiro lugar, não creio que as aspirações de Dr. Sayed Kamram Ali
se encerrem na emulação e no comentário. Penso que não se trata somente de um
pesquisador convencido das potencialidades da música africana e oriental; ou de um
dedicado diletante, apaixonado não só pela música, mas também pelas sonoridades
específicas originadas pelas más condições de gravação e reprodução que envolvem esses
registros, pelas estáticas e ruídos que permeiam seus exemplares velhos e raros. No
MySpace, uma pista: além de músicos como Violeta Parra, consta entre as influências do
trabalho o poeta Pir Sultan Abdal, o dramaturgo Fernando Arrabal, o filósofo Pierre
Proudhon, a cineasta Maya Deren, entre outros. Entre eles, o mais sintomático enquanto
referência: Borges. Uma chave de interpretação um pouco mais complexa emerge após
esta listagem heterogênea. Ou bem Dr. Sayed converte seus múltiplos interesses em
música, perfilando peças representativas de contextos culturais diversos, o que
comprometeria o resultado e resultaria em culto naïve e deslumbre. Ou se compreende a
empreitada como parte de um processo eminentemente borgiano de refazimento e
reconstrução ipsis litteri de trechos musicais, escolhidas ao sabor da pesquisa e da
intuição musical do autor.

Penso, entretanto, que um um passo além destes é possível. Porque, no fim das contas,
familiarizado com o álbum, percebo que essas impressões iniciais estão equivocadas. Não
se trata de uma compilação de registros, nem de mera reprodução do gosto e dos
interesses do autor, muito menos de uma peça de arte com pretensões reflexivas. The
Glorious Gongs Of Hainuwele contém uma série de faixas que se utilizam, dentre outras
coisas, de timbres e ritmos africanos e orientais, emoldurados por técnicas de gravação
que interferem decisivamente no produto final. Em suma, para acessar o conteúdo
criativo do álbum convém ultrapassar o preconceito “auditivo” (posto que se trata de um
preconceito da percepção) que se confunde com duas ideias. Primeiro, confinar os
timbres e ritmos deste universo musical das gravações de música oriental e africana no
registro da “música étnica” ou da compilação acadêmica. E também que a utilização de
técnicas de gravação antiga denotam capricho, e não o interesse na exploração de outras
sonoridades. Ultrapassadas essas ideias é possível perceber que o intuito do Harappian
Night Recordings é produzir, não uma ilusão multicultural, mas sobretudo uma
sonoridade supra-étnica, absolutamente pagã e essencialmente ocidental.

Supra-étnica porque não mede esforços em mesclar sonoridades diversas e tecer as


combinações mais ousadas, como os sons metálicos de “Taqsim”, as flautas tremulantes
da faixa-título, o drone repleto de harmônicos de “Red Eyes, Noose And Goad”, os
sopros estridentes do mizmar árabe de “Bate Cairo”, e na voz ditorcida “The Sarimanok
Flies”. Pagã porque híbrida, mas também dançante e, muitas vezes sombria, como na
batucada hipnótica de “Headless mule”. E essencialmente ocidental porque percebe-se na
pegada dos instrumentos uma rusticidade muito aquém da que conferimos, por exemplo,
ouvindo o gamelão javanês ou a voz rouca de Clementina de Jesus – em oposição à
assepsia dócil e exagerada das chamadas “sambistas contemporâneas”… Mas também
pelo punk rock de “The Ire Of Konda Mangali”, que destila o suingue anglo-saxão, a
duração das faixas, inscrita nos padrões da indústria fonográfica ocidental, as linhas
melódicas, etc, elementos que denunciam a óbvia manipulação encetada por Dr. Sayed.
Mas em favor do que? Eu penso que faixas como a já citada “Bate Cairo”, “Headless
mule” e “Siyah Hashye” demonstram arrojo impecável na concepção, de forma que a
emulação se torna uma parte componente de algo maior e mais complexo. Por que não
lançar mão destas sonoridades, explorando-as de forma criativa?, parece ter se
perguntado Dr. Sayed antes de gravar o álbum. Pergunta evidente, mas restrita a um
conjunto de curiosos e experts. Ah, sim, considerando que o Tazartès não seja o precursor
desta modalidade, com seu canto árabe e árabo-andaluso fake, hipótese que eu concordo
definitivamente - papo pra uma outra ocasião. Por ora, fiquemos com a surpresa soturna
e rascante de The Glorious Gongs Of Hainuwele e o reputemos como um dos projetos
mais originais do ano. (Bernardo Oliveira)

Björk – Medúlla (2004; One Little Indian/Elektra, Reino Unido/EUA)


A partir de Homogenic, a imprensa passou a inferir conceitos fechados dos trabalhos de
Björk, ganchos que no fim das contas mais indicavam experiências localizadas do que
resumiam a estrutura do álbum. No caso de Homogenic, ressaltaram-se os aspectos
tecnológicos dos timbres e dos clipes, reforçados pela imagem nipo-robótica da capa. Em
Medúllla, disseram estes mesmos críticos – sob os auspícios da própria cantora – que
tratava-se de um estudo acerca da voz humana, o que por si só já seria fascinante!
Imaginem: a dona da voz mais singular da música da virada do século, experimentadora
de primeira cepa, rende homenagem à voz humana sob uma dupla perspectiva, uma
gutural e primitivista, outra reprocessada por equipamentos eletro-eletrônicos. Neste
sentido, ela já havia realizado um excelente trabalho em Vespertine, mas é de se supor
que a pujança do “órgão” de vozes de “The Pleasure is All Mine”, mas também a
celebridade do casting, que incluía desde Robert Wyatt a Mike Patton, tenham
contribuído para reforçar o foco na exuberância do trabalho com vozes em Medúlla. Uma
pá de audições para além da pressa irracional dos noticiários revelam que o conceito
deste álbum extrapola tais limites. Em direção a que caminho exatamente?

Se me pedissem para eleger um marco na carreira de Björk, eu citaria Medúlla por uma
razão não tão simples, mas facilmente detectável. É a virada de uma carreira pop-avant-
garde já brilhante, mas ainda atrelada a certas fórmulas de mercado (“Army of me” como
exemplo…), para uma musicalidade essencialmente dramática, tingida por nuances e
conceitos retirados de fontes mais complexas e, portanto, mais difíceis. Sim, a partir de
Medúlla o trabalho de Björk se tornou mais difícil, e aqueles que já não toleravam seus
modos bizarros, passaram do ódio ao desprezo, devido sobretudo a ausência de um single
forte o suficiente para invadir suas casas a fórceps. Ou “Where is the Line” (com Mike
Patton e Rahzel) e “Oceania” (com Nico Muhly e Robert Wyatt) são lá faixas do porte
das que invadiram a MTV nos tempos em que gostar da Björk era meio de inserção
social? Medúlla não tem single com cara de single. É música desobrigada de seguir os
limites da audibilidade média, é o que atesta a pluralidade de ritmos e timbres, a
quantidade absurda de climas que perpassam todo o álbum.

Até hoje, anos depois, me sinto tocado por esta introdução acachapante, lírica e
fantasmagórica, que é “The Pleasure is All Mine”; pelos golpes surdos do beat box de
Rahzel, pelo coro mal-assombrado e pela beleza da melodia irregular em “Where is the
line”; pela riqueza apolínea de “Submarine”, com a preponderânca do timbre
inconfundível de Wyatt; pela melancolia desesperada de “Desired Constellations”, pelas
síncopes rítmicas de “Who is It?”, pela limpidez da voz de Björk, pela beleza pura e
selvagem de “Ancestors” e pelo excesso de cuidado e apuro com que todas essas faixas
foram elaboradas. Apuro, que junto a imprevisibilidade dos timbres, faz de Medúlla um
álbum impressionante, um legítimo OVNI, como nos referimos recentemente a outras
duas magníficas aberrações da década, Asa-Chang e The Books. (Bernardo Oliveira)

Allen Toussaint – The Bright Mississipi (2009; Nonesuch, EUA)


Por quê filmar Os Sermões do Padre Antônio Vieira? O cineasta Júlio Bressane
respondeu de forma lacônica a respeito de um assunto sobre o qual muito poderia falar.
Ele disse algo do tipo: “Filmei o Vieira por ‘razões de câmera’, para vê-lo recitar seus
sermões…”. Caso a memória tenha me traído agora, garanto ao leitor que a expressão
“razões de câmera” procede e se refere diretamente a este desejo tipicamente perceptível
em artistas de encenar a realidade passada ou futura, viabilizando uma necessidade
atávica de controlar o tempo. Em música, esse desejo se exprime não somente a partir do
discurso tonal (ou atonal, na medida em que tudo é “discurso”), mas através dos timbres,
das ambiências e, muitas vezes, das condições técnicas (chiados, suportes, etc). Exemplos
mais ordinários desse procedimento podem ser encontrados na cultura do sampler,
sobretudo no hip hop, mas de uma forma que poderíamos denominar “cubista” graças a
articulação entre a música propriamente dita e seu meio de reprodução (isso fica claro no
aspecto avant-retro de Madlib, Sa-Ra, etc.). A história do disco demarca essa percepção,
na medida em que não temos acesso imediato às experiências que permitem um
deslocamento no tempo, ao menos no que diz respeito às sensações propriamente ditas. E
toda mixagem, no fim das contas, é uma tentativa de retirar a música do tempo e do
espaço, retirá-la do turbilhão descontrolado das ondas sonoras e salvaguardá-la, da
duração fugaz para a segurança da gravação. Até então eu não havia escutado exemplo
tão contundente de como o timbre possui a capacidade de esgarçar o tempo, em sentido
diverso ao do sampler. Refiro-me a este maravilhoso álbum de Allen Toussaint, The
Bright Mississipi, o primeiro em mais de uma década e que é dedicado basicamente à
interpretação de temas compostos por grandes músicos ou oriundos de New Orleans ou
“gramaticalmente” identificados a sua música. Gente como Jelly Roll Morton,
Thelonious Monk, Duke Ellington e Billy Strayhorn. E o resultado é soberbo.

O que leva um artista identificado com o soul a gravar um álbum como este? The Bright
Mississipi pode ser encarado por muitos como um retorno ao passado, um retrô
executado com a melhor das intenções e até mesmo uma reflexão acerca desta nova New
Orleans que aos poucos emerge do caos. Uma homenagem, diriam. Mas da mesma forma
como os batuques são aprimorados pela qualidade de gravação em Candombless, de
Carlinhos Brown, poderíamos afirmar que o esforço de Toussaint e sua banda aqui não é
o de ressucitar o cadáver do jazz de New Orleans, mas de traduzí-lo para a gama de
timbres absolutamente renovados dos dias atuais. O jazz arrastado das brass bands e do
Mardi Gras mantém-se caracterizados tanto na execução como nas composições, mas o
apuro da gravação revela estalos e dinâmicas que a má qualidade das velhas gravações de
King Oliver e Louis Armstrong não nos permitia acessar. Algo aqui é como que
reavivado e, por estranha consequência, sublimado, seja por obra do talento de
interpretação, seja pelas qualidades evocativas que frisei a pouco. O disco abre com a
sensual e hipnótica “Egyptian Fantasy”, composição do músico nativo Sidney Bechet (em
parceria com John Reid), e fecha com o clássico “Solitude” (de Duke Ellington, Irving
Mills e Eddie DeLange), cobrindo não exatamente uma época, mas uma certa
musicalidade que não encontra espaço nos dias de hoje, justamente por suas
características centrais. O Jazz de New Orleans é extremamente arrastado e dialoga o
tempo inteiro com o blues na medida em que explora os tempos de uma forma bastante
diferente do bebop, por sua vez mais agressivo e veloz. Sem contar que depreende ora
profunda melancolia, ora uma lascívia perene, ao contrário do jazz de New York, agitado
e cortante. Neste sentido, os músicos aqui presentes conseguiram se desvencilhar da
inescapável pegada do bebop e criar uma atmosfera musical ao mesmo tempo evocativa e
promissora (nota para o som da bateria, dos sopros, e, particularmente, para o violão sem
mistérios, mas bastante emotivo, de Ribot; e, claro, para o piano derramado do próprio
Toussaint).

Sim, promissor, embora seria exagerada a afirmação de que The Bright Mississipi
demonstra a vitalidade do jazz de New Orleans. Corresponderia a tomar de empréstimo
sua própria vitalidade e injetar no gênero sem maiores cuidados. Mas há
reconhecidamente uma diferença no jazz e, em geral, na música de Nova Orleans fundada
em suas matrizes culturais. Diferença esta que habita o Mardi Gras, o cajun, o zydeco e
até mesmo o soul-funk de grupos como Neville Brothers, The Wild Tchoupitoulas e The
Wild Magnolias e que é contígua ao jazz, a despeito de modismos que o fizeram
praticamente desaparecer, pelo menos do cenário ativo do gênero (não me refiro às
fanfarras e bandas dixieland locais, geralmente com valor meramente turístico). Mas eis
que The Bright Mississipi traz esta diferença à tona, apresentando uma sonoridade ao
mesmo tempo histórica e atual, autêntica e atualizada e, sobretudo, potente. (Bernardo
Oliveira)

Oumou Sangaré – Seya (2009; World Circuit, Reino Unido [Mali])


Até bem pouco tempo, bastava o músico africano migrar para a Europa e adquirir um
tanto de sucesso para abrir mão da sonoridade nativa. Nas décadas de 60 e 70 esse
fenômeno se inclinava mais para o crossover, gerando nomes como Geraldo Pino e Fela
Kuti e gêneros musicais como o highlife. Mas durante a década de 80 e 90 a coisa
desandou com a massiva utilização dos sintetizadores digitais e drum machines que
praticamente nasciam para a música popular. Utilizados da pior forma possível por
artistas que variam de David Bowie a Djavan, os sintetizadores serviram a uma gama de
músicos africanos como meio de tornar sua sonoridade mais palatável para o europeu.
Nem preciso notar que na década presente este panorama não só mudou, como foi
potencializado por um fenômeno em curso: a reboque da popularização do P2P houve o
consequente enriquecimento do gosto e o alargamento do espectro de adesão musical do
público das grandes cidades. Isto ocasionou a aceitação da beleza imperfeita dos cantos
semi-tonados, da percussão pesada e colorida, das harmonizações caóticas, dentre outras
características da música africana (e isto de um modo geral, tanto a leste como a oeste).
Assim, nomes como Konono n. 1, Group Doueh e Omar Souleyman, que pouco ou nada
possuem em relação a música do ocidente, se projetaram e adquiriram status de grandes
artistas sem abrir mão de sua sonoridade. Neste contexto, a cantora, compositora e
instrumentista Oumou Sangaré se afigura como uma artista especial. De saída, posso
dizer que é uma das cantoras que mais me encantam na atualidade pelo modo incisivo e
multifacetado com que utiliza sua voz. Mas o que impressiona e é digno de nota acima de
tudo remete a sua concepção musical. Sangaré surgiu na década de 90 fazendo uma
música radicalmente calcada nas sonoridades malinesas, na contramão das adaptações
adocicadas de Franco, King Sunny Adé, entre outros. Por ironia, seu primeiro álbum
vendeu 200 mil cópias na África, tornando-se um sucesso sem precedentes, justamente
pelo aspecto musical simultaneamente rústico e sofisticado impresso pela cantora.

Seya é uma surpresa justamente porque em pleno fim de década, Sangaré aposta de forma
incisiva no crossover, criando faixas onde a percussão, preponderante nos álbuns
anteriores, passa a dividir o espaço com teclados, bateria, baixo e todos os elementos
comuns a instrumentação pop/rock européia e americana. O que resulta daí é, ao mesmo
tempo, tão rico em detalhes e tão bem executado que dificilmente se poderá argumentar
que Sangaré se “adaptou”, pelo contrário. Seya apresenta uma concepção musical que
sintetiza com personalidade as características da música tradicional de sua terra natal,
Wassoulou, com o afrobeat e o soul, se valendo de forma eficaz e inspirada da
instrumentação e dos arranjos. Flautas, teclados e guitarras se misturam a kalimbas e
karignans formando um todo coerente, sem que se amenizem os compassos compostos,
semelhantes ao do jongo carioca, e a aspereza das vozes. Algumas vezes observa-se
batidas funky, como na faixa de abertura “Soun Soumba”, que conta com Will Calhoun,
mas ainda assim insinuam-se as modulações características das síncopes malinesas. As
canções também apresentam um aspecto miscigenado, ora lembrando bastante a forma de
chamada-e-resposta da música de Wassoulou, ora adquirindo nuances de soul music,
como na terceira faixa, a climática “Kounadya”. No magistral afrobeat “Wele Wele
Wintou” percebe-se bem a habilidade sintética do trabalho de Oumou, haja visto grupos
recentes que tentaram emular sem sucesso a batida inigualável criada por Tony Allen,
que a propósito toca no álbum. E será assim até o final: na atípica guitarra distorcida de
“Senkele te Sira”, nos efeitos e nas percussões de “Djigui”, no suingue sincopado da
faixa título, nas orquestrações fake de “Iyo Djeli”, etc.

Sangaré é, assim como Toumani Diabaté e Amadou et Mariam, representante “oficial”,


por assim dizer, da música de Mali. Mas é curioso que o boom malinês, que talvez tenha
se iniciado com Mali Music, a colaboração beneficente entre Damon Albarn e músicos do
calibre de Diabaté, é revestido de um cuidado para com certas sonoridades, certas
inflexões comuns da música malinesa, sem que isso se dê como um exercício purista de
preservação cultural ou algo que o valha. Cabe ressaltar a vivacidade desta música por
conta justamente das peculiaridades musicais da pequena cidade de Wassoulou que se
mantém altivas e poderosas mesmo sob a influência do público europeu. Resta porém
comentar a beleza da voz de Sangaré, que resplandece por sobre a música que ela mesma
compõe, arranja e produz (juntamente com Cheick Tidiane Seck e o produtor do
Orchestra Baobab, Nick Gold). A respeito dela, noto duas características: a economia nos
floreios e gorjeios de modo a não artificializar demais a interpretação; a inteligência de se
cantar e compor com voz e cabeça próprias, e não com a intenção de agradar um público
mal acostumado. Fica, portanto, não somente um excelente disco para se ouvir a qualquer
hora, como também uma boa dica para essa enxurrada pretensiosa e sem sal de “cantoras
ecléticas” que assola nosso Brasil brasileiro. (Bernardo Oliveira)

Liars – They Were Wrong, So We Drowned (2004; Mute, EUA)


“Ship arriving too late to save a drowning witch”. Com este título irônico acompanhado
de uma capa brilhante, Frank Zappa fez um de seus albuns mais chatos. A alusão é
gratuita: à exceção deste título, os Liars não tem muito a ver com Frank Zappa, sobretudo
neste álbum que é um de seus melhores (na minha opinião, junto a Drum’s not dead).
Eles até se servem de um legado dos anos setenta, mas atrelado ao punk, ao no wave, à
música eletrônica e ao shoegaze, e se apropriam desse legado de forma extremamente
culta em fórmulas e faixas admiráveis. Às vezes lembram o rock cerebral do Sonic
Youth, mas é justamente neste sorriso lateral e indisfarçável que caracteriza boa parte do
trabalho de Zappa que eles não só justificam sua própria importância, como também
afirmam a extrema relevência do seu trabalho para o que podemos chamar de rock dos
anos 00’s – este rock pentelho e malfadado, que comprometeu definitivamente o gênero e
o tornou algo obsoleto, sobretudo pela utilização maciça e sem graça de certos timbres de
guitarra. Às antípodas dessa corrente, They were wrong… demonstra esmero na
composição e nos arranjos, geralmente perpassados por uma combinação improvável de
irreverência e experimentalismo que não é pra qualquer um. As guitarras distorcidas são
empregadas em texturas e combinações improváveis, mixadas acima do instrumental ou
reutilizadas como um “para-riff”, isto é, um riff de guitarra manipulado de forma a soar
como um teclado abrasivo no estilo Suicide (para que esta expressão não soe gratuita
demais, confira a faixa “There’s Always Room on the Broom”…). As composições são
complexas, possuem várias aberturas, pausas, sequências livres; os timbres são
estranhamente reprocessados, ora uma bateria extremamente aguda corta o espaço sonoro
(como na melhor faixa do disco, “Broken Witch”), ora uma série de gritos entoam um
refrão tenebroso como em “We Fenced Other Gardens With The Bones Of Our Own”…
O “tema” do álbum são os filmes de terror, ou pelo menos os elementos mais comuns a
estes filmes (o urso, a garota). Mas, antes, me parece que tudo em They were wrong…
gira em torno de um diálogo interno com o próprio rock’n'roll e as limitações que aos
poucos o conduz para um beco sem saída. E embora eu tenha a certeza de que não
existem respostas gerais para crises específicas, não há como não identificar no Liars e
nos seus ótimos quatro álbuns um gesto de renovação. Certamente um grande trabalho de
um dos grandes grupos da década. (Bernardo Oliveira)
The Avalanches – Since I Left You (2000; Modular, Austrália)
Tomemos a capa de Since I Left You: variadas são as possibilidade de interpretação.
Primeiro, as intensas camadas de tinta azul intrigam graças ao extremo descompasso que
mantém com a sonoridade pop-festeira do grupo. Podemos também aventar a hipótese
juvenil de que eles desejam expressar a solidariedade entre seus integrantes – que “estão
no mesmo barco”. Ou que representam o momento em que deixam algo para trás,
fazendo alusão direta ao título. Uma outra hipótese, me perdoem o delírio, é a idéia de
que ao representarem uma cena turbulenta de navegação envolvendo dois barcos estejam
se referindo às trocas culturais entre povos de variadas orientações e estilos, que bem
viria a calhar para uma obra tão imbricada na dinâmica plurirefrencial que dá sentido à
produção cultural contemporânea.

Hipóteses que surgem diante da capa, mas em franca conexão com o conteúdo da obra.
Since I Left You é um álbum conceitual que tem por premissa uma adesão radical a
cultura do copy and paste e que, por isso mesmo, opera sobre milhares de trechos
colhidos de milhares de álbuns. Geralmente o grupo é reconhecido por esta façanha,
como se a mera alusão ao procedimento esgotasse imediatamente as possibilidades de se
pensar outra coisa para além da façanha. Ciente do conteúdo do álbum e do contexto em
que nasceu, evito me referir aos procedimentos e privilegio os resultados: Since I Left
You encerra, sobretudo, uma sonoridade vibrante, efusiva e extremamente bem-
humorada. Talvez o melhor e mais convincente álbum de festa desta década. Resta saber
como eles atingem esse grau de relevância num contexto em que a evanescência é não só
comum como também vital.

É que a quantidade de recortes e sobreposições contidas no álbum, além de circunscrever


uma gama de interesses musicais específicos (o hip hop, o funk, o soul), compreende ao
mesmo tempo uma série de manifestações incompreensíveis, mas sem dúvida presentes.
Seja uma voz, um instrumento, um acorde, não importa: a todo momento ouvimos
alguma referência extra-black music que nos retira do ciclo comum ao segmento e nos
conduz para algo além, seja o estranho piano de “Tonight”, seja as camadas de
instrumentos de cordas, percussões sinfônicas e toda sorte de sonoridades condensadas
para desconcertar o ouvinte. Aliás, é exatamente esta a característica central de Since I
Left You: sua genialidade não reside no procedimento (um disco como Fear of a Black
Planet não possui 3500 samplers, mas dá ao ouvinte esta sensação); pelo contrário, o que
o caracateriza é a originalidade desconcertante com que os Avalanches combinam esse
samplers, procurando sempre desenraizar o ouvinte de sua condição passiva e procurando
estabelecer com ele uma conexão de ordem arqueológica.

Cabe ressaltar que, como nos mash ups, o que conta é a síntese, o terceiro elemento que
surge da combinação, mas nesse caso há também o elemento que desloca a percepção do
ouvinte, que o retira do jogo bem-humorado da surpresa e o conduz para o lado inseguro
do desconhecido. E aí que o disco se torna realmente genial: Since I Left You é
simultaneamente música de festa, música para arrebatar e também música para pensar.
Qual o grande álbum dos anos 2000 que possui essas três características? Eu não me
lembro… (Bernardo Oliveira)

Shackleton – Three EPs (2009; Perlon, Alemanha [Reino Unido])


Por que Shackleton é tão adorado pela Camarilha? E não somente por nós, mas por todos
aqueles que se interessam por música essencialmente aventureira e criativa, quaisquer
sejam suas orientações, gêneros ou estilos? Por que Shackleton intriga, arrebata e se torna
motivo de júbilo a cada remix, a cada single? Se este é o momento adequado para estas
perguntas? Certamente, pois seu primeiro álbum solo acaba de sair. Há controvérsias
entretanto: trata-se de um álbum triplo de vinil que somente agora foi editado em um só
cd. Confuso. Mas eu proponho que esqueçamos essas dificuldades. O sanguinário Reign
in Blood, álbum antológico do Slayer, com seus vinte e poucos minutos, nunca foi
questionado enquanto álbum. Com uma hora de duração, Three EPs também não há de
sê-lo: é sim o primeiro álbum solo de Sam Shackleton. Não se sabe se a iconoclastia do
autor se reflete também na relativização do formato-álbum, a que se referiu nosso
companheiro Thiago Filardi no seu post de fim de ano. Enfim, este não é o aspecto mais
importante de Three EPs, embora desperte alguma curiosidade (por exemplo, ao
tomarmos conhecimento de que os lados B, C e F foram impressos em 33 1/3 RPM, ao
passo que A, D e E estão em 45 RPM). Retomo então a pergunta: de onde vem essa
originalidade que conquista sobretudo aqueles que se interessam por música nova e
criativa?

Observando as resenhas relativas ao disco, seja em sites comerciais como a Boomkat ou


em diários musicais como a Dusted, percebemos, a despeito da boa qualidade dos textos,
que todos se debatem entre rótulos e categorias que variam da retomada dos elementos
primordiais do pós-punk (o reggae, o dub) até o caráter soturno do dubstep e do minimal.
Mas são apenas aproximações que não dão conta do trabalho de Shackleton. Tentam em
vão cercá-lo de referências históricas locais como que para decodificá-lo e, assim,
explicá-lo. Mas ele desenvolveu uma gramática própria, tributária sim de um contexto de
reavaliação de sonoridades constitutivas do pós-punk, como quer o ótimo texto de Ben
Donnelly presente na Dusted. Mas de forma alguma é possível identificar Shackleton
com o dubstep, ainda que este seja o gênero mais interessante surgido nesta década.
Então, a primeira constatação: Shackleton é Shackleton e nada se parece com Shackleton.
Característica suficientemente imponente para que situemos o seu trabalho como um dos
mais contundentes e desafiadores da atualidade, mas que ainda não basta para justificar
essa diferença ao nível do discurso.

Three EPs tem tudo o que esperávamos de um álbum de Shackleton. As melodias e


ritmos inspirados na música árabe e hindu. A obtenção de timbres robustos e, sobretudo,
a manipulação prodigiosa dos graves. O reprocessamento harmônico das vozes e sua
utilização como instrumento musical. O entrelaçamento inspirado de diversas camadas
sonoras que resultam em texturas sombrias, mas ao mesmo tempo solares. A pulsação
constante e a surpresa como estratégia.[1] Não há nenhum elemento acima que não seja
elegantemente partilhado pelas nove faixas presentes em Three EPs. E no entanto, a
surpresa! Escuta-se muita coisa neste disco que de fato remete aos trabalhos anteriores,
mas é uma outra pegada, um outro gosto pela variação e, novamente, pela surpresa. Ela
ocorre de forma um pouco mais abrupta do que nas passagens contínuas de suas
primeiras coletâneas, é verdade; mas não se quer dizer que sejam menos minuciosas e
admiráveis, pelo contrário. Como não ficar absolutamente tomado pela sobreposição
rítmica e as variações de “Moon Over Joseph’s Burial”? Ou pelos “AIAIAIAI” das vozes
sintetizadas que irrompem juntamente com os tambores infernais em “Let Go”; ou ainda
com a inacreditável “Asha in the Tabernacle”, com sua batucada de pratos e tambores
eletrônicos e seu coro “gospel” (malinês? árabe?). E a trança de vozes, pratos, guizos e
estalos que se ouve na genial “Trembling Leaf”? E os acordes satânicos na introdução de
“Something Has Got to Give”? É simplesmente estarrecedor e põe Three EPs no topo das
listas de fim de ano.

Impossível negar que o ar de Berlim e o convívio com Villalobos trouxe mais


radicalidade formal à música de Shackleton e isso se demonstra à moda de uma escalada
em Three EPs. Ao contrário de Goldie, na minha opinião um dos gênios da música
eletrônica da década de noventa, preguiçosamente perdido dentro de sua própria
megalomania, Shackleton parece ainda ter muita lenha pra queimar. O que faz dele o
nome mais querido pela Camarilha na atualidade? Não posso responder por meus
companheiros, mas arrisco uma hipótese: até o presente momento ele inovou dentro de
seu próprio contexto, a partir de suas próprias concepções. Esta é ou não é a característica
de um grande artista? Esta é ou não é a grande característica do trabalho de Sam
Shackleton? (Bernardo Oliveira)

Nota:

[1] Para que esta frase não se perca na aparência de um “poetismo” sem sentido, explico:
trata-se de uma capacidade de conduzir o ouvinte por um caminho e, sem alterá-lo
radicalmente, introduzir novos elementos de modo a alterar consideravelmente o tal
caminho. Sugiro a audição de “Stalker” e “Hamas Rules” como exemplos dessa
dinâmica.

Lightning Bolt – Earthly Delights (2009; Load, EUA)


Já se tornou quase uma lamúria a percepção de que definham os gêneros, verdadeiros
pontos de apoio que forneciam segurança e identidade a certos grupos sonoros. Grandes
expressões musicais da atualidade não se pautam no rigor do “gênero”, mas sobretudo em
sínteses e combinações as mais diversas, ao passo que raramente grandes talentos se
manifestam dentro dos currais dos segmentos. A dupla americana Lightning Bolt é um
bom exemplo desta tendência. Sua música pode ser identificada como uma mistura de
gêneros supostamente bem delimitados como o speed e o thrash metal, o hardcore, o
noise e o free-jazz, com clara preponderência do thrash, no que diz respeito à sonoridade
e do free jazz em virtude dos aspectos formais. De fato, o que ouvimos em seus álbuns se
compara a experiência de ser atropelado por um trem bala, sem que isso, no entanto,
prejudique a inteligência e a sutileza com que o grupo constrói as faixas. A estrutura das
composições, relativamente comum a todo o álbum, se assemelha a mesma que
desenvolve William Parker em Double sunrise over Neptune, álbum de 2008: uma só
linha melódica executada pelo contrabaixo norteia toda a gama de instrumentos a sua
volta e os convida a costurar desenhos melódicos. Em Earthly Delights o procedimento é
muito semelhante, mas o elemento central são riffs e dinâmicas instrumentais executadas
por apenas dois instrumentistas: um baterista, Brian Chippendale e um baixista, Brian
Gibson, fato que ainda motiva muitas surpresas neste que vos fala, tamanha a profusão de
sons e a pancadaria destilada por tão poucos integrantes. Mas apesar do excesso de
energia, a música da dupla revela detalhes e minúcias tão interessantes quanto o apelo
sônico. Me refiro, por exemplo, ao modo como a bateria de Chippendale insere semifusas
desbragadas na velocidade do speed metal; a peculiaridade dos vocais diáfanos; ou como
a diversidade que constitui a massa sonora cria uma atmosfera de caos, mas ao mesmo
tempo exprime uma lógica própria, particularmente crítica em relação aos gêneros que
incorpora. Sobre este último aspecto é nítida a simpatia que a dupla nutre pelo metal, de
como eles reutilizam certos clichês para atingir sua própria estética. Não é à toa que
Earthly Delights ostenta um desenho muito peculiar em sua capa: a profusão de cores
pode nos incentivar a considerá-lo fofo, mas eu acho que o que salta aos olhos ali não é a
definição das formas, mas o caráter pulsante das cores. Essa me parece a característica
mais adequada para definir o som do Lightning Bolt: barulhento, colorido, desorientador
e pulsante. Basta ouvir o trio de faixas iniciais, sobretudo “Nation of Boar” com seu riff
repetido à exaustão, para conferir tais características. Muito embora valha notar uma
novidade em Earthly Delights: a incursão do grupo em um som mais abstrato, estilo
Black Dice, em “Flooded Chamber”, constitui um momento sui generis do disco, algo
que faz lembrar seu primeiro álbum datado de 1999.
Fuck Buttons – Tarot Sport (2009; ATP, Reino Unido)
Tarot Sport não é aquele tipo de “segundo álbum” em que percebemos a evolução de um
grupo que adquiriu a fama de promissor. Antes parece a consolidação de um trabalho que
já nasceu maduro, construído sobre uma lógica própria e quase autônoma. Digo isso por
conta da estrutura de composição com a qual a dupla trabalha, que pode até lembrar Neu,
Black Dice, shoegaze e tantos outros grupos e gêneros, mas são apenas referências que
não dão conta da originalidade do Fuck Buttons. Tanto em Street Horrrsing como neste
Tarot Sport a música da dupla se caracteriza pela coexistência de camadas harmônicas e
rítmicas relativamente simples, retrabalhadas de um modo ao mesmo tempo pop, mas
também barulhento e estranho. Talvez o primeiro álbum seja mais radical em sua
incursões noise, ao passo que, às vezes, parece que eles perdem a mão na entonação pop,
como na harmonia demasiadamente melosa em “Olympians”. Mas aqui entra em cena o
trunfo número dois da dupla: o humor, presente na espessa camada noise que perpassa a
mesma faixa lá pelo seu sétimo minuto. E aí, vale destacar o fato de que o processo de
composição do Fuck Buttons se dá à moda de um escultor sobre o torno: o que se ouve
primeiramente é uma massa amorfa, uma harmonia banal, uma batida eminentemente
techno que pouco a pouco vai se apresentando para o ouvinte não em sua aparência
superficial, mas em seu paciente e intrigante decorrer, como na já citada “Surf Solar”,
mas também em “The Lisbon Maru”, “Flight of the Feathered Serpent” e “Space
Mountain”. Há também faixas mais estranhas e ousadas como “Rough Steez”, com sua
batida claudicante, e a graciosa “Phantom Limb” – essa sim radicalmente experimental a
ponto de lembrar o Black Dice. Dizem que esta modalidade musical, em que o artista vai
moldando a música em tempo real, tem no shoegaze sua expressão máxima. Mas aí então
teríamos que admitir o caráter shoegaze de toda laptop music… As sete faixas de Tarot
Sport são encantadoras por conta desta síntese complexa, entre a recontextualização da
banalidade e a tendência à repetição como prática de remodelação.

2562 – Unbalance (2009; Tectonic, Reino Unido [Holanda])


O fato de que os dois grandes lançamentos de dubstep do ano remetam a seus produtores
mais relevantes demonstra que algo no gênero começa a enfrentar não exatamente um
ocaso, mas uma espécie de crise da entresafra. O fato é que Shackleton e Dave Huismans,
responsável pelo codinome 2562, produziram algo distanciados dos cânones do gênero,
selando de vez seu caráter aventureiro e inovador. Ao que tudo indica, ao invés de
mergulhar na auto-referência, eles partiram para a experimentação “de fundo”, por assim
dizer, isto é: graves profundos, clima soturno e um ritmo semelhante a um 2 step
reprocessado com timbres digitais já não lhes bastam mais. Assim como Three EPs,
Unbalance manifesta um grau de novidade que indica a transposição do dubstep para um
terreno independente de definições e sonoridades – como ocorreu por exemplo com o
jazz… Assim como a música de Eno hoje é considerada sob uma gama de rótulos
(ambient, eletronica…), e isto decorre não da filiação a um gênero mas de seu approach
experimental, Shackleton e Huismans investem na autonomia, imprimindo outra
conotação ao gênero. Mas não é o que ocorre nem em Three EPs nem em Unbalance,
dois álbuns de um frescor inigualável e, o mais interessante, promissor.

Unbalance encerra uma unidade estética rigorosa. Na contramão da grande maioria dos
lançamentos recentes, que não sei porque cargas d’água vem apresentando uma
aceleração insana do dubstep, Unbalance trabalha basicamente com andamentos super
ralentados. A ousada construção rítmica, sempre imprevisíveis, lança mão de compassos
compostos e, como procedem a maioria dos produtores, se esmera na elaboração dos
desenhos melódicos dos graves, mas não se esgota ai: uma série de camadas
extremamente básicas se entrelaçam criando momentos únicos que muitas vezes não se
repetirão. Em uma forma musical basicamente repetitiva esta característica sobressai
admiravelmente, pois cria a coesão entre dois elementos díspares, a saber: a repetição
hipnótica e a modulação tensa e imprevisível, que a todo instante surpreende com um
novo elemento. Junte-se a isso, a predileção por uma timbragem seca, com sons que
variam da martelada até sons que lembram areia e limalhas caindo sobre uma superfície
de aço. Trabalho de pesquisa, “laboratorial”, característica compartilhada com
Shackleton. O resultado é seco, de alguma forma sutil e, sobretudo, estranho.

Apesar desta característica geral, cada faixa de Unbalance leva consigo uma entonação
própria, como se Huismans estivesse abrindo portas, delimitando novas direções.
“Unbalance” talvez seja a faixa que melhor exemplifique essas características me talvez
seja a grande faixa do disco. Mas medir o restante por ela é covardia. Após uma
introducão ambient acachapante, eclode uma das batidas mais refinadas e
impressionantes da eletrônica dos últimos anos, composta por tambores e intrumentos de
percussão inspirados em madeira e ferro, além dos ecos e tremulações retiradas do dub.
Das faixas do ano, com certeza. Mas temos também outra faixas impressionantes. “Who
are you fooling?”, com seus tambores e variação rítimicas imprevisíveis, incluindo a
“maquinazinha” que emite estáticas e só aparece no final da faixa; “Flashback” com a
sacação genial de manipular a sonoridade repetitiva de um CD arranhado – inclusive uma
das poucas faixas do álbum que remetem diretamente a um 2step; a percussão “férrea” de
“Yes/no”, a levada deliciosa, um quê de Burial, de “Lost”, a quebradeira e os teclados
funky de “Love in Outer Space”… A única nota negativa, mas nem tão negativa assim, é
pra acelerada (e adequadamente intitulada) “Escape Velocity”, que parece comungar com
uma certa exigência que ronda o universo da música eletrônica por maior “dançabilidade”
do dubstep. É bacana, mas é também a mais banal do álbum.

Huismans já habitava o panteão da eletrônica contemporânea com o ótimo, mas já


superado, Aerial. Ocorre em Unbalance uma mudança arriscada e digna da maior
atenção. Alguns poderiam notar: um retrocesso, haja visto que ele retoma elementos do
dubstep de 2006… Mas eu acho que o que ele retoma é o espírito aventureiro que parece
se dissipar conforme o gênero derruba barreiras, conforme ele desafia também a
“audibilidade”. Unbalance é um álbum difícil, fato. Mas eu penso cá comigo que,
reiterando a comparação com o jazz, o dubstep está se configurando naquilo que foi o
Kraut na década de 70 e o pós-punk nos 80: uma plataforma de experimentação
multiforme que possivelmente derivará formas musicais também experimentais e
desbravadoras. E é neste contexto que Unbalance adquire o estatuto de obra-prima.
(Bernardo Oliveira)

Radiohead – Kid A (2000; Parlophone/EMI, Reino Unido)


1. Se considerarmos a obra do Radiohead como um processo de transformação gradual,
que parte de um esforço devotado a relativizar o indie rock em direção a uma abertura
incondicional à experimentação, seremos compelidos a admitir o caráter de projeto que
habita a obra do grupo. Por outro lado, me pergunto se esta explicação não encerra um
determinismo rígido demais, se não comprime o processo à forceps para fins de
explicação e decodificação. No mesmo estilo da pergunta: o que teria conduzido os
Beatles das canções adolescentes ao “A day in the life”? Pergunta inglória, que acaba por
apagar os esforços individuais para dissolvê-los no “espírito da época”…

2. Mas por que diabos deveríamos criar explicações se hoje aquele Radiohead de 1994 se
encontra morto e sepultado, pelo menos para quem está em busca do “algo mais” que o
grupo apresentou depois de Ok Computer. O hábito de se separar uma obra em fases,
obra esta unificada sob um nome ou uma identidade, denota uma dificuldade comum em
decodificar (e, em última instância, aceitar) a diferença radical que põe a unidade estável
da identidade em crise. Assim, muitas vezes me flagro escavando nas fracas canções de
The Bends e Pablo Honey o Radiohead que tanto me apraz de Hail to the Thief, In
Rainbows, deste Kid A e seu álbum-gêmeo, Amnesiac. Claro que nunca encontro algo
que ao menos insinue a possibilidade de uma virada tão radical. Para alguns, esta
reviravolta começa no profundo lirismo de Ok Computer, mas na minha opinião e na de
muitos outros ela começa em Kid A. É precisamente aqui que a identidade roqueira
explode e se move…

3. A comparação com a reviravolta dos Beatles não favorece pois a compreensão do


fenômeno. Não se trata exatamente de uma reviravolta, ao que tudo indica. Mas de uma
evolução musical pautada pelo gosto contumaz pela música, uma evolução melômana,
com todos os atributos e cacoetes dos amantes de música, CDFs na arte de compilar,
armazenar, listar e fruir todo e qualquer discurso musical. Lennon e sua turma eram
artistas do século XX e, portanto, pertencentes ainda ao séc XIX, carregando como
correntes os conceitos de gênio, autenticidade, labor, etc. Agiram como artistas plásticos
que por obra de um gesto estético reelaboram toda uma gama de conceitos e valores.
Expandiram os elementos e influências de sua música como um procedimento liberador,
agarrados que estavam ao tronco mais ou menos seguro do blues e do rock’n'roll. Yorke e
seus amigos já não carregam tanto o século XIX, mas o século XX, manifestando em
alguns aspectos as idéias de vanguarda, repetição, acaso e, mais especificamente, a de
colagem. Na medida em que pode ser compreendido como um elemento precursor da
cultura do cut-and-paste, cultura eminentemente contemporânea, a colagem de fontes
diversas desenraizou o Radiohead da condição de indie group ou mesmo de “rock group”.
Expandiram os elementos e influências de sua música por obra de uma percepção e um
gosto multifacetados por definição, do tipo que caracteriza a fruição e a produção musical
contemporâneas.

4. Não há um elemento sequer em Kid A que remeta aos álbuns anteriores. Talvez
“Motion Picture Soundtrack” e, sobretudo, “How to Disappear Completely”, mas ainda
assim a roupagem orquestral influenciada por Krzysztof Penderecki, aliada à utilização
de um Ondes Martenot executado por Jonny Greenwood, resultam em dissonâncias
perfeitamente afinadas com o tom experimental com que as faixas foram elaboradas. Se
não, vejamos: o disco abre com “Everything in its Right Place” uma bela balada com
forte influência techno, repleta de teclados e efeitos. Para um fã radical deve ter sido
certamente um golpe duro, mas ele ainda não sabia que no auge de sua perplexidade
eclodirá a primeira grande faixa do disco: “Kid A” já indica a filiação espantosamente
madura ao IDM, graças à manipulação prodigiosa das baterias eletrônicas e dos efeitos.
“The National Anthem” é uma das faixas mais intrigantes do disco, com sua cama
espirrada de sopros e, particularmente, aquela sequência rítmica executada pelo sax
barítono que antecede a balbúrdia free. “Treefingers” denuncia que, tal como o Geoff
Barrow de Third, o grupo andou ouvindo muito o krautrock contemplativo do Cluster e
do Harmonia. Com versos irônicos mais luminosos (“If you try the best you can, the best
you can is good enough”), “Optmistic” abre o lado B destilando um rock
simultaneamente lírico, timbrístico e enérgico, pontuado pela guitarra estridente de Ed
O’Brien. Seguem outras faixas admiráveis: o folk-rock inspirado de “In Limbo” e “The
Morning Bell”, com sua batida post-rock, seu teclado muzak e, mais uma vez, a
interpretação primorosa de Thom Yorke. Mas nenhuma delas se compara a “Idioteque”,
uma das faixas mais belas e inacreditáveis da década.
5. “Idioteque” sempre me pareceu uma anomalia musical de primeira ordem. Assim
como foi musicalmente estranho e surpreendente quando o Anthrax se juntou ao Public
Enemy para criar “Bring the Noise” ou mesmo o single “I’m the man”, assim recebi
“Idioteque”. Não que ela represente uma mudança de perspectiva que atingiria o rock
como um todo, como foi com o Anthrax e o Public Enemy, mas poucos eventos foram
tão estranhos quanto o investimento do grupo em mesclar indie com miami, guitarras e
eletrônicos. Claro que àquela altura estas misturas já haviam sido experimentadas, mas o
fato é que a letra abstrata de “Idioteque” carrega uma emoção tão contundente, emolurada
por aquela batida festeira e agitada, que fica difícil encontrar um exemplar à altura de seu
poder de síntese, apelo pop e, ao mesmo tempo, estranhamento. É a retorção do passado
no futuro, é o resultado mais coerente e poderoso decorrente do fato que explanei acima:
o Radiohead se tornou das maiores bandas do planeta graças a ausência total de
compromissos com o gênero. Ao contrário do que pensa Colin Greenwood, nesta
entrevista.

6. Se privilegio o ponto de ruptura ao mesmo tempo em que desvalorizo uma perspectiva


projetual, é porque só posso crer que a melhor forma de compreender o trabalho do
Radiohead é entendendo-o como expressão de uma união específica de indivíduos que,
tal como tantas grandes bandas, convergiram esforços em favor de uma expressão
comum. Nem rupturas, nem projetos, apenas a duração da vida e a capacidade criativa
destruindo e contruindo sem cessar: esta talvez seja uma característica fundamental na
música produzida na década, isto é, um privilégio maior da criação livre e
descompromissada com a indústria e o gosto popular. Assim sendo, só posso considerar
Kid A à luz de Amnesiac, dado que ambos nasceram das mesmas motivações e das
mesmas sessões. Neste sentido, mesmo levando em consideração minha preferência por
Hail to the Thief, devo sublinhar que Kid A é o álbum que melhor representa as correções
de rumo adotadas pelo grupo. Motivo suficiente para o elegermos como um dos discos
mais fortes e consistentes de uma das bandas mais fortes e consistentes da década.
(Bernardo Oliveira)

Limescale – Limescale (2003; Incus, Reino Unido)


Aqueles familiarizados com o extenso trabalho de Derek Bailey talvez não se
surpreendam com a imensa gama de timbres e dinâmicas que se deslocam com a
velocidade da luz em Limescale. Álbuns da mesma época como Soshin, em parceria com
Fred Frith, contém aqueles pizzicatos e harmônicos contundentes que dão forma à dicção
característica de seu violão. Mas em Limescale trata-se de uma composição instrumental
que vai além da originalidade timbrística de Bailey, se isto é possível… Temos o
clarinete de Alex Ward, o saxofone de Tony Bevan, os “tijolos” de Marie-Angélique
Bueler e T.H.F. Drenching, que ano passado lançou um excepcional CDr com seu grupo
The Concréttes, executando um arqueológico ditafone. Por aí talvez se perceba mais
adequadamente a natureza desse encontro: cinco músicos que desenvolvem trabalhos de
relativização e alargamento do campo de possibilidades timbrísticas de seus próprios
instrumentos se juntam para construir peças de improvisação. Sonic Pleasure,
pseudônimo de Bueler, deduzo que arranha e bate em “tijolos” enquanto Drenching
manipula fluxos sonoros do ditafone; Bailey, por sua vez, se esmera em criar ruídos
metálicos, enquanto Bevan e Ward descaracterizam seus respectivos instrumentos
extraindo sonoridades que nem de longe se assemelham a sua timbragem comum.
Combinando-se todos esses elementos temos um dos discos mais intrigantes de música
improvisada dos últimos anos. Mas qual o seu mistério, posto que em termos de
improvisação têm-se a perspectiva de que tudo é legítimo?

Os grandes discos de improvisação encerram uma lógica profunda e rigorosa, o que nem
sempre se coaduna com a idéia de liberdade embutida na expressão free-improv…
Portanto, cabe aqui a ressalva de que este “free” está associado a uma concepção
equivocada de liberdade através da qual o lema liberal “laissez faire, laissez aller”
adquire estatuto de lei – concepção esta decisivamente identificada à geração flower
power, o que põe em xeque seu suposto papel transgressor… Repito, então: qual o
mistério de Limescale que o diferencia da produção de Bailey bem como da de todos os
envolvidos? Se me permitem o salto interpretativo, me arrisco a dizer que há um traço
lógico inspirado nas artes plásticas, mais especificamente no pontilhismo impressionista
de Seurat: excertos sonoros combinados para definir cores, formas, escalas, painéis e
estruturas musicais talhadas a partir de elementos supostamente não-musicais, presentes
tanto na execução dos tijolos e do ditafone, como na apropriação particular que cada um
faz do seu instrumento. Harmonia, ritmo e melodia são como que esfacelados, criando
sobreposições de elementos e modulações dinâmicas que marcam toda a evolução do
álbum. O resultado é fascinante, devido justamente ao poder de síntese do grupo, isto é, a
capacidade de dosar, medir, exacervar, tirar e pôr, capacidades que em nada se conjugam
com uma concepção juvenil de liberdade. Ser “livre” em Limescale significa: poder e
capacidade de controlar o raio de elaboração sonora, de dar sentido e direção ao invés de
“deixar ir”…

Às vezes caótico, às vezes minucioso, mas sempre perturbador, Limescale transcorre de


forma abrupta, atropelando o ouvinte com seu farfalhar ensandecido, muito embora exija
do mesmo ouvinte um paciente trabalho de aproximação e deglutição. Somente na
terceira ou quarta audição começamos a deslindar e apreciar seus elementos e texturas,
como os tijolos de Bueler em “Academy Now” ou a combinação climas e timbres em
“Charity Singles Ball”, de longe a faixa mais rica do disco. O alto nível de exigência
confirma o caráter verdadeiramente transgressor de Limescale, pois é a partir dele que se
pode aferir a originalidade que o faz um dos melhores discos da carreira de seus autores.
Certamente um exemplo, se não precursor, absolutamente singular de free-improv no
cenário contemporâneo.

Nação Zumbi – Rádio S.Amb.A. – Serviço Ambulante de Afrociberdelia (2000;


YBrasil Music, Brasil)
Dificilmente poderemos negar um traço da cultura brasileira, que é a dialética
esquizofrênica entre o fetiche da preservação e a compulsão à miscigenação
indiscriminada. Ocorre que esta problemática contradição é transplantada até mesmo a
contextos específicos, como por exemplo no “BRock” ou no “BReggae” do sudeste
brasileiro. Em relação ao Paralamas ou ao Barão Vermelho, certamente ouviremos a
lamúria dos puristas clamando por “aquele” grupo dos primórdios, aquele que marcou a
“minha” geração, a “minha” percepção… Não que eu concorde ou discorde do juízo em
relação as bandas citadas, não se trata disso. Desejo antes ressaltar o mecanismo
psicológico que encerra certas bandas dentro de seu próprio mito, e de como esses
mecanismos estão profundamente marcados por um narcisismo preguiçoso que não
consegue (ou não quer) seguir os passos reais dos artistas, afobados que estão em
decodificá-los e enquadrá-los no domínio mais ou menos seguro de suas experiências
pessoais. Tenho a impressão de que no Brasil confundimos os primórdios de um artista
com “vigor juvenil” e, por outro lado, a indefinição da atualidade com “cansaço”, e isto
conforme a certeza arrogante de que somos o centro do universo… Do ponto de vista dos
artistas, os esforços de grupos do sudeste em reproduzir ritmos nordestinos ou, de forma
semelhante, a tentativa de alguns novos grupos de reproduzir o samba “tradicional” (seja
lá o que se queira dizer com isso…) podem até se auto-legitimar através de trabalhos
corretos, regulares e bem produzidos, mas jamais esconderão que sua música é produto
de um mal-estar, de um desconforto que deseja antes de mais nada recuar, regressar,
destruir o futuro e dissolvê-lo em uma interpretação determinada do passado – que
infelizmente não se sabem nem “intérprete”, que dirá “determinado”…

O Nação Zumbi sofreu essa desconfiança e de uma forma duplamente cruel. Primeiro,
porque rapidamente o grupo foi considerado herdeiro de um movimento que, sem seu
herói, não se sustentaria; e mesmo depois de dar provas mais que suficientes de sua força
criativa e independência em relação ao mito e à genialidade de Chico Science, o Nação
ainda hoje é considerado uma sucursal da experiência dos anos noventas, mesmo que
uma audição atenta demonstre exatamente o contrário. Foi pensando assim que, confesso,
tive dúvidas quando aceitei o convite de um amigo para assistir o show do grupo na
Cantareira, na cidade de Niterói, o primeiro no Rio após a gravação de Rádio S.amb.A..
Qual não foi o meu espanto quando percebi que se materializava no palco um verdadeiro
milagre que em uma só e mesma lufada trazia Chico Science à tona, através dos tambores
e do hip hop, mas acrescentava um grau de experimentação com ritmos e timbres que até
então não se percebia no grupo de forma tão proeminente. Fiquei arrebatado com o lema
“sem medo” em “Caranguejo da Praia das Virtudes (Madame Satã)”, com a mistura de
drum’n'bass e ritmos latinos de “Los Sebozos Postizos”, com o arranjo empolgante e
arrojado de “Quando a Maré Encher”, com o instrumental e a melodia de “Carimbó” e,
sobretudo, com o tom radicalmente experimental de “Remédios”, que atestou
definitivamente o retorno do Nação Zumbi. Tanto que fui na semana seguinte em um
show no Rio, desta vez na extinta Quinta do Bosque, em Santa Teresa, comprovar a
excelência do novo trabalho, de um nível de auto-determinação e criatividade que há
tempos não se via na música brasileira como um todo, suplantando até mesmo a eclosão
do manguebit da década anterior. Eu mal esperava para ouvir Rádio S.amb.A, fato que se
deu algumas semanas depois.

Sim, é possível reconhecer o “mote” do Dr. Charles Zambohead, através do som grave
dos tambores e da levada hip hop… Mas os cinquenta e dois minutos de Rádio S.amb.A
não só correspondiam à impressão geral dos shows como também traziam novas faixas,
tão surpreendentes quanto as primeiras. O hardcore “Brasília”, o hip hop cubista “Zumbi
X Zulu” (com os vocais de Afrika Bambaata) e a lindíssima “João Galafuz”, que conta
com a voz de Lia de Itamaracá, figuram ao lado de faixas e vinhetas instrumentais
construídas com uma sonoridade madura, mas ao mesmo tempo urgente e profundamente
enérgica. As letras também demonstravam o vigor do novo Nação Zumbi, pois ao mesmo
tempo que as composições se diferenciavam consideravelmente das criadas por Science,
prescindiam também do padrão de livre associação marcadamente tropicalista que os
diluidores do tropicalismo timbraram em oficializar na música da década de 00. Trata-se,
pois, de uma avis rara na música brasileira da época em todos os termos: uma banda
sobrevivente que passou por maus bocados não só se recupera como também ousa
absurdamente a transgredir os padrões de arranjo e composição, tanto do ponto de vista
musical como também em relação às letras. E para quem se lembra de Asian Dub
Foundaton, Café Tacuba, Manu Chao e outros artistas da “periferia” que obtiveram
algum sucesso graças a histeria multicultural que marcou a rebordosa do discurso
neoliberal, vale dizer que dentre todas essas bandas o Nação Zumbi é a mais expressiva,
além de ser a mais regular e produtiva.

Mesmo um certo desequilíbrio em relação ao número de faixas e alguns excessos de


arranjo são característicos de uma efusão criativa desta natureza, que considera o máximo
de idéias porque quer valorizar todas elas, sem titubeios nem dúvidas. Um ethos de pura
afirmação, como foram os álbuns dos Mutantes, dos Novos Baianos, do Patife Band e do
Sepultura, as quatro bandas precursoras do espírito desbravador do Nação Zumbi. Os
discos seguintes só vieram pavimentar o campo extremamente fértil e desconcatenado
legado por Rádio S.amb.A e desde então o Nação não cessou de surpreender seus fãs,
para o bem e para o mal. Positivamente pela qualidade irretocável de seus shows e
álbuns. Mas negativamente quando, em coro com um irreconhecível Fred 04, invocam o
discurso liberal para defender a indústria contra a internet e a troca de informação. Uma
atitude às antípodas do significado profundo de Rádio S.Amb.A, qual seja: a superação
na diferença, a busca pela diferença às custas até mesmo do próprio passado. Com sua
mistura particular de Public Enemy, ritmos e sonoridades consideradas
preconceituosamente enquanto “regionais”, procedimentos do dub, da música eletrônica e
de muitas vertentes do rock, Rádio S.Amb.A é sem sombra de dúvida o melhor álbum
realizado no Brasil nesta década. (Bernardo Oliveira)

Orthrelm – OV (2005; Ipecac, EUA)


Garanto ao leitor que é impossível permanecer indiferente à série de modulações que
pontuam os 45 minutos de OV, terceiro álbum do Orthrelm. E digo isso em relação a todo
tipo de ouvinte, desde os mais irritadiços aos curiosos de plantão, empáticos ou não aos
gêneros explorados pela dupla Mike Barr e Josh Blair. E de minha parte devo dizer que
não há muito como escapar a esse tom hiperbólico quando tratamos de um álbum
composto por uma só faixa que perfaz inflexões do noise ao metal, passando pelo
minimalismo de La Monte Young e Steve Reich com riqueza de detalhes, absoluta
coesão e disciplina. A idéia é obter um continuum musical a partir de texturizações e
repetições retiradas do universo destacado acima, embora se possa afirmar que o metal é
o elemento mais pronunciado. Às vezes para fazer valer uma idéia musical à risca a
disciplina é não só um importante pré-requisito como também uma espécie de motor
criativo que condiciona a composição. Assim, em meio a aparente balbúrdia sonora de
OV, surpreendem os detalhes que aos poucos fornecem dicas preciosas para a fruição
deste que não é propriamente um álbum de fácil desgustação. São as sutilezas presentes
na utilização dos pratos de bateria, nas melodias aparentemente repetitivas cujas
diferenças se manifestam somente na segunda ou terceira audições, no esmero e
inteligência empregados na criação das texturas, como por exemplo a da abertura ou a
dos tambores, mais para o fim. Porém, para além da qualidade e inventividade na
execução existe o aspecto formal, trunfo de OV. Em outras palavras, é o modo como Barr
e Blair recontextualizam os clichês de gêneros como o metal, o noise e o hard rock. Mas
o que sobressai é este item curioso chamado minimalismo. Pois o que “desenraíza” o
clichê do seu contexto originário é a repetição de células que tinham outro significado em
seu território original. Assim, uma virada de bateria acompanhada por um solo de
guitarra hiperveloz, que poderia perfeitamente passar por uma convenção metaleira, é
recortado e reprocessado por uma interpretação que talha aos poucos uma malha
instrumental arrebatadora. Neste sentido, OV congraça habilidade técnica excepcional
com uma perepção estética aguçada e impressionante, atípica na seara do metal.

Leyland Kirby – Sadly, The Future Is No Longer What It Was (2009; History
Always Favours the Winners, Reino Unido)
Moças e rapazes, vou lhes dizer: poucos músicos hoje requisitam tanta atenção e
mobilização do ouvinte como James Kirby. E não me refiro somente à extensão
intempestiva do álbum em questão, cuja audição pode durar dias, no meu caso, meses.
Sua obra também é de uma variedade de propósitos que se insinuam sob os seus diversos
pseudônimos. Através do mais instigante deles, The Caretaker, ele produziu uma das
peças mais fascinantes da década que passou, a faixa “Persistent Repetitions of Phrases”,
uma sondagem poética dos recantos mais recônditos da psique humana, um estudo a
respeito do comportamento e da própria natureza da memória. Agora, sob um heterônimo
sugestivamente timbrado com seu nome próprio, Kirby desafia o ouvinte em outra
quitanda, propondo, através de um tour de force, uma experiência do presente,
representada por uma ampla gama de discursos sonoros compatíveis com o que se produz
hoje em termos de ambient, drone, modern classical e outros rótulos que mais confundem
que explicam. Ainda que este álbum seja mais referencial e “musical” que todos os
anteriores, percebe-se que Kirby carrega cada uma das vinte faixas de Sadly… com sua
assinatura peculiar. Trata-se portanto de um exercício de cunho prático, puro suor de
compositor, que aparentemente não se confunde com o intelectualismo carregado do The
Caretaker. Se por muitas vezes ouvimos os pianos preparados de Drukqs, as névoas
ruidosas de Wolfgang Voigt ou mesmo algo dos trinados singulares do glitch, estes se
apresentam como uma reinterpretação evidente, cunhada sob a batuta parcimoniosa e
pungente de Kirby.

Até por isso a relação entre novidade e pastiche aqui é de uma tensão que em certo
sentido compromete o disco… E mesmo assim podemos enumerar em suas quase quatro
horas de audição diversos momentos em que as referências explodem em uma
musicalidade autônoma e mais que interessante. Na destreza ao mesmo tempo terna e
melancólica com que ele mistura ambiências com sintetizadores e pianos preparados em
“When Did Our Dreams And Futures Drift So Far Apart?”, na riqueza das variações
timbrísticas de “Stay Light, There Is A Rainbow A Coming”, no contraditório
comedimento noise de “The Sound Of Music Vanishing” e na utilização extravagante
dos sintetizadores da faixa título, Sadly… é um disco que se põe diante do ouvinte como
um livro, que lhe exige paciência e atenção para que apreenda todo o seu conteúdo e, só
assim, seu significado. Pois o que determina a relevância deste novo heterônimo é o seu
modo peculiar de redimensionar as correntes da música atual, operando mais por
sobreposições de estilos do que por burilações autônomas; por outro lado, a extensão das
faixas faz parte da concepção do álbum, análoga a de um compêndio que funciona ao
mesmo tempo como declaração de amor ao aqui e agora, ao instante, ao momento, à
intensidade dos corpos e do universo… Perdoem-me o filosofema, mas assim como a
música de Hecker ou até mesmo dos grandes compositores do século XX, a de Kirby é
assumidamente pretensiosa em relação a esses termos.

Evan Parker – House Full of Floors (2009; Tzadik, EUA [Reino Unido])
Ah, as listas… Quanto prazer nos dão, a nós listólogos… Mas quanto sofrimento
também! Quantos dedos cortados, quantos lamentos e descobertas intempestivas, fora de
hora… Este não foi o caso de House Full of Floors, cujo alijamento de minha lista de
escolhidos se deu mais por displicência ou sei lá que outro gênero de comportamento
autodestrutivo que torna a vista oblíqua e a mão pesada… Pois se foram cometidos vinte
grandes discos em 2009, o álbum em questão deveria estar entre as primeiras colocações.
Pelo menos é o que diz o “gosto”, pois desde que foi lançado no final do ano passado,
House Full of Floors é uma audição que não sai das paradas de sucesso… aqui de casa.
Trata-se de um conjunto formado pelo saxofone tenor e soprano de Evan Parker, pelo
baixo de John Edwards e pela guitarra acústica de John Russell, três ingleses
reconhecidamente competentes tanto na arte do improviso como na habilidade para
extrair o máximo em novidade timbrística de seus respectivos instrumentos. Tiveram a
manhã de gravar um álbum numa igreja inglesa reconhecida por sua excelente acústica
(Igreja de São Pedro, em Whitstable); de elegerem um perito em instrumentos antigos do
calibre de Aleksander Kolkowski, que gravou o grupo em cilindros de cêra e tocou viola
em algumas faixas; e, como se não bastasse, lançá-lo através do Tzadik, selo americano
que pertence a John Zorn. A chave aqui, porém, não é tanto a diversidade de timbres e
possibilidades, à exceção somente da faixa final, “Wind Up”, onde se pode apreciar um
raro diálogo entre os instrumentos e sons do cilindro de cêra. Aqui vale mais a trama, a
criação de texturas e dinâmicas que demonstram o caráter aventureiro da música desses
ingleses. Se é possível colocar nesses termos, a única “regra geral” da improvisação se
refere a este caráter de aventura, de perigosa sondagem do desconhecido e até mesmo do
alheio, como é o caso de House Full of Floors, onde os instrumentos buscam tecer um
diálogo essencialmente ambíguo, ora construindo dissonâncias e ressonâncias, ora
afastando-se violentamente uns dos outros em combate de morte… Mas qual, a beleza do
encontro reside justamente no vigor próprio com que cada sonoridade investe umas
contra as outras, obedecendo a dinâmica de aproximação/distanciamento que descrevi
acima.

Não posso ser leviano a ponto de dizer que “não tem como errar”, sobretudo em um ano
em que grandes artistas se meteram em grandes canoas furadas – no caso particular de
Parker, Manafon… Mas o grande lance é que o gênio por trás dos quatro instrumentos,
livres dos microfones e valorizados pela acústica monumental da renomada igreja
inglesa, transforma o encontro numa experiência no mínimo impressionante, ao nível dos
melhores trabalhos de improvisação da música inglesa do século que passou. (Bernardo
Oliveira)

Francisco López – Machines (2010; Elevator Bath, EUA [Espanha])


Certamente habitamos um mundo hostil para compositores fora da indústria da canção e,
mais precisamente, da indústria da consonância harmônica (vide a lista de fim de ano da
Wire que ostenta em suas primeiras colocações os convencionais Focus Group e
Onehotrix…). Mas em contrapartida, existe hoje uma pá de compositores e produtores
que, se valendo do precedente aberto por alguns artistas ligados às vanguardas européias
e suas ramificações, produzem música experimental em diálogo com o discurso erudito,
científico e tecnológico. Esta é certamente uma tendência que foi incrementada com a
radicalização das simbioses entre diversas fontes sonoras, sejam acústicas, digitais,
híbridas, etc. Hecker chega a dispor na capa de seu último álbum a primeira página de um
artigo que problematiza a ambiência sonora e os sons que não podem ser ouvidos,
enquanto Alva Noto transforma em som os códigos-fonte dos softwares e da produção de
dados computadorizados. Alguns tendem para a música eletroacústica, como Hecker.
Outros, para o minimalismo, como The Caretaker. Mas quando se trata de música
concreta, aquela criada por Pierre Schaeffer nos anos 40, Francisco López é quem dita as
regras. Como Hecker, ele utiliza a capa do álbum para dizer a que veio, conferindo-lhe
um caráter de bula, como se ela representasse apenas uma identificação dos experimentos
que o “cientista” López desenvolveu em seu laboratório.

Machines é um álbum que arregimenta simultaneamente pelo menos duas possibilidades.


Daquilo que é fiel ao legado da música concreta podemos indicar a referência aos
artefatos e contextos não-musicais no título das faixas (“relógio”, “elevador”, fábricas”,
“laboratórios”) e a utilização de seus ruídos característicos na composição. Daquilo que
faz sua peculiaridade podemos nos referir ao modo exaustivo com o qual López enfoca as
nuances de seu trabalho. O ouvinte que quiser compreender o sentido de cada uma das
peças deve acompanha-lo em toda a ampla gama sonora que ele estabelece até definir o
caráter geral da composição. A longa duração das faixas se deve ao fato de que o autor
desenvolve uma série exaustiva de padrões e relações de timbre, dinâmica e aplicação de
efeitos entre os diversos sons gravados, como por exemplo em “Fahrstuhle”, na qual os
sons do elevador e do ambiente são repetidos de diversas formas, sobrepostos ou
sequenciados, ora valorizando a ambiência (o aspecto “natural”, por assim dizer), ora
reforçando a manipulação. Observa-se portanto um aspecto de totalidade e radical
experimentação com o máximo de possibilidades possíveis, o que faz a maravilha de
Machines.

Outra peça exemplar é “Klokken”, que perfila uma série de sons que lembram os de um
relógio, porém de forma tão transfigurada, que muitas vezes o compositor se afasta
consideravelmente do objeto central e investe até mesmo em uma quase-melodia (lá pelos
quatorze minutos). O resultado é forte e deveras estranho, visto que a tal melodia não se
pronuncia definitivamente, mas apenas se insinua. “Fabrikas”, a última faixa do CD, se
destaca por ser a que menos preserva os sons como eles são emitidos originalmente, às
vezes lembrando até mesmo a barulheira irracional de um Merzbow, outras vezes
fazendo referências explícitas não somente ao trabalho das máquinas, mas ao aspecto
maquínico da ação do trabalhador. Por fim, cabe ressaltar também a beleza
aparentemente abstrata de “Labs”, cuja variedade de referências a aparelhos reais
utilizados em laboratórios extrapola certamente seu significado material, evocando o
eterno paradoxo entre as capacidades criativas e destrutivas do homem. “Labs” também
alude em diversos momentos a espectros de sons mais fáceis e melódicos,
particularmente lá pelos 21’30” quando engata em uma levada meio kraut, novamente de
forma ambígua, para depois novamente adentrar em um mar de abstração e demonstração
de poderio sônico.

Machines é um grande disco, desses clássicos imediatos como o foram Persistent


Repetition of Phrases ou Acid in the Style of David Tudor. Mas o que faz com que a obra
de Francisco López, a despeito de sua impopularidade, seja considerada uma das mais
influentes e interessantes da atualidade, é o fato de que ela consegue sustentar sua
relevância dentro de uma ambiguidade difícil de assimilar. De um lado, ele vem
sedimentando com rigor sua profissão de fé em relação à música concreta, incorporando
em seu trabalhos as principais característica deste método de composição. Mas, de outro,
percebe-se que ele opera com uma desenvoltura incomum, com uma liberdade de
manipulação e, sobretudo, com um flerte perigoso com a música, com o noise e com o
filho mais ordinário da música concreta, o industrial. López, no entanto, sobrevive
formidavelmente neste paradoxo e Machines é uma prova indubitável de seu vigor e
lenha para queimar. (Bernardo Oliveira)

Yellow Swans – Going Places (2010; Type, Reino Unido)


Como abordamos um amplo espectro de estilos musicais, vez ou outra me deparo com
trabalhos absolutamente desconhecidos, com os quais não tenho nenhuma familiaridade.
Este é o caso do Yellow Swans. Não os conheço, mas não descarto a possibilidade de que
esta seja uma das mais agradáveis descobertas que fiz este ano. Assim que começou
“Foiled”, primeira faixa de Going Places, com seus sutis, porém volumosos amálgamas
sonoros, estive certo de encontrar uma banda de relevância, a que eu deveria dispensar
mais do que a mera atenção conjectural, aquela orientada para fins de escrita e avaliação.
Infelizmente não deu tempo de me inteirar de todos os álbuns anteriores que desde de
2002 a dupla vem lançando, mas me certifiquei que além de bastante recente (o que de
minha parte implica em uma desconfiança redobrada), a dupla também aposta em uma
sonoridade problemática, vizinha do mesmo Tim Hecker da semana passada: a comunhão
de aspectos harmônicos e melódicos “tradicionais” com a volatilidade selvagem do drone
e do noise. Esta combinação pode facilmente dar em música inócua, e inúmeros projetos
caem na esparrela de buscar respaldo ora no noise, se se quer parecer moderninho, ora na
melodia, se se quer adquirir acessibilidade.

Mas não é o caso de Hecker, muito menos do Yellow Swans. A dupla consegue criar
possantes ondas sonoras se valendo de certas sequências melódicas que “guiam”, por
assim dizer, a riquíssima nuvem noise que recobre a superfície das faixas. O diferencial,
isto é, onde me parece que o Swans sobressaem, pode ser observado sobretudo na
progressão consistente com que seu noise aos poucos cria corpo. Basta ouvirmos “Opt
Out” ou a faixa título para percebermos o poderio sônico da dupla. Às vezes assimilamos
a cacofonia dentro de um espírito sisudo, científico, mas no caso dos Yellow Swans de
Going Places há uma dimensão punk, um vandalismo escancarado que perpassa cada
uma das faixas. Mas há espaço também para que Pete Swanson e Gabriel Mindel
Saloman produzam também algo mais cerebral, “maduro” e delicado, como “Sovereign”,
o lindo drone de “New Life” e “Limited Space” – esta, no entanto, terminando com uma
barulheira dos infernos que chega a lembrar Merzbow e Wolf Eyes. O balanço geral de
Going Places não é exatamente o de uma obra-prima, mas tem consistência e força
expressiva suficientes para figurar como um clássico do noise. Ainda mais agora que
muitos por aí acham que basta mixar uma serra elétrica e manipular uns sinaizinhos para
edificar uma personalidade noise convincente. (Bernardo Oliveira)

Fenn O’Berg – In Stereo (2010; eMego, Áustria)


É muito raro encontrar por aí pessoas que concordem com a idéia de que o “estranho”
constitui-se como algo positivo. Assim como a palavra “crítica” desperta necessariamente
um sentimento de recusa e negatividade, o “estranho” representa simplesmente aquilo
que não se coaduna com os valores em curso, que desestabiliza a linguagem e os
significados, a bóia sobre a qual apoiamos nossas crenças e costumes. Mas o que essas
pessoas talvez não compreendam é que o estranho possui muitas facetas. Ele não é
simplesmente o mesmo monstro que aparece quando não estamos entendendo nada.
Alguns artistas conseguem, dentro de um mesmo contexto, estabelecer várias
modalidades da “estranheza”, isto é, conseguem com sua música causar uma sensação de
estímulo e curiosidade, de espanto e até mesmo pavor, pois operam no campo do
inominável. Sobre aquilo que não podemos falar: isto ocorre justamente porque o poder
antropomórfico da linguagem ainda não conseguiu cristalizar o fenômeno, não conseguiu
armazená-lo na memória das palavras e dos significados. Não acredito nesta balela de
“função da arte”, mas vamos dizer que ela exista: para mim, a grande arte prima pela
capacidade de embaralhar significados. Arte, na minha opinião, não é outra coisa que
embaralhar, confundir e, talvez (quem sabe?), causar prazer.

O trio de experimentadores batizado como Fenn O’Berg é um desses coletivos capazes de


surpreender e causar profunda estranheza toda vez que põe a cabeça para fora. Sobre o
que eles fazem é sempre muito difícil escrever, uma vez que o pioneirismo marca sua
aventuras musicais. Desta vez, eles aparecem com In Stereo, sua primeira incursão em
estúdio, e talvez por este motivo sua música tenha dado uma guinada em direção a tons
mais sombrios e cerebrais. De saída posso afirmar que esta capacidade de soar de forma
absolutamente diferente, de fazer diferente, é o que há de mais primordial na arte. Se a
irreverência dos primeiros álbuns (lá se vão oito anos…) era marcada por uma certa
ironia, que cuidava dos timbres e das colagens com uma mistura improvável de esmero e
desleixo, In Stereo se organiza em torno de princípios ao mesmo tempo mais apolíneos, o
que de forma alguma compromete o caráter laboratorial com que o trio revolucionou a
chamada laptop music. Definitivamente In Stereo é bem diverso do espírito de faixas
antigas como “Adidas sun tanned avant man” e “A Viennese tragedy”, tomadas por uma
força anárquica devoradora de sons. É uma delicadeza de nuances e passagens em nada
abruptas que faz a graça do álbum, uma sucessão de ondas mais ou menos regulares que,
se comparássemos com a geografia terrestre e seus fenômenos, poderíamos considerar
muito menos acidentadas que as dos dois primeiros álbuns. Enquanto The Magic Sound
of Fenn O’Berg e The Return of Fenn O’Berg foram construídos como se fossem
cordilheiras sonoras, ricas em sobressaltos e declives, In Stereo são planícies levemente
sinuosas e acidentadas. Mesmo em faixas mais noise e ricas em mudanças bruscas como
a quarta faixa chamada “Part I” (resquícios da ironia de outrora) ou a faixa seguinte
chamada “Part VII”, elas são construídas paulatinamente, demonstrando que In Stereo
foi, de fato, projetado como uma incursão bem diferente dos álbuns anteriores.

In Stereo é fácil, fácil um dos álbuns mais coerentes, impressionantes e consistentes deste
ano, talvez desta década na seara da improvisação eletrônica. Basta se deixar levar por
suas seis faixas para perceber que não ocorre o tal amadurecimento que geralmente
separa os trabalhos distanciados por tantos anos, mas uma deliberada, saudável e
consciente alteração de rumo. Como disse no início, característica comum dos grandes
artistas. (Bernardo Oliveira)

Eleh – Location Momentum (2010; Touch, Reino Unido)


1. Minimalismo, anonimato, silêncio, tecnologia, drones, esculturas e paisagens sonoras:
elementos próprios a um trabalho desenvolvido na seara da música eletrônica
contemporânea em suas mais diversas vertentes, mas que recebem um tratamento
extremamente idiossincrático no projeto Eleh, capitaneado por um ou mais indíviduos
misteriosos, homens ou mulheres, que, segundo consta, “preferem que os álbuns falem
por eles mesmos”. A curva que leva dos discos de vinil até o lançamento do primeiro CD,
Location Momentum, exibe alterações de rumo frente aos inaugurais Floanting
Frequencies, série caracterizada por sutis extrações e manipulações prolongadas de
espessas camadas de sinais senoidais. Aos poucos a densidade foi cedendo lugar a uma
exploração maior não só de nuances e texturas, mas também de aspectos rítmicos,
sobretudo nas modulações acidentadas de Retreat e Return, ambos de 2009. Não que o
autor trocasse uma inflexão por outra, mas, a julgar por Homage to The Sine Wave,
lançado em 2009, essas vertentes passaram a coexistir em seu trabalho.

2. Portanto, a primeira observação a ser feita em relação a Location Momentum é a de


que o álbum me parece uma espécie de síntese de seu trabalho até então, um
recenseamento das características mais fortes e perceptíveis, entre uma “fase” mais
direta, na qual o volume importava mais que a textura, e um segundo momento prenhe de
uma linguagem mais diversificada, que podemos situar entre os trabalhos recentes na área
do drone, do noise e a inflexão fragmentária pós-Raster Noton presente nos últimos
discos de Monolake e Paul Baran.

3. Trata-se de uma obra pensada a partir do resultado de determinadas pesquisas, o que


nos permitiria precisar os passos e elementos desta curva, bastando elencá-las uma a uma.
Porém, este procedimento permenecerá insuficiente se não situarmos a grandeza de
Location Momentum dentro de seu significado mais abrangente, o que por um viés
contraditório se exprime através de uma personalidade musical incomum, que planeja
acuradamente sua sonoridade no mesmo passo que persegue o anonimato – de tal forma
que não o conhece até mesmo os responsáveis pelos selos através dos quais lança seus
álbuns… Uma personalidade forte que se opõe ao “culto da personalidade”…

4. Digo isso porque o que faz com que o primeiro CD do Eleh seja, desde já, uma dos
mais intrigantes lançamentos desse ano na seara do eletrônico, é justamente esta
combinação entre dois caminhos, dois formatos, que se entrelaçam em uma unidade
ambígua. Poderíamos considerar primeiramente o isolamento, isto é, de como uma
precaução em relação ao oba-oba mercadológico cria um contexto monástico onde, à
moda de Hecker, se desenrolam as mais inusitadas relações sonoras; por outro lado,
poderíamos sublinhar a imensa generosidade, a visão comunitária que agracia o ouvinte
através de um cuidado, de uma forma bastante peculiar de entrega. Entrega esta que Eleh
espera do mesmo ouvinte, desafiando-o em cada passo, conduzindo-o para o interior de
uma força expressiva ao mesmo tempo bruta (os sinais) e sofisticada (sua manipulação).

5. A primeira faixa, “HeleneleH”, pode ser identificada com os primeiros elepês e com as
“homenagens” de 2008 e 2009. A emoção que esta faixa aparentemente sem emoção
evoca, advém das passagens de uma frequência a outra, nas quais se altera o “tom” do
sinal, e também se demonstra um verdadeiro domínio do tempo em que essas mudanças
ocorrem. No fim, as mudanças se aceleram, se tornam mais radicais. Mas não tão radicais
quanto os rompantes de “Linear To Circular / Vertical Axis”, a faixa mais curta do
álbum, e até por isso a mais concentrada em termos de alterações abruptas. “Circle One:
Summer Transcience”, faixa que considero a mais interessante, também opera por
rompantes, diluídos porém em seus pouco mais de treze minutos, mais econômicos e
menos abruptos, sobrepondo o ritmo marcado, semelhante ao tic toc do relógio, com o fio
sonoro, hiper agudo, que percorre toda faixa, eventuamente entrecortado por sons
semelhantes a um aerosol. Lá pelo oitavo minuto, o ritmo cessa e, adiante, uma nuvem
noise cobre toda a faixa por alguns segundos, para finalizar novamente com o agudíssimo
apito. As duas últimas faixas, “Observation Wheel” e “Rotational Change For Windmill”,
já começam se utilizando de uma prerrogativa noise mais pronunciada, e se pode até
dizer que são as que mais acrescentam ao repertório de Eleh. Dois exemplares do que há
de mais acidentado e rascante no drone atual.

