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http://www.factmag.com/pt/
***
3. Som e barulho
Sterne: “The Audible Past” e MP3
Hagarty: Noise
Attali: The Politcal Economy of Music
Natural, portanto, que ignoremos muitas das oposições e práticas que enclausuram o
sentido da produção musical em nichos rarefeitos e insuficientes – por exemplo, alta
cultura x baixa cultura, nacional x popular, popular x erudito, eletrônico x acústico,
nacional x internacional, etc. O interesse pela música ultrapassa tais oposições, pois se
manifesta de forma mais rica e complexa do que a política dos rótulos, das marcas e do
gosto subjetivo podem supor. Ao mesmo tempo, buscamos considerar as obras e os
artistas à luz de seu próprio contexto histórico, dos debates acerca dos modelos de
produção e divulgação, dos hibridismos culturais e da acessibilidade aos meios técnicos
que caracterizam a produção musical contemporânea.
***
Tem alguma razão aqueles que, soterrados pela avalanche da produção cultural dos
tempos "internáuticos", reivindicam o tempo do álbum, que é o tempo do filme e do livro,
isto é, um tempo que suspende necessariamente o ritmo da produção e do trabalho, que
exige um outro grau de concentração, que de alguma forma está associado à ideia de
infinito, de suspensão da identidade, de radicalização do ponto de vista de quem quase se
mistura à obra... Eles reivindicam seu próprio tempo, e como poderiam fazer diferente?
No século passado, a sala de cinema, o álbum de vinil, o teatro, a biblioteca constituíram
espaços e dispositivos que, paradoxalmente, favoreciam uma tal dilatação do tempo do
capital e, assim, do(s) sentido(s) da obra.
Mas também não há como negar que esta reivindicação não deve ser encarada como um
modo absoluto da percepção e da intelecção das obras de arte. É evidente que esta
perspectiva não se aplica a tudo o que acontece hoje, não só em termos de artes e
adjacências, mas também em relação à política. Geralmente se identifica a situação atual
pela velocidade e pela superficialidade, mas antes de tomar essas palavras como
sinônimo de uma experiência "vazia de sentido", ninguém se pergunta pelas
potencialidades efetivas de uma política da fruição estética que é majoritariamente
caótica, apátrida, atemporal. Como poderiam, se esses modos de perceber a obra estão
sendo reformulados e ressignificados a todo instante? A "verdade" não está
necessariamente na profundidade, nisso estou com Nietzsche, que foi um filósofo da
superficialidade, atento à "pele das coisas"...
A bem da verdade, quem critica o estado de coisas como Simon Reynolds ou Lorena
Calábria (que em seu Twitter clama para que "parem de vazar tantos discos!") apenas
reivindica seu próprio "tempo infinito", em outras palavras, sua formação, seus hábitos,
sua cultura, sua mentalidade. Não adianta bradar aos quatro ventos que "é impossível
ouvir 5 discos em um dia, ou ver 3 filmes..." O que define a virtude em nossa época não é
uma certa capacidade de fruir/consumir/armazenar cultura e informação, mas ter clareza
quanto a o que você está fazendo com tudo isso...
A OFENSIVA CULTURAL
Compartilhamento de Arquivos, Audiofilia e Capitalismo
Capital Universal
Duas realidades no atual estágio do capitalismo ficam a cada dia mais evidentes.
Primeiro, a substituição da linguagem do marketing pela linguagem do design, como a
principal depositária das estratégias de comunicação vinculadas à reprodução do capital.
Não se concebe mais a relação entre produção e consumo como um fator relativo à libido
direcionada, “consumista”, mas à própria libido em si. Assim, o ato de consumir não se
resume à mera satisfação de vontades pontuais, mas refere-se à construção de uma
identidade clara e distinta, ainda que eventualmente ilusória.1
1
Como na perspectiva ordenadora do jornalista e designer David McCandless, que trabalha com os
chamados Dataviz, gráficos multicoloridos nos quais cada cor exprime o resultado de pesquisas e
estatísticas. Através desses “mapas”, McCandless tem por objetivo “retirar o véu de algumas conexões que
estavam encobertas pelo excesso de informação que às vezes não conseguimos interpretar”, e completa:
“mapas nos ajudam a achar caminhos quando estamos perdidos, (..) como um guia que permite navegar
através dele. Você acaba engajando as pessoas através de um fascínio visual. E isso é lindo – e muito
poderoso”. Assim, o jornalista suprime os conflitos e as nuances do jogo político, para favorecer a
produção de um desenho informacional redutor, achatando a realidade complexa das coisas, em favor de
maior compreensão. Cf.: http://blogs.estadao.com.br/link/informacao-conceito-desenho/
exemplos mais graves podem ser elencados a título de exemplo: "justiça", "consciência",
"sexo". Francamente, quem endossaria hoje uma compreensão unívoca e universal destes
termos, a não ser pela mais inconfessável inclinação etnocêntrica?
Por conseguinte, e este é o segundo fator, não interessa mais valorizar a mera
universalidade. Antes, é preciso fazer jus a este processo de autoreificação localizada, o
que leva o foco do capitalismo não para os consumidores universais, que figuram nas
“pesquisas de mercado”, mas para os particularismos de cada tribo, de cada povo,
território, enfim, de cada “cultura”.
Enquanto a fragmentação dos mercados serviu aos propósitos da grande indústria, ela se
manteve como uma contingência do próprio mercado, na pior das hipóteses, um acidente
de percurso. Mas agora, começa a lhe trazer problemas, pois tanto a aceleração da
comunicação, como a crise financeira dos grandes centros, ocasionam o fortalecimento
de outros centros, costumes, rituais, imagens, palavras e sons. Sua hegemonia não perdeu
a validade, mas apresenta sinais de um paradoxo: o desgaste perene.
Como esta perspectiva pode introduzir uma série de contrasensos no âmago de uma
geopolítica instável, trataram de domesticar o assunto. Assim, no início da década
passada, vimos emergir o discurso multiculturalista, sob a forma de políticas públicas nos
chamados países de primeiro mundo. Um multiculturalismo falso, porém investido de
propósitos muito claros: tratava-se de uma última e vã tentativa de apaziguar os conflitos
sócio-raciais, nivelando as expectativas em prol de uma “nova ordem mundial”.
Crise do Formato
Na primeira parte busquei identificar a modulação do valor da mercadoria,
particularmente no que diz respeito ao compartilhamento online de arquivos digitais, que
se apresenta sob o seguinte paradoxo: a mercadoria “tornou-se maleável em relação à
cultura local, em desacordo com regras impostas pela linguagem universalizante do
mercado.” A fricção entre universalidade abstrata do deusmercado (com a moral em
baixa…) e o turbilhão libidinal proveniente das diversas culturas, implodiu a própria
noção de mercadoria. EMI? Som Livre? Contrato? “Advanced”? Charts, jabáculês e
demais dispositivos de manipulação? E o que restou disso tudo, se não a própria música?
Otimismo? Talvez. No entanto, não importa que você seja um otimista ou um pessimista,
um cínico ou um militante, pois com relação a esse assunto estamos implicados em um
futuro que coabita o presente e se debate com o passado, para o qual se buscam respostas
que nunca virão de forma ampla e definitiva. A respeito de um tema que anda em voga, a
autoria, percebe-se que um campo de batalha marcado por questões insolúveis e disputas
vacilantes, alvejado diariamente de forma implacável por situações com um alto grau de
ineditismo. Neste contexto, alguns veem um prejuízo irreversível para as noções de obra
e autoria, com o agravante de que, para o autor propriamente dito (o compositor, o
escritor, o roteirista), a vida nunca foi fácil...
Não obstante, a defesa da autoria aderiu ao liberalismo como mais uma tentativa de
naturalização do capitalismo, devidamente acompanhada pela força policial e o serviço
secreto. Porém, dificilmente se pode ignorar as objeções pertinentes de Bernardo
Carvalho, um dos poucos a fazer um defesa da autoria de forma a extrair consequências
plausíveis de um futuro que já está aqui, mas que não equacionamos devidamente. E, em
sentido oposto, Hermano Vianna contribuiu para desconstruir a universalidade aparente
do direito autoral, descentralizando o sentido vigente da expressão, citando um ensaio do
antropólogo Alexandre Nodari, que expõe a relação conflituosa entre a posse e
propriedade.
Nesse debate, porém, a discussão acerca da relação ambígua do autor com o valor-
mercadoria ficou de fora. Flexibilizando ou conservando os direitos autorais, ainda assim
conserva-se, de ambos os lados, uma forma de se escutar a música gravada. Assim,
convém sublinhar a aderência imediata do autor à mercadoria universal, sob a forma de
um modelo específico de apresentação: o formato, não o contrato. Independente da
internet e do "contrato", o autor pereceria no sistema montado pelas grandes empresas na
medida em que a petrificação do formato já lhe prejudicaria – antes da internet,
compactos, singles e outros formatos menores, adequados para autores menos
conhecidos, já eram coisa rara no Brasil... Portanto, não é a ausência de leis ou o seu
descumprimento que prejudica os autores e a indústria, muito menos a flexibilização das
relações comerciais, mas a cumplicidade cínica entre autores, indústria e uma noção
comum do que vem a ser a “forma-mercadoria”. É o apego oportunista à mercadoria
clássica, fundada sobre a noção de propriedade e apresentação material, o elemento
cambiante que joga todo esse universo em uma crise sem precedentes.
Autoria/Audiofilias
Em contraponto a esta guerra, um grupo de jornalistas e pensadores insistem em defender
o legado histórico e político do capitalismo anglo-saxão sob a perspectiva de elementos
que são mais produto de um desenvolvimento ulterior do que propriamente o centro do
universo. Me refiro à cultura audiófila anglo-saxã, que submete a vivacidade desses
conflitos à prerrogativas técnicas e culturais, sedimentadas sobre o termo "audiofilia". Por
isso gostaria de me ater a um exemplo determinado, no sentido de demonstrar ao leitor de
que forma a maleabilidade dos formatos, da estética, das trocas culturais, políticas e
econômicas, pode criar as condições para que eclodam soluções singulares, de maneira a
repercutir no modo como as pessoas avaliam sua relação com a arte e seus respectivos
suportes.
No caso da música, essa questão ressoa de forma particular, mais do que no cinema e nas
demais artes. Não só porque os sons estranhos, ocasionados por dificuldades técnicas de
amplificação e reprodução, podem ser incorporadas à concepção musical, como no caso
do Konono N.1 – na medida em que o timbre estridente das kalimbas do grupo congolês
é resultado da experiência "mal-sucedida" de amplificação. Mas porque indica que o
contexo audiófilo comporta toda sorte de experiências, respaldando-se nas respectivas
formas de se escutar e reproduzir a música.
Com este argumento, não pretendo desvalorizar a reflexão a respeito das perdas de
frequências, fidelidade, etc, ocasionadas pelo hábito de se escutar música no computador.
Mas existem ganhos que não são passíveis de uma avaliação puramente técnica. Por este
motivo a audiofilia não deve ser abordada como um conceito absoluto, meramente
técnico ou histórico, uma tendência geek que valeria por si só. Antes, convém apreciá-la
como uma noção antropológica, que comporta muitas possibilidades de relação com a
escuta. É uma tendência da escuta – das muitas escutas possíveis – ambientar-se no seu
universo sonoro específico e contingente, tanto no que diz respeito às demandas estéticas,
quanto nas relações possíveis com o formato, o suporte, a resolução e o tipo de aparelho
que opera a execução das faixas. A virtude aqui consiste em encontrar um conjunto de
soluções culturais e ambientar-se nele de forma positiva, a despeito da precariedade
técnica e da miséria.
Experiência e Procedimento
Em “On Jazz”, célebre e polêmico ensaio datado de 1936, Adorno contribuiu
decisivamente para elevar a tensão entre dois universos supostamente inconciliáveis: o
erudito e o popular. Com o objetivo de produzir uma crítica social do jazz, relacionando-
o ao caráter alienante da indústria cultural, o filósofo alemão empregou um conjunto de
palavras e expressões nada amistoso, que expuseram, para além de suas ideias e artifícios
de argumentação, o sentimento de antipatia e incompreensão. Segundo Adorno, nos idos
da década de 30, a chamada hot music se caracterizava por uma “fraqueza neurótica” e
pela “excentricidade”, por constituir uma expressão “alienada”, “castrada”, “excêntrica”,
“banal”, “vital”, “inconsciente”, “escrava”, “ornamental” e “sexualmente exacerbada”.
Por fim, conclui: “Talvez por este motivo, os povos oprimidos podem ser considerados
especialmente preparados para o jazz.”2 Mais do que uma defesa eurocêntrica da cultura,
ou de uma reflexão acerca da nascente indústria cultural, “On Jazz” perdura como um
documento incontornável na abordagem de uma suposta oposição entre “cultura erudita”
e “cultura popular”. Deixemos de lado sua miopia antropológica e nos concentremos no
subtexto: como antídoto à alienação trazida pelo jazz (leia-se, “pela cultura de massas”),
prescreve-se tão simplesmente o pensamento e a obra de autores inscritos na tradição
musical do Ocidente, como Debussy e Ravel. Contra o ritmo “narcísico” do jazz
(imagino que Adorno se refira ao caráter precípuo do improviso jazzístico), prescreve-se
a “arte das síncopes” em “A Sagração da Primavera”, de Stravinsky. Ora, o que Adorno
reproduz, para além de uma crítica da dinâmica social da arte inserida nas injunções do
capitalismo, é a distinção entre a “alta cultura”, o “highbrow” — um sistema de
referências paralelas e complementares que circunscrevem o corpus teórico e o cânone da
música ocidental —, e, de outro, as particularidades assistemáticas da “cultura”, do
folclore e, finalmente incorporada às necessidades e dinâmicas da cidade industrializada,
as noções de “indústria cultural” e “cultura de massas”.
2
ADORNO, Theodor. W.. Essays on Music. Califórnia: University of California Press, 2002, pg. 491.
Décadas mais tarde, artistas e intelectuais asseveraram que em algum momento do século
XX, essas duas dimensões foram como que fundidas, variando o diagnóstico conforme a
formação, a perspectiva e o gosto do intérprete. As apropriações do folclore russo
perpetradas por Stravinsky, as experiências com a materialidade dos objetos sonoros de
Edgard Varèse, o jazz, a música concreta e eletrônica, o minimalismo, e, no Brasil, a
Bossa Nova, o Tropicalismo, Arrigo Barnabé, entre outros, constituiriam alguns
exemplos esparsos nos quais elementos da música dita popular e approach erudito seriam
apresentados em conjunto, em um só e mesmo patamar. Não se trata de questionar o
diagnóstico desses artistas e pensadores, que me parece pertinente. Mas até que ponto
essas fronteiras foram borradas, não a partir de reflexões teóricas ou do estabelecimento
de um cânone, mas através da resposta pungente dada pelas próprias obras, em suas
respectivas singularidades? E qual o estatuto desta questão na atualidade, desdobrada pela
potencialização das trocas culturais e pela consolidação de uma interação peculiar, entre a
internet e a tecnologia digital? Tornou-se habitual considerar a experiência fragmentária
da produção musical contemporânea sob o signo de condições técnicas e culturais,
determinada não apenas pela acessibilidade de novos meios tecnológicos, mas também
em função de uma sensibilidade estética cada vez mais tensionada entre o global e o
local. E embora possa ser avaliada a partir da reunião de diversos aspectos, existem
razões consistentes para considerar decisiva a interação entre técnica e estética na música
que se faz hoje nos quatro cantos do mundo. Mas qual seria o impacto dessa mudança
sobre os escombros da “guerra cultural” que se desenrolou durante o século XX, por obra
da constituição de uma indústria cultural que pôs em xeque uma forma determinada de
avaliação das obras de arte e da arte como um todo? Nos últimos quinze, vinte anos, os
termos deste problema se ampliaram de forma radical, e algumas manifestações indicam
que as relações entre os discursos erudito e popular adquiriram novos contornos,
alterando consideravelmente os termos do problema.
Marcada pela aceleração da informação, pela tecnologia digital e pela cultura online, a
música produzida atualmente centra-se de forma peculiar na experimentação e no
procedimento, o que repercute de forma inequívoca sobre o tema em questão. Entendo o
procedimento como os diversos modos da ação criativa em sua ampla diversidade, que
pode ser desenvolvido dentro de um modelo ou referência — por exemplo, as técnicas
que perfazem a historicidade e o fudnamento do chamado cânone erudito, ou o canto
gutural mongol, ou ainda a batucada digital dos sound systems. A técnica corresponde a
um procedimento passível de reprodução, mas nem todo procedimento é uma “técnica”.
A técnica participa, mas não se confunde com o procedimento, na medida em que deve-se
incluir nesta noção a prática da improvisação.3 Já a experimentação, compreendo como o
ato de pesquisar por novos procedimentos, seja a partir de modos pré-existentes4, seja na
pesquisa por sonoridades inexploradas — como, por exemplo, na partituração da música
estocástica de Iannis Xenakis ou nos experimentos com música eletrônica capitaneados
por Karlheinz Stockhausen. Contudo, na medida em que se constituem como
componentes da música de todos os tempos, o procedimento e a experiência adquiriram
outro estatuto no contexto tecnológico e cultural da primeira década do século XXI, em
virtude não da técnica (ou da tecnologia) em si, mas em relação ao tipo de ferramenta de
que dispomos hoje, cuja influência se exprime basicamente sobre duas formas distintas e
eventualmente complementares. Em primeiro lugar, a operacionalidade dos apetrechos
tecnológicos tornaram banal o exercício da gravação e da edição, possibilitando um
panorama sonoro centrado no intercâmbio entre a concepção, o processo de elaboração
e o produto final. Esta característica possibilita ao compositor estender a duração de cada
gravação, interferindo consideravelmente no processo de composição5, e conduzindo o
foco criativo para a transcorrência do processo, a improvisação, o acaso e outras
possibilidades abertas à experimentação.6 A leitura de uma partitura se configura como
3
Mesmo quando a improvisação se reveste de alguma técnica específica — como no caso do repente
nordestino, nos improvisos do jazz ou no rap free-style — considera-se o acaso e a livre associação de
ideias como o leitimotiv desta prática, que segundo o músico inglês Derek Bailey, possui exemplos em
todas as culturas musicais. v. BAILEY, Derek. Improvisation: Its Nature And Practice In Music. Londres:
Da Capo Press, 1993.
4
Uma observação discreta, mas que vale como “exemplo”: a palhetada do Thrash Metal dos anos 80 em
relação à que era praticada no Hard Rock dos anos 70; ou, ainda, a transformação do MPC em objeto
percussivo no funk carioca.
5
Basta recordar que a duração média das faixas, segundo o modelo da indústria fonográfica do século XX,
não costuma passar dos 3 ou 4 minutos.
6
O comprova não só a valorização da improvisação e a implosão dos formatos, mas sobretudo o fato de
que muitos artistas hoje dispõem de uma série de máscaras, codinomes e “projetos”, evidenciando a
diversificação de seus interesses estéticos. Por exemplo, o inglês James Leyland Kirby assina como Billy
Ray Cyrix, Butcher Claus, Dr. Fred, The Edgeley Musher, Leon And Hits, MC V/Vm, The Notorious
P.I.G., The Stranger, V/Vm Allstar Marching Band, V/Vm And The Hog Chorus, V/Vm With Garry's
Glitter ou, simplesmente, Leyland Kirby.
um processo linear: os compassos sucedem-se uns aos outros, e o seguinte não faz
sentido sem o precendente. A ligação entre os dois momentos é condição necessária para
que a composição se apresente ao ouvinte. Da mesma forma, um compositor de canções,
munido de seu violão, ordena acordes e versos em sequência linear. Mas a tecnologia do
presente — particularmente, o sampler, os programas de edição digital — permite que os
elementos sonoros sejam manipulados como se fossem blocos autônomos, favorecendo
um processo de composição não-linear7. A repercussão deste tipo de edição sobre o
processo de composição é perceptível não somente no caráter bricoleur da estética atual,
mas também pelo fato de que a história da música revém de forma positiva, retrabalhada
de forma a alimentar uma perspectiva para o futuro. E, então, chegamos a um terceiro
ponto, tão importante quanto os anteriores: a aplicação da tecnologia P2P (peer to peer,
“entre pares”), ao compartilhamento de arquivos sonoros, através de programas como o
Napster e o Gnutella. Se antes o indivíduo se fechava em seu próprio universo musical,
instrumentalizando passivamente suas escolhas pessoais, agora ele é convocado a
misturar-se forma positiva com sonoridades que jamais seriam ouvidas se dependesse
apenas dos investimentos da indústria do disco. Custo a rememorar outro período
histórico no qual os seres humanos tiveram acesso, na ponta dos dedos, à diversidade
cultural e à possibilidade de manipulação e combinação de diversas matrizes culturais.