6. Podemos tentar compreender o trabalho de Eleh de um ponto de vista “histórico”,


mostrando por á mais bê que Location Momentum representa a culminância de um
processo, ou pelo menos um acabamento parcial, momentâneo. Me parece uma solução
legítima, mas digamos que o ouvinte não se rendesse a este procedimento e buscasse na
obra mesma sua força e vitalidade singulares. Neste caso, imagino, ele seria tomado por
um espanto, por uma sorte de encantamento e estranheza que, em primeiro lugar,
ressaltaria a maturidade do trabalho, e depois, os estranhos estados mentais que ele evoca,
mas também o odor de hospital e laboratório que pesa sobre cada faixa. Peso na
concepção, frescor no resultado geral, mas sobretudo, criação de uma sonoridade
letárgica, minimalista e, ainda assim, surpeendentemente vivaz. (Bernardo Oliveira)

Zeitkratzer – Old School: John Cage (2010; Zeitkratzer/Broken Silence, Alemanha)


Passei boa parte da adolescência lendo nos grandes clássicos da teoria da comunicação e
arredores a respeito de uma característica peculiar de nossa época, qual seja: a
indiscernibilidade entre o universo erudito e popular. De um lado, a “alta cultura”, o
highbrow, um universo intrincado, um sistema de referências paralelas e complementares
fundada sobre bases humanistas claras e distintas. De outro, a “cultura”, o folclore e,
finalmente incorporado às necessidades e dinâmicas da cidade industrializada, a cultura
de massas, algo que para muitos pode ser considerado um reflexo da pós-modernidade,
da pós-humanidade, ou por sei lá quantas outras denominações absurdas. Pois bem,
segundo esses livros, em algum momento da história essas duas esferas foram como que
fundidas, variando o diagnóstico conforme as orientações e o gosto do autor. Para
Augusto de Campos, qua abraçou por inteiro o “medium is the message” de McLuhan, a
questão estava centralizada no procedimento com o qual o artista operaria os
significantes, nos casos mais evidentes em relação à expressão sonora. O Tropicalismo de
Duprat, mas também o Mothers of Invention e Varèse constituiriam exemplos onde
canção popular e arranjos eruditos (ou vice-versa) seriam apresentados em conjunto, em
um só e mesmo patamar. A bem da verdade, essa realidade problemática não possui
assim tantos exemplos, e muitas vezes não passa de flerte. Não se trata de questionar o
diagnóstico, ele é pertinente. Mas até que ponto, de fato, essas fronteiras foram borradas?

Um dos grandes responsáveis por esse contexto foi John Cage, não é novidade para
ninguém. Junto com outros nomes como Pound, Benjamin, Duchamp, Burroughs,
Deleuze, etc, eles projetaram um universo maquínico em franca expansão, uma sorte
poética determinante para o que pensaremos no século XXI, pelo menos em termos de
especulação artística e filosófica (há a neurociência…). Suas Number Pieces não só
constituem um exemplo fundamental do caráter aberto e da música de procedimentos,
como destaca a aleatoriedade como possibilidade “semântica”, tanto que passou a ser
utilizada, de uma forma ou de outra, por artistas ligados a improvisação, no jazz e no
rock. O título das faixas indica o número de indivíduos que devem executá-la, e o
procedimento utilizado permite ao intérprete optar pela forma de expressão, muitas vezes
imputando-lhe a escolha dos instrumentos a serem utilizados. A única restrição que as
Number Pieces trazem são indicações de tempo que vem entre parênteses, numa técnica
denominada “bracket technique”. Em uma dos mais brilhantes trabalhos da série SYR, o
Sonic Youth se arriscou na interpretação de “Four(6)”, no qual cada um dos quatro
instrumentistas escolhem doze sons a seu critério e opera por indicações de tempo
flexíveis. São formas mais ou menos vazias, para que o próprio músico preencha a seu
critério. O resultado me pareceu excepcional, pois se há uma banda que sabe lidar com
timbres, chama-se Sonic Youth. “Four(6)” também foi executada pelo Zeitkratzer em sua
recente homenagem a John Cage, por parte da série intitulada ironicamente “Old School”,
juntamente com outra Number Piece chamada “Five” e uma composição de 1986,
“Hymnkus”. E o resultado tem tudo a ver com nosso assunto, pois trata-se de um
exemplo contundente de como os diálogos entre cultura erudita e popular de fato
desaparecem em algumas (poucas) expresssões musicais.

A interpretação de “Four(6)” na ótica do Zeitkratzer, ensemble que já interpretou Xenakis


(é bom lembrar…), consegue ser ao mesmo tempo mais suja, mais heterogênea e também
mais vigorosa que a do Sonic Youth. É claro que se trata de retalhos e sujeiras bem
diferentes, já que o Sonic Youth emprega até mesmo um trecho de “Wheels of
Confusion” do Black Sabbath. Tem, por assim dizer, um recorte mais histórico, ligado à
estética de colagem e excesso de informação embutida na elaboração do No Wave. Mas,
se é verdade o que escreve Alex Ross em seu célebre “The Rest is Noise”, embora o o
ponto de partida da composição de vanguarda se concentre nos aspectos formais
embutido no “Quatuor pour la Fin du Temps”, de Messiaen, é na cruzada pela violência,
o excesso, a feiúra, pela impureza como elementos transformadores da vida que esta
mesma vanguarda adquire relevância de fato. A forma passa a ser secundária em relação
à atitude, o que denota de fato a introjeção de aspectos da música popular, pelo menos no
que diz respeito ao jazz e ao rock. E nesse sentido, em sendo “Four(6)” uma obra
plenamente aberta à interpretação, quero dizer, deliberadamente dada à interpretação, o
que se ouve em Old School é ao mesmo tempo ousado e assustador. Tem ao mesmo
tempo o aspecto “clássico” das obras de Schoeberg e Alban Berg, timbradas por grandes
intérpretes como os do quarteto Arditti, mas conserva a aparência de improvisação
eletrônica e colagem das obras do pós-guerra. O que mais admira na interpretação do
Zeitkratzer é como eles não tem medo de errar, optando por escolher sons que facilmente
serão pré-julgados por gente da música erudita e da experimentação eletrônica, como
barulhos de máquinas combinados a instrumentação orquestral. O mesmo se pode dizer
de “Five”, outra Number Piece que tem por característica uma série de acordes sonoros
prolongados entremeados por longas pausas silenciosas. Aqui, a interpretação do
Zeitkratzer também se arrisca em referências diretas ao universo timbrístico do
eletrônico, particularmente quando ouvimos as vibrações elétricas de um amplificador
prestes a emitir uma microfonia compondo um acorde com um oboé. O resultado é
brilhante, mas igualmente estranho em relação ao universo de interpretações de John
Cage, incluindo ai a contundente versão executada pelo Leipziger Streichquartett.
“Hymnkus“, composta em 86, também se orienta pela utlização dos parênteses, abrindo
caminho para a aleatoriedade da execução e explicitando ainda mais as intenções do
Zeitkratzer, que é a de iluminar e revigorar a interpretação de Cage no âmbito do
eletrônico, ele que vem sendo mais homenageado pelos populares que pelos “eruditos”.

Há uns meses atrás, me referi na Camarilha ao que batizei como “música de


procedimentos”. É esta, me parece, a característica mais evidente de que há uma
comunhão de propósitos, técnicas e até mesmo resultados em relação aos universos
erudito e popular, não obstante o fato de que ainda se conserva esta divisão quase intacta.
O que me parece é que há sim aspectos musicais onde a comunhão é evidente, mas ambas
as esferas também possuem seus representantes, seus obstinados artesãos. Há uma
simultaneidade de contextos, o que não desautoriza os profetas da teoria da comunicação,
pelo contrário. É justamente a percepção de um oba oba saudável, quando muito
consideram o oba oba como algo necessariamente negativo. “But that’s not me”, como
diria a canção: de minha parte aprecio grandes celebradores do oba oba como Diplo,
Charlemagne Palestine, Pauline Oliveros e o Zeitkratzer. Podem achar estranho empregar
uma expressão que designa um sentimento prejudicial de desorientação e
inexequibilidade, mas podemos situar o oba oba também como uma bem-vinda
disposição para experimentar o que quer que seja, em qualquer tempo ou contexto. Neste
sentido, o oba oba formal que tomou conta do mundo dos sons, e que se desenrola nas
franjas do mercado bem como na sua periferia, é algo que me parece ao mesmo tempo
desafiador e estimulante. (Bernardo Oliveira)

Oren Ambarchi, Jim O’Rourke & Keiji Haino – Tima Formosa (2010; Black
Truffle, Reino Unido)
A capa, desenhada por Stephen O’Malley do Sunn 0))), não poderia ser mais adequada
para representar o som que vem deste álbum, gravado em 2009 no Japão. Três ícones da
música experimental em suas mais variadas vertentes, três alienígenas, escultores sonoros
do que há de mais interessante hoje na praça, se reúnem para produzir uma hora de
música. E o que fazer se não escolher a dedo os elogios mais desbragados: radiante,
intenso, arrebatador! Em três faixas homônimas e numeradas, o trio desenvolve uma
combinação prodigiosa de aspectos do drone, do ambient – particularmente, do dark
ambient – do noise e, ainda, da improvisação. De Ambarchi, o baixo e a guitarra
descaracterizadas, gravíssimas; de O’Rourke, o piano e o teclado prolíficos em timbres e
articulações; de Haino, as incursões vocais pavorosas e sons industriais ao lap top. Os três
criam texturas e momentos imprevisíveis, capazes de converter até mesmo o mais fiel
defensor da canção, de tanta exuberância e pulso firme que os três demonstram.

A primeira “Tima Formosa” trabalha com reprocessamento de sinais, próximos da


microfonia, graves do contrabaixo de Ambarchi com sons industriais e o vocal lívido de
Haino, para desaguar em um drone delicadíssimo, repleto de nuances. “Tima Formosa 2”,
a mais curta do disco, investe em uma textura que conta com três elementos básicos: uma
pianola desconjuntada, um som abrasivo, noise, bem mais alto que nas outras faixas, e
Haino destilando um vocal acentuadamente feminino. Lá pelo meio, Haino insinua uma
voz gutural, estilo filme-de-terror, ajustando o clima para a introdução à terceira faixa, a
mais interessante e barulhenta. Alternando ainda o “throat singing” com longas notas,
Haino dá o tom apocalíptico, até que o noise toma conta de tudo. Não se trata de mera
brutalidade, mas de uma sábia coerência que constrói progressivamente a tensão que
marcará o ponto alto da faixa, com o ritmo às estocadas. “Tima 3” culmina com um coro
de sopros estridentes e acaba com o vocal novamente apascentador de Haino, em direção
ao silêncio e aos aplausos.

Retomando a capa e a sua metáfora, a das três medusas que se ramificam em vários
tentáculos, resisto à tentação de lançar mão de um conceito deleuziano para afirmar que
Tima Formosa é um álbum rizomático. Quer dizer, não resisto, e é por aí mesmo: música
improvisada com extrema habilidade e domínio da composição, cerebral, mas construída
por retalhos de elementos mestiços, por ramificações de formas fragmentárias… Se ao
final da audição o sentimento geral é de uma perplexidade muda e até mesmo soturna,
nada impede que se festeje com alegria a chegada de um disco tão poderoso. (Bernardo
Oliveira)

Mika Vainio, Kouhei Matsunaga, Sean Booth – 3. Telepathics Meh In-Sect


Connection (2010; Important, EUA)
Como o Tima Formosa analisado semanas atrás, 3. Telepathics Meh In-Sect Connection é
um álbum de improvisação coletiva, que conta com três experimentadores de boa cêpa. O
que determina o sucesso destes encontros? É o que chamo de “cabresto”, isto é, o grau de
orientação e rigor nas modulações, a capacidade de manter a unidade conceitual mesmo
dando vazão a um certo automatismo, a um “deixar fluir” da técnica e da inspiração. O
que faz deste encontro uma experiência fascinante? O clima é lúdico-sombrio, marcado
por sons de máquinas, reais e imaginárias, como se reproduzisse a ambiência de um
laboratório, daqueles de filme de ficção científica. Perpassa todas as três faixas uma
estática distorcida, como uma rádio fora do dial, às vezes “estragada” pelo aumento sutil
do volume. Alguns momentos, as intervenções são mais agressivas, resultando em um
diálogo curioso com o noise. Porque sendo o volume elemento fundamental para produzir
a sensação de barulho, às vezes os músicos se esmeram em um noise de baixa
intensidade, realçando mais a qualidade do ruído – sujo, distorcido – do que explorando a
densidade sonora. Neste sentido, é evidente que o improviso de Kouhei Matsunaga, ora
com Mika Vainio, ora com Sean Booth, ora com ambos, tem a qualidade minuciosa de
realçar sonoridades ásperas, através de alternâncias drásticas de volume. Nesta
característica reside sua personalidade e seu trunfo. O que sobressai na soma dos
improvisos em álbuns determinantes do gênero, como Limescale por exemplo, é
justamente este elemento sintético, que não pode ser nem o som que cada um fez
isoladamente, nem mera integração de personalidades distintas, e que o álbum em
questão possui de sobra. (Bernardo Oliveira)

Janelle Monáe – The ArchAndroid (2010; Bad Boy/Wondalands Arts Society, EUA)
Para quem olha de longe, Janelle Monáe pode ser equiparada a cantoras como Beyoncé,
Estelle, Alicia Keys… Monáe, no entanto, não se limita ao diálogo com o rap e o R&B,
como suas contemporâneas. Embora enquadrada em um mega esquema publicitário, e
alusiva a uma tradição de cantoras americanas, Monáe é um pouco mais que um mero
badulaque pop. “Tighthope”, com a participação de seu maior incentivador, Big Boi
(50% do Outkast), abre o jogo e remete a moça imediatamente à linhagem de soulmans
inventivos como Prince, Stevie Wonder, Michael Jackson, Isaac Hayes… As múltiplas
habilidades, a liberdade para transitar entre os estilos, imprimindo-lhes no entanto um
sotaque indefectível, a quantidade absurda de modos, arranjos e instrumentos, a
habilidade em criar texturas diferentes de tudo e, ao mesmo tempo, populares… Soma-se
a isso a sua dança graciosa, influenciada por James Brown e Michael Jackson, mas que
também remete a outra tradição americana, o “musical theater” – não me parecem
gratuitas as alusões ao teatro, como a estrutura em atos, por exemplo. Monáe já havia
demonstrado personalidade no primeiro “ato”, o EP de 2007 Metropolis: Suite 1 (The
Chase), e até mesmo realizado uma ponta interessante no fiasco Idlewild, sobressaindo-se
como produtora e cantora. Ainda não era o suficiente para apresentar suas espantosas
habilidades – quem assistiu a moça no programa do David Letterman sabe do que estou
falando…

Vejo em Janelle Monáe os lampejos de uma tradição: os olhos arregalados de Louis


Armstrong, a segurança de Curtis Mayfield, a energia de Little Richard, a musicalidade
exacerbada de Stevie Wonder… Como songwriter e produtora, no entanto, ela esgarça o
espectro de estilos e inflexões, incorpora estilos inusitados do pop branco, como em
“Make the Bus”, colaboração esquizofrênica com o Of Montreal, no folk meio dream pop
de “57821”, com o Deep Cotton, e na emulação irônica de Joan Baez em “Oh Maker…”.
Mas esta abertura opera também nas músicas mais suingadas, como no hit “Tighthope”,
na faixa de abertura com o incompreendido Saul Williams e em faixas mais
experimentais como “Neon Gumbo”. Até mesmo quando brinca de ser vazia, na adorável
“Wondaland”, ela surpreende, criando uma Taylor Swift meio XTC (rs), com camadas
espêssas de instrumentos, variações e refrão pegajoso. A impressão geral é a de que
estamos diante de um nome diferente, daqueles capazes de assegurar muitas surpresas
mais à frente.

Mas são as primeiras nove ou dez faixas de The ArchAndroid que impressionam e
atestam esta diferença. A abertura megalômana, semelhante a de The Love Below,
conduz o ouvinte aos versos lépidos de “Dance or Die”, que emenda no pop-rock
delicioso de “Faster” (estilo Bangles! Sim, você leu certo…) e na steviewonderíssima
“Locked Inside”. Depois vem a soturna e bela “Sir Greendown”, “Cold War” com seu
ritmo frenético e outras já comentadas acima, como “Tighthope”, “Neon Gumbo” e “Oh
Maker”. Essa sequência permite compreender o conceito do disco, sua capa e razões para
tanta miscelânea. Trata-se da imaginação privilegiada de Monáe apostando as fichas na
própria capacidade, criando seu próprio recorte do caldeirão de estilos da música norte-
americana, pelo excesso. Juntamente com a superatividade de Prince, a música de Monáe
evoca o primeiro disco de Carlinhos Brown, um artista semelhante em aspectos
fundamentais (multifacetado ao exagero, popular e experimental). Não é à toa que ambos
utilizam indumentárias e adereços em seus discos que se referem a uma comunhão de
valores antigos e atuais. Antiguidade e ciborgues, mas mediados pelo poder atávico das
canções. Que Janelle Monáe venha e para ficar. (Bernardo Oliveira)

Zeena Parkins – Between the Whiles (2010; Table of the Elements, EUA)
Os que estão familiarizados com o trabalho e a quantidade de sons que Zeena Parkins é
capaz de extrair de sua harpa, não se surpreenderão com Between The Whiles. O mesmo
esmero e criatividade demonstrados em álbuns como Necklance e Pan-Acousticon,
respectivamente de 2002 e 1999, e se pode até dizer que igualmente poderosos. Podemos
também reconhecer um traço distintivo na obra de Parkins, que me chamou atenção
particularmente em Between the Whiles, que é a orientação especificamente dramática
impressa na alternância de climas e texturas. Pudera. Seu trabalho vem sendo utilizado
por coreógrafos como acompanhamento, algumas vezes composto especificamente para
seus balés, como no caso de Necklace, para a Compagnie Sui-Generis de Emmanuelle
Vo-Dinh. Mas o conjunto da obra, levando em conta a variedade de colaborações e
trabalhos realizados para teatro e dança, nos faz supor que, para além dos requisitos que o
trilheiro deve cumprir para entrelaçar os sons e o drama, a música de Parkins extrapola a
encomenda e acaba por manifestar um senso de dramaticidade incomum na música
instrumental. Por outro lado, se pode afirmar também que, mesmo sendo composta para
espetáculos de dança – no caso, de Vo-Dinh e John Jasperse – esta música possui uma
evidente autonomia em relação a seus propósitos dramáticos. Basta escutarmos a
construção rigorosa de “Glass”, para nos perguntarmos se se trata de uma composição
propriamente dita ou de obra improvisada ao sabor de alguma cena, devido a sua
estrutura errante e sensível a mudanças. “Vibratory”, a faixa seguinte, alterna um
dedilhado grave com noise do mais irascível, enquanto “Wire” e “Bubble” mantém um
diálogo mais acentuado com a música erudita contemporânea, particularmente com a
música eletroacústica. Se essa quantidade de variações pode indicar, por um lado, a busca
pelos sons mais adequados, por outro, livres que estamos das coreografias, podemos
simplesmente fruí-las como peças independentes de um vocabulário musical desbravador.
Por este caráter dramático, mas ao mesmo tempo, atento a tarefa de descobrir sons e
combinações, Between the Whiles é em 2010, o que foi Black Telephone of Matter, de
Mika Vainio, em 2009: uma pletora de ruídos, manipulados de forma a esgarçar os
limites da composição musical. (Bernardo Oliveira)

M. Takara 3 – Sobre Todas e Qualquer Coisa (2010; Desmonta Discos, Brasil)


Quando o som que sai das caixas conduz o ouvinte a um estado contemplativo onde não
importa quem toca o quê, se é influenciado por tal ou tal compositor, se se trata de
música brasileira, hindu, whatever… Quando toda e qualquer comparação deixa de fazer
sentido, denunciando apenas que o que mais desejamos é alguma referência, alguma bóia
no meio do oceano que transmita um mínimo de conforto e segurança… Bem, neste
exato momento você, como eu, tem a plena certeza que está diante de algo que deve,
antes de mais nada, ser usufruído, admirado, algo que abre a percepção para o deleite e
que, em muitos aspectos, conduz a um estado que se opõe a toda e qualquer
racionalização. Talvez… Não, com toda certeza, este é um dos limites da crítica: elogiar
é tarefa mais complexa que apontar defeitos. Desarmado o espírito, toda e qualquer forma
de reflexão se encontra momentaneamente suspensa. Ao que tudo indica, este é o caso de
Sobre Todas e Qualquer Coisa, que pode ser considerado o trabalho chave da carreira de
Maurício Takara, mas também para quem quiser entender a dinâmica da produção
musical nos dias de hoje. Não que a palavra “música” seja um conceito fechado, que o
crítico, com suas ferramentas teóricas, desconstrói, isolando alguns artistas especiais da
grande massa de artistas regulares ou irrelevantes. É claro que algumas sonoridades
acabam sobressaindo como espécimes raras em relação ao contexto. Não importa,
portanto, comparar o trabalho do M. Takara 3 com o Four Tet, com o Black Dice e até
mesmo com o Hurtmold. Desta forma, o elogio é um exercício simplório que, num
arroubo de autocrítica, admito exercer algumas vezes por esta Camarilha de Deus…

O título do álbum indica um caminho: “sobre todas as coisas”, sobre a capacidade de


absorver as ondas múltiplas que sobrepõem-se no cenário musical, mas também nutrir
uma atitude saudável perante o caso específico, o caso único, aqueles que produzem a
diferença. Ao mesmo tempo, “sobre toda” e “qualquer coisa” no mesmo período, pois
não se trata de um manancial de influências sintetizadas, mas uma síntese que é faceta
autônoma, que até mesmo ultrapassa as tais “possibilidades” trazidas pelos ventos do
norte. A música feita no Brasil, sobretudo a que dialoga abertamente com a música
americana e inglesa, sempre foi encarada como “mistura”. Mas esta separação não parece
fazer sentido, levando em consideração que em toda mistura, dois ou mais elementos
diversos são combinados, o que não é o caso. Esses barulhinhos eletrônicos, essa
polirritmia, o caráter de estranheza das combinações de timbres, as melodias esquisitas,
orientalizadas, o vocal meio largado, e até um sotaque eventualmente acessível de “Na
Avenida” e “O Rei da Cocada”: o que se ouve nos instrumentais e canções de Sobre
todas… é resultado de pesquisas desenvovidas por mais de dez anos, que antes, de fato,
lembravam células e estratégias cunhadas por nomes como Rob Mazurek e Kieran
Hebden, mas que hoje se apresentam com uma força própria. Que força é essa, de onde
vem, é o que menos importa.
Uma voz interna poderia dizer: “todas as faixas são arrebatadoras e, ao contrário dos
discos anteriores, fazem sentido por toda a audição, se reúnem em um conceito próprio e
únivoco.” Esta seria a voz daquele que, como eu, simplesmente confirmou e extrapolou
suas perspectivas (sim, os discos anteriores não me pareciam conceitualmente bem
acabados). Mas basta ouvir “Eu não”, com sua melodia melancólica e aquelas palmas
preciosas, combinadas à percussão econômica e inteligente, ou os jogos de efeitos de
“Repito” e a “gagueira” de “Anticope”, para chegarmos a conclusão de que Sobre
todas… confirma a proeminência de Maurício Takara na criação de uma música nova,
com personalidade independente e, em certa medida, brasileira. Um ar de laboratório,
terreiro de samba, música urbana, protótipos sonoros, sonoridades fake, levadas de som
roqueiras, sutilezas eletrônicas, surrealismo, coros inusitados e o emprego prodigioso das
vozes. Sobre todas e qualquer coisa termina com um funk árabo-serial (rs), “Pelos
Cantos”, e o título, mais uma vez, me fornece a senha: pelos cantos, porque é a ciência o
mote, é a experiência quem manda, porque a rua anda cheia demais, barulhenta demais…
(Bernardo Oliveira)

Big Boi – Sir Lucious Left Foot – The Son of Chico Dusty (2010; Def Jam Records,
EUA)
Não dá para fingir, apenas por uma questão de pragmatismo, que este é o primeiro disco
solo de Big Boi. Não é. Em Speakerboxxx ele já demonstra muitas das habilidades como
rapper e produtor que fazem boa parte da graça deste Sir Lucious… Também não dá para
fingir que toda a estratégia de lançamento, com a aparição esperta ao lado de Janelle
Monáe e o refrão emo do hit, “Follow Us”, não turbinou o disco para além do seu
verdadeiro estatuto. Não é que Sir Lucious… não seja um disco muito, muito saboroso e
eventualmente surpreendente. Mas também não dá para deixar de reparar que um certo
nível de “vagabundagem” – um suingue fácil, um teclado estratégico, um coro exagerado
– perpassa o disco inteiro. Em algumas faixas, essa inclinação para o óbvio funciona, ora
sob uma execução vigorosa e precisa, ora sob um refrão pegajoso que não sai nem da
cabeça, nem do mp3 player, mais geralmente por conta de uma ironia, uma irreverência
que casa muito bem com o estereótipo do rapper norte-americano. No entanto, não raro
temos a sensação de que algumas linhas fogem do esquadro, e algo acaba por se repetir
mais como farsa, do que como convicção. Mas o que intriga mesmo é, por exemplo,
“Night Night”, que se posiciona bem no meio das duas possibilidades. Dois sujeitos
discutem, um deles preso por porte de cocaína, corta para guitarrinhas mela cueca estilo
anos 80, teclados de igreja, gravão estilo funk carioca e, de repente, por obra da divina
providência, surge uma batida muito bem dosada no grave e marcada no aro da caixa que
redime e transforma toda a parafernália de pre-sets comuns em algo além. Conforme a
faixa vai evoluindo, percebemos uma série de detalhes que, a princípio, seriam
incompatíveis com o lugar comum da introdução, como a estranha participação da
cantora americana Loi, e do rapper B.o.B.. É nesta corda bamba entre a vulgata do rap e
sua exploração criativa, que se situa o hip hop de Big Boi. Funciona muito bem em
“Tangerine”, “Follow Us”, “You Ain’t No DJ”, “Turns Me On”, mas tropeça em “Shine
Blockas”, “Daddy Fat Sax”, “Theme song”. Depois de algumas audições, no entanto, é
inevitável reconhecer que mesmo o exagero pop das faixas listadas acima podem
funcionar como “guilty pleasure” ou como poderoso estimulante para as pistas de dança.
Soul e flow o rapaz tem de sobra, e Sir Lucious… confirma seu talento mais do que o
revela, como os marketeiros querem nos fazer crer. (Bernardo Oliveira)

Lean Left – The Ex Guitars Meet Nilssen-Love/Vandermark Duo Volume 1 (2010;


Smalltown Superjazzz, Holanda)
Dos perigos da improvisação, poderíamos ressaltar que muitas vezes ela manca de
sentido, mas não de um sentido cronológico ou explicativo. Quando alguém reclama que,
por exemplo, um filme não faz sentido, subjaz no mais das vezes o tipo de juízo que
procura na obra um sentido lógico minimamente organizado, gradual, que informe por a
mais b o seu significado. Na improvisação, muitas vezes a abstração leva alguns à
loucura, porque a liberdade de improvisar aqui corresponde à produção de sons que não
compactuam nem com a canção, nem com o padrão de improvisação do jazz, palatável
em muitos casos. O fato é que este álbum do Lean Left inverte essas premissas, quero
dizer: ao invés de cobrar sentido, muitos ouvintes pedirão mais inconsciência, mais
“liberdade” de criação. Mas o fato é que, como em outros casos de free-improv já
comentados na Camarilha, trata-se de um trabalho onde o espetáculo se faz no equilíbrio
entre o improviso e a rédea curta do conceito.

Nas primeira faixa, por exemplo, executadas pelo Nissen-Love/Vandermark duo,


percebe-se que ao invés de investir em sonoridades mais abstratas e cacofônicas, a dupla
tenta explorar dinâmicas e ritmos mais regulares, construindo padrões e explorando-os
conforme o grau de improvisação incrementa a execução. Esta premissa subsiste em
“Lean Over”, a segunda faixa, já com a colaboração da outra dupla de guitarristas, na
qual o sax de Vandermark cria um padrão melódico que será explorado metodicamente.
Entra em cena um dos trunfos do disco, que é a interação entre a bateria e o saxofone
com as guitarras de Andy Moor e Terry Ex: ao invés de acrescentarem o peso de seus
instrumentos, a dupla dialoga com o sax e a bateria, extraindo mais ruídos – percussivos,
férreos, “eletrônicos” – do que propriamente notas e acordes. Este diálogo marcará a
faixa mais poderosa do álbum, o tour de force “Right Lung” e o encerramento, com
“Lean Leftover” e seu final inacreditável, com uma das guitarras emulando o som de um
relógio, como se durante os pouco mais de quarenta minutos, os músicos estivessem
projetando, cronometrando passo a passo sua “improvisação”. Difícil não assimilar sua
improvisação como algo curiosamente programado. Por esta pronunciada peculiaridade,
o Lean Left pode ser considerado com este trabalho uma das assinaturas mais
contundentes da música improvisada na atualidade. (Bernardo Oliveira)

Weasel Walter Septet – Invasion (2010; ugEXPLODE, EUA)


Weasel Walter não é propriamente uma agradável surpresa no ramo da improvisação. O
Flying Luttenbachers, grupo que lhe conferiu notabilidade na década de 90, alternava
composição e improviso com até mais instrumentos dos que hoje formam o seu septeto.
Portanto, não constitui exatamente uma novidade que este Invasion traga uma hora e dez
minutos de improvisação com uma formação “orquestral”. Entre aspas, pois não se trata
de uma orquestra, mas da exploração contumaz de dinâmicas harmônicas plenamente
identificadas com as orquestras de jazz.
“Nautilus Rising”, faixa de mais de 30 minutos, apresenta ao ouvinte uma sucessão de
momentos da mais pura violência musical. Tanto nos ataques uníssonos do início, quanto
na diatribe que toma conta da faixa em sua metade, o ouvinte é situado em um contexto
em que fica muito difícil diferenciar o que é improviso e o que é composição. A
colaboração proeminente do guitarrista Henry Kaiser, destaque absoluto do álbum, toma
a faixa de forma contundente, ora colaborando para amplificar as camadas de sopros e
percussões, ora para guiar o momento mais silencioso, lá pelos 20 minutos. A faixa
termina da mesma forma que começa, o que indica que a improvisação é guiada por
alguma espécie de notação referente ao tipo de ataque, ou ao desenho rítmico ou
melódico a ser seguido pelos músicos. O resultado é exuberante, rico, evocando vez ou
outra o ensemble de Bill Dixon ou ainda Sun ra. Mas com uma pegada que se afigura por
vezes de forma irônica ou circense, nunca sisuda. Tudo parece uma grande festa, uma
grande galhofa.

Esta pegada irônica permanece na segunda faixa, “Flesh Strata”, onde Kaiser novamente
sobressai, mas há a participação também do saxofone soprano virtuoso de Vinni Golya,
que costura um solo no meio da polirrtimia destilada por Walter e William Winant, que
executa a segunda bateria. Da confusão para a parcimônia bêbada de “Cleistogamy”, a
menor do álbum, percebe-se a mobilidade com que o grupo aborda cada um dos temas.
Mas a faixa-título já retoma o aspecto cacofônico das faixas anteriores e prepara o
ouvinte para mais vinte e dois minutos de uma improvisação alucinada, mais
conservadora, é bem verdade. Digo: mais parecida com algumas outras orquestras de
improvisação ou com o tipo de desenvolvimento que elas tomam quando se trata de
muitos instrumentos em conjunto.

Não há dúvida que o tipo de improvisação contida neste álbum extrapola o conteúdo
“improvisacional” e remete o ouvinte a uma dimensão em que a composição se insinua
no mesmo passo que o caráter selvagem do free jazz. Se é verdade, como venho
martelando aqui na Camarilha, que a improvisação hoje requer mais consciência e
planejamento do que espontaneidade, então a diferença que o septeto de Walter Weasel
nos traz é a constituição de um limiar em que as texturas, as harmonias, os climas,
desenvolvem um diálogo aberto entre composição e improvisação. O que já reserva a
Invasion um espaço privilegiado no que de melhor se produziu na seara da improvisação
em 2010. (Bernardo Oliveira)

Daniel Menche – Hover (2010; Touch, Reino Unido [EUA])


A obra de Daniel Menche possui a notável particularidade de dialogar com sons naturais,
mas revestindo-os de uma intencionalidade latente, quase que mastigada para o ouvinte.
E como intencionalidade rima com artificialidade, percebe-se esta inclinação na
acentuação dos timbres, dos farfalhares, explosões, incinerações, quebras, dobras e afins,
que se agitam na superfície sonora de suas peças. Esta faceta bem conhecida de sua
produção musical pode ser devidamente conferida e apreciada nas duas faixas de Hover,
inclusive a que batiza o álbum. Em seus dezoito minutos, podemos escutar o produto de
um desenvolvimento que se iniciou nas aulas de coral que Menche ministra em Portland,
Oregon, quando gravou e manipulou as vozes de seus alunos emitindo as vogais A-E-I-
O-U. Menche adicionou um órgão Hammond para suprir o grave que falta as vozes
pueris, mas de tal forma que a peça se encaixa perfeitamente no rol das sonoridades
“orgânicas”, dinâmica comum a todos os seus trabalhos. “Hover” não chega a empolgar,
mas apresenta dinâmicas sonoras muito interessantes. Seu interesse, no entanto, se amplia
ainda mas pela inclusão da faixa seguinte, “As is”. À primeira vista, um mero sample, um
gadget sonoro retirado da matéria prima para a obra com a duração maior, “As is”, no
entanto, parece mais do que isso. Sua inclusão faz pensar que o álbum em questão denota
ou uma anomalia no corpus générale, ou uma exacerbação das premissas originais. Em
“As is”, a intencionalidade é como que escancarada para em seguida constituir um
trabalho autônomo, uma experiência na qual acaso, composição e happening se unem
para formar um acontecimento musical dos mais relevantes do ano. É evidente que uma
incômoda discrepância se revela entre o produto final, “Hover”, e sua matéria prima, “As
is”, mas talvez não devéssemos apostar neste jogo de causalidade entre obra e matéria-
prima. De outra forma, considero que a vivacidade de “As is” revela, em primeiro lugar,
um aspecto de jogo: não se trata tanto de reportar aos ouvintes a experiência pregressa,
mas de inserí-los no movimento de criação da obra. Também podemos destacar que “As
is” pode ser compreendida como uma obra de field recording, mas também como uma
improvisação dirigida, composta para a voz humana. Durante o século XX, compositores
como Stockhausen, Xenakis e Penderecki buscaram criar outras atmosferas e
possibilidades formais para a composição vocal, mas o que ocorre aqui é algo da ordem
da composição que dialoga com outras ordens, mais especificamente a ordem do
improviso. Esta é a riqueza que faz de “As is” um evento musical tão adorável quanto
“Brothersport” ou “Enfants”, de Villalobos, duas obras que aliam experimentação e um
certo grau de doçura juvenil, por assim dizer. Não somente porque trabalha com vozes
pueris, mas porque insere esta voz em uma obra impregnada de diferença, sobretudo se
compararmos com o contexto atual da composição contemporânea. (Bernardo Oliveira)

Phonophani – Kreken (2010; Rune Grammofon, Noruega)


Não é exatamente o ecletismo errante o que mais me fascina nos trabalhos de Espen
Sommer Eide. Ele já transitou com destacada desenvoltura pela ambient, pelos clicks and
cuts, pela música abstrata e diversas outras formas de exploração da música eletrônica,
até mesmo na seara do post rock do Alog, projeto que divide com seu conterrâneo, o
guitarrista e vocalista Dag-Are Haugan. Também não se destaca pela abundância, não é
um Machinefabriek da vida, que produz doze álbuns por ano, pelo contrário: tanto no
Alog como sob o pseudônimo Phonophani a discografia de Sommer Eide é parcimoniosa.
E mesmo que se possa enaltecer o pulso firme com que conduz seus trabalhos, que
passam da ambient mais etérea ao noise fragmentário como num passe de mágica, sem
grandes sobressaltos, esta ainda não é a característica que faz de Kreken um álbum do
maior interesse.

O tom pastoral das composições se equilibra com uma dinâmica cadenciada, mesmo
quando se escondem por trás de uma timbragem abrasiva e deliberadamente manipulada.
Às vezes, o tom da composição é mais abstrato, mas algumas qualidades aparentemente
distantes se insinuam, como em “Nold”, ao mesmo tempo abstrata e ambient, mas que
não esconde as modulações evocativamente melódicas. “Vuku” conta uma trama
harmônica formada com sons de gameboy, levemente desencontradas, mas que aos
poucos sugerem uma surpreendente estabilidade de composição. “Kvaale II” retoma o
tema minimalista da primeira parte, lançando mão de percussões com sons de madeira.
“Mendel” e “Tuv” são faixas mais cerebrais, a primeira explorando sínteses entre vozes e
sons eletrônicos, a segunda mantendo um forte diálogo com a música de Brian Eno.

Kreken carrega o nítido interesse de Sommer Eide em borrar as fronteiras entre as


concepções tradicionais de “acústico” e “eletrônico”. De um ponto de vista
exclusivamente estético, os pianos preparados de John Cage também realizam essa
crítica, produzindo um tipo de manipulação que altera não exatamente o som, mas o seu
sentido, quero dizer, a forma mais rasteira com que eles são compreendidos e escutados.
Sommer Eide trabalha de forma muito sutil essas ambiguidades, e a partir de
“Gubijinso”, o álbum dá uma guinada para faixas mais abrasivas e barulhentas, como a
intrigante “Blafat” e seu jogo de pratos e vozes, ou ainda os sinos rebuscados de
“Neverdal”, todas trabalhadas sob uma indefinição acentuada entre o que se trata de
timbre gerado eletrônica ou acusticamente.

Qual seria, então, a característica principal de Kreken se não o intenso equilíbrio entre o
brilho estranho dos seus timbres e o paradoxo de suas composições, abstratas e
melodiosas ao mesmo tempo? Esta força vem a ser, me parece, o fruto de uma pesquisa
extremamente acurada que passa pela composição e pela extração de sonoridades que
muitas vezes surpreende o ouvinte não através de saltos e sobressaltos, mas com uma
assustadora naturalidade. Talvez esta mesma naturalidade corresponda àquilo que mais
estranha o ouvido em Kreken, álbum que pode ser classificado como um verdadeiro
objeto não-identificado na música lançada em 2010. (Bernardo Oliveira)

DJ Nate – Da Trak Genious (2010; Planet Mu, Reino Unido [EUA])


O frescor do Juke não pode ser comparado com o frescor do artista que encabeça esse
álbum. São coisas diferentes que merecem tratamentos diferentes. Da mesma forma como
somente tempos depois nos apercebemos da peculiaridade de Burial em relação ao
dubstep, que não impediu que ele emergisse circunscrito a esse contexto, o mesmo ocorre
com DJ Nate: ele não se reduz ao juke e isto fica evidente quando, embevecidos pela
novidade, acabamos correndo atrás de outros artistas que operam na mesma seara. E, de
fato, Nate é especial. Se podemos caracterizar o juke como uma música orientada para o
footworkin’, a dança característica do gênero, e se, como shangaan e o bubu africanos,
essa dança requer uma aceleração radical dos patterns (chegando às vezes a 160 BPMs),
cabe então compreender em que sentido a música de Nate se diferencia da grande maioria
dos produtores do gênero. A velocidade é comum a todos, mas Nate se destaca por alguns
motivos.

Enquanto a maioria dos produtores do juke apostam na regularidade do ritmo, na


equalização quase respeitosa do baixo, da bateria e dos samplers, Nate esbanja talento na
estratificação e destaque parcial destes elementos. Em vários momentos percebemos que
ele cria um jogo super frio e estratégico de adição e subtração de graves, vozes e
percussões, predicando diversas vezes aos sons mais melódicos a orientação do ritmo. Ao
mesmo tempo, Nate se esmera em criar fluxos de repetição que dialogam de forma
admirável dentro das faixas, notadamente com as vozes, criando uma atmosfera que
poderíamos batizar provisoriamente de serial – sim, pois num certo sentido, as faixas de
Da Trak Genious são constituídas por estes fluxos, combinados virtuosamente, segundo a
dinâmica de adição-subtração apontada acima. Uma outra característica curiosa é que,
mais que qualquer outro produtor do juke ou de seu primo-irmão, o guetto house, o
trabalho de Nate é permeável às diversas inflexões do R&B e até mesmo do Miami, não
no ritmo, como era de se esperar, mas nos aspectos melódicos e harmônicos. Vozes,
coros, refrões são marcados por esta característica que confere um sabor estranho às
faixas, como se estivessemos diante de um minimalismo juvenil e, apesar da pouca idade,
maduro e assertivo.

Assim como cultuamos hoje álbuns como Timeless e Burial, penso que Da Trak Genious
é uma espécie de marco inicial, não de um gênero, mas de um artista. Tem-se a certeza
deste pioneirismo, bem como de sua contundência, assim que começa “Back Up Kid”,
com sua introdução especialmente lenta e adocicada, rachada ao meio por uma saraivada
de graves, lembrando o wonky em alguns aspectos. Na sequência, a sonoridade mais seca
e sombria de “U Ain’t Workin Wit Nuthin” mostra que a paleta de Nate é mais
heterogênea do que seu minimalismo pode fazer supor. Natural que a partir da décima
música nos perguntemos até onde é possível chegar diante de tanta testosterona,
alimentada pelo caráter ensandecido das repetições. Justamente quando entram faixas tão
saborosas como “3 Peat” e seu vocal subaquático, a frenética “Let Me Show U Girl” e a
versão inacreditavelmente dessensualizada de “Sexual Healing”. Todas preenchendo os
ouvidos e a mente de uma tenebrosa perturbação, que se transforma em delírio puro
calcado em repetições abusivas, percussões eletrônicas extremamente sintéticas e uma
vitalidade de fazer inveja ao mundo dos “critical beats”. E tudo isso concebido pela
cabeça de um pirralho de 20 anos, cujo epíteto “promissor” não parece fazer justiça a sua
criatividade. (Bernardo Oliveira)

Vários artistas – Ecstatic Music of the Jemaa El Fna (2010; Sublime Frequencies,
EUA [Marrocos])
Jemaa El Fna (“o ponto de encontro dos mortos”) é uma feira considerada um dos mais
espetaculares locais de encontro do planeta, que concentra comerciantes e artistas de
diversos gêneros, tipos e com as mais variadas intenções. A presente coletânea nos revela
três nomes, Troupe Majidi, Amal Saha e Mustapha Mahjoub, que executam o chaabi, a
música popular do Marrocos, tradição de que fazem parte nomes como Nass El Ghiwane,
Lemchaheb, Jil Jilala e Larssad. Ecstatic Music of the Jemaa El Fna é mais um
lançamento do selo americano Sublime Frequencies, compilando artistas do continente
africano, nesse caso especificamente de Marrakech, tradicional cidade do Marrocos.
Alguns artistas apresentados aqui já haviam aparecido no DVD Musical Brotherhoods
From the Trans-Saharan Highway, de 2008, feito a partir de filmagens registradas em
2005. (B.O)

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Existe toda uma precaução a ser tomada quando abordamos um universo musical do qual
temos apenas um recorte. Um recorte sem pano de fundo, sem ramificações que nos
autorizem a analisar que tipo de influência forma essa sonoridade. Há também que se
ressalvar, como em praticamente todos os lançamentos da Sublime Frequencies, a forma
de captação, gravação e equalização empregada, de que forma ela altera o sentido
originário de uma sonoridade produzida para ser tocada na rua, para exprimir e induzir ao
êxtase. Mas não o faremos. Simplesmente enalteceremos a beleza urgente dessas nove
faixas como se não houvesse amanhã… É um procedimento crítico duvidoso, mas
quando o espírito é desarmado por obra de um acontecimento musical, basta escutar as
musas…

A primeira vez que se ouve a faixa “Essiniya” do grupo Troupe Majidi, a gente pensa
assim: “C*! Pqp#@$%!!!”. Depois, passado um tempo, as hipérboles pouco educadas são
substituídas por uma curiosidade mortal, não só para conhecer mais sobre o grupo em
questão (quem? por que? como?), como também o tal “rendez-vous dos mortos”, onde,
reza a lenda, acontece de tudo. O título do álbum justifica os palavrões. Se o êxtase é
excitação dos sentidos e arrebatamento emocional, o que faz com que muitas pessoas
liguem este sentimento diretamente à religião, então podemos afirmar sem sombra de
dúvida que a música pode ser também uma eficaz indutora do êxtase. Exemplos não
faltam, pelos quatro cantos. Mas o que há de específico no chaabi do Troupe Majidi é
esse alaúde eletrificado, essa batucada alucinada, esses refrões entoado aos gritos…
Parece que o êxtase aqui não é algo que se alcança, não é um resultado, mas ao contrário,
é o motor da música. O êxtase constitui o tema e depreende a visão de que é para isso que
a música é feita. O arrebatamento é promovido essencialmente pela execução, e isto fica
evidente nas vozes, na percussão frenética, no alaúde cheio de pressão.

Não obstante minha ignorância em relação ao chaabi, posso perfeitamente admirar a


beleza dessa música e, ao mesmo tempo, intuir que o ritmo e as melodias são produto de
uma dinâmica cultural complexa. Longe de mim querer afirmar que aqui encontramos
uma dimensão originária da música, uma intenção primeva e ancestral. Mas que, de fato,
a música que atinge um tal grau de dramaticidade, nos remete a uma espécie de “função
original”, isto é, a uma dimensão em que a música não é simplesmente uma trilha sonora
para a vida, nem uma prática altamente formalizada, mas uma espécie de técnica cultural,
um bálsamo humano, demasiado humano. Se prefiro me referir a essa música utilizando
critérios estéticos, negligenciando a distância cultural entre Brasil e Marrocos, é porque
este álbum me flagrou em pleno vôo, desarmado. Nada mais justo que lhe renda
homenagens por seu conteúdo imediato e avassalador. (Bernardo Oliveira)
Actress – Splazsh (2010; Honest Jon’s records, Reino Unido)
Desde o início da década passada, o inglês Darren J. Cunningham se apresenta como DJ e
produtor, ao lado de amigos como Kode 9. Cunningham debutou em 2004, lançando seu
primeiro álbum homônimo como Actress, no mesmo ano em que abriu a Werk Discs,
lançando nomes como Radioclit e Zomby. Quatro anos depois lançou Hazyville, agora
Splazsh, pelo selo de Damon Albarn, Honest Jons. (B.O.)

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Darren Cunningham não é exatamente um nome novo na seara da música eletrônica, mas
desembestou a lançar eps em 2010 (dois, na verdade), e em maio deste ano, lançou seu
segundo álbum, Splazsh (ou terceiro, já que o primeiro, de 2004, é um 12” com 6
faixas…). Mas ele esteve com Kode 9 em 2004, quando ambos já produziam na seara
daquilo que viria a se chamar dubstep. Ocorre que, não sei por qual obra do destino,
Cunningham se tornou owner do selo independente Werk Discs, responsável por
lançamentos do calibre de Zomby, Lukid e Radiocrlit, e estacionou seu trabalho por
quatro anos, retornando em 2008 com o intrigante Hazyville. O período como owner
deve ter lhe feito muito bem, pois tanto Hazyville quanto Splazsh trazem uma sonoridade
única no universo eletrônico mundial.

Splazsh tem a estranha característica de misturar pequenos aspectos de gêneros e ritmos


em um todo geralmente muito expressivo, repleto de timbres protuberantes, utilização
alucinada do estéreo, estruturas de composição ousadas. Rótulos como Glitch-Disco e
Noise-Dub não foram suficientes para dar conta do que Cunningham preparou neste
álbum. De uma forma geral, é este elemento que sobressai em seu trabalho, qual seja, a
habilidade de produzir, com um certo sotaque pop, os mais improváveis amálgamas da
cena eletrônica atual. Em seus álbuns, algumas faixas constituem verdadeiros desafios
para rotuladores. É o caso da bizarra “Wrong Potion”, da abrasividade dos clicks and cuts
com uma roupagem serialista em “Supreme Cunnilingus”, do dub atmosférico sem graves
de “Hubble”, da drone-ambient na dobradinha “Futureproofing” e “Bubble Butts And
Equations”, do 2-step esquizofrênico de “Get Ohn (Fairlight Mix)” e do devaneio
oitentista de “Purrple Splazsh”. Sem contar a faixa final, a breve e incômoda “Casanova”,
uma trama repleta de pausas estranhas, ruídos e sintetizadores.

Dito assim, parece que Cunningham se aproxima do olhar histórico do incógnito Zomby,
mas somente enquanto opera claramente sobre um recorte histórico. Pois enquanto o
espectro temporal de Zomby remete às primeiras raves da década de 90, Cunningham
está mais atento para a cena contemporânea. E até mesmo o flerte com a música dos anos
80 tem um apelo evidente à atualidade da música eletrônica, embebida nos timbres
agitados do Synthpop e da New Wave. Mas o que Zomby tem de vivacidade,
Cunningham tem em esperteza e sede pelo novo. Splazsh testemunha não só seu vigor
criativo, mas também o caráter inquieto de sua personalidade artistica. Estaremos diante
de uma eminência parda do dubstep, que se manteve à parte para conservar liberdade
criativa? Não são poucas as evidências de que isto seja verdade, basta escutar os
primeiros singles de Kode 9 e o 12” de 2004 para perceber que o seu retorno em 2008
trouxe à tona possibilidades deixadas de lado pelos pioneiros do dubstep: o mesmo
diálogo com os sintetizadores, o grave nem tão proeminente, os ritmos mais
sequenciados, herdados do 2-Step… (Bernardo Oliveira)

Oval – O (2010; Thrill Jockey, EUA [Alemanha])


A música como produto de um procedimento específico, claramente proposto pelo autor,
de forma a fazer parte do próprio resultado sonoro. A música composta como uma forma
de iluminar o percurso, e não o ponto de chegada, que se ampara mais na sua própria
construção do que nas estruturas de composição, mas que ao fazê-lo, demanda do ouvinte
uma análise para além da recepção imediata. Eis o que venho considerando a “música de
procedimentos”, uma modalidade que não é exatamente nova em termos de composição,
mas que o incremento dos equipamentos eletrônicos e das possibilidades de manipulação
de dados vem notoriamente ampliando. Muitos são os compositores no passado que
investiram nesta possibilidade, como Stockhausen, Delia Derbyshire, Pauline Oliveros,
Glenn Branca, John Cage, etc. A lista é longa. Mas atualmente não se trata de uma
possibilidade marcante, geralmente acompanhada por uma autoria que a reforça. Trata-se
de um estado de coisas, uma situação para o qual O surge como um exemplar penetrante,
que renova não somente o trabalho do autor, mas também as possiblidades de se pensar a
música sob outros ângulos. Se isto é verdade, ainda assim podemos ressaltar o nome de
Markus Popp entre os compositores mais instigantes dos últimos vinte anos, pois além de
pioneiro na elaboração de métodos de conversão de dados não-musicais em som,
tematiza estes procedimentos, tornando-os centrais em sua música.

Por outro lado, é certo que O possui toda uma aura inaugural, a começar pelo título, que
segundo o próprio autor pode ser concebido como uma espécie de marco zero. O
considerável espaço de tempo entre Ovalcommers, de 2001 para este O e o EP Oh,
também de 2010. E, de fato, parece que O exprime uma mudança radical na obra de
Popp. A duração e o fôlego de suas sententa faixas, como se o autor estivesse escrevendo
a suma de sua obra, ainda que às avessas, testemunha um processo de reconstrução onde
o excesso opera como motor da ruptura. Se antes a música de Oval era, em suas próprias
palavras, uma música 3D, que levava em consideração um tríptico formado pela criação,
o processo e a recepção, desta vez o aspecto musical se fortaceu de tal forma que é
possível atribuir ao disco uma qualidade musical proeminente em relação aos álbuns
anteriores – co-estendendo esta novidade ao ep Oh. E isto se comprova não somente
através de informações contidas no release do disco, onde se pode verificar que Popp não
criou uma plataforma de conversão, mas operou sobre um PC repleto de sons, mas
também pela própria riqueza musical. São impressionantes a intrincada imprecisão das
tramas polirítmicas, a mescla perfeita e bem dosada entre sons de comuns (de bateria, de
teclado) e timbres inusuais – mais especificamente, cordas truncadas em pizzicato e
tapping e timbres de piano que possuem algum laço com os pianos preparados de Drukqs
– e, sobretudo, a manipulação dos volumes, que, juntamente com a beleza das texturas e
timbres, estabelece um jogo entre tensões e distensões que imprime no álbum um caráter
bastante diferenciado em relação aos primeiros álbuns do Oval. Uma mudança radical,
sem dúvida, mas condizente com o teor desbravador que Popp sempre fez questão de
destilar em seus álbuns. Absolutamente indispensável. (Bernardo Oliveira)

Satanique Samba Trio – Bad Trip Simulator #2 (2010; s/g, Brasil)


Quinteto brasiliense de música experimental criado em 2002, comandado pelo
compositor, arranjador e instrumentista Munha. Formado por Munha no baixo, RC na
viola caipira, Etos Jerônimo no clarinete, Jota Dale no cavaco, Lupa na bateria, André
Togni na percussao e Dango nos efeitos sonoros, lançaram o EP Misantropicália em 2004
e o álbum Sangrou em 2007, chamando atenção pela mistura de influências tão díspares
como Mahler e Milton Banana Trio. Bad Trip Simulator #2 é o segundo álbum do grupo.
(B.O.)

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Estamos diante de um esforço inenarrável: nada, absolutamente nada no trabalho do


Satanique Samba Trio deixa o ouvinte à vontade. Desde o nome do grupo, que nada tem a
ver com um trio, até os títulos das composições e dos álbuns, as fotos e imagens de capas
e releases, tudo transpira sarcasmo, violência, incômodo, tudo parece milimetricamente
calculado para promover um misto de mal estar e curiosidade mórbida, que mantém o
ouvinte ligado do início ao fim. A música do Satanique é um dos exemplares mais
admiráveis da música brasileira contemporânea, e ela não é alegre e colorida, pelo
contrário. Bad Trip Simulator #2 transpira má vontade para com a pasmaceira
excessivamente comercial da música brasileira atual. Ela desafia o ouvinte, sobretudo.

As referências que acompanham a audição de Bad Trip Simulator #2 – basicamente


Naked City e Hermeto Pascoal – não constituem, no entanto, uma espinha dorsal, uma
fantasmagoria. A música do Satanique é autônoma em relação as suas influências,
sintoma de qualquer grande trabalho artístico. O que sobressai na música do grupo é, em
primeiro lugar, a forma orgânica com que eles conseguem sintetizar choro, samba,
maracatu, jazz, noise e tudo o mais que vier pela frente, sem dar em sacolão pós-
moderno. Este já seria um feito e tanto, em uma seara em que apenas o próprio Hermeto,
seu pupilo Itiberê Zwarg e Arismar Do Espírito Santo conseguem cantar de galo, mas não
pára ai. Somos como que carregados pela sucessão vertiginosa de temas, andamentos,
sons estranhos e originais, pelos arranjos abundantes em melodias e harmonias, às vezes
sobrepostas ou truncadas, mas não por obra de um acabamento mal feito, muito pelo
contrário: trata-se de uma opção estética construída meticulosamente.

Para tanto, o grupo lança mão de um altíssimo grau de controle, mas também uma sorte
de conceito que busca realizar o máximo com o mínimo, tanto no que diz respeito ao
superaproveitamento timbrístico dos instrumentos convencionais, como também na
pletora de ritmos e possibilidades em curtíssimo espaço de tempo – basta dizer que a
faixa mais longa do álbum, “Lambada Post-Mortem”, conta com pouco menos de 3
minutos. Bad Trip Simulator #2 conta com apenas vinte seis minutos, mas são senhores
vinte seis minutos, nos quais podemos perceber mais pujança e força no discurso do que
nas obras completas de muita banda incensada aqui e no exterior. (Bernardo Oliveira)

Sufjan Stevens – The Age of Adz (2010; Asthmatic Kitty, EUA)


A famigerada expressão “a volta dos que não foram” cai bem para explicar a dinâmica
curiosa deste ano de 2010. The Books, Third Eye Foundation e até mesmo a auspiciosa
promessa feita por Richard D. James se alternaram na cena com nomes ultra-novos como
Dj Nate, Janelle Monáe e Breakage, sublinhando o compasso retroalimentar que vem
nutrindo a música atual. Sim, porque enquanto alguns dos artistas mais ousados das
últimas duas décadas trazem modulações precisas de seus respectivos trabalhos, os
caminhos outrora abertos por seus experimentos renderam frutos em diversos níveis, que,
de uma forma ou de outra, perduram através da personalidade de muitos artistas
contemporâneos. Não se pode entrever nas tramas rítmicas de Dj Nate a presença
fundamental do Aphex Twin, ou mesmo a genealogia da música eletrônica inglesa
através do trabalho vigoroso de Breakage? Há, de fato, um “excesso de informação”,
como gostam de repetir à exaustão os comunicólogos, mas a verdade é que o substrato
deste “excesso” diz mais a respeito daquele que o detecta do que dos milhares de autores
e projetos espalhados pelo globo. A mim intriga mais a ideia de que, apesar do tal
excesso, permanece insistentemente no horizonte da produção musical um aspecto, uma
qualidade que traduz o elemento alienígena, aquele que nos obriga a reconfigurar a
perspectiva sobre o “novo”. E, como o leitor pode observar, existem muitas formas de
detectá-lo.
Stevens, assim como o Aphex Twin, The Books e Third Eye Foundation, elabora uma
concepção musical que pode ser avaliada sob a rubrica da contradição. Quanto mais ele
reitera sua particularidade, quanto mais experimenta novas forma de apresentar seu
discurso musical, mais alude à época, mesmo quando parece dar uns passos atrás ou à
frente, mesmo quando se esforça em remeter os arranjos a uma sonoridade estabelecida
ou desafiadora, tudo conspira para afirmar uma qualidade do presente que se traduz no
excesso, mas como que recortando sua própria vivacidade deste mesmo excesso,
surfando sobre a volúpia com que ele toma de assalto não somente a arte, mas também o
mercado, o hype e, é claro, a vida. Uma série de fenômenos e teorias podem sugerir
explicações diversas, mas não existe campo mais adequado para sentir o “espírito da
época” do que a música. E a que faz Sufjan Stevens tem o poder de nos reportar a toda
uma gama de sentimentos de época, como a saturação, a nostalgia prematura, o orgulho
do presente, a apreensão da velocidade…

Sufjan Stevens, o queridinho da América, está presente em The Age of Adz (lê “odds”)
com todos os maneirismos que ratificaram seu nome como um dos maiores compositores
dos 00’s. As orquestrações grandiloquentes, que muitas vezes exigem um nível de
execução acima da média, convivem com melodias sinuosas e temas ambíguos,
simultaneamente românticos e inquietantes. Entretanto, inclua nesta fórmula consagrada
a utilização expressiva de sons pronunciadamente sintéticos (ruídos, batidas, teclados),
utilizados de forma a configurar uma faceta, se não completamente diferente, bastante
alterada de seu trabalho. Com a inclusão destes elementos, Stevens reforçou o caráter
sombrio das composições, outrora presente de soslaio através de canções como “John
Wayne Gacy, Jr.” e “Casimir Pulaski Day”. Antes, a letra bizarra destoava da música,
quase sempre graciosa, mesmo em compasso composto e repleta de dissonâncias. Ocorre
que a música, acrescida do poder singular dos sons sintéticos, nem simplesmente
melódicos, nem meramente rítmicos, mobiliza o ouvinte pela tensão sabiamente
controlada pelo autor. Orquestração pesada, tramas eletrônicas e canções precisas fazem
com que o resultado seja, desde já, clássico. “Too Much”, “Age of Adz”, “I Want to Be
Well” são faixas que certamente desempenharão um papel central nos shows e na obra de
Stevens como um todo. Assim como “I Walked”, a quarta faixa, que emociona pelo
equilíbrio preciso entre lirismo e inovação, entre um conteúdo pop irremediável e sua
apresentação poderosa. A última faixa, “Impossible Soul”, vinte e cinco minutos
acachapantes que contam com a presença de Shara Worden, do My Brightest Diamond, é
a mais impressionante do disco: uma coleção eloquente de detalhes imprevisíveis que
variam de viradas de baterias, guitarras de rock, coros falados e um intermezzo tecnopop
que parece conduzir a faixa para seu fim, quando na verdade ela ainda tomará um rumo
ainda mais inusitado, como que desmoronando aos poucos até terminar em silêncio.
Neste longo percurso, cabe até mesmo a aplicação do famigerado autotune na voz de
Stevens – coragem é pouco…

Uma guinada firme em direção a um universo musical ao mesmo tempo familiar e


desconhecido, é o que parece The Age of Adz. Convém atrelar estas mudanças às
questões aventadas pelo próprio autor, a respeito da saúde debilitada que o manteve
relativamente distante da música, do cansaço diante de sua própria obra. Mas nada chama
mais a atenção do que a força e o espírito criativo deste jovem de trinta e cinco anos, que
mantém a reputação de produzir o que de mais relevante o “espírito da época” tornou
possível. The Age of Adz é, além de um enorme prazer, a reiteração da genialidade de
Sufjan Stevens. (Bernardo Oliveira)

Vários Artistas – Tradi-Mods vs. Rockers – Alternative Takes on Congotronics


(2010; Crammed, Bélgica)
A gravadora belga Crammed, responsável por lançamento de grupos como Konono n°1 e
Kasai Allstars, reuniu artistas de diversas nacionalidades e procedências musicais para
reinterpretar faixas dos três volumes da série Congotronics. Juana Molina, EYE, Animal
Collective, Deerhoof, Mark Ernestus e Shackleton estão entre esses artistas. (B.O.)

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Remix, refix, versão, “cover”… Muitas são as possibilidades de se considerar a


interpretação, variando a definição de acordo com o grau com que o autor se permite
alterar sua referência. Existe também álbuns conceituais que apostam na junção de dois
ou mais artistas, geralmente discrepantes, como foi o caso da trilha sonora do filme
Judgement Night. Mas o caso deste CD duplo Tradi-Mods Vs. Rockers, traz uma
possibilidade híbrida, juntando duas ou mais modalidades de interpretação ao mesmo
tempo. Temos aqui uma profusão de faixas que variam do refix mais radical à
interpretações mais próximas do original, sempre com uma atitude de saudável
desrespeito para com a sonoridade e o conceito dos Congotronics, já bastante diferentes
entre si. Tradi-Mods Vs. Rockers já seria um álbum do maior interesse somente pela
disposição de reunir uma seleção de artistas tão diferentes e variados, em torno de uma
sonoridade que há quinze anos seria considerada “exótica”. E mais ainda pelo resultado
de algumas de suas faixas, que projetam o disco para além da mera curiosidade.

Entre esses trabalhos, destaco o magistral refix de Mark Ernestus para uma faixa do
Konono n°1, “Masikulu Rhythm (Bonus Track)”, no qual o produtor explora célula
curtíssimas, retiradas da faixa original, para criar uma estrutura abafada, operando com o
volume extremamente comprimido e de forma massivamente repetitiva. O resultado é
intrigante, plenamente condizente com o trabalho de Ernestus. “Konono Wa Wa Wa” por
Yamatsuka Eye também surpreende pela transfiguração absoluta proposta pelo vocalista
japonês, através de uma colagem repleta de “movimentos”, variando do noise-pop ao
disco-punk. Shackleton, como sempre, não decepciona com seu remix/refix “Mukuba
Special”, no qual a faixa do Kasai Allstars é até lembrada, mas em função daquele clima
fantasmagórico, característico nas produções do autor. “Enter the Chief”, com o Woom
retrabalhando a música do Kasai Allstars traz alguns dos momentos mais tensos do disco,
com sua colagem concretista à la Prefuse 73. Juana Molina usa um riff do mesmo Kasai
para criar a graciosa “Hoy supe que viajas”, a mesma estratégia adotada pelo produtor
Burnt Friedman em “Rubaczech” e pelos Hoquets em “Likembes”. Dignos de nota
também “Traducteur de Transmission”, excelente trabalho do percussionista americano
Glenn Kotche, remixando Konono, o refix alucinado “No.K”, com o mesmo Konono e
Micachu & The Shapes, a dreampop “Kiwembo/Unstuck”, parceria do Skeletons com
Mimanisa, Deerhoof com Kasai Allstars em “Travel Broadens the Mind” e a ótima
“Nombre 1!” com Oneida, entre outros. Sim, a faixa do Animal Collective com o Kasai
Allstars é um bom exemplo deste desprendimento, mas talvez não tenha obtido um
resultado à altura dos últimos lançamentos do grupo.

Por mais que a variedade de sotaques e perspectivas salte aos olhos, o que determina o
sucesso do álbum é o fato de que a maioria dos produtores e artistas preferiram usar os
Congotronics para construir faixas marcadas por seus própros maneirismos, ao invés de
buscar somente reinterpretá-las. E, de fato, parece que Tradi-Mods vs. Rockers é um
trabalho único no cenário das interpretações, que traz um apanhado de possibilidades,
nem todas exitosas, mas entre elas, algumas pequenas obras-primas, como as que
assinalei acima. (Bernardo Oliveira)

Vários artistas – Night Slugs Allstars Volume 1 (2010; Night Slugs, Reino Unido)
Que o encerramento desta década seja marcado por uma profusão de coletâneas,
recenseamentos, compilações de selos, gêneros e parcerias as mais diversas apenas
demonstra que o caráter difuso e colaboracional da produção eletrônica contemporânea,
resulta em maior peso na eclosão de contextos do que de artistas distintos. Apesar do
surgimento de grandes nomes como Shackleton, Joker, James Blake ou Blue Daisy
trazendo à tona uma radicalidade subjetiva tão cara à arte moderna, penso que o mais
interessante deste panorama é a forma como os contextos se pronunciam de forma aberta,
primeiramente sem confundirem-se com a suposta coesão conceitual dos movimentos ou
das grandes tendências, e depois, sem predicar a nenhum gênero sua identidade musical.
Neste contexto, o papel dos selos, e particularmente do Night Slugs que batiza essa
coletânea, é fundamental, por uma série de razões. Um selo hoje não é mais um meio
através do qual um artista divulga seu trabalho, nem somente o que foi a Rough Trade
durante a década de 80, mas encarna características e funções as mais variadas,
agrupando possibilidades difusas e aludindo ao contexto como sua grande assinatura. É
como se, através dessa coletânea, o selo assumisse uma tarefa: conferir novos ares ao
club house, respeitando o aspecto dançante, investindo, porém, em outras sonoridades.
Mas o Night Slugs se destaca não somente pela saudável ampliação e atualização do
espectro formal e timbrísitico do house, mas sobretudo por infundir o arrojo das
modulações e timbragens do dubstep em um gênero aparentemente desgastado. Este
talvez seja o maior trunfo de faixas como “Bust Broke”, do Kingdom, as de autoria de
Girl Unit, além de “Square One VIP”, o primeiro lançamento de Mosca pelo selo. Se a
presente coletâna tem a intenção de expor esse contexto específico, resta torcer para que
venha logo o Volume 2. (Bernardo Oliveira)

Vários Artistas – Bangs & Works Vol. 1 – A Chicago Footwork Compilation (2010;
Planet Mu, Reino Unido [EUA])
Juke ou Juke House é uma modalidade de música eletrônica, criada em Chicago, Illinois.
Extremamente veloz (chega a 160 bpms) e sintética, repleta de recortes abruptos e
samplers inusitados, o juke costuma embalar o footworkin’, que desafia o dançarino a
criar coreografias igualmente velozes com os pés. A presente coletânea, lançada pela
mesma Planet Mu de Mike Paradinas, a mesma que editou o álbum do DJ Nate, é o
primeiro registro panorâmico do gênero. (B.O.)

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Inúmeros são os paralelos, em escala mundial, que podemos traçar em relação ao juke.
Ele pode ser comparado aos últimos desenvolvimentos do “funk carioca”, do kuduro
angolano, do shangaan electro da África do sul, ou ainda do Bubu de Sierra Leone, todos
sequenciados, investidos de velocidade e graves profundos, desenvolvidos a partir da
matriz jamaicana do djing, do toaster e, em última instância, voltados quase que
exclusivamente para a dança. Mas o que faz do Juke uma modalidade musical
absolutamente alienígena nesse contexto é que o seu suingue, plenamente contemplado
no funk carioca e no kuduro, não se dá de forma clara, ou pelo menos imediatamente
identificável segundo a tradição da música negra. O kuduro é uma espécie de champeta
acelerada, enquanto o funk carioca já deu sucessivas demonstrações de que é um gênero
aberto à mudança radical, migrando do miami bass para inovações rítmicas e timbrísticas
de amplo espectro, sendo a mais notória e imprevisível a aproximação com o batuque
semelhante ao dos pontos de umbanda. Mas o juke se caracteriza por um registro musical
peculiar e original, que a presente coletânea faz a cortesia de flagrar na fonte. Basta dizer
que, à exceção de CDrs e mixtapes que circulam pela rede, além dos álbuns de DJ Nate e
DJ Roc e singles de DJ Rashad entre outros, dispomos de pouco material sobre o juke, o
que enfatiza a importância de Bangs & Works.

Um dos atributos imediatamete perceptíveis do juke é a velocidade, chegando a 160 bpm,


o que já elimina de saída a possibilidade de se constituir uma sonoridade mais regular,
com dinâmicas rítmicas mais espaçadas e, portanto, aptas a estimular a dança
descompromissada. O footworkin’ requer destreza e habilidade condizentes com a
rapidez do juke, não é para qualquer um que queira simplesmente balançar o corpo. Outro
aspecto é o tratamento dos samplers, dispostos de forma a acompanhar o andamento
frenético das batidas e, em muitos casos, propositadamente mal recortados, com o pitch
alterado de forma tosca, como se os produtores desejassem sublinhar o caráter sintético
do gênero. Neste sentido, podemos dizer que enquanto os produtores do kuduro e do funk
carioca se esmeram na produção de um continuum rítimico que busca envolver o
dançarino, o juke se orienta por divisões radicais, recortes rítmicos que acabam por
desestimular a descontração. E, por fim, o estatuto da palavra falada/cantada, alçada a
matéria musical, segundo uma estratégia muito semelhante a empregada por Philip Glass
em obras como Einstein on The Beach, o que reforça, para além da percepção imediata, a
ideia de que o minimalismo é para o juke uma espécie de “eminência parda”. Em todas as
faixas de Bangs & Works, o ouvinte encontrará, de uma forma ou de outra, os três
elementos dispostos acima. Mas, sublinho, de uma forma ou de outra, de modo que a
audição do álbum se torna uma prazerosa aventura por entre as diversas possibilidades
exploradas pelos produtores do gênero.

A começar pela abertura, “Whea Yo Ghost At, Whea Yo Dead Man”, por DJ Elmoe, que
se inicia com o sampler de uma balada juvenil, agudíssima por conta do pitch alterado,
que é gradualmente picotada, repetida de forma massiva e transfomada em ritmo. Como
pano de fundo, o grave aceleradíssimo, e as intervenções percussivas esporádicas, como
se fossem viradas. Mas a faixa mais impressionante, criada segundo este procedimento, é
“Itz Not Rite”, produzida por DJ Rashad, e que apresenta uma concepção rítmica algo
divergente das anteriores, acentuadamente tingida pelo house de Chicago, além do
recorte deveras truncado das palavras, que confere mais expressão ao sequenciamento. Dj
Roc também se destaca com “Fuck Dat” e “One Blood”, dois exemplos de quão
atordoante pode ser o juke, muito por conta do sequenciamento de uma ou duas sílabas
do tema original. Já “Eraser”, de RP Boo e “2020”, do DJ Spinn, trazem uma primeira
surpresa: uma derivada mais “ambient” do gênero, que contam com menos elementos e
repetições menos saturadas, além de melodias que se repetem parcimoniosamente – a esta
altura, devo confessar, um refresco mais que necessário. E, é claro, DJ Nate, até então o
nome mais interessante e diferenciado desta cena, representado pela já conhecida “He
ain’t bout it” e a inédita “Ima Dog”, uma daquelas faixas que sustentam o horizonte de
toda uma cena, assimilando algo como vozes new age, à la Enya, com as repetições mais
rebuscadas que o Juke pode oferecer.

Se Da Trak Genious nos introduzia ao juke através do trabalho daquele que parece ser
seu maior artífice, esta coletânea fornece o contexto e suas possibilidades. Entre pegadas
barulhentas e radicais (com destaque para “Star Wars”, de DJ Killa E), flertes com
sonoridades mais anuançadas, e até mesmo com a famigerada música romântica (em “I
Love You”, com DJ Clent), Bangs & Works oferece um giro mais do que bem-vindo
pelas ruas de Chicago, certamente um dos pontos altos deste ano – juntamente com o
shangaan, o bubu, o retorno triunfal de Sufjan Stevens, The Books e Oval, a ousadia
taciturna de Eleh, Shackleton e seu habitual arrasa quarteirão… (Bernardo Oliveira)

Vários Artistas – Scientist Launches Dubstep Into Outer Space (2010; Tectonic,
Reino Unido [Jamaica])
Um dos mais representativos expoentes do gênero musical jamaicano mais incensado da
última década, Scientist nasceu Hopeton Brown, em Kingston, Jamaica. Scientist foi
apadrinhado por King Tubby, trabalhando como engenheiro de som em seu estúdio até
início da década de 70, quando se transferiu para o lendário Channel One Studio e, mais
tarde, para o não menos lendário Tuff Gong. A partir da década de 80, passou a editar
seus próprios trabalhos, criando uma mitologia híbrida, repleta de extraterrestres e
vampiros, em álbuns clássicos como Scientist Rids The World Of The Evil Curse Of The
Vampires e Scientist meets the Space Invaders. Neste CD duplo, Scientist remixa faixas
originais produzidas por representantes do dubstep como Pinch, Kode 9, Mala e
Shackleton. (B.O.)

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Coletânea? Compilação de inéditos, de versões? Álbum de remixes? Difícil definir o


estatuto de Scientist Launches Dubstep Into Outer Space. Mas não nos entreguemos
diante das dificuldades. Trata-se, sobretudo, de uma homenagem dos produtores diante
dos serviços prestados por este grande artífice do dub. Mas que o leitor não pense que o
aspecto celebratório torna este lançamento algo como um jogo café com leite, no qual o
reconhecimento fala mais alto e define o sentido do projeto. No primeiro cd, Dubstep
Originals, faixas de grandes produtores do dubstep. No segundo, os Scientist Mixes,
devidamente identificados pelo acréscimo da palavra dub ao título da faixa original. A
julgar pelo alto nível das faixas originais e de seus respectivos remixes, o buraco é mais
embaixo…

Consideremos, então, esta celebração tal como dos rappers do free-style, os partideiros e
todos os repentistas do ritmo e das palavras, isto é, segundo uma inflexão que apesar de
simpática e amistosa, se impõe através de uma certa “beligerância”. A estratégia deste
álbum é um convite indiscreto à comparação, por vezes cruel, entre as faixas originais e a
interpretação de Scientist. Enquanto algumas faixas originais (poucas, é verdade)
sobressaem em relação ao remix do produtor, outras são como que reavivadas pelo
processamento delirante que o trabalho de reconfiguração que ele propõe. No cd de faixas
originais, destaco a bela canção de abertura com Pinch e Emika, Shackleton com sua
batucada digital em “Hackney Marshs”, o suingue enxuto e repleto de percussões de
Distance em “Ill Kontent” e, sobretudo, a verdadeira pancada que é “Abeng”, mais uma
brilhante parceria entre Kode 9 e Spaceape. Armour e Mala também comparecem com
boas faixas, melhores por exemplo do que este inexplicável King Midas Sound, a injetar
as sonoridades do dubstep no som do Massive Attack, ou o farofeiro Guido, que em todo
caso nos fornece uma curiosa vertente tecnopop… Trata-se, portanto, de um cd irregular,
mas que contém faixas extremamente representativas da consolidação de um cenário e de
seus produtores mais importantes. E o que podemos esperar do trabalho de Scientist, uma
referência seminal, mas que reside no passado heróico do dub, já que não lança um álbum
à altura de seus clássicos há mais 20 anos - In The Kingdom of Dub tem lá seus
momentos, mas seus grandes álbuns estão na década de 80…

Pois penso que Scientist se saiu tão bem em seus remixes, que em alguns casos ele
mereceria até a autoria da faixa. A estratégia não traz novidade: inclusão indiscriminada
de efeitos, de modo a reconfigurar ritmo, melodia e harmonia; utilização vertiginosa do
estéreo; inclusão de baterias e apetrechos eletrônicos variados… Mas são admiráveis os
timbres que ele extrai de sua mesa de som, os abalos rítmicos em virtude da utilização
imoderada de ecos e delays, que quebram consideravelmente a regularidade da levada
arrastada do dub, a própria atmosfera esfumaçada que tornou mais delirante faixas
apolíneas como “U”, “Korg Back” e “Dog Money”. Apenas em dois momentos, Scientist
não supera a versão original: quando substitui a trama percussiva de “Huckney Marsh”
por uma levada de bumbo mais regular, e quando retira a batida de “Abeng”. Por outro
lado, reparem nas formas buriladas que encerram “2012 Dub”; ou as brumas sonoras que
envolvem “Dog Money Dub”; ou ainda o minucioso jogo de estéreo em “Ill Kontent
Dub” e “After All Dub”. E no quebra-quebra – literalmente, um quebra-quebra – que ele
promove na comportada “Footsteps”.

Estamos falando aqui de algo diferente de tudo o que se promoveu até hoje em termos de
compilação de inéditos, mesmo levando em consideração o também admirável Tradi-
Mods Vs. Rockers. Trata-se de um álbum duplo que promove o diálogo entre duas
consciências, ou melhor, entre duas escutas muito peculiares, cada uma pertencente a um
contexto específico – muito embora se possa afirmar que o dubstep é, em parte, produto
do dub. Mas aqui o diálogo é aberto, o homenageado é respeitado, mas também está
submetido ao perde-e-ganha de versões. E é nesta dinâmica de franca disputa que reside
todo a força do disco, certamente um dos acontecimentos deste início de década.
(Bernardo Oliveira)
PS.: Uma advertência: para captar essa “atmosfera”, um elemento indispensável é o uso
do fone de ouvido, que possibilitará ao ouvinte acessar as nuances do processo criativo
através do qual Scientist cria suas “tracks”.