Essa verdadeira “biblioteca de Alexandria” da música mundial está à disposição para
reconfigurações as mais inusitadas — chorões japoneses e black metal da Indonésia são
apenas um pequeno capítulo desta história.
7
Leia sobre a edição não-linear aplicada ao audiovisual no Wikipedia.
possibilitaram um mapa sonoro salpicado por pontos de convergência, ocasionando
inevitáveis contaminações entre os domínios erudito e popular. Tais pontos de
convergência determinaram a alteração do paradigma mercadológico, que deixou de
centralizar-se nas grandes empresas para destacar pequenos selos, artistas independentes
e até mesmo muitas das cenas musicais que não chegavam ao Brasil, em virtude das
estratégias equivocadas do mercado — que por muitos anos ignorou a exuberância da
música malinesa e nigeriana, do free-improv inglês, da energia radical da música
japonesa contemporânea, etc. A noção de que a música e o espaço sonoro são mais
amplos do que o catálogo das grandes gravadoras faz supor, concorre para a difusão de
uma cultura aberta às mais diversas nuances da técnica, da tradição e da criação.
Não se trata, porém, do anúncio de uma ruptura, mas de indicar que as fronteiras do
erudito e do popular não foram propriamente apagadas, ao contrário, se tornaram
cambiantes ao sabor do contexto político, social e cultural. A assimilacão mútua reforçou
e afrouxou simultaneamente as relações entre o “erudito” e o “popular”, trazendo à tona
sonoridades incomuns, refletindo a instabilidade do papel hegemônico desempenhado
outrora pela chamada “música ocidental”. Assim, nota-se a presença de outros
paradigmas para o pensamento e a criação musical, que põem em xeque a hegemonia do
discurso europeu. Longe de dissolver a intolerância etnocêntrica que delineou fronteiras
culturais em favor da criação de tais instrumentos ideológicos, estes paradigmas
evidenciam justamente a instabilidade da geopolítica contemporânea, na qual há uma
ressonância estridente em cada novo discurso sonoro que emerge no contexto da cidade,
manifestando uma inclinação à subjetivação, não somente dos meios de produção, mas
sobretudo, à conquista de uma linguagem que seja adequada para reforçar a tensão entre
o global e o local. No contrapé do “amadorismo” que a internet supostamente favoreceu8,
fortalece-se igualmente uma perspectiva segundo a qual a produção estética deva se
pautar cada vez mais em fenômenos geográfica e culturalmente delimitados. Não importa
o país, a cultura, a classe social, pois esta característica pode ser apreciada tanto no funk
dos morros cariocas (ou o juke dos guetos negros de Chicago), quanto nos hibridismos
radicais do ensemble alemão Zeitkratzer. Subsiste, portanto, uma tensão entre o conteúdo
8
Cf. KEEN, Andrew. O culto do amador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.
veiculado pela grande indústria do disco — embora enfraquecida, ainda amparada por
grandes meios de comunicação — e o aporte cultural local dos artistas. De um lado,
considera-se a acessibilidade dos equipamentos digitais e a fragmentação de culturas
audiófilas, por exemplo, na reabilitação de formatos como o LP e a fita cassete, ou, ao
contrário, na dissolução da própria noção de “formato” por conta da fluidez dos arquivos
digitais. E, em paralelo, observa-se a intensificação das trocas propriamente culturais, na
medida em que o compartilhamento de arquivos implodiu qualquer referência
“universalizante”, seja da chamada “alta cultura”, seja da cultura de massas. Uma ampla
gama de vertentes musicais, técnicas de composição e aparatos tecnológicos, indicam que
as relações entre o erudito e o popular adquiriram novos contornos, influindo
decisivamente no panorama sonoro do século XXI.
Ressonâncias Incomuns
Muitos autores defenderam a ideia de que o discurso chamado “erudito” edificou-se a
partir da transformação (e, falando a língua do etnocentrismo, do “refinamento”) de
manifestações populares, mas vale destacar a interpretação do jornalista e escritor
americano Alex Ross. Comparando técnicas de composição, como os contrapontos de
Bach, à característica melódica descendente dos lamentos entoados em diversas épocas
por toda a Europa (Romênia, Itália, Espanha, etc.), Ross investiga a evolução histórica e
estética do discurso musical ocidental, destacando os nexos profundos entre esferas
consideradas “eruditas” e “populares”. Costurando aspectos políticos, técnicos, sociais e
filosóficos, o autor desarticula as razões e os mecanismos ideológicos subjacentes a
determinadas ideias e movimentos musicais durante os séculos XIX e XX, indicando que
muitos dos antagonismos que marcaram determinadas questões estéticas se originaram da
necessidade de legitimação cultural. Em parte, estas demarcações manifestavam uma
forte entonação hieráquica, a partir da qual os indivíduos se predisporiam a reificar o
passado — ou seja, aquilo que já foi codificado e inscrito na tábua dos valores correntes
— em detrimento da dinâmica veloz e desestabilizadora do presente — como Adorno,
diante da novidade absoluta que representava o jazz àquela altura. Com efeito, configura-
se uma interpretação plausível diante da produção musical do pós-guerra, que pode
fornecer bases consistentes para se pensar o sentido da música produzida no século XX.
Porém, tal situação está igualmente amparada por condições materiais, culturais e
históricas, cuja determinação envolve um sem número de variáveis — desde o suporte
financeiro e as condições do mercado, até à mentalidade política e o aparato técnico. Se
por um lado, esta posição parece afinada com os conflitos políticos do século XX,
tomando o espectador e o crítico como sismógrafos para avaliar as condições do debate,
por outro Ross faz uma observação curiosa, que diz respeito diretamente à ação dos
artistas.
9
ROSS, Alex. Listen to this. Farrar, Straus and Giroux, New York: 2010, pág. 13.
escrever diretamente com a tinta. Recentemente, quando David
Tudor retornou da Europa, ele me trouxe um lápis alemão
moderno, que aceita qualquer tamanho de grafite. (…) Um
apontador veio juntamente com o lápis. O apontador oferece
não uma, mas várias possibilidades. Isto é, pode-se escolher o
tipo de ‘ponta’ que se deseja. Não há borracha. 10
Como John Cage sugere no excerto acima, se a elaboração do procedimento incide sobre
a questão propriamente estética, esta não ocorre nos termos de uma relação de causa e
efeito. Um compositor popular pode se utilizar do contraponto, técnica de composição no
qual duas ou mais vozes se apresentam simultaneamente, ou, por outro lado, um
compositor inscrito nos códigos “eruditos” pode se utilizar de samplers. Embora não
circunscreva exatamente uma atitude de indiferença diante da separação entre erudito e
popular, ao menos a troca simbólica entre aspectos técnicos e sua consequente
generalização no mundo contemporâneo, propicia, dia após dia, o desmonte do edifício
ideológico que confinou o pensamento, as técnicas e procedimentos da música erudita a
um universo impotente e desbotado. “Eu odeio "música clássica": não a coisa, mas o
nome. Ele aprisiona uma arte tenazmente viva num parque temático do passado”11, afirma
Ross. Trata-se, portanto, de um tema multifacetado, que constrange o observador a
considerar, não somente a análise da conjuntura, mas, sobretudo, a resposta específica
que certos autores elaboram através de suas obras. Deste cenário tão complexo quanto
instigante, pode-se reunir um número considerável de artistas que atestam a presença
específica do procedimento e da experiência na produção das ressonâncias incomuns que
caracterizam a totalidade da música produzida durante as duas primeiras décadas do
século XXI. A começar pela consolidação de um firme interesse, tanto na produção,
como no consumo, de gêneros essencialmente experimentais, que de alguma forma,
possuem inegáveis afinidades com os compositores eruditos da atualidade: o estudo do
10
CAGE, John. Silence: Lectures and Writings. Wesleyan University Press, 1961, p. 270-271. “One day
when I was studying with Schoenberg, he pointed out the eraser on his pencil and said, "This end is more
important than the other." After twenty years I learned to write directly in ink. Recently, when David Tudor
returned from Europe, he brought me a German pencil of modern make. It can carry any size of lead.
Pressure on a shaft at the end of the holder frees the lead so that it can be retracted or extended or removed
and another put in its place. A sharpener came with the pencil. This sharpener offers not one but several
possibilities. That is, one may choose the kind of point he wishes. There is no eraser.”
11
ROSS, Alex. Listen to this. Farrar, Straus and Giroux, New York : 2010, pág. 13.
barulho, ou noise, bastante difundido no Japão através de nomes como Masami Akita
(Merzbow); ou o chamado “Modern Classical”, de Jacaszek e Nico Muhly, que investem
de forma indiscriminada em composição nos moldes “eruditos” junto a canções e
improvisos. O ensemble alemão Zeitkratzer, que além de gravar autores e obras
problemáticas (de Cage a Xenakis), fizeram parceria com grandes nomes da música
popular, como Lou Reed, e discos inteiros de improvisos, prática outrora execrada na
seara da música erudita.12 O trabalho do compositor erudito Raphaël Cendo, que usa
samplers e batidas pré-gravadas como parte da composição, baseado em artistas
“populares” como Richard D. James (Aphex Twin). Ou ainda a afinidade entre certos
compositores de música eletrônica, ligados a tradições impopulares, mas interessados na
exploração dos limites do espaço sonoro, como por exemplo, o alemão Florian Hecker e
o americano Kevin Drumm. Há artistas que operam por conversão de dados digitais em
som, como Alva Noto e Ryoji Ikeda, e outros que manipulam experiências com fitas
deterioradas, como William Basinski. Há também os artistas que incorporam a
experimentação a partir da releitura pontual de procedimentos relacionados a certos tipos
de aparelhagem. O emprego do Theremin por Luigi Russolo, ou ainda, a utilização da
mesa de som no dub jamaicano são exemplos de como a tecnologia determina o produto
criativo, incluindo-se aí uma certa apropriação da tecnologia “intermediária”13,
influenciada pelos processos não-lineares. Operando com equipamentos de segunda mão,
utilizados de forma criativamente “incorreta”, destacam-se o aparecimento do shangaan
sulafricano, do dabke sírio, dos desenvolvimento da música eletrônica urbana (UK
Garage, drum'n'bass, techno, etc.) e dos chamados “critical beats” (ramificações da dance
music eletrônica anglosaxã, tais como o dubstep, o wonky e o witch house). Em todas
essas manifestações, o claro indício de que há uma abertura sem precedentes nas relações
12
A improvisação sempre foi comum na prática musical dita “erudita”, desde a música dos gregos (o que
seria o berço de tal “música erudita”), passando pela Idade Média (onde começou a se esboçar uma escrita
musical ainda precária), Renascimento e, principalmente, o Barroco (onde podemos perceber uma
verdadeira arte da improvisação). A musica “erudita” passou a ser escrita com precisão e sem espaço para a
improvisação a partir do Classicismo exatamente devido a uma falta de “erudição” da nova burguesia que
se consolidou com a Revolução Francesa. No lugar do aristocrata culto que, além de ter uma boa formação
musical, também tocava muito bem um instrumento, surge o burguês rico, porém sem cultura, que deseja a
cultura do aristocrata. O burguês passa então a contratar músicos e professores para ter essa cultura, daí a
necessidade de precisão e, ao mesmo tempo, simplificação da escrita no classicismo. Cf. GROUT, D. J. &
PALISCA, C. V. História da Música Ocidental. Lisboa: Gradiva, 2001, p. 19, 312,313, 410,411, 478, 479,
480, 481, 482, 483.
13
Isto é, que não é “de ponta”, como mesas de som, sintetizadores, caixas de eco, gravadores de rolo, etc.
entre aportes antes considerados distintos, para além da alteridade enquanto valor de
mercado ou da frivolidade do multiculturalismo europeu. Não tenho razões para duvidar
de que esta abertura seja um fenômeno mundial, que repercute sobre as ideias e práticas
que definem os vários modos da música, como a percebemos, a criamos e a entendemos
nos dias de hoje.
Não parece um exagero atribuir a John Cage um papel semelhante. Antes de um grande
compositor, Cage é um crítico em sentido positivo como poucos em sua seara. Com isso
não se quer dizer que a obra de Picasso não possuía um sentido crítico, ou mesmo o
Dadaísmo e o Futurismo não buscavam instaurar, cada um à sua maneira, uma outra
ordem política, social e estética. É bem verdade que sua situação em relação à música da
primeira metade do século XX é bem menos desoladora que a de Duchamp, haja visto
que Cage foi contemporâneo do serialismo dodecafônico de Schoenberg, da Segunda
Escola de Viena (Webern e Alban Berg, discípulos de Schoenberg), do serialismo
integral de Olivier Messiaen e Pierre Boulez, da música eletrônica de Stockhausen, entre
outras manifestações musicais relevantes. Mas, para além da introspecção dos debates
estéticos da música da primeira metade do século XX, presente nas modulações do
serialismo, mas também na proposta de alargamento do espectro sonoro contida na
música eletrônica/concreta, Cage propôs a “emancipação” dos sons através da
permeabilização do discurso sonoro por ideias, práticas e procedimentos de outras esferas
culturais e artísticas. Como Duchamp, que questionava a “pintura retiniana” porque seus
autores abriam mão de mobilizar o pensamento, Cage também questionava o que
podemos chamar de “música auricular”, isto é, uma certa inclinação dos compositores em
reproduzir a escala de valores da composição ocidental. Com esse movimento, o autor
dava o primeiro passo em seu projeto de crítica à introspecção e à racionalidade da
chamada musical ocidental.
“Deixar os sons serem eles mesmos”. O conteúdo polêmico desta frase não pode de
forma alguma obnubilar seu conteúdo crítico, de forma que gostaria de propor uma
16
Cf. CAGE, John. “Indeterminacy”. Silence: Lectures and Writings. Wesleyan University Press, 1961, p.
35-40.
17
KOSTELANETZ, Conversations avec John Cage, Paris: Syrte, 2000, p. 77.
18
CAGE, John. Silence: Lectures and Writings. Wesleyan University Press, 1961, p. 10.
interpretação que demonstra a forma como ele ecoa sobre a música que se produz hoje.
No sentido de expor a relação de Cage com a exterioridade do discurso musical, três
possibilidades de interpretação são viáveis para esta frase célebre. Primeiramente, “deixar
os sons serem eles mesmos” corresponde a uma atitude crítica que vai de encontro ao
projeto “racional-auricular” da música ocidental, sobretudo a música chamada erudita e
seus esquemas e processos de controle e auto-referenciação. Neste sentido, Cage
promove a indiferenciação absoluta entre os sons considerados “musicais” e os sons
considerados “não-musicais”, com o intuito de liberá-los das escolas e circunscrições
conceituais. Mais do que um contraponto, o autor permite ampliar a percepção geral dos
sons, considerando o espaço sonoro como um processo de construção ilimitado,
restituindo aos sons um caráter vital que o cerebralismo franco-germânico havia
destituído. Não se trata, obviamente, de uma tentativa de dialogar com a “musique
concrète” de Pierre Schaeffer, na medida em que esta possui um credo propriamente
estético e bem delimitado, o que não é o caso de Cage. Os sons acusmáticos e os
processos eletroacústicos também seriam emancipados de sua escala de valores, bem
como aqueles subscritos ao credo futurista de Luigi Russolo. Os sons, eles mesmos, isto
é, independentes do suporte ou da escala de valores, poderiam se despir de eventuais
extrapolações promovidas por sua representação estética. Como escreve Cage em
resposta a Boulez, num de seus textos mais célebres: “Meu amigo Pierre Boulez está
interessado em música com parênteses e itálicos! Essa combinação de interesses me
parece excessiva em número. Prefiro minha própria escolha pelos cogumelos. Além do
mais, isso é avant-garde.”19
A escolha pelos “cogumelos”, para além do conteúdo irônico, indica a tendência de Cage
em trazer à tona seu interesse pela indeterminação, mas sobretudo, pela possibilidade de
dinamizar a escala de valores referentes à reprodução sonora. Por outro lado, “deixar os
sons serem eles mesmos” remete também à anulação da importância desmedida dada ao
compositor, o que, contraditoriamente, reforça sua presença na composição. Se é possível
restituir aos sons o seu caráter vital, que vem a se constituir pela relação do som com as
coisas e com a natureza em geral, esta possibilidade só pode se dar em virtude da
19
Idem, p. 274-276.
interferência do compositor. Não se trata, portanto, de afirmar a natureza estática de
exemplares sonoros consolidados (como o som de instrumentos musicais), mas de
reconhecer a pluralidade na dinâmica de reprodução sonora, processo que justamente
desenraiza a possibilidade de estabelecer um conteúdo ontológico para os sons. Caberia
ao compositor reconhecer essa dinâmica para desenraizá-la de suas significações
correntes. Nesta perspectiva, não somente os sons ocasionados por aparelhos eletrônicos,
ou mesmo os sons oriundos da cidade e sua “música” peculiar, mas também aqueles
produzidos por sintetizadores e máquinas afins.
“Deixar os sons serem eles mesmos”, enfim, também pode significar a permeabilização
total do discurso sonoro por elementos supostamente “externos”. Não somente os sons
seriam emancipados do controle moral e acadêmico, mas também as palavras, imagens e
sentidos em interação com outras possibilidades de expressão artística. A própria
formulação do problema indica o paradoxo: a noção de exterioridade que fundamenta a
obra de John Cage como um todo, não circuscreve propriamente um conceito ou uma
categoria, como se de fato houvesse um “dentro” e um “fora” dos sons. Antes, se afigura
como um elemento operacional, com o qual o compositor promove o deslocamento do
eixo de compreensão dos diversos discursos sonoros do nosso tempo em direção à
emancipação dos sons destes mesmos esquemas. Independente da compreensão moral
que cada indivíduo tem dos sons, bem como das escalas de valores da chamada música
ocidental, haveria o interesse geral, a inclinação à renovação e, sobretudo, um sentimento
de que a relação entre a música e os sons se dá cada vez mais a partir de um campo de
interesses comuns.
John Cage foi o primeiro autor no século XX a formalizar essa percepção de modo a
promover mais do que uma “escola” ou um método de composição, mas uma percepção
20
Idem, p. 3-6.
geral que ainda hoje ressoa naquilo que chamamos “música”. Seu pensamento musical é
talvez o maior exemplo de questionamento das bandeiras ideológicas que demarcam
diferenças entre o credo erudito e a chamada “música popular”. Se essas fronteiras, ou
ainda, as fronteiras entre os sons e suas respectivas representações, foram embaralhadas,
sem ser propriamente anuladas, tal como ocorre entre os diversos registros da produção e
do pensamento musical contemporâneo, isto se dá porque, a despeito das diferenças de
procedimento, resta a experiência como uma prática fundamental para a produção e a
reflexão acerca da música e seu objetos estéticos. Que ela tenha se generalizado a
reboque de condições técnicas e comunicacionais, isso apenas estimula o interesse nas
combinações e justaposições estéticas do futuro.
A “Fragmentação” no Zaitkratzer
Análise do trabalho do pianista alemão Reinhold Friedl e do Ensemble Zeitkratzer, que
combinam procedimentos populares e eruditos.
Anomalias
Estudos de caso:
A tecnologia intermediária; Stockhausen encontra Konono N.1;
Leyland Kirby e o acaso no procedimento de composição através computadores;
A música Japonesa e o estudo do ruído;
o Chiptune (música feita a partir de gadgets eletrônicos);
a retomada dos minimalistas e da vanguarda americana: Steve Reich, Moondog, La
Monte Young;
as “batidas críticas”.
Conclusão provisória
Um conclusão provisórias deve apontar para um futuro indeterminado, ainda que
balizado por todos os elementos abordados
Spring Heel Jack with Matthew Shipp, Evan Parker, J. Spaceman, William Parker
& Han Bennink, Live
Fennesz, Endless Summer
Four Tet, Rounds
M.I.A., Kala
William Basinksi, Disintegration Loops
Críticas completas
Matthew Shipp, John Medeski – Scotty Hard’s Radical Reconstructive Surgery
(2006; Thirsty Ear, EUA)
Tenho pra mim que rótulos como melting pot, crossover, funk’o’metal carregam uma
intenção didática, qual seja, indicar que um ou dois gêneros musicais consolidados se
misturaram, e formaram um terceiro elemento que confunde jornalistas e estudiosos,
desafia os marketeiros e, geralmente, deliciam o público. No entanto, mesmo o jazz, o
soul, o samba e outros “gêneros” aparentemente consolidados… Ora, eles também são
constituídos a partir de fragmentos sem rótulo, de pequenas e preciosas singularidades
que, por ocasião de condições e opiniões diversas, acabam se cristalizando. Me parece
que a música é, por definição, “misturada”, cacos de procedimentos, pesquisas,
formações esquecidas… A “mistura” tão apregoada hoje pelo mundo musical mais
delimita um período de histeria coletiva do que propriamente um ritmo, ou um gênero…
O mercado influi nesse processo de forma decisiva, às vezes nociva, mas não definitiva.
A riqueza e a vivacidade da música hoje residem na demonstração e confirmação de
como o “gênero” não é nem desejável e até mesmo, desconfio, possível. A mistura criada
por Scotty Hard mostra que a música hoje está mais viva do que nunca, e isso num
sentido muito específico: sua produção escapa do gênero não por obra de um “niilismo”
(a explicação corriqueira), mas sobretudo porque, ao que parece, a música hoje é, de fato,
supra-nacional, apátrida… Talvez por este motivo esta cirurgia seja operada justamente
por indivíduos que, em seus respectivos trabalhos, ampliam a indeterminação na música
contemporânea. Scotty Hard’s Radical Reconstructive Surgery não se posiciona como
“sintoma”, mas causa. Um disco que não define o futuro ou o passado, mas, com rigor e
sagacidade, um delicioso, insuportável e profundo “agora”.
Quando soam as primeiras notas (?) de “A Soft Throbbing Of Time”, somos levados a
pensar: ok, mais um trabalho do artista plástico que viu no Kraftwerk e na “música
eletrônica” a abertura de precedente ideal para expressar suas idéias musicais, tão
racionais quanto chapantes… Mas não: dessa vez o Kraftwerk deu de encontro com o
Public Enemy mais lavado, com aquela batida afro-sacolejante de “Don’t Believe the
Hype” e “Black Steel…”, que sentimos simultaneamente no corpo e na alma (como, de
fato, corpo e alma são…). Estruturas mais dançantes, timbres mais agressivos, alguma
referências aos trabalhos anteriores, este Rhythm pode ter passado em branco pelas
listinhas de fim de ano – na renomada e vanguardista The Wire ficou injustamente atrás
dos discos mornos de Pram, Kassin+2 e LCD Soundsystem… Mas, ao contrário deles,
figura certamente como uma peça consistente (e prazerosa) na discografia desta década
que já vai.
A segunda faixa se inicia no mesmo tom da anterior: desta vez, a marcação é brevemente
realizada por um instrumento grave. Poucos segundos se passam, quando eclode uma
tradicional cozinha metaleira, estilo Black Sabbath, composta por baixo e bateria. (Uma
característica bacana da bateria de Bill Ward é esse toque duplo na caixa que confere um
suingue característico, e que Chris Hakius segue fielmente…). O vocal é comedido, nada
de gritos e agudos espalhafatosos, mas, ao contrário, uma continuidade tonal que se
modula imperceptivelmente…
A terceira faixa se parece com a segunda, mas percebe-se mais agudamente que o ritmo
volta e meia é ralentado, depois acelera, configurando um minimalismo sutil… A música
pára: o baixo limpo retorna, desenvolvendo uma melodia aparentemente comum às outras
faixas. A cozinha e o vocal, dessa vez, elevam o tom. A letra evoca doutrinas militares,
personagens bíblicos, epifanias, contribuindo para aquele clima de baixo astral e mistério
tão caro e condizente com o discurso musical do metal.
Chega a quarta faixa: é a reprise da primeira. O mesmo baixo, o mesmo tambor, o tom de
voz inusual para os padrões do gênero, indicam que este álbum rigoroso e denso está
chegando ao fim. E neste momento, vem à minha mente um daqueles pensamentos
nostálgicos contra os quais forma-se nosso gosto.
3. Um olho encara o ouvinte. O que ele quer? O que espera? Será que espera algo? Ou
simplesmente olha através do círculo? Será que olha pro futuro ou para o passado? Seu
raio de visão se adequa as suas aspirações? Estará satisfeito? Alimenta ingenuamente
ideologias e bandeiras, ou, pelo contrário, adotou para si um niilismo estratégico,
condizente com seu ambiente, suas distrações, seus hábitos? O futuro não importa e essas
perguntas sao inúteis: o olho simplesmente… olha.
4. Se o hip hop é a rima, então que esta rima se vincule logo a toda a gama de rimas
possíveis (por isso, tantas alusões à poesia…); se o hip hop é o ritmo, então cabe
desestabilizá-lo, buscá-lo fora do 4/4 convencional; se o hip hop, como idéia, é a rima e a
poesia, que se expanda então o campo de possibilidades: field recordings, rock, funk,
jazz, faixas sem ritmo, apenas com vozes e sons, atestando uma inflexão vanguardista
que denota cultura universitária, para o bem e para o mal. Contudo, esse olhar possui a
virtude de se saber perspectivo, parcial, fragmentário. Por isso olha “para” e nao “pelo”
buraco, isto é, nao aprecia passivamente, mas corta, cola e recorta, tal como de fato se
constitui a matriz do hip hop.
5. Confesso que sempre impliquei um pouco com o hip hop à moda da Anticon, e isso
por motivos que, confesso, são relativamente bobos: é que o trabalho desses rappers
brancos e cultos, experimentando o conceito do hip hop como um método de criação,
acaba por se precipitar em excessos um tanto quanto juvenis. Afinal, depois de John
Cage, o que leva um artista a criar uma faixa com cinco gratuitos minutos de silêncio, ou
com um telefone tocando durante vinte segundos, se não um misto de excesso de cultura
e puerilidade?
6. Mas Circle é como um manifesto, um marco inaugural. Ele traz virtudes e defeitos de
uma forma tão incisiva e alucinada que mesmo a implicância se desmancha diante da
segurança com que Boom Bip e Doseone constróem cada experimento, cada passagem de
uma faixa à outra, cada clima que percorre todo o disco. E é claro que esta segurança é
algo presente, vinculado ao aqui e agora, e não prospectiva como se pensava em 2000,
quando Circle representava o futuro do hip hop.
7. E aí, fica a questão: Circle soa datado porque oito anos de Anticon nos acostumou aos
seus trejeitos iconoclastas e sua sede por representar o futuro? Ou pelo contrário,
documenta fielmente o processo de individuação do estilo Anticon? Opto pela segunda,
já que, no frigir dos ovos, o álbum apresenta momentos realmente inspirados, além de
demonstrar uma altivez criativa digna de todos os aplausos.
The Bug é um produtor que reafirma e ultrapassa esse contexto em diversos aspectos.
Juntamente com o Basic Channel/Rhythm & Sound de Moritz Von Oswald e Mark
Ernestus, Kevin Martin é responsável pelos momentos mais interessantes da exploração
eletrônica da música caribenha, constituindo uma fonte criativa incontornável para o
dubstep. Não me lembro de outra assinatura tão inconfundível como a que ele imprimiu
nos discos Pressure e Aktion Pak, ou em sua parceria com o pioneiro Rootsman. Esses
trabalhos se diferenciavam de toda a produção do gênero por conferir uma timbragem
agressiva àquela batida característica do ragga, que tanto lembra o nosso baião e,
dependendo da acentuação rítmica, algumas inflexões dos ritmos do candomblé. Dessa
combinação surgiram clássicos como “Imitator”, “Politicians & Paedophies” e “Aktion
Pak”, que, embora muito inovadores do ponto de vista formal, contavam com o flow
irresistível de experientes MC’s anglo-caribenhos como Paul St. Hilaire, Wayne
Lonesome, Tippa Irie, entre outros. É certo que Burial, Kode 9, Martyn, 2562, e todos os
representantes dessa cena foram influenciados pela liberdade com que Kevin Martin
manipulou a música jamaicana, com que destreza ele soube cooptar o trabalho dos Mc’s,
embora o dubstep tenha tormado uma orientação bem mais reflexiva e suave.
Se eu não estiver delirando, podemos dizer que Haino e Yoshida são bandoleiros fora-da-
lei, extremamente prejudiciais ao convívio social. Como os álbuns anteriores da dupla,
Hauenfiomiume opera justamente sobre a reificação do monstruoso: cada faixa remete a
uma experiência fragmentária, a um encontro da sensibilidade ordinária com a conjuração
de estranhas formas musicais, a destilarem o espectro de canções (em “Mkdoijadihffo”),
de improvisos jazzísticos (em “Yeudhujiuasich”), de riffs e seqüências do mais puro
noise, da mais singela japanese bamboo flute (em “Mdjofollswufph”), das manipulações
digitais mais estapafúrdias (reparem em “Lakdddffkouwwe” como esta manipulação
chega a um nível demencial…). Digo espectro, porque trata-se de um processo de
descodificação, no qual a dupla trabalha por deslocamento de certas formas musicais
consolidadas, manipulando-as e sintetizando-as nas composições. Hauenfiomiume
agrupa, de forma coesa e admirável, uma série heterogênea dessas experiências.
O que Keiji Haino e Tatsuya Yoshida nos oferecem é sua expressão. E aqui devo ser
taxativo: é sob o ponto de vista da expressão que devemos avaliar os trabalhos artísticos.
Mesmo que, eventualmente, esta expressão nos pareça estranha e despropositada.
Hauenfiomiume exprime a síntese de duas visões musicais extremamente cultas e
intelectualizadas, mas que conseguem agregar surpresa e sabor à sua produção. A
despeito de eventuais momentos em que os ouvidos menos acostumados chiarão, e da
capa tenebrosa, desde já a pior do ano. (Bernardo Oiveira)
Sei que alguns amigos leitores não simpatizam muito quando ligo a particularidade de
certos trabalhos a contextos mais amplos, mas agora será inevitável, já que o que mais me
admira aqui é uma certa perspectiva sobre a criação musical, a qual poderíamos chamar
provisoriamente “música de procedimentos”. E, ao afirmar isso, pretendo indicar duas
características de Persistent Repetition of Phrases que definem as coordenadas desta
perspectiva. Primeiro, que na fronteira entre o serialismo e a música eletrônica, sucedeu-
se o alargamento do pensamento musical na esteira da multiplicação e interação de
meios. A integração entre meios técnicos e culturais, propiciou um outro registro do
pensamento musical, calcado mais na experiência e no background individual do
compositor do que em sua cultura propriamente musical. Wagner e Stravinsky também
dialogaram com outras esferas que não a musical, mas visando a volatilização e a
expansão do discurso musical. Na “música de procedimentos” não se tem por objetivo
principal o discurso musical, mas a própria experiência: ela se torna o elemento que
possibilita o extravasamento do som, sua ramificação nos mais diversos âmbitos da vida.
A “música de procedimentos”, portanto, é essencialmente voltada para o exterior, em
oposição à interioridade da música chamada “erudita”. Persistent Repetition of Phrases é
um exemplo contudente de uma música que recorre quase que exclusivamente a
elementos extra-musicais e para-musicais para produzir um discurso sonoro que dialoga
com o cinema, a fotografia, a memória e, de um modo geral, com as imagens.
Esta relação com a imagem, embora projete o compositor a um grau de manipulação mais
sutil da matéria sonora, o prende também à dialética própria desta matéria. Quero dizer:
se por um lado, a música é produzida a partir de experiências e procedimentos que
remetem a um contexto imagético, ela, no entanto, não é imagem, mas som. De forma
que, na contradição, ocorre a dissolução da dialética sonora, e conseqüente
“dramatização” da música, isto é: não se trata mais de notas, harmonias e ritmos, mas de
climas, ambientes e tramas sonoras. Podemos dizer que, em detrimento do equilíbrio que
dá o tom da palavra harmonia, a “música de procedimentos” privilegia a tensão
decorrente das sonoridades extra-musicais. A música é composta como um quadro,
contra o qual os sons se lançam na intenção do drama. The Caretaker representa
perfeitamente este aspecto musical contemporâneo, assim como o trabalho de Phillip
Jeck, Daisuke Miyatani e Jacaszek. No caso particular de Persistent Repetition of
Phrases, o drama vem em favor dos mais profundos objetivos do produtor, já que The
Caretaker deseja operar no campo da evocação e da memória.
Por exprimir uma relação muito específica com a exterioridade e com o alargamento da
dimensão musical; por propor a desmusicalização da música como forma de acelerar a
dramatização do discurso sonoro; e por operar nessas duas frentes de combate,
engrossando as fileiras contra a estagnação do som e a petrificação do sentido, The
Caretaker e Persistent Repetition of Phrases representam o que há de mais inovador e
desafiante na música contemporânea. Ainda que, a esta altura, a palavra música já me soe
tão problemática quanto insuficiente.
São Paulo Underground – The Principle of Intrusive Relationships (2008;
Submarine Records, Brasil)
Para o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, a tragédia grega era resultado da comunhão
entre dois princípios: Apolo e Dionísio. O primeiro se caracterizava pela unidade
individual, pela capacidade de contemplar a vida como um todo. O segundo ocorria
quando esta individualidade era ultrapassada pela dinâmica monstruosa da vida, pelo
caos, por assim dizer. A grandeza da tragédia, para ele, resultava do modo como ela
afirmava o sentido da vida através dos dois aspectos. Se a Apolo, o herói, se atribuía o
vigor da perspectiva e da unidade, ao coro era dada a capacidade de dissolver as
individualidades e mergulhar nas profundezas indistintas do real. Assim, mundo e
existência se vêem justificados como fenômeno estético, pois é através de uma
transformação extática que cada indivíduo se percebe dissolvido numa realidade mais
ampla que a do sujeito. Nem a individualidade apolínea, nem a dissolução dionisíaca,
muito menos a síntese dos dois princípios. Trata-se de uma dupla afirmação, radical, que
açambarca a dor e o prazer, que aceita a vida com todos os seus percalços, sem lancar
mão dos argumentos benévolos e frágeis da religião ou do consumo dócil. Mas que
também é capaz de trazer à tona o seguinte problema: excessivamente técnica e racional,
não teria se tornado nossa cultura desproporcionalmente apolínea? E, às antípodas deste
processo, não teria se tornado a música mais dionisíaca, através do jazz, das experiências
eruditas pós-serialistas e do fortalecimento da música eletrônica criada para a pista de
dança e para o transe? Não haveria um desequilíbrio entre as duas forças que propiciaria
uma separação entre a arte e outros ramos da vida e que, por conseqüência, teria tornado
a vida menos trágica? Em contrapartida, arrolada à dinâmica do capitalismo, não teria a
música sido tomada por um princípio excessivamente dionisíaco, visando a mera e
simplória satisfação dos sentidos, sem que depreenda nenhuma inflexão própria? Na
contramão desse processo, me parece que a música do São Paulo Underground pode ser
analisada perfeitamente dentro de uma perspectiva efetivamente trágica.
Preenchido pelo caos, mas rigorosamente composto como um projeto, The principle of
intrusive relationships desafia os rótulos, as classificações e até mesmo a perspectiva que
temos da música, configurando-se como um dos grandes lançamentos do ano. Do caos
dionisíaco, mantém a capacidade de proporcionar não somente uma saudável confusão
mental, ocasionada pela sonoridade polirrítmica e polifônica, mas também por reportar a
outras “vozes”: o Coltrane de Meditations, o Ornette de Free Jazz, o Miles Davis de
Bitches brew e o highlife de E.T. Mensah, especificamente condensados na irônica “Final
feliz”, que abre o disco – inclusive, o aspecto dionisíaco se torna ainda mais patente
quando percebemos que o álbum pode ser escutado como uma grande faixa de 45
minutos. Já do heroísmo apolíneo, percebe-se a sagacidade, a capacidade de
manipulação, a perspectiva culta, que vê a música com abrangência e perspicácia, que
apesar de se saber dissolvida numa individualidade mais abrangente, sabe impor sua
própria dinâmica criativa. Assim, admira muito o trabalho que M. Takara e Rob Mazurek
operam não somente na execução instrumental das faixas, mas sobretudo pela
manipulação digital realizada após a gravação. Em “Barulho de ponteiro 2”, por exemplo,
podemos ouvir que o suingue desconjuntado criado pela dupla é posteriormente
manipulado por computador, adicionado de pequenos “estragos” e reproduzindo um teor
de abrasividade sonora tão incômodo quanto fascinante.
A propósito, incômodo e fascínio definem bem a música da dupla. Trágica por definição,
caótica por impulso, mas concebida como uma obra aberta aos mais diversos olhares.
Através do Gas, Voigt criou uma sonoridade intrincada, que opera mais sobre a
organicidade do som do que sobre a harmonia e a melodia, construindo massas sonoras
que desenham fluxos e intensidades ora sobre o quatro por quatro cardíaco do techno, ora
sob a característica forma ambient (aquele hipnótico “tãããããã…”). Pode-se dizer,
entretanto, que Gas, Zauberberg e Königsforst diferem de Pop em relação à timbragem e
ao tipo de construção harmônica. Os três primeiros obedecem a critérios rigorosamente
determinados; ao passo que Pop é mais livre, joga mais abertamente com as dissonâncias,
se utiliza menos do baticum techno (apenas em duas faixas) e até arrisca algo próximo de
um reggae na quarta faixa. Entretanto, esses aspectos gerais não traduzem exatamente a
genialidade do projeto. Aqui, a estrutura importa menos que a experiência singular, pois,
a cada faixa, somos conduzidos a um território sonoro exclusivo, ao qual poderíamos
votar as mais sinestésicas expressões. Às vezes a percepção nos prega uma peça, e
entrevemos uma melodia aqui, um tema acolá, quando o que ocorre é uma prodigiosa
sucessão de diferentes imbricações harmônicas, que atestam a filiação de Voigt ao mais
alto e complexo pensamento musical germânico. A música do Gas impressiona pela
forma sucinta e singular com que ele condensa a emancipação tonal característica do
dodecafonismo de Arnold Schöenberg, a parcimônia nebulosa da ambient de Brian Eno e
a pulsação segura do techno. Ao final da audição dos quatro volumes, tive a nítida
impressão de estar diante de um universo sonoro autônomo, com regras e dinâmicas
próprias. E, sobretudo, com uma densidade rara na música contemporânea.
Nah und Fern é um pavoroso testemunho do caráter singular que reveste toda a arte
relevante de hoje, que tanto delicia pela exuberância, quanto intriga pela autonomia. E
aqui, peço licença para uma divagação. Como escreveu o filósofo italiano Giorgio
Agamben, “tudo nos conduz a pensar que, caso se confie atualmente aos próprios artistas
o dever de julgar se a arte deve ser admitida na cidade, julgando a partir de sua própria
experiência, eles concordariam com Platão sobre a necessidade de bani-la.” O “terror
divino” — expressão utilizada por Platão para explicar o êxtase da criação artística —
devidamente deslocado de seu contexto platônico e aplicado à cultura de massas,
representaria justamente a cristalização de um processo caro à estética ocidental, e que
constituiria uma gradativa reação dos artistas frente à vitória do espetáculo. Se, como
supõe Agamben, os artistas contemporâneos desejam banir a arte da cidade, é sobretudo
porque, como previra Hegel, e a despeito de seu esforço, a arte se tornou, para o
espectador, um projeto autônomo e, para o artista, uma terrível e abismal “promessa de
felicidade”. O terror divino não é somente o delírio da representação, o prazer do êxtase e
do encanto que estimulou críticas severas de Santo Agostinho contra os jogos cênicos,
mas sobretudo uma reação dos artistas ao projeto regulador dos filósofos, notadamente da
filosofia alemã. Se a arte contemporânea se torna gradativamente menos “interessada”
que “interessante”, é porque o artista, desembaraçando-se do caráter regulatório da
estética prescritiva, assume o terror. Em outras palavras, a arte hoje segue o rumo da
singularidade radical, e é para afirmar o interesse do artista como irrepresentável que o
terror pode ser considerado nos dias de hoje. Não sei se Voigt seria expulso da cidade,
nem se aceitaria se colocar neste contexto de singularização da experiência criativa. Mas
não há dúvida que Nah und Fern encerra um dos mais pavorosos e irredutíveis
ecossistemas musicais da atualidade.