Keith Fullerton Whitman – Disingenuity b/w Disingenuousness (2010; Pan,


Alemanha [EUA])
Tarefa nada simples circunscrever, em termos estéticos, a militância eletrônica que Keith
Fullerton Whitman conduz com a autoridade de estudioso. Em 2010 foram cerca de oito
lançamentos envolvendo seu nome, mesclando formatos (CD, CDr, cassete, LP), selos
(No, Pan, Root Strata, etc.), parcerias, técnicas e modelos de diversas vertentes da
eletrônica experimental – ambient, drone, eletroacústica, além de momentos do mais
enervado artesanato noise. Em meio a todo esse ambiente de pesquisa e criação, dois
momentos se destacaram. O primeiro foi Variations For Oud & Synthesizer, com suas
imprevisíveis insinuações melódicas e uma forma prodigiosa de integrar sons acústicos e
eletrônicos, sem o habitual “comadrismo” que marca essa relação – como em sonoridades
identificadas ao selo DFA, por exemplo. O segundo foi o presente EP contendo duas tour
de force de uma rica e consistente experimentação em música eletrônica, cujo título
complexo, Disingenuity b/w Disingenuousness, só reitera o caráter aventureiro da
empreitada. De fato, a fórmula poética encontrada por Whitman para batizar as faixas e o
EP, com o prefixo de negação acrescido a duas palavras antônimas, encerra uma inversão
de sentido que alude aos procedimentos e à orientação estética de seu trabalho. Db/wD
prima por um ecletismo radical, rearticulando certas inflexões da música eletrônica em
um todo consideravelmente diferenciado. Ao invés de evocar o sentido objetivo e os
grandes rótulos (ingenuidade/esperteza, drone/noise/kraut/ambient), Whitman propõe a
troca sucessiva de máscaras, despindo procedimentos, desarticulando as relações mais
comuns em favor do desconhecido – a “desingenuidade”, a “desesperteza” e a incógnita
diante da sequência de sinais manipulados, bleeps e sintetizadores kraut no final de
“Disingenuousness” ou da estranha justaposição de field recordings, música concreta e
sintetizadores destilada em “Disingenuity”. 2010 fica marcado como o ano em que Keith
Fullerton Whitman fincou o pé no terreno da experimentação como um de suas mais
terríveis e prolíficas incógnitas. (Bernardo Oliveira)
Tristan Perich – 1-Bit Symphony (2010; Cantaloupe, EUA)
Tome o objeto em mãos e se pergunte: será isto um CD? Segundo a experiência
ordinária, é evidente que se trata de um CD, pelo menos pela aparência. Gravado nele,
espera-se, um testemunho. Rapidamente a coisa complica: nem o suporte está lá, muito
menos um indicativo de que exista algum. Apenas um circuito eletrônico embutido em
uma caixa de cd transparente, com uma entrada de plugue para fora da caixa. Assim que
o ouvinte conecta o fone, o circuito dispara, reproduzindo uma composição em 1-bit.

Enquanto objeto, a guitarra não corresponde ao som da guitarra gravada em estúdio e


armazenada no suporte-CD. No CD ela é um simulacro do efeito obtido em estúdio. Se
ao invés de um CD, o cidadão comprasse uma guitarra, ele não obteria o mesmo efeito
que teria executando o CD. No caso da 1-Bit Simphony não se trata de um suporte, mas
do próprio instrumento com o qual o ouvinte reproduzirá a faixa.

Ao mesmo tempo, para que o empreendimento se tornasse possível, deveria conter um


circuito econômico, que pudesse armazenar e reproduzir os dados sonoros, mas que
coubesse numa caixa de CD – que, à esta altura, já se pode considerar como uma ironia.
Então, como criar meios para reproduzir uma sinfonia nessas condições? De nada
adiantariam violas e violinos. A solução foi desenvolver um circuito que reproduzisse
sons de 1-bit, a menor unidade sonora digital. Assim, a dupla tarefa se conjugou em um
só artefato.

Nem o “suporte” é meramente um suporte, nem o objeto musical está desvinculado das
limitações impostas pelo circuito. O circuito possibilita ao ouvinte reproduzir a 1-Bit
Simphony com roupagem e instrumentação próprias, efetuando uma operação que
dispensa o suporte, apesar da ausência do artista.

Quanto aos aspectos sonoros, o que dizer? Nada que escutei até hoje se parece com os
cinco movimentos da 1-Bit Simphony. A ausência quase absoluta de referências faz com
que a consideremos algo da ordem do incomum, do não-identificado. O timbre seco e
estridente das notas constitui um dos motivos principais desta diferença. Ora sobrepostas
em harmonias aparentemente dissonantes, ora desenhando curiosas tramas rítmicas,
provocam a estranha sensação de um êxtase controlado. Apolo encontra Dionísio.

De nada adiantaria, portanto, iniciar este texto separando o discurso propriamente sonoro
das questões técnicas implicadas na sua reprodução. De nada adiantaria também que
pipocassem nos próximos anos exemplares semelhantes, influenciados pelo feeling deste
multi-artista, atuante em diversas áreas como as artes plásticas, a música e as ciências.
Pois sua ideia propõe a interação prodigiosa entre muitos e diversos temas, como o
estatuto da composição na atualidade, a relação entre pensamento e fruição, entre sons
orgânicos e sons digitais, entre música e som, entre música e ruído, entre música e
procedimento, e outras questões agudas, afinadas com o universo musical
contemporâneo. Resultaria na manutenção do campo epistemológico contra o qual ele se
posiciona, não de forma frontal – como, aliás, nada na música dos últimos 60 anos - mas
generosamente, oferecendo como que um passo adiante, um rompante poético, um abre-
alas. (Bernardo Oliveira)

Burro Morto – Baptista Virou Máquina (2011; s/g, Brasil)


Banda instrumental de João Pessoa/PB, que chega a seu primeiro álbum, formada por
Ruy Oliveira na bateria, Victor Afonso na percussão, Daniel Jesi no baixo, Leonardo
Marinho no saxofone e na guitarra e Haley Guimarães no piano, programações e teclado.
O grupo lançou o EP Varadouro em 2009, e em 2011 Baptista Virou Máquina. O álbum é
acompanhado por uma peça audiovisual em DVD que conta a história de Baptista,
dirigido por Carlos Dowling e ilustrado pelo artista plástico Shiko. (B.O.)

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Baptista Virou Máquina é uma peça cinematográfica com trilha sonora do Burro Morto,
ou um álbum ilustrado pelo cineasta Carlos Dowling e pelo excelente artista visual
Shiko? Aqui se torna necessário trocar a chave de interpretação, pois até o presente
momento não vi o filme. Porém conheço o álbum, o que me força a seguir somente o que
meus ouvidos “viram”.

E, meninos: eu vi!

Vi uma banda madura e competente, apta a transformar ritmos famigerados como


afrobeat, rock e jazz em peças se não originais, consistentes o bastante para se afirmar
que surge um grupo a se acompanhar de perto.

Vi um grupo capaz de criar e alternar climas incomuns na música instrumental brasileira


dos últimos 30 anos, acostumada mais aos arroubos instrumentais do que à concepção
paciente e minuciosa.

Vi também a bem dosada mistura de instrumentos elétricos, acústicos e eletrônicos, sem


que o eletrônico desempenhe o estúpido papel de conferir “modernidade” ao som, mas
operando em favor do conceito do álbum.

E, sobretudo, vi surgir um álbum conceitual arrojado na música brasileira. Não somente


porque conta a estória de Baptista, um indivíduo acostumado somente ao trabalho e à
obediência, e é como que abalroado pelos poderes libertadores do sonho.

Mas também porque constitui uma história musical, isto é, o testemunho de uma inflexão
instrumental que tem o que dizer além de firulas e credenciais, e que pode ser comparada
com o que de melhor se produziu na seara instrumental da última década, a saber, Itiberê
Orquestra Família, Hurtmold, Guizado…

Basta escutar a diversidade de ambientes sonoros para compreender o porquê da


“história”. O afrobeat hard de “Tocandira”, os detalhes de “Volks Velho”, com a bateria
diáfana e o clima pesado, a bricolage eficiente presente em “Cataclisma”, ou ainda “Luz
Vermelha”, que encerra o álbum trazendo a curiosa transfiguração de um afrobeat em
baião. Faixas como essas traduzem o alto nível da pesquisa e da capacidade criativa do
Burro Morto.

Trata-se do despontar de uma vocação extraordinária para bater no liquidificador um


altíssimo fluxo de informações musicais, sem prejuízo de um sotaque próprio. Não que o
álbum seja uma espécie de marco, muito embora participe de um movimento de
revitalização da música instrumental no Brasil. Mas deleita e serve de promessa em
relação ao futuro do grupo.

Baptista Virou Máquina é um álbum desobediente em muitos sentidos, característica de


ouro no contexto da conformada MPB (música pseudo-brasileira). (Bernardo Oliveira)

Itamar Assumpção – Pretobrás II – Maldito Vírgula + Pretobrás III – Devia Ser


Proibido (2010; Sesc, Brasil)
Itamar Assumpção (1949 – 2003) foi um poeta, compositor e instrumentista central na
música paulistana da segunda metade do século passado. Assumpção e sua banda, a Isca
de Polícia, foram revelados junto ao grupo de artistas que no final da década de 70
fizeram do teatro Lira Paulistana a casa da chamada Vanguarda Paulista, um dos grandes
centros de experimentação musical da época. De Beleléu, Leléu, Eu, lançado em 1980,
até a parceria com Naná Vasconcelos, Isso vai dar repercussão, de 2004, Assumpção
desenvolveu um estilo próprio de tocar, cantar e compor, misturando teatro, afropop,
crítica social, ironia fina, funk e samba, sempre de forma rigorosamente invulgar. Os
póstumos Pretrobrás II – Maldito Vírgula e Pretobrás III – Devia Ser Proibido, foram
idealizados e parcialmente gravados pelo próprio artista, juntamente com a caixa que
reúne toda sua obra, batizada por ele mesmo como Caixa Preta. A produção musical do
Pretobrás II ficou a cargo de Beto Villares, enquanto a terceira parte foi produzida por
Paulo Lepetit, baixista da Isca de Polícia, e contam com participações especiais de
Bnegão, Elza Soares, Seu Jorge, Zélia Duncan, Ney Matogrosso, Alzira E, Arnaldo
Antunes, de Arrigo Barnabé e da própria banda Isca de Polícia. (B.O.)

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Álbuns póstumos costumam demandar grandes esforços, mas geralmente desaguam em
fracasso. Ou porque o autor não terminou a obra, deixando espaço para o trabalho
insuficiente do produtor, ou porque o material não era bom mesmo. Mas cabe perguntar
quanto vale um sopro de Itamar Assumpção, sete anos após sua morte. Como um sopro
de vitalidade na surrada emepebê? Natural que se possa questionar essa filiação, ainda
mais em relação a um artista que se desvencilhou estrategicamente de muitos rótulos.
Reggae? MPB? Maldito? Nada disso.

A música de uma forma geral, e particularmente a música cantada em português, sente


muito a falta de Itamar Assumpção. Das tiradas elegantes, da palavra fácil, sempre
incomum. Das melodias saborosas, ao mesmo tempo estranhas, belas e assobiáveis. Da
voz e do sotaque característicos, que ele soube utilizar com maestria, lapidando álbum a
álbum seu estilo. E, sobretudo, da ironia, das sacadas sobre a vida, a hipocrisia, a burrice,
o acaso, a amizade, o amor, das rimas construídas com sagacidade malandra, eivadas por
uma “leveza profunda”, se me permitem. Para alguns, Itamar Assumpção pode estar
morto. Mas estou certo de que ele sabia, como diz o samba, que “o nome, a obra
imortaliza”.

Encarando momentos difíceis, mas ciente do seu próprio valor – a grande característica
dos grandes artistas – Assumpção idealizou a Caixa Preta, contendo a totalidade de suas
obras, além de dois álbuns que constituiriam a continuação de Pretobrás, lançado em
1998. Com os esforços de suas filhas, Anelis e Serena Assumpção, a Caixa Preta foi
finalmente lançada, bem como a continuação de Pretobrás.

O primeiro Pretobrás era um imenso e transbordante caldeirão de experiências e suingue,


que destilava, em mais de uma hora, todos os grandes talentos poéticos e musicais de
Itamar. Temperado por um peso a mais nas palavras, mas tambem por uma certa
angústia, Pretobrás denotava que a habitual leveza fora parcialmente substituída por um
sarcasmo mais acentuado, como se pode verificar na abertura, com a paródia demolidora
de “Luar do Sertão“, seguida por frases agressivas (“porcaria da cultura tanto bate até que
fura”) e ecos inesperados (“cultura sabe que existe miséria, existe fartura… e partitura”).
Já despontavam as canções dedicadas a amigos, Arrigo Barnabé e Elke Maravilha, mais
do que homenagens, verdadeiros retratos esculpidos em palavras. Um acento mais
diversificado na instrumentação resultaria em belíssimas texturas, como no samba “Vai
cuidar de sua vida” e na salsa-pop “Reengenharia”, a mais corrosiva, eventualmente
infame (“não sou Gabriel mas sou pensador, meu amor…”).

Um trabalho à altura do gênio, mas para o qual Assumpção projetou uma continuidade
em duas partes, gravando as faixas e trabalhando as ideias, mesmo prevendo o pior.
Como atesta sua filha, Anelis, ele “fez guias de voz e violão em diversos estúdios e,
graças a sua criatividade excessiva e seriedade com a música, essas guias têm
sentimentos interpretativos como se fossem pra valer.” A idéia foi convocar dois
produtores familiarizados com o pensamento e a obra de Assumpção, para finalizar a
trilogia. Pretobrás II – Maldito Vírgula foi produzido por Beto Villares, um dos nomes
por trás da caixa Música do Brasil, enquanto Pretobrás III – Devia Ser Proibido foi
produzido pelo baixista Paulo Lepetit, baixista da Isca de Polícia. Reunir pessoas que
trabalharam e conheceram Assumpção, misturando-as a jovens admiradores foi a solução
encontrada pela produção para chegar o mais próximo possível do que o artista projetou.

A unidade estilística particular, reforçada pela presença de espírito sui generis do autor
durante as gravações – sua voz comovente, a entonação grave – permite tanto uma
análise em separado, como também em conjunto dos álbuns. A presença do artista nas
composições e arranjos é forte o bastante para considerarmos um álbum de Itamar
Assumpção, mas é também um fato que Villares e Lepetit guiaram as ideias conforme
certas inflexões próprias de seus respectivoas trabalhos. Pretobrás II – Maldito Vírgula é
talvez mais coeso do ponto de vista do conceito, portando contornos mais definidos. E
também mais aberto à influências musicais mais recentes, tanto na timbragem quanto nos
que diz respeito aos gêneros. É um prazer inenarrável conhecer composições como
“Samba-Enredo”, “Je T’aime Mais Que O Jerome”, “Todo esse tempo” (com
participação de Bnegão), e “Breu da Noite”, cantada por Arnaldo Antunes. E arranjadas
com elegância e economia condizentes com o nível poético e musical proposto por
Assumpção. Sem contar a comovente simbiose entre a fabulosa Elza Soares e a canção
que Assumpção compôs em sua homenagem, batizada “Elza Soares”.

Ocorre, no entanto, que a terceira parte, Devia ser Proibido, sendo produzida por um
instrumentista que teve sua vida artística atrelada à banda Isca de Polícia, e que conviveu
com os modos e maneiras de Itamar, traz à tona uma desordem, uma saudável mistureba
de gêneros e canções, me parece, mais apropriadas para dar conta da personalidade
musical multifacetada do artista. De fato, a segunda parte é mais enxuta, mas trata-se de
uma releitura, como que respondendo à pergunta “o que Itamar estaria fazendo hoje?”

Mas a terceira parte é como se estivéssemos diante não de um disco póstumo, mas de um
disco descoberto, gravado pela banda Isca de Polícia em meados dos anos 80. Além do
ecletismo musical vertiginoso que passeia do rock ao sertanejo, podemos perceber
também as letras mais viscerais, versando sobre a morte, a dor e o ciúme com o humor
habitual, mas, ao contrário da primeira parte, não parecem tão angustiadas, pelo
contrário. Temas mais graves, abordados com o humor de sempre, e por uma teatralidade
latente, presente nos jogos vocais

Em “Ciúme doentio”, aborda o tema com ironia indefectível (“basta você me dizer ‘amor,
eu vou até o mercado ali na esquina, pra eu começar a sofrer como se o mercado fosse lá
na China”). Na empolgante “Anteontem (Melô da UTI)”, faz troça da morte, e do medo
debocha na retrô “Eu tenho medo”. São Paulo está presente na incrível “Persigo São
Paulo”, que traz ecos evidentes do apelo realizado no primeiro Pretobrás em “Outras
Capitais”. Mas a faixa mais emocionalmente evocativa da Banda Isca de Polícia é
“Ninguém como você”. A sutileza de seus arranjo de metais, o diálogo de Assumpção
com as cantoras, tudo conspira para que nos encontremos em um estranhíssimo interstício
entre o passado e o futuro.

Quanto vale um sopro de Itamar, em pleno 2011, sete anos após sua morte? Em
“Variações”, escutamos o verso lapidar: “quem quer fazer boa música / tem que bolar
uma fuga / contar compasso quebrado / cantar a boca que usa”. A boca e a mente de
Itamar estão presentes em ambos os álbuns. Não lembro de experiência póstuma tão
poderosa e evocativa da presença do artista. Talvez Sun Ship, de John Coltrane. Não
exatamente por sua música sublime, mas pela evidente permanência e atualidade daquilo
que ela tinha de melhor, preservada na máxima cantada em “Fico Louco”, de seu
primeiro disco: “espero ouvir você dizer que gosta de viver em perigo.” Mesmo falecido
há sete anos, Itamar Assumpção ainda teve o fôlego de nos legar este “perigo”, prazeroso
acima de tudo. (Bernardo Oliveira)

Ps.: Não sei se feliz ou infelizmente, a Caixa Preta (já) se encontra esgotada. Aguardemos
as reprensagens.

M.I.A. – Vicki Leekx (2010; s/g, EUA)


O artista pode ser o que for, traficante, falastrão, junkie, não me importa. Só não pode me
empurrar goela abaixo sua auto-indulgência ou, pior, sua preguiça. Entre a simplicidade e
a simploriedade há um abismo. Cair no abismo é apenas uma das consequências do jogo,
e é preciso cair muitas vezes para criar faro e se orientar minimamente no bambual da
música contemporânea.

Meu faro – não tem jeito, preciso confiar nele – diz que Maya Arulpragasam representa
hoje o que Björk representou nos anos 90: uma artista plural, independente, capaz operar
em muitas sintonias, de promover reviravoltas e surpreender mesmo aqueles que não
admiram sua música.

Quem espera acordar no último dia do ano com presente tão auspicioso? Uma mixtape
produzida por M.I.A e sua turma, singelamente batizada como Vicki Leekx. Costurando
sobras de material do último trabalho com excertos inéditos produzidos por Diplo, Rusko,
Blaqstarr, Switch, entre outros, M.I.A. comanda um continuum de ritmos, percussões
digitais, ruídos e graves cavernosos, absolutamente alucinado e empolgante.

A ironia do título reitera a preocupação política que tanto irrita os jornalistas americanos,
mas pode ser lida como uma manifestação de júbilo e celebração pelo caráter guerrilheiro
da empreitada de Assange e cia. “Nada mais M.I.A.”, diria algum hipster maldoso de
Williamsburgh.

Quem acompanha M.I.A. de perto, sabe que ela nem sempre aparece como santa: irrita os
jornalistas com suas contradições, faz declarações controversas e se perde em
apresentações lastimáveis, como a do lançamento de seu último disco, meados do ano
passado em Nova Iorque. De nada adianta: meu entusiasmo por sua música permance tal
e qual, assim como seu vigor artístico. Vicki Leekx não é um CD de carreira, mas dá
mais uma prova do que M.I.A. pode. Um presente afetuoso em um ano conturbado, from
M.I.A. to you. (Bernardo Oliveira)

Æthenor – En Form For Blå (2011; VHF, EUA)


Não parece mero adereço a inclusão do nome dos músicos do Æthenor na capa de En
Form for Blå. Nos discos anteriores, estas faziam alusão discreta ao “geometrismo”
estilizado das capas de death metal. Mas desta vez uma nuvem azul (Blå, em sueco)
cobre o rosto levemente desfocado de uma mulher, cuja boca entreaberta faz supor uma
certo estado de excitação e desconforto. Sobre esta imagem discreta, uma lista com o
nome do grupo, do álbum e dos instrumentistas, em um procedimento muito semelhante
ao que marcou os anos dourados do jazz americano. Este hábito tem um sentido que, me
parece, pode ser estendido ao Æthenor: ele sublinha a identidade, a personalidade musical
de cada um dos instrumentistas.

Gravado e editado em duas apresentações na casa de shows sueca Blå, En form for Blå se
afigura como um salto extraordinário no pensamento musical da banda. A inclusão de
Steve Noble, baterista que acompanhou Derek Bailey, e a permanência de Kristoffer
Rygg, abriu a paleta de cores, antes de alguma forma comprometidas com formas do
drone e do dark ambient, pela via do metal que tanto apraz O’Malley e marca seu
trabalho. A bateria de Steve Noble, a profusão de timbragens e climas que ela emana,
garantem o aspecto multifário das faixas, que eram antes batizadas por números, como
movimentos de uma composição, mas agora possuem nomes e, de fato, parecem
responder a questões diferentes.
“Jocasta” e “One Number Of Destiny In Ninety Nine” formam o primeiro bloco, as
faixas mais longas, que tomam mais de cinquenta por cento do álbum. Repletas de
reviravoltas, alternando a exploração de massas sonoras com texturas acidentadas, elas se
caracterizam por um diálogo intenso entre todos da banda. Mas a intensidade toma ares
exploratórios incomuns, quando nos vemos entre as cinco faixas finais. “Vyomagami
Plume”, por exemplo, com seus teclados jazzísticos e a proliferação de desenhos
rítmicos; o aspecto etéreo, quase gracioso, de “Dream Tassels”, além da aparente
retomada das modulações características da primeira parte em “Something To Sleep Is
Still”. Nestas faixas, fica evidente a contribuição do diálogo entre Noble e Rygg, ao que
parece, o trunfo do álbum, responsável por sua inclusão entre o que de melhor produziu
este projeto aparentemente lateral, capitaneado por dois estetas do Metal, Sullivan e
O’Malley. Mas a forma final, esta me parece de alguma forma distante do que seria
comum esperar de seus nomes. Mas por que?

Talvez aí resida o parentesco mais próximo de En Form for Blå: o jazz como conceito,
isto é, como criação de estruturas de improviso, de modulações improvisadas que, no
entanto, é composto por habilidades individuais em franca relação entre si. Os nomes na
capa expõem a individualidade, mas o azul cobre tudo, unificando as partes num todo
incrivelmente coerente. O que faz deste álbum uma das audições indispensáveis de 2011.
(Bernardo Oliveira)

Nicolas Jaar – Space Is Only Noise (2011; Circus Company, EUA)


A atualidade da música toma formas e rumos inesperados, não parece novidade. Vejam,
por exemplo, o caso de James Blake, jovem dos seus vinte e poucos anos, que estarreceu
o mundo em 2010 com três EPS fantásticos, destilando texturas sonoras improváveis e
uma linguagem entre a ambient e o dubstep. Seu incensado álbum de estréia, no entanto,
acabou se perdendo em fórmulas de segunda mão, e canções melosas, destacando-se
apenas pelo cuidado com a produção.
A história do americano Nicolas Jaar parece um pouco diferente, embora se note que seu
nome também adquiriu um certo hype nos últimos meses, em nada comparável ao
conferido a Blake. No entanto, comparando os álbuns de estréia chegamos, não sem
alguma surpresa, a seguinte conclusão. Enquanto Blake “amaciou” seu trabalho, talvez
para atingir um público ainda maior, Jaar desenvolveu um álbum que incorpora tantos
elementos, inclusive mais palatáveis do grande público.

Jaar, que tem praticamente a mesma idade que Blake, e partilha com ele de um universo
musical semelhante, chega a triscar a seara do inglês – como na beleza pastoral de
“Balance Her In Between Your Eyes” e em “Keep Me There”. Mas adquire autonomia
com faixas delicadas e surpreendentes, como “Être”, com sua estáticas ritmadas e
utilização sagaz das vozes, e no suingue estranho de “Variations”.

A incoerência de Blake contrasta com a espontaneidade de Space is Only Noise, que já


nasceu promíscuo e multifacetado. No seu caldeirão entram tanto as experiências
derivadas do microhouse e dos clicks and cuts (se não no timbre, na esquizofrênica
composição rítmica), e vai até Depeche Mode, Brian Eno, synthpop, e outras afamadas
vertentes atuais, mas executadas com afirmativa experimentação e riqueza de detalhes
que valem uma audição atenta. (Bernardo Oliveira)

PJ Harvey – Let England Shake (2011; Island, Reino Unido)


Polly Jean Harvey: depois de escutar Let England Shake, um amigo se virou em tom de
lamento e disse que “parece que estamos fadados a amargar um revival dos anos 50…”
Que peça pregaste nesses amigos hereges, que não entendem que you’re a mastah,
sistah… Shit, you rule! E como bom mestre, mestre de fantoches, você não prescreve,
como prescreveram os fantoches Metallica e Red Hot Chili Peppers, sempre em busca de
uma migalhazinha a mais, um bis a mais para satisfazer o fã porcalhão.

Você mexe com música de todas as décadas, com a história, você é crítica e é irônica e
seu show em SP, há uns anos, foi das coisas mais impressionantes que vi acontecer em
um palco, e olha que eu assisti muita proeza nesses anos de vida, e olha que foi assim
bem especial o que rolou no palco naquele dia, a disposição dos instrumentos e você e
seus amigos se revezando, ora num teclado, ora numa bateria, e mesmo baixinha você
parecia gigante no palco e eu não parava de olhar e lembrar da Bethânia dos tempos
áureos, e do Mau Val naquele programa que tinha na god fm, Radiola, e que ele tocou seu
disco e foi a primeira vez que sua voz agudagrave, ásperadoce penetrou na minha cabeça
pra sempre…

Eu já amava White Chalk, com aquelas baladas quase new age, que o mesmo amigo
herege chamou de emo – nem descurti – e agora amo muito mais Let England Shake,
com esses samplers inacreditáveis e a maneira totalmente natural com que você os
transforma em coisa sua, “Istanbul (Not Constantinople)” na faixa-título sombria, aquela
cornetinha marcial inusitada na melhor faixa do disco, “The Glorious Land”, aquela
entonação do coro pronunciando “england” ironicamente (engâleeeennnn!), e mesmo as
baladas melosas, nas quais você canta como uma adolescente apaixonada em “The Last
Living Rose”, parecem tolinhas, mas não são, e a gente sabe bem…

Desde que ouvi Let England Shake pela primeira vez, que ele não sai da vitrola, você
continua sendo uma tremenda artista, capaz de retorcer padrões e transformar gêneros,
que as pessoas acham que são eternos, mas ai vc vai e mostra que não é nada disso, que o
poder da arte tá em abrir caminho pra diferença, mostrando pra gente o que há de mais
quente em termos de grandeza e alegria, a prova dos nove, câmbio, desligo. (Bernardo
Oliveira)

Kelan Phil Cohran and Legacy – African Skies (2010; Captcha Records, EUA)
Kelan Phil Cohran é trumpetista, compositor, arranjador de jazz, nascido há 84 anos em
Oxford, no Mississippi. Ficou mais conhecido por integrar a Sun Ra Arkestra, do final da
década de 50 até meados da década de 60. A discografia escassa – mais precisamente
quatro álbuns com Sun Ra e três como leader –, contrasta com suas proezas: além de
reconhecido astrônomo, inventou o Frankiphone, ou “Harpa Espacial”, fundou a
Association for the Advancement of Creative Musicians (AACM), além de ser o pai de
oito dos nove membros do Hypnotic Brass Ensemble. African Skies foi gravado em
1993, por ocasião da morte de Sun Ra, mas foi lançado somente em 2010. (B.O.)

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Trumpetista, harpista e astrônomo, mas com incursões no terreno da invenção de


instrumentos musicais e em instituições de proteção à “criação artística” (?!), Phil Cohran
sempre esteve vinculado ao nome e à música de Sun Ra, com quem gravou quatro álbuns
incríveis entre 1959 e 1965.

Da Sun Ra Arkestra ele trouxe os temas inspirados em ficção científica e na questão


racial norte americana, as vozes esganiçadas, a inclusão de instrumentos pouco usados no
jazz, como a harpa e mbira. No entanto, diferenciando a contribuição para a “arkestra” de
seu trabalho, torna-se evidente uma chancela musical própria, timbrada em um
modalismo minimalista propício à improvisação, mas também ao controle do tempo e do
ritmo, como no misterioso On The Beach, lançado em 1968.

Gravado em 1993, African Skies é uma homenagem póstuma a Sun Ra, e traz uma
música cadenciada, cujo andamento mais lento atende à direção musical mais atenta às
nuances do que às saturações e sobreposições características da Fire Music. Vale reiterar
que Cohran se insere no seleto grupo de artistas cuja obra se fundamenta em diálogo com
outras instâncias, por vezes exteriores ao universo da arte. Esta diversidade influencia sua
música pelo caminho mais comum – o improviso, como simulacro do caos e de sua
insubmissão à formas prévias, a indicar o credo em uma indistinção entre saberes e
discursos.

Estamos falando de um parceiro de Sun Ra, às portas da eclosão do Free Jazz, da Fire
Music, do movimento pelos direitos dos negros, de Martin Luther King e Malcom X.
Faixas como “Theme” e “Dogon”, mais do que remeter a uma paisagem sonora
contaminada pela música africana, reiteram a pesquisa multifacetada de Cohran, que em
African Skies resulta em uma música delicada, que mais mobiliza atenção e a emoção do
que incendeia o ambiente. (Bernardo Oliveira)

Sidi Touré & Friends – Sahel Folk (2011; Thrill Jockey, EUA [Mali])
Nascido em 1959, em Gao, sul do Mali, Sidi Touré é um compositor, cantor e
instrumentista especializado no songhaï, uma espécie de blues malinês. Inicou sua
carreira na orquestra malinesa Songhaï Stars, colaborou com artistas como Bassekou
Kouyaté e Kassemady Diabaté e lançou seu primeiro álbum, Hoga, em 96. Sahel Folk é
seu segundo álbum, gravado com a colaboração de instrumentistas malineses. (B.O)

*#*

Para começar a descrever os atributos deste álbum, convém enaltecer a felicidade de um


encontro musical calcado na amizade, a espontaneidade dos movimentos, que no entanto
encerram grande sensibilidade, grande sabedoria. Convém apreciar o quantum de
conhecimento e improviso, de frescor e ciência, deleite e método, presentes em cada nota,
cada modulação, cada melodia.

Sidi Touré, mestre do songhaï malinês, se junta a seus amigos Dourra Cissé (guitarra,
voz), Jambala Maiga (kutigui, violão de uma só corda), Douma Maiga (kurbu, violão de
três cordas), Jiba Touré e Yehiya Arby (ambos guitarra e voz). Sahel Folk encanta por
sua coesão, apesar de alternar sequências de imensa delicadeza, com outras mais
agitadas.

Faixas como as duas primeiras, “Bon koum” e “Adema”, e “Artiatanat” apresentam uma
vertente mais bluesy do songhaï, através de repetições melódicas e uma entonação mais
reflexiva e espaçada, que somada ao canto sinuoso de Touré, cria um atmosfera árida e,
ao mesmo tempo, atenta. “Djarii Ber” é como uma espécie de interseção entre os
momentos agitados, com seus arpejos mais velozes e repetições soltas, na qual as
imprecisões conferem mais ainda mais pujança ao conjunto.
Mas é na sobreposição conflituosa do dedilhado dos diversos instrumentos, inclusive o
kutigui e o kurbu malinês, que reside a magia do álbum. Em “Bera nay wassa”, a tensão
entre o canto parcimonioso de Touré, com as imprecisão rítmica das cordas; em “Taray
Kongo”, os ataques enérgicos das palhetas e os diversos momentos que se alternam sobre
a repetição da linha de contrabaixo. Nesses dois momentos, a música adquire um
conjunto que só encontra paralelo nas jams de Ali Farka e Toumani Diabaté.

Sahel Folk lembra Os Cinco Batutas, lembra os dois quintetos de Miles Davis, os grandes
discos do Época de Ouro, e todos os ensembles que trouxeram à baila a questão da
amizade, da afinidade, da conformidade a um propósito, mesmo que eventualmente esta
conformidade se traduza em uma sonoridade conflituosa. Equilíbrio não constitui um
bom adjetivo para determinar a beleza do disco, pelo contrário. É justamente nessa
relação desigual entre inclinações instrumentais diversas, mas que ao mesmo tempo
conseguem travar um diálogo pleno, que Sahel Folk constrói um dos mais belos diálogos
musicais dos últimos tempos. (Bernardo Oliveira)

Panda Bear – Tomboy (2011; Paw Tracks, EUA)


De saída, Tomboy se encontrava em uma situação-limite, determinada pelo duro ofício de
suceder à obra-prima Person Pitch, que enlouqueceu meio mundo com suas estruturas
cíclicas e vocais harmonizados à la Beach Boys. Ainda assim – ou em virtude disto –
Tomboy se tornou um dos álbuns mais aguardados do ano, mas como que constrangido
ou a soar de outra forma, ou a repetir a fórmula poderosa do primeiro álbum. Sem
nenhuma sombra de dúvida, a segunda opção não diz respeito ao gênio criativo do autor
em questão. Aquele que acompanha de perto a carreira de Noah Lennox sabe disso.

Ciente desse desafio, o autor optou por “viralizar” faixas do álbum de forma gradual,
através de quatro belos singles, lançados entre outubro de 2010 e março deste ano. Neles,
fez questão de favorecer a experiência do ouvinte, submetendo-o pouco a pouco a uma
outra esfera de seu trabalho, mais lírica, evocativa e igualmente pessoal. Essa estratégia
demonstra que as ações de Lennox são cuidadosamente planejadas, ou pelo menos
obedecem a critérios estreitamente afinados com a dinâmica particular de seu trabalho.
Pois as novas canções, de fato, demandam um período para a digestão, e mesmo a criação
de um outro ambiente sonoro, condizente com o clima introspectivo que atravessa as
onze faixas do álbum.

De fato, quando se escuta Tomboy pela primeira, já tendo percorrido mais de cinquenta
por cento de suas canções, a audição ganha em fluidez, pois em certo sentido nos
referimos a um álbum que tem seu conceito na própria sonoridade, e não em algum tema
extramusical, ou mesmo nas letras. Tomboy requer que o ouvinte se desprenda do
aspecto onírico, imagético e memorial de Person Pitch e abrace a brisa quente e
melancólica que atravessa o álbum. Se a expressão “praiano” parece abusiva, substitua-a
pela ideia de uma inflexão mais afetiva e interiorizada, a cantar uma experiência pessoal
através de cores e sons, não de sentidos. A “família” permanece toda reunida, como na
capa de Person Pitch, mas Tomboy vocaliza os pensamentos de um daqueles jovens,
entregue às suas percepções e sentimentos.

Sendo assim, Tomboy é também um álbum fantasmagórico, rico em vivências, mas


voltado para dentro. Ao contrário da energia expansiva de Person Pitch, é um álbum que
cresce justamente com o tempo e as audições contínuas, com sua decorrente
familiarização. E isso através de uma sonoridade caracterizada não somente pelo excesso
de ecos e delays, mas, sobretudo, pela saturação de vozes: vozes que cantam, que
murmuram, que entoam hinos e fazem algum comentário. São vozes inconscientes, e às
vezes não são apenas vozes. Antes, reportam não somente à formalidade dos significados,
mas transformam cada sílaba, cada significante mudo e sem sentido, em som musical.

A partir de um certo número de audições, que pode variar de ouvinte para ouvinte,
Tomboy se consolida como um conjunto coerente de canções, cada uma repleta de
detalhes e melodias que viciam, dia após dia. Dificilmente resistiremos em transformar as
onze faixas do álbum em trilha sonora constante para este e outros anos. O lirismo de
“Benfica”, a levada reggae de “Tomboy”, o experimento lírico-minimalista “Slow
Motion”, e mais: “Surfer’s Hymn”, “Last Night At The Jetty”, “Afterburner”, “Drone”,
“You Can Count on Me”… Ao contrário de Person Pitch, no qual se destacam duas ou
três faixas (“Bros”, “Good Girl/Carrots” e “Take Pills”), Tomboy é nivelado por cima.
Eis uma boa definição para esta empreitada estética: uma viagem nivelada por cima.
(Bernardo Oliveira)

Domenico – Cine Privê (2011; Coqueiro Verde, Brasil)


“Cine Privê” é o primeiro disco solo de Domenico Lancelotti, mas não a sua estreia
musical. Lá se vão quase vinte anos desde que ouvi falar pela primeira vez deste
percussionista, compositor e cantor, primeiramente associado ao grupo carioca Mulheres
Q Dizem Sim, que surgiu na primeira metade da década de 90. Uma das bandas mais
criativas de sua época, promoveram, a seu modo, a tentativa de unir Kurt Cobain e João
Donato, com pegada funk-rock e um intrincado trabalho de guitarras.

Depois, Domenico se tornou músico requisitado, acompanhando artistas como Caetano


Veloso, Fernanda Abreu, entre outros, tomando parte também da Orquestra Imperial,
com Jorge Mautner, Alexandre Kassin e Moreno Veloso, e do trio +2, com os dois
últimos citados. Com o +2, desenvolveu quatro álbuns especiais na discografia da década
passada, reconhecidos no Brasil e no exterior, sendo um deles de sua autoria, “Sincerely
Hot”, lançado em 2003, o mais experimental dos discos do trio.

Trata-se, portanto, não de um ecletismo rasteiro, mas autêntico e aprofundado, através do


qual Domenico foi delineando uma consistente persona musical, marcada pela
diversidade, mas de alguma forma ligada à trajetória de seu pai, Ivor Lancelotti,
compositor de belos sambas gravados por nomes como Beth Carvalho e João Nogueira.
Quero dizer, revela-se, pouco a pouco, um compositor popular relevante, um cancioneiro
plenamente capaz de se expressar em searas tão diversas quanto o funk-rock praiano do
Mulheres Q Dizem Sim, a neogafieira da Orquestra Imperial, e a faceta menos MPB de
“Sincerely Hot”.

O disco parte de uma concepção bem definidida, exposta pelo compositor Romulo Fróes,
que assina o press-release: “[Domenico] busca nessa antiga relação entre som e imagem,
material para compor uma trilha-sonora para um filme que ainda não existe. (…)
Domenico inverte o processo. Inventa um filme para a sua música.” Da bela faixa-título,
assinada pelo autor, à homenagem instrumental “Hugo Carvana”, é um álbum que exibe
uma paleta sonora equilibrada entre a suavidade de seu canto, arranjos econômicos e
eficazes, e a apropriação de elementos extramusicais como apitos, cordas que rangem e
“gravações de campo”.

Esta combinação resulta em diferentes trilhas-sonoras para diferentes filmes, embora


deva confessar que, à moda dos lançamentos da Raster-Noton, negligencio a
propedêutica do artista, para favorecer o resultado sonoro. Ou seja, embora não visualize
particularmente a qualidade imagética de cada uma das faixas, o resultado propriamente
musical é bem sucedido.

Curioso que encontremos este “cine privê” completamente povoado por presenças
especiais, a começar pela co-produção de Moreno Veloso, pela gravação do guitarrista
Gabriel Muzak e a mixagem de Mario Caldato, que por sua vez trouxe Money Mark, “o
quarto Beastie Boy”, para tocar escaleta na lírica e impressionante “Fortaleza” – que
conta com a sonoridade agoniante de corda rangendo, simulada por uma combinação de
bateria, sax barítono e escaleta. “Receita”, parceria com Jorge Mautner, chama a atenção
pela prazerosa levada “transamba” – para usar um termo caro ao último álbum de
Caetano Veloso –, assim como a frenética “Zona Portuária”, versão da faixa homônima
composta para a trilha-sonora do espetáculo de dança Ímã, produzido pelo Grupo Corpo –
cuja letra revela um jogo divertido de palavras, divididas de acordo com o andamento da
percussão.

Duas outras são dignas de nota especial. A breve parceria com o trombonista Marlon
Sette, “Sua beleza”, composta em 3/4, cujo tom onírico se conjuga com a melodia
semelhante à trilha-sonora de seriado de ação, do tipo “Missão Impossível”. E a faixa
mais experimental, “Pedra e areia”, parceria a dez mãos com Pedro Sá, o guitarrista
Alberto Continentino, Moreno Veloso e a cantora Adriana Calcanhotto, que traz uma
saborosa levada afro, novamente marcada pelo jogo com as palavras e o ritmo.
Não me parece exagero afirmar que é um disco que espelha, simultaneamente, toda a
experiência musical do autor, filtrada pela lente da canção, mas de uma canção que não
se deixa levar pela tentação bem brasileira de amolecer a roupagem, torná-la palatável,
simplória. Antes testemunha uma maturidade concentrada, uma espontaneidade segura de
si e, sobretudo, absolutamente particular no cenário nacional. Neste sentido, Cine Privê se
apresenta como o documento mais convincente e poderoso da trajetória de Domenico,
bem como do talento de compositor e criador de sons.

Kode9 & The Spaceape – Black Sun (2011; Hyperdub, Reino Unido)
Kode9 é o pseudônimo do DJ, produtor, empresário e filósofo escocês Steve Goodman.
Junto a Digital Mystikz e Loefah, outros dois produtores pioneios do dubstep, Goodman
foi revelado pela coletânea Grime, do selo Rephlex. No mesmo ano, deu início aos
trabalhos do selo Hyperdub, adquirindo notoriedade por lançar o primeiro álbum de
Burial, em 2006. Também em 2006, junto com seu parceiro e MC Stephen Samuel
Gordon (conhecido como Spaceape ou Daddy Gee), lançou seu primeiro álbum,
Memories of the Future. Nos cinco anos seguintes, editou um volume dos DJ Kicks,
alguns singles e um livro, Sonic Warfare: Sound, Affect, and the Ecology of Fear. O
álbum ainda conta com a participação da americana Cha Cha em seis faixas. (BO)

*#*

O primeiro álbum de Kode9, “Memories of the Future”, não gerou propriamente


unanimidade à época de seu lançamento. Me lembro de resenhas desfavoráveis e um
certo preconceito por conta do andamento demasiado lento. O consumidor médio de
música eletrônica estranhou não somente a lentidão do andamento, mas também a
orientação musical do trabalho, que se aproximava mais do balanço sinuoso do dancehall
e ragga, do que da bate estaca do tecno, house ou UK Garage.

Cinco anos depois, “Black Sun” retoma algumas premissas presentes nesse disco: a
música, ragga e dub, como matéria-prima, e o conceito, o “futuro”, como ambiente.
Portanto, não me parece estranho que Steve Goodman, conhecido como Kode9, e seu fiel
escudeiro Spaceape, tenham substituído os baixos BPMs por uma miríade percussiva
muito particular no cenário contemporâneo. Não se trata de adequação ao dubstep 2011,
mas da recuperação bem sucedida de elementos próprios ao trabalho da dupla.

É um disco repleto de batucadas irrepreensíveis, fabricadas a partir de células rítmicas


características do ragga, misturadas a elementos do tecno e UK Garage. E isto a partir de
uma série de procedimentos, tais como justapor duas batidas, como na sensacional
“Otherman”; substituir notas fortes por notas fracas, como em “The cure” e “Neon red” –
duas das seis faixas que contam com a presença da americana Cha Cha; ou ainda,
ressaltando as ressonâncias dos graves, como em “Promises”, na qual os bumbos
acompanham o flow vocal de Spaceape.

Goodman imprime a estranheza de timbres ultrasintéticos, o que confere um aspecto


ambíguo à maioria das faixas: percussivas e solares, mas, ao mesmo tempo, carregadas e
pesadas. As batidas e texturas soam como que esfaceladas, desconstruídas em favor de
mais imprecisão rítmica e suingue – “Abeng”, faixa produzida para o álbum de
remisturas do lendário produtor jamaicano Scientist, e, pouco depois, o primeiros single,
“Otherman/Love is the drug”, já indicavam esta tendência, comprovada pela apocalíptica
“Black smoke” e tantas outras faixas – à exceção dos interlúdios harmônicos “Hole in the
sky” e a colaboração com Flying Lotus, “Kryon”.

Em termos de estrutura, podemos observar uma riqueza de movimentos e modulações –


as faixas mudam sutilmente – além de inserções súbitas, detalhistas – como viradas de
bateria, aplicação de ecos e momentos estratégicos de silêncio. É um álbum mais
malicioso que sombrio, é a conclusão que se chega após escutar a penúltima faixa, “Am
i”, em diálogo aberto com a agressividade sonora do grime. De um lado, uma sonoridade
sagaz, múltipla. De outro, o conceito: “o álbum é realmente sobre populações lidando
com consequências ecológicas de um evento radioativo”, afirmou Goodman
recentemente.
À parte as distopias e discursos politizados – que tem importância e devem ser analisadas
– nos cabe aqui afirmar a originalidade musical de “Black Sun”. Seus rivais não são nem
poucos, nem frágeis: Burial, FaltyDL, 2562, Shackleton, e alargando o espectro musical,
os aguardados novos álbuns de Ricardo Villalobos e Richard D. James (Aphex Twin). No
meio dessa turma poderosa, Kode9 & The Spaceape garantiram um lugar especial,
através de um disco tão forte e belo quanto à imagem poética de um “sol negro”, que
ostenta em sua capa.

***

O ambiente soturno, os ritmos quebrados e o andamento acelerado emanam um ar de


décadence, a alimentar distopias fundadas no tédio, no “espírito da cultura”, no desespero
da existência, na vacuidade da sociedade de consumo… De um lado, o pessimismo
futurista, assombrado pela tensão entre a herança pós-colonial e o decantado preconceito
racial. De outro, uma de suas contrapartidas mais evidentes e poderosas: a música,
particularmente um mélange diversificado de hip hop, toda a pluralidade da música
jamaicana, gêneros dançantes derivados da disco, e a influência direta da música
eletrônica dos anos 70 e 80.

Black Sun é mais uma pequena prova de que a arte nada tem a ver com a lamúria; antes,
ela irrompe como um problema, um deleite, um fetiche, uma obsessão. Portanto, todo o
“mal estar” é apenas parte de um truque, apenas cenário: resta, soberana, a novidade
desconcertante da música de Kode9 & The Spaceape. A topologia sonora acidentada
evoca a diversidade cultural proveniente do caldeamento racial inglês, resultando em uma
música apocalíptica e pós-diaspórica. E, no entanto, apesar de refletir sobre um contexto
tenso e injusto, este talvez seja o aspecto mais admirável em Black Sun, isto é, seu caráter
meditativo. Talvez por isso traga um gosto particular por sonoridades
“desmusicalizadas”, como recortes de guitarras carregadas de efeito e sons variados de
sintetizadores, adicionando-os sobre a base rítmica, em um procedimento inclusivo, caro
ao dub.
Percebe-se agora que as premissas de Memories of the Future não se encontram hoje tão
ultrapassadas como se poderia imaginar: Black Sun as utiliza, mas reconfigurando o
ritmo para criar mais densidade sonora e nuances climáticas, mas com um grau acima do
primeiro álbum. Caracterizado pela relação estreita entre sotaque patois de Spaceape e a
exploração de células rítmicas do ragga, Black Sun é um álbum de batucadas
contagiantes, com um forte acento experimental em cada uma das doze faixas.

Dentro desses critérios, o disco flui perfeitamente. Tem suas faixas enérgicas, como a
batida marcada no contratempo em “The Cure”, o ragga digital, parecido com um baião,
em “Black Smoke”, o acento grime de “Am I”. Repara-se também as faixas mais lentas,
que se destacam por sutis modulações da percussão em “Promises” e na introspectiva
“Otherman”. Duas faixas techno distanciam Black Sun ainda mais de Memories of the
Future: na faixa-título e na belíssima “Love is the Drug”, techno cujo suingue foi
realçado pelo posicionamento estratégico de alguns tambores e a bela voz da cantora
americana Cha Cha. Notáveis também as incursões “ambient”, como “Kryon” (com
participação de Flying Lotus) e a “Hole in the Sky”, e instrumentais interessantes como
“Green Sun”.

Rio de Janeiro, balneário cosmopolita, contradição das contradições: que outra cidade
poderia abraçar, na primeira hora, um grande nome do dubstep para, em seguida, negá-lo
até morte? A primeira aparição de Kode9 (sem Spaceape) no Brasil foi no Rio, junto a
outros nomes como Scanner e Daedelus, e já naquela época sua apresentação se
destacava pela introspecção e as vibrações sombrias. A cena era engraçada, imaginem:
umas oitenta pessoas no pilotis do Museu de Arte Moderna do Rio, sem saber exatamente
o que fazer com o andamento extremamente lento, uns batendo a cabeça, outros
marcando com o pé, outros simplesmente ouvindo. Depois disso, a cidade se fechou para
o gênero, mesmo depois da sua fragmentação e aceleração. E nada faz crer que sob a luz
deste “sol negro” algo mudará esta situação. (Bernardo Oliveira)

Akita/Gustafsson/O’Rourke – One Bird Two Bird (2010; eMego, Áustria [Japão])


Existiriam limites para a exploração sonora e, para além dela, o gosto por explorar esses
limites? A aparente contradição pode fornecer um parâmetro razoável para definir a
associação que assina este álbum. Masami Akita, mais conhecido como Merzbow, lida
direta e intensamente com a borda. Como um operário dos ruídos que se esmera em
milhares de artífícios, de modo a extrair sentido dos sons que não partilham do rótulo
“música”, Akita é o maior e mais contundente exemplo de artista que tem gosto por
esgarçar limites. Ele não é construtivo, não possui seguidores, não abre correntes: seu
trabalho pode excitar, mas não empolga. Força bruta, pressão e depredação sonora: seu
ofício é destruir sem destino, nem amanhã. O niilismo de Akita é político, mas não é
“cultural”: seu trabalho é contracultural. Ao passo que o de seus companheiros, Mats
Gustafsson e Jim O’Rourke, se encontra a meio caminho entre a diversas vertentes
musicais e a utilização pontual de ruídos e sons “não-musicais”. É possível, porém,
combinar essas duas prerrogativas aparentemente complementares, mas que no frigir dos
ovos, se afiguram absolutamente distanciadas? Não se negocia com o noise, certo? Ele
recobre a tudo como a noite recobre o dia. Enquanto os dois últimos podem criar
mediações, dificilmente Merzbow será o tipo de autor que regulará seu trabalho com
sonoridades mais acessíves, mesmo que estejam circunscritas ao raio sonoro do free-
improv.

Mas em One Bird Two Bird o improvável acontece. Na verdade, já havia me


surpreendido com a riqueza de Merzbient, na sensibilidade com que Akita traduziu o
universo desafiante do noise para uma estrutura econômica, para uma sonoridade que
incorpora outras possibilidades de “barulho”. Pois esta capacidade deproduzir sons com
economia, e de compô-los de forma mais espaçada, favorece o encontro com as
particularidades dos dois grandes improvisadores que estão ao seu lado. Nas duas faixas,
Merzbow não opta pelo excesso, mas pelo diálogo. Gustafsson e O’Rourke, cada um a
sua maneira, promovem interações admiráveis com o arsenal de Akita. Em “Two Bird”,
por exmeplo, lá pelo nono minuto, Akita equaliza o volume de suas explosões para
desenhar um momento de improvisação intensa, realizado pelo saxofone descontrolado
de Gustafsson. Eles prosseguem em um crescendo, entretanto, sem que “a noite” paire
sobre tudo. Pelo contrário, o que sobressai na improvisação do trio é a capacidade de
tornar equânimes as intervenções improvisadas, criando diálogos que seriam impensáveis
em se tratando da virulência sonora de Akita. Nos quarenta e poucos minutos de One
Bird Two Bird muitos são os momentos em que se percebe a coerência do trio.

Alguns poderão dizer que Merzbow foi como que domado pelo instinto de produção de
O’Rourke, mas não é por aí: assim como nos volumes de Merzbient, a radicalidade aqui
reside na capacidade de mediar os volumes e fazer seus sons dialogarem. A intensidade
fica resguardada, portanto, nas modulações e diversos momentos, e não na pressão e na
saturação. Logo, não estamos diante somente de um exemplar raro ou de um momento
brilhante de improvisação contemporânea. Mas frente a um outro momento da música
barulhenta e asfixiante de Masami Akita – o que, diga-se de passagem, não é pouco.
(Bernardo Oliveira)

Phew – Five Finger Discount (2010; BeReKeT, Japão)


Foi o Ruy quem me apresentou o trabalho da Phew, que a princípio eu tinha entendido
como “few”. A busca no Discogs causou uma tremenda impressão, pois seu primeiro
disco, datado de 1981, foi produzido pelo legendário Konrad Plank e membros do Can,
basicamente Holger Czukay e Jaki Liebezeit. Mais do que depressa corri para verificar se
era de fato genial. E era. Faixas como o dub astronômico “Kodomo” e o punk futurista
“P-Adic” são obrigatórias no meu iPod. O que mais sai do balaio dessa simpática
japonesa?

Our Likeness, lançado em 92, foi minha segunda experiência. Um álbum mais lírico,
próximo, por exemplo, do punk gótico de Siouxsie. Trazendo Jaki Liebezeit novamente
na bateria, o disco não constituía exatamente uma facilitação de seu trabalho, muito pelo
contrário. Mas não pude deixar de reparar a preocupação na instrumentação em favorecer
o canto e canção, do que o aspecto colaborativo e rigorosamente formal de 11 anos antes,
quando seu canto funcionava para a composição de um ponto de vista musical.

Mais tarde, escutei View, disco de 87 no qual a coisa desanda em canções mornas. E aí,
em pleno 2010, Phew nos brinda com um novo álbum, Five Finger Discount. A caçada é
dura, e o disco só aparece por aqui no início deste ano. Na lista de participações, nomes
do novo e do antigo rock experimental japonês, como Tatsuhisa Yamamoto, o guitarrista
do Most, Hisato Yamamoto, o multiinstrmentista Seiichi Yamamoto (que é um dos
membros do Boredoms, KK Null e Most), a fantástica improvisadora Eiko Ishibashi (que
gravou a pérola Slip Beneath The Distant Tree, com Tatsuya Yoshida), Jim O’Rourke,
entre outros. O que esperar?

Bem, a primeira música nos prega a peça de relembrar algo de View, talvez o aspecto
baladeiro. Chama-se “Rue Auble”, e só depois de simpatizar plenamente com o disco
encontramos sua beleza. Já a partir da faixa seguinte, “Sekai no Hatemade Tsuretette” a
boa impressão se consolida na progressão dissonante, no ritmo trôpego que aos poucos
sobe de tom até terminar em fade out. A comparação inevitável com o trabalho de
Brigitte Fontaine ocorre quando chegamos à versão irônica de “Love Me Tender” e
“Thatness and Thereness”.

Mas o fato é que o álbum é melancólico, uma sequência de lindas composições,


delicadamente ornamentadas com sonoridades do kraut, do pós-punk e da música
eletrônica: a singela “Dokokade”, a soturna “Fushigina Hi” e o encerramento tristonho
com “Yumede Aimasho”. A sequência só é quebrada com o rock’n’roll visceral de
“Shonenwa Koyawo Mezasu”, no qual Phew esboça sua verve Iggy com prazer de quem
sabe o que está fazendo.

Five Finger Discount é um disco difícil, sem dúvida. Ainda mais para quem tem como
parâmetro o agitado álbum de 81. A voz de Phew não é exatamente o que se considera
uma bela voz, mas ela explora outros caminhos, que não os da beleza. As
instrumentações são muito sutis, às vezes operando com pouquíssimos elementos, às
vezes explorando bem os andamentos, os climas. Mas conforme se percebe a
espontaneidade e a profunda concentração com que cada nota é executada nesse belo
trabalho, chegamos a conclusão de que estamos diante de uma autora especial, do quilate
de Kate Bush, Patti Smith, Brigitte Fontaine… (Bernardo Oliveira)
Boubacar Traoré – Mali Denhou (2011; Lusafrica/Proper, França [Mali])
A história do cantor, compositor e guitarrista malinense Boubacar Traoré começa no
início da década de 60, quando ele despontou no cenário musical de seu país com uma
mistura de ritmos tradicionais da etnia Kassonké, música árabe e blues. Amargou o
ostracismo nas décadas seguintes, mas em 1987 apareceu em um programa de TV no
Mali, causando comoção. Pouco tempo depois, com o falecimento de sua esposa, Traoré
se mudou para Paris, onde trabalhou na construção civil. Até ser redescoberto pelo selo
britânico Stern’s, que lançou Mariama, seu primeiro álbum, em 1990. Desde então,
Traoré se manteve como um dos nomes mais importante da música malinesa. Mali
Denhou é seu sétimo disco, o primeiro desde Kongo Magni, de 2005. (B.O.)

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Como evitar as analogias, como preservar a diferença desta música em relação a outras
inflexões griots, como por exemplo o songhaï de Sidi Touré, camarilhado na semana
passada? Apesar das dificuldades técnicas – por exemplo, a polissemia de palavras como
griots, kassonké e songhaï, que representam etnias e ritmos ao mesmo tempo –, paira
soberana a riqueza da mistura de Boubacar Traoré, conhecedor do blues, e habitué dos
grandes centros urbanos do Ocidente e o do Oriente.

Mali Denhou é o nome de batismo do novo trabalho deste incansável cantor, compositor
e instrumentista malinês. Seu aspecto, como no álbum abaixo, de Aaron Neville, é o de
uma música que mantém seu encanto porque permanece enraizada em práticas
relativamente ancestrais – a mais notável consistindo em inserir sutis variações sobre um
tema que se repete, pontuando as palavras sobre o eixo melódico. Mas a música de
Traoré não é meramente “tradicional”, ela se altera no tempo, se mistura na selva de
referências. Essas variações são perceptíveis, sobretudo em comparação com seu último
disco, Kongo Magni.

Cada vez mais sua música é permeada por alusões e inclusões. Guarda semelhanças
interessantíssimas com a música árabe, e também com a música arabo-andalusa – daí o
aspecto “latino” de faixas como “Dundobesse M’Bedouniato” e “Mondeou”. Se aparenta
demais com o blues, mas também com a levada sincopada do cajun de Nova Orleans, em
pérolas como “M’Badeou” e “Djougouya Niagnin”; e traz também uma percussão
sofisticada, quase melódica, que valoriza o diálogo entre as cordas balouçantes e a voz
arenosa de Traoré. Uma beleza que se traduz em parcimônia, mas também em esmero.

De nada adianta recontar a história de Traoré, sublinhando seus feitos extraordinários, a


notoriedade reconquistada décadas depois de suas lendárias aparições nas rádios de
Bamako, a mistura prodigiosa de blues americano, música árabe e malinesa, como emana
descontração, calor… De nada adianta repetir todo o cortejo de argumentos, exclamações
e elogios que surgiram na época de seus dois primeiros álbuns, Mariama e Kar Kar, que,
em todo caso, podem permanecer perfeitamente válidos. Mas… de que adianta? Ao leitor
curioso recomendo que pesquise a vida de Traoré, pois temos aqui, diante de nós, o seu
presente e o seu futuro. (Bernardo Oliveira)

Bombino – Agadez (2011; Cumbancha, EUA [Níger])


Cantor, compositor e guitarrista virtuoso, Omara Moctar, conhecido como “Bombino”,
chamou a atenção mundo afora através de seu primeiro trabalho com um suposto “Group
Bombino”. Em entrevista recente, Omara esclareceu que nunca teve o tal “group”, e que
este nome foi escolhido pelos produtores da Sublime Frequencies. De forma que Agadez,
gravado no Reino Unido, é o primeiro trabalho solo de um dos principais nomes da
guitarra Tuareg. (BO)

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Sejamos francos: a experiência política que Fela Kuti protagonizou em sua terra natal é
irredutível ao culto em torno de sua música e de sua personalidade explosiva e enérgica.
Trata-se apenas de uma ilusão ideológica, cultivada por fãs que, antes de mais nada,
idolatram a música. O mesmo ocorre com Bob Marley: o curioso que se debruça sobre as
realizações políticas de Haile Selassie, pode se surpreender, sobretudo contrastando-as
com os ideais de libertação e emancipação valorizados no seu discurso.
É preciso tomar cuidado para não confundir de forma simplória a inspiração causada pela
música e as cincunstâncias históricas e políticas que lhe dão suporte. Por outro lado, sua
audição não dispensa o arcabouço histórico de forma tão imediata. Vale lembrar, por
exemplo, que as guitarras e efeitos entre os chamados “tuaregs” podem ser explicados
pela necessidade de um povo nômade, prejudicado pela desastrosa intervenção francesa,
de transportar instrumentos mais leves e eficazes.

Dito isto, vale perguntar: como avaliar Agadez, o primeiro trabalho solo de Omara
“Bombino” Moctar, nome de destaque do contexto musical chamado “tuareg”? Segundo
consta, a terminologia correta, adotada por eles mesmos, é “kel tamasheq”, e não
“tuareg”, palavra árabe que significa “abandonado pelos deuses”… Não seria uma
incoerência analisá-lo esteticamente, deixando de lado as implicações políticas que dão
sentido à sua obra?

Agadez não é somente o terceiro ou quarto álbum “estrito sensu” deste panorama (os
primeiros são do Tinariwen), como também exprime a personalidade musical
especialíssima de Bombino. Depreende uma concepção musical específica, dando outro
sentido à sonoridade supostamente “universalizada”, projetada pela Sublime Frequencies.
Os álbuns do Tinariwen, Group Inerane, Group Doueh e de seu suposto grupo, o Group
Bombino, eram constituídos por uma série de procedimentos específicos – desde a
compilações de fitas cassetes até gravações de estúdio –, que traziam a novidade do estilo
de tocar guitarra, do ritmo sincopado e hipnótico, da semelhança com o suingue de Jimi
Hendrix e da aplicação dos efeitos – estas últimas características maliciosamente
“esquentadas” pela imprensa especializada.

Mas com as dez faixas de Agadez, algumas delas gravadas ao vivo na mesma cidade que
batiza o álbum, Bombino apresenta sua própria perspectiva musical, da forma como ele a
concebe de fato. Criada e desenvolvida por um indivíduo oriundo da história tamasheq, a
música de Bombino não é, de forma alguma, redutível a ela. Há, portanto, estilo,
tonalidades, nuances e diversidade em Agadez, presentes na guitarra repetitiva de
“Kammou Taliat”, na energia pop de “Tenere”, nos rasgos hendrixianos de “Tar Hani”.
Seu canto rouco, dobrado em estúdio, adquire um aspecto arenoso e aparentemente
vulnerável, mas que nunca se revela escasso, desértico. Bombino destila um toque de
guitarra que consegue emanar seus acordes com aspereza e limpidez. E finalmente
percebe-se a influência efetiva de uma linguagem rock, que se supunha apenas lateral.

Uma incoerência analisá-lo esteticamente, deixando de lado as implicações políticas? A


resposta é: não, pelo contrário. Justamente para não sacrificar nem a história, nem a
música, vale tomar cuidado para não romantizar nenhum dos dois aspectos. Tomando
como referência as compilações editadas pela Sublime Frequencies, o lançamento de
Agadez é de fundamental importância para acessar o sentido da música “tamasheq”. Ele
traz algo mais, além de um contexto. Ele revela um poeta e um guitarrista de talento
impressionante e indiscutível. Duvida? Ouça o solo de “Tigrawahi Tikma” e comprove.
(Bernardo Oliveira)

Tyler, the Creator – Goblin (2011; XL, EUA)


Perdoe a autoreferência, mas “no meu tempo” o que nós chamamos hoje hype tinha outro
nome: chamava-se “moda”. Lembro de ler em algumas das revistas de música brasileiras
da década de 80 alguém falando em “Public Enemy, a próxima moda”… Neste caso, todo
o “hype” se orientava pela combinação explosiva de frases e atitudes militantes com uma
música empolgante, que incitava os “afroamericanos” à revolução. Antes e depois desse
fenômeno magistral, no entanto, a moda oscilou de alguma forma atrelada a uma
dinâmica de atração e repulsão, seja no fenômeno das boy bands, seja no punk rock mais
visceral, e ainda mais agora, com as gradações se afirmando e intensificando segundo
estratégias que variam igualmente o teor de imprevisibilidade. Neste balaio, cabem tanto
a Rebbeca Black como a Lady Gaga, tanto o Jack Jonhson quanto Tyler The Creator. O
“hype”, ou a “moda”, comporta aquilo que chama a atenção, cativa, seja doce ou amargo.

E apesar do excesso de “fucks” e “faggots”, não se fala de outra coisa. É o hype, a moda.
Mas é preciso ir além. É preciso, inclusive, superar todo o entulho da lógica do hype para
aferir se de fato o garoto é talentoso mesmo, ou se é fogo de palha. E o fato é que já há
algum tempo o rap não ganhava um presente tão especial. Quando se imaginava que ele
seria cooptado definitivamente pelo clã “Rocawear”, pelos bad boys de plantão ou pelos
artistas bem comportados e devotados à música como Doom e Mos Def, vem esse tal
Tyler, com energia transbordante, ao lado de amigos igualmente talentoso (aguardo o
primeiro álbum de Earl Sweatshirt), criando rebu por onde passa, protagonizando uma
apresentação demente no Fallon… Será só hype? E a música?

A música, pasmem, é também ela inebriante, forte, pesada. O hype não vem somente do
barulho causado pela fofocada em torno de seu nome, mas, sobretudo, pelo frescor do
rap, feito no quarto, estiloso, lento, repetitivo, com letras agressivas até um limite
perigoso. A voz estranhamente grave de Tyler entoa faixas já clássicas como
“Sandwitches”, “Yonkers”, “Radicals”, “Bitch suck dick”, “Tron Cat”. A hostilidade em
níveis alarmantes das letras, contrasta com os arranjos, comparáveis a um território árido,
inóspito ao flow do rap. Sabemos bem que não é exatamente inédito, mas destaca-se o
talento do autor para ambientar o ouvinte em um território que se esforça por parecer
inédito. Com isso, consegue de fato criar tonalidades estranhas, reduzindo o andamento, o
número de elementos e até mesmo retirando a batida de algumas faixas, como a faixa-
título, Goblin.

Tyler The Creator não poderia ter batizado seu primeiro álbum mais apropriadamente. De
fato, ele personifica o papel do “goblin” nesse universo de atitudes e projeções
desproporcionais, aquecido pelas redes sociais. Eu também não sabia, mas recapitulando:
o goblin é um personagem mítico, ligado aos jogos de RPG, que fomentam guerras
estragam comida, etc. Um personagem do mal, sórdido, desbocado, violento,
imprevisível. Em um mundo que valoriza cada vez mais aquele que se diz “do bem”, que
vive o desequilíbrio da proto-objetivação fajuta (a moral coletiva) e da pseudo-
subjetivação radical (a moral privada), Tyler é quase um equívoco, um contratempo, um
erro de percurso. Ele coroa essa percepção em uma das melhores faixas do ano.
“Fuck your traditions, fuck your positions/Fuck your religions, fuck your
decisions/They’re not mine, you gotta let ‘em go/We can be ourselves, but you gotta let
us know/You gotta let ‘em go” (“Radicals”)

Vladislav Delay Quartet – Vladislav Delay Quartet (2011; Honest Jon’s, Reino
Unido [Finlândia])
Conhecido por projetos e pseudônimos como o Vladislav Delay, Luomo, Uusitalo e
Sistol, além de integrar o trio de Moritz Von Oswald, o finlandês Sasu Ripatti (bateria e
percussão) juntou-se a músicos de vasta experiência no universo da eletrônica e da
improvisação. Mika Vainio (eletrônicos), metade do Pan Sonic (ex-Panasonic), parceiro
de Kaijo Haino e experimentado na área do noise. Lucio Capece (clarineta baixo e sax
soprano) parceiro de Vainio, do trombonista Radu Malfatti, do guitarrista Toshimaru
Nakamura, entre outros. Derek Shirley (double bass), jovem improvisador integrante de
grupos como Monno, Coal Oven e Unununium. Gravado na Radio Yugoslavia Studios,
na Sérvia, Debut, como diz o título, é o primeiro álbum do quarteto. (BO)

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As raias da improvisação parecem cada vez mais distantes de uma forma tradicional, um
eixo sonoro que forneça um norte para a sonoridade e a composição. Apesar de presente
na grande maioria das manifestações musicais populares de todos os tempos, durante o
século XX a improvisação foi explorada majoritariamente pelo jazz, o gênero que a
abraçou como método e espírito.

E, no entanto, parece que hoje a forma foi descarnada dos maneirismos jazzísticos e
incorporada a uma variedade de possibilidades, algumas beirando o inominável. Este ano,
além do segundo trabalho do Moritz Von Oswald Trio, ainda tivemos a intrigante
reformulação do Aethenor, a colaboração espetacular de Masami Akita com Jim
O’Rourke e Mats Gustafsson e este registro poderoso do quarteto de Sasu Ripatti, sob a
alcunha Vladislav Delay.
Não deixa de chamar atenção o fato de que as últimas empreitadas do músico finlandês
tenham como elemento comum o trabalho de improvisação em conjunto. Porém,
enganam-se aqueles que julgam apressadamente o Vladislav Delay Quartet à luz da
participação de seu band leader no trio de Mortitz Von Oswald. A exceção da forma
aberta, “jazzística”, com que pavimentam a composição, a sonoridade difere
radicalmente, conservando-se apenas o elemento coletivo e improvisacional.

Emerge em Debut uma concepção aberta, para além do ritmo, dos andamentos regulares
e do colorido ocasionado pela síntese de elementos acústicos e eletrônicos. Aqui, é o
noise, o barulho, o ruído, que fornece a direção. Neste percurso, sobressaem dois
ambientes sonoros, unidos pelo caráter de improvisação livre.

Um primeiro, pronunciadamente rascante, compacto e volumoso, em pleno diálogo com


o noise, como por exemplo na tensão industrial de “Hohtokivi” e na faixa de abertura,
“Minus Degrees, Bare Feet, Tickles”. Outro, fragmentário, mais abstrato, espaçado e
aberto à incursões minuciosas, como nas belíssimas “Santa Teresa” e “Das Abend”. Mas
é na comunhão entre esses dois ambientes que Debut alcança o seu ápice.

Me refiro à excepcional solução estética encontrada pelo quarteto na melhor faixa do


trabalho, “Louhos”, uma combinação improvável de industrial, IDM, free-improv e jazz
estrito sensu. Inclusive, podemos atribuir a tensão do crescendo que caracteriza a faixa ao
equilíbrio perfeito entre as sonoridades compactas (provável cortesia de Vainio) e
sinuosas (do sax soprano de Capece).

Em “Killing The Water Bed”, outro grande momento, este crescendo se apresenta de
forma ainda mais acentuada, visto que, no início da faixa, a combinação da levada de
prato de bateria com contrabaixo e saxofone aproxima a sonoridade consideravelmente
do jazz tradicional, para culminar com uma pletora de ruídos, com ênfase na percussão
diáfana de Ripatti.
O emprego de expressões como drone, IDM, noise, free-improv, etc, em busca de uma
orientação, permite ao ouvinte tatear o espaço sonoro. Diante de um dos grandes
exercícios de improvisação dos últimos anos, ele se encontra preso ao inominável, ao
invisível, àquilo sobre o qual nada se pode dizer sem antes fruir. O título Debut, portanto,
condiz com o conteúdo da música, pois convida o ouvinte a acompanhá-lo neste zigue-
zague de possibilidades sonoras, aparentemente sem destino. Ao final, resta um zumbido
no ouvido e uma sensação de uma experiência sonora sem precedentes. (Bernardo
Oliveira)

Metá Metá – Metá Metá (2011; Circus/Desmonta, Brasil)


Metá Metá é um trio formado pelo compositor, violonista e artista multimídia Kiko
Dinucci, pelo produtor e saxofonista Thiago França e pela cantora Juçara Marçal. Além
de seus álbuns solos, com o Bando AfroMacarrônico, Dinucci e Marçal lançaram Padê
em 2007. Thiago França é produtor com vários trabalhos na seara do samba paulistano,
inclusive a produção do primeiro álbum da cantora D. Inah. O presente álbum homônimo
é o primeiro trabalho do trio. (BO)

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Filha dos conturbados anos 60, a MPB é depositária de tantos conflitos e contradições
que sua consolidação e suposta representatividade chega a causar espanto. Não é
incomum ouvirmos a confusa identificação desta sigla histórica com o amplo espectro da
música desenvolvida em terras brasileiras – pois classificar tecnobrega e guitarrada como
“MPB” é, no mínimo, redutor. E no entanto, mais estranha ainda é sua condição: apesar
de todas as vertentes e possibilidades sociais e culturais que vieram a se cristalizar por
razões que ultrapassam a questão musical, restou uma sonoridade que enfrenta seu ocaso
estético há pelo menos vinte anos. Hoje, o rótulo MPB está ligado a um regime sonoro de
influências, modelos, timbragens e instrumentos na maioria das vezes idênticos.

São raríssimos os casos nos quais não se imponham violões e percussões os mais
ordinários, geralmente embalando canções igualmente ordinárias. Mas existem também
os casos que conjugam os elementos desta sonoridade com arte e engenho, que inventam
linhas de fuga de um sistema sonoro viciado e preguiçoso. Como os primeiros discos de
Guinga, as incursões musicais de Luiz Tatit e José Miguel Wisnik, algo de João Bosco e
Luiz Melodia, algo traficado pelo rock de Los Hermanos e Do Amor… Pois bem: olhos
abertos, pois estamos diante de um desses casos.

Na primeira faixa, um susto: violão preparado, envolto em ruídos, entoando “Vale do


Jucá”, belíssima composição de Siba Veloso, presente no álbum Fuloresta do Samba.
Seria um problema no aparelho de som, na mixagem? Não, trata-se de uma escolha
estética, perfeitamente adequada à aridez e ao sentido poético da canção de Siba. A
sequência é igualmente promissora, “Umbigada”, uma inflexão sofisticada dos vissungos
recolhidos por Aires da Mata Machado, gravados por Clementina de Jesus, Tia Doca da
Portela e Geraldo Filme em 82, sob o título O Canto dos Escravos. O violão gagueja com
malícia, sambando sobre a melodia entoada pelo canto de Juçara Marçal.

Adiante, três momentos de força criativa na composição e no arranjo: o arpeggio


“hermético” (de Hermeto) executado por violão e sax em“Papel Sulfite”, do capixaba
Jonathan Silva (integrante do grupo Zabandá); as intrincadas articulações semânticas e
coloquiais em “Trovoa”, do ex-Mulheres Negras Maurício Pereira; o saxofone
“preparado” e as estripulias descritas em gírias paulistanas presentes em “Samuel”,
composição de Dinucci com Rodrigo Campos (o palavrão na MPB nunca foi utilizado
com tanta propriedade: “O ‘Deto’ é doido pra caralho / Zoou o guardinha daquele
conjunto quadrado / Depois roubou moeda do homem-estátua de lata”).

Particularmente, já seria suficiente para que eu me convencesse de que o primeiro disco


do trio Metá Metá é coisa fina, para se escutar com muita atenção. Mas aí veio o xeque-
mate, em uma sequência final que ressucita certas linhagens da chamada MPB e que,
apesar de cantadas e decantadas, foram ou apagadas pelo tempo ou simplesmente
diluídas. O eco profundo do samba pós-bossa de Baden Powell, Toquinho e Billy Blanco
em “Vias de fato”. Por mais que se possa entrever essa influência, elas não se reduzem a
mera citação, pois há emoção e força na interpretação, para além da nostalgia e do fetiche
em “fazer idêntico”. Depois, a parceria de Douglas Germano (ex-Bando
AfroMacarrônico) e Dinucci: “Oranian” se destaca pela forma como sintetiza ora os afro-
sambas, ora a instrumentação bossanovista da virada dos anos 60 para os 70, sobretudo
no trabalho do grupo de Elis Regina. A precisão enxuta da voz de Juçara Marçal, a
sugerir o timbre melífluo de Alaíde Costa, completa o aspecto referencial da faixa, mas
não diminui sua beleza.

Sobressaem algumas dinâmicas de percussão, sopros e cordas que me tentaram a fazer


comparações com o chamado pós-rock de Battles e companhia. Sem dúvida um sintoma
de que, apesar de se filiar a um campo de influências e sonoridades próprias à chamada
MPB, Metá Metá o faz com uma ambição que não se escuta por aí. “Obá Iná”
exemplifica essa tendência, com seu ritmo dançante e agitado, quase um carimbó – além
da coda espetacular, em ritmo de candomblé. A descontração do afrobeat de
encerramento “Ora Iê iê o” compensa um dos poucos deslizes do disco, a convencional
“Obatalá”. Mesmo nesses poucos casos, a execução é vigorosa, e boa parte da beleza do
disco se deve a essa característica.

Metá Metá constrói seu primeiro álbum a partir das ruínas de uma MPB vetusta e
aparentemente sem rumo. Tanto que não soa anacrônico, mas, à moda dos últimos discos
de Allen Toussaint e Aaron Neville, confere outras nuances a uma sonoridade desgastada.
Ecos do já citado Baden Powell dos afro-sambas, do Edu Lobo de Cantiga de Longe, do
Fino da Bossa… E, evidentemente, uma forte presença de Itamar Assumpção, Premê e
todo o contexto experimental que marca a “lira paulistana” nos últimos 30 anos. Ainda
que as vertentes tropicalistas não sejam de forma alguma perceptíveis em termos sonoros,
estão presentes no espírito desbravador do álbum. De fato, não é todo dia que ouvimos
violões preparados e bateria quebrando tudo em discos do gênero. E este é apenas um dos
diversos motivos pelos quais Metá Metá é talvez o mais surpreendente disco brasileiro do
ano. (Bernardo Oliveira)

Andy Stott – Passed Me By (2011; Modern Love, Reino Unido)


Andy Stott é um produtor britânico, especializado em techno e dubtechno, mas que opera
também na seara do dubstep e adjacências. Com o inglês Miles Whittaker, parte do
Demdike Stare, integra o projeto Millie & Andrea. Seu primeiro álbum, Merciless, foi
lançado em 2006. Passed Me By é seu segundo álbum solo. (BO)

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Não há como não recuar com um certo espanto diante da introdução de Passed Me By. A
foto da capa pode não dizer muita coisa, não indica nem mesmo o autor. Mas me arrisco
na hipótese de que se trata de algo relacionado à matriz africana de toda música
eletrônica europeia, ou a um sentimento ambíguo de comunhão atávica e distanciamento,
que reforçaria a frase que batiza ironicamente o álbum. Longe de querer questionar as
implicações que um tal raciocínio pode adquirir, me pergunto se o título do disco não se
refere a algo que está explicitamente demonstrado nesta foto, que se identifica com algo
que “passa”, mas que também “atravessa”, se me permitem tamanha “literariedade”. Algo
que nos integra e constitui, mas que parece distante ao mesmo tempo, resguardado em um
continente cercado de problemas e diferenças por todos os lados. Penso que este
raciocínio deve fazer sentido para um inglês. Já se vão aos montes as denúncias quanto
aos perigos de uma “história única”, e mesmo da petrificação de matrizes culturais para
fins de representação. Mas penso que aqui, trata-se de outro caso.

Trata-se, como sempre, da música. Certa imperfeição rústica, certa organicidade na


instrumentação; algum desequilíbrio na emissão das vozes, na execução de instrumentos
até então desconhecidos do público europeu; e, por fim, uma escala sonora e rítmica em
nada compatível com os rigores da tradição musical clássica. Estes aspectos foram objeto
de fascínio e inspiração por parte dos europeus durante todo o século passado. De uma
forma geral, o perfil musical desenhado por Pierre Schaeffer e Chales Duvelle em
meados da década de 50 para o selo Ocora (“Office de Coopération Radiophonique”),
especializado em gravações de campo em países da África e Ásia, buscava compreender,
à moda enciclopedista, esse vasto mundo “novo” – reiterando o fato de que isto é tomado
da perspectiva de um europeu médio. Não seria exagero notar que, praticamente no
mesmo período, Stockhausen ampliava o espectro sonoro da música ocidental,
compondo, a partir de fitas magnéticas, uma de suas peças fundamentais “Gesang der
Jünglinge”. A confluência de aspectos supostamente representativos da tradição e da
vanguarda determinava o perfil sonoro deste período.

Não é exagero afirmar que este gosto pela imprecisão, por uma liberdade nas modulações
rítmicas, harmônicas e melódicas e, sobretudo, pelo espaço à improvisação tomou de
forma muito particular a música eletrônica dos últimos quinze anos. Por outro lado, como
o processo acaba por definir não só o meio pelo qual a música se produz, mas o seu
próprio caráter poético – o seu “sentido” – músicos como p. ex. Wolfgang Voigt, Richard
D. James e Florian Hecker trataram de produzir a rusticidade sonora a partir dos
apetrechos eletrônicos cada vez mais permeáveis à manipulação e ao controle da
reprodução. É também evidente a contribuição dos estudos e trabalhos de música
eletrônica do próprio Schaeffer, mas também de Russolo a Stockhausen, o que confere a
esta inflexão um caráter mais desbravador do que rústico.