Kasai Allstars – In the 7th Moon, the Chief Turned into a Swimming Fish and Ate
the Head of his Enemy by Magic (2008; Crammed, EUA/Congo)
Em nossa já complexa gestação étnica, observa-se uma pluralidade de grupos oriundos da
África, que por muito tempo foram classificados em duas categorias gerais e
contrapostas: de um lado os sudaneses, supostamente letrados, islamizados; de outro, os
bantos, geralmente considerados de estirpe e expressão cultural inferiores. Este equívoco
foi possível graças à informação histórica deficitária, pois descobriu-se mais tarde que
muitos escravos considerados “sudaneses”, vinham na verdade de Angola e Congo,
regiões marcadamente bantas. Em suma, como escreve o poeta e historiador Nei Lopes,
“confundiram etnias com portos de embarque”. O fato é que somos, em nossa maioria,
constituídos por traços culturais bantos. Vale dizer, primeiramente, que os bantos são um
grupo étnico-lingüístico nômade, cujo rastro se pode traçar desde o século 100 a.C.. Em
segundo lugar, em se constituindo como uma variedade de grupos étnicos-lingüístico, e,
portanto, ramificando-se em outros tantos rumos e encontros, tanto impuseram uma
determinada inflexão cultural – notadamente no que diz respeito à língüa e às técnicas
agrícolas – quanto absorveram os elementos próprios das regiões e dos povos com que
topavam. A batucada, a visão estética da vida, o modo de falar repleto de vogais, a
culinária, o amor à desproporção e à assimetria: muitos elementos indicam a presença da
bantuidade na cultura brasileira. No entanto, não conheço sequer uma só voz que
compare esta característica banta ao legado antropofágico do Modernismo de Oswald e
da Tropicália de Caetano; mas me parece que um dos aspectos fundamentais da nossa
cultura, vocalizado inclusive pela intelligentsia, é a bantuidade enquanto capacidade de
misturar, seja na vida, seja na arte. Assumir este traço cultural é que são elas… Assumir,
entenda-se: capacidade de compreender e introjetar nossa gestação étnica com todas as
suas particularidades.
Essa é uma questão que me aporrinha há muito tempo. Claro que, em sendo uma velha
questão, velhas também me soam as reações sempre que abordo o assunto num meio
social composto por poucos negros – aqui note-se que, por razões de classe social,
sempre fui um dos dois ou três negros da sala… E aí, o padrão é o mesmo: ou sou
arrolado no discurso vitimizante dos movimentos sociais; ou me entulham de inúteis
argumentos bio-sociológicos; ou então me deparo com o despreparo miserável dos
próprios indivíduos que se consideram “negros”… Mas não quero resolver isso aqui na
Camarilha (ufa!). Ocorre que a questão me foi trazida novamente por este lançamento da
Crammed, o terceiro volume da série Congotronics dedicada ao Kasai Allstars. O grupo,
que já havia nos maravilhado com duas faixas no volume dois, é formado por vinte e
cinco músicos oriundos de cinco diferentes grupos étnicos do Congo: os Luba, os
Songye, os Lulua, os Tetela e os Luntu. Sabendo que estes grupos étnicos habitam o
Congo, e que, portanto, fazem parte do grupo étnico-lingüístico banto, a questão
retornou. Pois a música do Kasai Allstars é gloriosa porque assume plenamente sua
bantuidade. Inclusive, no release, disponível pelo site da Crammed no link acima, consta
que os integrantes destes cinco grupos, apesar de representarem uma tradição musical e
cultural específicas, simplesmente se encontram e, sem adaptações e adequações, criam
suas músicas, demonstrando uma extraordinária capacidade de sintetizar elementos
culturais. Kasai Allstars é mais um exemplo do ethos transformador da cultura banta.
Essencialmente extática, plena de um conhecimento vivo, sua música é complexa, repleta
de climas e tramas habilidosas. Mas sobretudo fiel a uma espécie de experimentalismo
básico e primordial, constantemente disposto às mais inusitadas configurações culturais.
Inclusive, repete-se aqui, como no grupo Konono n. 1, a amplificação criativa das
kalimbas, que demonstram como o vigor deste experimentalismo se reflete também nos
aspectos técnicos.
Herança de um passado longinqüo e simbólico? Claro que não. Mas como dizia o
historiador francês Fernand Braudel, a mentalidade é a matéria mais delicada e antipática
a mudanças bruscas, mesmo àquelas operadas pela mais característica e improdutiva
violência europeia.
Não é raro hoje (como eu acredito que nunca foi) flagrarmos verdadeiras “aberrações”
psicológicas criando as sínteses culturais mais inusitadas: são etnológos que se
interessam por eletro-acústica, engenheiros civis peritos em tiro ao alvo, dançarinos que,
desempregados, se tornam DJ’s… todos produzindo, embora nem sempre aplicando ao
seu trabalho somente as técnicas e teorias concernentes a ele, muitas vezes
esquematizando-o a partir de outras formas e linguagens. Há também a apropriação e
sobreposição de uma disciplina sobre a técnica, e vice-versa, ambas trocando não
somente suas informações específicas, como também certos esquemas de pensamento
como, por exemplo, quando se utilizam métodos da matemática para criar música, ou
quando alguns americanos recriam as técnicas de djing dos jamaicanos, imprimindo-lhes
outra dinâmica. Podemos considerar ainda a mistura de diversos contextos nacionais,
reforçados pelo convívio social e pela imigração, mas insuficientes como representação,
visto que num mesmo contexto nacional se observam muitas tendências e modalidades.
Ou ainda o modo como certos compositores eruditos se apropriam de técnicas do
universo popular e vice-versa… Em todos esses exemplos, há um elemento estranho, que
certamente se intensifica a cada dia com o aperfeiçoamento e barateamento dos aparelhos
digitais e, sobretudo, com o acesso ilimitado à informação que a internet propicia. Este
estranhamento está relacionado com as afinidades entre estruturas de saber e de poder
que se cristalizaram na camisa de força do estado-nacão. Sempre rezou o “bom senso” a
regra recém-popularizada “cada um no seu quadrado”. E quem há de negar que a unidade
do saber garante a unidade do poder? Se cada um se mantém adequado à sua função,
quem poderia descuidar da agenda, quem negaria o poder? Mas isso não ocorre, pois os
territórios estão se volatilizando, o que não quer dizer absolutamente que haverá terra
para todos. De forma que a guerra está ai, e tem a forma da ordem moderna: é preciso
constituir elos cada vez mais prolíficos, alianças que intensifiquem a horizontalização do
saber e o conseqüente estímulo à tolerância. O etnocentrismo e a reproducão mecânica do
capital andam de mãos dadas e se baseiam no estranhamento. É possível que, nesse
contexto, política e música andem de mãos dadas, mas obviamente dentro de limitações
muito específicas.
A foto da capa de Margins Music me chamou atenção porque são claras as intenções
críticas e políticas do álbum: as calçadas de Londres, as diversas frutas e legumes que
estão ali, dispostas e misturadas… Blackdown vêm há tempos, através de seu blog,
insistindo na tecla de uma música londrina total, isto é, que representasse a
heterogeneidade étnica de Londres. A mistura musical e cultural não atinge o parlamento,
mas ao menos evidencia os refluxos coloniais e sua influência estranhamente benéfica,
embora nem sempre oficializada, nem sempre disseminada pela imprensa. Ou melhor,
muitas vezes oficializada, mas não efetivamente praticada. Semelhante a um sociólogo do
terceiro mundo, Clarke afirma, a respeito do contexto social londrino que “nada ilustra o
abismo entre os que crescem em condições desprivilegiadas e aqueles poucos habilitados
para alterar as coisas, daí o tosco, ofensivo modo com que a imprensa mainstream se
apropria de algumas frases feitas e as utiliza para derrubar as pessoas”. Neste contexto a
informação, a mídia, representa um elemento fundamental no acirramento das relações
políticas e culturais, e detém assim um papel político importante. Tão importante quanto
o papel que a música pode e deve desempenhar, e não só ela: quanto mais se misturam as
informações, quanto mais projetamos um saber sobre o outro, diversificando a
comunicação e produção da “verdade”, mais condições se criam para relativizar o
discurso liberal e racista veiculado pela imprensa institucional.
Martin Clarke é jornalista e trata desses assuntos em seu blog, além de tecer
considerações acerca do caráter revolucionário do dubstep. Com seu parceiro Dusk, criou
um álbum cujo caráter político reside na incorporação de certas tendências que haviam
sido recalcadas pelo jungle em favor não sei bem do quê. Me refiro à presença do
raggamuffin e da música oriental, particularmente do bangra, que aos poucos foi sendo
inexplicavelmente substituída pelo peso rock’n’roll de projetos reacionários, como o
Pendullum. Assim como na música de Shackleton, em que preponderam os ritmos e
timbres orgânicos e multitonais dos ragas indianos, Margins Music traz esses elementos
como parte própria dinâmica do álbum. A começar pela incrível presença de Farrah, uma
cantora descoberta por Clarke através de seu blog, que desenha belíssimas escalas
indianas sobre as batidas alucinadas da dupla. Muitas são as faixas em que o bangra, as
cítaras e tablas dos ragas são sintetizados à malícia soturna do dubstep, além, claro, da
presença grime de Durrty Goodz e Trim, respectivamente nas faixas “Concrete streets” e
“The Bits”. Note-se também o talento de D&B no desenvolvimento das texturas, como
por exemplo na balbúrdia sonora de “Rolling Raj Deep”, na inominável “Kuri Pataka” e
nas ambiências de “Darker than East”. Aliás, uma das formas utilizadas pela dupla para
reportar à micropolítica das ruas, é a manipulação criativa das ambiências sonoras,
através de keysounds de estações de rádio e da chuva, como eles já haviam realizado em
“Drenched”, de 2005. Ressalto também a dobradinha final, formada pela desafiadora (e
shackletoniana) “The Drumz of Nagano” e pelo techno safado, porém bacana, “Focus”.
Margins music: a “música da calçada”, mas também da “margem”, das lojas, feiras,
vielas, das relações interpessoais, etc.. Uma miríade sonora apta a evocar uma
humanidade suprema, senhora e apreciadora de suas diferenças. Eu disse: simplesmente
“evoca”…
Será que a boa intenção basta para sustentar todo o discurso ideológico que subjaz às
propostas musicais feitas pela dupla? Será que a pujança criativa da síntese é capaz de
estimular uma dinâmica social sintética? Como expressão de uma perspectiva, Margins
Music é um dos discos de dubstep mais originais até agora, mas sua limitação está aí: ao
exprimir seu conteúdo como uma perspectiva e abrir o diálogo pelo canal do prazer, o
disco reflete a tendência a que me referi no início, de estabelecer outras forma de “sentir”
o caráter político que inunda a vida urbana. O método é o cruzamento horizontal entre
diferentes técnicas, saberes, etnias… Embora não intervenha diretamente na política
institucional, a música e, especificamente, Margins Music, têm o poder de despertar esse
sentimento, político até a medula.
William Parker – Double Sunrise Over Neptune (2008; AUM Fidelity, EUA)
Sim, existem ainda aqueles artistas que ultrapassam os ditames da indústria, que não
compactuam com a suposta mesmice que apregoam os que se encontram perdidos na
selva de referências do dias de hoje; artistas que exercitam a mais honesta criatividade,
que produzem uma música para além dos rótulos e das concepções mais ordinárias;
artistas, enfim, que mais desafiam do que conservam, mais questionam do que
confirmam, e no entanto, ainda assim, deleitam, elevam. William Parker é um desses
artistas. Por isso, cada novo trabalho que ele edita é motivo de curiosidade atenta, para
não dizer nervosa por parte dos que gostam de música nova e criativa. Pois bem, Double
Sunrise of Neptune contém quatro faixas gravadas ao vivo, imediatamente inscritas no
que de melhor foi realizado no mundo da música em 2008. Convém lembrar que aqui,
trata-se do William Parker maestro, compositor, soando ao mesmo tempo “livre” e
rigoroso, com uma forte alusão à música oriental, particularmente a indiana, fato que
valeu para sua música o rótulo “ethno-jazz fusion”. Desta vez, ele utiliza o ostinato como
método, isto é: parte de uma escala que, repetida inúmeras vezes, serve de horizonte para
que os instrumentos se imbriquem numa delirante miríade sonora. Como por exemplo, na
seqüência melódica realizada pelo contrabaixo de Shayna Dulberger, que pontua a faixa
de abertura, “Morning Mantra”, e se estende por mais de treze minutos, enquanto, sobre
ela, os instrumentos desenham movimentos inusitados, abruptos. Destaca-se a voz de
Sangeeta Bandyopadhyay, que, em meio a todas as outras “vozes”, desfila seu canto
policromático com uma naturalidade assustadora. A faixa culmina em uma tensão
abstrata, intensificada pelo solo de banjo, que evoca o shamisen japonês. A contribuição
do canto hindu com instrumentos orientais de outra cepa torna ainda mais robusta e
profunda a música de Parker. A segunda faixa, um tour de force de vinte e sete minutos
entitulado “Lights of Lake George”, é mais complexa, e conta com uma pegada ainda
mais indiana. A sessão percussiva reproduz um desenho rítmico que se aproxima do
ritmo indiano, chegando a lembrar uma tabla, dividida nas peças de bateria do jazz.
Enquanto isso, os instrumentos de sopro não ficam atrás, explorando ao máximo a
polifonia e o policromatismo, buscando não somente reiterar a marcação do contrabaixo,
mas relativizá-lo em meio às diversíssimas possibilidades de cada instrumento. Em
alguns momentos, percebemos como que inserções, pequenas composições e
intervenções pré-concebidas, como o naipe de metais que, lá pelos vinte minutos, emerge
em “Lights of Lake George”, prenunciando o caos que se seguirá.
Entre o rigor e o descontrole, a música de Double Sunrise over Neptune não pode ser
arrolada como produto de um crossover, como se Parker propusesse a mera transposição
e assimilação do background da música indiana para enriquecimento ou simplesmente
adorno do free jazz. Não. Antes, trata-se de uma música total, uma profunda e sincera
busca por uma sonoridade que (re)conecte passado e futuro, oriente e ocidente, som e
música, natureza e cultura…
No segundo “meeting”, esta característica pode ser percebida mais agudamente nos
primeiros minutos, quando um dos três, possivelmente Graves, dialoga literalmente com
o sax de Braxton, emitindo sons guturais; e lá pelos oito minutos, quando a faixa se
aquieta e a bateria nervosa de Graves, juntamente com o contrabaixo “escorregadio” de
Parker, diminuem o volume para que Braxton desenvolva uma melodia bela e sinuosa. A
música segue e, quando nos apercebemos, já estamos no quarto “meeting”, como que
envolvidos por uma nuvem sonora. Já o quarto e o quinto “meetings” parecem ter sido
construídos com o intuito de explorar a variação das dinâmicas. No quarto, mais lento e
parcimonioso, Parker utiliza o arco, abrindo um diálogo com Braxton que resulta num
polifonia absolutamente surpreendente. No quinto encontro, um coro de espirros se
entrelaça: Parker abandona o contrabaixo para, junto a Braxton, intensificar este duelo tão
rico quanto perturbador. Mas o destaque do álbum é o percussionista, professor,
acupunturista e herbalista Milford Graves, ex-baterista de Albert Ayler, Don Pullen e
John Zorn, que surpreende pela criatividade com que manipula os tambores, praticamente
determinando o direcionamento das faixas. E, assim, não me parece um acaso que num
album tão comprometido com a expansão da música, da consciência, etc, sejam os
tambores o principal destaque: pois todos os instrumentos aqui parecem soar com o vigor
e a agressividade dos instrumentos de percussão, seja a inteligência “harmônica” do
sopro de Braxton, sejam os devaneios de Parker. Inclusive, devo notar que Parker está
muitíssimo bem cotado para as listas de fim de ano. Pelo menos aqui na Camarilha.
Russell Haswell – Second Live Salvage (2008; Editions Mego, Reino Unido)
Me parece que Second Live Salvage é mais do que uma compilação de apresentações do
artista multimídia Russell Haswell, batizadas pela descrição de suas respectivas cidades,
locais, ano e tempo de duração. Apesar de ter sido absolutamente improvisada, se afigura
como uma obra minuciosamente pensada, elaborada e construída e, nesse sentido, uma
verdadeira obra conceitual. Cada uma dessas faixas constitui, filosoficamente falando,
uma escultura sonora que se desenha num tempo e espaço determinados, mas que,
agrupadas no formato do disco, se desembaraçam de seu sentido histórico e acabam por
evocar uma rede de experiências de relativização do tempo e do espaço. E isso podemos
deduzir do próprio título do álbum, que remete diretamente ao sentido do happening e seu
correlato “salvamento”, possibilitado pelo registro.
Second Live Salvage pode ser incluído numa nova modalidade musical, o “salvage”: o
artista dá um sentido fonográfico à experiência que propõe in loco. Incorpora toda a
ambiência, misturando-a mesmo à composição. Propõe também que o “salvage” não
constitua simplesmente um registro que salva a experiência do apagamento no vão do
tempo, mas uma renovação da experiência. A audição do álbum não é propriamente
prazerosa, mas impactante e incômoda, embora sugestiva do ponto de vista “musical”.
Certamente uma das pérolas deste ano, um pérola bruta, irascível, mas não exito em
afirmar que dá ao seu ouvinte uma sensação inominável, única no cenário
contemporâneo.
Essas observações, formais, não dão conta dos verdadeiros objetivos de Música Magneta,
para os quais ele serve tão bem: tal qual na cumbia (cuja etimologia remete à expressão
cumbé, festa), no xote, no frevo, no carimbó, e outros gêneros, o álbum é principalmente,
música de festa, comemoração e produção de alegria em massa. Assim como o funk
carioca de Sany Pitbull, a “música magneta” dos Mestres da Guitarrada é igualmente
tomada pela celebração, mas não abre mão de inovar o aspecto formal. Assim como as
kalimbas elétricas do Konono n. 1, as guitarras elétricas dos Mestres nasceram de uma
necessidade, mas a transcenderam. O disco de remixes mostra que nem sempre o que
parece mais “moderninho”, o é: nenhuma versão se equipara às originais, nem ao menos
pode criar o mesmo interesse – com exceção talvez das produzidas por Dolores e da
versão dubstep de “Banjo amigo” por um tal Missionário José que, desde já,
acompanharei de perto.
A flor: “Se João Gilberto / tivesse um processo aberto / e fosse nos tribunais / cobrar
direitos autorais / de todo samba-canção / que com sua gravação / passou a ser bossa nova
/ qualquer juiz de toga / de martelo e de pistola / sem um minuto de pausa / lhe dava
ganho de causa”. Com esses versos, Tom Zé assinala o tema central deste novo álbum: é
em João Gilberto que se encontra a chave para compreender o que é mais rico e valoroso
na bossa nova, sua síncope, sua criatividade solar e sem igual em modular as sílabas e
melodias, sua capacidade de reabilitar um passado que teve que se revestiu de
modernidade à forceps. Mas Tom Zé escapa da euforia bossanovista quando lembra o
“Tico Tico no fubá” de Abreu Gomes, quando, como Mautner, afirma ironicamente que
“diante do desafinado / o mundo curva-se e desova / tudo até então louvado / foi jogado
numa cova”, quando revaloriza o passado “bárbaro” que precedeu João. Mas, ressalte-se:
não se trata de um disco tropicalista, porque aqui não se louva a bossa nova. Trata-se de
um álbum conceitualmente fecundo, no qual Tom Zé fornece, à sua maneira, uma
interpretação criativa da bossa nova. Para ele, a bossa é João, e, sobretudo, a síncope de
João. Inclusive, nos delírios lógicos e criativos de Tom Zé, a síncope gilbertiana seria
responsável até mesmo pela sinuosidade da ponte Rio-Niterói, afirmação que pode causar
risos e estranhamento, mas que assinala precisamente o jogo de cintura “sincopado” com
que artistas, políticos e pensadores passaram a abordar o problema Brasil a partir dos
anos 50.
O espinho: “Mulher de música / melhor ficar na música / porque mulher de música é
coisa de utilidade pública”. Há quem implique com a fase pós-Byrne de Tom Zé, graças a
essa mania que ele vem cultivando, tornando seus álbuns depositários de grandes
problemas, aproximando o esmero poético de discussões teóricas, crítica cultural, crítica
de costumes, tudo misturado como convém à verve do autor. Eu também impliquei muito
com o bric-à-brac de Defeito de fabricação, e toda aquela mise en scène teatral com
direito a figurino e tudo mais… Mas era só uma implicância pontual, que, no entanto, não
impedia que minha admiração aumentasse conforme a confusão que ele promovia. Em
Estudando o pagode ele abordou a questão da mulher, aproveitando o ensejo criado pela
temática romântica; no genial Danç-Eh-Sá eram os modos da canção, sua estrutura, quase
um estudo à moda de Luiz Tatit. Desta vez, trata-se da bossa nova, essa canção-problema,
esta representação problemática do Brasil. Reza a lenda que João Gilberto advertiu sua
filha Bebel para que, nas efemérides que marcaram os 50 anos de bossa nova, não se
metesse com Carlos Lyra e Roberto Menescal, segundo ele, impostores. Como se pode
observar, a questão está longe de encerrar, seja pelo mal estar ocasionado por um
cancioneiro popular que não consegue se livrar de sua influência, seja pelo bem da conta
bancária dos oportunistas. E mesmo Tom Zé, mesmo este grande gênio, mesmo ele
prefere elogiar personagens insossos como Mallu Magalhães e Fernanda Takai a
reabilitar um velho e conhecido personagem deste debate, o grande pesquisador José
Ramos Tinhorão, sem o qual muito pouco saberíamos a respeito do passado de nossa
música, e um dos primeiros a reconhecer a genialidade exclusiva de João Gilberto e sua
presença decisiva, não em relação à farra da bossa, mas sobretudo como mais um belo
capítulo da história do samba [Tinhorão, 1969].
O samba de uma nota só: À exceção dessa bola fora (“Tinhorão que horror!”), Estudando
a bossa é um álbum luminoso, que traz momentos sublimes de plena criatividade e
reflexão, além de uma forma de compor e cantar únicas, características que têm conferido
a Tom Zé o estatuto de um dos grandes personagens do underground mundial. “O Céu
Desabou” e sua jogada primorosa com o nome dos críticos musicais, “Brazil, Capital
Buenos Aires” com sua piada matadora, “Solvador, Bahia de Caymmi” com seus versos
em inglês na bela voz de Anelis Assumpção, a vocação soft-pop de “Roquenrol, Bim-
Bom”, o sambão “Síncope Jãobim”, tudo com aquele molho característico de Tom Zé,
com seus riffes e dribles poéticos. A lamentar somente o fato de que, infelizmente, todo
esse trabalho não impedirá que o barquinho prossiga sua longa caminhada pela afirmação
classista e insensata de que a música brasileira nasceu e morreu numa esquina de
Ipanema. Mas isso não é problema dele…
Kieran Hebden & Steve Reid – NYC (2008; Domino, Reino Unido)
Encontros como esse, que tem por base a sólida e justa reputação de seus autores, podem
descambar para um perigoso aspecto de celebração ou de laisser allez, o que na maioria
das vezes resulta em um som meio frouxo. Mas o caso da dupla em questão neste álbum
precioso é bem diferente: trata-se de uma interação perfeita entre a imaginação delirante
de Hebden e o ritmo pulsante de Reid, na qual o improviso adquire a forma de método. E
notamos que, embora os álbuns pregressos não sejam tão coesos e ricos em soluções
como este NYC, cabe recordar que tanto as Exchange Sessions, como Tongues e Spirit
Walk, operam basicamente sobre alguns elementos básicos, como a improvisação, a
desconstrução de ritmos como o funk e o jazz e da implementação de diálogos entre
timbres acústicos e eletrônicos. Com isto quero ressaltar que o que há de melhor em NYC
decorre de uma série de experiências anteriores que foram e vem sendo aprimoradas. Não
que os álbuns anteriores já não fossem impressionantes, mas, em NYC, mesmo seguindo
caminho semelhante, a música da dupla dá um salto em termos de estrutura e controle das
dinâmicas, escolha dos samples e dos timbres, e composição das camadas e texturas.
“Departure”, a faixa que encerra o álbum, exemplifica o aperfeiçoamento do método
Hebden/Reid, como eles conseguiram atrelar a improvisação a uma sequência de
modulações coerentes e extremamente instigante ao nível da composição. “25Th Street”,
segunda faixa do álbum, também impressiona: um groove sincopado, salpicado por
sutilezas e interferências que desestabilizam o ritmo, como um baixo funk, sons de
percussões eletrônicas e um som estranho, algo como uma descarga de banheiro (?)…
Logo depois dela, entra “Arrival”, com um contrabaixo sampleado, guitarras psicodélicas
e a bateria vigorosa de Reid. Quando o álbum termina, temos a certeza de que acabamos
de escutar o resultado de uma colaboração prolífica e, possivelmente, longeva. Mas,
sobretudo, a certeza de que, no meu caso pessoal, cometi a primeira injustiça em relação
ao ano de 2008: NYC é um dos discos mais eletrizantes do ano que passou.
The Very Best – Esau Mwamwaya and Radioclit Are The Very Best (2008;
Ghettopop/Green Owl, Reino Unido)
Na semana passada, finalizei o texto sobre NYC, da dupla Hebden/Reid, com a
consideração de que, após as listas, inicia-se a dupla tarefa de receber e assimilar os
títulos de 2009 e, paralelamente, reparar as possíveis injustiças que só o tempo faz ver.
Neste balaio, percebe-se que ora as seguidas audições prejudicam o álbum, ora atingem a
maturidade, mas somente após os prazos requeridos. London Zoo, do The Bug e Margins
Music, da dupla Dusk + Blackdown pertencem ao primeiro grupo; do segundo grupo,
destaco não só o supracitado NYC, como também este divertidíssimo e tardio álbum do
trio The Very Best. Divertido, mas também algo profundo, pela natureza melancólica do
canto de Mwamwaya, grande expressão do disco. Combinada ao aparato electro da dupla
Radioclit, seu timbre espetacular e inspiração particular em criar versões são acrescidos
de uma energia antes improvável, pela suavidade característica de certas manifestações
musicais da África Oriental, como o soukous e a kwassa kwassa. Desta combinação,
surge um álbum empolgante e festivo na justa medida, mas ao mesmo tempo irônico e
desafiador.
Irônico porque as faixas foram compostas a partir de dois elementos principais que,
associados, estimulam o riso: bases de artistas renomados como M.I.A. (“Paper Planes”,
rebatizada “Tengazako”), Beatles (“Birthday”), Michael Jackson (“Will You Be There”),
Architecture in Helsinki e Vampire Weekend (“Cape Cod Kwassa Kwassa”), somadas a
arranjos vocais criados por Esau Mwamwaya, em sua língua nativa, o chichewa. Algo
como uma fórmula pop perfeita, em uma combinação que transborda descontração e bom
humor. Desafiador porque nos situa de outra forma diante do problema da reapropriação
dos elementos sonoros, e mais especificamente, da questão do remix, do refix, do mash
up, e de toda a gama de manifestações que tem no cut and paste sua profissão de fé. No
caso do The Very Best, estamos em contato se não com uma modalidade absolutamente
nova, ao menos com uma forma um tanto quanto peculiar de recriação e síntese de
elementos supostamente alienígenas. Destaco algumas versões bem engraçadas, como
“Bithday” e as que remetem ao Vampire Weekend e a Michael Jackson. Mas há também
que se prestar atenção em faixas como “Hide & Seek” e “Funa Funa”, que possivelmente
dão o tom do álbum autoral que está por vir.
Despretensioso, mas ao mesmo tempo cheio de viço e novidade, este primeiro álbum do
The Very Best nos mostra que estamos longe de esgotar as possibilidades de explorar
novos talhos do cut and paste. E isso significa não só uma questão de procedimento, mas
sobretudo de ampliação de perspectiva sobre a criação musical no contexto atual. O que
nos faz aguardar ansiosamente pelo álbum propriamente dito. (Bernardo Oliveira)
Transitando entre essas duas “vozes”, Merriweather… traz um som ao mesmo tempo rico
em referências e, atualmente, único em sua habilidade sintética. O que mais admira nele é
a capacidade de demonstrar interesse por tudo o que ocorre hoje no território da música,
mas transformando a informação em uma obra profundamente original. Na dicotomia
entre referência e originalidade, o álbum se constrói. E arrisco-me a dizer que aqui nasce
algo próximo de Ok Computer ou Nevermind: Merriweather… possui a aura dos grandes
discos. Nada como uma força demiúrgica, mas talvez esta não seja mais a questão.
(Bernardo Oliveira)
Primeiro, pode-se dizer que a forma com a qual Butcher lida com a acústica dos espaços
propostos pode ser situada como algo entre as pesquisas da eletroacústica e uma
dimensão da improvisação que dialoga direta (e estranhamente) com as ressonâncias. Por
outro lado, cada sonoridade adquire uma dimensão crítica única, que põe em questão boa
parte dos cânones que regem a música como um todo hoje, como por exemplo, a contínua
ladainha que reza ser o acústico e eletrônico universos distantes ou, ainda, diferentes. Na
experiência musical proposta por Butcher não há o menor sentido em se afirmar essa
distinção. Assim, não seria exagero dizer que o drone, o noise, o ambient, o minimal, o
dubstep, o free-improv e outras formas que marcam a música contemporânea com esta
indistinção são não só evocadas nestas faixas, como também relativizadas e deslocadas
de seu eixo central, isto é, suas estratégias e procedimentos. Variando os volumes e
intensidades de seu saxofone, se utilizando de efeitos eletrônicos para extrair dinâmicas
inusitadas, muitas vezes extremamente agudas, ele estabelece modulações e rompantes
raros, mas que ainda assim aludem ao campo de experiências da atualidade. Em “Calls
From a Rusty Cage”, por exemplo, ele exarcerba o volume, tateando repetições com seu
sax que ressoam de forma específica dentro do tanque de combustível. Em “Close By, a
Waterfall”, as intervenções dos instrumentos eletrônicos se torna mais perceptível, mas
não decisiva na construção do improviso, e a indistinção apontada acima aflora de
maneira surpreendente. Em “Frost piece”, Butcher se aproxima do noise com uma
riqueza de detalhes e originalidade timbrística assustadora.
Assim, alguém poderia afirmar que Resonant Spaces é o tipo de álbum que não contém
“música” propriamente, mas algo que transita entre a dimensão conceitual da música e os
estudos de eletrônica e eletroacústica, alocando-se na esfera da produção erudita. Mas
devo notar que muitos trabalhos arrolados hoje na gama erudita não possuem a
profundidade e o arrojo contidos em Resonant Spaces e, muito menos, a inspiração.
Porque apesar de árido e cerebral, o álbum intriga e, assim, emociona. Que a crusada
deste cavaleiro contra a mediocridade e a petrificação do som e do sentido prossiga,
produzindo outros álbuns tão impressionantes quanto este. (Bernardo Oliveira)
A música africana tem em Toumani Diabaté uma parcela nobre de sua representatividade,
mas é apenas uma parcela, e estaríamos enchendo lingüiça se enumerássemos aqui todos
os artista que legitimam essa percepção. Não importa, portanto, se a África está “na
moda” ou fora dela, mas que, em primeiro lugar, não há uma só África, muito menos uma
África “coitada”. O que existe sem dúvida é uma África pobre, mas culturalmente
imponente, a despeito de toda a exploração, uma África que apesar da pobreza, da
colonização, das suas próprias guerras e das guerras trazidas pelos colonizadores,
mantém-se como um pólo produtor de espécimes musicais em abundância. E mais:
Toumani Diabaté e The Mandé Variations exemplificam uma situação espaço-temporal
curiosa: a demanda por uma colocação no mercado obriga o artista a apresentar sua
música como um espécime “novo” e original, quando na verdade esta música é
tradicional, o público local já está careca de conhecer, ouvir etc. Deve este ter sido o caso
do Konono n. 1, de Esau Mwamwaya, do Tirariwen, do Group Inerane e, mais
agudamente, com o cantor sírio Omar Souleyman, tido por muitos como exótico.
Afirmar que Repo, do Black Dice, é um disco que dá conta deste contexto é diminuí-lo,
pois o que se ouve aqui é um passo além na música, que não só intercepta qualquer
pessimismo preguiçoso, como também o desafia. Sua música é pura transfiguração
(assim como a de Richard D. James, Shackleton, John Butcher, M. Takara, etc.): ao
contrário da música realizada na primeira grande fase da música mecânica, “a era do
disco” (isto é, quando toda a produção musical se tornou subscrita às dinâmicas
industriais de registro e difusão, tornando-se também componente de grandes linhas de
produção, ou gêneros), a música desta segunda fase não é produção genérica, nem
movimento, mas comentário individual. O Black Dice tece em quarenta e cinco minutos
seu comentário arrojado e irônico sobre a dimensão onírica da sociedade de consumo, em
que dispomos e assimilamos diariamente uma gama de sons e imagens, que alteram
consideravelmente a percepção e, portanto, a sensibilidade criativa. Mas isso é apenas
uma explicação genérica e conceitual para um acontecimento experiencial que extrapola
explicações: ouçam por exemplo “Earnings Plus Interest”, “La Cucaracha” ou a faixa de
abertura, “Nite Creme”, que permitem entrever o método e a singularidade do som.
Mas talvez muitos achem essa música uma “porcaria”, o prenúncio do fim… Estarão
certos ou errado? Mas isso também não importa! E, aqui, vale mais uma vez citar o poeta
greco-romano Marcial, apud Augusto de Campos:
Mulatu & The Heliocentrics – Inspiration Information (2009; Strut Records, Reino
Unido)
Aparentemente, haveria entre a invenção e o retrô algo como um abismo, uma verdadeira
incongruência de propósitos e metas. A invenção seria algo próprio de uma voracidade
criativa vital, que emerge tanto sob o signo da desordem como do trabalho árduo e sem
tréguas. O retrô já seria subproduto da sociedade de consumo, e operaria suas mudanças
estéticas de acordo com o gosto do freguês, seja apelando para a nostalgia geracional,
seja requentando gêneros. Mas eu compreendo que estas duas perspectivas são parte de
um passado não tão longínquo, mas certamente… passado. Pois, hoje, detecta-se uma
habilidade em criar o “novo” dentro de uma linguagem até mesmo excessivamente
trabalhada e, portanto, “histórica”. Na semana passada citei o álbum do Menahan Street
Band como exemplo de um retrô nostálgico. Poderia acrescentar também o álbum do
Budo’s Band como um segundo exemplo no qual timbres e arranjos se ajustam
perfeitamente aos propósitos dos autores: para além da homenagem, eles desejam trazer
de volta esses gêneros e timbres, reabilitar uma certa perspectiva musical que,
supostamente, teria se perdido graças aos famigerados “novos tempos”, às intempéries da
indústria, à alta tecnologia etc. Talvez pudéssemos arrolar o trabalho do The
Heliocentrics ao desta turma. Mas isto só é possível parcialmente, na medida em que eles
buscam “modernizar” a música de Sun Ra através não só de elementos genéricos como o
hip hop, mas também incorporando sons eletrônicos, distorções, percussões desenfreadas
e outros detalhes que não são próprios aos gêneros a que fazem referência. Ocorre aqui
uma delicada distinção entre uma perspectiva de reabilitação e uma outra, de
reapropriação e sutil comentário: se a primeira deseja trazer à tona, a segunda pretende
ajustar à uma sensibilidade mais atual, procedimento que muitas vezes pode acabar
atingindo algum grau de invenção – como por exemplo no trabalho de Antony,
Tindersticks, Grizzly Bear, Will Odham, etc.
Mas e quando um medalhão, um demiurgo, alguém que já criou um corpus musical digno
de receber um nome particular é convidado a tocar com artistas que assumem sua
influência e lhe prestam homenagem? Muitos são os exemplos de encontros entre
músicos de gerações diferentes, os mais jovens pagando tributos e soldos para os mais
velhos. Mas aqui ocorre uma anomalia. Em sendo a obra de Mulatu Astatke
reduzidíssima, poucos são os subsídios para compreender a especificidade de seu Ethio-
jazz. Claro, há um sabor inusitado nas concepções harmônicas e timbrísticas de seus
álbuns mais conhecidos, Afro-Latin Soul Volumes 1 & 2, ambos de 1966, e Mulatu of
Ethiopia, de 1972, mas me parecem ainda insuficientes para justificar o rótulo. Então,
toda a rica gama sonora que dá forma ao som do Heliocentrics, serve como base sólida
para que Mulatu amplie o espaço sonoro de seu Ethio-jazz. Portanto, não se trata de um
inofensivo álbum-tributo, nem são os Heliocentrics meros anfitriões atentos e preparados.
Ao contrário, o disco é a continuação de um trabalho que, devido a sabe-se lá a quais
fatores, não prosseguiu seu curso natural. Guardadas as devidas proporções, podemos
comparar Inspiration Information Vol. 3 ao último filme de José Mojica, já que tanto
Mojica como Mulatu demoraram muitos anos para retomar o pensamento e a produção
criativa, vivendo mais de louros e experiências pregressas do que produzindo
efetivamente. Neste sentido, Inspiration Information é um disco sensacional, capaz não só
de justificar o Ethio-jazz, como também estimular os amantes do passado a tomarem
atitudes musicais menos retrógradas.
Não é à toa que os Heliocentrics têm sua morada no selo de Madlib, o Stones Throw,
justamente o local onde o cultivo do passado e a invenção se confundem a cada
lançamento. E também não me parece fruto do acaso que Mulatu tenha retornado nos
braços deste combo admirável. Ou teria sido o oposto? Não sei, mas certamente
Inspiration Information Vol. 3 é desde já um dos “jogos de comadre” mais excitantes do
ano. (Bernardo Oliveira)
3. Nota-se nas faixas uma habilidade em articular o saxofone a toda uma parafernália de
samplers, eletrônicos e acústicos, manipulando tudo com destreza e eficiência, mas,
sobretudo, com emoção. Se há uma imensa frieza nos procedimentos utilizados por Cosi,
isto não obstrui os momentos em que sua música intriga e, portanto, comove. Até mesmo
em faixas mais experimentais como “”Mozambico”, praticamente composta por saxofone
e field recordings, somos levados a um universo de referências árabes, africanas e
americanas que impressiona por sua qualidade sintética. Em “I Wanna Be Free”, Cosi
vocaliza as experiências free, seu espaço musical por definição, com a incorporação
abismal de elementos noise que fazem da primeira faixa um a experiência acachapante.
“Harmonia Raag”, com suas tão bem resolvidas nuances orientais; e a ingênua “O
Ngoko”, demonstração de uma vivacidade pueril, que configura uma atração à parte.
Porém, na seqüência, com “Lovely Blue Cream”, uma espécie de “Take 5” mais
expressionista, esta mesma puerilidade é dissolvida pela força de um improviso maduro,
plenamente conectado com os “monges” do free. Collected Works possui esses saltos,
mas também demonstra habilidade no saltar.
Por sintetizar a obra de Cosi de forma ampla e paradoxalmente coesa; por exemplificar
uma faceta curiosa do método conceitual com o qual ele cria seus álbuns; e por confirmar
o compositor sagaz e o instrumentista instigado por descobrir novos caminhos, Collected
Works foi um dos lançamentos mais promissores de 2008, que nos passou despercebido.
Que esta nota repare o erro e chame atenção para este trabalho recente, porém instigante.
(Bernardo Oliveira)
Penso que uma combinação de elementos muito especiais explicam porque o Grizzly
Bear é mais interessante e repleto de surpresas que seus colegas retrô, como Devendra
Banhart, Franz Ferdinand e afins – afinal, o retrô não é a emulação pálida e reverente dos
anos sessentas, mas da música produzida em qualquer época. Além de excelentes
músicos, os integrantes do Grizzly Bear reproduzem uma cultura musical específica
através de seus próprios instrumentos. Não se trata de uma visão de fundo, teórica, mas
algo que se exprime na dinâmica de cada instrumentista, e que não pode ser confundido
com a reprodução do clichê. Assim, por vezes o contrabaixo adota uma sonoridade
próxima ao estilo seco e marcado de Paul Mccartney como em “Cheerleader”, a bateria
incorpora ritmos deslocados do folk e do rock, como na coda de “Two Weeks” e o violão
folk é como que assolado por uma gana riffeira de primeira linha, como na extraordinária
“Southern point”. Trata-se portanto de uma dimensão onde a música é construída a partir
de retalhos, tratados porém de forma a reproduzir um comentário sobre o clichê: não se
trata de mera reverência, mas de um processo criativo cuja característica conceitual é o
“corta e cola”, o mesmo “corta e cola” tão decantado por seus contemporâneos, embora
sob uma outra forma, talvez mais surpreendente justamente pelo tal descompasso a que
me referi acima. Eles não fazem música eletrônica (embora se utilizem dela de forma
convincente, como na maravilhosa “I Live With You”), nem “dubstep”, ou hip hop, mas
pensam e operam sua música em franca relação com o espírito mais arrojado da época.
Isso faz toda a diferença, incorporada à excelência das canções de Rossen, esse menino
prodígio, que é, já aos vinte e seis anos, um patrimônio do cancioneiro do século XXI.