E quais as características sonoras de Passed Me By, se não o desequilíbrio clamoroso e


estratégico entre sonoridades graves, médias e agudas, a mão pesada na dosagem dos
timbres graves, um andamento que às vezes se concentra na percussão, às vezes na
harmonia, mas nunca de forma regular e contínua? Os rúidos que recobrem esses graves
se unem a vibrações que extrapolam a caixa de som e ameaçam a integridade física do
ouvinte. O conjunto sonoro é arenoso, desértico, mas ao mesmo tempo repleto de
nuances. Por si só, a vinheta de abertura, batizada sugestivamente como “Signature”, já
encerra uma composição curiosa, calcada sobre samplers de gravações de campo e sons
gravíssimos sintetizados. O ritmo pesado de “New Ground”, uma espécie de dubtechno
experimental, surpreende pelo contraste entre o andamento desconjuntado e o improvável
aspecto soul impresso pela repetição da voz feminina. Quando a composição se orienta
por uma regularidade mais acentuada, como na indefinida “Dark Details” ou no techno
“North to North”, sublinha alguma dinâmica rítmica para em seguida dissolvê-la com
rasgos sonoros difíceis de definir.
Como nas duas faixas de encerramento, “Execution” e “Passed Me By”: ambas se
orientam por andamentos maquínicos, em nada compatíveis com a regularidade do
techno. E, no entanto, como o ouvinte poderá perceber, foram elaboradas como uma
máquina pesada, uma máquina que não funciona adequadamente, mas que se move à
força, transbordando um clima letárgico e pesaroso. Se no século XX a “música
interessante” é aquela que exprime desequilíbrio, irregularidade, imprecisão, em vistas de
recuperar o sentido espontâneo do ruído, do “som natural”, daquilo que não é
considerado pelo austero rótulo de música, então vale identificar aqueles artistas que
tentam restituir isso à música eletrônica criada em diálogo com a pista de dança.

É talvez neste sentido que Passed Me By pode ser considerado um álbum conceitual – ora
vejam vocês. Por um lado, apresenta uma roupagem sonora absolutamente “desnivelada”,
desprovida de um equilíbrio estético mais comum, e a apresenta de forma inteligente e
coesa (até mesmo nos aspectos visuais). Por outro, se esmera em extrair desses limites
algo que não se repetirá, talhando milimetricamente cada momento do disco e fazendo
um uso ilusório da repetição. Estamos, portanto, diante de um trabalho poderoso. A
despeito de seu hermetismo básico, Passed Me By destila um resultado sonoro que,
pouco a pouco, se torna uma experiência fascinante. (Bernardo Oliveira)

Romulo Fróes – Um Labirinto em Cada Pé (2011; YB Music, Brasil)


Romulo Fróes é cantor e compositor paulistano. Iniciou sua carreira ainda na década de
90 como membro do grupo Losango Cáqui, com o qual gravou dois discos. Em 2004
lançou seu primeiro álbum solo, Calado, e, dois anos depois, o sucessor, Cão, ambos
realizados sob a influência do samba de Nelson Cavaquinho. O duplo No Chão sem o
Chão sai em abril de 2009, e em 2011, seu quarto disco, intitulado Um Labirinto em Cada
Pé. Conta com as participações do sambista Rodrigo Campos, das cantoras Dona Inah e
Nina Becker, e de Arnaldo Antunes. (BC/TF)

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No chão sem o chão: um compositor que evoca sua “geração”, mas cujo trabalho é
irredutível a análises de conjunto e comportamentos geracionais; um cantor de voz grave
e macia que deseja provocar a discussão acerca dos destinos da canção brasileira; um
experimentador em busca de soluções desafiantes, porém assentadas na sensibilidade
popular. Se a compatibilidade entre o discurso e a produção de Romulo Fróes parece
precária, o mesmo não se pode dizer dos aspectos internos da obra. Estes indicam um
trabalho regular em alguns aspectos, descontínuo em outros, mas que sempre convidam o
ouvinte para uma avaliação de conjunto da obra.

Aqueles que, como eu, acompanham sua carreira desde o hibridismo abundante de No
Chão Sem o Chão (2009), estranham o sambista esmerado dos dois primeiros trabalhos.
Para além da entonação e da instrumentação que induziram à imagem do “sambista de
raiz”, Calado (2004) e Cão (2006) já revelavam uma acentuada sensibilidade crítica,
impressa em sambas oblíquos e peças inusitadas – por exemplo, a versão demolidora de
“Mulher sem Alma”, de Nelson Cavaquinho, violentamente entrecortada por solos de
bateria executados pelo instrumentista e songwriter Curumin.

Em No Chão Sem o Chão, a tendência crítica se confirmou plenamente, mas segundo


uma roupagem musical mais diversificada: rock de tudo quanto é tipo, frevo, sambalanço,
ska, pós-punk e até mesmo o velho samba, temperavam as experiências cancioneiras do
autor e de seus parceiros, os artistas plásticos Nuno Ramos e Clima. Curiosamente, o
trabalho de Fróes se tornou mais conhecido depois de No Chão Sem o Chão, justamente o
álbum que concentra os momentos mais complexos de seu trabalho. Esgotando as
possibilidades de uma sintaxe poética elaborada e inquietante, movida a paradoxos que
solapam a referência da linguagem cotidiana, as canções de No Chão Sem o Chão
encerram um conjunto coeso e marcante no cenário cancioneiro da língua portuguesa.

Duas tendências se misturam nestes primeiros trabalhos. A primeira, lírica, diz respeito às
experiências com as composições, concomitante a recorrente preocupação em refletir
sobre a atualidade do cancioneiro brasileiro. Esta vertente foi reforçada pelo próprio
autor, em artigos e entrevistas dedicados a refletir sobre o contexto e sua produção. A
segunda, musical, serviu para assinalar uma posição em relação ao mesmo cenário
musical. O foco se fixou na peculiaridade das canções, enquanto pouco se falou a respeito
do trabalho propriamente musical. De nada adiantaria experimentar os limites da canção
sem conferir um aspecto sonoro condizente com a ambição da empreitada.

Apesar de confirmar já no título a linhagem poética curto-circuitada, Um Labirinto em


Cada Pé descortina um novo capítulo na obra de Fróes. Estamos diante de mais um
trabalho que obtém sua força do paradoxo: Um Labirinto em Cada Pé confirma o
interesse em burilar a forma da canção, mas sublinha a busca de uma roupagem musical
tão mais elaborada quanto enxuta. Trata-se de um trabalho no qual o aspecto “sonoro”
sobressai ao lírico, equilibrando as aquisições anteriores com uma concepção preciosa, na
qual se destacam os arranjos encorpados e a riqueza de detalhes. Boa parte desta
característica se deve ao trabalho do compositor, cavaquinista e percussionista Rodrigo
Campos, que se utiliza de sonoridades características do samba, reconfiguradas para
compor com a instrumentação de base. Como em “Varre e Sai”, um samba jazz com
tinturas psicodélicas; “Muro”, a lembrar um carimbó, mas também trazendo um balanço
comparável ao d’A Outra Banda da Terra; “Ditado”, um rock-rap, explorando as notas
agudas do cavaquinho, e “Rap em Latim”, outro samba-rap entoado pela voz grave de
Arnaldo Antunes.

Porém, tomemos a faixa “Boneco de Piche” (Fróes e Nuno Ramos) como exemplo
fundamental. A começar pela composição, preenchida por desconfigurações semânticas
(“Agora é minha voz / Ele morreu por nós” ou “Grudaram um soco em mim / Como um
cara ao contrário”) e nexos estranhos entre a paisagem carioca e signos religiosos,
“Boneco de Piche” é uma faixa desconcertante. Sua forma rítmica se destaca por uma
combinação eficaz de frevo, choro e rock, executada por um trio digno de nota, formado
por Marcelo Cabral, Pedro Ito e o mesmo Guilherme Held. A colaboração fundamental
de Campos se destaca no diálogo agudíssimo entre a cuíca e o cavaquinho, acompanhado
pela guitarra sutil de Held, em um dos grandes momentos do álbum.
Um Labirinto em Cada Pé é obra de transição, promovida por um artista que retirava sua
expressão do distanciamento de quem mirava a música com “cabeça” de artista plástico.
Ainda que por um caminho sinuoso, “labiríntico”, Romulo Fróes chega ao quarto álbum
com os dois pés fincados na música. Um Labirinto em Cada Pé traz um “cantautor” mais
coeso, e talvez por isso, mais palatável. “Ninguém canta para ninguém”, anuncia a voz a
capella de Dona Inah, na faixa de abertura, “Olhos da Cara” – mais uma prodigiosa
transfiguração de um elemento oriundo do samba. Não se discute o mérito da poesia…
Mas é evidente que um autor tão interessado no poder inebriante da canção há de cantar
para alguém, ainda que não precise afrouxar sua criação para isso. (Bernardo Oliveira)

Fire! with Jim O’Rourke – Unreleased? (2011; Rune Grammofon, Noruega


[Suécia/Japão])
Fire! é um trio norueguês de jazz-rock, especializado em improvisação. Formado por
Andreas Werliin na bateria, Johan Berthling no contrabaixo, e o saxofonista Mats
Gustafsson, lançaram You Liked Me Five Minutes Ago em 2009. Jim O’Rourke é um
músico americano, cantor, multiinstrumentista e produtor musical. Colaborou com
artistas como Derek Bailey, Merzbow, Thurston Moore, Henry Kaiser, Faust, fez parte do
Sonic Youth, Gastr del Sol e Fenn O’Berg, além de produzir discos para John Fahey,
Joanna Newsom, Stereolab, Smog, Tony Conrad, Faust, Wilco, e High Llamas.
Unreleased? foi gravado em 2010, ao vivo em Tóquio. (BO/RG)

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Duas carreiras fascinantes, dispostas em um mesmo curso improvisado. Dois


instrumentistas e experimentadores assumidos, fulcrando suas respectivas carreiras na
incansável exploração dos confins da experiência sonora. De um lado, Jim O’Rourke, um
homem do renascimento, multitalentoso, autor de uma das mais extensas e consistentes
biografias da música atual. De outro, Mats Gustafsson, um dos prediletos da casa,
oriundo da peculiar cena jazzística norueguesa, capaz de emprestar seu saxofone a muitas
das sonoridades mais interessante da atualidade. Com o Fire!, um de seus muitos
projetos, Gustafsson se uniu a O’Rourke para dois dias de improvisação em Tóquio,
2010. E o resultado, meus camaradas…

…não surpreende tanto se observarmos os últimos desenvolvimentos de Mats


Gustafsson, Jim O’Rourke e, particularmente, do jazz nórdico. Nada mais apropriado do
que, para fins de comparação, revisitar as colaborações anteriores, como os longínquos
Parrot Fish Eye (o primeiro Gustafsson solo) e a obra-prima pontilhista Xylophonen
Virtuosen, ou os mais recentes, como o camarilhado e acachapante One Bird Two Bird.
Isto para verificar como Unreleased? inscreve e confirma O’Rourke nesta leva de álbuns
irreverentes e poderosos, mais próximos de uma improvisação roqueira, psicodélica e
“paródica”, do que propriamente jazzística – como no excelente álbum do Lean Left
(com a colaboração dos guitarristas do Ex) e o último disco do The Thing, também com
O’Rourke.

Dentro de Unreleased? cabem alguns momentos que rememoram o tal disco do Lean
Left, talvez pelo sax barítono timbrado com o grito rouco dos anos 50, uma certa
inconsequência juvenil na condução do improviso… Mas há nas quatro faixas uma
acentuada diversificação interna, destacada por três momentos em quatro faixas. As duas
primeiras, “Are You Both Still Unreleased?” e “Please, I Am Released”, constituem
poderosos “crescendos”, justapondo a capacidade de dar textura e volume a sonoridades
convencionais – como o sax barítono, como o baixo marcado – com a bateria marcial e
implacável.

Já “By Whom And Why Am I Previously Unreleased?” retoma alguns argumentos de


colaborações anteriores, ao operar a partir dos elementos, e não das texturas, resultando
em uma dinâmica de baixo volume e alta tensão. Mas o final me pareceu surpreendente,
por conjugar os oito primeiros minutos de noise trabalhado, com mais nove minutos de
um blues histérico. A coisa chega ao ponto de assemelhar-se a um doom metal, ou algo
bem arrastado, pesado e barulhento. E Unreleased? termina quieto, com o saxofone
arranhando seus últimos sopros e o contrabaixo intermitente, repetitivo e super grave –
um dos destaques do disco – finaliza a faixa. Uma audição vigorosa para quem gosta de
jazz e de experiências com estrutura de improvisação, mas também para quem curte o
hard rock viajandão dos anos 70. (Bernardo Oliveira)

Pursuit Grooves – Frantically Hopeful (2011; Tectonic, Reino Unido [EUA])


Em seu último EP, o incrível Fox Trot Mannerisms, Vanese Smith trazia uma mistura
indefectível de elementos musicais, plenamente afinada com o fragmentário universo
musical contemporâneo. Ela se destacou explorando o “avant-soul” de Georgia Anne
Muldrow e Janelle Monae, a vertente mais trip hop do dubstep inglês e o hip hop
descompassado característico dos selos Stones Throw e Brainfeeder, compondo,
produzindo e versando com desenvoltura e malícia incomuns para quem desempenha
tarefa tão complexa.

Prodígio do MPC, Smith também se mostrou plenamente capaz de criar uma sonoridade
própria, sem filiar-se a nenhuma escola ou linhagem específica. Encarnando um daqueles
muitos casos na música atual nos quais o artista opera segundo uma série de influências,
sem que se confunda com elas, o Pursuit Grooves confirmou o traço distintivo de seu
trabalho – como Blue Daisy, Actress, Ikonika, entre outros. Promovendo o encontro do
hip hop experimental norte-americano com as batidas eletrônicas oriundas do contexto
dubstep, o Pursuit Grooves excede as expectativas com sua sonoridade sensual e oblíqua.

No entanto, paga-se um preço pela distinção. Na economia dos rótulos e das “cenas”, um
artista mal posicionado – ou inclassificável – há de ser questionado pela inadequação ou
pelo reposicionamento diante de um cenário já bastante conturbado. Imaginem um disco
de Hecker ou Leyland Kirby pelo Night Slugs, selo especializado em house/UKF? Ou
ainda a estranha inclusão do Hype Williams no cast da Hyperdub? Após editar um single
digital e alguns CDr’s pelo selo What Rules Records, Vanese Smith chega ao seu quarto
lançamento, o primeiro por um selo renomado. Não vejo como determinar objetivamente
se isto influiu ou não em seu trabalho, mas é inegável que Frantically Hopeful traz uma
série de novos aspectos à sonoridade do Pursuit Grooves.
O disco começa promissor, com três faixas que prolongam admiravelmente o que já havia
impressionado em Fox Trot Mannerisms: batidas sincopadas e justapostas, baixo
sintetizado e um jogo de vozes de tirar o fôlego. Quando termina a terceira faixa “I Sink”,
chegamos à conclusão de que estamos diante de um dos grandes discos de dubstep do
ano. Porém, alguns momentos do disco resvalam em uma tentativa oportuna de criar algo
mais próximo de sonoridades familiares ao cenário. Se antes a música do Pursuit Grooves
destoava no cenário geral, com Frantically Hopefull esta distância foi diminuída. Está
mais afinada com o Brainfeeder de Flying Lotus e Samiyan. Está mais próxima do Hype
Williams, do Peaking Lights, do L.A Vampires. O que dizer da batida regular e dos
modos synthpop de “Transformation of Consciousness”? Ou da estrutura magra e
simplória de “Mars is Rising” e “Bedazzled”? Ou ainda do acento soul pop de
“Clueless”, uma saborosa (porém ordinária) releitura do trip hop, temperada pelos
timbres do dubstep.

Felizmente, quase setenta por cento do disco extrapola o alinhamento inoportuno dessas
composições. A melancolia em “Peace Talks” é digna de nota, com seu contrabaixo
errante e a voz vulnerável de Smith. Três faixas poderosas encerram o disco: a hipnótica
“Attention”; a anomalia funky house “Bailouts”; e o encerramento polirrítmico, em tom
de Nouvelle Vague, “What about?” Fica a pergunta evidente: não valeria unir as três
primeiras, as três últimas e “Peace Talks”, incrementando o êxito de Fox Trot
Mannerisms, ao invés de buscar a adequação ao contexto “tectonic” através de faixas
vazias? Essa suposição, no entanto, não retira o brilho e a intensa particularidade de
Frantically Hopeful e do trabalho de Srta. Smith. (Bernardo Oliveira)

Ricardo Villalobos & Max Loderbauer – Re: ECM (2011; ECM Records,
Alemanha)
Ricardo Villalobos nasceu em Santiago, no Chile, mas se mudou para Alemanha ainda na
infância, fugindo da ditadura de Pinochet. Produtor e DJ, é uma das figuras mais
importantes da cena techno contemporânea, explorando de forma particular os elementos
do microhouse e do minimal. Lançou cerca de cinco discos solos, e diversos EPs em
selos como Playhouse, Perlon, Sei Es Drum, entre outros. Max Loderbauer é produtor
respondável por projetos como Sun Electric e NSI, além de fazer parte do Moritz Von
Oswald Trio. Durante o Outono de 2009, no estúdio Laika em Berlim, Villalobos e
Loderbauer reinterpretaram material bruto do catálogo do selo alemão ECM (Edition of
Contemporary Music), fundado por Manfred Eicher em 1969, especializado em explorar
os limites do jazz e da música erudita. Nas palavras dos autores, Re: ECM busca criar
“estruturas sonoras” – “novas contextualizações para os espaços sonoros” criados por
músicos filiados ao selo, como Louis Sclavis, John Abercrombie, Wolfert Brederode,
Paul Giger e Christian Wallumrød. Vale notar que Eicher produziu e masterizou o álbum.
(BO)

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Como na grande maioria das vezes recusei com veemência o trabalho excessivamente
cerebral do selo alemão ECM, me flagrei meio perdido diante das inúmeras referências
trabalhadas nesta colaboração entre dois nomes relevantes da eletrônica contemporânea,
Ricardo Villalobos e Max Loderbauer. Em busca de pistas que me aliviassem a barra de
ter de percorrer o abstracionismo de Miroslav Vitous, John Abercrombie e, mais
recentemente, Christian Wallumrød Ensemble, detive-me sobre a capa verde escuro em
busca de outras pistas. Na ausência de estofo suficiente para empreender uma crítica do
ponto de vista objetivo, me refugiei justamente na abstração da qual tentava fugir.

Reparei alguns borrões ainda mais verde escuros, além do risco branco, imperfeito,
cortando o incomensurável espaço verde. Contando com a benevolência do leitor para o
delírio que se segue, tais borrões pareciam dizer: se a arte pode manifestar uma dimensão
crítica e, por outro lado, pode gerar a representação estocástica de sua existência
enquanto fenômeno estético – desdobrando-se em outras obras e comentários – eis uma
capa perfeitamente adequada para o álbum em questão. Ela indica visualmente o grau e a
natureza da particularidade com que confluíram o trabalho de Villalobos, Loderbauer e
do produtor do disco, o alemão Manfreid Eicher, fundador da ECM.
Entre tais nomes, nomes importantes da música contemporânea, há de se supor que
existam abismos, pontes, conexões imprevisíveis, afinidades eletivas, formas diversas de
criar e desenvolver procedimentos concernentes à criação musical. E, de fato, Re:ECM é
um trabalho que dificilmente seria concebido por outros personagens que não os que
estão aqui em jogo. Eicher, por motivos óbvios, por ser o mentor e timoneiro de uma
utopia jazzística que no meu entender, já rendeu seus frutos mais suculentos. Villalobos
corrobora o impressionismo minucioso da ECM, ele que timbrou o techno com sutilezas
sonoras de modo a justificar brilhantemente o rótulo “microhouse”. Loderbauer,
aparentemente como um catalisador de ideias, da mesma forma como faz no trio de
Moritz Von Oswald.

Diante da excelência do trabalho, não tive outra opção se não buscar suas fontes – que,
sim, importam. Mas vale frisar que, independente de qualquer referência, Re:ECM possui
luz própria, encerrada em uma atmosfera idiossincrática, difícil de dominar à primeira
vista. Assim, convém destacar que o disco não é exatamente um álbum de remixes.
Artistas de épocas distintas e com um aporte variado foram “recriados”, isto é:
retalhados, remixados, sampleados, “loopados”, reconstruídos, adicionados a outras
composições. Em diversos momentos, os trechos são executados em sua perfeita unidade
sonora, apenas salpicados por efeitos. Em outros, a dupla cria novas peças, absolutamente
autônomas em relação à faixa original, e incorpora seus elementos, recontextualizando-
os. Neste aspecto, temos um capítulo à parte. Pois se os limites da interpretação foram
ultrapassados pelo recorte conceitual estabelecido pelos autores, o mesmo não se pode
afirmar da sonoridade ECM. Esta se mantém preservada em seu pontilhismo cerebral,
muitas vezes árduo e trabalhoso, que define o selo em seu caráter mais profundo.

Nas 17 faixas que compõem Re:ECM, são perceptíveis e evidentes suas características
gerais. Mas percorrê-lo faixa a faixa, seguidas e repetidas vezes, mostra que nem tudo
pode ser açambarcado pela visão geral. Por sua extensão e pretensão, o disco excede o
conceito geral e chega a dialogar abertamente com a obra de Villalobos e Loderbauer.
Como em “Resole”, do CD 2, recriação de uma faixa do russo Alexander Knayfel, na
qual a sobreposição de vozes femininas cria o contraponto perfeito ao ritmo
descompassado formado por bleeps e percussões. Ou na generosidade com que retiram
John Abercrombie da pasmaceira de “Timeless” (de 1975), através dos timbres abrasivos
de “Retimeless”. Duas “recriações” (ou “recontextualização”) da belíssima “Blop”, do
Christian Wallumrød Ensemble encabeçam os dois discos: “Reblop” (do disco 1) e
“Replob” (do disco 2) absorvem o aspecto onírico da harpa barroca de Giovanna Pessi, a
primeira de forma mais propriamente jazzística – tensa e irregular –, a segunda dispondo
de camas de teclados mais duradouras e meditativas. Com o mesmo Wallmurød, a faixa
que encerra o CD 2, “Redetach”, se inscreve nos momentos em que podemos escutar o
que seria algo como o duo de Ricardo Villalobos. “Reblazhenstva”, é retirada da obra do
mesmo Knaifel (de “Blazhenstva”, 2008); espantosa e fantasmagórica recriação de
“Rekondakion”, de Arvo Pärt (de “Kondakion”, 1998); “Reemergence”, uma forma mais
robusta de interpretar a peça de Miroslav Vitous (de “Emergence”, 1986); um caso raro
em que as duas versões se equiparam, “Rensenada” recria a peça “Ensenada” (1974), o
jazz afropsicodélico composto por Bennie Maupin.

Re:ECM traz uma longa sequência de momentos de música eletrônica composta e


pensada sob critérios aparentemente rígidos, mas com liberdade de criação indicada na
profusão de detalhes e adições. Porém, no aspecto geral, permite entrever um pouco mais.
Não somente o trabalho de composição extraordinário, que buscou captar este espírito
sem macaqueá-lo, mas também uma forma aditivada de trato com a referência, que não é
cover, nem cut and paste, nem remix, nem sampler, nem loop, mas tudo isso junto,
misturado e justaposto. Mais uma vez os alemães roçam as técnicas do dub jamaicano – e
seu conceito máximo, qual seja, usar o estúdio como instrumento musical – com caráter
de invenção. Não só eles parecem extrapolar a mera proposta de revitalização do conceito
ECM, como também inventaram uma ECM muito particular, tanto no tratamento
conferido às composições, como na seleção das faixas. Um disco que pode ser amado,
odiado, mal-compreendido ou simplesmente ignorado. Mas que promove uma
modalidade de reinterpretação que servirá de referência não só para uma história da
música em 2011, como também para a música eletrônica daqui para frente. (Bernardo
Oliveira)
The Caretaker – An Empty Bliss Beyond This World (2011; History Always
Favours the Winners, Reino Unido)
The Caretaker é o nome de um dos inúmeros projetos do inglês Leyland James Kirby,
compositor de música eletrônica especializado em noise, drone, ambient e experimentos
diversos. Como The Caretaker, Kirby trabalha a partir de discos de 78rpm lançados nos
anos 20 e 30. Criou recentemente o selo History Always Favours The Winners, que
oferece uma assinatura digital anual com os quatro volumes restantes de Intrigue & Stuff
(assinado como Leyland Kirby), dois álbuns do The Caretaker (An empty bliss beyond
this world é o primeiro), e demais lançamentos. (RG/BO)

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Com a intenção de sondar os mecanismos da memória, James Leyland Kirby (ou The
Caretaker) desenvolveu um trabalho de exploração da sonoridade peculiar dos discos de
78rpm. Para tanto, reuniu todo tipo de ruído e aproveitou a diferença entre as técnicas de
gravação e prensagem, que influem sobre a sonoridade da reprodução. Percepção,
memória, neurociência e, é claro, arte, convergiram de forma rara, por obra de um
procedimento relativamente simples: a valorização da “materialidade” nas reproduções
fonográficas.

Kirby retirou este conceito da festa-fantasma no filme O Iluminado, no qual o


personagem central, encarnado por Jack Nicholson, trava um diálogo com um garçom
imaginário. A música ressoa por todo o espaço, criando uma ambiência abafada e
aterradora, adequada para embalar os delírios tenebrosos do personagem. O travo
psicológico e extremamente evocativo que sobressai durante a cena, foi criado e
reforçado pela música disforme que tomou o ambiente. Anotação mental para um tratado
de ecologia sonora: o meio continua sendo a mensagem. Para Kirby interessa na música o
que não é música, mas algo entre sua representação expressa no imaginário comum, e o
universo de aspectos técnicos que tornam possível a sua emissão e, portanto, sua
existência.
A Stairway to the Stars (2001) ou o tour de force Theoretically Pure Anterograde
Amnesia (2005) já traziam este conceito volatizilizado pela incursão profunda na ambient
e no aproveitamento de ressonâncias soturnas e vaporosas. Mas vale ressaltar a faixa
“Cloudy, Since You Went Away”, uma composição que utilizava como estratégia o
sampler contínuo e “preparado”. A ideia foi brilhantemente repetida em Persistent
Repetition of Phrases, com acréscimos substanciais, tanto no tratamento quase percussivo
dado aos estalidos, como também no trabalho lapidar com as repetições.

Com An Empty Bliss Beyond This World, parte desta louca empreitada se torna mais
evidente e se amplia. A manipulação dos códigos da recepção estética ou da “memória”
do gosto, corresponde a conduzir o ouvinte a uma posição incômoda em diversos
aspectos. Primeiro, evidenciando que a sonoridade é um fenômeno maior do que a
“música” – pois conforme se estabelecem novos dispositivos de gravação e reprodução, a
percepção desenvolve tipos específicos de reação, que não se definem somente a partir de
uma prática cultural totalmente fechada. Segundo, há o aspecto “técnico”: enquanto a
grande indústria e o gosto médio perseguem a lógica da alta-fidelidade, Kirby traz à baila
todo o arsenal de zumbidos e acidentes sonoros que, sob sua batuta, adquirem alto grau
de expressão. E, por fim, o aspecto “crítico”: as crenças e convicções (inclusive o
“gosto”) se assentam nas informações que já foram decodificadas, ao passo que a música
de Kirby desperta o interesse por aspectos que nem sempre levamos em consideração.

Basicamente o conceito não varia (talvez em “Pared back to the minimal”, por seu talho
mais econômico). Mas a cada faixa, uma sonoridade e um procedimento diferentes:
recorte jazzístico na síncope do piano de “Tiny gradiations of loss”, ecos sutis em
“Camaraderie at arms length”, jogos rítmicos com o estéreo em “Bedded deep in long
term memory”, loops saturados em “A relationship with the sublime”. As linhas
melódicas comoventes de faixas como “All you are going to want to do is get back there”
e “Moments of sufficient lucidity” compartilham o mesmo espaço sonoro com uma
textura estranha e delicada, composta por ruídos de estática. Em muitas das faixas o som
fica ligeiramente estridente por causa da sujeira impressa no disco, soando como
verdadeiros borrões sonoros. Esse efeito testemunha e sublinha o aspecto material da
reprodução (duplamente evocativo, tanto pela melodia nostálgica, quanto pela
representação sonora da deterioração material do objeto: o problema da “aura” se
desdobra em muitos outros…).

O resultado conduz àquele estado de espírito entre a melancolia e o maravilhamento, que


no fim das contas resulta em uma experiência particular. Lamento profundamente não
reconhecer as fontes utilizadas, mas essa sensação traz um elemento a mais à audição. A
sensação de nostalgia, isto é, de sentir-se pertencente a algo que já faz parte do passado, é
ampliada. Se uma obra é capaz de se apresentar com tamanha abertura à interpretação,
isto só indica que com An Empty…, confirma-se o êxito da empreitada de Kirby em
busca dessa arte sonora altamente rebuscada, desafiante, filosófica e, sobretudo, poética.
(Bernardo Oliveira)

Hype Williams: One Nation (Hippos In Tanks)


O que explica o fascínio em torno da curta e estranha carreira dos Hype Williams?
Porque é que os seus álbuns, delirantes e esquisitos, caíram no gosto da crítica
especializada e dos hipsters de plantão? Existiria algum motivo particular para tamanha
adesão ao som da dupla? Pode-se, então, afirmar que eles trabalham a partir de uma
estética lo-fi, psych-pop, non-music, e tantos outros rótulos que mais indicam a
desorientação dos críticos e ouvintes, do que explicam propriamente o trabalho? Será esta
mesma desorientação a causa do falatório? Quem são, de onde vem, para onde vão os
Hype Williams?

“One Nation” consolida alguns aspectos comuns no trabalho do grupo, como o


parentesco com a inflexão paródica dos Residents, presente em faixas como a
inacreditável “Untitled 1”; a tendência em operar em todos os elementos da produção – a
execução, a gravação, a mixagem, os volumes e samplers – com a falsa disposição de
tornar tudo precário, quando na verdade cada compasso é projetado com extremo rigor; e
a aproximação com um tipo de humor entre o nonsense e o bizarro, muito em voga nos
90’s, notabilizado por desenhos animados como Aqua Teen Hunger Force ou Beavis and
Butthead. De fato, é a ironia, o sarcasmo, sob a forma de música, o que mais se ressalta
em “One Nation”, bem como no trabalho do grupo como um todo.

Mas como transformar a ironia e a paródia em música? Eis outro fator que chama a
atenção na sucessão de peças de disco: a unidade obtida a partir da mistura vertiginosa de
registros sonoros, da Library Music ao shoegaze, sem grandes sobressaltos. Calcada não
em uma estética precária, mas em uma “estética da precariedade”, o álbum se mostra
plenamente capaz de dialogar com o luxo e o lixo da indústria cultural, nivelando-os sob
a lente da ironia.

Tudo passa a ser comentário, meta-música, meta-discurso. Como na dobradinha “Dragon


Stout”/”Homegrown”, por exemplo, onde se pode perceber a alteração do pitch dos
sintetizadores acompanhar a inclusão de uma batida saturada de graves. Ou em “Your
Girl Smells Chung When She Wears Dior”, na qual a textura lo-fi serve de cama para a
repetição persistente da frase “you’re my addiction”. Sem contar a já clássica
“Mitsubishi”, para balançar a estrutura dos fãs de tecno, com sua levada… meta-tecno?

A rigor, é uma experiência controversa, que joga com os preconceitos dos ouvintes, e não
com aquilo que eles gostariam de ver confirmado. Um álbum que, apesar de toda a
badalação, desafia e fica entre o que de mais intrigante se produziu neste ano que ainda
começa.

FaltyDL: You Stand Uncertain


Edição: Planet Mu
Eis um álbum que traz à baila uma faceta particular de um gênero estranho, vago e
completamente aberto, batizado arbitrariamente por uma palavra no mínimo insuficiente:
dubstep. Digo isso porque cabe a pergunta: o que é o dubstep, se não uma palavra pobre
para um contexto rico de vertentes e potencialidades?
“You Stand Uncertain”, o título deste álbum, não poderia ser mais adequado: o que hoje
se chama dubstep adquiriu um corpo próprio, que varia de autor para autor, e cuja
característica principal é a abertura para um campo sonoro relativamente inexplorado.

Dito isto, cabe exclamar: quem diria que dos Estados Unidos viria uma mistura tão
instigante e particular de ambient, 2-Step, UK Garage, jazz, house, sintetizadores,
síncopes inesperadas, profusão de timbres esranhos, diálogo sutil com a música africana e
muito mais?! Em doze faixas, o produtor Drew Lustman, ou FaltyDL, destila uma
saudável inclinação de criar suas produções com sotaque diferente em relação ao legado
inglês.

Nesse sentido, podemos destacar “Open space”, talvez a faixa mais poderosa do álbum,
na qual ouvimos uma sucessão de ritmos e timbres, que perpassam alguns gêneros
eletrônicos até desembocar em uma inesperada jam afrojazzística. “The pacifist”, que
alterna um tecno agudíssismo, quase desprovido de graves, com uma batucada efusiva,
repleta de viradas e um perceptível toque latino, enquanto “Lucky Luciano” trava um
diálogo ousado com o drum’n’bass expressionista da Metalheadz.

Mesmo em faixas mais convencionais, Drew Lustman retoma de forma admirável um


R&B sintético, relativamente abandonado nos anos 90, mas readaptado por produtores
como Blue Daisy e Pinch. Reparem na batida sincopada de “Gospel of opal”, com
participação de Anneka, que a cada compasso alterna a timbragem das peças da bateria,
como a caixa e o bumbo. Talvez o único pecado do álbum seja o de recorrer demasiado
ao R&B, mas isto não ofusca o talento do produtor para burilar sons e batidas, que
conferem brilho às outras faixas.

Se “You Stand Uncertain” não é um dos mais belos discos de dubstep dos últimos anos,
por conta de sua irregularidade, ao menos comprova a excelência do trabalho de Drew
Lustman. Mas também a possibilidade de que ele indique uma forte tendência americana
deste gênero de origem eminentemente inglesa.
Objetar-me-ão que a rapaziada da Costa Oeste, como Flying Lotus e Gaslamp Killer,
representam de forma eficiente o gênero na América, enquanto FaltyDL se enquadraria
em uma tentativa de reproduzir nos EUA o que se faz na Inglaterra. Mas enquanto os
primeiros professam sua perspectiva oblíqua e valorosa do hip-hop experimental, de
inspiração “prefuseana”, o álbum e o produtor em questão enviam novas propostas a este
gênero tão impreciso quanto misterioso chamado dubstep.

Orchestre Poly-Rythmo: Cotonou Club (Edição: Strut)


Quando a “toda poderosa” Orchestre Poly-Rythmo de Cotonou chegou a Nova Iorque
para um show antológico no Lincoln Center, o New York Times asseverou que tratava-se
de “uma das maiores bandas de funk do mundo”, estratégia adotada pelo antropólogo e
produtor cultural Hermano Viana quando da vinda do grupo para o Rio, no final do ano
passado.

Sem discordar deste veredito, ressalto que, embora o funk, de fato, seja uma referência
para toda a banda – James Brown, sobretudo – o que sobressai na música do colectivo é a
sensibilidade para mesclar funk, afrobeat, música latina e psicodelismo com o sakpata e o
sato, ritmos ligados ao culto Vodun do Benin.

Nas gravações disponíveis através de coletâneas como “Echos Hypnotiques“, lançada


pela selo Analog Africa, o grupo manifesta uma capacidade admirável para criar
releituras de gêneros europeus e americanos, através de divisões rítmicas que o ouvinte só
encontra em seus discos. Em suma, uma música particular, irredutível a um gênero
somente, muito menos norte-americano.

Assim, qual seria a probabilidade de que “Cotonou Club” fosse ao menos um bom disco?
Entendo a desconfiança de quem tomou o poderio da Poly-Rythmo por seus lançamentos
pregressos, considerando-a uma relíquia do passado, e que esta turnê – a primeira do
grupo fora do continente africano – seria apenas uma tentativa esforçada para
homenageá-los. Entendo, mas discordo.
Tive a oportunidade de assistí-los duas vezes e pude conferir que: a) após 42 anos de
existência e mais de 500 discos, entre lançamentos e participações, ainda estão a construir
um repertório particular; b) ainda é uma das bandas mais poderosas da face da terra,
mesmo na era da música “globalizada”. O verdadeiro circo que esse sexagenários
promovem no palco pode comprovar o que estou afirmando.

Chegamos ao ano de 2011: a Poly-Rythmo goza hoje de notoriedade, realizou turnê


mundial e, pela primeira vez, terá um álbum lançado com pompa e circunstância, na
Europa, nos EUA e no mundo. Integralmente gravado em equipamentos analógicos,
constituiria a “prova dos nove”, a justificativa incontestável da validade de todo o esforço
para lançar a banda, (re)conhecida graças à troca frenética de MP3 e de pesquisas
valorosas, como a do americano Frank Gossner, do Voodoo Funk, e Brian Shimkovitz,
do Awesome Tapes From Africa. A memória dos saudosos Papillon (arranjador e
guitarrista), Léopold Yéhouessi (baterista) e do cantor Eskill Lohento é evocada para
afirmar que a Poly-Rythmo está de volta. Resta saber se apoiada no que tem de melhor:
sua diversidade (poli)rítimica.

Regravações como “Ne te fache pas”, “Gbeti madjro” (com a participação de Angélique
Kidjo), “Oce” (versão de “Se ba ho”, presente na coletânea “Echos Hypnotiques“), e a
dobradinha “Mariage/C’est Lui Ou C’est Moi”, com Fatoumata Diawara, demonstram
que o grupo não está para brincadeira. Embora não se observe mudanças substanciais em
relação às gravações originais, essas faixas atestam o potencial efetivo da banda, através
de execuções vibrantes e enérgicas. Mas quando voltamos a atenção para o que há de
novo no clube de Cotonou, outras portas se abrem…

Me refiro à empolgante “Von vo nono”, versão para a composição de Gnonnas Pedro,


que sintetiza elementos de funk, reggae e soca; ao pianinho maroto na rumba-funk
“Koumi dede”; à polirritmia desbragada de “Tegbe”, ao suingue afrobeat de “Holonon”,
ao lirismo leve na comovente “Ma vie”. E, sobretudo, ao petardo “Pardon”, digno daquilo
que de melhor já produziram, e desde já uma das faixas do ano. “Lion is burning”, com a
participação de Paul Thomson e Nick McCarthy, do Franz Ferdinand, não chega a
comprometer o álbum, mas soa como uma tentativa esquisita de conferir uma suposta
“modernidade” ao som da Poly-Rythmo – quando o que ocorre é precisamente o efeito
inverso.

O único aspecto negativo em “Cotonou Club” é a presença demasiado tímida dos ritmos
ligados ao Vodun beninense, outrora destilados em clássicos como “Se ba ho”, “Azoo de
Ma gnin kpevi”, “Gan tche kpo”, “Koutome” e “Nouessename”. Assim como a
participação do Franz Ferdinand – uma participação de fachada, para fins comerciais –
esta ausência não retira o brilho, a peculiaridade e a absoluta relevância de Cotonou Club
para a música de hoje.

Africa Hitech – 93 Million Miles (Warp)


Com a força de um objeto não-identificado, chega o primeiro álbum do Africa Hitech.
Fruto da parceria entre dois nomes incontornáveis da eletrônica inglesa, Mark Pritchard
(Global Communication, Harmonic 33) e Steve Spacek (Spacek, Blackpocket), o disco
sai após um EP (“Hitecherous”) e um single (“Blen”), ambos lançados em 2010. No
entanto, esses lançamentos preliminares não permitiam entrever o que viria a seguir. Este
é um trabalho irredutível a nenhum outro na atualidade, mas tavez não da forma como o
leitor pode pressupor.

Não se trata de um juízo de valor, mas de uma questão formal: com sua gramática
heterogênea e peculiar, é uma obra que demanda alguma adaptação e maleabilidade. Leva
a crer que chegamos a um momento na produção eletrônica no qual a peculiaridade
formal não corresponde necessariamente a uma sonoridade inteiriça e coerente. Talvez
em virtude do esfacelamento do álbum enquanto formato, ou do contexto que emergiu
com o dubstep, este é um trabalho irregular, mas traz algum dos momentos mais
impressionantes da música eletrônica deste ano.

Obras com essa característica “plural” podem recair no discurso multiculturalista e vazio
da world-music e perderem a sua pregnância. No entanto, vale notar que, para além do
recenseamento criativo, no qual o autor recria, faixa a faixa, as principais correntes
musicais de seu tempo – particularmente nas obras de Breakage ou FaltyDL –, o Africa
Hitech destila sua miríade sonora ressaltando tendências inusitadas, mesmo se tomarmos
como parâmetro a eletrônica atual. Além do soul e do juke americanos, ouvimos a
influência do reggae e do dub jamaicanos, do candombe uruguaio e da música africana de
forma geral.

Estamos diante de uma série de grandes singles, tais como os psíco-jukes “Do u wanna
fight” e “Out In the streets”, a batucada afro de “Spirit” e o soul futurista de “Light the
way”. Ou se preferirem, trata-se de dois álbuns: um feito de dubstep stricto sensu
(“Future Moves”, “Gangslap”, a faixa-título), outro composto por aproximações e
sínteses listadas acima. Unidos em um mesmo contexto, se afiguram como um dos
panoramas mais curiosos deste ano incrível para o dubstep.

O disco pode ser questionado, pela incoerência e eventuais deslizes em uma sonoridade
mais fácil – como em “Our luv” e no reggae easy-listening “Don’t fight It”. Da mesma
forma, pode chamar atenção pela produção hábil, que consegue lançar mão de sons
sintetizados de tuba e trombone em um juke, sem maiores sobressaltos (em “Do u wanna
fight”). O mesmo com o violãozinho convencional sobre o candombe ralentado em
“Cyclic sun”.

Porém, é muito claro que a dupla opera segundo as condições que propiciaram a
volatilidade do dubstep, transformando-o em algo que não sabemos bem como chamar.
Apesar de alguns lapsos, cumpre a tarefa que se propõe a realizar: contribuir para o
alargamento do espectro de possibilidades deste gênero que vem tomando proporções
universais.

Laurel Halo: Hour Logic EP (Hippos in Tanks)


O novo EP da americana Laurel Halo é um exemplo como a chamada “música
eletrônica” vem se estabelecendo sobre uma fronteira movediça e imprecisa. Nenhuma
faixa se parece com a anterior, em cada uma se pode detectar uma determinada
influência, um interesse específico. Inserida num amplo contexto, indica que a
generalização dos computadores e apetrechos eletrônicos opera o elemento
preponderantes na cultura da música eletrônica atual.

Antes de uma opinião, esse critério permite com que não tributemos todo um contexto
rico e fragmentário exclusivamente à ponte anglo-caribenha. O ouvinte há de estranhar a
forma heterogênea de Hour Logic, presente também nos discos de Zomby, Breakage,
Clams Casino. O interesse difuso dos produtores da última década aponta uma forte
tendência da música dos anos 20.

Porém, Hour Logic não se resume a um sintoma da música atual. Dentro de sua
pronunciada diversidade, é também um EP com algumas características próprias.
Vejamos por quantas searas passeia a Srta. Halo em Hour Logic: breakbeat em “Speed of
Rain”; synthpop experimental em “Aquifer”; electro com tinturas de darkwave em
“Constant Index”; ambient estrito sensu em “Strength in Free Space”; tecno abrasivo com
sotaque de GAS (Voigt) em “Head”; e o tour de force da faixa-título, um tecno abstrato
com pausas e silêncios. Quem topasse com a diversidade de Hour Logic durante os anos
90, talvez não enxergasse mais do que uma artista perdida no labirinto dos gêneros e
ritmos.

E, no entanto, em cada uma dessas composições, algo que pertence inegavelmente ao


presente. Algo de seu primeiro EP – o excessivamente pop King Felix ; algo que se
aproxima de seu trabalho mais recente – a colaboração “synth extravaganza” Frkwys Vol.
7, com David Borden, James Ferraro, Samuel Godin e Daniel Lopatin. Me refiro à
relação da autora com os sintetizadores, que é marcada por rompantes da mais pura
abstração, prescindindo muitas vezes de acordes ou notas, mas cuja expressão é mediada
por timbres familiares, presentes no universo musical que é explorado por Halo.

O grande trunfo de Hour Logic, portanto, reside nesta forma resoluta, forjada entre
sonoridades palatáveis impressas em uma composição abstrata. O que, por um lado,
fortalece a sonoridade de Hour Logic em relação ao EP anterior, mas também persiste
como seu maior desafio.
Sobre a máquina: Areia
“Rio que mora no mar…”, apregoa a canção, impregnada por uma visão idílica do
balneário mais célebre do Brasil. Grosso modo, pode-se afirmar que as inflexões mais
cerebrais da música do século XX não se acomodaram à anatomia cultural do Rio de
Janeiro. Não há por aqui, como há em São Paulo ou no sul, o hábito da música
experimental, e particularmente daqueles gêneros que se sustentam sobre um paradigma
essencialmente experimental, como é o caso, por exemplo, do noise, do drone, da IDM,
da eletroacústica, etc. Não seria exagero afirmar que, por muitos anos, nomes como
Black Future, Zumbi do Mato, Chelpa Ferro e Rabotnik, sustentaram o segmento
experimental na “cidade maravilhosa”.

Nos últimos dois anos, a consolidação do Plano B, uma loja de discos com ampla
programação, revelou que, mesmo em um contexto desfavorável, floresceu pelo Rio um
interesse voltado à experimentação musical estrito sensu. Localizada na Lapa carioca,
destacou nomes como J-P Caron, Marcos Thanus, Filipe Giraknob, Lê Almeida e muitos
outros, distribuídos por diversos grupos e projetos, confirmando a consistência da cena.
Pouco depois, o estúdio de ensaio Audio Rebel passou a alugar seu espaço para festivais
de bandas alternativas, reunindo o post-rock prematuramente finado do Avec Silenzi, o
metasoft-rock do Dorgas, e o shoegaze-darkwave do Sobre a Máquina, que acaba de
lançar o EP “Areia”.

Quero dizer que, por si só, “Areia” já é um fato curioso, dado o contexto e a
predisposição dos artistas. Tanto que meu primeiro contato com o Sobre a Máquina se
deu através de um blog estrangeiro. Tratava-se de um trio carioca por trás do sombrio
“Decompor”, que se destacava pela eficácia com que construíam blocos sonoros tingidos
por um alto grau de abstração, o que levava a crer tratar-se de improviso. Neste momento,
lembravam Keiji Haino, não só pela abstração, mas também por buscarem a qualquer
custo reforçar o ambiente sombrio.
Mas agora, o Sobre a Máquina mudou a tonalidade de sua música. Nas quatro faixas de
“Areia”, Cadu T, (ex-integrante da banda Ceticências), Emygdio Costa e Ricardo
Gameiro, com a colaboração do saxofonista Alexander Zhemchuzhnikov, se avizinham
do lirismo de Fennesz e Tim Hecker. Conjugando as sonoridades mais suaves (uma linha
melódica de piano em “Barca”, uma linha de baixo em “Garça”), constróem uma
sonoridade confusa no melhor dos sentidos. De um shoegaze improvisado e sombrio, o
grupo passou a operar com ares melodiosos, mas dentro de um âmbito sonoro saturado de
pequenos sons sobrepostos: sons de vozes, percussões, sintetizadores, costurados com
agulha fina, senso de direção e, principalmente, ímpeto.

“Areia” reforça a importância do Sobre a Máquina em uma cena que ainda não pode ser
medida adequadamente com a régua da história. É preciso aguardar os próximos passos,
mas pode-se dizer, de saída, que finalmente o leque musical carioca adquiriu outras
tonalidades. Evidente que “Areia” tem algumas limitações, particularmente ligadas à
mixagem (um pouco desequilibrada em alguns momentos) e à própria condução das
faixas, que dado o caráter viajandão, demandava um desenvolvimento mais paciente. Mas
no cômputo geral, trata-se do despontar de uma banda que pode vir a criar um belo
trabalho.

Kassin: Sonhando Devagar (Coqueiro Verde)


Sob o signo do nonsense, muitos artistas erigiram obras fundamentais. Não quer dizer
com isso que se equivalem: entre Raymond Roussell e Salvador Dalí há diferenças
substanciais, capazes de sugerir uma escala de tonalidades desse tipo de humor. No caso
do compositor, instrumentista e produtor brasileiro Alexandre Kassin esta é uma
observação necessária. Seja em grupos como o +2, ou produzindo artistas como Caetano
Veloso e Los Hermanos, uma forte inclinação às mais variadas gradações do nonsense
atravessa seu trabalho autoral. E isso desde o início dos anos 90, quando tocava uma
guitarra muito peculiar no grupo carioca Acabou La Tequila.

Chega a surpreender a percepção de que, mesmo tendo circulado por diversas rodas da
música brasileira, Kassin manteve-se estritamente em seu território. Algumas vezes sob a
forma de um humor perturbado, outras de canções coloridas e incoerentes, aproximando-
se da ironia grotesca do Monty Python, ou das formas desconexas dos Residents e de uma
porção de artistas que assinam embaixo do rótulo non-music. Em 2005, sob a alcunha
Artificial, uma de suas manifestações menos conhecidas, criou um disco inteiro a partir
de sons de game boy.

Ao mesmo tempo, Kassin compõe canções de amor e disco music com a mesma
naturalidade com que desenvolve arranjos híbridos e elaborados, lançando mão de um
amplo espectro de referências, que vai da bossa e do sambalanço ao pop ordinário dos
anos 80. Burilando esta pletora de referências e aspectos, que podem ser colhidos em
abundância nas dez faixas de seu “primeiro” álbum solo, Sonhando Devagar, produzindo
contrastes entre uma inflexão bem-humorada e detalhes escatológicos e violentos, o autor
criou um disco saborosamente doidivanas.

A começar pela capa em 3D, cuja tipografia lembra o traço espasmódico de Alan Voss,
ilustrador recém-falecido, responsável por algumas capas d’Os Mutantes. “Sonhando
Devagar” reitera o gosto do autor por sonoridades ao mesmo tempo acessíveis e
estranhas, avizinhando-o do estilo musicalmente rico, suave e bem-humorado de João
Donato – grande compositor brasileiro que flerta abertamente com o nonsense.

A excelente “Mundo Natural”, faixa que abre o disco, se apresenta em conformidade com
todos os elementos supracitados: é nonsense, engraçada, estranha, violenta e
musicalmente ambiciosa. Através de uma letra que alterna o discurso descritivo com o
poético, Kassin apresenta o cenário selvagem no qual age como um predador, admirando
o “padrão” que as zebras levam na pele. Ou como “um tubarão pela imensidão azul” à
procura do prazer de ter focas “entre os dentes”…

A construção musical acompanha o delírio zoofílico. O timbre suave da voz de Kassin


contrasta com as imagens violentas, curiosamente ambientada por uma combinação de
cuíca (ou trombone emulando a cuíca) e sopros nas mais diversas direções. Ecos das
melodias nostálgicas de Arthur Verocai, um aspecto funk setentista em virtude dos
acordes de Fender Rhodes, e uma sofisticação soul que muito artista que se diz ligado ao
“soul” não consegue obter. Nesse sentido, reparem também o lirismo do samba realmente
rock de “O que você quiser”.

Mas é na segunda metade de Sonhando Devagar que os momentos mais instigantes


aparecem. “Lin Quer”, por exemplo, é uma faixa difícil de definir. Batida sincopada
acompanhada pelo baixo e a guitarra, melodias de teclado e um violão de 7 cordas
improvisando solto, tocado por Luís Filipe de Lima. O tema, como em todo disco, é a
sacanagem em seu estado onírico, reiterada nos versos inacreditáveis do sambalanço
“Quando você está sambando”: “Minha glande fica enorme, quando o fundo é
desfocado”.

“Em volta de você”, um space rock cheio de bossa, conta com uma trama de guitarras e
cítara com efeito, enquanto “Sorver-te” encerra o álbum em grande estilo. Letra e
melodia engenhosas e ligeiramente evocativas, casam perfeitamente com a síntese de
tecnobrega e synthpop dos anos 80, resultando em um aspecto propositadamente
sintético.

Boa parte do sucesso do trabalho se deve à instrumentação, executada e gravada com alto
teor de consistência técnica e musical. Sonhando Devagar conta com Alberto
Continentino no contrabaixo, Stephane San Juan na bateria, Donatinho (filho do
supracitado João Donato) nos teclados, Gabriel Muzak na guitarra, Marlon Sette no
trombone, e a participação do trompetista Rob Mazurek, um dos nomes mais importante
da cena de improvisação de Chicago, com livre trânsito no Brasil – já tocou com
Hurtmold, Maurício Takara, Rabotnik, etc.

Digo isso por que, no fim das contas, apesar de toda a carga de conceito e referências, o
barato total de Sonhando Devagar é o som. Funciona mesmo nos momentos menos
inspirados, nos quais Kassin dá vazão à sua obsessão por canções dorky – “Fora de área”
e “Potássio”, principalmente –, ou na emulação discopop infame em “Calça de Ginástica”
(“quero transar com você no banheiro dos paraplégicos”). Ou seja, não comprometem o
êxito do disco, pelo contrário. Parece que, para o autor, quanto mais contraditórias forem
suas referências, quanto mais conturbado seu âmbito criativo, quanto mais choques entre
climas e sentidos opostos, melhor.

Radiohead: TKOL RMX 1234567


Edição: XL Recordings 2xCD
Não é incomum ocorrer a alguns grandes artistas o artifício de enunciar aos quatro ventos
suas influências, como também as obras e correntes atuais que mais lhes impressionam.
Não chega a surpreender que alguns deles omitam as referências mais evidentes, sabe-se
lá com que propósito, mas arrisco uma interpretação: com isso pretendem delinear uma
identidade, difundir um travo a mais na concepção geral de seus próprios trabalhos.
Björk, David Bowie, Caetano Veloso e Miles Davis, e hoje, o Radiohead, são alguns dos
membros deste seleto grupo.

Um motivo possível é a associação para fins de atualização. Por exemplo, quando Davis
se aproxima de Jimi Hendrix, buscando inspiração para discos como Bitches Brew e On
The Corner, ou quando Bowie explora o krautrock para fundar sua trilogia berlinense.
Por outro lado, pode soar como um exagero tosco afirmar que, em termos gerais, Bowie
“traduziu” o krautrock para o mainstream, ou que Davis adaptou o jazz para a
sensibilidade roqueira… Mas não parece absurda a hipótese de que este tipo de equívoco
serviu como um acesso, ainda que confuso e irregular, a outras possibilidades de fruição
musical. Com suas respectivas obras, Bowie e Davis introduziram o kraut e o jazz para
grandes audiências, constituindo assim o argumento “pedagógico”.

No caso do Radiohead, essa questão adquire um aspecto um pouco mais problemático. A


empatia entre a ousadia do trabalho e o público-alvo não se repete quando Thom Yorke
lista os artistas e as sonoridades que mais admira. Até mesmo Björk fez com que o nome
Stockhausen circulasse em alta conta pelos órgãos de comunicação devotados à música
eletrônica. Mas é provável que nem a colaboração com o guitarrista Jonny Greenwood
conduza o compositor polonês Krzysztof Penderecki para fora dos círculos eruditos. Há,
portanto, um desnível considerável entre a atmosfera de referências do Radiohead e o
gosto de seus fãs – o que não prejudica de forma alguma a popularidade da banda.

The King Of Limbs pode não ser o álbum mais impactante da obra do Radiohead, mas é
sem dúvida o mais estranho, a começar pelo curioso tratamento dado à percussão e a
elementos percussivos (mesmo as palavras são utilizadas com esse fim, como em
“Feral”). Diante deste panorama, o que se pode esperar de uma série de remixes
encomendados pela banda? Trabalhadas num plano marcadamente experimental, quais
seriam as possibilidades de reconstrução pelas mãos de uma cena eletrônica que
universalizou os processos horizontais da edição digital – isto é, processos que operam
por corte, sobreposição, texturização, repetição e demais procedimentos?

E esses remixes, sete ao todo, foram editados ao longo de pouco mais de dois meses.
Alguns se organizaram de forma contraditória, como o primeiro, com Caribou e Jacques
Greene. Outros foram mais coesos, como o último, que contou com SBTRKT, Anstam e
Jamie XX. Mas é nessa dinâmica de coesão e incoerência, revestida por uma percepção
ampla da música de hoje, que a atualidade da música do Radiohead encontra seu eixo
gravitacional.

Conforme a concepção sonora de The King Of Limbs, os remixes demonstram uma


preocupação centrada na experimentação rítmica. Longa é a lista de faixas que se
destacam por esse aspecto, seja através de batidas marcadas e vigorosas – como Pearson
Sound retrabalhando “Morning Mr Magpie” ou Mark Pritchard (como ele mesmo e como
Harmonic 313) reinventando “Bloom” –, seja através da tapeçaria digital criada por Mike
Sadatmousavi (Altrice), contendo excertos de todas as faixas do disco. Ou ainda em
“Separator” com o infalível Four Tet, na versão tenebrosa “Give Up The Ghost” com o
Brokenchord, e na estranhíssima batucada em “Bloom”, sob a perspectiva do novato
Blawan.

O dubstep e o dubtechno comparecem com força total, como era de se esperar. A versão
de “Feral”, remixada por Lone, e “Give Up The Ghost”, com o desconhecido Thriller
Houseghost, se destacam. Mas a faixas mais poderosas são aquelas que apostam em uma
reinterpretação radical. Me refiro a “Little By Little”, com o Shed de René Pawlowitz; e a
desconcertante releitura de Anstam para “Separator”. A primeira recria o baião etéreo da
faixa original através de um jogo entre percussões editadas e vocais saturados de reverb.
A segunda injeta tensão na mais bela balada do disco, valendo-se igualmente de batidas
super recortadas por processos de edição.

As opções em TKOL RMX reiteram o interesse do quinteto em expandir sua música por
caminhos e gostos diferentes dos que marcaram os discos anteriores. É evidente que, em
sendo este raio de artistas amplo o suficiente para elencar sensibilidades muito diferentes
entre si, o resultado não poderia deixar de ser extremamente acidentado. Mas
“acidentado” é um adjetivo que dá conta dos muitos interesses do quinteto, o que faz de
TKOL RMX, em seu conjunto, mais do que uma compilação de remixes, mas também
uma parceria criativa ampla e bem sucedida.

Omar Souleyman: Haflat Gharbia – The Western Concerts


Edição: Sublime Frequencies 2xLP
Entre as peculiaridades em se acompanhar a dinâmica da produção musical
contemporânea, podemos destacar a “familiaridade remota” como uma de suas
características mais fascinantes. Reside no fato de contrairmos familiaridade com
manifestações culturais absolutamente distantes da nossa. Evidente que não me refiro
somente à música feita em 2011, mas a uma forma específica com a qual escutamos a
música de todos os tempos e lugares, segundo as técnicas de gravação, reprodução e
distribuição disponíveis na praça.

O caso de Omar Souleyman é particularmente emblemático neste sentido. As três


compilações que editou através do selo americano Sublime Frequencies, Highway To
Hassake (2007), Dabke 2020 (2009) e Jazeera Nights (2010), fizeram com que o cantor
sírio “ganhasse mundo”: Europa, Ásia e América do Norte receberam as apresentações
frenéticas do artista. Ainda não tivemos esta honra na “Terra Brasilis”, mas estou certo de
que Souleyman encontrará um público acostumado à síntese eletrônica de influências
libanesas, turcas e curdas, que fazem parte do seu trabalho.

Talhada a partir do Dabke, mas também do Choubi iraquiano e do canto árabe “mawal”,
Omar Soleyman traça paralelos inequívocos com a música do Atlântico Negro. Não
espero que o leitor aceite minha hipótese, só lhe peço que entenda o ponto: devidamente
assimilada, sua música pode ser situada no âmbito das recriações eletrônicas e dançantes
que definem o shangaan, a cumbia digital, o juke, o funk carioca, etc. Quando menos se
espera, passa-se a marcar os ritmos árabes com os pés e a cabeça, e até mesmo a
reproduzir em assovios, os intrincados arabescos melódicos, criados pelo multi-
instrumentista Rizan Sa’id.

A língua permanece como a única barreira “cultural” para o dabke digital, ainda que o
papel do poeta Mahmoud Harbi seja de fundamental importância para a perfomance de
Souleyman – na medida em que Harbi dita os versos no ouvido do cantor. Mas essa
barreira não compromete a energia de cada uma das apresentações contidas em Haflat
Gharbia. Se por um lado, percebe-se que o autor facilitou o diálogo com platéias
ocidentais – como na incursão techno de “Mendel”, gravada na Bélgica –, por outro,
empolga com o balanço sinuoso e contagiante de “Lansob Sherek” e “Wakhali”.

patten: GLAQJO XAACSSO


Edição: No Pain In Pop LP, CD, digital
Este ano viu emergir uma fragmentação particular dos gêneros e das possibilidades de
releitura circunscritas ao universo sonoro eletrônico. GLAQJO XAACSSO (pronuncia-se
“glack-geut zack-so”), primeiro álbum do produtor inglês patten, traça um recorte
particular sobre esta ampla gama de possibilidades, representando como nenhum outro a
pluralidade acentuada de 2011. Um passo atrás e percebemos que patten nem sempre
investiu na eletrônica pesada. There Were Horizons, seu primeiro trabalho de carreira,
contava com dezessete composições para violão, de um minimalismo concentrado, que
beirava a singeleza. De que planeta vem o misterioso patten – sobre o qual nada ou pouco
sabemos?
Sem a preocupação de animar as pistas de dança, mas se valendo de um expediente
plenamente afinado com seu universo de timbres e batidas, patten construiu uma peça
monolítica, fechada em si mesma, mas que dispõe de muitas portas de entrada. Não se
trata de um disco inscrito na onda de Bristol, como o chiptune de Joker; nem do dubstep
sombrio de Burial, Kode9, nem das infusões londrinas criadas por Deadboy e Boddika;
muito menos na ponte EUA/Inglaterra, seja pela via das “batidas críticas” (Brainfeeder,
FaltyDL), nem pela via do Juke (Machinedrum, Africa Hitech). Talvez pudéssemos
aproximá-lo dos primeiros singles do londrino Blue Daisy. Mas, ao contrário deste
último, patten parece disposto a investir mais no atacado do que no varejo, pois suas
composições exigem tempo e espaço para revelar sua expressão sonora.

Certo é que não basta elencar as sonoridades e respectivas referências para julgar a
qualidade do trabalho, sem levar em conta, por exemplo, o caráter bricoleur da
composição. Neste sentido, eis aqui o trabalho de um autêntico “catador de latas”. Pode-
se até afirmar que não há grandes novidades, pelo menos em termos timbrísticos. Mas o
trunfo do disco reside na forma como o autor condensou algumas vertentes musicais
contemporâneas, convertendo-as em peças do seu próprio universo sonoro.

Em “GLAQJO XAACSSO”, primeiramente, patten trabalha muito com seus filtros de


compressão e efeitos, criando texturas a partir do ajuste de variadas fontes sonoras. Ao
invés de compor verticalmente (como nos processos de composição linear – partituras e
execuções ao vivo), ou horizontalmente (como nos processos de composição não-linear,
realizadas nos programa de edição digital), se utiliza de dois métodos para estimular a
sensação de “profundidade”, camadas de som que, alternando seus volumes, se
entrelaçam na duração da composição.

Este procedimento pode ser avaliado mais adequadamente na FACT Mix 285, já que o
autor se utiliza de faixas que todos conhecem. A oscilação dos volumes trabalha para
compor texturas, que se alternam entre as faixas e, muitas vezes, dentro delas. A mixtape
demonstra que a manipulação por compressão e aplicação de efeitos é mais do que uma
experiência, mas uma forma de expressão própria do autor. O tratamento dado ao clássico
dos Pixies, “Bone Machine”, logo no início, reitera o procedimento descrito acima. Esta
característica perpassa todas as faixas do álbum.

Ao lado dela, o formato delirante e colorido das composições, repletas de reviravoltas,


deixa explícita a verve iconoclasta do autor. Exemplos? Com seus vocais que vem e vão,
a descompassada “Out the Coast”, “Fire Dream”, “Word Collided” e “Blush Mosaic”,
para começar. Em cada uma de suas doze faixas, uma experiência anômala com o ritmo,
com a timbragem, com a mixagem e o tratamento final.

Embora não disponha da virulência de Passed Me By, nem do vigor eloquente de


Room(s), estamos diante de um trabalho que se equilibra entre múltiplos interesses,
intervenções minuciosas e uma improvável inclinação para a experimentação. Mostrei a
um amigo e lhe perguntei: como você classificaria essa música? Entre pasmo e
interessado, ele exclamou, sem pestanejar: “liquidificasound’s trashlike
usualthangzzzzz…” Depois das risadas, a fórmula me pareceu bastante conveniente.

Pinch & Shackleton: Pinch & Shackleton (Honest Jon’s)


Que dois dos maiores nomes da música eletrônica da atualidade se unam em torno de um
álbum em conjunto, é motivo de júbilo para todos aqueles que desejam escutar algo que
nunca escutaram antes. Porém, não se pode afirmar com plena convicção de que se trata
de um disco de dubstep ou de “IDM”, nem de releitura computadorizada da música
oriental, nem de reinterpretação da batucada africana, etc. Mal se pode dizer que estamos
diante de um disco de música eletrônica… Aqui, a referência não importa, mas a própria
experiência, cercada de contradições por todos os lados…

Como os grande álbuns de 2011, “Pinch & Shackleton” é um disco que desafia rótulos.
Em virtude de sua abordagem iconoclasta, característica que se equilibra com a
organicidade de seus timbres e texturas, “Pinch & Shackleton” é, sem dúvida, um
trabalho livre classificações, indomável e fascinante, produto da colaboração de duas
grandes consciências capazes de ampliar contextos e sonoridades supostamente
consolidados. E que se movem para além das delimitações de um tabuleiro que se
reconfigura a cada dia. Qualquer tentativa de associá-los à prisão dos gêneros vai de
encontro à originalidade de sua música.

Originalidade… Que palavra! Diante da entonação dramática dos tambores retumbantes e


de estruturas rítmicas que, apesar de incomparáveis no universo eletrônico, constituem os
elementos característicos dos respectivos trabalhos, qual seria a função desta palavra
problemática? Pode parecer redundante, mas é preciso notar que a “originalidade” aqui,
antes de mais nada, representa uma noção que se reveste de imprevisibilidade. Ainda que
se perceba claramente o batuque sombrio de Shackleton, e até mesmo entrever o balanço
de Pinch – brilhantemente destilado em seu primeiro e único álbum solo, “Underwater
Dancehall” –, é na forma imprevisível das composições e dos sons que reside o trunfo do
disco.

Cada elemento soa como se tivesse passado por uma série de processos rigorosos,
elaborados segundo uma gramática irredutível a qualquer trabalho de música eletrônica
de que dispomos na praça. Como, por exemplo, os atabaques de “Levitation” (eleita para
o videoclipe), os timbres vítreos na genial “Jellybeans”, o contratempo (hi-hat) em
“Rooms Within a Room”, o loop histriônico em “Selfish Greedy Life” (“ya little greedy
life”…) e as vozes fantasmagóricas de “Boracry Drift” – entre muitos outros. A
imaginação vertiginosa de Shackleton e Pinch nos conduz por uma viagem sensorial, que
foge ao escopo das referências consolidadas e dos gêneros supostamente bem acabados
da música eletrônica.

Cozinhar um prato fora do cardápio, mesmo que isto implique em utilizar alguns
ingredientes assentados no paladar do ouvinte. Parece o lema de artistas que conferiram
graça e vigor ao ano de 2011: Moritz von Oswald, Andy Stott, Leyland Kirby, Travis
Stewart (Machinedrum), Akifumi Nakajima (Aube), patten, Florian Hecker… E, mais
uma vez, os nomes de Pinch e Shackleton figuram nessa lista, com todo os méritos.

Ekundayo: Ekundayo
Edição: Rodeadope CD
O que acontece quando um disco consegue equacionar as ideias do lendário
percussionista brasileiro Naná Vasconcelos, do músico e produtor Scotty Hard
(responsável por um dos mais impressionantes álbuns colaborativos da década passada,
Scotty Hard’s Radical Reconstructive Surgery), dos músicos Guilherme Granado e
Maurício Takara (Hurtmold, São Paulo Underground), do trumpetista Rob Mazurek (São
Paulo Underground, Chicago Undeground), e dos rappers Mike Ladd, Lurdes da Luz e
Rodrigo Brandão (Mamelo Sound System)? O octeto batizado como Ekundayo – “a
alegria que advém da tristeza”, em Iorubá – é uma dessas colaborações que se justificam
através do equilíbrio entre diversas contribuições e particularidades, sintetizando a
profusão de ideias em um todo coerente.

Porém, álbuns colaborativos – particularmente aqueles que ostentam o nome de todos os


seus participantes na capa – são como uma faca de dois gumes. O que se espera deles?
Diferentemente do trio de Moritz Von Oswald ou do quinteto de Peter Evans, que
sugerem de saída a ação preponderante do band leader, trabalhos dessa natureza carregam
a tarefa ingrata de apresentar algum nível de coesão entre as contribuições dos artistas
escalados. Entre os bem sucedidos nessa seara, podemos citar One Bird Two Bird,
colaboração entre Masami Akita (Merzbow), Mats Gustafsson e Jim O’Rourke, cuja
principal característica se concentra justamente na arte de nivelar a contribuição criativa
dos músicos. Já Knives From Heaven, lançado em 2011, conta com um quarteto estelar,
que inclui Matthew Shipp, Beans, William Parker e Hprizm, mas exibe uma forma
irregular, como se reportasse a um sarau improvisado, exposto às intempéries do
improviso, ora vacilando, ora atingindo seu objetivo.

Em seus quarenta minutos, Ekundayo soa de forma orgânica e equilibrada, sem que um
ou outro artista se imponha. Soa, em suma, mais como produto de um trabalho de
conjunto, e não como um “projeto” abrupto e passageiro – fórmula que funciona melhor
em experimentos localizados na seara da improvisação. O motivo não guarda mistérios,
pois Takara já havia participado dos discos de Hardy e Mazurek, enquanto Brandão e
Lurdes já operam há tempos no Mamelo Sound System. Consta que, a partir de 2008,
Mazurek e Mike Ladd fizeram algumas jams com Mauricio Takara, Rodrigo Brandão e
Lurdez da Luz, e convidaram gradualmente os outros membros para integrar o time.
Resta saber se o resultado sonoro justifica tamanho equilíbrio e coesão.

Sintetizando gêneros e estilos, o Ekundayo produziu talvez o álbum colaborativo mais


improvável do ano passado. Isto porque são evidentes os ecos do fusion jazz dos anos 70
– cujo referencial mais pungente é fornecido pelas experiência de Miles Davis –, algo do
funk-rock dos anos 90, uma produção que viabiliza a convivência pacífica entre timbres
acústicos, elétricos e eletrônicos e, sobretudo, um traço conceitual que leva do hip-hop ao
jazz à moda da Thirsty Ear (a empresa que começou como agência de marketing nos anos
70, e desde a década de 90 é um dos selos mais interessantes na praça). Ou seja,
elementos anacrônicos que, combinados com a precisão destilada pelo octeto, resultam
em música vigorosa e criativa.

Entre temas jazzísticos como “Night of the hunter” e a delicadeza desconjuntada de


“Freak Rocker”, destacam-se o rap peculiar de Rodrigo Brandão e Lurdes da Luz em
“Macumbeiro então” (“Macumbeiro então vai ser queimado em Praça Pública?”), a
ousada “Em nove” – que, de fato, se vale do compasso composto e homenageia Maria
Bethânia –, e o líbelo em prol da amizade, “Family Thang”, que lembra algo entre o Red
Hot Chili Peppers dos bons tempos e o hip hop dos anos 90. E, por fim, encontramos em
“Algo necessário”, o verso que melhor resume a empreitada, pois traz à tona o conteúdo
fluente e espontâneo de seu percurso e, ao mesmo, a ideia de que se trata de um trabalho
burilado, pensado: “Respiração é algo necessário, como transpiração é algo necessário,
como respiração…”

Oval – OvalDNA
Edição: Shitkatapult CD
Na contramão de uma certa tendência em confeitar o aspecto icônico das décadas
passadas – à exemplo da recuperação dos sintetizadores germânicos, ou no synthpop dos
oitentas – a música de Markus Popp parece olhar exclusivamente para o futuro.
Investigando as potencialidades sonoras do CD – seja arranhando-o ou explorando os
comandos rewind e fast-forward – Popp gravou 94Diskont (1995). Pouco depois,
projetaria um aplicativo que permitiria não só manipular o resultado de sua pesquisa
timbrística, como também, ao usuário, reproduzir as técnicas empregadas no álbum.
Fazia questão de afirmar que a música que lhe interessava advinha dos procedimentos
com softwares, e não dos sintetizadores, concepção que resultou em álbuns como
Ovalprocess (2000) e Ovalcommers (2001). Após quase dez anos de silêncio, edita o
enigmático O (2010), setenta faixas trabalhadas sobre uma plataforma abastecida de sons
pré-selecionados, cujo modo de execução permitia a Popp conferir mais organicidade às
composições. Resumidamente, a música do Oval condensa no mesmo patamar o som e a
música, a técnica e a estética, o procedimento e a criação, em uma mesma perspectiva,
positiva, fulgurante e inspiradora.

Há quase vinte anos, em companhia de Sebastian Oschatz e Frank Metzger, Popp


desenvolveu experiências que resultariam no subgênero que ficou conhecido como glitch.
Através de procedimentos até então incomuns, assinou uma série de álbuns que, devido à
amplitude dos processos e complexidade do resultado, puseram em xeque a própria noção
de “música eletrônica”. Porém, o que definia o glitch não era simplesmente a sonoridade
abrasiva e o aspecto material que ressoava de sua experiência sonora, mas a própria
noção de que todos os processos estão implicados na experiência acabada. Mais do que
isso, a percepção de que a experiência se expande, constituindo um continuum ilimitado e
fragmentário, que se renova a cada nova execução, a cada nova reinterpretação.
Experimentação, procedimento, consequência e controle incidem sobre um só e mesmo
dispositivo estético, o que implica na condensação de todos os momentos – inclusive o
seu porvir. Assim, o DNA do título não se refere simplesmente à gênese e
desenvolvimento de um trabalho pregresso, mas, sobretudo, aponta uma seta para o
futuro.

Como era de se esperar, OvalDNA não é um lançamento convencional, tanto no aspecto


técnico, como no que diz respeito à concepção artística – fatores que Popp considera
paralelos em sua obra. Trata-se de um pacote triplo, composto por um CD de material
inacabado, inédito ou obscuro, que cobre o período de treze anos que vai de 1997 até
pouco depois do lancamento de O; um DVD que traz generoso material open source
composto por cerca de dois mil arquivos sonoros, classificados pelos termos “Oval”,
“OvalDNA Software”, “Oval Musicclips”, “Oval documentation” e “bonustracks”; e, por
fim, um livreto com texto de David Toop. E, no entanto, em meio a esta pletora de
arquivos, documentos e até mesmo memorabilia, sobressai a música propriamente dita.
Desprovida da habitual coerência conceitual, a presente seleção busca dar conta da forma
mais ampla possível de todo um percurso, incorporando eventuais sobressaltos e
correções de rumo. O indivíduo familiarizado com o trabalho do Oval será entretido por
um jogo de cabra-cega, na tentativa de adivinhar em que contexto se localiza a beleza
disforme de “Mare Fax”, as percussões robustas de “In + Love” ou “Australasia”, uma
faixa que condensa um bocado da fase atual e a chiadeira da década de 90.

Já o conceito da edição como um todo é mais complexo: trata-se menos de uma


retrospectiva convencional do que uma nova empreitada, OvalDNA contribui
decisivamente para a compreensão do pensamento musical de Markus Popp, mas também
semeia seu legado sob a forma objetiva de um exemplo. O trabalho manifesta um
pensamento que não se deixa mediocrizar por falsos consensos, permitindo-nos afirmar
que tamanha generosidade expõe uma perspectiva corajosa a respeito do estatuto da
criação artística, não somente nesses dias em que vigora uma espécie de capitalismo
obscurantista, mas desde que haja criação humana.

Duppy Gun Productions: Multiply/Earth


Edição: Duppy Gun Productions 12”
Antes de mais nada, vale revelar ao leitor o que vem a ser Duppy Gun Productions. Trata-
se de uma parceria de produção entre Cameron Stallones (ou Sun Araw) com M. Geddes
Gengras, que se reuniram para uma das tarefas mais auspiciosas de 2012. No início de
2011, ambos partiram para a litorânea Portmore, na Jamaica, com a intenção de gravar
um álbum com os lendários The Congos, em seu próprio estúdio. A boa notícia é que o
álbum está pronto, e tem previsão de lançamento para este início de ano. Mas isto não é
tudo.
Durante a produção, a dupla gravou também algumas faixas misturando bases
classificadas como outer orbit dancehall (“dancehall fora da órbita”), com o vocal
característico dos toasters locais. O resultado, caros amigos, é algo da ordem do incrível e
do inesperado. Ao lado dos dois volumes de “Waldgeschichten” (12”), o retorno
marcante de Pole (Stefan Betke), e da empreitada insana de Ekoplekz em Memorwrekz,
este EP lançado poela Duppy Gun Productions constitui um dos eventos mais importantes
para a seara do dub/reggae em 2011.

As texturas elaboradas por Stallones e Gengras trazem repetições cíclicas de texturas


compostas por muitos elementos, desde percussões, sintetizadores e guitarras até sons
eletrônicos de segunda mão (isto é, que soam assumidamente como presets), etc. Mas
esses elementos são revirados e alterados na pós-produção, à moda das jams psicodélicas
do Sun Araw. “Multiply” é cadenciada, quase sombria, e percebe-se que os elementos
adicionais entram no silêncio pontuado pelo baixo e pela bateria. Ao passo que “Earth” é
mais viajandona, etérea, costurada pela linha de contrabaixo sintetizado e a percussão
desengonçada, que propicia um clima literalmente “fora de órbita”. Nota para os timbres
de “gota d’água”, que saltam aos ouvidos na versão instrumental.

Da pesquisa de Stallones e Gengras, emerge uma concepção que não pode ser
classificada exatamente como “dub” em sentido estrito – pois nem sempre a mesa de som
é utilizada como instrumento musical, se não que parte de seus efeitos são obtidos a partir
de plugins etc. Mas “Earth” e “Multiply” são, ainda assim, riddims arejados e sem pátria,
que exemplificam a forma fragmentária e colaborativa da música de hoje e dialogam com
os pressupostos desbravadores do reggae e do dub, expandindo sua paleta sonora e
estimulando as mais promissoras expectativas.

DJ Rashad & DJ Spinn / RP Boo: Meet Tshetsha Boys (Honest Jon’s)


Mark Ernestus, Actress, Theo Parrish, Demdike Stare, entre outros, remixaram faixas de
Shangaan Electro, Tshetsha Boys e BBC, obtendo resultados diversos, geralmente
aproximando seus respectivos dotes e gostos aos altos BPMs africanos. Porém, de todos
os volumes da série de encontros promovidos pelo selo inglês Honest Jon’s, entre
produtores americanos e europeus e os sulafricanos do shangaan, este talvez seja o mais
consistente em termos de adequação entre a forma e o conceito. A despeito da distância
geográfica e cultural, os ecos e semelhanças que emergem entre os artistas envolvidos
não são de forma alguma desprezíveis.

Nota-se que os altos BPMs que identificam o shangaan e o juke decorrem da necessidade
de criar uma ambiente musical favorável à dança. O mesmo ocorre com o kuduro
angolano e o “passinho” do Rio de Janeiro, na medida em que os dançarinos carecem de
uma música acelerada para executar os passos com a velocidade necessária. As respostas
para essa demanda variam, mas constitui-se um denominador comum em função do
passo, que se exprime no digitalismo rudimentar e massivo do shangaan e nos arabescos
frenéticos da percussão do juke.