Mas esta experiência, por seu conteúdo imprevisível, não ocasiona somente a insegurança
mas também o espanto e, às vezes, a dor. Muitas vezes somos acometidos por tensões
inesperadas, sopros granulados, distorcidos, revirados, transfigurados… Mesmo as três
faixas denominadas ASA 1, 2 e 3, que funcionam a princípio como uma espécie de trégua
em relação à quebradeira das outras, adquirem gradualmente um aspecto nocivo, que se
for mal administrado pode causar sérios problemas ao aparelho auditivo e à sanidade
mental do indivíduo. Não levem este comentário como elogio exagerado de entusiasta,
porque como Hecker explora o espaço em torno do ouvinte, procurando não só situar e
mover o som no espaço, mas também penetrando em seus ouvidos de forma agressiva,
cabe advertir que trata-se de uma experiência que pode causar, nas palavras do próprio
Hecker, “desorientação espacial”. A audição, portanto, é árdua. Na verdade, eu diria que
ela é necessariamente árdua, já que trata-se de uma descodificação radical, o que implica
em apresentar algo estrangeiro, alienígena e, consequentemente, difícil.
Para os que se aventuram na empreitada proposta por Hecker, para os que ultrapassam a
virulência e até mesmo o mal-estar ocasionado por sua “música”, o resultado é
fascinante. Eu diria até que, desde o Imperial distortion de Kevin Drumm, os “ouvidos”
da época não eram afrontados de forma tão franca e direta. A música de hoje tem em
Florian Hecker uma espécie de demiurgo, mas ao mesmo tempo ele age como um
vândalo, atingindo a noção de “audição” em cheio. É claro que muitos leitores devem
estar se perguntando o que este álbum tem de tão revolucionário para que valha tantos
elogios e sugestões de cautela, tantas advertências e cuidados? É porque nele, como na
literatura de William Burroughs, os corpos são fluxos de experimentações, para os quais
as noções de “saúde” e “política” não fazem o menor sentido. Se esta experiência fará
mal, trará desprazer, o que importa? Se a proposta de Hecker é legítima, se é condizente
com questões pertinentes à música de hoje – como por exemplo a distinção “moral” entre
barulho e música – isto o ouvinte descobrirá expondo seus ouvidos a ela. (Bernardo
Oliveira)
Para os desavisados, o álbum já começa “quente”: uma peça para sax alto e manipulações
eletrônicas, de cunho abertamente erudito, chamada “Øx” que, para fins de exposição,
posso de dizer que vincula de alguma forma a sonoridade esquiva de John Butcher com o
noise de Merzbow, sem que se pareça com nenhum dos dois. Depois, “Essential
extensions”, para acordeão, sax alto e double bass. Eu diria que essa dupla formaria o
primeiro bloco do álbum, onde se demonstra mais claramente a habilidade técnica e
criativa de Ratkje, além de constituírem as peças onde se percebe mais claramente a
influência de Stockhausen. Mas é a partir de “Wintergarden” que a música de Ratkje se
torna realmente peculiar, onde ela de fato passa a desenvolver um sotaque, uma forma
própria de criar dentro desse universo espinhoso da composição. “Wintergarden” é um
peça constituída a partir de sobreposição de vozes, onde a autora explora diversas
possibilidades: falas, risadas, suspiros, gargalhadas, berros, solfejos, etc, se misturam
progressivamente compondo um espaço musical em que a tensão permanece como fio
condutor. Nos últimos segundos, ouve-se uma linha melódica até simplória, executada
talvez por um sintetizador, mas que confere à faixa uma doçura surpreendente. Mas são
nas faixas seguintes que a surpresa se instala de vez. “River Mouth Echoes”, com seus
quase 20 minutos de volutas “messiaênicas”; a varesiana e eventualmente lúdica “Waves
IIB”, composta para uma série de instrumentos como flautas piccolos, sax soprano, tubas,
sintetizadores, percussões, etc.; e “Sinus Seduction (Moods Two)”, talvez a faixa mais
interessante do álbum, em que se pode observar um equilíbrio quase perfeito dos
elementos com os quais Rajtke mais trabalha: o noise, a manipulação digital de elementos
acústicos e a exploração de timbres e frequências em uma escala complexa e
multifacetada.
Mas, dentre todas as referências que pesquei no mar revolto de Bromst, uma delas me
intriga, talvez porque eu não saiba bem o porque. O fato é que tanto as faixas deste como
as do primeiro disco me lembram muito uma única faixa de Brian Eno, do disco Another
Green World, “St Elmo’s Fire”. É claro, lá estão os xilofones, a repetição e a melodia ao
mesmo tempo agradável e pobre em recursos. É verdade que ela não é noisy e ainda tem
um solo de guitarra firulento à beça… Não é uma comparação que eu consiga, por ora,
dar conta de forma lógica e racional. Mas me parece que ela tem um fundamento
intuitivo, na medida em que, guardadas as devidas proporções, Eno e Deacon são mais
exploradores musicais do que músicos, mais pensadores que artistas, mais inovadores que
conservadores… E, neste sentido, é preciso pôr Deacon lado a lado com Kevin Drumm,
Omar Souleyman, Hecker, Siba e a Fuloresta, Animal Collective, etc. Isto é, com o que
de mais interessante e inovador se tem feito neste ano que já caminha para sua metade.
(Bernardo Oliveira)
Omar Souleyman – Dabke 2020: Folk And Pop Sounds of Syria (2009; Sublime
Frequencies, EUA [Síria])
Com Highway To Hassake, Omar Souleyman foi apresentado ao ocidente como uma
espécie de herói nacional, simbolizando algo entre a autonomia do Calipso e a
apropriação inovadora de tecnologia intermediária levada a cabo no Brasil por DJ
Marlboro e MC Catra. Mark Gergis, também conhecido como Porest, parceiro de Alan
Bishop do Sun City Girls, pesquisador, colecionador e colaborador do selo Sublime
Frequencies foi quem o descobriu, e a quem confiamos a opinião de que a música de
Souleyman é algo absolutamente anômalo no contexto musical da Síria. Mas o que se
ouve tanto em Highway To Hassake como neste novo lançamento, Dabke 2020, me soa
anômalo independente de qualquer contexto musical. Se tomarmos a música apresentada
neste álbum por uma definição abstrata não há muita novidade, pois trata-se de uma
miríade sonora composta por muitos estilos e técnicas musicais encontrados no Oriente
Médio, mas também integrada a práticas culturais e tecnológicas que se propagam em
todas as partes do globo. A diferença está na proporção de elementos díspares (do dabke
sírio, do choubi iraquiano, etc.), no modo de gravar e compor (incorporando elementos
eletrônicos e acústicos) e nos resultados propriamente ditos. Neste sentido, se Dabke
2020 não é mais representativa do trabalho de Souleyman, já que a primeira coletânea era
composta por uma variedade maior de ritmos, ao menos ela demonstra de forma mais
concentrada o poder de fogo e a urgência de seu trabalho.
“Atabat” (“entrada” ou “limiar” em árabe) inicia o disco com um clima etéreo, temperado
pelo bouzouk elétrico e pelo sintetizador, ambos executados pelo multi-instrumentista
Rizan Sa’id. Então, Souleyman abre os trabalhos, entoando os versos escritos pelo poeta
Mahmoud Harbi, executando com maestria os trêmolos vocais (mawal) característicos do
canto árabe. Na seqüência, talvez a faixa mais impressionante do álbum: “Lansob
Sherek”, um dabke eletrônico composto por timbres carregados e uma sobreposição de
ritmos e improvisos que beira às raias da saturação. Aliás, os solos que se alternam entre
os vocais de Souleyman são geralmente saturados de efeitos, como o delay, o que, com a
batida, confere um clima caótico às faixas. Uma outra característica é a insistente
inclusão de solos de percussão e instrumentos, como que reproduzindo as variações por
exemplo da tabla indiana, mais um elementos que contribui para o estilo arrojado das
composições. “Shift Al Mani”, um choubi veloz, com a alternância de vocais e solos de
sintetizador, dá prosseguimento ao álbum. De um modo geral, Dabke 2020 é frenético e
agitado. Mas a faixa final, “Kaset Hanzal”, a mais lenta e melancólica, também possui
seus encantos, com seu início ralentado por obra da ação do programador, o que nos faz
perguntar se foi propositadamente atrasada ou se constitui um erro de gravação. De
qualquer forma, encantador.
Destaco também “La Sidounak Sayyada”, com seu suingue “malemolente”, e “Qalub An
Nas”, com vocais saturados de efeito e solo de tabla, momentos brilhantes que nos
conduzem ao “conceito” não do álbum, mas da própria música de Souleyman: como a de
Catra e Marlboro, é música de festa, para beber e dançar até cair. Papel que esta coletânea
cumpre com folgas. (Bernardo Oliveira)
The Naked Future – Gigantomachia (2009; ESP-Disk’, EUA)
Atenção: este álbum não é exatamente um marco, mas indica um gênio musical capaz de
criar reviravoltas. No horizonte do free-jazz (ou mesmo free-improv) contemporâneo, o
trabalho do The Naked Future representa uma faceta extremamente peculiar, para não
dizer única. Assim como o punk-jazz do Lounge Lizards de John Lurie, Gigantomachia
traz uma dicção jazzística que de tão anômala aponta para um limiar, um limite onde se
percebe a estrutura de improviso e composição em xeque. Trata-se de uma música crítica,
uma dimensão onde o jazz é questionado, ou melhor, uma música que traz embutida uma
crítica construtiva a alguns clichês do free jazz. Claro, alguns poderão opor-se ao que
estou afirmando lembrando o caráter iconoclasta do segundo quinteto de Miles Davis, as
pirotecnias de Ornette Coleman ou até mesmo a própria condição moderna, que impele o
músico a buscar a destruição das formas pregressas, o paradoxo e a superação.
Entretanto, The Naked Future não propõe a desconstrução como método, mas a
incorporação quase “desrespeitosa” destes clichês, bem como de outros, às vezes
alienígenas, às vezes inomináveis. Durante a audição, têm-se a impressão de que a
música vai de nenhum lugar a lugar algum, e isto não por obra de uma desorientação
juvenil, muito pelo contrário. Muitas vezes o próprio jazz é situado em segundo plano em
favor de uma aventura cujos riscos parecem estar fora da previsão e do controle. O título
tem o mérito de indicar o caráter central do álbum: Gigantomachia, alusão direta à
batalha primordial dos deuses gregos, representa o aspecto demiúrgico com que
Arrington de Dionyso e seus companheiros constróem sua música.
Enfim, está dito: Gigantomachia abre portas para um jazz novo e desafiador. Mas onde
precisamente reside esta novidade? Eu arriscaria a tese de que The Naked Future opera
com uma combinação original de improviso controlado e apropriação timbrística do free
jazz dos anos 60 e 70. Nota-se porém que o próprio rótulo free jazz se vê aqui
questionado. E isso porque o que conta em Gigantomachia não é mais o aspecto
instintivo e imediato da improvisação, elemento que justifica e endossa o termo free. Ok,
percebe-se uma inclinação especial à criação de estruturas ríspidas, tensas, que remetem
diretamente à ideia de batalha implícita no título. Mas a improvisação do grupo tende a se
manifestar através de uma racionalização do espaço rítmico e harmônico, como se pode
notar nos diversos momentos da faixa de abertura, “We Binge on a Bloodthirsty God”.
Às vezes, a simplicidade elegante das estruturas a que eles chegam é tanta que
lembramos mais do drone e do dubstep do que propriamente do jazz. O outro aspecto
relevante é a produção destas texturas a partir da utilização de timbres característicos do
gênero. Em Gigantomachia ouvimos timbres familiares, como o saxofone irascível, o
contrabaixo executado com arco, as sucessivas viradas de bateria, o piano
harmonicamente descentralizado são reinterpretados sob a ótica de Dionyso e seus
companheiros. O resultado emana agressividade e vigor, tornando a audição um desafio
para ouvidos sensíveis, apesar da rica variedade de momentos sutis e silenciosos –
sobretudo na faixa final, “We Sleep in a Rabbit Hole” e em variados compassos de “We
Engage the Monstrous With Our Mirrors”. Destaque para o pianista Thollem McDonas,
responsável por alguns desses momentos.
Pode-se afirmar, no entanto, que apesar de promover uma desorientação sonora singular,
The Naked Future é um grupo estritamente apolíneo, tributário de certas inflexões
estruturais da música contemporânea, particularmente no que diz respeito à economia e
ao trabalho com repetições. Me parece também que de Dionyso é o personagem central
desta trama, a julgar por seu álbum solo I See Beyond the Black Sun. Nele, o autor
também desfila, dentro de uma estrutura de improvisação, uma ampla variedade de
texturas criadas a partir de seu canto gutural e do bass clarinet que executa com ímpeto
pueril. Enquanto os medalhões do free, como Parker e Coleman, valorizam
(brilhantemente!) cada vez mais o aspecto intuitivo do gênero, este jovem de trinta e
poucos anos propõe uma abordagem estrategicamente fria, mas que resulta em
sonoridades curiosamente intensas. Ao contrário do jazz de proveta da ECM, pálido
investimento da música de conservatório em formas soltas, a música de Dionyso é alegre
e furiosa, características centrais das grandes obras do jazz. Motivo mais que suficiente
para que fiquemos de olho em seus próximos movimentos. (Bernardo Oliveira)
O fato concreto é que ainda não consegui escutar com atenção todos os discos do Wolf
Eyes, e talvez não consiga fazê-lo até morrer. Mas como situar este trabalho em relação a
um grupo que soma mais de 150 lançamentos? Só este ano, entre fitas cassetes e CDr’s,
já são dez álbuns. No caso deste, sugestivamente batizado como Always Wrong, trata-se
de um álbum de estúdio, lançado por um selo específico, o Hospital Records. Presumo
que haja uma diferença entre os cassetes e CD-R’s e os álbuns lançados por selos
especializados, o que fica mais ou menos claro quando faço a comparação. Os
lançamentos independentes guardam dinâmicas mais soltas, improvisos, um modo
autêntico de se trabalhar o noise nos dias de hoje. De forma que, para analisar este álbum,
julgo adequado compará-lo aos de mesma cêpa, isto é, os álbuns de estúdio lançados por
majors, como o álbum homônimo de 2000, a parceria com Anthony Braxton, Black
Vomit e Slicer, de 2002. Entre a brutalidade, o vandalismo e a minúcia, neles o Wolf
Eyes consegue obter resultados mais interessantes.
Mas, ainda que encarado nesta perspectiva, Always Wrong me parece um álbum especial.
Os timbres soam mais estranhos, as estruturas de composição se mostram com mais
clareza, as vozes se articulam de forma consistente, sem espaço para rap ou canção, os
ritmos estão mais interessantes, super quebrados e detalhistas… Podemos até dizer que,
tal como o Animal Collective, o Wolf Eyes parece buscar uma forma mais seca e coesa
em relação à radicalidade dos experimentos anteriores, incorporando esta radicalidade a
estruturas mais inteiriças e amarradas. Como em “Cellar”, a faixa de abertura, instigante
mistura de doom e noise dos melhores. Ou em faixas mais “tranquilas”, como “Living
Stone” ou a faixa final, a dobradinha “Droll/Cut the Dog”, onde eles encontram, à moda
de um Black Dice, uma perspectiva noise que aposta mais no incômodo dos sons
abrasivos do que na cacofonia desbragada.
Mas não se engane o leitor, pois o resultado por isso não se mostra mais palatável ou
menos criativo, pelo contrário. Em pouco mais de meia hora de música, o Wolf Eyes
propõe a deseducação de nosso ouvido. Mas esta deseducação implica em uma abertura
da percepção e da fruição. “Broken Order”, título de uma das faixas, reitera a imagem do
terror embriagado que descrevi acima, um terror que conduz a uma pureza sem
mediações, a uma forma musical que expurga do ouvido todos os excessos, mas de
irritabilidade e intolerância. Um terror que ensina a expandir a audição, não tolhi-la ou
acostumá-la.
Por denotar essa dimensão pedagógica, mas também por manter o prazer do início ao fim,
conjugando as características mais nobres da arte, Always Wrong pode até soar como um
trabalho impenetrável. Mas é, sem sombra de dúvida, uma dos mais indispensáveis do
ano. (Bernardo Oliveira)
A sensação de aleatoriedade que o disco emana contrasta com o fato de tratar-se de uma
série de composições altamente controladas. Há aqui de tudo um pouco: violões folk,
sobreposição de percussões inusitadas, sonoplastia, programas de rádio, barulhinhos de
animais, samplers, utilização de vozes de diversos modos, incorporação de elementos do
cotidiano, títulos sugestivos, noise, field recordings, resquícios de canções, de melodias,
etc. A miscelânea de estilos musicais e procedimentos resulta em uma sonoridade
confusa e embaralhada, mas uma atenção cuidadosa demonstra que não é bem assim. Os
próprios autores estimulam a confusão, quando, no final da segunda faixa, “Read, Eat,
Sleep”, ouvimos alguém dizer, com voz de locutor: “By digitizing thunder and traffic
noises, Georgia was able to compose aleatoric music.” Mas o que se ouve é uma colagem
de momentos esparsos, que buscam construir uma painel sonoro a partir de elementos do
cotidiano, ou pelo menos elementos musicais que constróem um ambiente em que a
regularidade das atividades cotidianas pode ser evocado, ainda que em tom de deboche.
Um violão, uma voz masculina que soletra pausadamente o título, percussões eletrônicas,
manipulações de estúdio configuram o painel, a partir do qual podemos supor um elevado
nível de construção sonora– “elevado” porque concentra som e significado de modo
eficaz, ao mesmo tempo divertido e reflexivo. E aí reside a maravilha de Thought for
Food: a pregnância conceitual (ou problemática) de sua música é concomitante a um
prazer, a uma dimensão de jogo, que pode sugerir tanto o “zeitgeist”, como uma inflexão
absolutamente sem igual e sem comparações. Um misterioso distúrbio de linguagem.
A senha para esta linguagem misteriosa é a ironia. E ela se constrói justamente no espaço
entre o fato desta música soar “interessante”, no sentido pejorativo proposto por
Agamben, mas também encerrar uma “promessa de felicidade”, segundo a estética
radical atribuída a Nietzsche – uma estética do ponto de vista do criador e não do
espectador. Como a música de Maja Ratkje, Hecker, Asa-Chang, Aphex Twin e Kevin
Drumm, ela assume uma série de dificuldades impostas por um contexto massificado e
descentralizado para afirmar uma estratégia, um rompante, uma pesquisa ou,
simplesmente, um ponto de vista… Sem dúvida, um dos mais autênticos e geniais dos
últimos anos. (Bernardo Oliveira)
Asa-Chang & Junray – Jun Ray Song Chang (2002; Leaf, Reino Unido [Japão])
Coube aos antropólogos a árdua tarefa de definir um elemento teórico extremamente
fugidio e problemático chamado cultura. E apesar de todos os debates e até mesmo
correções de rumo que marcaram o advento e desenvolvimento do conceito, uma
conclusão parece ter se cristalizado entre as almas bem-pensantes. De que todas as
culturas se equivalem a despeito de suas diferenças; e, como consequência desta
premissa, de que toda cultura é miscigenada a priori. Não me estenderei neste assunto,
mas apenas notarei que por mais bem intencionada que pareça esta opinião, ela já toma
hoje uma forma simplória e simplista, que mais estimula um perigoso nivelamento
cultural do que expõe e problematiza as diferenças. Pois bem, deixemos de lado essa
visão para afirmar a diferença de um ponto de vista supranacional e, sobretudo,
supracultural. Trata-se aqui de identificar a diferença no extrato das ramificações e
sobreposições culturais mesmas, ainda que, em primeiro plano, toda cultura seja, desde
sempre, “miscigenada” – mesmo aquelas que cresceram e se constituíram nas franjas de
um processo de autonomia radical. A questão no entanto não se fecha aí, pois existem
milhões de situações culturais, e mais ainda, de contextos e exemplares que testemunham
misteriosas formas de síntese. Tantas que, suspeito, com o antropólogo Edmund Leach,
de que não há mais sentido em nos referirmos à cultura no plural: culturas. Na arte, este
processo traz no entanto uma série de problemas. Porque as distâncias “culturais”, sendo
cada vez menores, sendo cada vez mais arroladas no nivelamento produzido pela
economia de mercado, traz em contrapartida uma exigência, um rigor na mistura e no
modo de misturar cada vez mais desafiador para aqueles que buscam escapar da ética
“jornalística” do melting pot. Ora, tudo pode ser Melting Pot e, regra geral, a utilização
desta expressão deixa entrever um cosmopolitismo benévolo, alienado e, como o tiro que
sai pela culatra, etnocêntrico.
Assim, eu poderia definir Jun Ray Song Chang de uma forma burocrática, elencando as
influências de música tradicional japonesa (o shomyo, o gagaku, etc), a incorporação
absurda e prodigiosa da tabla indiana, a utilização minuciosa dos aparelhos eletrônicos…
Mas isto justamente remeteria o álbum ao contexto do “caldo cultural”. Não. Como todo
grande álbum Jun Ray Song Chang não é produto de contexto, mas de uma subjetividade
disposta a unir esforços em prol de uma expressão sonora sem par, sem comparação.