Lançada em dezembro do ano passado, a interpretação de Rashad e Spinn destaca o baixo


sequenciado, conduzindo o ritmo e sublinhando o suingue, ao passo que RP Boo investe
numa roupagem truncada pelos rompantes percussivos do juke. De qualquer forma,
parece que uma eventual festa shangaan, animada pela rapaziada de Chicago não pegaria
mal. E vice versa.

Kyoka: iSH
Edição: Raster-Noton 12”, Digital
Não deixa de ser curiosa a menção, no site da Raster-Noton, de que Kyoka é a primeira
mulher a figurar no selo. Pergunto-me se isso importa, e de que forma? A música pode
desconhecer credo, raça e gênero, mas até que ponto é possível determinar o elemento
“gênero” em uma música? Diante da improbabilidade de tal empreitada, me pergunto se
há algum fundamento na expressão “música de meninos”, cuja história remonta às
minhas primeiras audições de rock progressivo (King Crimson, para ser mais exato):
diante da profusão de sons rascantes e “difíceis”, alguém teria exclamado que aquilo era
música para homens, ao passo de que os sons mais palatáveis seriam supostamente
reservados ao sexo oposto.
É claro que minha opinião a esse respeito mudou consideravelmente, sobretudo após
conhecer Ikue Mori, Yoshimi, Eliane Radigue, entre outras mulheres que se embrenham
com afinco nas sendas da experimentação sonora. Justamente o campo onde a artista e
produtora japonesa Kyoka parece se inscrever. Antes, Kyoka desenvolveu vertiginosas
colagens pop, a lembrar algo do drill’n’bass da década de 90, que resultou na série
batizada como ufunfunfufu, em 3 volumes lançados entre 2008 e 2010. Sua chegada à
Raster-Noton trouxe mudanças substanciais para o trabalho.

Produzida pelo parceiro Frank Bretschneider, Kyoka se esmera em uma concepção mais
econômica, sem abrir mão dos glitches e demais timbres de ferro velho que caracterizam
seu trabalho. Na sequência, o leitor desfaz qualquer preconceito que venha a ter, diante
de intrincadas tramas percussivas, composta por fragmentos de timbres (por isso o
aspecto de “ferro velho”) e da aplicação elegante das vozes. A ironia fica por conta do
andamento techno do remix de Atom TM para “HADue”, o único vacilo de iSH. Que seja
assinado por um homem é motivo suficiente para enterrar definitivamente qualquer
relação possível entre música e gênero.

Burial: Kindred
Edição: Hyperdub 12”, Digital
O mistério que rondava a figura enigmática de Will Bevan, mais conhecido como Burial,
era reforçado pela profunda melancolia sci-fi que emanava de suas primeiras produções.
Bevan oferecia a seus ouvintes uma sonoridade particularíssima, atrelada inevitavelmente
a uma série de gêneros e subgêneros da eletrônica inglesa dos 80 e 90. Porém, seu
trabalho se constituía basicamente a partir de dois desses gêneros: o trip hop, nas
harmonias, nas vozes fantasmagóricas, no clima soturno; e o UK Garage, na batida, ao
mesmo tempo sincopada e marcial, por vezes considerada lenta demais para as pistas de
dança.

Porém, Bevan propôs uma ciência beatmaker ainda mais complexa: que esses elementos
do trip hop e do garage fossem como que borrados uns pelos outros, a batida atravessada
pelos detritos das gravações de campo – como nos timbres férreos de “Distant Lights”, ou
nas estáticas e sons mecânicos de “You Hurt Me”. Este método conferia densidade e peso
ao seu primeiro álbum, sem prejuízo do caráter profundamente obscuro das produções.

E embora Untrue trouxesse os mesmos pressupostos, sua sonoridade acenava para um


futuro deveras ambíguo: de um lado, andamentos sensivelmente mais acelerados, batidas
marcadas, vigorosas; de outro, maior ousadia nos arranjos e nos timbres, a construção de
uma “emoção calculada”, que deu origem a algumas obras-primas tais como “Archangel”
e “Etched Headplate”.

Desde então, Burial lançou esporadicamente, concentrando-se no trabalho em parceria


com Four Tet, Thom Yorke e Massive Attack. Mas foi em 2011, com o EP Street Halo,
que pudemos flagrar a continuidade de uma linha evolutiva que culmina agora com o
novo EP Kindred. As vozes femininas permanecem como uma alusão carinhosa ao R&B,
mas aquelas peças fundamentais que fizeram o aspecto orgânico-maquínico dos dois
primeiros discos, se expandiram e multiplicaram de forma a interferir decisivamente na
concepção geral.

Neste sentido, a faixa-título é exemplar. Logo na introdução somos acometidos por um


aspecto mais selvagem, quase noise: trovões que mais se parecem um microfone aberto
se espatifando no chão, chuva que mais parece um rádio de pilha fora de sintonia, a
habitual cama de sintetizadores… E então irrompe o UK pesadíssimo e uma certa
tendência à abstração na escolha dos timbres sedimenta o groove. A partir daí, delineia-se
um intrigante jogo de tira-e-põe, de alternância entre momentos ambient e batidas
frenéticas, momentos de puro delírio auditivo, perpassado pelo coral suplicante de vozes
robóticas.

A sequência de modulações em “Ashtray Wasp” surpreende, seja através de texturas


realçadas pelo o som grave e abafado, ou através do entrelace de vozes e percussões
saturadas de reverb. Já na anomalia italo-house de “Loner”, as melodias do teclado
permanecem evocativas, mas cobertas pela espessa camada sonora que reforça o tema e
favorece a aspereza dos sintetizadores. “Kindred” talvez seja o destaque do disco –
rivalizando com as modulações de “Ashtray Wasp”. Mas convém levar as três faixas em
consideração, pois embora diferentes umas das outras, elas indicam outro momento na
carreira de Bevan: batidas mais pesadas e pronunciadas; timbragens ainda mais sujas e
abstratas.

A cada lançamento, Bevan mostra que é mais do que um liquidificador de influências


passadas, mais do que o hype que cerca seu nome, mais do que “a cena” pensa que ele é.
Antes, parece que o produtor é, sobretudo, um desbravador, tal como os artistas do Juke,
tal como Konono N.01, ou Shackleton, por exemplo. Uma espécie de cientista maluco em
busca de batidas imperfeitas, degradadas, carregadas pelo pó dos automóveis, pela chuva
eterna e pelo niilismo sombrio que alimenta os grandes centros urbanos europeus do
século XXI.

Psilosamples: Mental Surf


Edição: Desmonta CD
O contexto e o personagem não poderiam ser mais inusitados. Mineiro de Pouso Alegre,
município do estado de Minas Geraes, Zé Rolê produz o que muitos chamam de “música
eletrônica”, mas com características tão próprias, que dificilmente o leitor encontrará
alguma crítica a seu respeito que não faça essa ressalva. Seja através do projeto Gentalha,
de 2008, no qual reinterpreta o tema do seriado mexicano Chaves, ou através do
Psilosamples, Zé Rolê vem trazendo um sopro de originalidade para o contexto da
produção eletrônica brasileira, que apesar do desenvolvimento evidente, ainda se
encontra atrelada às dinâmicas e estilos egressos dos grandes centros urbanos mundiais –
sobretudo Reino Unido e EUA.

No entanto, algumas audições me levaram a perguntar se Mental Surf se inscreveria de


forma automática e indiscutível na seara da eletrônica, e a resposta foi negativa. Pois
quando cito a dinâmica europeia em relação à produção brasileira, sublinho, acima de
tudo, a ênfase na pista de dança, tendência que guia muitas das produções no país, do
techno ao funk carioca, do tecnobrega ao trance. Apesar de compor a partir de laptop e
demais aparelhos, percebe-se nitidamente que Zé Rolê encontra inspiração em esferas
bem distantes do universo específico da música eletrônica. Sim, podemos atribuir o rótulo
“música eletrônica” ao Psilosamples, mas convém destacar que seu processo se dá, não
pela regularidade rítmica ou a fidelidade aos clichês dos gêneros, mas através de uma
sonoridade conflituosa, de uma irregularidade que opera em favor de uma poética
particular, e cujo resultado justifica o título do álbum.

Com seus dois primeiros trabalhos, As Aventuras de Zé no Planeta Roça em 2008 e o


álbum de uma faixa só, O Homem do Rá, em 2011, Zé Rolê abriu uma porteira
conceitual, mas que não se resumia necessariamente à noção de mashup, ou à famigerada
mistura de música regional com hip-hop ou drum’n’bass, aspectos menores de um
panorama mais ambicioso. Justifica essa percepção, não a miríade de influências e
citações apresentadas pelo trabalho, mas a forma como essa informação é manipulada. O
aspecto fragmentário de Mental Surf aproxima o trabalho do Zé do Rolê das estéticas
“inclusivas” que marcam boa parte da música eletrônica das últimas duas décadas.
Porém, mesmo levando em consideração o turntablism dos Avalanches e de DJ Shadow,
ou, ainda, o “maximalismo” preconizado por Simon Reynolds, referindo-se ao último
disco de Rustie, mas também às colagens heterogêneas que definem de Aphex Twin a
Hudson Mohawke, a comparação permanece insuficiente. Pois enquanto estes estão
implicados na construção de seus respectivos interesses (o drill’n’bass e o wonky, por
exemplo), o Psilosamples está complicado na visão irônica que mistura as faixas culturais
– Mazzaropi com Goldie, Sítio do Pica Pau Amarelo e The Orb, batidas rebuscadas com
samplers de filmes brasileiros dos anos 60.

Das nove faixas, produzidas e mixadas por Zé Rolê, dificilmente o ouvinte detecta a
passagem de uma faixa para a outra, ou mesmo reconhece a procedência de todas as
citações. Mas isso só aumenta o interesse. Pois Zé Rolê apresenta, antes de mais nada,
uma visão crítica dessa mesma “música eletrônica” que atribuem a seu trabalho. A partir
da perspectiva sonora de um jovem de Pouso Alegre, que combinou freneticamente os
insumos culturais coletados antes e depois da internet, Zé soube desenvolver uma
concepção original, que apesar de se valer de samplers e softwares, não se inscreve
necessariamente no que chamamos de “música eletrônica” – sobretudo quando buscamos
vincular seu nome a uma “cena”, ou identificá-lo a um segmento. Mal comparando, o
Psilosamples está mais próximo do estilo narrativo do The Books, do ferro velho sonoro
de James Ferraro, da ambição lúdica do Matmos, do que da chamada “música eletrônica”.

Mas basta escutar o aspecto delirante de faixas como “Ovelha Negra”, “Bom Dia Menina
Pelada!” ou “Meteorango Kid” para dissociarmos o trabalho do Psilosamples dos artistas
citados. Mental Surf certifica seu ouvinte de que Pouso Alegre deu à luz a um macunaíma
da manipulação digital, para quem a falta de um “caráter” estático (entenda-se: de um
caráter sério, rigoroso e, portanto, limitado) só rendeu bons frutos.

LHF: Keepers of the Light


Edição: Keysound Recordings digital
O termo elegância, comum às chamadas “ciências duras”, remete à necessidade de uma
qualidade econômica nas fórmulas matemáticas. Em outras palavras, trata-se de dizer o
máximo utilizando-se do mínimo possível. Sua transposição para diversos setores da vida
comum faz jus à mesma inclinação, correspondente à necessidade de reduzir o número de
elementos, concentrando a informação com eficácia e simplicidade. No caso do vasto
mundo da música, a elegância propriamente estética teve que obrigatoriamente ceder seu
lugar para uma outra acepção da palavra, que diz respeito à graça com que se vestem as
celebridades. Contudo, uma apreciação mais detida nos leva a crer que o terreno fértil da
música eletrônica contemporânea, a elegância é um elemento que pode ser medido a peso
de ouro, e não me refiro somente à tendência minimalista de concentrar esforços sobre a
“repetição”…

A elegância é uma das qualidades da compilação de inéditas e EPs do coletivo londrino


LHF, lançado pelo Keysound Recordings de Martin Clark, aka Blackdown. Oito
produtores – Amen Ra, Double Helix, No Fixed Abode, Low Density Matter, Solar Man,
Octaviour, Lumin Project e Escobar Seasons – envolvidos na confecção de vinte e sete
faixas que primam pela elegância, a despeito do fato de combinarem muitas fontes
sonoras. Parte dessas faixas já haviam sido editadas através de compilações (como as que
podem ser baixadas no Facebook do Keepers of The Light) ou dos três EPs lançados pelo
coletivo a partir de 2010, mais precisamente EP1: Enter In Silence… (2010), EP2: The
Line Path (2011) e EP3: Cities of Technology (2012). O que, de forma alguma, estraga a
surpresa de tê-las reunidas num mesmo âmbito discográfico, muito pelo contrário.

Em primeiro lugar, não se trata de um projeto vinculado a um estilo, muito menos


aqueles surgidos nos últimos anos, como o juke. Antes de mais nada, o LHF está
vinculado a uma concepção sonora própria, que pode ser designada pela extração de
aspectos da eletrônica inglesa, pelo timbre, pela batida, equacionando prodigiosamente a
timbragem agressiva dos Metalheadz e da Full Cycle (em “Bass 2 Dark” e “Chamber of
Light”), o hip hop desconjuntado da Stones Throw (em “Candy Rain”), os orientalismos
da Skull Disco (em “Steelz” e “Blue Steel”), o dubstep arrastado da DMZ (em
“Fairytales” e “Indian Street Slang”), entre outras tantas referências. As vozes do soul, os
teclados cristalinos, que remetem ao aspecto jazzy do drum’n’bass dos anos 90,
convivem com samplers, percussões e batidas sempre diretas em seu propósito.

Dito assim, parece que estamos a falar de um som saturado, indigesto, mas o que se ouve
aqui é o inverso. A elegância faz seu papel, não só através de poucos e eficazes
elementos, mas também pela diversidade de formas. Segue-se uma profusão de faixas
fortes e vigorosas, que ressaltam a habilidade do coletivo de ser acessível (“pop”?) sem
ser simplório – o que tem se predicado equivocadamente a meros facilitadores das
“batidas críticas”, como The Weeknd e SBTRKT, por exemplo. O LHF nos traz uma
perspectiva histórica sobre a música eletrônica inglesa, mas com frescor de coisa nova,
vistosa e, sobretudo, saborosa.

Maga Bo: Quilombo do Futuro


Edição: Post World Industries CD, digital
“Apenas os pensamentos andados têm valor”. Estamos diante de um álbum viajado,
andado, respirado… Um disco que põe em xeque os próprios motivos de uma crítica
musical. Por que fixá-lo, disseca-lo em palavras? O que uma visão crítica poderia
acrescentar-lhe? Se o leitor carece de impulso, que o tome destas palavras: simplesmente
ouça. Se não lhe servir, paciência. Somente a experiência, neste caso, pode ajudar.
Quilombo do Futuro não é um disco perfeito, ainda que seus deslizes e excessos exalem
uma ambientação cultural e sonora no mínimo instigante. Em todo caso, não me sinto à
vontade para uma crítica, escrevo o que me veio à cabeça durante sua audição.

Atire a primeira pedra o cidadão que jamais lidou em seu próprio país com a “questão
nacional”, perguntando-se e, eventualmente, debatendo-se com assuntos relativos aos
conflitos entre nação e cultura. Quem somos nós? Filhos da pátria, da comunidade local,
do hábito? Produto do “local” e do “global”? E o que isso significa precisamente? Por
mais que o caráter fictício dessas questões seja, forçosamente, reflexo da constituição do
estado moderno, que obteve do colonialismo europeu seu impulso propagador universal,
é inevitável a percepção de que tenha adquirido um aspecto múltiplo, moldado conforme
os mais diversos aspectos, desde conflitos territoriais até contextos econômicos, passando
por traços culturais e outros fatores.

No Brasil, a máscara do pensamento colonizado começa a cair no início do século


passado, quando o problema da “identidade nacional” passou a ser debatido com método
e pesquisa nos meios intelectuais. Surgem, então, tendências críticas que marcariam a
discussão sobre o país durante todo o século XX, das quais podemos identificar pelo
menos duas, de certa forma alinhadas ao Modernismo: uma que buscava interiorizar-se
nas manifestações culturais próprias do que costumamos chamar “folclore”; e outras,
apregoando que o Brasil seria um país essencialmente “antropofágico”, isto é, que se
constituiria a partir da deglutição da cultura alheia, transformando-a em sua própria.
Referente a dois ângulos complementares, plenamente compatíveis com a história do
país, esta polêmica se prolonga no debate cultural brasileiro até os dias de hoje, capaz até
de reavivar antigas querelas, como a de Caetano Veloso e Roberto Schwarz.

No filme Tenda dos Milagres, Nelson Pereira dos Santos se baseou na obra de Jorge
Amado para aprofundar um tema comum no debate descrito acima: a denúncia e a crítica
do do artista e do intelectual colonizado, que ao rebaixar a cultural local em favor da
europeia, busca sua própria autoafirmação. Ao narrar a história de um alemão que chega
ao Brasil para pesquisar a vida fictícia de Pedro Archanjo, importante antropólogo e
pensador baiano, desconhecido da maioria dos brasileiros, Santos enfoca o aspecto
ridículo deste sentimento de menoridade, cujo pior efeito é a própria ignorância.
Reproduzindo-se o desejo íntimo e escancarado de ser “europeu” ou “americano”,
desconheceríamos a riqueza e a dinâmica própria dos muitos “países” (e culturas) que
habitam o Brasil.

É evidente que essa situação mudou e muito nas últimas décadas, embora perdurem
muitos de seus traços mais terríveis. Permitam-me ressaltar o estranho fato de que o
brasilianista americano Thomas Skidmore foi o primeiro a ressaltar criticamente a
questão racial durante o período que cobre a primeira metade do século passado até o
golpe militar de 1964, desavisadamente esquecida em grande parte do debate político e
cultural brasileiro. A questão racial durante o tropicalismo, também foi exclusivamente
analisada pelo professor norte-americano Christopher Dunn em seu livro “Brutalidade
Jardim: A Tropicália e o Surgimento da Contracultura Brasileira”. Por fim, diante da
decisão do Supremo Tribunal Federal em favor da adoção de cotas para negros nas
universidades brasileiras, tivemos a oportunidade de topar com opiniões convictas de que
não há absolutamente racismo por essas terras. Ainda vale o que é dito em uma canção de
Aldir Blanc, na voz de Elis Regina: “O Brasil, não conhece o Brasil…”

Este longo preâmbulo pretende identificar um problema, cujo antídoto parece se alastrar
sobre o Quilombo do Futuro de Maga Bo: a relativa inversão de uma determinada
situação cultural. Sim, é inegável que ainda padecemos de um certo prejuízo moral em
ser “colônia”, presente no discurso de uma classe média possuída por miragens do
american way of life e dos benefícios do welfare state. Mas é igualmente inegável que
esta situação vem mudando e tomando nuances imprevisíveis — e não somente pelo fato
simplório de que agora são europeus e norte-americanos os maiores interessados em
ritmos africanos e latino-americanos, mas, sobretudo, porque muitos deles são
conscienciosamente introduzidos em artes e ritos como a capoeira, o candomblé, a escola
de samba, o baile funk, a umbanda, etc. E pensar que há pouquíssimo tempo, essas
práticas eram criminalizadas e discriminadas pelos governos e elites locais… Por outro
lado, não se pode negar que entre o roqueiro que cultiva somente o gosto pela música
anglosaxã, e o funkeiro que transforma o “miami bass” em “baile funk” há no mínimo
uma semelhança: a maneira livre e selvagem, sem grandes culpas e dilemas ideológicos,
com a qual a população lida com os artefatos culturais ditos “estrangeiros”.

Antes de Maga Bo, DJ Dolores e DJ Tudo já operava na seara da reconfiguração do


folclore brasileiro, seja pela via do registro, do sampler ou da síntese com ritmos
estrangeiros. E antes deles, Chico Science e Nação Zumbi reabilitavam o maracatu
misturando-o ao hip hop dos Beastie Boys e do Public Enemy. Quando eu tinha apenas
treze anos, no final da década de 80, fui à Recife e assisti a um maracatu. Perguntava,
então, à minha mãe: por que eu não nunca ouvi falar disso? Daí, o leitor pode tirar a
medida da importância de Chico Science. Não por nos tirar o “véu da ignorância”, mas
por saber dar um novo sentido a uma tradição musical centenária, não importando se era
“brasileira” ou não. Para Science, e isso ficava muito claro a cada show de seu grupo, o
que importava mesmo era a música, que costumava falar mais alto que o “orgulho
nacional”. Pois assim se deu, e hoje o maracatu é servido como prato principal, assim
como o coco, a embolada, o samba-reggae, o jongo, o baião (que recentemente cruzou
fronteiras com a sanfona de Michel Teló) e demais ritmos e gêneros que contaminaram o
norte-americano radicado no Rio, Maga Bo.

Quilombo do Futuro possui a característica comum a muitos dos artistas citados, qual
seja: superar tais tensões e dicotomias entre nacional e internacional, entre nacional e
popular, através de um só e único elemento: a música. Do ponto de vista da sonoridade, o
panorama é homogêneo por obra da qualidade técnica e do arrojo da concepção.
Desaparece a tensão entre digital e analógico, cada instrumento de percussão, tocado por
Maga Bo e por João Hermeto, se integra perfeitamente aos sons eletrônicos, filtros,
vozes, configurando um todo orgânico, pesado e consistente. E surgem pérolas como
“Rapinbolada”, com a participação do rapper Gaspar, “É da nossa cor”, com a
participação do Mestre Camaleão — mestre de capoeira de Maga Bo, que toca um
berimbau estridente, processado por algum plugin, “No balanço da canoa”, com
Rosângela Macedo, do grupo paulistano Paranapanema, e Marcelo Yuka, ex-O Rappa, o
maculelê do funk carioca em “Piloto de Fuga”, com Funkero e Bnegão, e “O Neguinho”,
com o rapper-funkeiro Renato Biguli… Nota para a participação do saudoso rapper de
Niterói Speed Freaks, na rapercussão de “Drobrado” e do nuyorican soul Jahdan
Blakkamoore na fanfarra desvairada de “Maga Traz a Lenha”.

Muito diferente da aproximação cautelosa característica de trabalhos como Rei Momo,


Graceland ou até mesmo Getz/Gilberto — que, felizmente, resistiu à roupagem jazzy
graças ao gênio de João Gilberto —, Maga Bo parece saber por onde pisa. Pois sua
principal virtude é a capacidade de vivificar manifestações musicais circunscritas ao
universo antiquário do “folclore” — e isso a partir de um olhar familiar, mas, ainda
assim, estrangeiro. Assim, não importa se são ritmos “orgânicos” ou eletrônicos, se são
batucadas digitais ou batidas na palma da mão, ainda menos se essas categorias servirem
como parâmetro para determinar uma suposta “brasilidade”. Não importa, por fim, se é
uma mistura de gêneros e ritmos, brasileiros ou não. Quilombo do Futuro é portador de
uma aparente contradição: desconhece fronteiras, mas interage com todas elas. É, como
escrevi acima, um trabalho andado, viajado, feito de canto e batucada, máquinas e
técnicas, reunidos com o intuito de conduzir a dança, o êxtase, a festa.

Sun Araw, M. Geddes Gengras Meet The Congos: FRKWYS Vol. 9: Icon Give
Thank
Edição: RVNG Intl. CD

O leitor há-de se lembrar: ainda nos primeiros dias deste ano antecipávamos o prelúdio
para a promissora colaboração entre os norte-americanos Cameron Stallones (Mr. Sun
Araw), M. Geddes Gengras e o lendário grupo vocal jamaicano The Congos. Refiro-me
ao 12” “Multiply”/“Earth”, duas faixas exemplares de um gênero batizado pela dupla
como “outer orbit dancehall”, com a participação dos toasters jamaicanos Dayone e Early
One. Como desdobramento deste 12”, o álbum foi lançado pelo selo RVNG Intl. em
Março, como o nono volume da série FRKWYS. A série, dedicada a reunir artistas de
gerações diferentes para projetos colaborativos, já rendeu boas convergências entre
Julianna Barwick e Ikue Mori, Excepter remixado por Carter Tutti e JG Thirlwell e David
Borden com Laurel Halo, James Ferraro, entre outros. Porém, na medida em que vivemos
uma época saturada de colaborações, muitas vezes sem resultado efetivo ou razão de ser,
vale notar que estamos diante de um dos momentos musicais mais instigantes deste ano.
E não me refiro somente à seara do dub e do reggae.

Para começo de conversa, vale enaltecer a forma do trabalho, pois não basta reunir dois
grandes artistas sem intuir alguma relação de composição entre eles. Pois, neste caso, a
contribuição produziu um efeito positivo em ambas as partes, reforçando e expandindo as
características criativas dos envolvidos. De um lado, a formação original do The Congos,
com Roydel Johnson (tenor), Cedric Myton (falsete) e Watty Burnett (barítono),
acrescido por um novo membro, Kenroy Fyffe (classificado como “cosmic vocal”).
Responsáveis por um dos grandes álbuns dos anos 70, The Heart Of Congos, produzido
por Lee “Scratch” Perry, o grupo, que havia encerrado suas atividades no início da
década de 80, lançou recentemente o excelente Dub Feast, confirmando seu melhor
momento desde o retorno em meados da década de 90. De outro, Cameron Stallones e M.
Geddes Gengras, dupla de artistas norte-americanos da costa oeste, que vem se dedicando
a explorar um percurso singular, situado na encruzilhada do dub com o lo-fi e o rock
psicodélico, triscando a seara “cósmica” de Sun Ra e Acid Mothers Temple.
Acompanhados por uma equipe de filmagem encabeçada pelos cineastas Tony Lowe e
Sam Fleischner, Stallones e Gengras viajaram até St. Catherine, 45 minutos de Kingston,
para encontrar com o The Congos por dez dias, resultando na produção de Icon Give
Thank e, em paralelo, de Icon Eye, o filme.

Icon Give Thank não se resume exatamente a um prolongamento dos “riddims arejados e
sem pátria” com o qual identificamos o 12” com Dayone e Early One. A começar pelo
universo de referências, que não se restringe ao dancehall e ao dub, mas, como sugere a
introdução “New Binghi”, aposta em reinterpretações psicodélicas dos cantos religiosos
niyabinghi, marcados pelo temperamento meditativo, o andamento lento e a marcação
característica do bongô — celebrizado por Bob Marley no clássico “Rastaman Chant”, do
álbum Burnin’, de 1973. Depreende-se o ânimo contemplativo das próprias texturas
vocais reproduzidas pelo quarteto, fortemente marcadas pelo fervor dos cantos religiosos,
que tende a se reconfigurar “cosmicamente” com as guitarras e intervenções
protagonizadas por Stallones e Gengras. Como em um processo positivo e inesperado de
desenraizamento das sonoridades tradicionais, ocorre a relativa intensificação do sentido
contemplativo do canto nyabinghi e das percussões, tocadas por Roydel e Negus Johnson,
amparadas pela trama difusa de violões, sintetizadores e efeitos. O trabalho magistral de
edição e composição das bases empresta um recorte ordenado a este ambiente rico em
sonoridades, de modo a favorecer as canções, ao que tudo indica compostas em parceria:
o núcleo norte-americano encarregando-se do instrumental, enquanto os jamaicanos
elaboram os arranjos vocais e as letras. A imposibilidade de se delimitar qualquer
preeminência na contribuição dos artistas testemunha que se trata de uma interação se
não perfeita, certamente uma das mais bem sucedidas dos últimos anos. Do chamamento
sincopado de “Happy Song”, marcada pelo entrelaçamento das percussões acústicas e
digitais, até a confraternização com cara de field-recordings em “Thanks and Praise”,
somos tomados por uma beleza simultaneamente ímpar e orgânica, límpida e carregada,
que se exprime canção após canção através de momentos excepcionais, com destaque
para os tambores com efeitos em “Jungle” e “Invocation”, um convite expresso ao transe.

Mesmo para um indivíduo pouco dado a sentimentos religiosos, não há como evitar a
recepção austera e atenta de Icon Give Thank. Apesar da originalidade, sua fluência
liberadora me lembrou a revolução silenciosa que Candombless de Carlinhos Brown
protagonizou na história recente do batuque afro-brasileiro. Mas foi Amazing Grace, o
magistral álbum de convalescença de Aretha Franklin, que me ocorreu como uma
reminiscência à altura. Pois não se trata de música para ouvir com a disposição
supostamente impessoal do crítico, ou ao sabor evanescente do contexto pessoal — e,
aqui, me reservo o silêncio diante da crença religiosa, que parte de tendências particulares
e culturais. Posso dizer por mim mesmo que, da audição de Icon Give Thank, decorreu,
sobretudo, um sentimento vigoroso de alegria, louvação à vida e à força intensa que a
música exerce sobre ela.

KTL: V
Edição: Editions Mego CD, 2xLP
Para os que apreciam a música eletrônica às raias da junção aparentemente contraditória
entre o noise e a ambient, a dupla KTL, formada por Stephen O’Malley e Peter Rehberg,
representa mais do que a colaboração entre dois artistas significativos na música atual.
Reunido em 2006 para a elaboração da trilha sonora do espetáculo Kindertotenlieder,
dirigido pela artista francesa Gisèle Vienne e pelo escritor americano Dennis Cooper, o
KTL já descreve uma notável rota criativa. Antes de representar a linha de abordagem do
noise mais cerebral, ou um trabalho “em progresso”, eles oferecem uma obra viva,
permeada pela contribuição dos trabalhos que desenvolvem em paralelo, sejam através de
instalações, do teatro ou de seus respectivos projetos musicais. Tal diversidade se refletiu
de modo particularmente surpreendente no resultado final deste álbum, batizado
simplesmente como V — que além de contar com arranjo para orquestra de Jóhann
Jóhannsson, executado pela Filarmônica da Cidade de Praga, foi gravado em estúdios
tradicionalmente ligados à música eletrônica europeia, tais como o EMS, em Estocolmo e
o Meccas GRM, em Paris.

Parece evidente que V exprime a catalisação de uma gama determinada de experimentos


musicais, que se constituíram a partir da atividade regular de Stephen O’Malley e Peter
Rehberg. Trata-se mais de um recorte acurado de ideias musicais derivadas das idas e
vindas protagonizadas pelos artistas, do que propriamente um desvio súbito para outros
gêneros. Daí a razão de sua variedade. Esta arregimentação propositadamente desigual,
que se adapta a certas demandas específicas (teatro, instalações, arranjos orquestrais),
mas que também remete a uma experiência propriamente “musical”, favorece a
interpretação segundo a qual o tableau vivant do KTL se apresenta como uma espécie de
foro criativo permanente — rigoroso, mas também imprevisível.

Quem esperava alguma das cinco faixas de V na apresentação do KTL no Sónar São
Paulo deu de encontro com um monumental crescendo sonoro, cujos pontos altos foram
precisamente a transcorrência metódica da improvisação e o epílogo devastador. Em
termos de instrumentação, o caráter estratégico se confirmou, pois tal como no Sunn O))),
O’Malley é ladeado por quatro ou cinco pilhas de amplificadores, —que no ambiente
ideológico do metal remete simplesmente à “potência sonora”. Mas o procedimento se
mostra mais sofisticado à medida em que o guitarrista constrói a obra camada por
camada, enviando acordes e notas emitidos pela guitarra para cada um dos
amplificadores. Do nevoeiro de guitarras sobrepostas, minuciosamente elaborado por
O’Malley, emerge o condutor sonoro eficaz de uma experiência musical absolutamente
invulgar.

Assim também o indica a primeira música do disco, “Phil 1”, um drone fantasmagórico
preenchido pela miríade de ruídos produzidos pelos sintetizadores (modular synthesiser,
vale lembrar) de Peter Rehberg —sublinho que, por trás da descontinuidade destes ruídos
manifesta-se um inegável aspecto rítmico, que se repetirá ao final de “Tony”, a única
faixa que conta com o contrabaixo de O’Malley. Esta, por sua vez, mantém uma relação
curiosa com “Study A”, elaborada unicamente a partir da utilização de dois
computadores. Ambas apostam em uma reinterpretação das longas texturas monofônicas
que caracterizavam os primeiros trabalhos do KTL. Contudo, as peças se distinguem pelo
tratamento dispensado às variações em relação ao centro harmônico: se em “Study A” a
harmonia recorre às notas de forma aleatória, reproduzindo modulações dissonantes,
“Tony” trabalha com intervalos mais próximos ao investir na diferenciação pelo timbre,
transitando alternadamente de uma sonoridade límpida à estridência.

Nas duas últimas faixas, porém, a dialética do KTL pende sua balança para um terreno
que, se não pode ser considerado exatamente inexplorado, ao menos aponta para um
outro nível de experimentação. Como na faixa que encerra o disco, intitulada “Last
Spring: A Prequel”, na qual o ator e marionetista Jonathan Capdevielle, que já havia
participado do terceiro álbum do KTL, interpreta as palavras de Dennis Cooper para a
instalação homônima de Gisèle Vienne. Mais do que mero adereço para a dramaturgia
psico-escatológica de Cooper, O’Malley e Rehberg imprimem os motivos sonoros
precisos para ressaltar o clima aterrador das palavras sussurradas por Capdevielle — com
destaque para a performance de O’Malley com o microfone de contato. Mas é na
participação do compositor e produtor islandês Jóhann Jóhannsson na apocalíptica “Phil
2” que reside o ponto alto do álbum. Jóhannsson compôs a orquestração da faixa e
convocou a Filarmônica da Cidade de Praga, conduzida por Richard Hein, para executá-
la. Uma experiência arrebatadora, de tal forma que não seria exagero afirmar que se trata
da faixa mais elaborada e impressionante da dupla até então. A polifonia indisciplinada
na sequência em que soam as trombetas (lá pelos 9 minutos), contrasta com a
simplicidade da melodia em loop, que atravessa impassível os quinze minutos da faixa. O
resultado não se pode exprimir em palavras, e reivindica a atenção absoluta do ouvinte do
início ao fim.

Ao incorporar em poucas faixas uma variedade considerável de processos de composição


e sonoridades, V remete ao clima alternadamente estridente e taciturno dos trabalhos
anteriores, e, simultaneamente, busca construir um diálogo ambicioso com as
dissonâncias e elementos eletroacústicos característicos de autores como Gÿorgy Ligeti e
Eliane Radigue. Entre esses dois aspectos, dissolve-se a relação equidistante entre a
experiência e a expectativa, entre o procedimento e o resultado, cedendo lugar à
atualização de uma imagem cuja beleza reside no fato de restar sempre inacabada. É esta
abertura que faz de V o trabalho mais instigante do KTL, e também o mais propenso a
indicar uma continuidade promissora, comprovando, a um só tempo, o rigor e a
mobilidade propostos por uma dupla de artistas que vale acompanhar de perto.

Shackleton: Music for the Quiet Hour


Edição: Woe To The Septic Heart! CD, LP, digital
Em meados de 2011, no intervalo da produção de seus últimos trabalhos, Sam Shackleton
participou com o escritor Vengeance Tenfold (ou Earl Fontainelle) de uma empreitada
que envolvia de modo particular o conceito de “paisagem sonora”. O projeto Sonic
Journey, apoiado pelo SoundUK, encomendou ao produtor inglês, estabelecido em
Berlim, uma trilha-sonora composta por duas faixas que interagissem respectivamente
com o trajeto de duas linhas ferroviárias de Devon: a Tarka Line, no norte do condado, e
a Great Western Mainline que segue o curso do mar no chamado Exe Estuary. O
resultado, como o leitor pode averiguar no link acima, contrasta com a polirritmia techno-
industrial tingida por sintetizadores ambient e ruídos orgânicos, característico dos EPs
“Deadman” e “Fireworks” e da parceria com Pinch, cuja particularidade se mantém
mesmo se nos valermos de justas comparações com as texturizações pluriculturais de
artistas e projetos como Muslimgauze, Coil ou The Anti Group, entre outros. Porém, não
seria exagero atribuir a essas duas composições o gene dramático que persiste na
fascinante experiência de percorrer com fones de ouvido todos os sessenta e cinco
minutos de Music for the Quiet Hour: pois trata-se de uma obra ligada sobremaneira à
palavra “viagem”…

Lançado em abril deste ano, este autêntico tour de force ocupa um CD inteiro, compondo
uma caixa suntuosa que ainda conta com The Drawbar Organ, trilogia de EP’s de 12” e
um livreto ilustrado pelas formas espasmódicas criadas pelo inglês Zeke Clough. Music
for the Quiet Hour remete às noções de “viagem”, “deslocamento”, seja geográfico, seja
mental, mas tambem deriva da parceria com as palavras e a voz monocórdia de Tenfold
(que já havia participado de “Death is Not Final”) e a noção de “paisagem sonora”, que
atinge um outro patamar nesta peça. Adapatado às longas durações, Shackleton desdobra
vertiginosamente sua paleta de sons em uma imensidão de artifícios, demonstrando
fôlego e engenho para experimentar em cada uma das “danças” com uma imensa
variedade de timbres, texturas, climas, gêneros e demais dispositivos — muitos deles
inéditos em sua obra, a exemplo da chiadeira noise que toma a segunda parte lá pelos
cinco minutos. Não há dúvida de que Shackleton elaborou esta que pode ser considerada
sua obra-prima a partir da experiência de Devon, desta vez convidando o ouvinte a repor
mentalmente a motivação visual propiciada pela viagem ferroviária.

Composta em cinco movimentos, Music for the Quiet Hour organiza sua estrutura de
forma semelhante a de uma suíte clássica, com quatro movimentos e uma introdução,
cada uma trazendo uma série mudanças e remissões internas — quando, por exemplo,
alguma melodia faz intercâmbio entre as diversas partes, como a que é executada com
algo semelhante a uma “buzina de bicicleta” na parte dois e repetida na parte três. Como
declarou em entrevista recente, Shackleton não usa patterns eletrônicos e escreve cada
uma das seções da composição no computador, fator que incide diretamente sobre a
complexidade da beats, texturas e tramas percussivas. É possível listar uma infinidade de
timbres que se entrelaçam nos cinco movimentos, desde flautas andinas, tubos percutidos,
sons naturais modificados eletronicamente (ondas do mar, tempestades, avalanches,
pássaros), sons digitais e analógicos com as mais diversas características, orgânicos e
inorgânicos, pianos, teclados, vozes alteradas e sequenciadas, efeitos os mais diversos —
detectei até o som de uma tevê sintonizando. Há, portanto, mais do que um virtuosismo,
mas um movimento criativo capaz de explorar inesgotavelmente seu próprio repertório e,
mais que isso, de organizá-lo em pequenas composições coerentes e articuladas entre si.
Como por exemplo, nos primeiros minutos da quarta parte, a maior de todas, quando
Shackleton confere ritmo às sílabas emitidas pela voz que repete o mantra metafísico “It
is”. E como explicar/nomear/descrever em palavras a síntese de voz, cítara e cello que
descreve a melodia que finaliza a parte quatro?

Tais características inomináveis da música de Shackleton nos levam a compreender que


ele segue rigorosamente uma das platitudes da música contemporânea: a ampliação do
espectro sonoro, a busca por sonoridades que nunca foram escutadas. Mas, ao contrário
de artistas irascíveis como Hecker e Merzbow, que conduzem o ouvinte ao limite do
corpo pela violentação dos sentidos, as intenções de Shackleton se depositam sobre o
ritmo e sua benevolência concreta. Ao estender este pressuposto estético à dança, uma
dimensão simultaneamente corpórea e imaginativa, disponibilizando a gama de signos
que ignora a procedência “étnica” (e mesmo desprezando o etnocentrismo da palavra
“étnico”), Shackleton indica, para além de mais uma distopia bélica, o caráter de
permanente resistência embutido no mundo que encena. É o que enuncia a voz robótica
de Tenfold, quando recita um texto iniciado pela célebre frase do incendiário Fela Kuti:
“Music is the weapon of the future, turn off your computer. The rhythm is electronic
system subverter, reality is clearer”. A convocação para o ambiente da rua (“desligue o
seu computador”) e da dança (responsável por “subverter o sistema eletrônico”), com
certeza não é meramente existencial, mas político.

Anterior a qualquer possibilidade de análise de cunho estrutural, o que mais impressiona


nesta suíte é a forma como o autor desenvolve em todos os movimentos a relação entre o
som e a evocação, derivada unicamente da tensão imagética com a qual a dupla lidou no
projeto em Devon. Não parece incomum que essa música suscite na maioria dos ouvintes
a sensação da “paisagem”, sempre em relação a uma sonoridade (uma marimba, um
sintetizador, um som inaudito, uma voz) que aciona o dispositivo visual e alça a
imaginação a uma determinada ambientação imagética. Assim, a “hora tranquila” a que o
título se refere não diz respeito propriamente ao sentimento que a música pretende
transmitir, mas à necessária ampliação de sua experiência. Que o ouvinte permita a si
mesmo deslocar-se a uma experiência limítrofe, desafiando a velocidade com que se
produz e consome cultura no cenário musical como um todo. Pois é a partir justamente da
capacidade de nos transportar a um outro universo — não só em relação às referências
“multiculturais”, mas em oposição ao culto da celebridade e da personalidade — que a
obra de Shackleton nos impressiona, e, particularmente, em Music for the Quiet Hour.

Carter Tutti Void: Transverse


Edição: Mute CD, 12”, digital
Depois do primeiro naufrágio dos Throbbing Gristle, lá pelo ano de 1981, dois de seus
membros, Chris Carter e Cosey Fanni Tutti, deram início a uma parceria brilhante. A
experiência techno-pop de Chris & Cosey, calcada na exploração incansável dos
sintetizadores, derivaram para vertentes diversas do industrial rock que os “gristles”
ajudaram a pavimentar. Comprova-o as texturas robóticas de Trance (82) ou o pop
agressivo de Exotika (87), entre outros tantos trabalhos dignos da maior atenção, com
ressonâncias evidentes sobre toda a música produzida no eixo do pop-rock-eletrônico
anglosaxão em 20 ou 25 anos.

Em 2004, após mudar para o nome para Carter Tutti, a dupla lançou Cabal, um disco que
fundia o que havia de mais introspectivo no aspecto pop com o background experimental,
desenvolvendo uma sonoridade voltada para melodias tristonhas e climas mais sombrios.
E, ainda assim, percebe-se nesta segunda fase a mesma inclinação a criar uma harmonia
entre sons maquínicos e sons tradicionalmente musicais, como rezava a profissão de fé do
Throbbing Gristle. Esta característica sobressai em Transverse, colaboração da dupla com
Nik Colk Void, guitarrista e cantor da banda de pós-industrial (sic) Factory Floor.

Lançado em março deste ano, Transverse representa mais um projeto bem sucedido,
voltado para a improvisação com os sintetizadores e máquinas afins. Nas quatro faixas
gravadas em Londres no Short Circuit Festival em maio de 2011, todo o lado pop —
mesmo o “pop maduro” — foi extraído em favor das nuances e detalhes decorrentes da
interlocução entre máquinas e cérebros. Batizadas com a letra V e um número
identificador, cada composição é resultado de extenso improviso que parte do andamento
meio techno, meio ska, atribuído à Chris Carter, dos sons de guitarra, samplers e
sintetizadores destilados por Void e da voz sempre etérea de Cosey Fanni Tutti. O
processo é, se me permitem, “dubístico”, mas vale destacar esta referência nos graves em
“V3” (Andy Stott meets Markus Popp?) e na versão em estúdio de “V4”— que permite
assimilar com mais nitidez este panorama dosadamente poluído.

Talvez por conta da intensa atividade no universo das artes plásticas, através de
instalações e happenings, a música de Chris, Carter e Void flui na duração com
naturalidade, mesmo repleta de intervenções barulhentas, descompassadas e, no entanto,
perceptivelmente manipuladas. Neste percurso, desponta uma torrente de sons, mas
organizadas sobre uma mesma planície sonora, um mesmo plano conceitual: sugerir a
interação efetiva entre o cérebro e a máquina. De forma que, diante de um projeto
deliberadamente sinestésico, não há muito o que observar: a música do trio convida o
ouvinte a deslizar com (e sobre) o som — se possível com um bom par de fones de
ouvido.

Moritz Von Oswald Trio: Fetch


Edição: Honest Jon’s CD, 2xLP, digital
A união de Moritz Von Oswald (Basic Channel, Rhythm & Sound) com Sasu Ripatti
(Vladislav Delay, Luomo) e Max Loderbauer (Sun Electric, nsi.) rendeu até agora três
trabalhos de primeira linha, dentro de um contexto de improvisação, esculpida porém de
forma atenta e rigorosa. O aparente contrasenso se explica, pois não é qualquer som que
entra no tableau vivant de Oswald. Inclusive, se Fetch precisasse de um subtítulo, eu
poderia sugerir ironicamente: Directions in Music By Moritz Von Oswald, em alusão à
uma das tantas obras-primas de Miles Davis, Bitches Brew. Pois Davis é recorrentemente
lembrado durante os cinquenta minutos deste belíssimo trabalho, talvez o mais expressivo
do trio até agora. Não somente pela inclusão do trumpete de Sebastian Studnitzky, artista
do selo ECM, ou da linha de baixo de “Jam”, semelhante a que conduz “Miles runs the
voodoo down”. O que soa evidente durante a audição do disco diz respeito à estrutura da
improvisação, completamente direcionada por Oswald e sua capacidade de transfigurar
sons e tendências mais óbvias. O tema é o mesmo, mas como explicar os sons, que são
outros?

E são outros por conta, sobretudo, de uma modficação considerável na escalação dos
músicos, com o acréscimo de três reforços: além do trumpete de Studnitzky, Jonas
Schoen no saxofone, clarinete baixo e flauta, Marc Muellbauer no baixo (que já havia
participado em 2010 de “Restructure 2”) e os efeitos de Tobias Freund, que também
desempenhou a tarefa de gravar e mixar o disco. Completando a “orquestra”, a percussão
(ou os “objetos de outro mundo”) de Sasu Ripatti, o sintetizador de Max Loderbauer e o
piano elétrico de Oswald. A tarefa, determinada pelo timoneiro Oswald, é a mesma dos
álbuns anteriores, qual seja, improvisar de forma “jazzística” não apenas com melodias,
harmonias e ritmos, mas também com frequências, volumes, samplers e o que mais
estiver ao alcance dos músicos.

Como notei acima, esta liberdade não se confunde com falta de critério. Ao contrário,
parece redobrá-los, como se pode apreciar nas intervenções em “Jam”. No fone se
percebe melhor o engenho secreto com que Moritz e Schoen distribuem espacialmente
esses sons, criando articulações que escapam à audição direta, nas caixas de som. Por
outro lado, o que se ouve à primeira vista é o entrelaçamento inteligente de sintetizadores,
glitches, percussões, melodias, etc, executadas por um trumpete longínquo, apresentados
em diversos volumes e intensidades. “Jam” culmina nos gemidos de roldana e no ruído
silencioso de alguma máquina em funcionamento, até penetrar pela faixa seguinte, “Dark,
doando-lhe a mesma compleição sonora. Mas desta vez, o ritmo vem do reggae e uma
sonoridade densa preenche o ambiente, com a inclusão de percussões pontuais,
sintetizadores ostensivos e algo como uma estação de rádio em baixo volume, no canal
esquerdo. É de longe a faixa mais viajante (e “canábica”) do trabalho, a lembrar o
pioneirismo do Rhythm & Sound.
Representando a ala Basic Channell (!), “Club” assume uma roupagem techno, e, mais
uma vez, aposta na dinâmica de inclusão que caracteriza o trabalho do trio, com destaque
para a balbúrdia promovida por algo como uma percussão de vidro ou louça. Mas o
melhor do disco ainda está por vir. Interpretando com sequenciadores a batida do
lenzenko, tambor utilizado pelos pigmeus Aka em seu canto ao mesmo tempo polifônico
e minimalista, a base rítmica de “Yangissa” soa de maneira ligeiramente “amontoada”,
mas se casa perfeitamente com a placidez do naipe de metais, que aludem curiosamente
ao clássico “Milestones”. Pode-se inscrever a faixa na vertente que vem aproximando
música eletrônica e ritmos africanos (com Falty DL e Mark Ernestus, por exemplo), mas
é impossível não notar a reviravolta aos dez minutos, a partir da qual “Yangissa” se torna
uma espécie suave de industrial. Eis, inclusive, uma boa fórmula para o trabalho deste
trio, que chega ao quarto disco queimando lenha: industrial suave, música de máquinas
interpretada por corações quentes.

Dirty Projectors: Swing Lo Magellan


Edição: Domino CD, LP
Será que alguém ainda suporta a ladainha da crítica musical, ávida por detectar
generalidades, quando se sabe que o universo pop sempre orbitou a esfera da
experimentação, da citação, e, acima de tudo, o poder comunitário da canção? Não é de
hoje que esse fenômeno exprime o que há de mais específico no arcabouço formal do
grande guarda-chuva da música pop, o que em um raio expressivo razoavelmente
delimitado conduz das orquestrações suntuosas dos Beach Boys à colorida miríade digital
do Animal Collective. Portanto, não há novidade quanto ao pressuposto, mas na medida
do detalhe, da nuance e da singularidade de cada artista, de cada trabalho.

No caso dos Dirty Projectors, esta tensão se apresenta de modo igualmente evidente,
todavia amparada pela visão particular do cabeça do grupo, Dave Longstreth. “Can it ask
a question? Can it sing a melody? Can it be interpreted?”, perguntas ensaiadas pela
canção “Cannibal Resource”, presente no álbum anterior do grupo, Bitte Orca, delimitam
a seguinte situação: são seus modos flutuantes como compositor, instrumentista e
arranjador, suspensos entre a canção e a experimentação, que emprestam vigor e surpresa
ao trabalho do grupo.

Não que Swing Lo Magellan seja o disco mais arriscado do Dirty Projectors — Rise
Above e Bitte Orca soam bem mais esquisitos e impactantes, seja pelos devaneios
hiperativos dos arranjos, seja pela poética bizarra destilada nas palavras cuidadosamente
escolhidas por Longstreth. Que elemento é, então, responsável pela graça irresistível de
Swing Lo Magellan? Como afirmei acima, dificilmente se pode sustentar seu valor sobre
a relação entre canção e arranjo, ainda mais nos termos de um suposto caráter
comunitário e palatável da primeira, em oposição às possíveis dificuldades do segundo.
Então como abordar a canção simultaneamente universal e particular de Longstreth se
não enquanto desenvolvimento de uma abordagem que não elide possíveis disrupções
entre forma e conteúdo, abraçando-os incessantemente enquanto conflito?

Deste acolhimento deve sobressair não as dúvidas cínicas de “Cannibal Resource”, mas
uma resposta contraditória, amplamente situada no campo da canção popular e, portanto,
permeável às mais diversas possibilidades: “There was a single one/Then there were
ten/When ten made a hundred/And a hundred million…”, ele canta em “Offspring are
blank”, faixa que abre o disco. A partir de então, instaura-se um “vale-tudo”
minuciosamente dosado: a “zona de conforto”, como se costuma dizer, é estabelecida de
forma instável, ora contemplando a referência direta — como na pegada Simon &
Garfunkel da faixa título, ou nas fraturas harmônicas de “Maybe That Was It”, a remeter
ao grande melodista que é Robert Wyatt —, ora conduzindo o ouvinte por uma estrada
sinuosa, que desemboca na orquestração súbita em “Dance For You” ou no desenho
rítmico acavalado de “Just for Chervon”. Vale notar que ambas contam com texturas
percussivas produzidas com bateria eletrônica e palmas, presentes também no folk-soul
“Unto Caesar”.

Muitos entoarão os belos versos de “About to Die” (How could I hope to seize the tablet
of values and redact it?/Foolish I know but I’m about to die”) e “Impregnable Question”
(“It would help to seek/Comfort in destiny (…) I need you/And you’re always on my
mind”) como a manifestação mais evidente da canção pop, permeada contudo por uma
energia que não é e nem pode ser “retrô”, porque é, antes de mais nada, manifestação
vital e presente. Quanto a isso não restam dúvidas, sobretudo quando chegamos ao fim do
disco e topamos com alguns dos versos mais inspirados de Longstreth, entoados com um
indefectível sotaque dos anos 50, a lembrar Cash e Orbinson:

“With our songs, we are outlawed


With our songs, we’re alone
But without songs we’re lost
And life is pointless, harsh, and long.”

Jam City: Classical Curves


Edição: Night Slugs CD, 2xLP, digital
Mesmo para os que acompanham o trabalho do inglês Jack Latham (tcc. Jam City) desde
que deu as caras através do cartão de visitas do selo Night Slugs (Night Slugs Allstars
Vol. 1), seu primeiro álbum soa como uma experiência no mínimo desafiadora.
Acrescento um elemento a este palpite: talvez até mesmo o ouvinte acostumado com a
super abundância de sons estranhos que emergiram a reboque da universalização dos
equipamentos eletrônicos, não importa em que seara eles sejam aplicados, ficará surpreso
com os quarenta e poucos minutos de Classical Curves. Pois estamos diante de um disco
que “transpira”: se por um lado pode depreender frieza, devido à rigorosa construção
conceitual, por outro trata-se de uma música extremamente inebriante. Esta percepção se
conjuga de forma fecunda com a ironia evidente da capa e do título: a motocicleta
abandonada indicando um suposto “acidente” automobilístico, o cenário incomum para
acidentes deste tipo, o vestido lançado ao vento, em virtude talvez de uma curva em nada
“clássica”, uma curva fora da rota, fora do eixo…

Sua aparência “desossada”, isto é, calcada na composição de elementos isolados — tais


como batidas, samplers, linhas de baixo, sons naturais (latidos, vidros quebrando, ferro) e
demais sons sintetizados — o aproxima do trabalho de Actress. Porém, antes de se
devotar ao mito e ao sonho, tal como sugere a delicada tapeçaria digital de R.I.P.,
Classical Curves se volta para o corpo, sublinhando a indistinção entre o corpo e a
máquina. Nesse plano de composição conceitual, capaz de suscitar organicidade graças à
vinculação tão estranha quanto eficaz de sons sintéticos e estruturas rítmicas não-lineares,
convém destacar faixas como “B.A.D.”, “Her” e “Love is Real” — esta última
particularmente interessante, em parte graças à estranha gravação de campo que finaliza a
faixa, emendando no witch house “The Nite Life” (com os vocais de Main Attrakionz). A
sensação de que o som está derretendo não é mera coincidência, mas espelha o aspecto
fluido do som.

Ainda em relação a R.I.P., nota-se que as texturas são compostas por sons mais fortes e
expressivos, enquanto as estruturas de composição dialogam diretamente com a música
eletrônica orientada para a pista. Estamos na seara das “batidas críticas”, mas a palavra
“crítica” neste sentido diz respeito ao caráter criativo da desconstrução. Assim, Classical
Curves trata de se estabelecer sobre a saudável deglutição do house e do garage, como se
pode perceber em músicas como “Club Thanz”, “The Courts” e as duas partes de “Hyatt
Park Nights”. De um lado, uma estrutura mais cerebral; de outro, sons mais palatáveis,
identificados com o house e o techno. O que faz de Classical Curves um disco
sensacional é que se por um lado, os sons são aparentemente conhecidos, o mesmo não se
pode dizer da forma inspirada das composições.

Duas esferas aparentemente inconciliáveis, mas que compõe a visão singular (e irônica)
de Latham. Ironia que, novame nte, de mãos dadas com a ambiguidade, nos leva a
considerar dicotomias como dançante/experimental, orgânico/sintético, além de
questionar a forma da composição na música eletrônica. Como a frase que dá título a uma
de suas faixas mais impactantes, trata-se de fornecer uma resposta, ainda que
saborosamente provisória, à seguinte pergunta: “How We Relate to the Body”? Se
depender do Jam City e de Classical Curves, a resposta fica a meio palmo entre a dança e
o pensamento.

JJ DOOM: Key To The Kuffs


Edição: Lex Records CD, 2xLP
Nas duas primeiras décadas, quando a natureza selvagem do rap norte-americano lhe
impelia a um caminho ambíguo, direcionado para a festa, para o protesto e, muitas vezes,
para ambos, as opções estéticas investiram na mediação entre o experimento (com
samplers, com toca discos, com modos de versar, etc.) e a alusão ao legado monumental
da música negra norte-americana. Contudo, a chegada de uma terceira geração trouxe
consigo o suspiro “décadent” como uma de suas forças motrizes. Não se engane o leitor:
“décadent” neste caso não se confunde com inexpressividade ou cansaço. A característica
que define o décadent é, em primeiro lugar, o cinismo: a máscara, a confusão absoluta
entre identidade e alteridade, entre o autor e o público, entre intenção e acaso. Depois, um
alto grau de descolamento e desapego em relação ao mesmo “passado” que é
criativamente esfacelado em clássicos como Circle, assinado por Boom Bip e Doseone, e,
mais tarde, Madvillainy, parceria antológica de Madlib e Doom. Some-se a isso, uma arte
beatmaker em constante fragmentação, cuja tarefa é reeducar o corpo e fazer dançar o
cérebro. Boa dose desse “cinismo” ramificou-se em projetos como Clipse, Cool Kids,
Food for Animals, Shabazz Palaces, mas também permeia o mais glamouroso rap
mainstream da atualidade — vide “Otis”, de Kanye West e Jay-Z.

O inglês Daniel Dumile Thompson (Doom, MF Doom) é até hoje um nome


preponderante nessa seara, autor de verdadeiros breviários deste momento décadent do
rap. Mas Doom é também o autor de quem se espera sempre algo que prefigura o que
virá. Como mais um capítulo desta trajetória, podemos contabilizar Key to the Kuffs,
álbum de estreia do projeto JJ Doom, lançado pelo mesmo Lex Records responsável por
fomentar o caráter malicioso, irônico e iconoclasta do rap décadent — casa de Boom Bip,
Danger Doom e do polêmico The Grey Album, que catapultou Dangermouse para o
sucesso (com ironia, please!). Em parceria com o produtor Jneiro Jarel, que com Khujo
Goodie (Goodie Mob) forma a estranha dupla Willie Isz, Doom busca reescrever
Madvillainy, não à moda borgiana (como o Psicose de Gus Van Sant), mas manipulando
elementos em espiral: quando imaginamos que nos encontramos no mesmo lugar, na
verdade estamos diante de um território se não completamente inédito, ao menos
estrategicamente renovado.
Recortes inusitados e sobreposições abruptas de beats e timbres os mais diversos (filmes,
samplers, noise…), harmonias dissonantes ou simplesmente nenhuma harmonia,
reviravoltas comuns ao gosto pela desorientação, acrescida porém pela inclinação de Jarel
em borrar o desenho rítimico das batidas e, tal como o Big Boi de Sir Lucious Left Foot,
investir em ruídos e timbres deliberadamente sintéticos— caracaterística precípua do bom
Georgiavania, álbum de 2009 do Willie Isz. Mesmo com as participações especiais de
artistas tão diferentes quanto Damon Albarn (na batida arrastada de “Bite The Thong”),
Beth Gibbons (nos arroubos líricos de “GMO”) e Khujo Goodie na suingada “Still Caps”,
Key to the Kuffs consegue manter o equilíbrio em meio ao caos de referências
dissolvidas em ácido.

Lembra-se de Horace Andy nas torções de “‘Bout The Shoes”, que conta com a bela voz
do desconhecido Boston Fielder, mas não se pode afirmar que se trata exatamente de uma
referência, dado alto grau de manipulação dos timbres e da composição dos beats.
“Rhymin’ Slang”, “Dawg Friendly”, “Retarded Fren” (que retoma no final o tema de
“Rhymin’ Slang”) e a infame “Wash your hands” marcam presença, mas é em
“Banished” que o JJ Doom diz a que veio: levada rock’n’roll abafada pelo suingue
arrastado, o beat pontuado por um snare drum que mais parece um molho de chaves; a
linha de baixo marcial marca no tempo forte, enquanto Doom destila todo o poder
hipertextual de seus versos, justapondo lirismo, comentário político e observações
jocosas:

“Known to get money, never got caught kid


Escape with a soft skid, short bid
Knock on wood, dope on plastic
Rocks so hood, hope on spastic
Put it on the ritz
Put your bullshit facial recognition on fritz
I’m afraid you’re sadly mistaken
Pitch! Spit it like a bad piece of bacon…”
No rap americano do final dos 80 percebe-se que mesmo na vertente que veio a se
consolidar no gangsta ou no elogio da ostentação cara ao “bling bling”, as duas vertentes,
a festa e o protesto, se justapuseram a um tal nível que até hoje nos referimos a grupos
tão diferentes como Run DMC, De La Soul e Public Enemy como se partilhassem de uma
mesma estética, o que hoje se pode perceber que não é propriamente verdade. Da mesma
forma, tem-se a impressão que o rap décadent transforma todos os rappers interessantes
da atualidade em um grupo ou movimento. Lêdo engano. Os elementos que destacam o
trabalho de Doom deste cenário são os mesmos reforçam sua singularidade: o timbre
rouco, o flow único, a lírica ousada e a tendência em conferir expressividade ao rap
através de uma postura crítica tanto na poesia como na música. Key to the Kuffs é mais
uma prova de seu protagonismo.

Machinedrum – Room(s) (2011; Planet Mu, Reino Unido [EUA])


Há mais de dez anos, Travis Stewart vem elaborando sua música de forma ambígua,
contemplando a cena, mas com ênfase na experimentação. Seja através de seu projeto
principal, o Machinedrum, ou através do dubstep acelerado do Sepalcure (junto com o
produtor Praveen Sharma), Stewart sempre buscou explorar recantos pouco evidentes de
gêneros em evidência: dubstep, house, garage, IDM, tudo sob a lente de uma artista
curioso, que produz, segundo o release de Room(s), “no impulso do momento”. Seguindo
esta inclinação, Stewart lançou um dos trabalhos de música eletrônica mais empolgantes
do ano.

O que me parece mais atraente em Room(s), seu primeiro lançamento pelo selo inglês
Planet Mu, é a habilidade de Stewart em elaborar as batidas e os grooves com suingue
matador. E, precisamente, o que é o suingue (ou, em bom português, “o balanço”) em
música? Nada me parece mais evidente de que a síncope fornece a estrutura rítmica
básica de qualquer suingue. A síncope é que aciona o dispositivo do corpo, convidando
para a dança. Aliando vocais e harmonias soul em R&B aos insumos da eletrônica
inglesa, particularmente do dubstep, Stewart elaborou um disco dançante e arrojado,
capaz sustentar uma festa inteira.
Lembremos que um dos argumentos centrais dos detratores da música eletrônica era que,
além de tirar o emprego dos músicos, as máquinas seriam responsávei por uma música
fria, matermaticamente calculada, incapaz de reproduzir o metrônomo natural dos
instrumentistas. Ocorre que com o advento do MPC e dos equipamentos que funcionam
através de “pads” sensíveis, os músicos são convidados a batucar no aparelho, tal como
se estivessem tocando sobre um tambor. Um bom exemplo desta tendência são os
funkeiros Sany Pitbul e DJ Cabide, que batuca sobre os MPC, mas dentro do estúdio essa
prática também faz a diferença.

Assim como Shackleton, o “quase” veterano Stewart grava todas as partes da


composição, abrindo mão de padrões pré-gravados e investindo na criação compasso a
compasso. Ao invés de apresentar o groove “reto”, sem sobressaltos, para inserir as
síncopes gradualmente, Stewart abusa das fusas e semifusas já na estrutura da batida.
Logo nos primeiros minutos, a dramática “She Died There”, o ouvinte pode ter
dificuldade de identificar o compasso 4/4, pois o ritmo é deslocado radicalmente do
tempo forte, sendo marcado exclusivamente no tempo fraco. Com exceção de “Now U
Know The Deal 4 Real”, “Sacred Frequency” e do belo encerramento, “Where Did We
Go Wrong”, pelo menos 8 das 11 faixas de Room(s) foram elaboradas nesta toada, a
partir de blocos de síncopes sequenciadas.

Momentos geniais como as pancadas “The Statue”, “Door(s)” e a latina “Youniverse” se


amparam sobre essa característica, mas destilam também um sotaque soul, talhado
naquilo que é mais essencial no gênero: os vocais. Além do ritmo, são as repetições dos
temas vocais que impregnam as faixas de sensualidade, como em duas das melhores do
ano, o juke “GBYE” e o funk certeiro “U don’t survive”. Nota também para “Come1”,
com viradas de bateria jazzísticas e uma textura de cordas e sintetizadores, a lembrar de
alguma forma o soul-garage de Nuyorican Soul e outras inflexões da eletrônica dos anos
90.

Enquanto Andy Stott, com o excepcional Passed Me By, borrou os limites do compasso,
aproveitando-se de timbres saturados, Stewart o esquadrinhou de forma a obter um
andamento mais veloz, frenético. O resultado lembra às vezes o drum’n’bass, pelos altos
BPMs, mas é perceptível a influência do UK Garage e do dubstep, sobretudo em relação
à harmonia. Em uma cena infestada de artistas que se autoproclamam representantes da
“nova” soul music e do “novo” R&B, eis um álbum que traz algo de realmente novo para
este contexto.

Reinhold Friedl – Inside Piano (2011; Zeitkratzer Records/ Hronir/Metamkine,


Alemanha)
Em 1997, o alemão Reinhold Friedl fundou o Zeitkratzer, ensemble de repertório
contemporâneo, selo e associação artística sem fins lucrativos. Desde então, o coletivo
vem mesclando técnicas de composição eruditas e populares, enfatizando a
experimentação com sons que não se inscrevem na tábua de valores da música corrente.
Para isso, trabalharam com ícones da música erudita (Stockhausen), da cultura pop (Lou
Reed) e do noise mais intrincado (William Bennett, Keiji Haino); se dedicaram a
improvisações intermináveis, concederam suas composições para o remix de Underworld
e Dub Me Crazy, elaboraram a programação visual, entre outras práticas outrora
inaceitáveis na seara da música erudita moderna.

Por seu turno, Friedl já gravou alguns álbuns como intérprete, e suas opções também não
deixam dúvida. Além dos discos de improvisação, com parceiros como Bernhard Günter,
Michael Vorfeld e Elliott Sharp, e um tributo à obra do compositor greco-romeno Iannis
Xenakis, com a participação do Zeitkratzer, Friedl lança Inside Piano, por incrível que
pareça, seu primeiro trabalho realmente solo. O músico alemão desenvolveu uma
abordagem própria do “Piano preparado”, técnica celebrizada pelo compositor americano
John Cage, que consiste em utilizar diversos objetos (vidro, pedra, molas, parafusos, fios,
etc) sobre as cordas do piano. Porém, sua pesquisa resultou em uma gama sonora
peculiar, garantindo o interesse durante mais de duas horas de duração.

Em doze faixas intituladas em francês, distribuídas por um CD duplo e um LP de vinil,


Friedl empreendeu no mínimo duas façanhas. Primeiro, economizemos o eufemismo de
classificar as composições de Inside Piano como um flerte com o noise. Friedl substituiu
o pontilhismo percussivo e silencioso das sonatas de John Cage, por grossas camadas de
timbres feéricos, a manifestar um grau cortante de abstração. Cada faixa do álbum
apresenta uma incursão a este território musical tão fascinante quanto inóspito,
constituindo uma prolongada declaração de amor ao trabalho de parceiros e mestres do
gênero, como Merzbow e Bennett. Utilizando-se do piano preparado, Friedl erigiu uma
paisagem sonora marcada por sopros, espirros, faíscas, rangidos e uma sensação
constante de que pulsa toda uma orquestra bizarra por trás da aparência de recital –
registrada na capa com o humor habitual do coletivo.

Friedl absteve-se de investir na construção das composições, preferindo deter-se na


exploração de suas invenções técnicas, e alternando cacofonia fulminante e tramas
sonoras mais delicadas. Por este motivo, a audição se torna às vezes repetitiva, sensação
experimentada, por exemplo, no deslumbrante O, último disco do Oval de Markus Popp.
Mas esta sensação corresponde à repetição dos timbres ásperos e agudos elaborados por
Friedl, que tal como a “kora eletrônica” de Popp, constituem o elemento central de Inside
Piano.

O resultado, no entanto, permite entrever as nuvens harmônicas dos simbolistas e os


rompantes radicais de Xenakis. É obra de vanguarda, mas que não se prende nem mesmo
a este rótulo. De certo modo, uma composição com as variedade de climas de “L'horizon
des Ballons”, ou a tensão controlada de “La Grimace du Soleil”, por mais que soem
segundo a brutalidade noise, comportam alterações de andamento e humor capazes de
evocar a composição, mas que são produzidas pela excelência da performance e a
sensibilidade atenta do autor. Inside Piano é o resultado do trabalho de um artista que
opera entre a técnica e a espontaneidade, o ruído e os sons musicais, a composição e o
improviso, cujo pensamento musical, porém, está muito além dessas categorias.

Stephen O’Malley & Steve Noble – St. Francis Duo (2012; Bo’Weavil, Reino Unido
[EUA])
A consolidação de Stephen O’Malley como um dos artistas decisivos deste ano não
decorre somente dos três grandes lançamentos que ele protagonizou até então, a saber: V,
o último do KTL; Nazoranai, com Keiji Haino e Oren Ambarchi, ainda no prelo; e este
acachapante St. Francis Duo, lançado em abril deste ano pelo selo Bo’Weavil. Quem
esteve mês passado no concerto fenomenal que o KTL fez no Sónar São Paulo, há de
concordar que foi um dos melhores momentos do festival, e, com certeza, um dos mais
impressionantes realizados no Brasil este ano. À primeira vista, é comum reconhecer no
trabalho de O’Malley apenas seu traço aparente, qual seja, o poderio sônico e os altos
volumes. Contudo, sua performance serviu para mostrar que por trás da névoa barulhenta
e sombria, revelam-se artifícios e procedimentos técnicos que, por fim, favorecem a
construção de um ambiente preeminentemente catártico — como se pode conferir de
forma mais completa através do Sunn O))).

Integrante de grupos e projetos que redesenharam a confluência do metal com a música


improvisada e o drone, tais como Khanate, Sunn O))) e Æthenor, a música de O’Malley
sempre se caracterizou pela fina sintonia entre duas características aparentemente
antagônicas: arrojo na concepção, desenvoltura na execução. Assim, antes do poderio
sônico, antes mesmo do “barulho” e da abstração modal com a qual pretende estimular os
elementos arcaicos da sua música, o artista trabalha sobre cada nota, cada timbre e acorde
com o cuidado digno de um artesão. É no detalhe, no apuro técnico e conceitual, no
arranjo meticuloso das formas, e não na mera aglomeração de acordes distorcidos, que se
deposita o arcabouço conceitual de suas improvisações. De modo que não seria exagero
afirmar que do encontro entre O’Malley e o lendário Steve Noble, dois mestres do
detalhe, espera-se nada menos do que a expressão imponderável da singularidade.

Reconhecido por atuar na seara da improvisação, particularmente ligado à cena inglesa e


à personalidade desbravadora de Derek Bailey, Noble carrega na bagagem uma ampla
experiência na arte do improviso, obtida a partir da gravação de álbuns como Out of The
Past e And (com Bailey e Pat Thomas), mas também na interação com Paul Dunmall e
Alex Ward — com quem se apresenta em São Paulo no próximo dia 23. Em quatro faixas
com duração média entre 18 e 20 minutos, O’Malley e Noble prolongaram o
entrosamento expresso no último disco do Æthenor, En Form For Blå. Bastaram duas
apresentações em Londres, no Cafe Oto, em agosto de 2010, para fazer de St Francis Duo
mais um dos grandes momentos deste ano envolvendo o nome de Stephen O’Malley.

Como estamos diante de duas sessões distintas, uma comparação do ponto de vista da
estrutura me parece inútil, já que esta se encontra submetida à dinâmica da improvisação,
mas vale destacar o ímpeto e a inspiração. Neste caso, opto pelo segundo improviso em
ambos os dias. No “Side B” ressalto tanto o pulso firme com o qual a dupla conduz a
instrumentação na seara dos baixos volumes — aproximadamente dos quatro minutos até
por volta do décimo primeiro —, como também pela admirável opção timbrística de
O’Malley, que usou a guitarra sem distorção na maioria do tempo, explorando acordes
graves e encorpados. No segundo dia, que em termos gerais me soou melhor sob os
aspectos técnicos e criativos, o “Side D” traz uma improvisação descontínua, repleta de
meandros e surpresas até mesmo em seus momentos mais indigestos — como se pode
conferir a partir do sexto minuto, em meio aos escombros da batalha entre os pratos da
bateria e os ruídos abstratos da guitarra distorcida. Este aspecto se deve não somente à
maior variação na guitarra de O'Malley, mas em uma atitude rítimica mais agressiva de
Noble, cujo desenvolvimento culmina na catarse que anuncia o fim do disco.

Mas em que consiste o brilhantismo deste trabalho? Ora, logo nos primeiros segundos da
faixa intitulada simplesmente como “Side A”, o indício claro de uma tensão que irá
percorrer toda a sua duração: ao invés da habitual massaroca densa e compacta, a
alternância de climas, texturas e diálogos entre os dois instrumentistas. Porém, o
entrosamento se dá mais pela diferenciação do que pela afinidade do método. Enquanto
Noble busca a diversidade de timbres à moda de Derek Bailey, explorando seu
instrumentos para além das convenções —usando seus tambores como poucos, mas
também batendo nas ferragens, jogando os pratos uns contras os outros, roçando as peles
e os pratos com baquetas de madeira, feltro, e até de ferro! —, O’Malley desempenha o
papel do construtor paciente, explorando as repetições e circunscrevendo um território
harmônico consistente de onde retira suas intervenções. E, no entanto, há que se ressaltar
a riqueza do diálogo, pois se a diversidade de Noble indica o caminho, O’Malley dispõe a
todo instante de argumentos eficazes para segui-lo. Denso ou rebuscado, noisy ou
silencioso, St. Francis Duo é, no mínimo, o valioso registro desta relação de
complementaridade que percorre todo o disco.

Theo Parrish – Ugly Edits (2011; Ugly Edits, EUA)


Não haveria um ano mais propício para a compilação dos “ugly edits” do DJ e produtor
americano Theo Parrish. 2011 já nos brindou com a belíssima colaboração entre Max
Loderbauer e Ricardo Villalobos, “recompondo” faixas do renomado catálogo da ECM.
O excepcional álbum de PJ Harvey, Let England Shake, também se utiliza do expediente
de citar gravações originais, inseridas no corpo do arranjo – como, por exemplo, o arranjo
que Harvey fez para “Written On The Forehead”, que reproduz de forma criativa o
sampler de “Blood and Fire”, do Niney the Observer. A lista é longa, mas vale notar que
Nicolas Jaar, Dj Diamond, Burro Morto e Clams Casino se inscrevem no movimento de
ampliação da noção e da utilização do sampler.

Vendidos e pirateados a peso de ouro mundo afora, os chamados “ugly edits” constituem
um capítulo à parte nesta história. Primeiramente, pelo sopro de informalidade: cada um
dos escassos e disputadíssimo exemplares vinham assinados pelas mãos do próprio
Parrish, o que aumentava a aura do objeto. Em cada um deles, intervenções estético-
cirúrgicas sobre clássicos assinados por Jill Scott, Sylvester, James Brown, Harold
Melvin & The Bluenotes, Freddie Hubbard, Etta James, entre outros. Compilados,
remixados e editados em CD, através do selo homônimo pelo qual lançou os vinis
durante oito anos, Ugly Edits atesta a peculiaridade do trabalho deste que é um dos
produtores musicais mais importantes dos últimos 20 anos.

Espero que o leitor não tome a expressão estético-cirúrgica como um artifício retórico.
Pois me pareceu a metáfora perfeita para o procedimento utilizado por Parrish.
Primeiramente, ele afirma que a palavra “ugly” (feio em inglês) significa que os “ugly
edits” não serão gravados em alta fidelidade, não serão cortados com precisão, muito
menos serão alinhados no 4/4 característico da vertente funk-soul-disco. Nas palavras do
autor, trata-se uma reinterpretação, cujo método consiste em “pegar o disco, gravá-lo,
equalizá-lo, cortar as partes e inseri-las no Akai MPC 2000.” E ele prossegue, elucidando
seu método com a clarividência e a simplicidade de um mestre: “tenho toda a canção,
quebrada e distribuída em sessões sobre os pads, e simplesmente aciono todos os trechos
em conjunto, ao mesmo tempo.”

Como se cada uma dessas faixas fosse um cadáver, e com seu bisturi Parrish produzisse
intervenções no corpo da obra, esquartejando seus membros para dar vida a outra
composição. Sim, Parrish promove a “frankensteinização” de clássicos da disco music,
equilibrando-se elegantemente entre a referência e a recriação, mantendo a faixa por
longo tempo em sua integridade estrutural, tal como a dupla Loderbauer/Villalobos.

Através de Ugly Edits tomamos contato, não mais com as faixas avulsas que volta e meia
apareciam através de blogs e redes P2P, mas com um corpus inteiriço, conceitualmente
forte o suficiente para sustentar as duas horas e quarenta de audição. E não são poucos os
momentos que compensam tamanha dedicação. A começar pelas repetições obsessivas no
final da alegre “Love I Lost”, a recomposição com toques ambient em “Slowly Surely”, a
sequenciação de texturas rítmicas do clássico “Got a Match”, os minutos finais de “Little
Flower” e “Slick”. Destaque também para a orgia rítmica de “Shave Mister” e a
estranhíssima versão para o funkão “Never Seen a Tree” – notem no início como Parrish
se utiliza das estáticas do vinil com intenções "percussivas"...

Claro, John Oswald, Public Enemy, Avalanches e DJ Shadow permanecem pioneiros,


mas o artista que se utiliza criativamente dos excertos de outra faixa, dispõem hoje de um
campo realmente aberto de possibilidades, que escapam, sobretudo, à própria noção de
“citação”. O refix, por exemplo, é apenas um capítulo desta série de fenômenos a meio
caminho (e, às vezes, além) da citação e da recriação. Mas os "ugly edits" remontam a
algo que fica entre uma coisa e outra: nem a experimentação selvagem dos primórdios,
nem a volatilização dos métodos alusivos que marcam a música atual. Curto e grosso,
escasso de elementos, essas faixas se destacam pela elegância do método e, sobretudo,
pela generosidade do resultado.

Satanique Samba Trio – Bad Trip Simulator #1 (2011; s/g, Brasil)


Imagine-se entrando numa daquelas feiras que se espraiaram pelo Brasil a reboque do
prolongado êxodo nordestino. Entre milhões de barracas cobertas de penduricalhos, carne
seca, manteiga de garrafa, tapioca… Em meio a uma imensidão de vendedores, bebuns,
comensais, bailarinos, dondocas, todos alegremente fundidos na mistura de todas as
coisas e de todos os sons: baião, forró, brega, calipso, pagode, em alto e bom som, tudo
ao mesmo tempo agora. Você prossegue em meio à algazarra, sem lenço e sem destino,
numa emboscada de sensações. Lá pelas tantas, o andar trôpego, você esbarra com o John
Zorn, acompanhado do Naked City. Diz ele que vai fazer um som com o Hermeto, ali, na
próxima barraquinha…

Assim é a música do brasiliense Satanique Samba Trio: uma torrente de acontecimentos,


sensações e percepções que buscam desesperadamente mobilizar a atenção do ouvinte.
Atenção para o “desesperadamente”: apesar de emanar o calor da feira, trata-se de um
trabalho orientado para a construção de um desequilíbrio programado, resultado do rigor
das composições de Munha, arranjador, instrumentista e produtor. Assim, entre o EP
Misantropicália (2004), Sangrou (2007) e Bad Trip Simulator #2 (2010) não há
diferenças substanciais do ponto de vista do conceito, pois o que difere um disco do outro
é a economia de inclusão dos gêneros, estilos e sonoridades com os quais o Satanique
trabalha. Nesse sentido, pode-se dizer que a cruzada continua.