Provém de um contexto, mas ainda assim lhe é alienígena. Uma disposição que tem seu
trunfo na transfiguração dos sons e ritmos, na ironia, no humor, e em um excesso de
expressão, uma sorte de equilíbrio entre exagero e minúcia que faz diferença. “Hana”, a
faixa que celebrizou Asa-Chang e seus comparsas, é sem exagero, uma das aberturas de
disco mais fascinantes de todos os tempos, com sua repetitiva cama de cordas que
contrasta com a dinâmica rítmica variada formada pela sobreposição de tabla e voz.
“Preach” e “Kobana” estão inseridos no contexto da música para o teatro kabuki, o
nagauta. No entanto, muito embora conserve a dimensão dramática do gênero,
rapidamente se converte em um experimento com ritmos e um belíssimo entrelaçamento
de diferentes linhas melódicas. A histeria de “Goo-gung-gung” e a saga polirítmica
“Jippun” também se encaixam na dinâmica rarefeita entre o contexto e sua superação, e
podem até se tornar uma imolação aos ouvidos mais sensíveis e acostumados com
determinadas sonoridades. Ao contrário, para os que se deleitam com o incômodo que
algo absolutamente desconhecido pode evocar, trata-se de um desafio, motivo de júbilo e
loas.
O trabalho de Asa-Chang & Junray pode ser arrolado no discurso do melting pot, sem
dúvida. Porém, tal como a música dos grandes nomes dessa década, ela não se define por
gêneros nem modelos, se não que pela confluência de determinados estilos e modos de
produzir música. Mas, em sendo toda a música, assim como toda cultura, produzida a
partir de matrizes heterogêneas, como se pode identificar a diferença? Semana passada,
Ruy se referiu ao The Books como um OVNI, algo que à primeira vista não identificamos
ou estranhamos demasiadamente. Uma boa imagem, mas que mantém o mistério da
diferença, reportando o desconhecido a uma dimensão metafísica. O mistério, para mim,
se localiza no paradoxo entre uma linguagem que se exprime de forma heterogênea e
sintética, mas que, ao cabo de sua apresentação, torna-se irredutível não somente ao
contexto de onde emergiu, mas a qualquer contexto. É o caso de Jun Ray Song Chang,
sem dúvida. Um OVNI, um mistério, uma música que intriga, transtorna, torna tudo ao
redor irrelevante e inócuo… Certamente um mistério para mentes acostumadas a
distinção entre cultura de massas, folclore, cultura erudita, e outros currais conceituais
que há muito perderam o sentido. Para os fãs de “sonoridades exóticas” o trabalho do
Group Inerane ou do Konono n. 1 pode trazer uma novidade que depende tão somente da
distância cultural, constituindo-se numa forma pobre e institucional de enquadrar a
diferença. Mas o que estes grupos apresentam é a diferença radical, fora do âmbito seguro
e domesticado do melting pot. (Bernardo Oliveira)
Alguém pode notar uma certa sisudez, uma ausência de graça e irreverência, que
caracteriza por exemplo o trabalho de outros experimentadores americanos, como Ives e
Cage. De fato, há uma seriedade no projeto, mas vale notar que ele não é sisudo à toa.
Seus objetivos que, sendo ambiciosos, produzem uma aura de concentração e dedicação
tal que por vezes pode ser mal interpretada. Há leveza e liberdade nas intenções de
Whitman, não no som que ele produz. O caso desta caixa contendo quatro fitas cassetes,
Dream House Variations, é exemplar neste contexto. A proposta adquire sentido quando,
seguindo as instruções do autor, nos posicionamos no meio de quatro toca-fitas, na
“casa”, experimentando as “variações”, nuances de altura, dinâmica e intensidade que
soam conforme tocamos as quatro fitas simultaneamente. Dentro da “casa” proposta por
Whitman vamos aos poucos sentindo um clima de laboratório, vamos experimentando
uma sensação aguda da recepção, como se estivéssemos de fato participando de um
experimento científico. Mas o que ocorre aqui se aproxima mais de uma aberração do que
de um a experimentação controlada, para fins de reiteração. Como escrevi acima,
Whitman atenta mais para as possibilidades de criar interfaces sonoras – técnicas, mas
também estéticas – do que em criar exclusivamente na seara da música propriamente dita,
como ocorria em suas primeiras criações, sob a alcunha Hrvatski. De forma que se torna
curioso encaixar Dream House Variations no contexto pós-Hrvatski. Percebe-se que as
preocupações do autor não se vinculam a nenhum gênero específico; sua música vaga
tanto entre o ambient, o noise, o drill and bass, o IDM, etc., sem se importar com a noção
de identificação, mas com o alcance e a possibilidade de mobilizar outras vertentes de
exploração do espaço sonoro. Após assumir o nome próprio, ele deixou para trás as
formas musicais para abraçar o inominável.
As variações propostas por Whitman operam não somente interações técnicas, mas
evocam também um entrelaçamento entre a parcimônia do drone e a cacofonia do noise,
construindo passo a passo uma proposta que não se esgota na audição. Seu trabalho diz
respeito a uma dimensão conceitual da música que não só experimenta os aspectos
propriamente sonoros, mas também o explora de forma crítica, problematizando as fontes
e revelando conexões que se exprimem também no campo extra-sonoro. A música não
está somente no ouvido, parece gritar uma corrente que começa com Stockhausen e tem
em Hecker, Drumm e Whitman seguidores fiéis. Prejuízo para uma certa inflexão de
pensamento que deseja encurralar a música nas formas cristalizadas da chamada “cultura
de massas”. De forma que só tenho a dizer: sorte a nossa vivenciarmos uma época em
que estas intenções atuam a todo vapor. (Bernardo Oliveira)
Moritz von Oswald Trio – Vertical Ascent (2009; Honest Jons, Reino Unido)
A ansiedade é inimiga da análise, do cuidado e da atenção. Somente na vigésima audição
se comeca a entender e a gostar de verdade de Vertical Ascent. De primeira, isto é,
tomado por uma exultante empolgação, esperei o paroxismo de uma vida, mas o
paroxismo não é a senha para Vertical Ascent, muito embora Moritz von Oswald seja o
arquiteto de um dos mais influentes e geniais panoramas sonoros das últimas décadas.
Com seu parceiro Mark Ernestus fundou o selo Basic Channel, de onde saiu uma
verdadeira revolução no mundo techno. Através de singles assinados sob diversos
pseudônimos, o Basic Channel ditou algumas tendências que vigoraram desde então,
algumas mais ligadas ao minimal e ao acid techno, outras aparentadas do dub jamaicano
e do ambient, mas todas extremamente inovadoras no que diz respeito a incorporação de
sons e procedimentos oriundos de pesquisas eletrônicas e eletroacústicas. Quase que
simultaneamente, eles tocavam também o projeto techno Maurizio e, mais tarde,
capitanearam outro trabalho tão inovador quanto o BC, o Rhythm & Sound. Contando
com a participação de toasters e djs jamaicanos, como Paul St. Hilaire e Sugar Minott,
criaram uma sonoridade atmosférica, antecipando algumas inclinações que pouco mais
tarde seriam exploradas pelo dubstep. Depois, a vida e a obra de Oswald tomaram um
rumo estranho. Primeiro, uma parceria inócua com Carl Craig que lhe rendeu opiniões as
mais controversas; depois, um derrame em outubro de 2008, que o obriga a operar e
mixar apenas com uma mão. Vertical Ascent, portanto, justifica uma certa ansiedade,
uma curiosidade irresistível. Tenho certeza que os mais interessados em música nova e
criativa já se perguntavam o que viria pela frente. Anunciado, o álbum demorou para vir
à tona, e durante alguns meses vivi o suspense de ouví-lo. O que nos aguarda, como será
a viagem, a onda? Representará mais uma revolução? O que a mente de Moritz von
Oswald nos proporcionará desta vez?
Vertical Ascent é um disco fabuloso, para ser degustado aos poucos, com calma e
parcimônia. E mesmo assim se torna um desafio para aqueles que desejam expor seu
conteúdo em palavras. Podemos até afirmar que o improviso (o jazz), a exploração de
timbres (a música eletrônica) e a manipulação posterior em estúdio (o dub) constituem as
linhas mestras de sua singularidade. É pouco. Poderíamos dizer que é uma música
“mundial”, que incorpora influências norte-americanas, inglesas, jamaicanas, árabes, etc.
Ainda é muito pouco. De resto, assumo a incapacidade de atribuir rótulos à minúcia de
suas sínteses, texturas e modulações. E advirto, não perca tempo: Mortitz von Oswald
voltou, e voltou por cima, com um dos melhores álbuns do ano. Capaz até mesmo de
desafiar o já-ganhou e a majestade de Merriweather Post Pavilion. (Bernardo Oliveira)
É evidente que este é o caso do Konono N°1, embora o alcance de sua pequena revolução
se reduza a Kinshasa, onde proliferam bandas semelhantes. Desenvolvendo um sistema
de amplificação para as kalimbas e microfones feito com peças de carro, e articulando a
sonoridade peculiar que daí resulta às percussões em pele e aço, o Konono N°1 criou uma
das sonoridades mais espantosamente criativas e enérgicas da década. Para alguns críticos
e mesmo no site do selo Crammed podemos ler que se trata de uma sonoridade “electro-
tradicional”, ou ainda uma espécie de “trance music”… É claro que por razões comerciais
e jornalísticas, as pessoas tendem a identificar o desconhecido a partir do que é
conhecido, e geralmente o fazem alocando o desconhecido ou no curral do “primitivo-
tradicional” ou na benevolência eurocêntrica que se flagra surpresa e quase pergunta
“como eles puderam?…” Mas a questão é que, a despeito das sonoridades elétricas que
caracterizam o Konono N°1, eles nada tem a ver nem com Jimi Hendrix, nem com o Can,
nem com trance, nem com “música eletrônica”, muito menos com a preconceituosa
alcunha “proto-techno”… Sua sonoridade é irredutível a estas manifestações européias e
representa uma realidade cultural da qual nada conhecemos, sobre a qual nada podemos
falar – a menos que tenhamos alguém por aí especializado na etnia bazombo… Como eu
não quero aqui vender o grupo, arrisco uma primeira opinião sobre a peculiaridade de seu
som: trata-se de uma expressão musical que, tal como o Kasai All-Stars, condensa uma
série de contribuições musicais advindas de etnias próximas àquele contexto. Se o
resultado se assemelha ao trance, pouco importa, na medida em que este álbum traz uma
sonoridade particular e mil vezes mais interessante que qualquer trabalho trance… E
mesmo levando em consideração a alusão ao transe, me parece mais uma vez que as
coisas desandaram: não se trata de uma música para o transe, mas para a dança. Tanto é
que o grupo incorpora as dançarinas nas apresentações ao vivo… Enfim, repito: ao
contrário do que foi amplamente alardeado pela imprensa, o Konono N°1 é um grupo
irredutível às expressões musicais americanas e européias. Trata-se de outra coisa. E,
mais grave: dentro desta outra “coisa” eles também representam algo além.
Nem sintoma, nem vanguarda, o Konono N°1 é mais que isso: é expressão singular que
define um campo de ação para os habitantes do Congo e de Angola. Como o dub e o jazz,
o grupo expandiu as possibilidades de uma expressão sonora que possivelmente
permaneceria atrelada aos rótulos etnocêntricos de admiradores e detratores. Tal como
Coxsone Dodd e Lee Perry, que com suas experimentações inusitadas criaram um campo
de ação técnico e estético, Mawangu Mingiedi e sua turma também propiciam aos jovens
de todo mundo um exemplo fundamental: de que a criação do novo emerge da
experimentação contínua e obstinada, por vezes em meio à precariedade, mas sempre
antenada com todos os elementos que constituem a perspectiva do criador. (Bernardo
Oliveira)
De Duchamp, por exemplo, percebemos a influência no modo com que ele descodifica
certas formas musicais, como a música árabe e a música concreta, utilizando-as de outra
forma, geralmente irônica ou fake. Ou ainda como sua música tem uma dimensão de
jogo, de gadget, projetando e recortando formas musicais avulsas e sintonizando-as com
contextos absolutamente diferentes dos originais. De Kurt Schwitters percebemos um
desenvolvimento particular da idéia de “obra de arte total”, na medida em que ele
transforma em matéria artística até mesmo as sonoridades que não se identificam com o
discurso musical. O método também ecoa nos modos da música: reza a lenda que, como
um colecionador de objetos, Tazartès produz trechos e os compila em um enorme
arquivo, de onde podem sair excertos diversos, compostos em datas variadas. Muitas
vezes, graças a este procedimento, somos surpreendidos por vozes e sonoridades que já
existiam em álbuns anteriores, mas que retornam como meio de autorremissão, mas
também de descontextualização. Extremamente particular e ousada, a música que emana
deste Repas froid é inseparável deste contexto: tanto é uma experiência sonora que joga
com as noções de “música”, “autoria” e “ineditismo”, como também coloca em
perspectiva o pensamento inaudito deste verdadeiro autor.
A audição, por sua vez, não é simples nem fácil. Requer do ouvinte que ele jogue o jogo
e se deixe inebriar pela sequência de faixas sem título repletas de momentos esculpidos
com delicadeza e espírito. Em Repas froid, discussões familiares são entrecortadas por
fanfarras poliétnicas, barulhos diversos, interlúdios chopinianos, cantos de variadas
procedências e tipos, corais, orquestras, sons eletrônicos, repetições, conversas, bate-
boca, balbucios, coisas quebrando, cenas cotidianas, minutos de silêncio… Sem dúvida
são elementos variadíssimos, mas posso estar passando a falsa impressão de que se trata
de uma balbúrdia… Ocorre porém que algumas audições vão dando contorno a uma
concepção muito bem delineada. Sim, trata-se de uma bricolage, mas, ao contrário da
gratuidade que percorre muitas bricolages contemporâneas, as criadas por Tazartès são
preenchidas por altas carga de expressão poética e dramática, tanto no que diz respeito ao
seu poder de maravilhar, como também na capacidade de criar nexos surpreendentes e
reportar a questões de ordem reflexiva. E começo até a me contradizer, tamanha a
confusão que Repas froid causa: não sei se ele intriga mais que leva a reflexão, ou vice-
versa.
PS.: Será este garoto que fala no disco é o mesmo que fala em Une éclipse totale de
soleil? Será que é o jovem Tazartès em gravação de arquivos?
Penso, entretanto, que um um passo além destes é possível. Porque, no fim das contas,
familiarizado com o álbum, percebo que essas impressões iniciais estão equivocadas. Não
se trata de uma compilação de registros, nem de mera reprodução do gosto e dos
interesses do autor, muito menos de uma peça de arte com pretensões reflexivas. The
Glorious Gongs Of Hainuwele contém uma série de faixas que se utilizam, dentre outras
coisas, de timbres e ritmos africanos e orientais, emoldurados por técnicas de gravação
que interferem decisivamente no produto final. Em suma, para acessar o conteúdo
criativo do álbum convém ultrapassar o preconceito “auditivo” (posto que se trata de um
preconceito da percepção) que se confunde com duas ideias. Primeiro, confinar os
timbres e ritmos deste universo musical das gravações de música oriental e africana no
registro da “música étnica” ou da compilação acadêmica. E também que a utilização de
técnicas de gravação antiga denotam capricho, e não o interesse na exploração de outras
sonoridades. Ultrapassadas essas ideias é possível perceber que o intuito do Harappian
Night Recordings é produzir, não uma ilusão multicultural, mas sobretudo uma
sonoridade supra-étnica, absolutamente pagã e essencialmente ocidental.
Se me pedissem para eleger um marco na carreira de Björk, eu citaria Medúlla por uma
razão não tão simples, mas facilmente detectável. É a virada de uma carreira pop-avant-
garde já brilhante, mas ainda atrelada a certas fórmulas de mercado (“Army of me” como
exemplo…), para uma musicalidade essencialmente dramática, tingida por nuances e
conceitos retirados de fontes mais complexas e, portanto, mais difíceis. Sim, a partir de
Medúlla o trabalho de Björk se tornou mais difícil, e aqueles que já não toleravam seus
modos bizarros, passaram do ódio ao desprezo, devido sobretudo a ausência de um single
forte o suficiente para invadir suas casas a fórceps. Ou “Where is the Line” (com Mike
Patton e Rahzel) e “Oceania” (com Nico Muhly e Robert Wyatt) são lá faixas do porte
das que invadiram a MTV nos tempos em que gostar da Björk era meio de inserção
social? Medúlla não tem single com cara de single. É música desobrigada de seguir os
limites da audibilidade média, é o que atesta a pluralidade de ritmos e timbres, a
quantidade absurda de climas que perpassam todo o álbum.
Até hoje, anos depois, me sinto tocado por esta introdução acachapante, lírica e
fantasmagórica, que é “The Pleasure is All Mine”; pelos golpes surdos do beat box de
Rahzel, pelo coro mal-assombrado e pela beleza da melodia irregular em “Where is the
line”; pela riqueza apolínea de “Submarine”, com a preponderânca do timbre
inconfundível de Wyatt; pela melancolia desesperada de “Desired Constellations”, pelas
síncopes rítmicas de “Who is It?”, pela limpidez da voz de Björk, pela beleza pura e
selvagem de “Ancestors” e pelo excesso de cuidado e apuro com que todas essas faixas
foram elaboradas. Apuro, que junto a imprevisibilidade dos timbres, faz de Medúlla um
álbum impressionante, um legítimo OVNI, como nos referimos recentemente a outras
duas magníficas aberrações da década, Asa-Chang e The Books. (Bernardo Oliveira)
O que leva um artista identificado com o soul a gravar um álbum como este? The Bright
Mississipi pode ser encarado por muitos como um retorno ao passado, um retrô
executado com a melhor das intenções e até mesmo uma reflexão acerca desta nova New
Orleans que aos poucos emerge do caos. Uma homenagem, diriam. Mas da mesma forma
como os batuques são aprimorados pela qualidade de gravação em Candombless, de
Carlinhos Brown, poderíamos afirmar que o esforço de Toussaint e sua banda aqui não é
o de ressucitar o cadáver do jazz de New Orleans, mas de traduzí-lo para a gama de
timbres absolutamente renovados dos dias atuais. O jazz arrastado das brass bands e do
Mardi Gras mantém-se caracterizados tanto na execução como nas composições, mas o
apuro da gravação revela estalos e dinâmicas que a má qualidade das velhas gravações de
King Oliver e Louis Armstrong não nos permitia acessar. Algo aqui é como que
reavivado e, por estranha consequência, sublimado, seja por obra do talento de
interpretação, seja pelas qualidades evocativas que frisei a pouco. O disco abre com a
sensual e hipnótica “Egyptian Fantasy”, composição do músico nativo Sidney Bechet (em
parceria com John Reid), e fecha com o clássico “Solitude” (de Duke Ellington, Irving
Mills e Eddie DeLange), cobrindo não exatamente uma época, mas uma certa
musicalidade que não encontra espaço nos dias de hoje, justamente por suas
características centrais. O Jazz de New Orleans é extremamente arrastado e dialoga o
tempo inteiro com o blues na medida em que explora os tempos de uma forma bastante
diferente do bebop, por sua vez mais agressivo e veloz. Sem contar que depreende ora
profunda melancolia, ora uma lascívia perene, ao contrário do jazz de New York, agitado
e cortante. Neste sentido, os músicos aqui presentes conseguiram se desvencilhar da
inescapável pegada do bebop e criar uma atmosfera musical ao mesmo tempo evocativa e
promissora (nota para o som da bateria, dos sopros, e, particularmente, para o violão sem
mistérios, mas bastante emotivo, de Ribot; e, claro, para o piano derramado do próprio
Toussaint).