Bad Trip Simulator #1, terceiro álbum do grupo, é menos explícito que os primeiros, mas
confirma o interesse do Satanique em volatilizar os clichês da música instrumental,
particularmente aquela que se dedica aos gêneros nacionais. Jogando com seus limites
timbrísticos e formais, vai por um caminho diferente de outros grupos instrumentais
brasileiros da atualidade, como o São Paulo Underground, o Chinese Cookie Poets e o
Burro Morto. Estes abraçam prontamente a influência do rock, do noise, do free-improv
americano e inglês, enquanto o Satanique opera a partir do esfacelamento das células
rítmicas do samba, dos ritmos regionais e da bossa-jazz. Sua música, portanto, vai de
encontro amiúde com o legado da música brasileira instrumental, na intenção de
desembaraçá-la dos clichês e armadilhas em que ela mesma se colocou.
Para tanto, o grupo aposta na descontinuidade das composições e arranjos, no excesso
absurdo de convenções e, sobretudo, na experimentação com os timbres, obtida muitas
vezes pela captação das partes incomuns dos intrumentos – nesse sentido, reparem
principalmente na intrigante “We Have Obitum”. O caráter fragmentário da música se
exprime na sucessão de variações em “SPLATTER GORE FINESSE”, nas texturas
sinistras de “E.F.M-M in concert”, no suingue interrompido de “Afro-Sinistro”, nas cinco
badtriptronics – troça com as frippertronics de Robert Fripp –, e na concentração do
arranjo de “Banzo Bonanza”. Uma sucessão de faixas que, goste-se ou não, destoa de
tudo o que se faz em música instrumental hoje no Brasil.

Desta vez, porém, uma tonalidade mais viva percorre todo o trabalho, devido à
valorização de temas e melodia – como em “–” e na maior faixa do disco, “Diabolyn
(original remix)”. Em outros momentos, o Satanique deixa transparecer uma frieza na
execução e na articulação dos diversos temas – ideia com a qual não concordo
propriamente, mas vá lá, estamos falando de instrumentistas virtuosos... Ora, nota-se
claramente que a condução impassível das faixas justifica-se, pois opera em favor da
“profissão de fé” do grupo: não permitir, nem sequer por um minuto, que o ouvinte se
acomode diante da música.

Eliane Radigue – Transamorem–Transmortem (2011 [1973]; Important, EUA


[França])

1.
Parece consensual a percepção de que algumas obras e artistas demandam um tempo
determinado para germinar na consciência da época, em virtude de uma série de fatores,
técnicos, estéticos, filosóficos. Richard Wagner costumava lidar com o fracasso, tantas
foram as vezes que, em busca de “obra de arte total”, esbarrava em dificuldades técnicas
ou financeiras. Há também os entraves contextuais, em virtude dos quais algumas obras
descansam por anos, décadas e até séculos para encontrar seus interlocutores – ainda que
nos dias de hoje não se possa avaliar como se dará essa peneiragem no futuro, diante do
volume monumental de produção. Assim, vale sublinhar uma modalidade de reajuste
técnico e estético que emergiu nos últimos anos a reboque da fragmentação da
reprodução e do formato: a transliteração técnica do conceito de uma obra em outros
modos de exposição, influindo decisivamente sobre o seu significado.

2.
Desde 2004, o músico e pesquisador Emmanuel Holterbach organiza os arquivos da
compositora francesa Eliane Radigue. Há mais de 40 anos, Radigue experimenta na seara
da música eletrônica e eletroacústica, aprendiz e parceira de Pierre Schaeffer e Pierre
Henry, e é uma dos grandes nomes a emergir do interesse arqueológico que reabilitou os
pioneiros da produção musical eletro-eletrônica, como Catherine Christer Hennix,
Daphne Oram, entre outros. O reconhecimento de seu pioneirismo lhe rendeu uma ampla
retrospectiva em Londres, no ano passado.

Concebida em 1973, “Transamorem-Transmortem” foi apresentada uma única vez por


Eliane Radigue em Nova Iorque, no ano de 1974. Acompanhando as instruções referentes
à execução da peça, composta no sintetizador ARP 2500, uma digressão acerca da
abertura de um “espaço interior”.

“Esta fita monofônica deve ser executada em 4 alto-falantes dispostos nos quatro cantos
de uma sala vazia. Tapete no chão. A impressão de diferentes pontos de origem do som é
produzido pela localização das várias zonas de frequências, e pelos deslocamentos
produzidos por movimentos simples da cabeça dentro do espaço acústico da sala. Um
baixo ponto de luz no teto, no centro da sala, produzido pela iluminação indireta. Vários
projetores de luz branca de intensidade muito fraca cujos raios, vindo de ângulos
diferentes, se encontram em um único ponto.” (Eliane Radigue, 1973)

3.
Trata-se, portanto, de uma peça que explora a espacialidade em dois níveis. Primeiro, a
espacialidade objetiva através da qual o som se propaga e cuja modulação propicia
formas variadas de emissão das frequências. Mas também o “espaço interior”, que diz
respeito não somente às alterações decorrentes dos deslocamentos do indivíduo no
ambiente, como também aos efeitos subjetivos desses mesmos deslocamentos. A partir
do release editado pelo site da Important Records, podemos perguntar: como escutar de
forma remota uma obra composta para a apreciação in loco, constrangendo o ouvinte a
seguir os limites impostos pelo formato-disco? Em outras palavras, como escutar uma
obra com alto teor sinestésico como “Transamorem-Transmortem”, que implica em uma
série de cuidados e prescrições, mas que se apresenta agora comprimida no formato-CD?
Quando, em suma, uma obra elaborada para manifestar-se através de uma relevo sonoro
acidentado e minucioso, além de portar uma grande abertura para o acaso, é transposta
para o território limitado e aplainado do CD?

4.
A transliteração – ou, em outros termos, a “licença poética” – que permite levar os
pressupostos de “Transamorem-Transmortem” para o CD, diz respeito mais ao seu
aspecto conceitual do que ao substrato propriamente sonoro. Não se pode acessar a
mesma experiência através do CD, de modo que só podemos apreendê-la como uma outra
experiência, que ainda assim, permanece batizada como “Transamorem–Transmortem”.
E como se pode resumi-la, mesmo sem acessar suas prescrições primordiais? A julgar
pela audição da peça, realizada com fone de ouvidos, arriscaria a hipótese de que a
espacialidade subjetiva da obra “original” é ampliada pela compressão do formato-CD.
Por mais que se perca o jogo com as frequências, produto do deslocamento do ouvinte no
espaço, sublinha-se o caráter harmônico e letárgico da composição. Em uma hora e sete
minutos de duração, Radigue explora a continuidade subjetiva mais do que o espaço
objetivo, ainda que com pequenos movimentos de corpo – ou com o fone – sobressaiam
as frequências mais agudas – experimente, por exemplo, levantar uma das abas do fone
ou comprimi-lo ao ouvido.

Vale ressaltar que apenas com o advento do CD, que comporta longas durações de forma
contínua, a obra de Eliane Radigue pôde ser devidamente registrada. Esta possibilidade
nos revela o talento de uma artista que sabe manipular o conceito e a técnica no mesmo
passo, além de revelar um talento poético e abstrato para talhar as sonoridades com
talento de escultora. Mas, acima de tudo, “Transamorem–Transmortem” é uma
experiência atordoante, testemunha do talento inominável de uma artista que chegou a
hesitar em utilizar a palavra “música” para definir seu trabalho.

Mats Gustafsson, Paal Nilssen-Love, Mesele Asmamaw – Baro 101 (2012; Terp
Records, Holanda [Suécia/Noruega/Etiopia])
É difícil mesurar o que há de mais interessante nesta sessão de improvisação, ocorrida há
cerca de dois anos num quarto de hotel em Addis Abeba. A começar pelo fato de que
Baro 101 é produto direto da longeva colaboração entre os roqueiros holandeses do The
Ex com artistas etíopes, documentada pela dupla Terrie Ex e Andy Moor na edição de
março da revista Wire. Desde 2002, o grupo mantém um trabalho consistente de
colaboração e divulgação da música e da cultura etíopes, uma das mais ricas e antigas da
África Oriental. Contabilizando as proezas decorrentes destas viagens, podemos citar a
aparição para o ocidente de artistas como Zerfu Demissie, Jimmy Mohammed e
Getatchew Mekuria (com quem o The Ex gravou em 2007 o sensacional Moa Anbessa),
ou ainda os lançamentos do selo Terp, dirigido por Terrie, dentre os quais vale destacar a
coletânea Ililta – New Ethiopian Dance Music, testemunha da atualidade desconcertante
da música etíope, para além de seu expoente mais conhecido, Mulatu Astatke.

Baro 101, nome e número do hotel onde ocorreu a gravação, conta com o sax barítono do
sueco Mats Gustafsson e a bateria de Paal Nilssen-Love, dois instrumentistas que, junto a
Han Bennink, Anne-James Chaton, entre outros, foram convidados pelo The Ex a
participar da combinação de happening, concerto e workshop promovidos pelo grupo em
Addis Abeba. O etíope Mesele Asmamaw completa o trio com o krar, instrumento
tradicional, comum na Etiópia e na Eritreia, espécie de lira com 5 ou 6 cordas, que
geralmente soa como uma kora um pouco mais grave. E aqui se inicia a segunda parte da
descrição do aspecto mais interessante do álbum, que vem a ser a adaptação inteligente
que Asmamaw fez em seu instrumento. Ao lado de dois improvisadores à moda europeia,
ávidos por explorar não só os timbres convencionais, como também a própria
materialidade de seus respectivos instrumentos, Asmamaw desenvolveu uma série de
timbragens pouco comuns e as aplicou conforme o clima e o andamento do improviso.
Assim, pode-se perceber ao longo dos mais de quarenta minutos de música, uma sucessão
de momentos nos quais a interação entre bateria, sax barítono e krar soa imprevisível e,
sobretudo, intrigante.

Em cada uma das duas sessões, os instrumentistas se valem de um arsenal de técnicas e


artifícios com o intuito de potencializar o trabalho em trio. A percussão multifária de
Nilssen-Love raramente executa um andamento regular, optando por seguir as tramas e
espamos tecidos pelo sax e o krar. Gustafsson, como sempre, explora até mesmo o ruído
das chaves do saxofone, roçando a nota para atingir um timbre rouco, ora deitando
sequências minimalistas, ora aproveitando os picos de fôlego para extrair sons
semelhantes a um espirro. Asmamaw se ambienta perfeitamente neste contexto, usando a
krar de forma tradicional ou brincando com sua afinação, com seus diversos dedilhados e
acordes, e, aparentemente, aplicando efeitos – como dos 3’ aos 5’ da primeira parte, e aos
5’ da segunda, onde o krar parece se transformar em um contrabaixo. Não há créditos
para o canto surpreendente que irrompe aos 10’ da segunda faixa, mas presumo que seja
improviso do próprio Asmamaw.

Coeso, porém abstrato, executado de forma enérgica, mas ao mesmo tempo delicada,
pródigo em sua exploração do timbre e fluente: Baro 101 transmite ao ouvinte a sensação
de que foi gravado em um ambiente de vibrante sintonia entre os três instrumentistas.
Trata-se, portanto, não de uma homenagem deferente, mas de um trabalho imbuído da
mesma curiosidade e abertura ao diálogo que caracteriza não somente o trabalho dos
músicos em questão, como também o projeto (ou o processo?) The Ex-Etiópia como um
todo.

Chinese Cookie Poets – Worm Love (2012; Sinewave, Brasil)


Tornou-se consensual a noção de que o improviso em música seguiria um percurso
natural, ao sabor de uma boiada desembestada, de uma tromba d’água, de uma avalanche
intensa, inexorável. Porém, um olhar mais detido revela que o improviso é sempre
mediado por uma qualidade da percepção que corresponde mais ao controle do que ao
laissez aller… Quem frequenta os discos de improvisação, seja que tipo de improvisação
for (jazz, partido alto, mbalax ou até mesmo o famigerado "free-improv", etc), sabe que
esta prática requer o domínio prévio de uma ou mais linguagens determinadas, além da
capacidade de ajustar as sonoridades a uma concepção própria. Se, como afirma Derek
Bailey, a improvisação aponta para a “natureza da performance musical”, é justamente a
mão de ferro da concepção, pessoal e intransferível, que faz dela uma manifestação de
interesse.

O grupo carioca Chinese Cookie Poets, que já foi entrevistado pelo Matéria, chega ao
primeiro álbum operando de forma peculiar sobre esta premissa. Valendo-se de uma
estratégia de improvisação que ilumina justamente o aspecto obscuro do improviso (o
controle), Worm Love confirma que o CCP tem cacife de sobra para entrar na alta roda
da improvisação contemporânea. O método consiste em dois movimentos básicos:
registro de quarenta minutos de improvisação livre e sem esteios; edição criativa que
fermenta e altera o material gravado. De um lado, o material bruto (o improviso); do
outro, o editor-criador, que com ferramentas de corta-e-cola (de)recompõe esteticamente
o material.

Worm Love é, portanto, resultado desse método em nada inédito – já foi utilizado por
Peter Evans, Jim O’Rourke, Keiji Haino etc. Mas o que suscita o suprassumo da arte não
é exatamente o método, mas o resultado. O que há, portanto, de particular neste trabalho?
Além dos maneirismos instrumentais inspirados, vale ressaltar o trabalho com os ritmos,
talhado a partir do processo de manipulação digital. Se do ponto de vista da timbragem, o
CCP se inscreve na linhagem do post-rock, em termos de concepção trata-se de um trio
que parece seguir seu próprio caminho.

Já no clipe de “En La Mano del Payaso”, uma das faixas mais representativas do conceito
geral, revelava-se parte de um método de elaboração comparável ao da edição de
imagens. Da mesma forma que a edição cria espasmos corporais a partir das imagens das
pessoas dançando, as variações rítimicas, harmonias, melodias e ruídos instrumentais
retiradas do longo improviso são redesenhadas de modo a produzir espasmos análogos
aos que ocorrem no vídeo. O procedimento chega ao ápice na suíte “Three Worms”,
sobretudo na terceira parte, “Ziran”, mas é perceptível por todo o disco.
Trata-se de um trabalho relativamente curto (vinte e poucos minutos), mas que adquire
densidade conforme o grupo desembolsa seu amplo repertório de possibilidades: a
desconjuntada “Plastic Love”, “Discipline and Manners” (com participação de Arto
Lindsay, uma das referências do grupo) e o pontilhismo radical de “Free The Monkey”.
Claro, há que se notar as influências diretas: Haino, Zu, John Zorn, Fantômas, Boredoms.
Mas já há algum tempo, o Chinese Cookie Poets vem se destacando não somente no
cenário carioca, mas dentre os artistas mais interessantes quando o assunto é música livre,
improvisada ou não. Em relação ao grupo, Worm Love não funciona exatamente como
um divisor de águas, mas como a consolidação de um trabalho que, pelo visto, ainda pode
render grandes momentos aos admiradores da música experimental.

Gal Costa – Recanto (2011; Universal Music, Brasil)


“Viver é um desastre que sucede a alguns.” Tomo o verso escrito por Caetano Veloso
como um elogio ao amor fati, um canto de júbilo pela existência, pela singularidade da
arte, pela vida em seu caráter multiforme. Ora, em que consiste o “desastre” se não na
própria incongruência entre o caos e a forma, restando somente o ímpeto de conferir
sentido a um turbilhão que nos é, antes de mais nada, indiferente? Neste caso, o desastre
não possui o significado de “catástrofe”, mas de algo que irrompe inevitavelmente, de um
acontecimento inexorável. Aqui, Recanto quer dizer "re-cantar", refazer, recompor...

O primeiro álbum que Caetano Veloso produziu para Gal Costa, Cantar (1974), com
Perinho Albuquerque, se inscrevia no refluxo londrino, a partir do qual ele e Gilberto Gil
reconfiguraram suas posições no cenário da música brasileira. Lá se pode escutar a
mistura de estilos (bossa, rock, soul, fado…) que caracterizou o Tropicalismo, bem como
os compositores afinados com o mesmo legado (Donato, Jobim, Péricles Cavalcanti,
Carlos Lyra, Mautner). Porém, percebe-se uma diferença importante. Nos primeiros
discos, Gal experimentava consideráveis variações de registro, ora investindo na
economia singela de Domingo (com Caetano, 67), ora esbanjando vigor e uma certa
ironia, como nos dois discos homônimos de 69 e Le Gal, de 70. A pluralidade de
interesses cara ao Tropicalismo contaminou seu canto até explodir no verdadeiro
acontecimento que foi Gal a Todo Vapor, disco e show.

Ocorre que em Índia e, adiante, Cantar, estas variações deram lugar a uma estabilidade
estilística, que conjugava seu timbre melífluo com energia e força de expressão. Pode-se
dizer que até início da década de 90, o canto de Gal Costa manteve-se nesse registro, sem
prejuízo para bons álbuns como Gal Canta Caymmi (1976) e Água Viva (1978). Desenho
essa genealogia de seu canto para sublinhar algo que parece ter passado desapercebido
em relação a Recanto. Muitos foram seus produtores, de Manoel Barenbein a Arto
Lindsay, de Mazolla a Morelembaum, de Perinho Albuquerque a Waly Salomão, entre
outros. Mas o canto de Gal Costa, me parece, sempre foi e ainda é um assunto para uma
única pessoa: Gal Costa.

Desta lista de produtores, o mais ousado e criativo é, sem dúvida, Caetano Veloso, que
até por conta do laço de amizade, conhece sua biografia, compreende seu pensamento
musical, o estágio no qual se encontra sua voz e, sobretudo, aquilo que Gal Costa de fato
quer cantar. Em entrevistas, ambos manifestaram receio em relação à proposta de
Recanto, cuja sonoridade se encontraria em sintonia com duas importantes cenas
contemporâneas: a produção eletrônica e o improviso instrumental. Pela primeira vez em
muitos anos, um trabalho de Gal Costa retoma o espírito experimental comum aos discos
dos 60 e 70. Mesmo em relação a seu último disco digno de nota, O Sorriso do Gato de
Alice (1993), produzido por Arto Lindsay, Recanto sobressai, pois trata-se não só de uma
investida em outras sonoridades, mas na própria concepção estética de intérprete.

As programações eletrônicas enxutas, contribuição fundamental de Kassin, casam


perfeitamente com seu timbre grave e metálico, qualidade perceptível nas duas mais belas
faixas do disco, “Recanto Escuro” e “Tudo Dói”. Além da presença de instrumentistas do
calibre de Donatinho (teclado), Alberto Continentino (contrabaixo), Pedro Sá (guitarra) e
Luis Filipe de Lima (violão de 7 cordas), Recanto conta com duas bandas cariocas
especializadas em improvisação: o Rabotnik, no blues anômalo “O Menino”, e o Dupplex
de Bartolo e Léo Monteiro na melancolia visceral de “Madre Deus”. Há que se notar
também a inserção bossanovista da sugestiva “Mansidão”, com Morelembaum e Daniel
Jobim. Recanto se afirma na harmonização entre universos aparentemente distantes, mas
que são singularmente unificados pelo canto de Gal.

Em termos temáticos, tal qual o último disco de Chico Buarque, o momento pessoal
forneceu a matéria-prima a partir da qual Caetano elaborou as letras, misturando olhares e
perspectivas: Caetano olhando para Gal em “O menino”, Gal respondendo a Caetano em
“Recanto Escuro”, os dois se entreolham em “Mansidão” (que retoma a prática do canto
como tema, tal qual em Cantar) e riem juntos no suingue sagaz de “Miami Maculelê” –
cujo pulo do gato é o prato do samba de roda se fazendo de hi-hat do funk.

Por fim, a visão segundo a qual Recanto é um disco “eletrônico” é evidentemente


equívoca, mero subproduto do jornalismo e do marketing. Em Recanto, sobressai a forma
do canto de Gal, criativamente adaptado a um cenário tomado por uma certa melancolia,
pela batucada robótica e um conjunto de canções perceptivelmente esgarçadas pela
intenção de dialogar com a aridez dos arranjos – às vezes nos lembramos de Third, do
Portishead, outras da “cristaleira digital” de Björk...

Explorando nuances, alturas e possibilidades no registro mais grave, no sussurro, na


exploração simbólica dos efeitos (como em "Autotune Autoerótico"), ou nas entonações
minimalistas de “Neguinho” e da soturna “Sexo e Dinheiro”, Gal, mais uma vez,
reinventou-se a si mesma. Sim, viver é um “desastre” que nos leva a experimentar
encontros, máscaras e identidades. “Só deus sabe o duro que eu dei”, ela canta pelas
palavras de Caetano. Ou seria Caetano poetizando, “palavreando” o canto expressivo e
inigualável de Gal Costa?

Chelpa Ferro – Chelpa Ferro 3 (2012; Mul.ti.plo, Brasil)


Conhecido pelas instalações e intervenções que desenvolve no território da sound art, o
Chelpa Ferro chega ao terceiro disco invertendo uma das premissas centrais de seu
trabalho. Até então os limites do som e dos materiais empregados foram tematizados
através de instalações, performances e demais circuitos intersemióticos — como
“Autobang” (2002), no qual o trio destruía "percussivamente" um Maverick 74', com o
auxílio de Laufer, Dado Villa-Lobos, Domenico, Bacalhau e Leo Monteiro. Desta vez,
estes mesmos circuitos fornecem subsídios para que o som ocupe um espaço central.
Chelpa Ferro 3 privilegia a construção de um discurso elaborado a partir do aspecto
sonoro das obras, valendo-se de sua interação com o improviso de instrumentistas
afinados com a proposta do coletivo.

Por exemplo, na primeira faixa, “Mesa de samba” (2009), o som é gerado por um
aparelho montado com máquina de costura, arame, molinete de pesca, mesa de madeira,
caixa de bateria e dímer. Quando o circuito é acionado, agita o fio de arame de forma a
percutir sobre a caixa, gerando um batuque aleatório, realçado pelo zumbido da máquina.
Por cerca de doze minutos, as guitarras de Arto Lindsay e Pedro Sá redobram a
irregularidade das configurações rítmicas, conduzindo a tensão do improviso através da
utilização de microfonias, acordes soltos e ruídos.

As faixas seguintes seguem a mesma construção conceitual, explorando a interação entre


o aspecto sonoro das instalações e o improviso dos músicos. Em “Microfônico” (2009),
com a participação do violoncelista Jaques Morelembaum, a máquina é composta por
motor, trilho, microfone, amplificadores e vasos; à medida que os microfones pairam
sobre a boca dos vasos, captam as reverberações internas e geram microfonias. Percebe-
se que a estratégia de improvisação do instrumentista responde às microfonias e
reverberações provenientes da instalação, gerando justaposições harmônicas e
frequências incomuns.

Percutindo trinta sacolas plásticas contra a parede, comandadas por motores, cabos e um
circuito eletrônico apelidado como “cabeção”, “Jungle Jam” (2008) é dos momentos mais
instigantes dos cinquenta e um minutos do trabalho. E isso graças não só à sonoridade
gerada pelo engenho conceitual da máquina, mas ao diálogo entre Kassin e Berna
Ceppas. Munido por seu contrabaixo, Kassin imprime uma dinâmica marcial sobre à
percussão frenética das sacolas plásticas, ao passo que Ceppas recorre aos sintetizadores
e à lap steel guitar para explorar as mudanças de clima no transcorrer do improviso. Em
relação às cinco faixas do álbum, esta é a que equilibra de forma mais perceptível e
eficiente o conteúdo sonoro da instalação e a intervenção do improviso.

Por seu turno, “On – Off Poltergeist” (2008), com a participação de Chico Neves, se
inscreve de forma contundente no aparente revigoramento das experiências sonoras
limítrofes que marcam a música hoje — por exemplo, através da reabilitação do interesse
pela otoacústica, a espacialização do som e de nomes como Maryanne Amacher e Eliane
Radigue. A instalação consiste em sete auto-falantes extraídos de sete aparelhos de
televisão, separados e dispostos em cada um dos extremos de uma sala, com a intenção
de desvincular som e imagem. Neves manipula um Simmons SDS-V, recortando padrões
rítmicos a partir dos sons emitidos pelos aparelhos. A aparência espectral — ou
fantasmagórica, como indica o título — não compromete a preponderância do ritmo
sobre os outros elementos. Dupla tendência reafirmada na última faixa, “Acusma”
(2008), que conta com o baterista Stephane San Juan interagindo com trinta vasos de
cerâmica em treze formatos e tamanhos diferentes, cada um contendo um auto-falante
que reproduzem o solfejo editado e processado de cinco cantores. Os cantores entoam
números ao invés de notas, com a intenção de estimular no ouvinte uma sensação
“acusmática” — termo explicado no encarte, que designa uma “alucinação auditiva pela
qual se julga ouvir vozes humanas ou instrumentos musicais”.

Não parece despropositada, ou mesmo casual, a referência à fantasmagoria inerente ao


trabalho do Chelpa Ferro. E isto na medida em que ela remete tanto à efetividade material
quanto à presença espectral da obra. Basta observar que entre a experiência de se
presenciar as instalações, com todo o aparato audiovisual e sinestésico, e de escutá-las
como um instrumento entre outros, é possível detectar diferenças relevantes. Esta
característica indica que a instabilidade nas peças elaboradas pelo Chelpa Ferro não é
meramente estilística, mas constitutiva e essencialmente criativa. Atribuindo o mesmo
nome das obras às sessões de improviso, o grupo converte todo o seu trabalho em jogo
aberto, sujeito a mudança de regras e mutações imprevistas. Além de uma audição
fascinante pela riqueza de procedimentos e ideias, Chelpa Ferro 3 abriga uma perspectiva
entrópica segundo a qual tudo opera por deslocamento e descontrole. Constitui-se, assim,
não no isolamento ou reaproveitamento de aspectos das instalações, mas na desintegração
da própria obra, sua fragmentação necessária e regeneração particular.

Tom Zé – Tropicália Lixo Lógico (2012; Passarinho, Brasil)

Aumenta a disposição para a concordância.


Começa-se a pensar em camadas paralelas.
Certas abstrações ocorrem com naturalidade.
Max Bense, Inteligência Brasileira, 3

“pensar é pão”

De seu reaparecimento triunfal até Tropicália Lixo Lógico, a música de Tom Zé vem se
constituindo a partir de teorias saborosamente anômalas a respeito da mulher (Estudando
o Pagode, 2005), do “defeito de fabricação” da mentalidade terceiro-mundista (Com
Defeito de Fabricação, 1998), do efeito liberador da Bossa Nova na cultura brasileira
(Estudando a Bossa, 2008), além de um trabalho instrumental-onomatopaico sobre a
“pós-canção”, batizado como Danç-Êh-Sá, 2006. (É bem verdade que, em relação a The
Hips of Tradition, não se sabe bem ao certo se há um centro gravitacional, mas teimo em
acreditar que trata-se de uma avaliação implacável dos fluxos e refluxos da Terceira
Revolução Industrial, do ponto de vista de um brasileiro).

Nesses discos, o artista estabeleceu relações francas, abertas e muitas vezes incômodas
(no melhor dos sentidos) entre uma teorização sobre a formação de aspectos da cultura
brasileira e um conjunto de canções que, ao contrário de explicar a tese, jogava ainda
mais fogo na lenha da provocação. Acerca da abordagem original deste procedimento, ou
mesmo de seu êxito propriamente artístico, é possível uma conclusão parcial: que não há
na atualidade esforço similar, qual seja, o de articular ímpeto teórico, citações eruditas,
relevância na poesia, na música e no pensamento através de canções estritamente
acessíveis.
Tom Zé vem aproximando, justapondo, confundindo esferas separadas por conveniência
política e cultural, sejam elas acadêmicas, estéticas, psicológicas, filosóficas, etc. Sendo
assim, não é de se estranhar que o único artista brasileiro a introduzir elementos teóricos
em sua dinâmica criativa desminta a “morte da canção” preconizada por Chico Buarque
há cerca de seis anos. Principalmente porque seus exercícios teóricos não se constituem
segundo a prerrogativa acadêmica, ciosa da consistência lógico-formal que fornece
sentido à progressão das pesquisas, e , em última instância, afiança sua autonomia perante
os órgãos institucionais — questão de poder, portanto.

Com Tom Zé, aprende-se de saída que a teoria não é privilégio da academia. Arrancando
desabusadamente o exercício teórico da pesquisa universitária, Tom Zé fomentou sua
convergência com a poesia e a música como forma de promover uma dupla emancipação:
a canção deixa de ser prisioneira dos temas fáceis e recorrentes, ao passo que a teoria
pode galgar outras perspectivas, sem necessariamente prestar contas aos afiançadores do
saber. A canção é, neste sentido, a catalisadora desta inversão de valores. Com seus
procedimentos anárquicos, Tom Zé nos mostra que se a canção de fato morreu, foi de
tanto rir.

Poiésis, pois entre poesia e teoria, não existe aporia.

“guaraná vai pisar no calo da coca-cola”


Um dos caminhos adotados para abordar Tropicália Lixo Lógico corresponde à separação
da teoria e da produção estética. Seguindo este caminho, alguns julgaram tratar-se de uma
defesa de tese sob a forma de canções. Ao passo que para José Miguel Wisnik, Tom Zé
desenvolve uma “argumentação cancional” (em seu excelente artigo a respeito do disco).
Não discordo propriamente destas intepretações, mas faço uma ressalva: antes de separar
teoria e poesia, antes mesmo de separar a crítica da poesia, parece mais proveitoso traçar
conexões entre duas dinâmicas complementares no trabalho de Tom Zé: uma lúdico-
teórica e uma outra, crítico-poética.
No balaio lúdico-teórico o tempo é espectral, imenso; autores, artistas e ideias soam ao
mesmo tempo no grande palco do pensamento de todas as eras e continentes, tudo é jogo,
como no teatro. Já do lado crítico-poético, é a malícia, a graça, a carpintaria do texto e da
melodia, a funcionalidade da ideia que ditam as regras: “vontade de forma”, Apolo
incorporado. No trabalho de Tom Zé, a teoria é confeccionada com desmesura, ao passo
que as rigorosas construções formais reiteram a ciência implacável da canção popular.

Ora, estamos diante de uma obra paradoxal, que nos conduz em direção a uma espécie de
dobra: não seria o paradoxo, em detrimento da dialética, o ambiente próprio da chamada
cultura brasileira? Em outras palavras, não seria justamente esta capacidade de apropriar-
se de modo carnavalizante da cultura ocidental, diversificando as configurações culturais,
o conteúdo inominável do “lixo lógico”? Do suposto conflito entre teoria e estética, nos
resta salvaguardar o fato concreto de que em Tropicália Lixo Lógico a teoria já foi
ruminada, e a canção popular, sublimada.

Como se dá essa reviravolta? Primeiramente, Tom Zé afirma que entramos na era da


Segunda Revolução Industrial quando “um gatilho disparador (…) provoca em Caetano e
Gil o vazamento do lixo lógico do hipotálamo para o córtex.” Para além da confluência
de muitas perspectivas (culturais, fisiológicas, sociais), a Tropicália foi uma explosão
criativa e de consciência, em relação a qual pudemos liberar, manipular o "lixo lógico",
isto é, a cultura ocidental, "aristotélica", refundada sobre o solo trágico do colonialismo.

Mais abaixo, no texto do encarte, outra possibilidade interpretativa: sobre a placa mental
“virgem e faminta” da primeira infância, marcada no córtex cerebral, o lixo lógico
eclode, quando a cultura ocidental dá de encontro com as potencialidades e vicissitudes
da “creche tropical”. E ainda há uma terceira hipótese, segundo a qual os brasileiros
foram formados pela junção do “saber de Aristóteles com a cultura do mouro”. Aqui a
imprecisão conceitual é criativa e criadora, assim como o paradoxo é manipulado
enquanto valor, retrabalhado a partir da confluência com o “lixo-lógico”. O paradoxo em
Tom Zé não se deflagra em oposição frontal aos ditames da instância avaliadora da lógica
europeia, mas como uma reapropriação antropofágica do termo técnico, através do
grande sismógrafo da cultura brasileira, a canção.

“catci garra gafum”


Tropicália Lixo Lógico traz um conjunto de faixas em nada convencionais, mas que
exalam o travo amistoso da canção popular brasileira, voltada em sua maioria para a
festa, o bar e a zona. A forma aparente corresponde à dinâmica estrofe-refrão, mas as
articulações poéticas, antes de contrastar, reforçam o amplo espectro de sons que
caracteriza a roupagem instrumental e os arranjos — elaborados por Tom Zé, Daniel
Maia e Felipe Alves, respectivamente guitarrista e baixista da banda.

O corpo de canções indica a malandragem e o engenho do poeta, artifícios que


testemunham, para além do aspecto anárquico, a concepção rigorosa, precisa. Uma
profusão de neologismos (“tropicalisura”, “analfatotes”, “Caegitano”), aliterações,
transliterações, revolvem múltiplas referências à literatura e à música. Trechos de
melodias e letras da canção tropicalista reescritos com ironia, ritmados pela prosódia com
balanço de samba, frevo, rock e marcha. Recortando a última sílaba de alguns versos,
Tom Zé começa o verso seguinte, ora fazendo humor (“com Juliana-vengando contra o
vento”), ora aglutinando significados com alto teor sugestivo (“Universi-dadal-dadal…”,
“da cun unha, unha, unha”).

Vale enaltecer o canto e a interpretação do compositor por todo o disco. Sua voz
consegue obter variações imprevisíveis, exibindo um tom mais declamatório e
arriscando-se em melodias improváveis e jogos de interpretação. Como em “Amarração
do Amor”, quando nos fala daquele ódio similar ao de “Odeio você”, canção de Caetano
Veloso: o ódio do amante. A interpretação hilária de Tom Zé, ao forçar o sotaque para
extrair o efeito cômico da frase “desse tamaninho”, adere perfeitamente ao conteúdo
meio trágico, meio irônico, dos versos:

“A mãe-de-santo já me deu
Miniatura de você
Des’tamanhinh
É de palha costurada com agulha de crochê
Vou te derreter
Numa panela de dendê”

Tomemos a canção que, não à toa, dá nome ao disco. “Tropicália Lixo Lógico” se inicia
com a sequência melódica com tinturas românticas de “Coração Materno”; os primeiros
versos afirmam que o lobo (bobo?) não comeu ninguém. Alusão à bossa nova? Apesar da
forte sugestão nessa direção, o verso diz respeito ao processo de colonização: a pureza de
Chapeuzinho é invadida por Seu Lobo, que no entanto “não come ninguém”. Em ritmo de
Jovem Guarda, tomamos conhecimento do processo constitutivo do lixo lógico: o “pacote
de pensar” de seu Aristote (corruptela de Aristóteles), ao entrar em contato com “nossa
moçárabe estrutura de pensar”, gera, por um processo psico-fisiológico, o subproduto do
lixo lógico. Tom Zé concentra sua teoria diretamente sobre a canção-título, liberando
espaço para uma sequência de canções que tangem o conceito indiretamente. Tal
procedimento, ao contrário de enfraquecer, ampliou e enriqueceu o panorama da obra.

Arrisco-me em algumas interpretações, por exemplo, “Capitais e tais” sugere a


pregnância da ponte cultural do nordeste para São Paulo; “O Motoboi e Maria Clara”
expõe com singela ironia as agruras da vida paulistana; “Não tenha ódio do verão” é um
libelo contra o decantado ódio que alguns brasileiros sentem pelo Brasil, realçando a
positividade do lixo lógico em detrimento da cultura ocidental. “NYC Subway Poetry
Department” representa simultaneamente a internacionalização de Tom Zé e da
Tropicália, enquanto “Amarração do amor” busca dar conta do aspecto passional do lixo
lógico. E tantas outras, tão cativantes quanto as anteriores: “Debaixo da Marquise do
Banco Central”, “De-de-dei Xá-Xá-Xá” e a curiosa “Jucaju”, que aparentemente sugere à
inserção de Juca Chaves no contexto da Tropicália, como eminência parda a respeito do
qual poucos falam. Acrescente-se os versos comoventes de “A terra, meus filhos”, a
cantilena “Navegador de Canções” e “Aviso aos Passageiros”, rock’n’roll crítico às
palavras de ordem institucionais.
Sobre este conjunto de canções indiretamente ligadas ao tema, reside sua riqueza, o que
há de mais forte em Tropicália Lixo Lógico. Se a ideia moderna da palavra “teoria” se
consolidou como o recanto da objetividade, especialmente atrelada ao amanhã, (e por
vezes ao “depois-de-amanhã”), a teoria lúdico-cancioneira de Tom Zé, por sua vez,
estabelece que o “lixo lógico” só pode ser compreendido sob a forma de como é vivido,
isto é: no bole-bole do movimento, no xique-xique do agora, no fricote do assovio, no
refrão do cotidiano. Trabalho de invenção, como o próprio autor frisa, não se furta a
atravessar fronteiras, fazendo contrabando com todos os lugares, com todas as eras, mas
fornecendo suas conclusões sob o aqui e o agora da canção. Sendo assim, eis a maior
virtude de Tropicália Lixo Lógico: afirmar de forma contundente e performática sua tese
central, qual seja, a peculiar agilidade crítico-criativa proveniente do lixo lógico.

Ps.: Em tempo: os “defeitos” que permeam todo o disco, justificados por Tom Zé como
“invenção”, constituem intervenções do lixo lógico sobre a lógica linear e limitante da
grande indústria fonográfica.

Scott Walker – Bish Bosch (2012; 4AD, Reino Unido)

I. “sonic fiction”

Dois aspectos se encontram intimamente ligados em Bish Bosch, novo trabalho de Scott
Walker. Primeiramente, é o estatuto do corpo, problematizado através de uma relação
determinada entre os sons e as palavras. Os sons dos corpos (peidos, suspiros, gemidos),
mas também a conexão entre os diversos corpos, sejam históricos, biológicos ou
culturais. Em segundo lugar, é a dimensão teatral da vida que nos permite traçar
contornos e conexões atemporais com tudo o que lhe diz respeito, desprovida de
distinções radicais entre a natureza e a cultura. O corpo e o teatro: se há hoje um autor
capaz de produzir a convergência entre as múltiplas possibilidades evocadas por esta
relação, este autor se chama Scott Walker e Bish Bosch é um espaço privilegiado para
que elabore sua obra-prima.
Em uma entrevista recente, realizada em virtude do lançamento do disco, David Toop
advertia o leitor para o conteúdo esfíngico da trama: “Bish Bosch is not easy to get into,
but why should it be?” Para ele, a senha para a complexidade se dá a partir da
contradição, característica que dificilmente se pode negar diante das faixas do disco: “…a
lot of contradictions (…) there are no mysteries solved.” Ora, mirando atentamente para
“O Jardim das Delícias Terrenas”, a obra mais conhecida do pintor holandês Hieronymus
Bosch, pode-se tomar consciência do mistério a que se refere Toop. Tal concepção do
mistério subjaz sua trama poética, em particular com relação aos procedimentos estéticos
e ao tema das relações imprevisíveis entre os corpos, sejam territoriais (Dinamarca,
Hawai, os Alpes), culturais (os gregos, Roma), míticos e humanos (Gorbachev, Átila, o
Huno). Não dizendo respeito ao mito encoberto, nem ao assassino oculto, o primeiro
mistério de Bish Bosch é o corpo em suas mais variadas relações— “o que pode um
corpo…”, perguntava no século XVII outro holandês, Baruch de Espinosa.

Por outro lado, guardadas as devidas proporções de tempo, intenção e consistência, Bish
Bosch indica uma inclinação semelhante a que perfaz Tragedy (2011) de Julia Holter. A
obra de Holter obtém uma estrutura própria em diálogo com a tragédia grega Hipólito, de
Eurípedes, ao passo que Bish Bosch se constitui a partir de um efeito semelhante. Pode-se
extrair deste parentesco a consolidação de uma certa inclinação contemporânea à busca
de referências e matéria-prima fora do espectro da produção musical — tanto em relação
aos procedimentos de produção, como no que diz respeito às perspectivas conceituais e
filosóficas. Ou, em último caso, podemos falar de uma obra atenta ao teatro como
metáfora da vida, um teatro que convoca o leitor a reconstituir, à sua maneira, as imagens
cifradas pelo autor. Com a característica diferencial de partir não de uma obra somente,
mas de uma miríade de referências que vão desde o pintor holandês que contribui para o
título, passando por diversos períodos históricos, considerações e metáforas a respeito da
história recente, da biologia molecular, das ciências médicas, da Bíblia…

II. “…a lousy a life”


Assim que se inicia Bish Bosch, o tom de precaução que batiza a primeira faixa se
agiganta. Os tambores retumbam violentamente, servindo de prenúncio às reviravoltas
climáticas que se anunciam. À moda de um ditirambo dionisíaco, “See You Don't Bump
His Head” se concentra sobre a imagem dissonante que se manifesta nos versos do coro:

“While plucking feathers


From a swan song…”

Alguém pode interpretá-los como uma consideração irônica do autor, com a intenção de
anunciar que está mais vivo do que nunca. A imagem sugestiva, a própria consideração
depositada sobre a imagem de um “canto do cisne depenado”, indica que podemos ir
além. Na sequência, os primeiros versos de “Corps De Blah?”, indicam que trata-se não
de um processo de reação ou redenção, mas de algo que se debate conflituosamente, algo
que aponta para uma inclinação subterrânea, simultânea à morte e à fundação imaginária
de mundos possíveis. Algo, enfim, que joga um lance de dados com o abismo e aponta
para a instabilidade perigosa entre o estado de vigília e a inconsciência:

“Hence went and cracked


An atom age old egg
Beneath my nose,
The sky-clads ash
With jettisoning the roost.
I’m bumping into leghorns in the darkness.
Excuse me.
Dear god, excuse me…”

Um ovo quebra, dentes queimando, machados de lâmina dupla, genitália. Ao longo da


audição, percebe-se que o autor convoca os sons, os músicos, as palavras e até mesmo o
ouvinte-leitor para experimentar das agruras e delícias de suas alegorias, ainda que esse
convite os conduza inevitavelmente a experiência-limite do fígado devorado
incenssantemente pelo reino dos mitos e das coisas. Em contrapartida ao chamado geral,
a consciência individual como que se esvai…

“A sphincters tooting our tune.


If only ‘I’ could pick you.
Wed slosh, wed slide, wed cling
round a kelloggs floor.
His severed, yellow-eyes
Weeping DA-DA-DA, DA-DA-DA.
From the spit-roast smoke curling.
DA-DA-DA
DA-DA-DA.
‘RACK OFF!’”

Não são apenas os sons de peidos que eclodem, a castigar o gosto e o senso histórico do
ouvinte (afinal, já não estamos no século XX…), mas acima de tudo a emersão do
palavrório, das entrelinhas, torrentes de palavras e entrepalavras de sentido fluido e
maleável, que promovem uma experiência poética radical. Contribuem para a empreitada,
a canção de Purcell e Kurtag, Os Cantos de Ezra Pound, as imagens tenebrosas de
Lautréamont e da terra devastada de Eliot, o heavy metal, o samba e uma utilização dos
instrumentos que remete à experimentação ao mesmo tempo onírica e realista da musique
concrète. Além de Walker himself, o bardo…

III. “job done”

Bish Bosch começou a ser escrito em 2009, enquanto Walker compunha a trilha para o
balé Duet for One Voice da companhia ROH2. “Bosch” se refere ao célebre pintor
holandês; “bish” é corruptela de “bitch”; mas, no geral, “bish bosch” quer dizer “job
done”, “trabalho finalizado”. Acrescente-se a esta informação, uma derivação mítica
cunhada pelo próprio Walker: “I was thinking about making the title refer to a
mythological, all-encompassing, giant woman artist.” Revestida pela força poética do
mito, emerge a figura de uma “mulher artista gigante”, capaz de reaver a sensação de
poder e redenção diante de um mundo que apodrece a olhos vistos. Preconizada de forma
delirante pelo artista a partir de uma expressão cotidiana, a “mulher gigante” também se
impõe como efígie de um mundo natimorto, que se movimenta à custa de sobressaltos,
tragédias, genocídios — e “alguma literatura”… Como Bosch, mas também como
Rembrandt, o corpo humano é elemento de tenebrosas operações que circunscrevem o
corpo doente e moribundo da natureza, da ciência, da cultura e, é claro, da arte.

Produzido por Peter Walsh, Bish Bosch foi gravado por Ian Thomas (bateria), Hugh
Burns e James Stevenson (guitarras), Alasdair Malloy (percussão) e John Giblin (baixo),
além de contar com as participações de Guy Barker (trumpete) e BJ Cole (pedal steel). As
orquestrações são de responsabilidade do diretor musical e tecladista Mark Warman.
Instrumentistas comprometidos, primeiramente, em levar a cabo uma iniciativa de cunho
sonoro: “os sons vestem as palavras” (“It's just dressing the lyrics”). Não estamos diante
de arranjos que vestem canções, mas de uma pesquisa sonora em franco diálogo com as
evocações da poesia delirante de Walker. Para fruir a riqueza de Bish Bosch, convém ao
ouvinte entregar-se com atenção ao percurso, como quem se entrega a uma experiência
entre a performance e a literatura. A cada instante uma modulação situada entre o caos e
o silêncio, mas, na maioria das vezes, manifestando confluências inusitadas entre sons e
palavras.

Em “Corps de Blah”, por exemplo, as referências bíbilicas misturam-se a estranhas


alusões às ciências médicas (“Eukaryotic gobbler of gavotte, knee to…”), considerações
acerca de Tyrol, estado austríaco para onde foram muitos criminosos da segunda guerra
(“vacant veins of Sterzing…”), uma série de referências a objetos, sensações, sinestesia
radical. Para revestir os versos, Walker e sua banda recorrem a uma série de artifícios e
texturas com variações imprevisíveis. Seu canto lacrimoso se inicia, solitário, anunciando
um ovo que se rompe e revela o mal: “Dear god, excuse me.” Ruídos em baixo volume,
estridentes, cordas e graves soturnos ambientam a lírica de uma terra devastada. De
repente, a bateria marcial irrompe, combinada a algo parecido com uma cuíca grave e
rouca, sons de animais, sopros que desenham melodias débeis. Silêncio. (Aliás, o silêncio
em Bish Bosch nunca é simplesmente a ausência de som, se não que irrompe preenchido
de sentido: fôlego, retomada, momento exitante…) Os sons incômodos dos peidos,
combinados com percussão e apitos, servem para vestir os versos infames citados acima:
“A sphincters tooting our tune…” Segue-se uma sequência de eventos sonoros que vão
desde solos de viola, sons de chuva, drones, grooves, solos de xilofone, etc.

Tomemos o epicentro do álbum, a faixa “SDSS14+13B (Zercon, A Flagpole Sitter)”. As


justaposições indicam o cruzamento semiótico de muitas referências. Novamente o
silêncio opera o elemento dramático. Zercon, “anão mouro”, guardião da bandeira na
corte de Átila, o Huno, se apresenta:

“This is my job,
I don’t come around and put out
your red light when you work…”

Referências à política do século XX (“Eunuch Ron” Reagan e “Gorbi”), a impérios


antigos e ditaduras modernas (grego, romano, huno, galês, britânico e americano), e à
depravação na corte de Átila, não escondem o centro gravitacional da faixa: trata-se de
uma alusão a condição pós-moderna, tomada comumente como a perda generalizada de
referência ou o enfraquecimento da tradição ocidental, mas que na verdade diz respeito a
proliferação do conflito entre diversas perspectivas culturais. Em mais de vinte minutos
de faixa, Walker conduz os sons em ligação contrastante com justaposições poéticas,
nitidamente aparentadas com a logopéia de Ezra Pound. Batidas marciais fornecem o
contorno sonoro à declamação dos números romanos, ao passo que a orquestra produz,
segundo Walker, “ruídos e texturas, ou grandes pilares de sons, ao invés de arranjos”.

Outros destaques do disco remetem ao mesmo estatuto sonoro-dramático: as crepitações


percussivas de “Pilgrim”, a impressionante dinâmica dramática de “Epizootics!”, a escola
de samba em “Phrasing” (“pain is not alone”), o coro de facas e zumbidos em “Tar”… Se
é bem verdade que trata-se aqui mais de uma “ficção sonora” do que um trabalho
exclusivamente musical; se se pode afirmá-lo igualmente como uma peça que desafia a
própria noção de “canção”, manifestando-se sob o formato de uma ópera ou de um
“canto” musicado; e, por fim, se compreendermos que trata-se de um esforço
completamente distinto dos trabalhos anteriores de Walker; então pode-se atribuir a Bish
Bosch o caráter simultâneo de um apanágio e de um rompante original, mesmo em
relação à história de seu autor.

Ora, em que medida o trabalho se insere nesse contexto musical permeado por múltiplos
interesses, no qual o teatro – a dimensão do jogo teatral — se torna referência para a
criação musical? Poderíamos ir além, perguntando em que medida seu trabalho nos
últimos 30 anos vem se tornando referência para procedimentos híbridos, sobretudo a
partir de Climate of Hunter (1984), Tilt (1995) e The Drift (2006)? É certo que Walker
sobreviveu a quase todos os artistas que influenciou, o que nos autorizaria a atribuir-lhe
esta propensão à demiurgia. Mas convém manter a singularidade de Bish Bosch, mesmo
em relação ao autor que a tornou possível. Em uma época em que a performance e as
demais possibilidades de criação artística são justapostas, fustigando os gostos mais
conservadores, Bish Bosch pode até soar excessivo, disforme, doidivanas para além do
tolerável. Mas dificilmente se pode negar que manifesta de forma contundente algo raro
neste mundo tomado por conflitos e degeneração, qual seja: a decantada e indomável
necessidade de “ir-além”.

Hurtmold – Mils Crianças (2012; Submarine Records, Brasil)


A proximidade entre artista e público, propiciada pelas ferramentas virtuais, responde por
formas cada vez mais perspectivas de partilha estética. Uma que me ocorre com
frequência deriva do contraste, intensificado pelo contato online, entre a percepção do
artista e a do crítico. Deveria este último submeter-se à suposta preeminência do artista
sobre a obra e avaliá-la conforme os critérios estabelecidos pelo criador? Ou ele pode (e
deve) se desembaraçar desta influência e, com liberdade, esmiuçar o trabalho a seu
modo? Diante de Mils Crianças, último trabalho do Hurtmold, e da entrevista com
Guilherme Granado publicada ontem no Matéria, me flagrei no meio deste suposto
descompasso: para além da percepção pessoal, não seria bem possível identificar em Mils
Crianças traços nítidos que indicam um passo a mais na carreira do grupo?
Na minha perspectiva sobre Mils Crianças, sobressaem a forma límpida e arrojada das
estruturas, as tramas minuciosas que sustentam a dinâmica das composições. Esta
preocupação é perceptível principalmente em momentos em que há polirritmia (dois ou
mais instrumentos tocando em tempos diferentes), como em “Cleptociprose” ou “Hervi”,
ou nas variações de volume, como é perceptível também em “Cleptociprose”, “Naca” e
“Pigarro”. Inevitável observar que este gosto pela burilação da forma contrasta não só
com a linguagem anarco-jazzística que marcou o último disco do grupo (homônimo,
2007), mas com toda uma onda de free-improv que se alastra mundo afora, inclusive no
Brasil. Convém também notar a precisão na execução, cada instrumento jogando para o
outro, funcionando como engrenagens de uma mesma máquina sonora.

E então ocorre algo improvável: a despeito das estruturas rigorosas, sobrevém o caráter
eminentemente rítmico e suingado das composições. Neste caso, vale relembrar as
palavras de Granado: “o Hurtmold é uma banda basicamente percussiva”. Além da
polirritmia, em Mil Crianças percebem-se compassos compostos (como, por exemplo,
“Joji”, “Beli”, entre outras) e manipulação do andamento (como na guitarra que introduz
“Hervi”). Sublinho também dois momentos em que o grupo desenvolve uma espécie
exitosa de “afro math rock”: as texturas rítmicas formada pelo riff e os tambores no
“refrão” de “Tomeletomele”; e algo similar à uma costura da precisão do Tortoise com o
espírito da Congada, na primeira modulação de “SNP” (lá pra 1:40 de faixa).

A síntese de estrutura rigorosa e experimentação rítmica em Mils Crianças contribui para


demarcar um outro momento estético no trabalho do grupo. Se até então elaboravam uma
sonoridade cerebral com descontração punk, desta vez desenvolveram um trabalho punk
com uma consciência profunda de estrutura, timbre, composição, instrumentação, etc.
Improvável que, em troca, esta complexidade transpirasse algo de mais acessível, como a
pegada surf pop de “Chavera”. Como é igualmente improvável pensar que por baixo de
algumas melodias assobiáveis subjaz uma instrumentação intrincada. Esta discrepância
de possibilidades e opiniões, a possibilidade mesma de que os ouvintes admirem o
trabalho por motivos bem diversos daqueles manifestados por seus criadores, testemunha
a riqueza de Mils Crianças e a importância perene do Hurtmold no cenário da chamada
música brasileira.

Royal Band de Thiès – Kadior Demb (2012; Teranga Beat, Senegal)


Não que a música senegalesa seja completamente desconhecida pelas bandas de cá. Ao
contrário, Youssou N'dour chegou a tocar no finado Free Jazz Festival, enquanto Ismaël
Lo, Touré Kunda, Baaba Maal, Cheikh Lo, Africando, Orchestra Baobab são nomes
razoavelmente conhecidos entre os pesquisadores e interessados. Até mesmo a aparição,
no ano passado, da trama polirrítmica do mbalax de Fatou Laobé, Thione Seck, Kiné
Lam e Pape Seck, retrabalhada por Mark Ernestus com o Jeri-Jeri e a cantora Mbene
Diatta Seck, não foi suficiente para dar conta de tamanha surpresa. Ocorre que, apesar de
todas essas referências, a composição destilada pela Royal Band de Thiès, formada por
fanfarra, jazz big band e mbalax, flagra o ouvinte completamente desprevenido.

A história segue um rumo mais ou menos comum nos dias de hoje: o grego Adamantios
Kafetzis, pesquisador e DJ, viaja a Thiès, pequena cidade a 40 milhas de Dakar, onde o
movimento operário, constituído majoritariamente por construtores de rodovias,
desempenhou um papel fundamental no processo de independência do país. Lá, se depara
com a Royal Band de Thiès tocando em um dos clubes mais conhecidos do local, o
Sangomar. Fundada em 1972 por Mapathe Gadiaga com o cantor Adam Seck (ou Secka),
permaneceu até 2012 como um daqueles segredos mais "mal guardados" da música
senegalesa — pois não há segredo "bem guardado" em termos de arte...

A pesquisa de Kafetzis revelou os fonogramas originais de Kadior Demb, primeiro álbum


da banda, gravado em 1979 e jamais lançado. A surpresa foi tanta que o grego abriu um
selo, o Teranga Beat, só para editar o trabalho. Já o percurso é familiar, já vimos
acontecer de forma semelhante com Tinariwen, Konono N.1, Mulatu Astatke, Amadou e
Mariam, etc. Contudo, estamos diante de um outro tipo de inflexão da música feita no
Senegal. Acompanhados por nove membros, distribuídos entre a seção rítmica e os
metais, James Gadiaga e Secka se mostram detentores de uma sólida e intrigante
concepção musical.
A Royal Band de Thiès concentra verdadeiros virtuoses da polirritmia, que se esmeram
nas tramas intrincadas do mbalax sem abrir mão da fluência nervosa e empolgante do
improviso jazzístico. Mas Kadior Demb não impressiona simplesmente pela
instrumentação híbrida, como também pelo próprio ataque dos músicos, registrados com
dois microfones praticamente ao vivo. Os arranjos, a instrumentação e, sobretudo, as
dinâmicas (as chamadas “convenções”) revelam justaposições rítmicas intrincadas e
aparentemente descompassadas em faixas como “Chérie Coco”, “Kouye Magana” e
“Mariama”. Mesmo na levada em “Gossar” ou na balada “Sama Yaye Boye”, percebe-se
a poderosa coesão da orquestra.

Então, diante do balanço sinuoso de “Korolober”, todo marcado nos tempos fracos,
imagino que a cabeça desses músicos esteja maquinando uma série de informações que
passam ao largo do bebop e do legado funk/soul norte-americano, tal qual na Orchestre
Poly-Rythmo ou na Baobab. Seguindo a pista de Kafetzis, encontrei informações a
respeito de uma cidade responsável por boa parte da originalidade musical do Senegal,
mesmo em relação à África oriental, marcada pela atuação do grande instrumentista
Moussa Diallo. Percebe-se que não se trata somente de uma inflexão do mbalax, mas um
refinamento pontual de aspectos da música senegalesa. Por este motivo, nas primeiras
audições de Kadior Demb o ouvinte se flagra em meio a uma espécie de desencontro
cultural, que tende a se torna mais comum a cada dia. Mesmo com a “familiaridade
remota” propiciada pela diáspora digital africana, este desencontro convoca o ouvinte a
alimentar com a imaginação tudo aquilo que simplesmente desconhece.

Bassekou Kouyate & Ngoni ba – Jama Ko (2013; Out Here Records, Mali
[Alemanha])
A grande maioria das resenhas dedicadas a avaliar as qualidades inegáveis de Jama Ko,
sugerem o nexo entre o golpe de estado que agravou a situação política conturbada do
Mali e sua respectiva repercussão sobre a aparição de tendências mais agressivas do
Ngoni Ba, o grupo que acompanha Bassekou Kouyate. Ainda que a situação se apresente
de forma bem mais complexa que a perspectiva de Kouyate pode fazer supor, vale
destacar seu desabafo em entrevista recente por ocasião do lançamento de Jama Ko: “Há
mais de 90% de muçulmanos no Mali, mas nossa forma de islamismo não tem nada a ver
com uma forma radical da Charia: esta não é a nossa cultura. Temos entoado canções de
louvor para o Profeta por centenas de anos. Se os islamistas interromperem a música que
as pessoas fazem por aqui eles vão arrancar o coração do Mali.”

Jama Ko se apresenta com uma sonoridade mais frenética e incisiva, tanto em relação aos
álbuns anteriores, Segu Blue (2006) e I Speak Fula (2009), como também no que diz
respeito às inflexões mais conhecidas da música malinesa — Youssou N’dour, Amadou
et Mariam, Ali Farka Touré, entre outros. Embora pareça bastante provável que tais
características decorram de um conturbado contexto político — basta dizer que o álbum
foi gravado no Mali, durante o golpe em março de 2012 — convém destacar os elementos
propriamente musicais que contribuíram para o êxito de Jama Ko.

Primeiramente, podemos notar uma diferença substancial no punch das percussões e dos
ngonis, sem prejuízo para as sutilezas das justaposições rítmicas e harmônicas. Ao
contrário dos dois primeiros álbuns, produzidos respectivamente pelo jornalista Jay
Rutledge e pela etnomusicóloga Lucy Duran, a produção de Jama Ko ficou a cargo de um
músico ligado ao rock, Howard Bilerman, ex-baterista do Arcade Fire. Com sensibilidade
“antropológica”, a produção de Bilerman foi responsável por uma sonoridade mais forte e
robusta, mantendo relativamente intactas as formas timbrísticas características do
ensemble. Digo “relativamente” porque esta síntese se favoreceu ainda mais da utilização
de distorção e wah-wah no Ngoni de Kouyate — sobretudo nos solos desvairados de “Ne
me fatigue pas” e na parceria com o bluesman americano Taj Mahal, “Poye”.

Mixado por Bilerman e Rutledge em Montreal, Jama Ko recebeu ainda a bateria e a


guitarra de Andrew e Brad Barr, além do órgão de Dominic Salole em “Ne me fatigue
pas”. Ao invés de nivelar a sonoridade malinesa com a timbragem “ocidentalizada”
(como no último disco de Oumou Sangaré), Bilerman reforçou sua singularidade unindo
o órgão, a bateria e a guitarra às tramas de cordas e percussões dos Ngonis, Doun Doun,
Yabara, entre outros instrumentos musicais malineses. Esta escolha refletiu a variedade
de ritmos e arranjos desenvolvidos pela Ngoni Ba, com ênfase nas dinâmicas e
convenções instrumentais — como no caso do andamento pontuado de “Mali Koori” e
“Wagadou”, nas texturas pontilhistas de “Dankou”, ou na recorrente sensação de um
emaranhado de cordas, particularmente em “Kensogini” e “Sinaly”.

As participações especialíssimas de seu pai (Moustafa Kouyate) e seus filhos (Fousseyni


Kouyate e Mamadou Kouyate) no ngoni e de sua esposa Ami Sacko nos vocais, somada
às presenças da cantora de Timbuktu, Khaira Arby e do guitarrista americano Taj Mahal,
conferem um clima familiar às gravações, mas que volta e meia é quebrado pelo
cosmopolitismo anômalo e futurista que emana das encruzilhadas de Bamako. Composto
por uma diversidade de grupos étnicos e variantes etnolinguísticas, o Mali é uma espécie
de enclave cultural absolutamente peculiar na África Oriental, onde Mandês, Songhais,
Tuaregs, Fulas, entre outros, se distribuem e se miscigenam em um território marcado por
guerras e experiências políticas peculiares. Soma-se a isto o fato de que os gênero e os
instrumentos musicais são batizados com o nome dos grupamentos humanos que os
cultivam, nem todos situados no Mali — os Ngoni, assim como os Songhai, habitam
também o Zâmbia, a Tanzânia, etc.

Em um território povoado por muitas culturas e que dificilmente se oferece à


compreensão imediata do estrangeiro é importante valorizar o papel do “contador de
histórias” ou “preservador das memórias”, o griot. Mais do que um trabalho em franco
diálogo com o interesse americano e europeu, Jama Ko (que em fula quer dizer “uma
grande reunião de pessoas”) nos reporta a um estado de coisas, como uma polaróide de
uma cultura em ebulição tanto no que diz respeito aos problemas políticos, como na
produção artística. Assim, Bassekou Kouyate, o griot, dispõe do formato-disco, Jama Ko,
como mais um canal para exprimir sua história, sua música e sua visão do presente.

Rob Mazurek Octet – Skull Sessions (2013; Cuneiform/Submarine; EUA/Brasil)


Formado a partir de uma combinação do São Paulo Underground com o Starlicker, eis o
primeiro rebento do octeto de Rob Mazurek. Batizado como Skull Sessions, o álbum traz
uma leva de músicos com os quais Mazurek mantém colaborações regulares: o baterista
John Herndon, o vibrafonista Jason Adasiewicz, o flautista Nicole Mitchell, Guilherme
Granado nos teclados e eletrônicos, Carlos Issa (Objeto Amarelo) na guitarra e nos
eletrônicos, Maurício Takara na percussão e cavaquinho e Thomas Rohrer na rabeca e no
saxofone. Um time formado na base da amizade, o que se reflete na fluência com que
passam do improviso à execução dos temas, do ruído à melodia mais singela, da
cornucópia sonora aos detalhes mais imprevistos.

Em 73 minutos, o octeto conduz o ouvinte por cinco faixas que tanto podem se associar à
noção geral de jazz (isto é, de improviso), como mantém laços criativos com duas ou três
vertentes da música instrumental dos anos 70: a fase fusion de Miles (Bitches Brew, On
The Corner), sobretudo na dosagem entre partes ensaiadas e o improviso; o aspecto
extático, spiritual, da Fire Music de Sonny Sharrock, Archie Shepp, William Parker; e,
por fim, a música brasileira, particularmente do instrumental dos anos 70 desenvolvido
por nomes como Hermeto Pascoal, Airto Moreira e Egberto Gismonti.

Vale notar que essas referências devem apenas situar o leitor no alistamento de
contribuições que, parece, constituem o trabalho, mas não esgotam sua significação. A
bem da verdade, as Skull Sessions se encontram a meio caminho das modulações do
Chicago Underground Duo e da profusão sonora da Exploding Star Orchestra, situando-
se assim entre a economia estratégica do primeiro e a ambição harmônica da segunda.
Das estratégias, a fluência com que ocorrem as “deixas” para mudar o clima, o
andamento ou o arranjo; da ambição harmônica, um certo despojamento punk na hora de
sobrepôr muitas informações sonoras, característica que dialoga com o jazz de Sun Ra,
mas que também constitui um dos grandes talentos de Mazurek. Soma-se a isso a prática
do “layering”, da sobreposição (ou justaposição) de linhas e volutas rítmicas, harmônicas
e melódicas, com a contribuição fundamental da miscigenação de timbres eletrônicos e
acústicos.

Neste contexto, a frase de Jeff Parker, presente no texto do encarte de Stellar Pulsations,
ganha um sentido muito específico: “Rob Mazurek vem explorando a idéia de criar
ambientes para perder-se no som”. Ora, há um claro, pregnante, luminoso paradoxo nesta
ideia! Trata-se de uma operação que se propõe a conjugar a disposição intencional, isto é,
tudo aquilo que o artista pode prever, com o campo de possibilidades em aberto que esta
mesma disposição cria. De um lado, a extrema sabedoria técnica, criativa, formal; de
outro, um “deixar-se-levar”, uma espontaneidade que se reflete no aspecto cromático do
som.

Tal característica se torna perceptível conforme as primeiras tramas se desenham em


“Galactic Ice Skeleton”, dezessete minutos de uma odisseia sonora com forte pegada
funky-fusion e traços brazucas nas melodias e harmonias. É notável a presença
entrelaçada do vibrafone, da rabeca, dos timbres eletrônicos, e também a forma como os
vários timbres ocupam a paisagem da composição. Tal característica se confirma na
sequência, com “Voodoo and the Petrified Forest”, faixa que sustenta a aparência lírica
da anterior, para desembocar em uma incrível improvisação free, com destaque
novamente para a rabeca de Thomas Rohrer e a percussão de Maurício Takara.

Talvez a faixa mais que contenha o trecho mas abstrato do álbum, “Passing Light
Screams” começa com a contribuição de todos os instrumentos degladiando-se de forma
tensa e desordenada. De repente, a fonte seca: resta o vibrafone e alguns ruídos discretos
executados pela percussão e pela rabeca. Com timbre macio, o trumpete descreve uma
melodia para, alguns minutos depois, juntar-se à flauta e ao teclado para iniciar um tema
sinistro que irá conduzir em crescendo a faixa para seu fim. O vibrafone introduz a
marcha “Skull Caves of Alderon”, cujo belíssimo tema remete ao maracatu e às fanfarras
nordestinas. A zoeira noise de seus últimos minutos contrasta com a última faixa do
trabalho, “Keeping the Light Up”: neste caso, o jogo passa a ser com as lacunas, os
vazios, os silêncios, ocupados de forma parcimoniosa por melodias breves e intervenções
discretas.

Um tal equilíbrio entre influência e originalidade, improviso e composição, radicalidade e


tradição, som e silêncio requer fluência e comunhão de propósitos. Será? Nada pode ser
mais fortalecedor de uma empreitada sonora em conjunto do que a amizade entre seus
membros. Certo? À esta altura já não tenho certezas absolutas, mas no caso específico de
Rob Mazurek essas premissas parecem funcionar às mil maravilhas.

Siba e a Fuloresta – Toda Vez Que Eu Dou um Passo o Mundo Sai do Lugar (2007;
Ambulante Discos, Brasil)
Cantor, compositor, guitarrista, rabequeiro, mestre na poesia rimada, por três discos Siba
capitaneou o Mestre Ambrósio, um dos grupos mais expressivos do manguebeat. Após o
fim do grupo e de uma estadia de 7 anos na cidade de São Paulo, Siba retornou a
Pernambuco e fixou residência em Nazaré da Mata, importante eixo de produção musical
de maracatu rural, coco, ciranda entre outros. A partir da instalação de um home studio,
criou o grupo A Fuloresta, reunindo a nata dos poetas e instrumentistas da Zona da Mata:
Biu Roque (percussão e voz), Mané Roque (percussão e voz), Zeca (percussão), Roberto
Manoel (trumpete), Galego (trombone), João Minuto (sax tenor) e Bolinha (tuba). O
grupo lançou em 2002 o independente e aclamado Fuloresta do Samba, e, em 2007, Toda
Vez Que Eu Dou um Passo o Mundo Sai do Lugar, com as participações da cantora Céu,
do guitarrista Lúcio Maia, de Fernando Catatau e de Isaah, ex-integrante do Comadre
Fulorzinha.

*#*

No registro da música “folclórica”, a acessibilidade ocasionada pela evolução dos


equipamentos de gravação e edição digitais favoreceu a expansão dos títulos em uma
escala nunca experimentada antes. Dos anos 30, particularmente dos esforços
compilatórios de Mario de Andrade, até meados da década de 90, contam-se nos dedos as
iniciativas de registro das manifestações musicais rurais ou oriundas de contextos
urbanos menos favoráveis. Os mais contundentes esforços nesse sentido: o Documento
Sonoro do Folclore Brasileiro, projeto da Funarte, parcialmente relançado em CD, e o
Mapa Musical do Brasil, produzido por Marcus Pereira, ambos com pretensões de
registro; e, anos depois, o cd quádruplo Música do Brasil, uma compilação de artistas de
todo o Brasil, dirigido por Hermano Vianna e Beto Villares, gravado no intuito de flagrar
a diversidade musical brasileira em plena atividade. Em ambos os casos, diferentes
abordagens do problema da cultura popular, ao qual poderíamos anexar o “resgate”
levado a cabo por Ariano Suassuna (mas também pelo rótulo “samba de raiz”) e a
proposta de diálogo com a cultura estrangeira do manguebeat. Na iniciativa da Funarte, o
registro funcional das manifestações musicais; no sistema de Suassuna, uma perspectiva
sobre a cultura que subscreve a produção a uma essência “nacional”; na iniciativa de
Hermano e do manguebeat, a preocupação com o presente e com o futuro das práticas
musicais e culturais. Este painel, incompletíssimo, apresenta no entanto algumas posições
fundamentais nos debates sobre música no brasil: primeiro, o fetiche da essência, a
crença na imobilidade e o respeito à tradição; depois, o bem intencionado e institucional
cultivo do registro; e, ainda, a promoção de meios para a mobilidade constante e da
interlocução da música com as mais diversas formas de produção cultural.

“A vida não dá certeza, pois tudo se movimenta”: com seu último disco, ainda que Siba e
Fuloresta se posicionem de alguma forma neste debate, o fazem de modo a superá-lo
definitivamente. Pois nele, apesar de termos perfilados uma série de cocos, cirandas e
frevos, gêneros considerados “folclóricos” e/ou “regionais” e que, por isso, são arrolados
em alguns dos discursos listados acima, pode-se dizer, com segurança, que as palavras
“registro”, “essência”, “tradição” e, até mesmo, “mobilidade” e “interlocução” não
comportam toda a invenção que grupo e álbum nos trazem. A música da Fuloresta reside
à parte deste universo, válido, mas excessivamente acadêmico, burocrático e idealista.
Com Toda Vez…, o grupo afirma pelo menos duas novidades interligadas: uma
naturalidade, uma sabedoria, um “estar-à-vontade” em relação aos gêneros trabalhados, e,
ao mesmo tempo, uma disposição para recriá-los às antípodas das gravações que até
então foram consagradas a eles. É música viva, que se explica por si só, que não carece
de adendos e notas. Aqui, não cabe o velho discurso sociológico, que a cada faixa tem de
perfazer toda uma gama de fenômenos extra-musicais para explicar, por exemplo, o que é
o coco (“Com influência africana e indígena, o coco é uma dança de roda acompanhada
de cantoria e executada em pares…”). Devo observar também que, ao contrário da
música da Nação Zumbi ou de Marcelo D2, que acabaram por privilegiar o elemento
estrangeiro, Siba e a Fuloresta propõem que a base seja criada a partir dos sons de Nazaré
da Mata, e que o adereço seja “estrangeiro” (uma guitarra, um piano, um efeito na voz,
um sample…). Obviamente, digo isso sem preconceito, pois idolatro o Nação Zumbi.
Mas é uma diferença digna de nota, observável não só em toda a carreira de Siba e a
Fuloresta, como também em Candombless, de Carlinhos Brown.

Dito isto, vamos à matéria. Trata-se de um disco extremamente dançante e bem


humorado, itens que lhe conferem uma leveza em nada comparável com a banalidade da
Mpb pseudo-chic que vigora por aí. Primeiramente, porque Siba e a Fuloresta
desenvolvem um trabalho sólido de composição sobre o vocabulário do frevo, do coco e
da ciranda. São belas canções como “Alados”, parceria de Siba com Lúcio Maia; irônicas
em diversos momentos, mas sobretudo em “Meu Time”; e críticas como em “12 Linhas”,
cantada por Mané Roque (“em cada morada um berço, em cada berço um pagão…”) ou
“Será” (“será que ainda vai chegar o dia de se pagar até a respiração…”). No que diz
respeito à instrumentação, Toda Vez… tem por eixo central o trabalho com a percussão e
o metais. E aqui podemos dizer que se encontra o segundo grande destaque do disco,
porque o modo como o grupo resolve as dinâmicas de percussão e arranjos de metais é de
uma riqueza prodigiosa. São muitas as vezes em que nos surpreendemos com os diversos
recortes harmônicos e rítmicos, sejam realizados pela tuba, como na faixa-título e na
linda “A Folha da Bananeira”, cantada por Biu Roque, seja pelo ataque em conjunto do
trumpete, do sax alto e do trombone em “Meu Time” e “Tempo II”, seja ainda pela
interação dos metais com a percussão, em “Pisando em Praça de Guerra”. Soma-se à
composição e instrumentação, o elemento arranjo, no qual o disco também se destaca:
são sensíveis as intervenções dos efeitos, particularmente em “12 Linhas”, as colocações
dos instrumentos esporádicos como o piano em “Alados”, os pequenos detalhes, como as
palmas na faixa título ou a ambiência de “Meu Time”. Do início do álbum, um relato de
nascimento e iniciação (“Pisando em Praça de Guerra”), até a ode alegre à morte em “A
Velha da Capa Preta”, Siba e a Fuloresta excedem todas as expectativas anteriormente
criadas pelo já excelente Siba e a Fuloresta, de 2005. Completa a riqueza do álbum a
programação visual criada pelos grafiteiros paulistas “Os Gêmeos”, baseada no trabalho
realizado para um DVD do grupo.
Pode ser considerada uma limitação de minha parte que ainda tenha que situar o disco nas
polêmicas confusas do debate nacional-popular-cultura-de-massas… Mesmo querendo
dissociar a excelência de Toda Vez… desse quiprocó, me foi inevitável fazê-lo. Pois
tenho a certeza de que por mais que reconheçamos o novo, ainda assim, somos tributários
do contexto que o produziu, e que “rupturas” são apenas produto da nossa imaginação.
Mesmo o novo, ele próprio, identifica-se de alguma forma com aquilo que critica. Na
perspectiva oficial encontram-se elementos isolados que fornecem. em instrumentos e
sugestões, as armas para sua própria neutralização. Toda Vez… traz em si o germe da
mudança, mas esse germe foi inoculado em diversos níveis por uma alta consciência, que,
ao menos em parte, interagiu com esferas diferentes, aparentemente desconectadas: a
institução, a academia, o comércio, que sobrecodificam e traduzem as manifestações
rurais, ausentes das cidades. Depois, houve um momento em que esta consciência se pôs
em direção ao contexto criativo e, daí então, a criação de uma relação específica de
visões e, sobretudo, uma articulação concreta no sentido de reinterpretar a interpretação
da institução, da academia e do comércio. Siba é esta alta consciência, que soube fazer a
ponte. Entretanto, uma coisa é pensar a questão de um ponto de vista sócio-cultural, na
qual, penso eu, acabo por resvalar. Outra, é a experiência de ouvir o disco. Toda Vez…
possui essa altivez contagiante e dionisíaca, dançante e carnavalesca, mas também
reflexiva, capaz de criar condições adequadas para a ultrapassagem das limitações
objetivas e subjetivas da confusão musical brasileira. (Bernardo Oliveira)
ENTREVISTAS

KEVIN DRUMM
Nos próximos dias 17 e 18 de agosto, quarta e quinta-feira, o compositor e produtor
Kevin Drumm fará duas apresentações no SESC-Belenzinho, em São Paulo. Oriundo da
cena improv da Chicago dos anos 90, Drumm é um dos produtores e músicos mais
intrigantes e originais da atualidade. Capitaneadas pela produtora paulistana Noropolis, as
apresentações terão as participações do Objeto Amarelo, formado pelo músico paulistano
Carlos Issa, e o Test, duo de “death metal old school com grindcore”, formado pelo
guitarrista João Kombi (ex-Are You God?) e o baterista Barata (D.E.R.).

“Eu não me importo se chamam de música, som ou qualquer outra coisa”, afirma Kevin
Drumm durante a entrevista que fizemos com ele na última semana. Para quem não
conhece o trabalho deste americano de 40 anos, basta escutar qualquer um dos inúmeros
lançamentos para entender a natureza desta frase. Pois Drumm opera justamente na
fronteira entre o que o senso comum considera sob o rótulo “música” e todas aquelas
sonoridades que não são consideradas como tal: os barulhos, ruídos, estalidos, estampidos
e outros pruridos sonoros, relegados à categorias supostamente menos nobres. Na
fronteira e além dela, diga-se de passagem.

Drumm vem desenvolvendo sua música a partir de procedimentos e estilos que envolvem
um aparato técnico e conceitual complexo, como a eletroacústica e o noise,
permanecendo irredutível a esses mesmos gêneros. Porém, equacionando sua verve
idiossincrática com o aporte de músicos e instrumenistas igualmente desafiadores,
Drumm já colaborou com artistas do calibre de John Butcher, Daniel Menche, Jim
O’Rourke, Phil Niblock, Tony Conrad, Ken Vandermark, Mats Gustafsson, entre outros.

Conversamos com o artista no momento em que ele está prestes a abrilhantar a


programação de shows do segundo semestre no Brasil. O rótulo parece importar menos
do que a experiência em si, o que nos leva a crer que suas apresentações constituem
grandes momentos de improviso a partir de computadores e módulos analógicos e
digitais. Mais auspicioso, impossível.

***

Em sua longa discografia, ouvimos elementos de música concreta, eletrônica,


eletroacústica, instrumentos preparados, improvisação, metal, noise, drone, etc.
Afinal, de onde vem a música de Kevin Drumm?
Vem do meu interesse no som, colocando de maneira simples. Tais “gêneros” são do meu
interesse, uns mais e outros menos.

Esta profusão sonora está ligada a algum tipo de busca? O que você procura
quando elabora seu trabalho?
Sem querer parecer piegas, busco algo que mexa comigo internamente.

Então posso dizer que você está usando sons não apenas para fazer “música” ou
“gêneros musicais”, mas a fim de desenvolver uma experiência de som solipsista?
Como você descreveria o seu trabalho?
Solipsismo pode soar como “auto-absorção egoísta” (egoistic self absorption). Eu nunca
pensei desta forma, mas talvez seja verdade, espero que não. O que eu faço com som ou
“música”, se você prefere, é uma coisa pessoal, é a liberdade para fazer o que eu quero
(ou talvez isso seja uma ilusão). Eu não me importo se chamam de música, som ou
qualquer outra coisa. O termo mais adequado seria “áudio”, mas é ainda mais geral do
que chamar alguma coisa de música.

Você concorda que a sua abordagem ao fazer música é mais crítica e filosófica – do
que o estritamente ‘musical’?
Não sei se é filosófico. Eu não quero soar cauteloso mas é o que é. Não é misterioso e
não adquire mais legitimação do que qualquer outro tipo de música.

Quais são as suas influências musicais do passado e atuais?


Algumas das minhas influências não refletem na música que eu faço, e é difícil de
identificar por que certas coisas me influenciam. Enquanto alguns influenciaram
diretamente o som da minha música, eu também busco influência simplesmente pelo fato
de existerem ou de ter ouvido num determinado momento e lugar cruciais. Às vezes é
apenas a atitude dos músicos que me inspira.

Mas aqui vai uma pequena lista – Euro free jazz/FMP, Peter Brötzmann, Caspar
Brötzmann, Borbetomagus, P16.D4 e Ralf Wehowsky, praticamente quase todo o
catálogo da Selektion, The New Blockaders, o som do baixo de Lemmy Kilmister,
AMM, Hugh Davies, Hans Reichel, Stephen Wittwer, Radu Malfatti, os 2 primeiros
discos do Deicide, Iron Maiden, death metal do final dos 80 início dos anos 90, Hafler
Trio, Zbigniew Karkowski, Jim O’Rourke, Robert Ashley e muitos mais.

Como você avalia o impacto dos aparelhos eletrônicos/digitais na cultura sonora?


Eu diria muito grande. Não havia tanta música eletrônica sendo feita há 15 anos atrás.
Todo mundo tem um computador e descobriu os sintetizadores analógicos em torno
deles, e então parece ter explodido. Softwares tiveram um enorme impacto, praticamente
qualquer pessoa tem acesso a centenas de programas… Embora existam algumas pessoas
lá fora, que batem no peito pra dizer “só analógico é real”, eu sempre pensei que uma
ferramenta é uma ferramenta é uma ferramenta. Qualquer ferramenta é boa, seja
eletrônica, analógica ou um software para computador.

O Cineasta André De Toth disse uma vez “eu não me importo como você faz, eu só quero
uma boa refeição”. Já me perdi de novo, desculpe… Sim, o impacto é enorme, MAS
agora temos mais coisas e algumas são boas e outras ruins, o que é a mesma situação,
como sempre … Então eu acho que nada mudou… (risos)

Como você compõe? A partir da experimentação técnica – tanto com apetrechos


eletrônicos como com instrumentos preparados? Ou a partir da exploração de uma
ideia sonora?
Às vezes eu tenho uma idéia e sigo com ela, outras vezes é experimentando. Sinto quase
como se tivesse esgotado o potencial do equipamento que tenho, em breve devo mudá-lo.
Mas eu normalmente fico preso no mesmo equipamento, mais ou menos, a partir de sons
feitos através de uma guitarra peparada ou geradores de áudio, comentários etc…

Antes mesmo de seu primeiro álbum, que tipo de envolvimento você tinha com a
música? A guitarra já fazia parte de seu universo musical?
Sim, foi principalmente a guitarra. Eu toquei guitarra por alguns anos, eu não era muito
bom, mas em algum momento eu fiquei mais interessado em “outros” ruídos e tudo o que
eu tinha era uma guitarra, então tentei fazer algo interessante com ela.

E como surgiu a oportunidade de gravar seu primeiro álbum, pela Perdition Plastics
(1997)? Que tipo de experimentos você trabalhava antes de gravá-lo?
Eu planejei fazer um disco solo de guitarra por alguns anos. E eu tentei algumas vezes
mas não gostei dos resultados. Um dia decidi gravar o disco todo de uma só vez, juntando
as coisas boas e ruins, e lançá-lo. Eu tinha algumas ofertas interessantes de fora da
cidade, mas a Perdition Plastics parecia querer lançar o disco mais rapidamente, no
entanto, levou um ano para fazê-lo. Eu não acho que seja uma música muito boa, mas
talvez seja um começo interessante… talvez não.

Pessoalmente, admiro dois de seus trabalhos mais conhecidos, “Sheer Hellish


Miasma” (2002) e “Imperial Distortion” (2008). No entanto, são álbuns muito
diferentes um do outro. Poderia falar um pouco a respeito do processo de
composição nos dois discos?
Com Miasma eu queria criar uma sonoridade espessa e difusa, algo que realmente não
chega ao fim da mesma forma. Imperial Distortion é uma compilação de faixas ambient
equilibradas e enfadonhas que eu tenho desenvolvido ao longo dos anos. Algumas destas
são velhas o bastante para que eu não me lembre o que estava pensando quando as fiz.
Tenho abordado esse tipo de “atmosfera” em outras gravações, incluindo Sheer Hellish
Miasma. Em Imperial Distortion eu me concentrei exclusivamente naqueles tipos de
faixa, exceto na piada ao final da última faixa, obviamente (“We all get it in the end”),
que foi um acidente que decidi deixar no disco.

Fale um pouco a respeito de Ghybbrish, seu último trabalho.


Ele foi feito para a turnê européia que fiz com Tom Smith do grupo TO Live and Shave,
em Los Angeles. Dois discos, um com alguns tipos de experimentos psico-acústicos, e o
outro trabalhando com novos processos, usando um sampler, algo que eu nunca tinha
tentado. Poderia ter sido mais trabalhado, mas ficou bom.

Qual será a base das apresentações em São Paulo?


Não tenho certeza ainda. Eu posso chegar com algo na manga ou posso simplesmente
esperar até o show começar.

Quais seus próximos projetos?


Estarei em turnê pela Europa em setembro, com Thomas Ankersmit, um excelente
músico holandês que mora em Berlim, e outros, e depois tentarei fazer um novo disco.

***

MURCOF
Neste fim de semana, de 10 a 13 de novembro, Braga terá a oportunidade de assistir ao
projeto do mexicano Fernando Corona, o Murcof, que se apresenta no Festival
Semibreve. No início de Dezembro, Corona parte para o Brasil para se apresentar no
Festival Novas Frequências, no Rio de Janeiro, entre os dias 07 e 11 de dezembro (com
apoio da FACT Magazine PT). Julgamos oportuna a ocasião para ir à conversa com este
importante artista da cena eletrônica experimental da atualidade. E não julgamos errado.

Corona se revela um pensador tão rico e direto quanto sua música. Constrói um castelo de
ideias com palavras parcimoniosas, citando nomes datas, locais, percepções com
precisão, enquanto explana, dedicadamente, os diversos aspectos de sua obra e concepção
musical. Talvez por isso, aqueles que buscam a integridade dos sons e dos gêneros nos
discos do Murcof enfrentam sérios problemas: eles não fornecem um ponto de apoio que
assegure a obra de Corona em um só gênero musical. Trata-se de uma música híbrida, de
caráter austero, porém expressiva e maleável.

Essas características justificam tamanho interesse pelo trabalho deste mexicano, nascido
há 41 anos em Tijuana, no México, e residente há cinco anos em Barcelona. Uma passada
de olhos sobre sua discografia, confirma o interesse acentuado na música clássica,
trançada ao sabor dos ventos mais inconstantes: minimalismo, glitch, música
contemporânea, música mexicana Huichol, etc. De fato, a sonoridade das composições de
Murcof indicam uma convivência musical aberta, eclética e curiosa, mas que pode
também ser arrolada no âmbito da música pós-colonial – ainda que devamos advertir para
a relevância provisória deste termo.

La Sangre Iluminada, trilha sonora de 2009, para o filme homônimo assinado por Iván
Ávila, foi relançada recentemente pelo selo francês Rafiné. Este foi seu último trabalho
em disco, mas a marca deixada por Murcof permanece através de uma pluralidade de
projetos, como o que apresentará em Braga, ao lado do AntiVJ. Para além dos rótulos que
buscam separar a linguagem do chamado primeiro mundo, do mundo colonial, a música
de Murcof é articulada, viva e, sobretudo, contemporânea. A seguir, a conversa que
tivemos com o artista.

***

Fernando em sua vasta discografia, podemos ouvir elementos de música clássica


moderna, eletrônica, eletroacústica, além da influência de artistas como Arvo Part,
etc. Finalmente, de onde vem a sua música?
Na verdade, eu era muito influenciado pela música acadêmica moderna. Lembro-me
claramente quando eu escutei Xenakis e Ligeti, respectivamente a “Oresteia” e “Lux
Aeternam”, estas obras me mudaram para sempre. Foi então que eu descobri
compositores como Scelsi, Gubaidulina, Schnittke, Berio, Penderecki, etc e,
posteriormente, Arvo Pärt, Kancheli, Górecki, Silvestrov, etc. Foi um momento muito
emocionante para mim, o tempo todo eu estava experimentando com diferentes estilos de
música, a partir de estilos de rock e jazz, até ambient e noise. Hoje em dia eu continuo
com o ouvido aberto onde quer que vá, sons interessantes estão em toda parte.

Quais são suas principais influências? Ouvi dizer que você cresceu entre os discos
clássicos e dos Beatles. Você acha que sua música reflete a indistinção dos dois
universos, popular e clássico?
A música é um ótimo meio para exercitar visões utópicas da existência harmônica entre
mundos ou situações aparentemente distantes ou opostas, clássico e popular, oriental e
ocidental, tonal e atonal, etc. O ar que carrega o som “não se importa” se é uma sonata de
Chopin ou o som de uma manada de búfalos correndo. Tento seguir esse exemplo, não
me importando muito com a fonte do som, mas com o som propriamente e o que ele me
diz. É claro, sons diferentes têm significados diferentes, sempre tentamos traçar um som
até sua fonte, é muito emocionante jogar com isso. Por exemplo, o som de um violino
muito processado, que ainda mantém um pouco de sua características originais,
vagamente sugere que vem de um violino, mas alguma coisa aconteceu a ele ao longo do
caminho, e é diferente agora, evoluiu para um som independente, novo e original.

E sobre a música mexicana? Quais as suas influências?


Existem algumas influências muito importantes, Jorge Reyes e Antonio Zepeda são os
primeiros que me vêm à mente, e também a música do povo Huichol, especialmente seus
cânticos, que são muito bonitos. A cena de rock e eletrônica local de Tijuana e outras
partes do México foi uma influência muito importante também, selos como Mandorla,
Static Discos, Sound Sister, etc, bem como do coletivo Nortec, especialmente os
primeiros trabalhos.

Poderia nos falar um pouco sobre sua discografia? Penso que seus discos são bem
diferentes uns dos outros. Então gostaria de lhe pedir para compará-los, pelo menos
Martes (2002), Utopia (2004), Remembranza (2005) e Cosmos (2007).
Claro que são diferentes, pois cada um está ligado a uma situação muito especial na
minha vida. Vindo do trabalho com o Coletivo Nortec, que era mais orientado para club e
dance, Martes surgiu da necessidade de explorar o lado mais contemplativo da música.
Na época eu era muito influenciado pelo techno minimal e tech house no lado eletrônico,
e compositores como Morton Feldman e Kancheli. Durante o processo de composição
minha esposa estava grávida de nosso filho Oliver, que nasceu logo depois do lançamento
de Martes.

Utopia veio como resultado do sucesso de Martes, foi um disco auto-indulgente. Ter
artistas que eu admiro remixando a minha música foi muito emocionante e motivador.
Também aproveitei a oportunidade para explorar ainda mais as mesmas idéias estéticas
que comecei em Martes, através da inclusão de quatro novas faixas com o mesmo viés,
mas um uma estrutura um pouco menos convencional.

Remembranza foi feito durante a doença de minha mãe até sua morte, portanto é um
diário daqueles dias difíceis. Foi lançado logo depois de nos mudarmos para Barcelona…
Muitas mudanças ocorreram em torno desse álbum, que foi gravado entre 2004 e 2005.

E Cosmos foi feito questionando os fundamentos da vida, representa um esforço em olhar


o quadro maior. Eu o comecei logo depois de nos mudarmos para Barcelona e, embora
haja faixas como “Cielo” e “Cometa”, que são reminiscências de Martes, este álbum se
concentra mais no espaço entre sons, enfatizando o silêncio, e explorando as texturas
sonoras, mas sem ir muito longe da harmonia convencional e da melodia.

Como é seu processo de composição?


Eu trabalho diretamente com o som, eu quase não uso midi, então eu uso um monte de
plugins e dsps. Minha principal ferramenta é o Steinberg Cubase, eu faço tudo lá, exceto
a masterização. Começo importando um ou dois sons ou loops que soam interessantes,
que podem ser “de campo” ou gravações de estúdio, que vão desde vento até sons de
piano e tudo mais. Anexo um loop em torno deste som e começo a inserir efeitos sobre
ele até encontrar algo interessante. Em seguida, passo para o próximo canal, insiro um
novo som que complementa o anterior, e assim sucessivamente até a faixa ser concluída.
Por favor, conte-nos um pouco sobre as influências do Nortec em seu trabalho.
Foi uma escola muito importante sobre tudo relacionado à música, desde o processo
criativo até o lado do negócio.

E sobre o seu último trabalho, La Sangre Iluminada? Qual é a diferença de compor


para um filme?
Uma enorme diferença. Com o filme é a imagem que comanda o show, então não há esse
elemento externo que orienta o processo de composição, ao contrário de quando eu faço
música por si só que é o som que guia. Mas com este filme em particular, foi um prazer
trabalhar nele. Iván Ávila é um diretor muito generoso e aberto, e o filme em si foi muito
inspirador.

Como este será o seu primeiro show no Brasil (em dezembro, durante o Festival
Novas Frequências), gostaria de saber o que você espera do público do Rio de
Janeiro. E também se você costuma ouvir música brasileira.
Eu não tenho idéia de como o público brasileiro vai me receber. Estou sem expectativas,
porém muito animado para descobrir, e muito feliz porque vou ficar alguns dias extras
também. Quanto à música brasileira, eu sei muito pouco, lembro que minha infância foi
cheia de todos os clássicos da Bossa Nova. Mais tarde eu descobri compositores como
Villa-Lobos e, em seguida, o movimento tropicalista. Mas isso é tudo.

Que será a base das apresentações em Braga (durante o Festival Semibreve, neste
fim de semana)? E no Rio?
Em Braga será a versão mais recente da minha colaboração com AntiVJ, que tem
progredido de forma constante nos últimos dois anos. É uma espécie de micro/macro
viagem cósmica, projetada em uma tela widescreen semi-transpartente, colocada entre o
público e nós. Já no Rio, saberei no momento em que estiver no local e tiver uma idéia do
lugar. Levarei todo o meu material, velho e novo, para fazer um tracklist de acordo com a
vibe do local e do público.

E sobre seus próximos projetos?


Atualmente estou trabalhando com vários projetos, além do trabalho com AntiVJ. Outra
colaboração audiovisual que está em curso é com o artista italiano Saul Saguatti, com
quem eu tenho trabalhado por alguns anos. Estamos apresentando o Versailles Sessions,
juntamente com sua técnica de pintura ao vivo.

O Projeto Wixarika é uma comissão do festival Grenoble, na França, projeto que estou
desenvolvendo junto com meu bom amigo e músico de Tijuana, Edgar Amor. É inspirado
na música Huichol tradicional dos povos Wixarika do centro do México, por isso,
estamos trabalhando com dois músicos Huichol, o que é realmente um privilégio. São
eles Jose Luis (que é um Mara’akame, ou curandeiro/cantor) e Enrique Ramirez, seu
filho. Tivemos uma sessão de gravação com eles em Tijuana no ano passado, que
forneceram as bases para as composições destas gravações. No ano que vem eles vão nos
acompanhar no palco no Detours de Babel e outros festivais na França. Erik Truffaz e
Dominique Mahut também estão trabalhando com a gente, então é uma mistura grande de
mundos musicais.

Outro projeto, que ainda está em sua fase de desenvolvimento, é com a pianista francesa
Vannessa Wagner, com quem estou trabalhando em reinterpretações de músicas para
piano clássico, de Satie a Arvo Pärt. Já com Francesco Tristano, tenho uma colaboração
que vem e vai, e que já se existe há cerca de quatro anos. São principalmente compostas
de piano ao vivo e improvisações eletrônicas.

***

MAGA BO

Aparentado à línguas bantas como o quimbundo e o umbundo, o termo “quilombo”


remete às experiências comunitárias autônomas, constituídas basicamente por escravos
fugitivos que se formaram no Brasil durante os séculos de escravidão. Um quilombo era,
portanto, símbolo de resistência dos povos escravizados, mas também comportava
afrodescendentes, indígenas e até mesmo europeus brancos. Resistência, mas, também,
exercício de tolerância, desejo de afirmação e liberdade. Ingredientes que, guardadas as
devidas proporções, podem ser encontrados na música de Maga Bo, percussionista e
produtor americano radicado no Rio de Janeiro, prestes a lançar o seu segundo álbum de
estúdio, batizado sugestivamente como Quilombo do Futuro: “Hoje em dia, com o mundo
bem mais ‘globalizado’, as misturas tomam formas mais complexas e extremamente
interessantes. É nesse mundo que eu trabalho”, afirmou o artista em bom português, em
entrevista à FACT Magazine PT. Repleto de experimentações com ritmos afro-
brasileiros, Quilombo do Futuro é lançado gratuitamente hoje, dia 22, no Facebook do
produtor (mas o disco já pode ser ouvido no Soundcloud).

A trajetória de Maga Bo testemunha um daqueles espíritos criativos inquietos e sedentos


por coletar o máximo de expressões musicais mundo afora. O produtor viajou por muitos
países em busca de ritmos e gêneros, elaborando pouco a pouco uma sonoridade
diversificada e dançante, identificada com o rótulo global ghettotech (ou “bass
globalizado”). Esta se define pela recontextualização da lógica dos toasters e dos
soudsystems ligados ao dub jamaicano e, por conseguinte, ao hip hop, atravessada por
uma saraivada de beats e timbres oriundos de muitos países como Cuba, Nigéria, Etiópia,
Índia, etc. Alguns deles, pelos quais Maga Bo já passou, renderam álbuns como
Archipelagoes (2008), ou a mixtape Confusion of Tongues (2007), ambos editados pelo
Soot Records de DJ/Rupture — artífice e ponta de lança do global ghettotech e um de
seus parceiros mais celebrados. Mas em Quilombo do Futuro, os interesses atuais do
artista se tornam evidentes: “O que é que faz o meu coração vibrar? A resposta era
sempre os ritmos afro-brasileiros, que já eram presentes no meu dia-a-dia…” Ele se
refere à embolada, ao maracatu, ao baião, ao jongo, ao maculelê, à capoeira, ao samba
reggae, e demais ritmos e tendências espalhadas por todo álbum.

Na semana passada, Maga Bo lançou “Piloto de Fuga”, o segundo clipe do disco, dirigido
por Fernando Salis. O primeiro, “No Balanço da Canoa”, dirigido pelo cineasta Emílio
Domingos, conta com as participações de Rosângela Macedo e Marcelo Yuka e foi
lançado a cerca de um mês. Estão previstos também um álbum de remixes, com
produções de Digitaldubs, Buguinha Dub, Uproot Andy, El Remolón, entre outros, e o
show de lançamento, no próximo dia 02 com Marcelinho Da Lua, Digitaldubs Sound
System, Ras Schack, Leo Justi, Marcelo Mbgroove e o MC Funkero, que também
participa do disco.

***

“Confusion of Tongues”, título de um de seus álbuns, parece resumir suas próprias


intenções musicais. Você poderia nos contar como nasceu seu interesse pela música
e, mais especificamente, pela mistura de muitas linguagens musicais?
A verdade é que eu não sei muito bem! Comecei a tocar piano e percussão muito cedo,
depois baixo. Toquei em várias bandas — hardcore, hip hop, funk, reggae, mas foi
quando comprei um gravador de quatro pistas em cassete, bateria eletrônica e um
sintetizador que realmente comecei compor. Foi uma experiência libertadora, não precisei
dos outros para tirar um som.

Fui criado em Seattle, que na época (não sei como está hoje em dia) sempre tinha shows
de música africana e reggae. Vi King Sunny Adé umas cinco vezes, Thomas Mapfumo ia
todo ano, Burning Spear. Eu era craque em entrar sem pagar e fui a todos os shows que
podia. O que mais me chamava a atenção era música com DNA africano e jamaicano,
então corri atrás. Fiz minha primeira viagem sozinho pra Jamaica aos 18 anos, descobri o
ragga e o dancehall e me amarrei no som. Era a época da disputa entre Shabba Ranks e
Ninja Man…

Então, não foi necessariamente a mistura de idiomas que me interessou, e sim, a mistura
de linguagens músicais. Acho que estão falando tudo na mesma linguagem, mas com
sotaques diferentes. Sempre reconheci que as músicas que me interessavam tinham as
mesmas raízes — da África. Aí, fui atrás… Aos 23 anos, passei um ano e meio viajando
de mochila sozinho de Cairo até Cidade do Cabo em busca de música, mas achei muito
mais. Presenciei o fato de que nós, seres humanos, somos todos conectados. Viajando
pela terra (ao contrário do que viajando de avião), dá pra ver como todos nós somos
vizinhos. Existe uma continuidade na cultura, na música, na comida, na cor da pele, no
idioma, sotaque, costumes, roupa, tudo. No Cairo eles gostam de fuul (feijão) com pão,
no Sudão adicionam jibna (um tipo de queijo de cabra), mais pro sul, adicionam pimentão
verde ou tomates, em Eritrea é servido com injera (um tipo de panqueca fermentada), na
Etiópia é o tipo de feijão que é diferente… E por aí vai. A mesma coisa acontece com a
música, o idioma e a cor da pele. Você pode viajar para qualquer lugar do mundo e
perceberá essas similaridades. Hoje em dia, no mundo bem mais globalizado, as misturas
tomam formas mais complexas e extremamente interessantes. É nesse mundo que eu
trabalho.

Quilombo do Futuro possui forte sotaque brasileiro, não só por causa da língua
(predominantemente o português), mas pelos ritmos. Fale um pouco a respeito da
sua relação com o Brasil e a música brasileira.
Me mudei pro Rio de Janeiro em 1999. Agora é minha casa. Sou capoerista — angoleiro.
Comecei logo depois de chegar ao Brasil, que foi uma época muito difícil pra mim.
Costumo dizer que a capoeira, de alguma forma, me salvou. Aprendi através dela não só
os movimentos e como tocar os instrumentos, mas aprendi tambem muito sobre mim
mesmo. O meu mestre (o Mestre Camaleão, que está no disco também) sempre falava
que a solução de qualquer coisa reside dentro de nós. Cabe a nós procurá-la. A outra
coisa foi que a gente é capaz de tudo, se fizer pouco a pouco, passo a passo.

Procuro praticar esses ensinamentos todo dia. Na minha música, procuro escutar a minha
intuição. O que é que faz o meu coração vibrar? A resposta era sempre os ritmos afro-
brasileiros, que já eram presentes no meu dia-a-dia — na capoeira, na escola de samba
(toco repique e caixa). Então, a minha relação com os ritmos afro-brasileiros tem
evoluído bem organicamente.

Costuma-se dizer que a música é uma “linguagem universal”. Ninguém melhor do que
você, que já colaborou com artistas de diversos países e continentes, para especular em
que sentido se pode afirmar que a música é uma linguagem universal?
Acho que é verdade. A música, mesmo que seja complexa ou sofisticada, se trata de
quatro coisas — duração, tom, volume e timbre. São elementos comuns a todo tipo de
música. Então, é facil para as pessoas entenderem uma música qualquer, pelo menos
superficialmente. A profundidade vem com experiência e tempo.

Há um aspecto que chama a atenção em Quilombo do Futuro que é a sonoridade.


Apesar de comportar muitos ritmos e timbres, o disco soa homogêneo e coerente.
Como você obtém essa uniformidade, mesmo trabalhando com diversos artistas e
registros? É uma questão técnica? Uma concepção?
Gravo tudo no meu laptop. Tenho um sistema bem simples — placa de som boa, um
microfone bom, headphones e monitores. Assim, consigo gravar em qualquer lugar. Isso
dito, acho que o instrumento mais importante são os ouvidos e a cabeça da pessoa.
Milhões de pessoas possuem esse mesmo sistema, mas o resultado soaria de forma
diferente.

Mas, pra responder a sua pergunta, sim, é uma concepção — queria juntar a cultura de
sound system com os ritmos afro-brasileiros (que já existem há MUITO tempo no baile
funk, o que eu faço não é exatamente novidade). A cultura do sound system (que no Rio é
chamado “Equipe de Som”) existe quase tanto tempo quanto na Jamaica. E o baile funk é
baseado em ritmos afro-brasileiros (particularmente o maculelê) junto com outros
elementos.

As percussões constituem um dos aspectos mais instigantes de Quilombo. Por favor, fale
um pouco sobre a parceria com João Hermeto.

A participação do João Hermeto foi muito importante para o disco. Mesmo sendo
percussionista, não toco no mesmo nível que o João. Então, eu fazia as bases de uma
maneira bem crua, entrava no estúdio com ele, já com uma ideia do ritmo na cabeça.
Cantava o ritmo e ele trazia a levada para um outro nível. Geralmente, pedia pra ele tocar
o ritmo bem “careta” e fazer improvisações, depois eu editava. Fui selecionando os
instrumentos pra chegar nos timbres que imaginei. Foi ele que me ajudou manifestar o
que já estava na minha cabeça. João Hermeto é muito FODA! Mestre! Me sinto muito
privilegiado por trabalhar com ele.

E a relação com os artistas e as letras? Você deixou os cantores à vontade, ou pediu


um direcionamento?
Sempre procurei deixar os cantores à vontade pra fazer o que quisessem. Normalmente
dei alguma direção em termos do estilo e feeling, mas todos cantaram o que queriam
cantar. Gravei alguns cantores que ficaram de fora porque as letras não tinham relevância
pro conceito do disco. Não entrou nada de “putaria” ou bling-bling… Tem alguns
momentos descontraídos, mas a grande parte do disco traz uma mensagem de resistência
cultural, positividade, as realidades da rua e poesia.

Sua música faz parte de uma tendência mundial que tem em DJ/Rupture e DJ
Dolores dois representantes fundamentais. Alguns chamam de global ghettotech,
mas trata-se de uma música internacional, que não vê fronteiras musicais. A que se
deve essa universalização do discurso musical? À internet, por exemplo?
Obviamente começou há decadas ou até um seculo atrás (talvez mais), mas realmente
ganhou terreno com a revolução tecnológica, que posibilitou gravar música de alta
qualidade em casa. Nos últimos dez anos ocorreram tantas mudanças tecnológicas, que
transformou tudo — a indústria fonográfica, quem faz a música e até mesmo os estilos de
música. E todo mundo faz música no computador, que, eu diria, é o instrumento
folclórico mais universal que existe hoje em dia. E essa música que vem sendo chamada
de global ghettotech (e por aí vai — o uso desses rótulos já é uma outra questão
importante) é basicamente música folclórica — é feita por qualquer um e é baseada em
ritmos populares (o baile funk, por exemplo, é baseado em maculelê).

Diante da interação entre cultura digital e cultura online, como você vê hoje o
problema da autoria? E em relação à independência dos artistas?
Essa pergunta vale escrever um livro. Cabe ao artista dar crédito para as pessoas. Ponto.
É o certo. MAS… Às vezes não é possível, mesmo querendo. O que fazer quando você
acha uma música incrível em MP3, comprada num camelô na Etiópia, intitulada apenas
“faixa 3”? Já coloquei coisas assim em playlists e pedi para as pessoas me avisarem o que
era. E já descobri coisas maravilhosas!

Bom, descobri o meu disco sendo disponibilizado gratuitamente nos sites russos de MP3
— o disco ainda não foi lançado! Eu mesmo raramente uso samples ou loops no meu
trabalho. Faço tudo eu mesmo. Agora, não quero criticar o uso de samples ou loops — ao
contrário, acho que pode resultar em música extremamente sofisticada, bonita e profunda.
Mas o problema é que a maioria das pessoas não trabalham assim — baixam um loop da
internet, jogam no programa e já é! Já vi pessoas fazendo isso de Nova Iorque ao Rio de
Janeiro, de Casablanca à Nova Delhi. Parece que hoje em dia está mais dificil do que
nunca se sustentar com música, mas a gente luta, diversifica, adapta, dá um jeito.

No release de Quilombo do Futuro, lemos que você enfrenta problemas políticos em


suas viagens. Poderia nos contar um pouco a respeito.
Acho que todo músico internacional enfrenta problemas de imigração — é um dos
maiores obstáculos que existem hoje em dia. Muitas vezes, a burocracia de imigração é
incompatível com a maneira que a indústria da música funciona. Tem músicos super
talentosos tendo os vistos recusados o tempo todo. Fui chamado para produzir um disco
para uma banda senegalesa aqui no Rio. A embaixada brasileira no Senegal negou os
vistos dizendo que os músicos deviam ir pra europa, voltar pra senegal (com passaporte
carimbado) e depois pedir os vistos novamente para provar que não queriam imigrar pro
Brasil. Era uma banda que lotava estádios em Dakar e que tinha não só as carteiras,
verificando o status de músico profisional, e um convite/contrato do estúdio, mas também
tinham extrato do banco indicando €25.000 pra gastar no projeto. Foram negados. Essa
história não é novidade e é cada vez mais comum. Especialmente nos EUA e no Reino
Unido.

Fora isso, passei dificuldades para chegar em lugares onde eu queria visitar músicos,
gravar ou simplesmente curtir um show. No Congo, meu passaporte foi confiscado sem
motivo por militares corruptos na busca de dinheiro. É incontável o número de vezes que
eu levei uma “dura” (revista policial) indo ou voltando de um baile funk aqui no Rio de
Janeiro. Essas experiencias não são nada especiais, ao contrário, são muito comuns. E
olha que eu sou branco, homem e tenho passaporte dos EUA — relativamente
privilegiado. Não posso imaginar os problemas que alguém, por exemplo, do Togo ou do
Afeganistão tem em se apresentar num festival na Alemanha (ou EUA, ou Dinamarca
ou…). Mesmo em tempos de globalização, nos quais podemos viajar facilmente, está
cada vez mais difícil para a arte e a cultura atravessarem essas fronteiras. A
monetarização da cultura e da arte é problemática.

Como você concebeu o show de lançamento de Quilombo do Futuro? Há também


um disco de remixes.
Tem uns formatos diferentes dependendo do evento — vai de uma apresentação solo à
apresentação com dois percussionistas e um cantor. Em novembro, estarei em turnê pela
Europa com o cantor Jahdan Blakkamoore, que canta em duas músicas do disco. Sobre os
remixes, o critério para escolher os “remixadores” foi muito simples — chamei os amigos
cujo trabalho eu admiro. Tudo foi feito “no amor”. A Crosstalk, que está fazendo a
prensagem e distribuição, viu o vídeo de Kickstarter (projeto de crowdfunding que eu fiz
pra arrecadar fundos pro lançamento do CD) e ofereceu fazer um duplo vinil.

Para finalizar, conte-nos a respeito dos clipes? Quais foram as referências visuais?
O clipe “Piloto de Fuga” tenta tratar o assunto da vida cotidiana de um “piloto de fuga”,
sem romantizar a vida e nem fazer apologia pelo trabalho dele. O piloto se encontra num
momento difícil, de crise. Ele não sabe se vai ou não. As imagens das ruas, carros, luzes,
etc. são lembranças, visualizações da vida dele — ele tá dentro do carro lembrando essas
coisas, tentando decidir se vale a pena arriscar tanto. Quanto às influências visuais, um
grande fator foi que a gente não tinha dinheiro nenhum pra fazer o clipe — foi tudo feito
“no amor”. Influências específicas — a cena de abertura do Drive, a abertura do livro
“Abusado”, de Caco Barcellos, e a cena de abertura de “Amigos Improváveis”.

Já o outro clipe, “No Balanço da Canoa” (com Rosângela Macedo e Marcelo Yuka), está
mais na onda do conceito do disco em geral. Mostra uma realidade alternativa (ou talvez
nem tão alternativa) onde a música é proibida (que nem na época quando a capoeira ou
samba foram proibidos, ou hoje em dia com o funk proibido). Uma grande influência
para o clipe foi o livro Neuromancer do William Gibson, no qual uma communidade de
rastafaris sobrevivem numa aeronave espacial escutando dub. Tentei imaginar como as
músicas afro-brasileiras iam continuar no futuro….

***

STEPHEN O’MALLEY

Como se alimenta a imaginação dos artistas? Como se estabelecem os métodos


particulares dos grandes criadores? No caso de Stephen O’Malley, americano de Seattle,
— e, creiam-me, estamos a falar de um grande criador! — esta equação não parece tão
distante ou intangível. “Sempre fui fascinado por ouvir música, acho que é
provavelmente a minha principal fonte de inspiração”, declarou à FACT Magazine PT,
em entrevista por telefone. Músico, compositor e designer, O’Malley desembarca no
Brasil esta semana para uma única apresentação no Sónar São Paulo, com seu projeto de
drone-eletrônico, o KTL. Um oportunidade de ouro para assistir a um dos artistas mais
prolíficos e decisivos do ainda jovem século XXI.

Aos 37 anos, O’Malley acumula um volume de produção monumental, que ultrapassa


uma centena de discos. Como líder, criou bandas que desafiaram os limites do metal, o
redefiniram como gênero e expandiram suas fronteiras: Sunn O))), Burning Witch,
Khanate e o próprio KTL. Como membro, participa de projetos igualmente desafiadores
como o Æthenor, sem contar as colaborações com Merzbow, Nurse With Wound, Boris,
Jim O’Rourke, Oren Ambarchi, Melvins, entre outros. Sob a influência de uma banda
conterrânea, o Earth, O’Malley adquiriu reconhecimento explorando nuances do metal,
incorporando dark ambient, doom, drone e rock psicodélico às texturas rascantes das
guitarras headbangers, tingido-as de um caráter cerebral e sombrio. Tal inclinação à
experimentação, no entanto, alinha-se a uma percepção muito particular da música e do
som:
“Ao longo dos anos, percebi a música como uma forma tradicional de comunicação e
arte, passada através de gerações que, de alguma forma, continuaram explorando certas
ideias musicais. Algumas idéias são novas, mas um monte de idéias estão presentes em
manifestações fundamentais como o ritual, a cerimônia social, a atividade extra-
consciente. Trata-se de um atavismo da natureza humana, elementos arcaicos que tem a
ver com a necessidade de fazer música.”

Com o KTL, O’Malley se junta ao inglês Peter Rehberg (mais conhecido como Pita) para
lançar-se à experimentação eletrônica, buscando recriar, sobre outras bases, o clima
soturno dos discos de death e black metal que o acompanham desde a adolescência. A
dupla, que iniciou os trabalhos em meados dos anos 10, lançou em maio seu quinto
álbum, simplesmente batizado como V (eMego, 2012).

“Peter Rehberg e eu lançamos o último disco do KTL em 2009, e desde então,


trabalhamos em muitos projetos, como o Pita, algumas instalações de arte e, é claro,
concertos do KTL. Na verdade, nos mantivemos em atividade e fomos convidados para
trabalhar em alguns estúdios europeus especializados em música eletrônica. Então, o
disco resulta de uma variedade de projetos que nos tomou cerca de dois anos. Na
verdade, trata-se de um álbum mais ‘democrático’ que os anteriores, e tanto o clima
quanto o tom do disco testemunham o que eu e Peter fizemos juntos recentemente.”

Esta variedade se refletiu no resultado final do disco, que foi gravado em estúdios
tradicionalmente ligados à música eletrônica europeia, como o EMS, em Estocolmo e o
Meccas GRM, em Paris. Assim, V é talvez um dos trabalhos mais elaborados da dupla,
trazendo consideráveis variações de abordagem e composição entre as cinco faixas, ora
remetendo ao clima carregado dos trabalhos anteriores, ora dialogando com as
dissonâncias e sonoridades eletroacústicas presentes na obra de Gÿorgy Ligeti e Eliane
Radigue. A escatológica “Last Spring: A Prequel”, por exemplo, repleta de diálogos em
francês, advém do trabalho de Rehberg e O’Malley com a coreógrafa e diretora de teatro
Gisèle Vienne, ao passo que “Phil 1” se aproxima das experiências anteriores, dedicadas
à exploração dilatada dos drones. Mas o carro-chefe reside na participação do compositor
e produtor islandês Jóhann Johanson na apocalíptica “Phil 2”. Johanson compôs a
orquestração da faixa e convocou a Filarmônica da Cidade de Praga, conduzida por
Richard Hein, para executá-la, realçando o ambiente lúgubre com uma pletora de
detalhes.

“Quanto a Jóhann, sempre conversamos a respeito de trabalhar juntos, e achamos que


agora era a hora certa. Ele fez um arranjo para esta peça em um dos estúdios em que
trabalhamos e tivemos a oportunidade de gravar com uma orquestra. Trata-se de algo
muito difícil de se fazer, e por sorte tivemos esses recursos. Não estou certo de que
poderíamos arranjar esta música… Certamente não faríamos o arranjo para orquestra,
mas até mesmo a produção do arranjo…”

Sobre como pretendem levam esta diversidade para os palcos e, particularmente, como
conduzirão o concerto no Sónar São Paulo, O’Malley demonstra a intenção de abordar
sonoridades divergentes:

“No último concerto que fizemos em Moscou, no mês de março, resolvemos improvisar
sobre a estrutura de uma peça antiga, composta em 2007. Não fazíamos isso em uma
apresentação há muitos anos! Quando você toca em um festival como Sónar, onde há
tanta música ambient e eletrônica no programa, bem como um tipo de música mais
baseada no ritmo… Bem, Pete e eu provavelmente faremos algo completamente diferente
(risos). Pode ser mais black metal, mais pesado… Estou apenas estimando…”

Não há dúvidas de que seu métier é a música, muito embora manifeste habilidades que
não se resumem ao universo musical. Além de percorrer com desenvoltura o espectro de
expressões artísticas de nosso tempo, como instalações, performances, design e
experimentações de toda sorte, O’Malley foi designer de numerosas capas de disco
(Onehotrix Point Never, Boris, Earth, etc.), elaborou peças e instalações com a já citada
coreógrafa Gisèle Vienne, o escultor americano Banks Violette, o performer ialiano Nico
Vascellari, o coletivo suíço KLAT e o cineasta belga Alexis Destoop. Não pairam
dúvidas quanto ao aspecto imagético, quase cinematográfico — e, com certeza, dramático
— que perpassa todos os seus trabalhos, mas ele acrescenta:

“Uma das coisas mais interessantes da música é que você pode entrar em contato com ela
de muitas maneiras, não apenas através da audição … Sempre pensei a música como um
dispositivo visual, mas também ‘físico’. A música não é simplesmente direcionada para
os ouvidos, parte de seu poder de atração advém do fato de que ela estimula a imaginação
de maneiras diferentes. Me surpreende o fato de que as pessoas possam ser estimuladas
pela música que eu faço, mantendo uma relação ‘visual’ com a escuta. Porém, a grande
ilusão é que a audição é um sentido isolado! Pois ela tem a ver também com o toque e a
visão.”

Na carreira de O’Malley, a improvisação ocupa um lugar de destaque, desempenhando


talvez o papel extático, “extra-consciente”, que ele reivindica para as manifestações
musicais. No ano passado, o artista se apresentou completamente sozinho em uma venue
em Jerusalém chamada Uganda. Desta apresentação, resultou uma fita cassete de
quarenta minutos batizada Romeo, e editada pelo selo Ideologic Organ. O artista nos
falou sobre como é estar em um palco completamente sozinho:

“Evitei improvisar sozinho em público por um longo tempo. Na verdade é muito


assustador, porque basicamente você explora seus próprios limites. Em grupo, há uma
estrutura, você pode se resguardar em suas próprias limitações. Às vezes, se você está
improvisando algo que não é realmente bom, você pode se escorar em alguém como
Steve Noble (risos). Quando você está improvisando por si mesmo, está nu e exposto.
Sobre um projeto solo, a pergunta que me vem à cabeça é: ‘isso vale a pena não para
mim, mas tem valor para a experiências das pessoas?’ Improvisar com as pessoas implica
em alguma forma de comunicação, mas quando você está sozinho é outro exercício. É
como assistir ao crescimento de uma personalidade. Não é que não seja prazeroso, trata-
se de um desafio interessante.”
Pergunto a respeito da guinada considerável do Æthenor, que além de Daniel O’Sullivan
e O’Malley, contou em seu último trabalho, En Form For Blå (VHF, 2011), com
Kristoffer Rygg e com o grande baterista Steve Noble (parceiro de Derek Bailey, entre
outros), com quem O’Malley dividiu recentemente o acachapante St. Francis Duo
(Bo’Weavil, 2012). A mudança se deve não somente à inclusão momentânea do baterista,
mas também a outros fatores.

“Em primeiro lugar, o Æthenor nunca foi realmente uma banda direcionada para as
apresentações. Na verdade, fomos convidados para tocar em um festival, cerca de três ou
quatro anos atrás, e Daniel O’Sullivan, que é como o líder da banda, trouxe Steve Noble
para o projeto. Foi a primeira vez que tocamos juntos ao vivo e, é obvio que passou a soar
diferente, porque é uma outra coisa. Os três primeiros discos do Æthenor são basicamente
produções de estúdio, e falando por mim mesmo, tenho muito pouco a ver com esses
discos, é algo que eu honestamente não domino. Quer dizer, eu sei quais são as partes em
que eu estou tocando (risos)… Mas quando começamos a tocar ao vivo, aí a coisa ficou
real, pelo menos para mim. Então, é um tipo diferente de projeto. Noble já não esta mais
envolvido no Æthenor, mas, de certo modo, houve sim uma segunda geração do grupo
que contou com sua presença. Ora, tocar com Steve Noble foi um prazer, e sempre que
conseguimos cumprir uma tarefa diferente em conjunto é realmente estimulante!”

Para finalizar, pergunto a O’Malley a respeito do selo Ideologic Organ, distribuído pelo
eMego de Peter Rehberg. Como se não bastasse sua hiperatividade como artista na
música e nas artes visuais, o autor é o responsável pela curadoria e a programação visual
do selo. Desde 2007, o Ideologic Organ se dedica a lançar trabalhos de O’Malley e
companhia, mas também a desvendar autores misteriosos como Ákos Rozmann e Eyvind
Kang. Trata-se de um trabalho em progresso, segundo as palavras de O’Malley:

“Estou tentando descobrir qual é o conceito do selo. Acho que trata-se de uma
composição conceitual. Você pode ter Ákos Rozmann, que é um compositor eletrônico, e
algo como Sunn O))), trabalhando em um mesmo universo. E ainda assim, tento
descobrir que tipo de universo remete ao conceito do selo. Acho que ainda estamos longe
de defini-lo. Estamos ainda definindo a identidade visual, trata-se de um selo diferente de
todos nos quais já trabalhei. Demora um tempo até que se consolide uma identidade.”

***

SUN ARAW
Que o leitor não estranhe o título desta entrevista. Mas basta uma olhadela nos vídeos do
Youtube, nas páginas da rede, nas revistas e fotos que destacam Cameron Stallones ou
algum de seus projetos. Estaremos diante da personificação do equilíbrio trágico, pela via
da não agressão, em busca de uma “outra consciência, estados alterados, experiências
elevadas”.

A impressão é a de que se trata de um dos herdeiros do ideiário hippie de São Francisco e


Los Angeles, mas não é bem assim. Conhecido como Sun Araw, Stallones, morador de
Long Beach, é talvez o principal representante do rock psicodélico norte-americano.
Desde 2007 vem nos presenteando com algumas das mais delirantes jams do nosso
tempo.

Stallones compõe sua música a partir da mistura de uma infinidade de gêneros,


valorizando a improvisação e esculpindo obsessivamente o resultado, até chegar à forma
que julga perfeita: “O objetivo é remover toda a intenção do início do processo, e então
preenchê-lo com intenções durante a fase ornamental”. Ancient Romans, seu último
álbum, testemunha esta concentração com vigor e descontração extraordinários.

O artista vem ao Brasil em dezembro para o Festival Novas Frequências, com apoio da
FACT Magazine PT. Entre as brumas, reflexões, The Congos (sim, The Congos!), cores e
música com alto teor de vertigem e delírio, surge um indivíduo articulado, hiper-
informado e, ao que tudo indica, extremamente consciente das peculiaridades de sua
geração e da posição do seu trabalho na atualidade. O que para um rapaz de vinte e
poucos anos não é pouca coisa.
***

Cameron, selecionei algumas dentre as muitas características que atribuem ao seu


trabalho: “épico”, “psicodélico”, “circular”, “drone pesado”. Em uma de suas
entrevistas, você diz que a expressão “sun araw” pode ser entendida como um
“retiro sagrado”. De onde vem essa característica de “mântrica” em sua música?
Tenho um interesse muito sério numa “outra” consciência, estados alterados, experiências
elevadas. A música é uma ferramenta muito poderosa para a criação de tais espaços na
mente, e alguma coisa na repetição, no mantra são particularmente eficazes. É uma idéia
muito interessante, em primeiro lugar, que através da repetição de uma simples idéia algo
novo e muito maior pode brotar, aparentemente do nada. Ela implica uma outra direção
no espaço, e nos ajuda a aprender sobre como interagir com ele.

Seus álbuns parecem grandes sessões de improvisação, mas, ao mesmo tempo, soam
como se fossem minuciosamente concebidos e editados. Como você avalia a tensão
entre a espontaneidade da improvisação e o rigor do conceito no seu trabalho?
Improvisação tem que ser o ponto de partida, há uma energia e uma conexão que você
alcança apenas em momentos de descoberta e que não podem ser simuladas. Mas, sim,
tudo fica muito meticuloso após essa fase inicial. Eu gasto muito tempo misturando e
esculpindo as improvisações, acrescentando e subtraindo coisas. O objetivo é remover
toda a intenção do início do processo, e então preenchê-lo com intenções durante a fase
ornamental.

Conte-me a respeito de sua formação musical: o que você escutava antes de


ingressar para o Magic Lantern? Quais suas principais influências musicais? E
extra-musicais?
Fui um nerd da música por muito tempo, e passei por uma série de fases. Pouco antes de
Magic Lantern eu tinha ficado um longo período obcecado pela Soul Music, que ainda
amo. Magic Lantern surgiu a partir um monte de razões extra-musicais, mas coincidiu
com alguns de nós indo mais fundo no krautrock e numa segunda onda de psicodelia do
que jamais tivemos antes. Também Sun Araw and Magic Lantern tem muito a ver com
um amor coletivo pelo cinema, acho que há muita inspiração vinda do mundo do cinema
em ambos projetos.

Ouvindo seus discos, percebe-se que você despreza a integridade dos gêneros
musicais. Podemos ouvir de tudo, desde o rock até o afrobeat, passando pelo funk,
jazz, música eletrônica, etc. É possível continuar lidando com a ideia de gênero na
era da informação digital?
“Desprezar” talvez seja uma palavra forte. Eu as respeito pelo que são, mas o fato é que
para alguém da minha idade, crescendo na geração que cresci, eu não sou capaz de
“legitimamente” participar de qualquer gênero em particular. Eu acho que é o preço que
se paga por um acesso total à cultura mundial. Na verdade acho que todo o sistema de
pensamento sobre o ser humano é destrutivo: “válido”, “inválido”, que tem um “direito”
de fazer um certo tipo de música. “Autenticidade” é um conceito incapacitante para o
espírito humano, é a retrospectiva em perspectiva, uma qualidade que só existe para a
“transcendência” acadêmica (geralmente de ocidentais brancos), e mantê-lo para sempre
ligado à sua própria insegurança. Claro que a autenticidade real é muito importante, mas
você consegue obtê-la de uma forma totalmente diferente: sendo um ser humano e
interagindo com outros seres humanos com o coração aberto.

Em seu último trabalho, Ancient Romans, uma série de novos instrumentos foram
incluídos, tais como trumpetes e saxofones. Existem limites para a paleta sonora do
Sun Araw? Cada novo álbum do Sun Araw trará concepções de instrumentação e
arranjo diferentes?
Sendo o meu projeto solo, Sun Araw está sempre girando em torno de tudo o que me for
interessante naquele momento. Estou sempre interessado em instrumentos diferentes,
texturas diferentes, e como se apresentam. Quero que este avião super-sônico se
mantenha em expansão.

A propósito, como foi concebido Ancient Romans, seu último álbum? Alguns
elegeram como seu trabalho mais palatável, mas a repetição, o improviso e o caráter
“mântrico” permanecem. Ancient Romans é um álbum de transição?
Eu acho que pode ser mais palatável, simplesmente porque foi melhor gravado do que os
anteriores. Por outro lado, sei que minha perspectiva é distorcida, mas acho que é mais
estranho do que quaisquer dos meus discos anteriores. As estruturas das canções são mais
estranhas, as texturas são muito difíceis. Para mim é um disco incrívelmente espiritual, e
é uma expressão de algumas idéias poderosas que estavam me movendo na época.

Ancient Romans parece seu trabalho mais equilibrado, pois podemos observar
certas polaridades: tonal/atonal, improviso/composição, melodia/noise,
instrumental/canção. Como interpreta esta característica em relação a seus
trabalhos anteriores?
Isto é interessante. Acho que você está certo. Não foi consciente, mas em quase todas as
músicas há ideias contrabalançadas muito particulares. Texturas para detonar outras
texturas, uma guitarra melódica combinada com algo muito mais atonal. Acontece
intuitivamente quando estou gravando. Mas a idéia é muito poderosa, ela ilustra que os
opostos não são resolvidos pelo extermínio de um deles, mas por uma nova perspectiva
na qual ambos podem ter seu lugar paradoxalmente sem se agredirem.

Como este será o seu primeiro show no Brasil, no Festival Novas Freqüências,
gostaria de saber o que você espera da plateia do Rio de Janeiro. E também se você
costuma ouvir música brasileira.
Eu não tenho certeza do que esperar, mas estou incrivelmente animado de ir pro Brasil.
Eu não sei muita coisa sobre música brasileira, mas eu amo os discos psicodélicos feitos
aí na década de 70, especialmente Marconi Notaro, No Sub Reino Dos Metazoários, que
é um disco muito especial para mim. Também o Paêbiru álbum de Lula Côrtes e Zé
Ramalho e, claro, Os Mutantes.

Qual será a base das apresentações no Rio? O que podemos esperar de um show de
Sun Araw?
Atualmente o show da banda Sun Araw consiste em 3 peças. Nós tocamos músicas de um
monte de álbuns e também fazemos um monte de improvisações. A coisa ao vivo é
construída inteiramente por conta própria, por isso é muito diferente dos discos.
E sobre seus próximos projetos? Ouvi falar sobre um novo projeto do Magic
Lantern e uma colaboração com o The Congos, é verdade?
Não sei ainda sobre o Magic Lantern, é algo para o qual ainda estamos esperando que o
universo manifeste. Mas eu acho que vai acontecer. O disco com o The Congos chegará
em breve, no início de 2012. Passamos 10 dias na Jamaica gravando, e foi a viagem mais
incrível, em todos os níveis. Estamos prestes a voltar! Também enquanto estávamos na
Jamaica, fizemos um monte de outras músicas com artistas do dancehall local, e estamos
abrindo um selo chamado DUPPY GUN PROD, para lançá-los em singles de 12”. O
primeiro será lançado em uma semana ou duas.

***

CHINESE COOKIE POETS


O trio carioca Chinese Cookie Poets lança hoje o single En La Mano Del Payaso, como
prelúdio para Worm Love, primeiro álbum do grupo. Junto ao single (que você pode
escutar no player abaixo), o CCP também disponibiliza o clipe hilário da faixa “En La
Mano Del Payaso”. É motivo de júbilo para todos aqueles que admiram o noise-rock-nu-
funk-free-improv-no-wave-out-choro-free-jazz-latin-punk-proto-samba com o qual o
grupo vem angariando fãs não somente pelas bandas de cá. Além do Rio de Janeiro
(capital e Região dos Lagos), São Paulo (capital e inteiror) e Vitória, o CCP fez 5 shows
em 3 cidades do Chile. Nada mal para um grupo de música experimental, que iniciou os
trabalhos a menos de dois anos em uma cidade inóspita para este tipo de atividade.

Formado por Renato Godoy (bateria), Felipe Zenícola (baixo) e Marcos Campello
(guitarra), o Chinese Cookie Poets lançou dois trabalhos até o momento: o EP homônimo
de 2010 e o bootleg Dragonfly Catchers and Yellow Dog. Porém, em 2012, o grupo
promete pelo menos mais 3 lançamentos até o meio do ano, entre trabalhos de carreira e
parcerias. Quem estiver interessado em conferir o som do grupo ao vivo, terá a
oportunidade no próximo fim de semana, dia 21 de janeiro, quando o CCP se apresentará
na Casa do Mancha, em São Paulo, ao lado de outra boa surpresa carioca de 2011, o
Sobre a Máquina – em ambas as apresentações, a participação do saxofonista Alexander
Zhemchuzhnikov. Abaixo, um bate papo virtual que tivemos com os integrantes do
grupo.

***

Apesar de ter iniciado os trabalhos em 2010, o grupo apresenta um som maduro.


Comecemos, então, pelo começo: como surgiu o Chinese Cookie Poets? O que vocês
faziam antes de formar a banda?
Renato: Foi um processo de maturação bem natural e lento. Eu e Felipe tocamos desde o
colégio, 1998. Tivemos dois projetos com uma direção puxada pro improviso, o Bossal
(2000-2005) e o Muwei (2005-2009). O Felipe já conhecia o Marcos (que na época
tocava no Fanfarra, depois no Farta Cecília) do estúdio de ensaio onde trabalhava e
sempre esbarrávamos os três pelo Plano B na Lapa por volta de 2008. Após o fim do
Muwei em 2009, eu e Felipe conversávamos sobre testar umas formações mais enxutas,
duos, trios, abordando mais o free jazz, numa onda de fazer mais shows e praticar
improvisação. Marcos e Felipe já esboçavam umas idéias, trocavam uns arquivos,
marcavam umas sessões de improviso de baixo e guitarra (de onde surgiu “Flat Tire
Bikes” do primeiro Ep).

Um dia bebendo uma cerva, Felipe me apresentou umas faixas com umas programações
de bateria, pensando em fechar aquele material num EP. Na hora que ouvi gostei muito
da proposta, mas achava que o resultado soava muito aquém do que seria se fosse alguém
tocando mesmo. Foi quando propus de gravar umas baterias em cima, apenas pra
registrar o EP sem intenção de formar uma banda. Em março de 2010 marcamos a sessão
de gravação e aproveitamos pra registrar uns takes de improvisos. Os caras editaram tudo
e me mandaram o material pronto. Ouvi o resultado, achei excelente e me toquei que
precisava seguir com o projeto. Logo depois em julho surgiu a possibilidade de fazer um
show na Audio Rebel (estúdio carioca) com o EKE (trio holandês de free jazz).
Foi quando o Felipe, depois de todo o processo de gravação/edição e já com as músicas
prontas, me apresentou ao Marcos na véspera do primeiro ensaio pro show. Fizemos uns
três ensaios e o show rolou. Aí a banda começou de fato, em agosto de 2010. O Ep
mesmo só foi sair em dezembro.

As influências parecem evidentes: free jazz e demais sonoridades instáveis, de Sun


Ra a Otomo Yoshihide. O que vocês costumam escutar hoje? E quais os artistas
contemporâneos que mais influenciam o CCP?
Renato: Otomo é o cara, eu diria. Keiji haino e Tatsuya Yoshida, a cena de free europeia:
Peter Brötzmann, Mats Gustafson, Zu, Moonchild do Zorn. A cena de Nova york anos 80
e 90, muito fértil, James Chance, Marc Ribot, DNA e Aggregates (trio do Arto Lindsay
em 1995).

Felipe: Otomo é sem dúvida uma grande influência, assim como outros artistas japoneses
como Boredoms, Melt Banana, Merzbow... Sobre nosso processo de edição/construção
dos arranjos me influencio muito pela linguagem usada pelo duo Haino/Yoshida,
mencionado pelo Renato. Fora isso John Zorn, free jazz em geral, Fantômas, Mr. Bungle,
a cena No Wave... Também os trios Primus, Zu e Trans AM. “Baixisticamente” é
impossível não impregnar o CCP com o som do Les Claypool, do Primus, faz parte da
minha (de)formação como instrumentista.

Marcos: Frank Zappa e Alvin Lucier são grandes influências no que diz respeito à
composição. Na guitarra, muito Derek Bailey, Marcelo Birck, Raphael Rabello, Brian
May, John Russel, Fred Frith, Pepeu, João Bosco, Arto Lindsay. Atualmente tem o
Hamilton de Holanda, Alex Macacek, Allan Holdsworth (não tão atual), Scott
Henderson.

Como é o processo de composição do CCP? Quais as estratégias que vocês adotam


no sentido de gerenciar os momentos de composicão e improviso?
Marcos: Temos dois processos principais de composição: a improvisação, de onde
tiramos temas criados coletivamente, e a apresentação de idéias de cada um, que
geralmente é feita através da produção de uma gravação tosca para indicar aos outros o
caminho imaginado pelo autor.

O primeiro caso subdivide-se em duas frentes, sendo elas a gravação de sessões de


improviso para posterior edição (onde surgem as músicas do disco), e a levação de som
vendo o que sai, que também é gravada, mas de forma documental pra não perdermos o
que acontecer de bom. No segundo caso, da música já imaginada por alguém, lapidamos
até ficar decente pra ser tocada ao vivo ou lançada em disco – e geralmente a versão
gravada é bem diferente da tocada em shows.

Respondendo a segunda parte da pergunta, nossa forma de conjugar


composição/improvisação é mais empírica do que teórica; testamos partes improvisadas
em meio a compostas e inserimos partes compostas entre improvisações. Outra situação é
quando a música não tem um tema definido (o que geralmente significa que é mais
textura sonora, ou então extremamente complexa para ser reproduzida literalmente).
Nesse caso ou usamos a idéia geral da coisa como base pra improvisar ou então partimos
para algo livre mesmo.

No Myspace está escrito: “Para os sedentos por comparações, CCP percorre


diversos estilos compostos e hypados, como Noise-Rock, Nu-Funk, Free-Prov, No-
Wave, Out-Choro, Free-Jazz, Latin-Punk, Proto-Samba...” Classificar o trabalho é
realmente importante ou trata-se de uma ironia? Ainda existem “gêneros” hoje em
dia?
Felipe: Em um primeiro momento sentimos a necessidade de “classificar” o som da
banda no release, pois acabávamos de surgir e ainda apresentávamos uma sonoridade que
soaria “estranha” para a grande parte das pessoas que ouvissem. Por isso sentíamos a
necessidade de contextualizar nosso som dentro das nossas influências. Mas com certeza,
fizemos isso intencionalmente de forma irônica, uma auto-zoação, pois nessa hora é
muito fácil acabar com um discurso pedante, excessivamente intelectualizado. E eu
pessoalmente vejo todo o “escracho” existente no CCP como uma forma de quebrar esse
excesso de pedantismo que permeia o meio “experimental”.
Falem a respeito das gravações dos dois Eps. Foram retiradas integralmente das
apresesentações? Vocês fazem algum tipo de pós-produção?
Renato: Nosso processo de gravação até agora tem sido um exercício interessante, pois
trabalhamos muito na pós-produção, construímos e arranjamos muito na edição criativa
dos improvisos, que gera resultados sempre improváveis, caminhos que não seguiríamos
naturalmente. Depois do disco pronto, tem todo o trabalho de sentar e estudar o que foi
criado mecanicamente. Por isso, no show, os arranjos ganham um sabor bem diferente,
mais fluido pois usamos o espaço dentro das estruturas para executar tudo mais solto.

Mas tudo isso depende do conceito inicial que vamos seguir no disco, sempre estamos
conversando sobre essas possibilidades se vamos gravar ao vivo, separado, editar,
sobreposição, 4tracks… Até agora, em estúdio não gravamos nenhuma música composta
previamente, todos os arranjos foram feitos durante a pós, processo que usamos pra fazer
o primeiro Ep e o próximo álbum. Já o bootleg Dragonfly catchers and yellow dog
(segundo Ep) é um show gravado na Audio Rebel na íntegra.

De qualquer forma, parece que há uma lacuna entre as gravações dos dois Eps e as
apresentações ao vivo, pois percebe-se uma certa dificuldade para levar as nuances para o
estúdio e vice-versa. Isto é previsto, ou vocês pretendem criar arranjos específicos para os
próximos lançamentos?

Marcos: Na verdade o primeiro Ep foi feito em estúdio, sem sessões em que os três
presentes, apenas takes em duplas e solos, com muita edição (onde surgiram os temas),
num trabalho sem muita organicidade, mas com o objetivo justamente de criar algo
minimamente orgânico – o que consideramos que foi atingido.

O segundo Ep foi o contrário, uma gravação tosca de um show nosso que ao ouvirmos
achamos boa pela musicalidade. E nesse sentido ela mostra o fim do caminho de um dos
nossos processos de composição, onde improvisamos/editamos em estúdio e depois
aprendemos a tocar as músicas.
Com relação à diferença entre o show e os discos, na verdade às vezes temos dificuldade
para levar as nuances da música editada para a situação de tempo real, pois o que está nos
discos muitas vezes tem um suingue estranho, difícil de ser realizado ao vivo. Além
disso, nos shows acontece muita coisa extra-musical que nos levar pra outros lugares
aonde uma sessão em estúdio não tem chegar, assim como sessões também levam a
lugares por onde os shows não passam.

E sobre essas duas novas faixas? Serão parte de um EP ou um álbum de formato


convencional?
Felipe: Estamos lançando agora o single En la mano del payaso, como uma prévia do
disco que lançaremos até final de fevereiro, Worm Love, pelo selo Sinewave. Esse será
nosso primeiro álbum, com 10 faixas. Elas foram produzidas de forma similar ao
primeiro EP: fizemos uma sessão de improviso no início de 2011 na Audio Rebel, e
durante o processo de pós-produção fomos editando, montando os arranjos a partir do
material bruto. Ficamos satisfeitos com o resultado, bem cru, visceral, e ao mesmo tempo
heterogêneo.

Há duas principais diferenças em relação à produção do primeiro Ep: dessa vez a


gravação foi feita com os três tocando juntos, e o processo de edição dos improvisos foi
em geral mais radical que o do primeiro EP. Nesse álbum a edição é mais explícita,
funcionando como um quarto instrumento mesmo. O disco ainda conta com uma
participação especial em uma das faixas. Agora o desafio está sendo em “tirar”os arranjos
do disco pra tocar ao vivo… Quem for no show em SP, na Casa do Mancha (no próximo
dia 21 de janeiro) já vai ter uma amostra desse material.

Além do single, estamos lançando hoje nosso segundo clipe, da música En la mano del
payaso: um clipe pop pra uma música pop, é nossa "Ana Júlia", digamos assim.

O som do Chinese é, evidentemente, direcionado para um público específico,


interessado em experiências, noise, e demais sonoridades. Como vocês avaliam as
condições atuais de produção, distribuição, consumo e fruição para quem pensa a
música fora das grandes estratégias de mercado?
Renato: Acho que nunca rolou tanta liberdade pra produzir. Distribuição é um grande
problema, poucos selos especializados, poucos blogs interessados. Acredito que quando o
foco é a música, não o mercado e se tem tempo, naturalmente as coisas começam a
funcionar. O público vai procurando, umas pessoas passam pra outras. Pessoalmente acho
que a divulgação “boca a boca” sempre foi o melhor meio, onde os músicos e projetos se
criam, na rua. Apostamos muito na cena experimental do Rio, excelentes músicos,
linguagens distintas, público pequeno mas fiel, apesar de micro é única. Começou com o
Fernando no PlanoB uns anos atrás (onde participamos com o Bossal e Muwei 2005, no
primeiro festival de música experimental carioca, o Outro Rio). Atualmente vem
ganhando tentáculos no Quintavant (um coletivo de músicos criado em 2011 que vem
organizando shows e sessões de improviso na Audio Rebel). É muito importante a
criação de uma cena, um local definido onde músicos e o público troquem ideias
regularmente, se criem e registrem projetos. Não somente situações esporádicas de um
show ou outro, uma vez por ano, como era um tempo atrás. Com uma cena forte,
consequentemente os projetos amadurecem e surge o interesse dos blogs, selos daqui e de
fora, estamos caminhando.

Felipe: No âmbito da música experimental, falando em Brasil, há ainda o desafio de


consolidar novas estéticas para um público ainda desinformado. Acho que hoje é
importante o artista sair do seu nicho, e tocar para públicos diversos. E junto com esse
processo, a tríade artista – mídia – público precisa se auto-sustentar/alimentar. Quando
tocamos fora do Rio, ocorre um fenômeno interessante. Em todo show, geralmente parte
do público acha aquilo tudo sem muito sentido… Mas ao menos uma pessoa nos procura,
entusiasmada, dizendo que nunca ouviu nada parecido com aquilo e que o som é “muito
doido”! Por isso é importante que todos esses agentes atuem paralelamente, o artista
divulgando o som, e a midia contextualizando aquele momento; nós não participamos de
nenhum tipo de revolução musical, existem milhares de artistas, cenas pelo mundo afora
nas quais nos espelhamos e é preciso que esse público interessado tome conhecimento do
contexto no qual a banda atua. Tanto para poder usufruir de um imenso e interessante
universo musical, já que há o interesse, quanto para, a partir disso, poder usufruir mais do
que nós estamos fazendo, para além do “muito doido”. Mas para isso, acho que falta um
diálogo maior os artistas e o público (maior circulação, viver a música na prática, como
disse o Renato) e especialmente maior cobertura (embasada) das mídias alternativas,
blogs, etc… Creio que assim teremos uma cena forte, concisa e de melhor qualidade
também, porque a formação de um público informado e crítico influenciaria diretamente
na produção artística.

Mesmo com todos os problemas e limitações, é evidente que há uma cena


experimental se consolidando no Rio. Ela pode ser mínima, parcial, mas é maior que
há 10 anos atrás. Claro que o Fernando e o Plano B tem importância fundamental
nisso. Mas como vocês avaliam a emergência não só da Audio Rebel e do Quintavant
como prepostos criativos, como também o surgimento de bandas e projetos
dedicados à música experimental?
Marcos: Não sei se dá pra dizer que há mais atividade experimental hoje do que há dez
anos atrás, mas talvez mais contato entre os vários tipos de experimentação, consolidando
talvez o que você chama de “cena experimental”. Nesse sentido imagino que os espaços
estejam também menos parciais, ortodoxos, podendo-se fazer projetos diferenciados, sem
a necessidade de ser seguidor de uma estética específica.

Imagino a Rebel e o Quintavant como decorrências da atividade incessante do Plano B,


uma expansão da proposta de apresentação de coisas sonoras quaisquer para um público
interessado. E é interessante ver que ainda assim cada lugar tem suas especificidades, o
que enriquece ainda mais a experiência de frequentá-los.

Finalmente, acho que muitos contatos são criados nestes lugares, muitos choques
estéticos são vividos e muitas questões levantadas, e é isso que coloca o
experimentalismo na roda, confrontando opiniões e gerando discussões, levando sempre
ao contato com algo desconhecido ou ignorado. Daí surge um novo caminho, geralmente.

O que vocês curtem hoje na música brasileira?


Marcos: Eu ouço Teresa Cristina com grupo Semente, Hamilton de Holanda, João Bosco,
Arismar do Espírito Santo, Chico César ...

Felipe: Do que há de novo, Domenico Lancelotti, Bixiga 70, Duplexx, Cidadão Instigado,
Kassin, Negro Leo, Abayomy Afrobeat Orquestra, Ava Rocha…

Renato: Hoje em dia Rubinho Jacobina, Negro Leo, Cidadão Instigado, Kassin,
Domenico, Ava Rocha, Rumpilezz Orquestra, Alberto Continentino (um dos discos mais
clássicos que ouvi em muitos anos, deve sair esse ano), Stephane San Juan, Orquestra
Contemporânea de Olinda também... Muita coisa boa acontecendo no Rio!

Fale um pouco a respeito do show do dia 21, na Casa do Mancha, em SP.


Felipe: Esse show vai ser foda! Há algum tempo estamos pra marcar um show com o
Sobre a Máquina, que é uma banda bem interessante do Rio,
dark/pop/ambient/post/drone! Nosso set será diferente dos últimos shows que fizemos.
Voltamos a tocar músicas que havíamos parado de tocar, aproveitaremos a presença do
grande saxofonista Russo/carioca Alexander Zhemchuzhnikov no show do SAM e
faremos um improviso em algum momento. E, como falei antes, “tiramos” dois arranjos
do Worm Love. Vai ser divertido. Levaremos cópias do single pra SP, em mini CD, pra
quem quiser.

Depois do Worm Love, quais os próximos passos do CCP?


Marcos: Temos três discos que já estão gravados, em diferentes fases de produção, e
pretendemos lançar todos no primeiro semestre de 2012. Os três são parcerias com
músicos diferentes, cada um com uma direção bem peculiar. Uma das parcerias foi com o
saxofonista argentino Sam Natch, inclusive divulgamos uma das faixas desse disco na
ultima sexta-feira (13/01) no podcast do blog A Camarilha dos Quatro. Além disso,
faremos uma turnê nacional com o trio instrumental suiço MIR no final de
fevereiro/começo de março. Ainda temos um disco conceitualmente amarrado a ser
gravado esperamos que em meados desse ano, e vamos tentar lançar até dezembro; e um
outro acústico, mas esse ainda está no mundo das idéias. Apesar de tanto material,
estamos mais preocupados agora em tocar, rodar por aí fazendo shows e conhecendo
quem trabalha com sons mais experimentais, ou pelo menos instrumentais.

ROB MAZUREK
Uma das obsessões criativas de Rob Mazurek, ou pelo menos uma das mais recorrentes,
diz respeito ao seu procedimento de trabalho: “layering”, quer dizer, sobreposição de
camadas, de texturas, de culturas, personalidades, possibilidades e trabalhos: “Eu elaboro
minhas obras visuais de uma forma semelhante a que organizo o SOM: sobrepondo
camadas, dinâmicas de cor, rabiscos estáticos e vermelhos pesados se misturam em uma
espécie de nebulosidade do movimento cósmico, embora esteja aparentemente parado.”

Em constante movimento após lançar três discos nos últimos meses — as Skull Sessions
com o octeto, Eclusa com o Objeto Amarelo e Stellar Pulsations com o Pulsar Quartet —,
o compositor, trumpetista e artista plástico americano relatou ao Matéria um de seus
projetos mais mirabolantes. Há alguns anos, Mazurek vem desenvolvendo as partes que
integram The Book of Sound, ópera eletroacústica de ficção científica, baseada nos
escritos do poeta e cineasta brasileiro Helder Velasquez Smith. Sobreposições,
novamente: “Usando o SOM, o VISUAL e o TEXTO, desenvolvo sete horas de festa
para os olhos e ouvidos”.

Natural que se considere a dinâmica de trabalho vertiginosa como o testemunho


indefectível de sua personalidade extremamente criativa e radicalmente obstinada.
Nascido em 1965 em Jersey City, NJ, Mazurek é geralmente associado à cena de
improviso e experimentação jazzística da Chicago dos anos 90. Desde seu primeiro trio,
formado em 1996 com o guitarista Jeff Parker e o baterista Chad Taylor até os dia de
hoje, Mazurek acumula 25 anos no métier. Seu currículo transpira “ímpeto e
tempestade”: mais de 200 composições, muitas delas espalhadas pelos mais de 40 discos
que lançou com Exploding Star Orchestra, com as várias formações do Chicago e do São
Paulo Underground, SOUND IS Quintet, Starlicker, Mandarin Movie, Tigersmilk,
editados por selos como Aesthetics, Cuneiform, Mego, Submarine e Thrill Jockey. Sua
marca reside de forma definitiva entre o que há de mais peculiar e avançado no jazz
contemporâneo.

Prestes a lançar o quarto trabalho com o São Paulo Underground, batizado ironicamente
Beija Flors Velho e Sujo (não, você não leu errado…), o artista segue lançando, tocando,
gravando. A superatividade pode denotar uma personalidade forte e auto-centrada, mas o
olhar mais cuidadoso revela generosidade e espírito de colaboração incomuns. “É
divertido pular no abismo, mesmo que os resultados nem sempre sejam os melhores”. E
não foram poucos seus parceiros e colaboradores, dos chapas da cena de Chicago como
Jeff Parker e Chad Taylor, até os manos Maurício Takara e Guilherme Granado, sem
contar mestres e heróis como Bill Dixon, Pharoah Sanders e Roscoe Mitchell. Abaixo,
um pouco dessa generosidade através de uma profusão de palavras, sentidos, sons, cores,
maiúsculas e minúsculas…

***

No texto que acompanha Stellar Pulsations, assinado por Jeff Parker, li talvez a
melhor definição de seu trabalho: “Durante a última década ou mais, Rob Mazurek
vem explorando a idéia de criar ambientes para perder-se no som”. Como você
interpreta este “perder-se no som”? Qual é a posição do artista quando se perde em
meio a um ambiente que ele mesmo projetou?
Gosto de pensar que o som pode existir dentro de certos parâmetros determinados pelo
compositor/intérprete = MÚSICA... mas também pode existir fora dos parâmetros da
idéia de música (ou) de “som organizado”. Como John Cage declarou há alguns anos, o
som existe muito bem por si mesmo. Minhas ideias para a distribuição do SOM levam a
ideia de Cage em consideração, mas também a estruturação ou concepção de um
ambiente sonoro que me agrade e afete mais alguém de forma semelhante.

Em outro nível de compreensão, tenho me interessado na estratificação, na sobreposição


de universos sonoros que permitam à composição assumir uma espécie de OUTRO
mundo em relação a si mesma. Através da sobreposição de várias camadas sonoras
acredito que é possível encontrar uma área escondida, capaz de abrir uma concepção
temporal e (ou) atemporal da estrutura da realidade, que nos levaria até mesmo à
pergunta extrema: por que existimos? O som é uma ferramenta poderosa para alcançar
realidades alternativas ao continuum espaço-tempo e fundir a cabeça, a fim de
reconfigurar as soluções possíveis em direção aos primórdios da matéria e da antimatéria.
Abertura é a ideia... Abertura...

Me chama a atenção porque, em primeiro lugar, Parker se refere ao “ambiente” e


ao “som”, e não à “música”. Ele atribui esta concepção a você, então pergunto:
quais as diferenças que você percebe entre a noção de “música” e de “som”? Por
que a preferência pelo segundo?
O som é o que ouvimos. Nós reconfiguramos e reestruturamos o som por acidente a cada
vez que mexemos nossa cabeça, andamos na rua, bocejamos, andamos a cavalo, viajamos
em um helicóptero ou mergulhamos um metro debaixo d’água. Neste sentido, somos
todos compositores por acidente. O mundo do som controlado não existe... Se você tem
mil pessoas em uma sala escutando uma peça musical, é absolutamente impossível que
cada pessoa ouça o SOM da mesma forma... Agora, eles podem falar sobre ouvir a
mesma MÚSICA tocada na sala de tal e tal forma, mas a posição do corpo, o leve
movimento da cabeça, o ritmo respiratório particular de cada pessoa, a frequência
cardíaca, o bater dos pés, etc., vai sempre levar a uma experiência muito pessoal e íntima,
não apenas com base na física, mas no estado emocional e em um milhão de outros
parâmetros. Tornar-se consciente do SOM é tornar-se LIVRE.

O que me parece mais impressionante no seu trabalho é que ele mantém uma unidade na
diversidade: muitos gêneros misturados, uma quantidade brutal de projetos, mas, no
geral, percebe-se o mesmo caráter exploratório e “cósmico”. O mesmo na sua obra visual
(em capas de disco ou em White On White), na qual percebemos deteriorações,
emaranhados, mas sempre com uma forte unidade visual. A que se deve essa unidade?
Assim como não se pode nunca experimentar um SOM da mesma forma, não podemos
também ver algo da mesma maneira. Eu elaboro minhas obras visuais de uma forma
semelhante a que organizo o SOM: sobrepondo camadas, dinâmicas de cor, rabiscos
estáticos e vermelhos pesados se misturam em uma espécie de nebulosidade do
movimento cósmico, embora esteja aparentemente parado. Com minhas fórmulas
elaboradas para a ambientação do SOM ou do VISUAL, busco maneiras de varrer a ideia
conservadora de sentimento de morte, como forma de abrir o diálogo entre o pensamento,
a respiração e os seres humanos compassivos.

Li que suas primeiras referências vieram do hard bop, sobretudo Lee Morgan,
Freddie Hubbard, Kenny Dorham e, depois, Bill Dixon. Houve inicialmente uma
tentativa de síntese desses estilos? Conte-nos um pouco a respeito do processo de
formação do seu som como trumpetista?
Primeiramente, você arrisca um som por vontade própria, depois você tenta copiar os
mestres. Daí você deve abandoná-los completamente e tentar criar seu próprio
vocabulário. Assim como é importante parar de culpar seus pais pelas coisas que
aconteceram em sua infância, você deve abandonar sua fantasia de soar como outra
pessoa e tornar-se quem você é. Minha trajetória como alguém que faz SOM gira em
torno dessa busca. Presenciar borboletas azuis translúcidas na Floresta Amazônica, uma
tempestade em Brasília ou ouvir enguias elétricas no INPA em Manaus constituem
influências tão importantes como foram Art Farmer, Bill Dixon, Miles Davis, Alan
Shorter, Chet Baker e Don Cherry.

Conte-nos um pouco sobre suas primeiras experiências como parte do quarteto


formado com George Fludas, John Webber e Randolph Tressler?
Este foi o meu primeiro grupo. Eu escrevi a maior parte do material nessa gravação e
acho que ficou bom. Mesmo neste disco, eu estava tentando desesperadamente encontrar
o meu som, tanto em relação à instrumentação, como em termos de composição...

Qualquer biografia a respeito de Rob Mazurek cita a “fértil cena jazz de Chicago em
meados dos anos 90” como o ambiente no qual você se afirmou como músico,
compositor, experimentador. Gostaria de saber quais seriam, do seu ponto de vista, as
características sonoras e conceituais mais fundamentais deste momento? O jazz de
Chicago contribuiu para a percepção que temos hoje do jazz e do improviso jazzístico?
O SOM sempre esteve presente em Chicago e sempre estará. Durante a década de 90,
quando eu morava em Chicago, haviam grandes músicos que buscavam experimentar
com diversos gêneros e com o SOM em determinados ambientes — combinando
minimalismo com o rock, peças gráficas com Musique Concrete, Jazz com Punk, Techno
com Free Jazz abstrato. Tinha gente como John McEntire e Jim O’Rourke, Fred
Anderson e Hamid Drake, Isotope 217 e Chicago Underground, a nova música de
computador com pessoas como Casey Rice, Nobukazu Takemura e John Herndon, a nova
música contemporânea com os músicos japoneses de noise, uma espécie de explosão de
SOM. Estávamos todos viajando e tocando sempre no Japão, influenciando uns aos
outros. Isso ainda está acontecendo, como sempre tem acontecido desde o início dos
tempos, apenas com instrumentos e estrutura um pouco diferentes. Mas eu diria que a
espacialidade do temperamento do centro-oeste norte-americano sempre esteve presente.
O ambiente e o som do ambiente.

Ao mesmo tempo em que você tem milhares de projetos, alguns músicos te


acompanham em muitos deles — Chad Taylor, Jeff Parker, Matthew Lux, entre
outros. Por que a necessidade de desdobrar-se em uma variedade de projetos?
Trata-se de uma decisão “conceitual”?
Um instrumento pode alterar todo o equilíbrio de um SOM. Venho tentando desenvolver
um vocabulário com as mesmas pessoas por anos a fio, adicionando ou excluindo
membros, misturando pessoa(s) de modo a encontrar as combinações que melhor se
encaixem no ambiente de uma composição ou construção particular do SOM.
Naturalmente, a fim de construir um vocabulário, você deve dispor de músicos ao redor
que estejam dispostos a aprender este vocabulário com você. Isso vai muito além da ideia
de escrever algumas músicas e ensaiar para fazer um ou dois shows. Tem a ver com anos
de experiência com uma dinâmica rigorosa de tentativa e erro, a fim de encontrar a
essência de um SOM determinado. Venho testando desesperadamente novas
configurações de personalidades e instrumentos, para tentar entender como o som viaja
em determinadas situações, e romper o limite cósmico do que a imaginação é capaz de
fazer.
Lendo a respeito de suas influências, percebemos que seus interesses são muito
amplos, mas circunscrevem o eixo atmosférico do jazz interestelar de Sun Ra e do
Miles Davis da fase fusion. Como se dá a integração de sonoridades menos amistosas
— noise, glitches — perceptíveis em projetos como o São Paulo Underground,
Mandarin Movie ou em seu trabalho solo?
O ruído pode ser seu amigo, se você não estiver programado de uma maneira que não te
permita escutar a beleza no ruído. E há tantos níveis diferentes de ruído... Quando ouvi
pela primeira vez, na minha janela aqui em Chicago, o fraco barulho de um trem à
distância, junto ao canto da cotovia balançando no pinheiro próximo à porta, os sinos de
vento de quatro casas adiante e os graves robustos do alto-falante de um rapper hispânico
que passou ali na calçada por acaso… Isso foi surpreendente! Pensei, “esta é a música
que eu quero fazer!” Fui até o toca-discos, pus Nothing Is…, o disco de Sun Ra, e foi
ESTE O SOM!!

Com São Paulo Underground, Mauricio Takara e Guilherme Granado, todos esses artistas
e conceitos! Nós fazemos música juntos como um experimento tanto em extremos como
também em não-extremos... Quão longe você pode ir quando quer expandir os limites?
Quão longe você pode ir com o SOM, quão longe você pode expandir os limites com
uma bela melodia, um ritmo de candomblé ou um feedback, o quanto podemos
influenciar uns aos outros? É divertido pular no abismo, mesmo que os resultados nem
sempre sejam os melhores. MESMO NO RUÍDO EXTREMO há também potencial para
a extrema beleza.

A propósito, existe algum plano para reativar o Mandarin Movie? Você se


importaria de rememorar alguns aspectos desta experiência?
Está tudo explicado no título da última faixa na gravação: “The Tallest Building in the
World” (“o edifício mais alto do mundo”). Sonhei que estava no topo deste edifício, uma
espécie de super-bioestrutura que não parava de crescer, com fogos de artifício à
distância e tudo ao meu redor. Este foi o SOM que eu estava procurando e parcialmente
encontrei através das pessoas do grupo. Foi o único grupo onde literalmente explodi meu
trumpete. Nesses shows incendiários, realizados em pequenas venues de punk rock, nós
realmente levávamos o som ao limite. E em duas noites diferentes, as articulações do meu
trumpete explodiram! Simplesmente explodiram! Pensei comigo: “esta é a música que eu
quero fazer!”

Como surgiu a ideia de formar a Exploding Star Orchestra? Surgiu com a intenção
exploratória, por exemplo, dos workshops de Charles Mingus?
Não, veio de minha própria ideia de compor para uma paleta maior de cores e
personalidades. Expandindo o vocabulário com o qual ja vinha trabalhando há dez anos
ou mais, usando todas as minhas faculdades em composição, arranjo, construção,
eletrônica, minha experiência com noise, jazz, minimalismo, música africana, brasileira,
indonésia, japonesa, mexicana, polonesa, lituana, italiana, croata, de Marte, Júpiter,
Saturno e tudo mais que venho acumulando ao longo de anos e anos de desenvolvimento,
som e vocabulário. Tudo isso para apresentar uma experiência SONORA por meio de
músicos escolhidos a dedo para elaborar um ruído exultante. Eu literal e figurativamente
queria e ainda quero EXPLODIR A ESTRELA para novos começos e amores futuros.

Sei que Bill Dixon é como um herói para você. Como se deu a participação dele com
a Orquestra?
Bill estava sempre expandindo os limites com suas ideias e seu trabalho. Eu tive o
privilégio de passar um bom tempo com o mestre desde nosso primeiro encontro no
Festival de Jazz de Guelph Internacional em 2006. Nossa reunião nesta ocasião era para
ser fortuita, mas nos tornamos muito próximos depois disso.

Foi na passagem de som de Bill nesse mesmo dia que ouvi o som mais incrível que já
tinha escutado até então, que eu gosto de explicar da seguinte forma:

Após a passagem de som, um fotógrafo queria uma foto de Bill tocando seu trumpete. Ele
parecia um pouco cansado e pronto para ir embora, após o longo calvário de uma hora
para alcançar o som adequado ao local. Bill parou por um segundo, olhou diretamente
nos olhos do fotógrafo, colocou o sopro nos lábios e tocou o som mais sublime e
poderoso que eu tinha escutado de um trumpetista até então. Era como se a igreja se
abrisse e um milhão de pássaros brancos voassem, deixando traços de ouro e prata no céu
tingido por uma luz explosiva. O que pareceu para mim uma eternidade foi, de fato, um
minuto de som. Ele terminou a peça com uma agitação ascendente, e era como se o som
tivesse penetrado os pilares de granito para ser incorporado na rocha por toda a
eternidade... e depois ele fez de novo!

Neste mesmo dia, Bill me presenteou com a caixa de 6 CDs da sua obra-prima Odyssey
e, mais tarde, tocou em um concerto extraordinário com Joelle Leandre, prometendo que
viria para a performance do São Paulo Underground à meia-noite. Eu não achei nem por
um minuto que Bill iria aparecer de fato, pois ele parecia absolutamente cansado do
concerto anterior. Mas lá estava ele sentado na plateia com Sharon Vogel, sua linda
parceira.

Fizemos o show, meus nervos um pouco abalados. Estava absolutamente convencido de


que tínhamos feito o pior show de todos os tempos, e que Bill poderia me escrever um e-
mail educado para pedir a caixa Odyssey de volta, e eu jamais tentaria me comunicar com
ele de novo. Mas enquanto eu estava me sentindo pra baixo, Bill irrompeu pela porta dos
bastidores com a mais grave das expressões no rosto e felicitou-nos pelo show com um
entusiasmo inabalável. Ele parecia particularmente fascinado com a maneira que nós
criávamos o som a partir da sobreposição de camadas, com o uso de samplers,
computadores, bateria, percussão, voz, trumpete com efeitos... Absolutamente
memorável... Foi lá que pela primeira vez discutimos a ideia de fazer algo juntos, o que
levou à colaboração de Dixon com a Exploding Star Orchestra.

Infelizmente não houve tempo suficiente para levá-lo ao Brasil para tocar com o São
Paulo Underground, o que ele manifestou interesse em fazer. Mas houve tempo para
levá-lo como convidado especial para tocar com a Exploding Star Orchestra, em Chicago,
no Festival de Jazz de Chicago, em 2007 (onde gravamos Bill Dixon with Exploding Star
Orchestra para Thrill Jockey Records), em Lisboa, no Festival de Jazz em Agosto em
2009 (tenho uma gravação incrível desta noite, que deve ser lançada) e na Filadélfia, na
International House. Tive o prazer de tocar em Tapestries for Small Orchestra (para
Firehouse Records) e tambem naquele que viria a ser seu último concerto em
Victoriaville, 22 de maio de 2010.

Após a reunião inicial no Canadá, passei dias e semanas em Bennington, Vermont, na


casa de Bill Dixon e Sharon Vogel. Um dia típico seria mais ou menos assim:

Chegada na casa de Bill ao meio-dia. Bill já terá tocado por algumas horas. Ele pede para
que eu saque meu instrumento, tocamos por boas quatro, cinco horas, intercaladas com
histórias maravilhosas sobre seus dias em Nova York, Bennington, Itália... Ele sempre
concentra a lição sobre o som das notas, o som, o som... Sempre procurando o puro tom
do instrumento. Discutiríamos composição e orquestração, e por cerca de quatro, cinco
horas escutaríamos infinitas gravações que ele fizera ao longo de sua vida. Peças solo,
duetos com Cecil Taylor, material inédito da banda Vade Mecum, performances dos
alunos, seu quarteto de cordas, performances de dança/música com Bill e Stephen
Haynes, noite adentro sem parar, às vezes pulando para um concerto de Bartók ou Hakan
Hardenberger tocando “Endless Parade”. Sempre acerca do som, buscando chegar ao
centro do som... Fizemos isso todos os dias, durante semanas.

Lembro-me de uma vez quando me preparava para voltar para Chicago, depois de um
período de duas semanas com Bill. Parei em frente à sua casa por volta nove horas da
manhã para dizer adeus. Me dirigi ao seu quarto e, sobre sua cama, estavam espalhados
cerca de quinze a vinte livros de matemática sobre todos os tipos de teorias, idéias...
Olhei para Bill e perguntei: “o que está acontecendo aqui?” Ele me olhou muito sério e
disse: “deve haver uma maneira melhor para fazer uma maldita boquilha, e eu vou
descobrir”.

A mente de Bill estava em constante movimento, criando conceitos e fazendo...

Enquanto esteve em Chicago Bill ficou muito impressionado com as grandes esculturas
sem cabeça intitulada “Ágora de Magdalena Abakanowicz” no Grant Park. Ele estava
trabalhando em uma peça que imaginou para lançamento em TV e em áudio, centrado em
torno da idéia dessas esculturas com entrevistas com o artista e música escrita para dois
trumpetes, o meu e o dele. Era para ser lançado pela Thrill Jockey. Infelizmente não
houve tempo suficiente para realizar este projeto.

Bill estava sempre expandindo os limites com novas idéias, refinando velhas idéias,
buscando o som e o momento. A passagem de Bill é uma perda devastadora, mas sua
obra imensa e a memória de seus métodos rigorosos, sagacidade, humor e inteligência
vão ficar comigo para sempre.

Trabalhos como Boca Negra e Age of Energy diferem em forma e conteúdo dos
discos com a orquestra, o quarteto e, o mais estranho, o trio… Existe uma lógica
conceitual dentro dos trabalhos e das várias formações do Chicago Underground?
SIM, a lógica é criar uma música interessante através de todos os meios que se fizerem
necessários. Tenho tocado com o Chad por mais de vinte anos. Nós ainda construímos
um vocabulário sob o pretexto de que QUALQUER COISA PODE SER FEITA A
QUALQUER MOMENTO. Por isso usamos o básico de nossos instrumentos (bateria e
trumpete) como um trampolim para outras maneiras de elaboração do SOM, de tal forma
que consigamos projetar a UNIDADE e a GRAÇA à nossa própria maneira. Pianos,
computadores, drum machines, marimbas, mbira, caixas de eco, flautas, vibes, voz,
sintetizadores, samplers, wood blocks foram utilizados. A idéia é fazer um enorme e belo
barulho através de ritmos ondulantes, linhas sequenciadas pesadas de baixo, aparelhos
eletrônicos, som ambiente, mbira “assombrada” e estruturas melódicas dolorosamente
belas... É o nosso SOM e tenho muito orgulho disso.

Por que escolheu viver por um tempo no Brasil? E o que de mais valoroso e
interessante o núcleo brasileiro trouxe para seu trabalho?
Falemos sobre o Ekundayo, um grupo maravilhoso concebido pelo infinitamente criativo
Rodrigo Brandão, um cara original em personalidade, energia, idéias, SOM e tudo mais.
Ele teve a idéia de montar a banda, que inclui o São Paulo Underground, o grande músico
e repentista (“wordsmith”) Mike Ladd, o incrível Naná Vasconcelos, os versos doces de
Lurdez Da Luz e Brandão, tudo misturado pelo brilhante produtor novaiorquino Scotty
Hard. Para mim, esta é a ideia de colaboração no sentido de lançar um som de verdade,
uma ideia verdadeira... Isto parece que só poderia acontecer no Brasil.

São Paulo, em particular, possui hoje essa energia para músicos criativos e arte em geral.
Isto influiu na minha decisão de morar lá e trabalhar com músicos e artistas de todo o
país. Guilherme Vaz é um dos tesouros do som e das artes no Brasil. Suas ideias tem me
afetado profundamente. Por exemplo, coletar o som de um índio pertencente à uma
determinada tribo e criar uma peça a partir disso, o poder de tal ideia! Buscando
imaginar, em primeiro lugar, a própria origem do som! Muito interessante para mim...
Radical, eu diria...

Há um trabalho muito interessante e poderoso feito pelo artista Nuno Ramos (tive o
prazer de conhecê-lo em seu estúdio) que vi no Instituto Tomie Ohtake há alguns anos.
Recipientes cheios de vários líquidos: petróleo, glicose, vinagre, água do mar, em diálogo
com bombas, tubos e estruturas de vidro. Uma enorme escultura em 3D, pinturas nas
paredes que pareciam um carnaval flutuante de outro mundo, bastante lírico para os meus
olhos...

Esta exposição parecia uma absoluta des-construção e re-instalação, que só se torna


possível quando a imaginação solta os bichos. Você quer saber se o tigre vai pegar a
imaginação e transformá-la em carne moída ou se voará para uma nova dimensão
especificamente projetada para manter o músico alerta e proteger a imaginação. Quando
vou ao Brasil minha imaginação se eleva, o sentimento de nuvem morna cai suavemente
sobre o rosto e me deparo com uma espécie de dualidade do tempo que só poderia ser
descrita com uma imagem do Rio Negro. Sentado em um pequeno barco e acariciando as
cabeças gigantes dos botos cor de rosa que habitam essas águas mágicas, enquanto
imagino uma orquestra de enguias elétricas debaixo das ondas suaves...

Quando escutamos sua colaboração com Takara e Granado, é possível detectar ecos
nítidos da música brasileira dos anos 70 como Hermeto, Clube da Esquina… Havia um
interesse pela música brasileira antes de seu primeiro contato com essa turma?
Antes e depois: Pedro Santos (Krishnanda), Belchior, Caetano Veloso, Guilherme Vaz,
Chico Buarque (Construção), Jobim, Tamba Trio, Milton Nascimento, Moacir Santos,
Naná Vasconcelos, Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal, Cartola, Nelson Cavaquinho,
Marisa Monte, Martinho da Vila, Paulinho da Viola, Clementina, Gal Costa, Ratos de
Porão...

Retomando a questão visual, podemos perceber que esta tendência em explorar as


“fronteiras” se estende para sua prática como artista plástico. Você mantém o mesmo
sentimento aplicado à música quando propõe interações interdisciplinares entre som,
música e artes visuais?

Quando você sobrepõe grandes camadas de tinta sobre uma superfície, segue-se um
acréscimo de emoções, o sentimento e o gosto por alguma coisa é ativado. Esta ativação é
o que é importante para mim tanto com relação ao SOM como em relação ao visual. Meu
bom amigo, escritor, professor, crítico de arte Tiago Mesquita me perguntou uma vez
“por que você trabalha com limites em seus quadros? Por que não tratá-los como objetos
que não tem começo nem fim?” Pensei a respeito e compreendi que essa ideia poderia ser
aplicada tanto ao visual quanto ao som.

Você também pode levar em consideração o trabalho de Nelson Félix, outro artista
brasileiro que admiro. Ele dispõe placas gigantes de aço ao longo de um caminho de
figueiras que em 100 anos ou mais irão deformar o metal, transformando-o em estruturas
orgânicas. Isso com base no modo como as árvores se apropriam e transformam o metal
através do tempo... Pensei: “como isso pode ser feito com som?” Como produzir uma
estrutura atemporal de SOM que será entortada, mutilada, empurrada para seus limites ao
longo de um período muito longo de tempo e, em seguida, conduzida suavemente de
volta para o mundo das coisas? Explorar a ideia de reconfiguração radical das coisas: eis
um conceito que me parece estimulante. Como Tunga, como Hélio Oiticica, como
Maurício Takara, como Guilherme Granado, Paulo Monteiro, Rodrigo Andrade e Panda
(Antonio Panda Gianfratti).
O que mais te interessa na exploração das artes visuais? De que forma essas instâncias
(som, imagem) dialogam no seu trabalho?
Eu estava assistindo a um filme chamado Girl on a Motorcycle, que destroça uma história
bastante comum... É muito mais interessante para mim do que as besteiras de
Hollywood... Por que nesse mundo a mágica das coisas tem que ser extirpada de tudo em
favor da chamada “sociedade normal”? O SOM e a IMAGEM possuem potencialidades,
é preciso manipulá-los, quebrá-los, martelá-los, acariciá-los, beijá-los, afundá-los,
enterrá-los, catapultá-los para novas dimensões, a fim de iniciar um diálogo entre
universos. Às vezes o que está escondido é mais poderoso do que o que é visto: o poder
das pinturas advém das qualidades subjacentes à coisa pintada, a energia acumulada ao
longo do tempo, do pensamento e da ação. O poder do SOM emerge quando você toma
uma simples partícula de alguma coisa e a transforma radicalmente através da beleza, do
ruído, do tempo e tudo mais, para lançar bandos de aves em direção ao céu azul. O sol
assimila essas imagens, esses SONS e sentimentos, e o universo responde... Som e
imagem devem ser amantes... O potencial para voar

Você poderia falar um pouco a respeito de cada um dos três discos que você lançou
recentemente: o 7” com o Objeto Amarelo, as Skull Sessions e o Pulsar Quartet? Soube
que tem um São Paulo Undeground a caminho…
Carlos Issa é um ser humano brilhante. Em sentimento, em SOM, em VISÃO, uma ave
rara que ATIVA o ambiente e tem a sensibilidade para deixar que algo se desenrole tão
naturalmente como rebanhos de renas no sol do ártico.

A gravação de meu octeto para as Skull Sessions se concentraram na criação de camadas


de SOM a partir do potencial de oito seres humanos colhendo flores no campo e criando
nuvens de cor e êxtase harmônico em direção aos céus. A flauta sônica de Nicole
Mitchell, a escala de ouro da rabeca de Thomas Roher, juntamente com os ritmos
propulsores de Herndon, a metálica “ressurreição dos mortos” de Jason, Guilherme
soltando os bichos na mão esquerda do synth bass, e a percussão avançada de Maurício
(que também toca seu cavaquinho de prata), com os ruídos brilhantes de Carlos indo de
encontro ao tornado de moléculas de som...
Já o Pulsar Quartet são quatro pessoas tocando estruturas musicais com a liberdade de
vaga-lumes que gentilmente espiralam pelo ar fresco da noite. O piano de Angelica
Sanchez reproduz bálsamos de felicidade, com o baixo Matt Lux ornamentado pelas
pancadas de John Herndon e meu trumpete “serpenteando” através do espaço.

O novo São Paulo Underground se chama Beija Flors Velho e Sujo, uma espécie de grito
para os Ol Dirty Bastard, a idéia de romper a barreira para o outro lado de uma coisa
através da potência do som e da beleza. Trabalhar com Maurício e Guilherme é uma das
coisas que eu mais gosto de fazer no mundo. Beleza sônica, amizade pessoal, honestidade
e uma razão para mergulhar no éter de possibilidades, tanto musicalmente quanto
pessoalmente. Meus irmãos.

Uma colaboração recente que me chamou atenção foi no disco do Marcelo Camelo. Qual
a principal diferença que você sente quando precisa trabalhar com cantores e canções?
Marcelo é uma coisa rara. Tão atencioso e carinhoso. Quer trazer a beleza e as cores para
o ambiente. Suas canções são poderosas e estranhas ao mesmo tempo. Trabalhamos
juntos há alguns anos e eu vim a perceber que, para mim, o seu poder vem de seu
coração. Trabalhar com o escritores, músicos, cantores e rappers criativos como Marcelo,
como Kassin, como Malu, como Jorge du Peixe, como Vanessa da Mata, como Rodrigo
Brandão, como Will Oldham, como Tulipa, é um prazer e um sopro de ar fresco.

Por fim, li na entrevista recente uma lista de seus próximos projetos e fiquei curioso para
saber mais sobre Extreme Musique Concrete e Illumination Drones…
Isso tudo caminha na direção da minha grande ideia de uma ÓPERA. Uma ópera
abrangente de ficção científica multimídia baseada nos escritos de Helder Velasquez
Smith. Usando o SOM, o VISUAL e o TEXTO, desenvolvo sete horas de festa para os
olhos e ouvidos. Nesta peça vou incluir minhas ideias para Extreme Musique Concrete,
Illumination Drones e dois pequenos contos que ocorrem dentro do ópera chamados
Android Love Cry e Throne of the House of Good and Evil, todos sob o seguinte título:
The Book of Sound.
A concepção de Extreme Musique Concrete e de Illumination Drones é, mais uma vez,
centrada nas sobreposições, criando situações em que a massa de informações torna-se
outra coisa. Os harmônicos do som, os harmônicos da visão são constantemente
multiplicados até que a ILUMINAÇÃO assume, formando os seus próprios estalagmites
alados de uma brilhante revelação.

***

Entrevista realizada e traduzida por Bernardo Oliveira (via email), para o blog Matéria.
Agradecimentos ao Fred (Submarine/Norópolis), Tiago Campante, Antonio Marcos
Pereira e Mariana Mansur

ROMULO FRÓES
Romulo Fróes costuma se dirigir a seu interlocutor com um discurso prolífero e
articulado, cujo aspecto plural encerra um interesse comum no passado, presente e futuro
da canção brasileira. Acompanhá-lo não é simples. E isso não somente pela desenvoltura
com que encadeia pontos de vista, mas por um conflito salutar entre interesses
intelectuais e musicais, exposto sem pudores: “quero fazer uma canção bonita”, e
completa, irônico: “que contenha todas as questões que estão na minha cabeça.”

Ambientados em seus três primeiros discos, “Calado” (2004), “Cão” (2006) e “No Chão
Sem o Chão” (2009), nos deparamos tanto com o pensador inquieto, quanto com o
melodista popular, capaz de surpreender e agradar. Vale notar que há tempos não
contávamos no Brasil com um “cantautor” tão empenhado em herdar e transfigurar o
legado crítico da Tropicália e da “Lira Paulistana” – dois momentos da cultura brasileira
que catalisaram preocupações semelhantes as que Fróes traz à baila. E não por falta de
pretensos candidatos.

Fróes reivindica para si o árduo papel de bardo pensante, desempenhado por artistas
como Tom Zé, Gilberto Gil e, sobretudo, Caetano Veloso. Compartilha com eles o desejo
de atiçar a reflexão através do poder inebriante da canção. Mas pretende superá-los,
investigando com desenvoltura os papéis, atribuições e contextos técnicos e estéticos que
caracterizam o que ele chama de “sua geração”. E, no entanto, considera o díptico Cê/Zii
e Zie, do mesmo Caetano, como “o grande momento” desta mesma geração. Uma
contradição? Talvez. “Eu tô sempre dando rasteira cara, sempre com ‘um labirinto em
cada pé’…”

“Um Labirinto em Cada Pé”, a fórmula poética encontrada pelo cantor e compositor
paulistano para batizar seu quarto e último disco, diz muito a respeito do seu apreço pelas
contradições, pelos paradoxos, curtos-circuitos e demais operações com as quais constrói
seu trabalho e ideias. Mas para aquele que se dispõe a atravessar esse “mar russo”,
antecipo: de nada adianta ouvir o que Fróes diz, sem escutar seus discos, sua voz
indefectível, a instrumentação e os arranjos. Não há como permanecer impassível diante
da canção e da poética desenvolvida com os artistas plásticos Nuno Ramos, Clima e seu
mais novo parceiro, Rodrigo Campos. Uma estética que subverte os hábitos, a função
cotidiana das palavras (e das canções), harmoniza ideias opostas e provoca a imaginação.

“Vivo um momento na minha carreira que preciso começar a falar de música”, afirmou
durante a entrevista concedida à FACT há uma semana. E, de fato, parece que o álbum é
menos a obra de um artista plástico interessado em explorar as possibilidades da canção,
do que obra de um compositor e instrumentista plenamente instalado em seus próprios
domínios estéticos.

***

Para os leitores lusófonos que não conhecem o seu trabalho, uma pergunta bem
genérica. Quem é o Romulo Fróes?
Sou Romulo Fróes, 40 anos. Sou cantor, compositor e estou lançando meu quarto disco
de carreira que se chama “Um Labirinto em Cada Pé”. Sou um compositor que lida com
música brasileira de todas as formas que ela existe, em todas as suas vertentes, do samba,
rock, baião, frevo. Me sinto proprietário, me sinto dono dessa música e a minha intenção
desde sempre foi lidar com a música brasileira como todo. Nos meus dois primeiros
discos, acho que fiquei muito mais mergulhado no mundo do samba, no mundo do
“samba triste”, que é o que mais me agrada. Nelson Cavaquinho talvez seja o meu grande
ídolo, o grande cara da minha vida.

Então esses dois primeiros discos mergulhavam no universo lírico do samba mais triste, e
por causa disso, ganhei a pecha de sambista. E ai, no terceiro disco, um disco duplo,
realizei o que sempre quis: fazer música brasileira de todo o jeito que ela se apresenta,
que também é um retrato da minha geração. Essa geração é isso, lida com a história da
música brasileira da forma como melhor lhe convém sem ter muito pensamento sobre
isso, sem ter um movimento organizado ou questões sobre a sua história, ela
simplesmente pega tudo pra ela, tudo pertence a ela e ela faz uso disso assim e é por isso
que é muito difícil organizar essa geração. Acho que esse é o fato dela ser tão diversa.
Dela nem negar o passado, nem incensar o passado, nem pedir a benção ao passado. Para
ela o passado é dela. Não tem essa coisa de vou negar a música brasileira ou vou
continuar a música brasileira. Eu vou fazer música, eu sou brasileiro, to no Brasil e tudo
isso faz parte da minha música.

Sou um compositor que lida com música brasileira de todas as formas que ela existe, em
todas as suas vertentes, do samba, rock, baião, frevo

Quando cheguei aqui, falei que não era jornalista exatamente e você falou: eu
também não sou músico. Eu não ouço isso como um descompromisso, pelo
contrário, acho isso um compromisso do caralho, difícil de se sustentar. Não ser
músico, mas também não ser literato, não ser intelectual… Ser tudo isso ao mesmo
tempo. Mas por que a música?
Sou desenhista. Teria que ter sido desenhista, teria que ter sido artista plástico que desde
sempre desenhei. Tenho muita facilidade para desenhar, tenho muito talento para isso,
pintava bem, e isso me levou ao encontro do Nuno Ramos que hoje em dia é um dos
meus parceiros, mas foi o meu emprego durante 15 anos. O Nuno foi meu contato com
esse mundo das artes plásticas, um mundo que eu tenho muito mais acesso e entrada do
que o mundo da música, coisa que eu estou tentando reverter já há alguns anos.

O que me agradou no mundo da música é que no Brasil todo mundo joga bola e todo
mundo faz canção e isso é um pouco verdade mesmo. Existe algo no inconsciente
nacional que diz que todo mundo é capaz de fazer uma canção. Acho que quando saquei
que em artes plásticas eu não ia ser um grande artista apesar de todo o meu talento, quis
procurar um negócio que eu tivesse menos habilidade para exercitar. Em música, toco
violão para fazer as minhas canções e tal, mas não sou um grande instrumentista. No
entanto, me agradava a ideia de não ter habilidade necessária para fazer aquilo. Do
mesmo jeito que se me meter a fazer um filme.

O Nuno (Ramos) diz muito sobre isso, que ignorância é algo forte em artes. Ela sozinha
não é nada, mas ela associada a outras coisas, é muito forte em se tratando de artes.
Porque ao mesmo tempo tenho uma ignorância técnica e uma não-formação musical,
pouquíssimas pessoas conhecem tanto de canção brasileira que nem eu, do ponto de vista
do conhecimento da história da música brasileira. Faço parte de um núcleo de pessoas
que conhecem esse assunto a fundo, que discute canção brasileira profundamente.

Você se refere ao Tatit? (Luiz Tatit, músico, lingüista e professor universitário


brasileiro).
Ao Nuno (Nuno Ramos, escritor e artista plástico), ao Clima, ao Lorenzo Mammi (crítico
de música, arte e professor ). Ah, enfim, as pessoas que nos cercam. Ao Tatit, aos meus
amigos das artes plásticas que tem esse apreço pela discussão, um mundo que se forma
através de crítica, coisa que sinto muita falta em música, especialmente na última década.
Então, juntei essas duas coisas, essa vontade de discutir as coisas, de ter opiniões, de ter
crítica, de se aprofundar nas coisas com a minha ignorância técnica e isso me abriu um
mundo fascinante. Fazer canção sem ter as ferramentas necessárias para isso. Não sei
harmonia, não sei nome de nota, mas sei fazer canção. Então, quando digo que não sou
músico não estou me diminuindo, pelo contrário, eu estou dizendo assim, o meu approach
com música é outro. Ë menos musical, é mais crítico, intelectual. Um pouco como o
Caetano Veloso, que é um artista em quem eu me espelho muito.

Fico intrigado quando você fala a respeito desse papel intelectual do artista, porque
no Brasil isso sempre foi uma coisa meio dissociada da criação artística, por mais
que nós tenhamos vários exemplos em contrário. Falou do Caetano, a gente pode ir
lá atrás e falar de Flávio de Carvalho, de artistas e intelectuais…

João Gilberto, do jeito dele lá…

…sim, de alguma forma

…do jeito esquizofrênico dele, aquilo é uma discussão altamente intelectual sobre
canção.

O Caetano chegou a formular essa questão de forma crítica…

O Caetano é esse cara. O Tom Zé…

Tom Zé também. Já era um problema, no meio do contexto que a gente chama de


MPB, essa ideia de trazer uma dinâmica de crítica para a música. Mas seus dois
discos solo são discos de samba estrito sensu. O primeiro mais do que o segundo. O
segundo já tem uma guitarra, no final já indica alguma mudança. Não existe entre
os artistas do samba uma preocupação crítica como você tem. Por que o samba
então? É um provocador?
Não acho que arte tem que ter isso. Sou assim. Não acho que o Luis Gonzaga tenha que
falar sobre o trabalho dele. O trabalho dele já fala por si só. O Dorival Caymmi já fala por
si só. Sou desse jeito. A canção é a grande forma de identidade do nosso país. O que
define o Brasil é a canção e o futebol. Isso é muito forte. Muito mais do que o cinema,
muito mais do que tudo. A canção e o futebol são os assuntos centrais da nossa pátria. É o
que a gente é. Somos conhecidos no mundo por causa da canção e do futebol e ponto. E
ai dentro desse conceito, o samba é a canção brasileira. Quando quis discutir e pensar
música brasileira, invariavelmente caí no samba. E não é à toa que todos os grandes
movimentos brasileiros passam pela música e, particularmente, pelo samba. A bossa-
nova, a Tropicália… Mas não acho que o samba tenha que dizer sobre ele. Não acho que
nenhum artista tenha que dizer algo sobre seu trabalho. Mas alguns artistas fazem isso e
daí vem a força do seu trabalho. Me enquadro nessa categoria, dos caras que estão
pensando e é curioso porque é numa época que não é para ser.

A gente vive uma época muito, muito rasa na verdade. Isso que me acusam e acusam a
minha geração de “ah, nunca mais teve música brasileira boa, porque a música morreu
nos anos 60”… Ai neguinho vê um vídeo no YouTube da Elis e do Tom e fala: “ai, que
saudade”. Isso que me irrita profundamente. Mas tem algo de verdade, porque no fundo
tem uma fuga da discussão, tem uma fuga de encarar a história assim, tem uma certa
proteção. Hoje li uma entrevista do Reinaldo Moraes (escritor paulistano) em que ele diz:
“sempre tiveram os idiotas, mas eles ficavam esquecidos, eles ficavam escondidos, eles
não tinham acesso”. Então os caras que estavam pensando e que eram mais profundos e
que pensavam a história da arte como um todo, eram os caras que chegavam lá e
produziam, enquanto os idiotas ficavam anônimos e tal. Agora os idiotas apareceram,
então quem não escreve, escreve, quem não canta, canta e quem não compõe, compõe.
Estão todos na internet, todo mundo tem a sua opinião e as opiniões são muito rasas. Os
idiotas ganharam vozes no mundo, entendeu? Então, quanto mais idiota falar no mundo,
mas difícil aparecer a voz contrária. E ai cria uma sensação do tipo “ah esse moleque é
intelectual”.

Vivo um momento na minha carreira em que preciso começar a falar de música. Tenho
que começar a querer que ouçam a minha música, porque já ocupei um lugar… Esse
negócio tá se repetindo assim, porque como ninguém fala nada, como neguinho fica
assim meio na defensiva, como neguinho foge da discussão até por uma questão de
proteção mesmo… É difícil você ficar dando conta da história da música brasileira. Você
querer se medir com João Gilberto, Caetano Veloso.
Se a canção é esse termômetro cultural, como se aproximar dela de uma forma mais
ambiciosa?
A ambição morreu?

A ambição não pode ter morrido…


Não pode ter morrido, mas ela tá bem baleada…

Como necessidade de análise, esta ambição pode estar morta, mas não como desejo
de exploração estética. Tem muita coisa legal acontecendo. Fiquei muito surpreso
com o “Labirinto”, sobretudo quando entra aquele funk na terceira faixa, depois de
uma introdução com a Dona Inah… Ai de repente você joga a gente num forró, uma
coisa meio afro, um frevo…
É.

Ai de repente um funk. É inevitável que alguém vá ouvir o teu disco, pô esse cara
tá…
…perdido!.. [Risos]

Mas perdido naquele sentido de ignorância que você colocou agora há pouco, essa
ignorância que tá aberta à exploração.
O meu trabalho é tudo isso. Só não quero que seja hermético, tenho que tomar cuidado
para que não seja hermético. Porque, acima de tudo, quero fazer canção popular. Me
associam muito a vanguarda paulistana pelo simples fato de eu ser paulista e fazer música
de invenção, digamos assim. Mas sou muito afastado daquilo, eu sou muito afastado do
Arrigo Barnabé e do Itamar Assumpção. Sou afastado daquilo porque quero fazer uma
canção, quero compor “Detalhes” do Roberto Carlos, só que com todas as “caras”, com
tudo que eu quero dizer, com toda a história da música brasileira. Não quero separar uma
coisa da outra. Faço canção. Quero que as pessoas ouçam a minha música e cantem a
minha música. É óbvio que não facilito verdadeiramente para elas. Também espero algo
delas. O que digo que talvez a ambição morreu, eu acho que a ambição do público
morreu, a ambição do ouvinte morreu, o ouvinte não quer ter problemas. Não quer ter que
pensar. Ele quer balançar as cadeiras, ele quer… não é à toa que a música de dança tenha
superado a canção mais reflexiva e já faz muito tempo. Não é a toa que o axé é a
principal música do Brasil. Eu acho que o ouvinte foi emburrecendo, foi perdendo
contato com a arte.

Escutando novamente seus dois primeiros álbuns, “Calado” (2004) e “Cão” (2006),
fiquei pensando nos primeiros discos dos Novos Baianos, eles vinham com aquele
rock e ai conheceram o João Gilberto e fizeram todos aqueles grandes discos,
Acabou Chorare, Futebol Clube… E você não, você veio com aqueles discos de
samba clássico mesmo, com uma pegada anos 60.

Mas com uma esquisitice de paulista, que pelo simples fato de ser paulista já zoava o
esquema… [Risos]. As letras já zoavam o esquema, os arranjos. Mas era um samba
clássico. Eram discos “clássicos”, nesse sentido.

Quero que as pessoas ouçam a minha música e cantem a minha música. É óbvio que não
facilito para elas. Também espero algo delas. O que digo que talvez a ambição morreu, eu
acho que a ambição do público morreu, a ambição do ouvinte morreu, o ouvinte não quer
ter problemas. Não quer ter que pensar

Mas aí você lança “No Chão Sem o Chão”, né. Um álbum duplo, com muito rock e
uma variedade de ritmos… Não tem frase que defina melhor o seu trabalho do que
essa: “no chão sem o chão”… Você tirou o “chão” do fã do Romulo sambista…
Que agora se desenvolveu em “Um Labirinto em Cada Pé”…

Qual o significado dessa mudança? Claro, você já falou, um desejo de explorar mais,
mas houve algum estalo? Foi a pecha de sambista que te incomodou?

Foi isso sim. Estou muito feliz com o disco novo porque acho o seguinte: tem uma
trajetória. No primeiro disco tava encantado pelo Nelson Cavaquinho, pelo Batatinha,
pelo Zé Keti, pelo Paulinho da Viola, recém-chegado do rock inglês. Eu era gótico,
gostava de Joy Division, New Order, era depressivo… E ai fui fazer canção, canção
depressiva e o Nelson Cavaquinho era o meu negócio. Então fiz um disco “clássico”,
como você mesmo disse. Apesar de ter coisas estranhas, arranjos estranhos e tal. E no
“Cão” quis continuar no samba, queria aplicar algo no samba que viesse as outras coisas
e ai eu tive um raciocínio e um comportamento que foi meio fraco na verdade. Vou botar
guitarra no samba e é óbvio que não “aconteceu”… A canção permaneceu samba só que
tinha o Curumim [cantor, compositor e baterista paulistano] tocando umas baterias loucas
e o Lanny Gordin [lendário guitarrista brasileiro] enlouquecendo na guitarra. Eu acho que
a canção ficou dissociada da sonoridade.

Tem aquela interpretação louca de “Mulher sem alma”, do Nelson Cavaquinho…


Não, daquilo me orgulho profundamente, porque é uma canção que já existia. Sinto que
realmente interferi no Nelson Cavaquinho, morro de orgulho daquele negócio. Foi o
motivo de ter brigado com os caras de samba, que ficaram putos comigo quando ouviram,
não quiseram mais tocar comigo, ou seja: missão cumprida. Interferi num negócio
imaculado, Nelson Cavaquinho ninguém mexe, eu mexi. Mas nas minhas próprias
canções, uma canção como “Tudo que pesa”, é um samba de 1912… Só que tinha o
Lanny Gordin tocando guitarra. E em “No chão sem o chão” quis zerar essas coisas. Eu
falei: estão me chamando de sambista, então vou fazer um disco para tudo quanto é lado,
calcado na coisa sonora, vou mudar a banda e eu vou fazer experimentações sonoras para
ver o quanto isso vai influenciar a minha canção e o quanto isso vai fazer a minha canção
ir pro outro lado.

Tenho que sair dessa coisa clássica da música brasileira, do violão. Tem que sair do
violão, cair na guitarra e no mundo do rock mesmo e ver o que acontece. Não é à toa que
fiz um disco duplo, porque começou a ir para muitos lados. Foi uma tentativa de esgotar
essa pecha de sambista, mas também uma forma de explorar as possibilidades da canção.
Tem lá baião, canção romântica, canção de piano e voz, solos de guitarra de 14 minutos,
uma faixa que é meio rap.
Pode parecer pretensioso, é sempre difícil você mesmo falar do seu trabalho, mas acho
que “Um Labirinto em Cada Pé” é uma realização da minha canção. Depois desses três
discos, encontrei um vocabulário através do samba, fiz um tipo de canção norteada pelo
samba. Esse disco tem a contribuição incomensurável do Rodrigo Campos, um cara do
samba, mas contaminado por outras coisas. Ele tem um cavaquinho do samba, um violão
do samba, e trouxe um pulso que eu queria de um sambista sem ser sambista, sem deixar
que o samba contaminasse tanto a minha canção, mas que ele permanecesse ali como um
“pulso”. E a partir disso eu tive a possibilidade de finalmente chegar a uma canção
própria. De todos os discos, eu acho que esse chega nesse patamar, através de faixas
como “Boneco de piche” ou “Máquina de fumaça”. Apesar de muito influenciadas por
outros gêneros, elas se parecem com a gente, não com outras coisas.

Sim, mas tem dois outros elementos amarram a sua canção…

…a letra…

Sim, a letra. Mas também a tua entoação, tua voz que recobre tudo. Pode entrar um
rock agitado, ou um dueto intimista, como aquele com a Mariana Aydar [cantora
paulistana]… E lá está a tua voz, equalizando aquilo…

…que foi outra coisa que tentei escapar um pouco nesse novo disco também. Fui um
pouco atrás disso, mas acho também que meu canto se firmou, que é esse canto João
Gilberto, digamos assim. Quer dizer, João Gilberto perto de mim tem a expressão de um
cantor de ópera…[risos]. Mas esse canto brasileiro que é um canto para dentro, um canto
mais…

… Sem firulas…
Mas além da voz, acho que tem a coisa da letra. Posso dizer isso porque não sou eu que
faço. Acho que tem um capítulo novo em termos de letra e eu fiquei muito feliz com o
texto do Francisco Bosco [escritor carioca, autor do texto de apresentação], que identifica
isso. Ele identifica parentescos como o Djavan, o Luiz Melodia, o Carlinhos Brown, de
um tipo de letra que não fala sobre nada especificamente. Mas nesses casos, a letra é
coisa vinda de músicos, a melodia é um imperativo. O Djavan compõe pelo suingue, pela
melodia, e não é o caso do Nuno e do Clima, definitivamente. A letra é autônoma, apesar
de combinar com a melodia. Quatro discos depois isso parece muito claro. No “Chão sem
o chão” foi importante para fazer o Nuno e o Clima escreverem de maneira mais livre e
não tão clássica. Fez aparecer coisas mais absurdas, mais loucas, mas também eram
muito loucas, muito absurdas. No último disco esse aspecto ficou mais “formatado”. Eu
sinto que esse disco é um disco mais formatado no melhor dos sentidos. Ele tem um som
claro, ele tem um groove claro, ele tem um jeito de letra claro. E isso com toda a
esquizofrenia que ele possa ter. Foi o que você falou, começa com a Dona Inah, funk,
depois tem rap. Um carimbó feito por um baterista que estudou em Berklee, isso também
me agrada. Eu tô sempre dando rasteira cara, sempre com “um labirinto em cada pé”…

… No chão sem o chão. Fica muito claro que “Um Labirinto em Cada Pé” é um
disco de síntese. Podemos identificar algumas coisas, outras coisas mais sintetizadas,
mais formatadas. O anterior disco era discrepante sonoramente, enquanto o novo é
inteiriço. Como você situa o disco na música brasileira hoje? Supera as dicotomias
que amarram a canção brasileira, tipo nacional/popular, erudito/popular, etc.?
Mas isso que você acabou de falar é a definição da minha geração. Então a minha
geração é um problema…

Então, o disco do Domenico, Do Amor…


É. O Los Hermanos…

… Que transcendeu todo esse debate. Mas será que transcendeu ? Estamos falando
aqui desde o ínicio sobre a canção, um debate quase teórico…
Sim, transcendeu…

Mas esse debate ta amarrado a problemas que a gente arrasta desde 1920…
…da Tropicália…
Antes, desde o modernismo, quer dizer, é uma coisa que a gente arrasta, é uma
corrente…

… Mas ai a Tropicália implodiu tudo isso. Neguinho fica querendo achar movimentos, a
Tropicália acabou com essa possibilidade, implodiu. Se o Kassin [Alexandre Kassin,
produtor, integrante do +2] diz achar que o Chimbinha do Calypso é um puta guitarrista,
não é igual ao Caetano falar que o Odair José é do tamanho do Roberto Carlos, e gravar
“Coração materno” de Vicente Celestino. Isso era um acontecimento. Eram os anos 60,
ele tinha que organizar um país, cunhar uma ideia de país, organizar a nação, dar conta do
Brasil.

Hoje o Brasil caminha para uma coisa mais rasa. Quero fugir loucamente disso, minha
função é essa. Estamos fazendo o caminho inverso. Se antes tinha essa coisa elitista da
zona sul carioca, dos festivais universitários, uma cisão entre a elite e a música popular, a
gente deve ao Caetano a superação dessa merda. Ele diz na década de 60 que o Odair
José é um puta cara, a guitarra é um puta instrumento… Mas nessa cisão o país foi
caminhando para uma cultura do entretenimento muito forte, de muito pouco
aprofundamento.

Por exemplo, quando o Caetano fala em “transamba”, fica patente essa


preocupação tropicalista de produzir curto-circuito misturando faixas culturais. No
seu álbum não tem mais isso.

Mas o Caetano continua perseguindo isso… Acontece que ele foi gravar “Um tapinha
não dói” (funk carioca) e ninguém reparou, ninguém deu bola para ele…

Vaiaram, eu vi. No dia da apresentação no Rio, as pessoas vaiaram…

Ele tá fazendo turnê com a Maria Gadu [cantora paulistana]. Agora, onde ele acerta é
justamente nos dois últimos discos ["Cê" e "Zii e Zie"]. O Skylab [Rogério Skylab,
cantor e compositor carioca] lá na entrevista da Folha de São Paulo, ele pega e critica o
que chama de “contorcionismos” do Caetano Veloso e do Arnaldo Antunes. O Marcus
Preto, jornalista da Folha, me perguntou o que achava disso. Eu disse: “mas é justamente
quando esses caras se contorcem que eu gosto”. Quando eles estão ligados, quando eles
vão atrás é que eu os admiro. E isso aconteceu no “Cê” e no “Zii e Zie”. É o grande
momento da minha geração. O Caetano Veloso dando conta da gente, entrando em
contato com outras coisas, com outro tipo de som, com outro tipo de rock que ele não
ouvia, de uma geração que é influenciada por ele, mas que já o esqueceu, já foi para
frente. E ele consegue dar conta disso, e faz aquelas canções que só o Caetano é capaz de
fazer com o som dessa geração.

Essa é a grande vitória da minha geração e é o grande problema dela. É o que faz ela ser
anônima, ela não tem mais grandes questões para lidar. O Brasil não precisa mais disso.
O mundo já desmentiu tudo. Os idiotas estão escrevendo, compondo e filmando na
internet, quer dizer, não tem mais ninguém para organizar as coisas, então a gente fica
fazendo coisas que ninguém vai ouvir ou que muita gente ouve, mas não sabe quem é.

Ou que algumas poucas pessoas ouvem, e esse é o público…


E ai não tem grandes questões, não tem mais contra quem se rebelar, não tem mais o que
romper. O sujeito pega o celular e põe um filtro de Lomo e faz umas fotos legais para
caralho… [Risos] Aí fica legal, faz vídeo, são uns vídeos com filme antigo. Ai você fala:
que porra é essa? Todo mundo virou cineasta. É muito mais difícil a coisa se aprofundar,
se destacar.

Falando de forma imodesta, “Um Labirinto em Cada Pé” está no lado de cima dessa
geração. Tem uma coisa técnica impecável, que não se deve a mim, mas a todos os
músicos que gravaram e ao estúdio. Cada um sabe do seu instrumento, como grava, como
tira um som, o que é um amplificador, o que é um pedal. Isso parece uma bobagem, mas
é uma coisa muito forte nessa geração, de ter aprendido a coisa técnica. Então ele
pertence a categoria dos grandes discos tecnicamente gravados.
Ao mesmo tempo, tem essa vontade de lidar com a música brasileira e travar um diálogo
íntimo com ela, sem algum pensamento mais forte. O único pensamento que eu tenho é
fazer arte. Pode parecer uma bobagem, pode parecer papo de auto-ajuda, mas eu sinto
que isso está acabando. Acho que nunca foi tão necessário fazer arte, de pensar em arte.
Eu quero fazer uma canção bonita. Uma canção bonita que contenha todas as questões
que estão na minha cabeça.

E como você reuniu toda essa turma? Sinto no disco uma coesão fortíssima, embora
as composições sejam de autores diferentes…

Esse é o primeiro disco da minha vida que tive contato com músicos, que virei amigo de
músico. Era amigo de artista plástico, só tinha ideia de artes plásticas, vamos fazer uma
cuíca imitando um cachorro… E a capa vai ser assim: eu nunca apareço, são fotos de
umas obras de arte loucas, uns pés derrentendo, uns passarinhos dourados, uns cachorros
vira-lata… Aí chegava um cara e tocava um baixo acústico desafinado e pede desculpas
por não ter afinado. Mas a gente falava: “assim é que ficou bom”. Era um comportamento
de artista plástico. Nesse disco fiquei mais próximo de uma galera com quem consegui
travar um diálogo, de gente que entendia o que eu queria.

E essa turma de compositores?

Aí, encontrei o Rodrigo Campos. Eu chapei com ele em São Mateus… E por causa dele
eu fui conhecer o baixista Marcelo Cabral, que produziu o disco do Criolo e toca com o
Metá Metá… O saxofonista Thiago França entrou na onda, que era do samba de Belo
Horizonte e depois começou a tocar com o Quinteto em Branco e Preto em São Paulo e
mais tarde aconteceu o encontro com essa turma toda. É o tipo de músico que me agrada.
O cara fez faculdade de música, só ouvia John Coltrane, caiu no samba mais clássico e
daí vai se desenvolvendo, conhecendo outras possibilidades, encontrando novas pessoas,
influenciando e sendo influenciando por elas,. Esse núcleo foi se formando, nos vemos
quase todo dia, estamos envolvidos com o trabalho do outro. Eu estou no novo disco do
Rodrigo Campos. O Kiko Dinucci, o Cabral e o Thiago tocam no disco do Rodrigo. Aí o
Kiko com o Thiago tem o Metá Metá. E pela primeira vez na vida eu tive um núcleo
musical. Todo mundo entrou, os caras são da banda totalmente. E eu acho que é daí que
vem o aspecto coeso desse disco.

Se a gente perdeu a capacidade intelectual digamos assim, de pensar um país, de pensar a


canção brasileira, se a minha geração não teve capacidade para isso, por outro lado teve
capacidade para se virar e gravar seus próprios discos.

Falando um pouco da sonoridade. A gente observa um equilíbrio, apesar do


ecletismo. Uma profusão de detalhes, apesar da coesão. O cavaquinho fazendo
aquele contra-ponto com a guitarra, às vezes a guitarra vai na altura do
cavaquinho…

A guitarra tá o tempo inteiro com o cavaquinho. Quando o Rodrigo entrou na banda,


queria muito, porque o Gui (o guitarrista Guilherme Held) é meu meia-esquerda, ele é o
astro do time. Se você for a um show meu, vai ver. Tocando com todo mundo, ele é o
astro do time. Eu tinha essa sensação, vai entrar um outro cara tocando violão e guitarra,
como é que vai ser isso? O Gui foi totalmente na onda do cavaquinho. Ele pegou e se
ligou no cavaquinho do Rodrigo e formou naipes com o cavaquinho. O cavaquinho do
Rodrigo interferiu na guitarra do Gui. Acho que isso foi uma coisa muito forte no disco.

O ponto alto do disco…

O cavaquinho, que é um instrumento do samba clássico… Por isso que eu falo que a
pulsação do samba tá ali, mas não é samba. Apesar de ser samba também. Você pode
chamar aquilo ali de samba.

Como é que funciona o processo de composição?


Aí é um outro capítulo, desde antes do primeiro disco. É um núcleo formado por mim, o
Clima e Nuno. Isso é a coisa central até hoje, eu não sei como que vai ser a partir de
agora.

É o projeto de vocês que se cristalizou no “Labirinto”?

Não, é o assunto, é falado. Até nesse disco se cortou algo. Não antes, na composição isso
permaneceu. Permaneceu Romulo, Nuno e Clima. Quando chegou o disco que era uma
coisa que eles sempre estavam muito presentes, eles saíram fora. Nesse não tem Clima,
ele não esteve no estúdio, não mixou o disco comigo e o Nuno então menos ainda. Eu até
fico pensando o que será o próximo trabalho. Talvez o próximo seja só com canções
minhas, finalmente. Acho que eu me descolei um pouco deles nesse disco também. Do
ponto de vista sonoro, completa e absolutamente. Eles ouvem o disco e ficam meio
afastados. Eles são muito mais da cuíca latindo, arco dissonante, prato fora do tempo do
que esse groove arrumadinho, formatado. Mas eu me sinto muito responsável por essa
coisa da canção, por conta desse núcleo de composição e de discussão de canção. Desde
2001 que a gente faz essa porra sem parar, eu, Clima e Nuno.

Em busca de um formato?

Em busca de uma voz própria, de letras cada vez mais inventivas… Quando eu digo que
a letra é o aspecto central, é porque onde os caras estão plenos de sua capacidade. O
Nuno é um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos, por algum motivo
louco, parecido com o meu, ele foi virar artista plástico. Do mesmo jeito que eu virei
músico. A mesma coisa com o Clima, que é cineasta, artista plástico e o que mais quiser.

Você acha que a coesão do disco tem a ver com o aprimoramento técnico?

Tenho certeza que isso mudou a música brasileira, cara. Eu tenho certeza que foi o som
que fez o Caetano compor “Perdeu”. Ele não comporia “Perdeu” se não tivesse o Pedro
Sá fazendo aquela guitarra, e o Marcelo Callado (baterista) e o Ricardo (Dias Gomes,
baixista). É uma música pornográfica, ele nunca fez uma música pornográfica na vida
dele.

Se a gente perdeu a capacidade intelectual digamos assim, de pensar um país, de pensar a


canção brasileira, se a minha geração não teve capacidade para isso, por outro lado teve
capacidade para se virar e gravar seus próprios discos. Ela se desenvolveu nisso como
nenhuma outra geração. Essa é a grande contribuição que ela tem para dar. Ai você vai
me dizer que isso é muito pouco. Eu também acho que é muito pouco, só que depois de
10 anos aparecem coisas além da coisa técnica. Aparecem grandes canções. Acho que
agora que a gente já aprendeu a fazer a bagaça, já tem domínio sobre a técnica, começou
a aparecer a coisa da canção.

Acha que essa é uma geração de músicos em sentido estrito…

Todos são músicos. Aliás é uma geração de grandes músicos que é uma coisa que não é
tão comum. E tem uma coisa que é legal, que é o seguinte: o Curumim que é um monstro
de baterista, que tem o trabalho dele que adoro, música pop de altíssima qualidade, é
baterista do Lucas Santtana e do Guizado. Não é o Arthur Maia, não é o Paulinho Batera,
não é o Luizão Maia, não é o Arismar do Espírito Santo. Porque antes era uma coisa
assim: o Gil chamava o Jorginho Gomes, o Arthur Maia… O Caetano chamava o Lanny
Gordin, o Tutti Moreno. As coisas não se misturavam. O Curumim é batera do Arnaldo
Antunes, do Jeneci. O Jeneci é tecladista do Arnaldo Antunes, do Curumim, o Guizado
tem o próprio trabalho, toca trumpete. Então os músicos também são artistas agora no
sentido de criar a nova música brasileira. Isso se misturou também. E são grandes
músicos do ponto de vista da técnica.

O Thiago França é um monstro do saxofone, um monstro completo e absoluto, mas que


também entende de estúdio, de pedal, de gravação e isso é uma coisa muito rara. Não
tinha isso. Antes, na maioria das vezes, o maior baixista da história de todos os tempos,
mas era o cara que fazia o som dele ali, ele pedia alguma coisa. Agora não, agora o cara
chega e ele sabe mexer no negócio e tirar o som que quer. Eu acho muito forte isso.
Apesar de enfatizar essa questão da canção, por que você sente dissociado da
chamada “Lira Paulistana”?

Eu nunca faria uma música como “Diversões Eletrônicas” (do compositor paulistano
Arrigo Barnabé). Aquilo não me toca, eu fico incomodado e num certo sentido se realiza
nesse neu incômodo. Conheço a grandiosidade do Arrigo Barnabé, tenho admiração por
ele e pelo Itamar Assumpção, mas não me toca, nunca me tocou. Araçá azul (disco de
Caetano Veloso), por exemplo, que seria um parente próximo da vanguarda paulistana, é
um disco que me toca, que eu entendo. Eu acho aquilo muito hermético. Eu tenho
dificuldade com o Tom Zé, por exemplo, tirando o Estudando o Samba, que acho a obra
prima das obras primas. Mas quando o Tom Zé começou a ficar hermético demais, ficar
muito “amalucado”, eu tenho dificuldade. Eu quero, profundo, dar rasteira em mim
mesmo, dificultar o meu acesso à canção o máximo que eu puder. Mas, ao mesmo tempo,
quero fazer uma canção. É o João Gilberto, o mais alto nível de raciocínio artístisco. O
Tom Jobim se referia às músicas dele como “sambinhas”, quer dizer, é uma espécie de
ideal da vida. O cara compõe “Insensatez”, que é o mais alto nível da cultura mundial, e
aquilo é um “sambinha”. “Chega de saudade” é um sambinha. Mas isso não é pra todo
mundo, tenho que me contentar com isso.

A vanguarda paulistana era um negócio de momento, eu acho que eles tinham que se
destacar por isso, mas se descolaram muito da canção, por mais que eles digam que não.
Afinal de contas, como diz o Luiz Tatit, “canção é fala e tudo que é mais próximo da fala
é mais próximo da canção”. Tá bom, legal, eu entendi tudo, achei massa, mas não cara,
eu gosto de melodia, eu gosto de letra com melodia, eu gosto de canção, sei que eles
faziam canção, mas não é uma canção que eu goste.

Acho curiosíssimo ouvir isso de você, porque como te falei, “No Chão Sem o Chão”
você ta falando uma coisa, mas o que a gente ouve é outra. Penso que a tua canção é
“metacanção assoviável”, plenamente assoviável…
Então, mas é isso mesmo que eu estou querendo dizer, é o que eu procuro. E isso me
afasta da vanguarda paulistana.

O Itamar tem mais essa preocupação com a canção mesmo, diferentemente do


Arrigo…

Então, o Kiko Dinucci está resgatando o Itamar para mim, eu sempre gosto do Itamar via
Kiko Dinucci. Acabamos de fazer uma vinheta para a MTV sobre o dia dos namorados e
ai a gente tocou um Itamar, uma música linda. (Canta) “Quando eu estou longe,
loooonge, quero ficar perto”. (“Apaixonite Aguda”, do álbum Pretobrás I)

Porra, isso é demais

Lindo isso, né. Agora eu acho que se eu ouvisse o Itamar cantando, não ia gostar porque
eu já botei ele numa categoria assim, eu travei ele na minha cabeça de um jeito e o Kiko
ta ajudando a refazer isso. O Arrigo eu não entendi errado, eu entendi certo, o Arrigo é
um louco. Pierre Boulez, música dodecafônica… Reconheço a importância dele, acho um
cara inacreditável, inteligente, bom para conversar…

Mas é isso, eu fico tentando esgarçar a canção, mas quero esgarçá-la até dar a volta,
entende? Até virar canção de novo. Não quero que ela deixe de ser canção, não quero que
ela vire fala… Pode ser meio incoerente, mas tem o Nelson Cavaquinho, né? Eu quero
que aquilo permaneça, que aquele pulso, que aquela coisa por mais tensa que exista, você
se apegue àquilo. Eu quero que o ouvinte se apegue à canção pela tensão que ela te causa,
não por ela ser fácil, não por ela ser “cantarolável”. Quero que você se sinta atraído pela
canção, pela estranheza que ela tem, mas essa estranheza para mim não pode ser
hermética. “Máquina de fumaça” é uma canção que eu adoro, ela tem todos os conteúdos
que eu espero. Ela tem um groove que você não consegue parar de dançar. Aliás os
rappers poderiam samplear aquela bagaça para fazer coisa…

Fiquei surpreso com o arranjo funky…


Tem um timbre seco…

… É solar…

É, mas é um solar curioso porque tá falando de morte. “Morria de um cachorro que me


conduzia”, “esse pano que me esfregava desde que eu nasci”.

O que você espera de “Um Labirinto em Cada Pé”? Você acha que será ouvido por
um público mais amplo?

Ah, eu sempre espero isso. Eu quero que as pessoas ouçam. E eu quero que elas
apreendam isso sem ter que ter ouvido os outros. Eu quero que “Boneco de Piche”
funcione por si mesmo.

Eventualmente, sobretudo sem ter ouvido os outros…

Sobretudo sem ter ouvido os outros, que ela funcione. A cada disco que lanço é um disco
inédito. Teve um maluquinho agora lá, tava vendo no twitter que falou: “Nossa, esse
“Um Labirinto em Cada Pé” é tão bom quanto o primeiro disco do Romulo, “No Chão
sem o chão”. O cara não sabe que eu fiz dois discos anteriores. Então a impressão que eu
tenho é isso, que a cada disco é um disco inédito. Cada vez novos jornalistas vem falar
comigo e falam: e ai, esse é o seu primeiro disco? É muito louco isso.

Não é à toa que eu já fiz mais de duas matérias pra jornal falando de geração, de cena.
Parece que não forma uma história, parece que os dez anos não se passaram, que não tem
uma cena. Só que agora eu acho que começa pelo menos nos meios mais tradicionais dos
jornais, começa a se organizar. Hoje na Gazeta do Povo, de Curitiba, tem uma matéria
falando sobre isso, pegando o gancho d’A Banda Mais Bonita da Cidade para falar da
geração de curitibanos, dos “novos curitibanos” – já inventaram esse rótulo. Mas aí o cara
pega e amplia isso para a geração como um todo.
Fiz uma longa entrevista com o Marcus Preto, da Folha de São Paulo em torno disso.
Esse assunto tá sendo mostrado, tem uma música sendo feita no Brasil já faz dez anos e
ela tem características próximas. E eu sinto falta de que meu disco rebata nos outros. E
ele não rebate porque cada vez tem alguém que está ouvindo pela primeira vez.

GUILHERME GRANADO (HURTMOLD)


Após cinco anos na estrada, imersos em projetos paralelos, os integrantes da banda
paulistana Hurtmold estão de volta com um álbum intitulado Mils Crianças (Submarine).
Antecipo a crítica do álbum (que sai amanhã!) e afirmo sem medo de errar: trata-se de um
trabalho diferente de tudo o que o grupo fez até então. Mils Crianças traz uma banda em
grande forma, que surpreende mais uma vez pelo caráter exploratório e pela absoluta
ausência de compromisso com gêneros e estilos. De cara, o que mais chama a atenção é o
contraste entre a imagem psicodélica que provém do título e a economia arrojada de suas
nove composições.

Da mesma forma, as palavras sóbrias de Guilherme Granado contrastam com o fato de


que ele pertence a uma das bandas mais importante da música brasileira da primeira
década deste século. “Eu vejo nosso trabalho como algo bem prático: começamos a fazer,
continuamos fazendo e agora estamos aqui, onde quer que seja”, declarou ao Matéria em
entrevista virtual. Uma banda que explora a riqueza dos contrastes, mas evita ao máximo
as contradições…

Formado em 1998 por Granado (teclado, vibrafone, eletrônicos), Mauricio Takara


(bateria e trumpete), Marcos Gerez (baixo), Mário Cappi (guitarra), Fernando Cappi
(guitarra) e Rogério Martins (percussão e clarone), o Hurtmold se mantém na defesa da
bandeira do punk, manifestada pela aversão a toda e qualquer forma de cinismo
estratégico ou compromisso com rótulos. Parte da perspectiva estóica do grupo pode ser
apreciada no documentário Agatha Christie, lançado em meados de 2012 e dirigido por
Felipe Navarez, que registra dois shows da banda pela Bélgica.
Contudo, o grupo não é simplesmente um dos responsáveis pelo aparecimento e
desenvolvimento de outras vertentes da música instrumental brasileira, para além da
“ditabranda” fusion/samba-jazz. Eles também se ramificaram em uma série de projetos de
reconhecida importância, tais como Bodes e Elefantes (de Granado, que também possui
um projeto solo), Chankas (de Fernando Cappi), MDM (Mário Cappi), M. Takara, entre
outros, ampliando ainda mais o espectro de atuação e criação do coletivo. Soma-se a isso
o fato de que hoje colaboram com artistas do calibre de Rob Mazurek, Pharoah Sanders,
Bill Dixon, Prefuse 73, entre muitos outros. Relevância é ainda uma palavra insuficiente
para descrever a atuação do grupo no cenário geral da música brasileira, e na cena
paulistana em particular.

Abaixo, a entrevista virtual que fizemos com Guilherme Granado. Amanhã, crítica para o
disco Mils Crianças. Boa leitura.

Bernardo Oliveira

***

Começo a entrevista com uma pergunta anti-entrevista: Edmundo Clairefoint, que assina
apresentação do documentário Agatha Christie, afirma que o filme retrata “a inexistência
de perguntas e a falta de respostas (…) o significado soterrado por essa preguiça de falar,
de conversar, de explicar”. Podemos estender essa definição ao trabalho do Hurtmold?
Algo semelhante a um “discurso sobre o nada” ou a ausência absoluta da necessidade de
se criar um discurso sobre o próprio trabalho?

Acho que não precisamos, nem queremos criar um discurso sobre o que fazemos. Não
por preguiça, ou pelas músicas serem vazias de significado. Não é esse o caso. Só acho
que a nossa música deve falar por si só, sem amarras a nenhuma “escola” ou qualquer
coisa do tipo.
Em todo caso, trata-se de um trabalho repleto de referências (do punk ao pós-rock, do
dub ao jazz espiritual, etc.) que se catalisam em um resultado original. Durante mais de
uma década em atividade, como você descreveria ou resumiria a posição do Hurtmold no
cenário da música brasileira da última década?

É realmente difícil pra mim descrever ou apontar isso. Até porque nunca pensei sobre
isso, e acho que ninguém da banda pensou. Nunca conversamos sobre algo do tipo. Eu
vejo nosso trabalho como algo bem prático: começamos a fazer, continuamos fazendo e
agora estamos aqui, onde quer que seja. Gostamos de tocar juntos e somos amigos muito
próximos. Simples assim.

Quando você afirma que as músicas não são vazias de significado, fico me perguntando
que significados são esses? Ou é algo que vocês pretendem que o público mesmo
descubra?

Acho que esses significados são muito pessoais pra cada um de nós. Acho que entre nós
mesmos temos interpretações e sentimentos diferentes por cada canção, ou até passagens
particulares delas. O mais legal é deixar cada pessoa achar o significado que ela quiser,
ou a sua própria relação com cada música.

Para mim, há um apelo imagético muito forte: podemos imaginar cenas de um filme
escutando as convenções e mudanças de clima em “SNP”, ou o sotaque afro de
“Tomeletomele”… Como vocês lidam com a influência de artes extra-musicais?

Tudo influencia, acho que a vida mesmo é a nossa maior influência. Quase não
conversamos sobre música, conversamos sobre a vida, somos amigos há muito tempo e
realmente passamos tempo juntos, fora da hora de tocar. E isso é cada vez mais a nossa
maior influência. E não só entre nos seis, mas nossas famílias, amigos, etc.

Li em uma entrevista recente (para a Soma) que vocês se consideram uma banda punk e
entendi como se fosse uma provocação ou uma alusão à filosofia de vida ou de trabalho.
Isso por conta da diluição do discurso punk nos dias de hoje, como ocorre em diversos
segmentos do hip hop, por exemplo. Como o punk se reflete na vida e no som de vocês
hoje?

A maneira como eu entendo o punk rock ainda informa muito tudo o que eu faço, tanto
na música como fora dela. Sei que isso também serve para o resto da banda. O Hurtmold
é, sim, essencialmente uma banda de punk rock. Até porque nossa ideia de punk é bem
aberta e permissiva, no sentido estético. Não acho que foi uma “provocação”, de maneira
nenhuma. É sim, uma afirmação de como vivemos e trabalhamos. Mas é estético
também.

Tem mais a ver com a questão ética (independência, “faça você mesmo”, cooperação,
etc.) do que propriamente com uma sonoridade?

A questão da independência, num sentido bem amplo, conta bastante. Mas a sonoridade
também faz parte, crescemos ouvindo punk rock (e muitas outras coisas) e ainda ouvimos
esse tipo de música, com certeza. E isso, de alguma maneira, vai aparecer no que a gente
faz.

Na mesma entrevista você diz que considera Mil Crianças como “o nosso disco mais
estranho” (no que eu concordo). Você acha que essa estranheza resume o contraste entre
o primeiro Hurtmold (de 3am: A fonte secou e Et Cetera), para o Hurtmold a partir de
Mestro e do penúltimo disco? Mils Crianças é, assim, um disco de síntese?

Difícil analisar isso. Acho que Mils Crianças é uma síntese desses últimos cinco anos,
antes de tudo. Em nenhum momento conversamos ou pensamos sobre dialogar
diretamente com nenhum trabalho anterior ou com a nossa “obra”. Fomos compondo,
resolvendo problemas, polindo as coisas e esse foi o grupo de canções que saiu no final
desse processo. Mas, é claro, somos as mesmas seis pessoas, com as mesmas
experiências e tudo isso informa e aparece no que a gente faz.
Vocês passaram cinco anos sem lançar, mas não pararam de trabalhar. Acompanharam
Pharaoh Sanders e Marcelo Camelo e levaram adiante seus respectivos projetos solo. Em
que medida, pelo menos de sua parte, Mils Crianças reflete a contribuição de todas essas
experiências externas ao grupo?

Não existe separação. Tudo que a gente viveu, musicalmente ou não, vai entrar no
processo de composição. Não consigo exatamente apontar momentos ou escolhas que
vieram por causa de uma experiência específica. Mas está tudo lá, com certeza. Todo
mundo que a gente conheceu, colaborou, viu e ouviu faz parte do disco. Aliás, obrigado.

Um amigo me disse algo do tipo: “ao invés de se mover por expansão/contenção, o


Hurtmold se move na horizontal: mais notas/menos notas; mais brilho/menos brilho.”
Sob o ponto de vista da concepção, existe um conceito ou uma estratégia deste nível por
trás das tramas instrumentais de Mils Crianças?

Não. Nossa ideia é fazer música que fale ao nosso coração e espírito e que, com sorte,
chegue também nas pessoas.

Como eu já disse, acho realmente o Mils Crianças o disco mais estranho do Hurtmold,
sobretudo em comparação com o clima de experimentação jazzística do disco de 2007. O
clima excessivo e os improvisos mais ruidosos permeam o disco anterior, enquanto Mils
Crianças é límpido, quase apolíneo — talvez por isso o considerem mais “acessível”.
Quais as principais diferencas que você detecta no processo de criação entre um e outro?

Demoramos cinco anos pra fazer esse disco. O processo de composição foi mais longo, e
até por causa disso, mais esmerado. Cinco anos se passaram nas nossas vidas e isso conta
muito pra uma pessoa. Estamos cinco anos mais velhos. Colaboramos com muita gente,
tocamos bastante, viajamos pelo mundo e isso claro que conta também. Eu não consigo
exatamente dizer “isso ou aquilo esta diferente”, até porque estou dentro do furacão e pra
mim tudo acontece naturalmente. Acho que as músicas do disco anterior talvez fossem
mais longas, com passagens mais estendidas, e esse pode ser visto como mais “direto”
por algumas pessoas. O tempo das canções é uma diferenca clara, pra mim.

Tempo em que sentido? Duração das faixas ou os ritmos compostos? Pergunto porque
Mils Crianças é um trabalho muito rico do ponto de vista do ritmo. Não em relação aos
compassos compostos (com destaque para “Joji”, que se não me engano é em 6/4), mas
também quando vocês criam ritmos paralelos (a bateria vai prum lado, o baixo pro outro),
e jogam com o andamento (como por exemplo na guitarra que introduzem “Hervi”)...

Eu quis dizer na duração das faixas mesmo. Elas são mais curtas.

Eu acho, e já disse antes, que o Hurtmold é uma banda basicamente percussiva. Ritmo
sempre contou bastante nas nossas composições, e não só nos instrumentos de percussão.
Acho que de uma maneira ou de outra, isso sempre esteve presente nos nossos trabalhos.

Mils Crianças soa mais minucioso, detalhista e econômico, como se pode escutar em
faixas como “Tomeletomele” e “Cleptociprose”, entre outras. Como funciona esta
dinâmica de construção e estruturação das músicas? Mais de uma década depois, você
possuem algo como um método de composição?

Acho que temos algo que se pode chamar de “método”. E isso consiste em não ter
nenhuma ideia pré-concebida de como nenhuma canção deve soar. Trabalhamos juntos,
os seis, o tempo todo em todas as músicas. Todas as ideias são esmiuçadas e mexidas.
Ninguém, pelo menos até hoje, chegou com alguma canção ou estrutura já pronta. As
músicas partem de ideias, fragmentos, conversas. A partir de uma pequena ideia todos
começam a trabalhar, testar e tentar até que obtemos, ou não, alguma coisa que nos diz
algo.

Sobre seus trabalhos solo como Guilherme Granado: este ano assisti a uma apresentação
no Walden e me surpreendi com o caráter espiritual que você imprime na composição e
na interpretação — que de certa forma também está presente no Bodes e Elefantes. Há de
fato uma inclinação pessoal místico-religiosa, ou seu interesse é puramente musical?

Eu me considero uma pessoa espiritual. Não no sentido religioso. Não tenho religião.
Mas sei que, pra mim, em muitos sentidos, ouvir e fazer música ou arte me conecta com
as pessoas e com o mundo de uma maneira que eu só posso dizer que é espiritual. Não
faço isso conscientemente, não tento fazer de nada uma experiência “religiosa”, mas
acho, sim que isso pode acontecer. Não diria que meu interesse é puramente musical. Não
sei apontar com precisão meu interesse... Acho que as palavras “busca” e “conexão” são
as que mais se aplica. Com quem esta vendo, ouvindo, com o que esta tocando, com a
sala, com tudo.

Sobre os próximos projetos: existe alguma previsão de lançamento, tanto de Guilherme


Granado quanto do Bodes e Elefantes?

Não existe previsão. Tenho coisas gravadas, coisas compostas. É cada vez mais difícil
lançar discos. Mas tem material sim, é só encontrar a melhor maneira de registrar e de
colocar na rua. O São Paulo Underground tem um disco novo gravado e deve sair em
algum momento em 2013.

Quais os motivos que te levam a considerar que está cada vez mais difícil lançar discos?

Acho que um dos principais motivos é econômico mesmo. As pessoas não compram mais
discos como compravam. E isso nos deixa, nós que produzimos os discos, numa posição
de reavaliar como fazê-los e como produzi-los. Não estou reclamando ou criticando, só
estou apontando um fato. Existem custos a serem levados em consideração, e isso às
vezes faz com que você demore mais pra terminar um disco e colocá-lo na rua, seja qual
for o formato (cd, vinil, download, etc.).

Diante das turbulências e incertezas do mercado fonográfico, como vocês que fazem
música independente estimam que será possível produzir e lançar discos a médio e longo
prazo? Você concorda com vários críticos e estudiosos que afirmam que o formato
“disco” está com os dias contados?

Realmente não sei como responder essa pergunta. O que me parece é que o formato
“álbum” não acabou, a única coisa é que as pessoas não querem mais pagar por isso. Mas
o formato long-play não é tão antigo assim também. Já foi diferente, e não há tanto
tempo. O número de lojas de discos e selos independentes fechando e sumindo é um sinal
(pra uns bom e pra outros ruim) do que vem acontecendo. E os artistas um pouco mais
mainstream (ou nem tanto) procurando “patrocínio” ou “apoios” de grandes marcas ou
corporações tambem é um sinal. Me parece que o grande dinheiro ainda continua nas
mesmas mãos e as pessoas talvez tenham inventado uma fantasia de que o grande mal
(nesse caso, as grandes gravadoras) estejam perdendo força. Mas, sinceramente, qual é a
grande diferença entre a Sony ou a Universal e a Nike, Coca-Cola, Red Bull ou algo do
tipo? Dito isso, é muito legal ver que as pessoas tem acesso à música de uma maneira
rápida. Mas também existem muitas meias-verdades e ilusões sobre a “democratização”
da música por causa da internet, me parece. Vamos ver o que acontece, realmente nesse
momento tudo parece em aberto

E para terminar: o que mais te chamou atenção na música dos últimos meses? Você
toparia dizer o que mais te agradou musicalmente em 2012?

Não tenho acompanhado muitas “novidades” ultimamente. Acabo ouvindo e procurando


as coisas de sempre pra mim. Mas em 2012 vi muitos shows bons, dos meus amigos. M.
Takara, Response Pirituba, MDM, Chankas, Rodrigo Brandão, Objeto Amarelo me
trouxeram belos momentos no ano. Gostei muito do disco do Glenn Jones (não sei se saiu
esse ano), Pusha T, os discos dos meus amigos Josh Abrams Natural Information Society,
Doug McCombs & David Daniell, o Pulsar Quartet do Rob Mazurek. Ah, tem ep do
Bonnie Prince Billy também (Now, here's my plan).*

VINCENT AHEHEHINNOU (T.P. Orchestre Poly-Rythmo)


Nada mais espantoso do que a longevidade da Orchestre Poly-Rythmo. Estamos nos
referindo a 40 anos de carreira e mais de 500 gravações, números impressionantes até
mesmo para os Rolling Stones! Mas a ambição dos integrantes do grupo parece ir além
da longevidade. A julgar por suas gravações e concertos, eles insistem em manter a
energia tal e qual seus primeiros anos de atividade, uma inescapável obsessão do grupo.
Longevidade e energia: antes de mais nada, a Poly-Rythmo demonstra força de sobra
para continuar compondo, tocando e gravando. Sorte a nossa.

“Cotonou Club”, agora editado, é o primeiro álbum do grupo com lançamento mundial. A
turnê mal começou e seus integrantes já plenejam a gravação de um novo álbum. Energia,
como eu dizia. Quem teve a oportunidade de assistir a uma das catárticas apresentações
do grupo pode ter uma ideia de seu potencial. “Cotonou Club” já obteve crítica da FACT-
PT. Agora é a vez do depoimento de Vincent Ahehehinnou, cantor e membro original da
banda, que explica o processo de criação, as influências e nos assegura que o grupo
prossegue.

A primeira vez que escutei a Poly-Rythmo fiquei muito impressionado com a


originalidade da música. A faixa era “Minsato le, mi dayihome”. Seis anos se passaram e
escutar “Pardon” me causou muita emoção! A música continua vigorosa, colorida e com
um swing impressionante. Como é o processo de criação da banda, como vocês chegam a
essa sonoridade?

O processo é bem complexo, mas geralmente cada compositor escreve sua canção (letra e
música) e, em seguida, mostra ao grupo que pode adicionar alguns elementos. Para o
álbum “Cotonou Club” foi um pouco diferente pois não trabalhávamos todos juntos há
quase 30 anos. Antes nós entrávamos no estúdio e poderíamos gravar um álbum em uma
noite. Neste disco, ensaiamos no Benin e em seguida fomos para uma residência artística
no interior da França por duas semanas, para trabalhar as nossas músicas e escrever
novas. Então, finalmente, gravamos em um estúdio analógico em Paris, em duas sessões
espaçadas em dois meses.
Considera que “Cotonou Club” é um álbum diferente dos anteriores? Em que sentido?

É uma ponte entre a velha e a nova Poly-Rythmo, no sentido em que continuamos com a
lógica da sonoridade e das criações antigas e, sobretudo porque nós gravamos
analogicamente que é uma característica dos nossos discos. Mas desta vez tivemos a sorte
de ter algumas participações, graças a Elodie Maillot (jornalista da “Radio France”, da
“Vibrations”). Para descobrir “Cotonou Club” tem que ouvi-lo várias vezes e entrar nos
detalhes.

Como foi contar com dois membros do Franz Ferdinand na gravação do último disco, e
também excursionar com eles?

Foi graças a Elodie Maillot que, por insistência nossa tornou-se nossa produtora e
empresária. Foi graças a ela que saímos da África pela primeira vez. Um pouco depois de
nos reunirmos no Benin para uma entrevista, ela também havia entrevistado os músicos
do Franz Ferdinand, que sonhavam em nos conhecer. Passamos cinco dias juntos em
Paris ensaiando para um concerto e, finalmente fizemos a música juntos.

Fale-me a respeito das primeiras apresentações fora de Benin. Soube que até 2007, a
Poly-Rythmo nunca tinha saído da África. Como foi a recepção? E a banda, como reagiu?

O que nos aconteceu, não havíamos imaginado nem em sonho. Nunca imaginamos que
tocaríamos e gravaríamos na Europa, ou mesmo iríamos para o Brasil. O público europeu
é muito diferente do público do Benin, que normalmente é muito calmo, enquanto isso na
Europa as pessoas se levantam, gritam e nos pedem para voltar, mesmo quando já saímos
do palco.

Ouvi dizer que James Brown foi mais importante para a Poly-Rythmo do que Fela Kuti.
Qual a dimensão da importância do soulfunky concebido por James Brown para a banda?
Ele inspirou nossa música desde o início, só conhecemos Fela anos depois, James Brown
foi desde sempre… “Yaooooooo I feeel goooodd!!!”

Em que sentido Brown influi na sonoridade das bandas africanas nos anos 1970,
principalmente as da Costa Oeste?

Era uma época em que só havia a música soul e funk, não havia outra música estrangeira
capaz de competir com o poder do soul.

Percebe-se algumas acentuações rítmicas semelhantes a ritmos brasileiros, sobretudo da


Bahia. Ouvi dizer que vocês tem ancestrais brasileiros. Esta informação procede?

Não temos parentes no Brasil, são os brasileiros que têm parentes aqui na África. Mas,
efetivamente em Salvador na Bahia nos sentimos em casa, pois até a comida é muito
parecida. Visitamos pequenos restaurantes e supermercados e os produtos são os mesmos
que encontramos no Benin. Existem também gêneros musicais brasileiros que são muito
presentes no Benin e são parte do patrimônio cultural nacional, chamamos de Bourignan
(Nota: tradição de dança e música levada pelos Agudás, descendentes de escravos que
retornavam do Brasil para o Benin).

Ouvem ritmos contemporâneos como o hip-hop? Existe alguma possibilidade de que a


Poly-Rythmo incorpore algum desses gêneros?

Não, não poderíamos incorporar esses gêneros em nossa música lá … porque este
gêneros apareceram 40 anos depois de nós já existirmos… Nós até tentamos um pouco,
mas não muito, no entanto alguns rappers nos sampleiam e entendem nossa música…
Quarenta e dois anos de carreira, mais de quinhentos discos, uma das discografias mais
cobiçadas do planeta, considerada hoje por muitos a maior bandas de funk-soul do
mundo: a que o sr. deve a longevidade da “tout pouissant” Poly-Rythmo?

Nossa longevidade se caracteriza pelo espírito de equipe, pela disciplina do grupo e pela
personalidade forte do nosso maestro, Mélome Clément.

Quais os planos da banda após a divulgação de “Cotonou Club”?

Pretendemos sair em turnê e gravar um novo album. Já estamos trabalhando num


próximo álbum, trabalhando uma nova dimensão da nossa música a partir das turnês
mundiais. E, a longo prazo, pretendemos de abrir nosso “dance bar”, o Zenith Sikècodji.

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