Sim, promissor, embora seria exagerada a afirmação de que The Bright Mississipi
demonstra a vitalidade do jazz de New Orleans. Corresponderia a tomar de empréstimo
sua própria vitalidade e injetar no gênero sem maiores cuidados. Mas há
reconhecidamente uma diferença no jazz e, em geral, na música de Nova Orleans fundada
em suas matrizes culturais. Diferença esta que habita o Mardi Gras, o cajun, o zydeco e
até mesmo o soul-funk de grupos como Neville Brothers, The Wild Tchoupitoulas e The
Wild Magnolias e que é contígua ao jazz, a despeito de modismos que o fizeram
praticamente desaparecer, pelo menos do cenário ativo do gênero (não me refiro às
fanfarras e bandas dixieland locais, geralmente com valor meramente turístico). Mas eis
que The Bright Mississipi traz esta diferença à tona, apresentando uma sonoridade ao
mesmo tempo histórica e atual, autêntica e atualizada e, sobretudo, potente. (Bernardo
Oliveira)
Seya é uma surpresa justamente porque em pleno fim de década, Sangaré aposta de forma
incisiva no crossover, criando faixas onde a percussão, preponderante nos álbuns
anteriores, passa a dividir o espaço com teclados, bateria, baixo e todos os elementos
comuns a instrumentação pop/rock européia e americana. O que resulta daí é, ao mesmo
tempo, tão rico em detalhes e tão bem executado que dificilmente se poderá argumentar
que Sangaré se “adaptou”, pelo contrário. Seya apresenta uma concepção musical que
sintetiza com personalidade as características da música tradicional de sua terra natal,
Wassoulou, com o afrobeat e o soul, se valendo de forma eficaz e inspirada da
instrumentação e dos arranjos. Flautas, teclados e guitarras se misturam a kalimbas e
karignans formando um todo coerente, sem que se amenizem os compassos compostos,
semelhantes ao do jongo carioca, e a aspereza das vozes. Algumas vezes observa-se
batidas funky, como na faixa de abertura “Soun Soumba”, que conta com Will Calhoun,
mas ainda assim insinuam-se as modulações características das síncopes malinesas. As
canções também apresentam um aspecto miscigenado, ora lembrando bastante a forma de
chamada-e-resposta da música de Wassoulou, ora adquirindo nuances de soul music,
como na terceira faixa, a climática “Kounadya”. No magistral afrobeat “Wele Wele
Wintou” percebe-se bem a habilidade sintética do trabalho de Oumou, haja visto grupos
recentes que tentaram emular sem sucesso a batida inigualável criada por Tony Allen,
que a propósito toca no álbum. E será assim até o final: na atípica guitarra distorcida de
“Senkele te Sira”, nos efeitos e nas percussões de “Djigui”, no suingue sincopado da
faixa título, nas orquestrações fake de “Iyo Djeli”, etc.
Hipóteses que surgem diante da capa, mas em franca conexão com o conteúdo da obra.
Since I Left You é um álbum conceitual que tem por premissa uma adesão radical a
cultura do copy and paste e que, por isso mesmo, opera sobre milhares de trechos
colhidos de milhares de álbuns. Geralmente o grupo é reconhecido por esta façanha,
como se a mera alusão ao procedimento esgotasse imediatamente as possibilidades de se
pensar outra coisa para além da façanha. Ciente do conteúdo do álbum e do contexto em
que nasceu, evito me referir aos procedimentos e privilegio os resultados: Since I Left
You encerra, sobretudo, uma sonoridade vibrante, efusiva e extremamente bem-
humorada. Talvez o melhor e mais convincente álbum de festa desta década. Resta saber
como eles atingem esse grau de relevância num contexto em que a evanescência é não só
comum como também vital.
Cabe ressaltar que, como nos mash ups, o que conta é a síntese, o terceiro elemento que
surge da combinação, mas nesse caso há também o elemento que desloca a percepção do
ouvinte, que o retira do jogo bem-humorado da surpresa e o conduz para o lado inseguro
do desconhecido. E aí que o disco se torna realmente genial: Since I Left You é
simultaneamente música de festa, música para arrebatar e também música para pensar.
Qual o grande álbum dos anos 2000 que possui essas três características? Eu não me
lembro… (Bernardo Oliveira)
Nota:
[1] Para que esta frase não se perca na aparência de um “poetismo” sem sentido, explico:
trata-se de uma capacidade de conduzir o ouvinte por um caminho e, sem alterá-lo
radicalmente, introduzir novos elementos de modo a alterar consideravelmente o tal
caminho. Sugiro a audição de “Stalker” e “Hamas Rules” como exemplos dessa
dinâmica.
Unbalance encerra uma unidade estética rigorosa. Na contramão da grande maioria dos
lançamentos recentes, que não sei porque cargas d’água vem apresentando uma
aceleração insana do dubstep, Unbalance trabalha basicamente com andamentos super
ralentados. A ousada construção rítmica, sempre imprevisíveis, lança mão de compassos
compostos e, como procedem a maioria dos produtores, se esmera na elaboração dos
desenhos melódicos dos graves, mas não se esgota ai: uma série de camadas
extremamente básicas se entrelaçam criando momentos únicos que muitas vezes não se
repetirão. Em uma forma musical basicamente repetitiva esta característica sobressai
admiravelmente, pois cria a coesão entre dois elementos díspares, a saber: a repetição
hipnótica e a modulação tensa e imprevisível, que a todo instante surpreende com um
novo elemento. Junte-se a isso, a predileção por uma timbragem seca, com sons que
variam da martelada até sons que lembram areia e limalhas caindo sobre uma superfície
de aço. Trabalho de pesquisa, “laboratorial”, característica compartilhada com
Shackleton. O resultado é seco, de alguma forma sutil e, sobretudo, estranho.
Apesar desta característica geral, cada faixa de Unbalance leva consigo uma entonação
própria, como se Huismans estivesse abrindo portas, delimitando novas direções.
“Unbalance” talvez seja a faixa que melhor exemplifique essas características me talvez
seja a grande faixa do disco. Mas medir o restante por ela é covardia. Após uma
introducão ambient acachapante, eclode uma das batidas mais refinadas e
impressionantes da eletrônica dos últimos anos, composta por tambores e intrumentos de
percussão inspirados em madeira e ferro, além dos ecos e tremulações retiradas do dub.
Das faixas do ano, com certeza. Mas temos também outra faixas impressionantes. “Who
are you fooling?”, com seus tambores e variação rítimicas imprevisíveis, incluindo a
“maquinazinha” que emite estáticas e só aparece no final da faixa; “Flashback” com a
sacação genial de manipular a sonoridade repetitiva de um CD arranhado – inclusive uma
das poucas faixas do álbum que remetem diretamente a um 2step; a percussão “férrea” de
“Yes/no”, a levada deliciosa, um quê de Burial, de “Lost”, a quebradeira e os teclados
funky de “Love in Outer Space”… A única nota negativa, mas nem tão negativa assim, é
pra acelerada (e adequadamente intitulada) “Escape Velocity”, que parece comungar com
uma certa exigência que ronda o universo da música eletrônica por maior “dançabilidade”
do dubstep. É bacana, mas é também a mais banal do álbum.
2. Mas por que diabos deveríamos criar explicações se hoje aquele Radiohead de 1994 se
encontra morto e sepultado, pelo menos para quem está em busca do “algo mais” que o
grupo apresentou depois de Ok Computer. O hábito de se separar uma obra em fases,
obra esta unificada sob um nome ou uma identidade, denota uma dificuldade comum em
decodificar (e, em última instância, aceitar) a diferença radical que põe a unidade estável
da identidade em crise. Assim, muitas vezes me flagro escavando nas fracas canções de
The Bends e Pablo Honey o Radiohead que tanto me apraz de Hail to the Thief, In
Rainbows, deste Kid A e seu álbum-gêmeo, Amnesiac. Claro que nunca encontro algo
que ao menos insinue a possibilidade de uma virada tão radical. Para alguns, esta
reviravolta começa no profundo lirismo de Ok Computer, mas na minha opinião e na de
muitos outros ela começa em Kid A. É precisamente aqui que a identidade roqueira
explode e se move…
4. Não há um elemento sequer em Kid A que remeta aos álbuns anteriores. Talvez
“Motion Picture Soundtrack” e, sobretudo, “How to Disappear Completely”, mas ainda
assim a roupagem orquestral influenciada por Krzysztof Penderecki, aliada à utilização
de um Ondes Martenot executado por Jonny Greenwood, resultam em dissonâncias
perfeitamente afinadas com o tom experimental com que as faixas foram elaboradas. Se
não, vejamos: o disco abre com “Everything in its Right Place” uma bela balada com
forte influência techno, repleta de teclados e efeitos. Para um fã radical deve ter sido
certamente um golpe duro, mas ele ainda não sabia que no auge de sua perplexidade
eclodirá a primeira grande faixa do disco: “Kid A” já indica a filiação espantosamente
madura ao IDM, graças à manipulação prodigiosa das baterias eletrônicas e dos efeitos.
“The National Anthem” é uma das faixas mais intrigantes do disco, com sua cama
espirrada de sopros e, particularmente, aquela sequência rítmica executada pelo sax
barítono que antecede a balbúrdia free. “Treefingers” denuncia que, tal como o Geoff
Barrow de Third, o grupo andou ouvindo muito o krautrock contemplativo do Cluster e
do Harmonia. Com versos irônicos mais luminosos (“If you try the best you can, the best
you can is good enough”), “Optmistic” abre o lado B destilando um rock
simultaneamente lírico, timbrístico e enérgico, pontuado pela guitarra estridente de Ed
O’Brien. Seguem outras faixas admiráveis: o folk-rock inspirado de “In Limbo” e “The
Morning Bell”, com sua batida post-rock, seu teclado muzak e, mais uma vez, a
interpretação primorosa de Thom Yorke. Mas nenhuma delas se compara a “Idioteque”,
uma das faixas mais belas e inacreditáveis da década.
5. “Idioteque” sempre me pareceu uma anomalia musical de primeira ordem. Assim
como foi musicalmente estranho e surpreendente quando o Anthrax se juntou ao Public
Enemy para criar “Bring the Noise” ou mesmo o single “I’m the man”, assim recebi
“Idioteque”. Não que ela represente uma mudança de perspectiva que atingiria o rock
como um todo, como foi com o Anthrax e o Public Enemy, mas poucos eventos foram
tão estranhos quanto o investimento do grupo em mesclar indie com miami, guitarras e
eletrônicos. Claro que àquela altura estas misturas já haviam sido experimentadas, mas o
fato é que a letra abstrata de “Idioteque” carrega uma emoção tão contundente, emolurada
por aquela batida festeira e agitada, que fica difícil encontrar um exemplar à altura de seu
poder de síntese, apelo pop e, ao mesmo tempo, estranhamento. É a retorção do passado
no futuro, é o resultado mais coerente e poderoso decorrente do fato que explanei acima:
o Radiohead se tornou das maiores bandas do planeta graças a ausência total de
compromissos com o gênero. Ao contrário do que pensa Colin Greenwood, nesta
entrevista.
Os grandes discos de improvisação encerram uma lógica profunda e rigorosa, o que nem
sempre se coaduna com a idéia de liberdade embutida na expressão free-improv…
Portanto, cabe aqui a ressalva de que este “free” está associado a uma concepção
equivocada de liberdade através da qual o lema liberal “laissez faire, laissez aller”
adquire estatuto de lei – concepção esta decisivamente identificada à geração flower
power, o que põe em xeque seu suposto papel transgressor… Repito, então: qual o
mistério de Limescale que o diferencia da produção de Bailey bem como da de todos os
envolvidos? Se me permitem o salto interpretativo, me arrisco a dizer que há um traço
lógico inspirado nas artes plásticas, mais especificamente no pontilhismo impressionista
de Seurat: excertos sonoros combinados para definir cores, formas, escalas, painéis e
estruturas musicais talhadas a partir de elementos supostamente não-musicais, presentes
tanto na execução dos tijolos e do ditafone, como na apropriação particular que cada um
faz do seu instrumento. Harmonia, ritmo e melodia são como que esfacelados, criando
sobreposições de elementos e modulações dinâmicas que marcam toda a evolução do
álbum. O resultado é fascinante, devido justamente ao poder de síntese do grupo, isto é, a
capacidade de dosar, medir, exacervar, tirar e pôr, capacidades que em nada se conjugam
com uma concepção juvenil de liberdade. Ser “livre” em Limescale significa: poder e
capacidade de controlar o raio de elaboração sonora, de dar sentido e direção ao invés de
“deixar ir”…
O Nação Zumbi sofreu essa desconfiança e de uma forma duplamente cruel. Primeiro,
porque rapidamente o grupo foi considerado herdeiro de um movimento que, sem seu
herói, não se sustentaria; e mesmo depois de dar provas mais que suficientes de sua força
criativa e independência em relação ao mito e à genialidade de Chico Science, o Nação
ainda hoje é considerado uma sucursal da experiência dos anos noventas, mesmo que
uma audição atenta demonstre exatamente o contrário. Foi pensando assim que, confesso,
tive dúvidas quando aceitei o convite de um amigo para assistir o show do grupo na
Cantareira, na cidade de Niterói, o primeiro no Rio após a gravação de Rádio S.amb.A..
Qual não foi o meu espanto quando percebi que se materializava no palco um verdadeiro
milagre que em uma só e mesma lufada trazia Chico Science à tona, através dos tambores
e do hip hop, mas acrescentava um grau de experimentação com ritmos e timbres que até
então não se percebia no grupo de forma tão proeminente. Fiquei arrebatado com o lema
“sem medo” em “Caranguejo da Praia das Virtudes (Madame Satã)”, com a mistura de
drum’n'bass e ritmos latinos de “Los Sebozos Postizos”, com o arranjo empolgante e
arrojado de “Quando a Maré Encher”, com o instrumental e a melodia de “Carimbó” e,
sobretudo, com o tom radicalmente experimental de “Remédios”, que atestou
definitivamente o retorno do Nação Zumbi. Tanto que fui na semana seguinte em um
show no Rio, desta vez na extinta Quinta do Bosque, em Santa Teresa, comprovar a
excelência do novo trabalho, de um nível de auto-determinação e criatividade que há
tempos não se via na música brasileira como um todo, suplantando até mesmo a eclosão
do manguebit da década anterior. Eu mal esperava para ouvir Rádio S.amb.A, fato que se
deu algumas semanas depois.
Sim, é possível reconhecer o “mote” do Dr. Charles Zambohead, através do som grave
dos tambores e da levada hip hop… Mas os cinquenta e dois minutos de Rádio S.amb.A
não só correspondiam à impressão geral dos shows como também traziam novas faixas,
tão surpreendentes quanto as primeiras. O hardcore “Brasília”, o hip hop cubista “Zumbi
X Zulu” (com os vocais de Afrika Bambaata) e a lindíssima “João Galafuz”, que conta
com a voz de Lia de Itamaracá, figuram ao lado de faixas e vinhetas instrumentais
construídas com uma sonoridade madura, mas ao mesmo tempo urgente e profundamente
enérgica. As letras também demonstravam o vigor do novo Nação Zumbi, pois ao mesmo
tempo que as composições se diferenciavam consideravelmente das criadas por Science,
prescindiam também do padrão de livre associação marcadamente tropicalista que os
diluidores do tropicalismo timbraram em oficializar na música da década de 00. Trata-se,
pois, de uma avis rara na música brasileira da época em todos os termos: uma banda
sobrevivente que passou por maus bocados não só se recupera como também ousa
absurdamente a transgredir os padrões de arranjo e composição, tanto do ponto de vista
musical como também em relação às letras. E para quem se lembra de Asian Dub
Foundaton, Café Tacuba, Manu Chao e outros artistas da “periferia” que obtiveram
algum sucesso graças a histeria multicultural que marcou a rebordosa do discurso
neoliberal, vale dizer que dentre todas essas bandas o Nação Zumbi é a mais expressiva,
além de ser a mais regular e produtiva.
Leyland Kirby – Sadly, The Future Is No Longer What It Was (2009; History
Always Favours the Winners, Reino Unido)
Moças e rapazes, vou lhes dizer: poucos músicos hoje requisitam tanta atenção e
mobilização do ouvinte como James Kirby. E não me refiro somente à extensão
intempestiva do álbum em questão, cuja audição pode durar dias, no meu caso, meses.
Sua obra também é de uma variedade de propósitos que se insinuam sob os seus diversos
pseudônimos. Através do mais instigante deles, The Caretaker, ele produziu uma das
peças mais fascinantes da década que passou, a faixa “Persistent Repetitions of Phrases”,
uma sondagem poética dos recantos mais recônditos da psique humana, um estudo a
respeito do comportamento e da própria natureza da memória. Agora, sob um heterônimo
sugestivamente timbrado com seu nome próprio, Kirby desafia o ouvinte em outra
quitanda, propondo, através de um tour de force, uma experiência do presente,
representada por uma ampla gama de discursos sonoros compatíveis com o que se produz
hoje em termos de ambient, drone, modern classical e outros rótulos que mais confundem
que explicam. Ainda que este álbum seja mais referencial e “musical” que todos os
anteriores, percebe-se que Kirby carrega cada uma das vinte faixas de Sadly… com sua
assinatura peculiar. Trata-se portanto de um exercício de cunho prático, puro suor de
compositor, que aparentemente não se confunde com o intelectualismo carregado do The
Caretaker. Se por muitas vezes ouvimos os pianos preparados de Drukqs, as névoas
ruidosas de Wolfgang Voigt ou mesmo algo dos trinados singulares do glitch, estes se
apresentam como uma reinterpretação evidente, cunhada sob a batuta parcimoniosa e
pungente de Kirby.
Até por isso a relação entre novidade e pastiche aqui é de uma tensão que em certo
sentido compromete o disco… E mesmo assim podemos enumerar em suas quase quatro
horas de audição diversos momentos em que as referências explodem em uma
musicalidade autônoma e mais que interessante. Na destreza ao mesmo tempo terna e
melancólica com que ele mistura ambiências com sintetizadores e pianos preparados em
“When Did Our Dreams And Futures Drift So Far Apart?”, na riqueza das variações
timbrísticas de “Stay Light, There Is A Rainbow A Coming”, no contraditório
comedimento noise de “The Sound Of Music Vanishing” e na utilização extravagante
dos sintetizadores da faixa título, Sadly… é um disco que se põe diante do ouvinte como
um livro, que lhe exige paciência e atenção para que apreenda todo o seu conteúdo e, só
assim, seu significado. Pois o que determina a relevância deste novo heterônimo é o seu
modo peculiar de redimensionar as correntes da música atual, operando mais por
sobreposições de estilos do que por burilações autônomas; por outro lado, a extensão das
faixas faz parte da concepção do álbum, análoga a de um compêndio que funciona ao
mesmo tempo como declaração de amor ao aqui e agora, ao instante, ao momento, à
intensidade dos corpos e do universo… Perdoem-me o filosofema, mas assim como a
música de Hecker ou até mesmo dos grandes compositores do século XX, a de Kirby é
assumidamente pretensiosa em relação a esses termos.
Evan Parker – House Full of Floors (2009; Tzadik, EUA [Reino Unido])
Ah, as listas… Quanto prazer nos dão, a nós listólogos… Mas quanto sofrimento
também! Quantos dedos cortados, quantos lamentos e descobertas intempestivas, fora de
hora… Este não foi o caso de House Full of Floors, cujo alijamento de minha lista de
escolhidos se deu mais por displicência ou sei lá que outro gênero de comportamento
autodestrutivo que torna a vista oblíqua e a mão pesada… Pois se foram cometidos vinte
grandes discos em 2009, o álbum em questão deveria estar entre as primeiras colocações.
Pelo menos é o que diz o “gosto”, pois desde que foi lançado no final do ano passado,
House Full of Floors é uma audição que não sai das paradas de sucesso… aqui de casa.
Trata-se de um conjunto formado pelo saxofone tenor e soprano de Evan Parker, pelo
baixo de John Edwards e pela guitarra acústica de John Russell, três ingleses
reconhecidamente competentes tanto na arte do improviso como na habilidade para
extrair o máximo em novidade timbrística de seus respectivos instrumentos. Tiveram a
manhã de gravar um álbum numa igreja inglesa reconhecida por sua excelente acústica
(Igreja de São Pedro, em Whitstable); de elegerem um perito em instrumentos antigos do
calibre de Aleksander Kolkowski, que gravou o grupo em cilindros de cêra e tocou viola
em algumas faixas; e, como se não bastasse, lançá-lo através do Tzadik, selo americano
que pertence a John Zorn. A chave aqui, porém, não é tanto a diversidade de timbres e
possibilidades, à exceção somente da faixa final, “Wind Up”, onde se pode apreciar um
raro diálogo entre os instrumentos e sons do cilindro de cêra. Aqui vale mais a trama, a
criação de texturas e dinâmicas que demonstram o caráter aventureiro da música desses
ingleses. Se é possível colocar nesses termos, a única “regra geral” da improvisação se
refere a este caráter de aventura, de perigosa sondagem do desconhecido e até mesmo do
alheio, como é o caso de House Full of Floors, onde os instrumentos buscam tecer um
diálogo essencialmente ambíguo, ora construindo dissonâncias e ressonâncias, ora
afastando-se violentamente uns dos outros em combate de morte… Mas qual, a beleza do
encontro reside justamente no vigor próprio com que cada sonoridade investe umas
contra as outras, obedecendo a dinâmica de aproximação/distanciamento que descrevi
acima.
Não posso ser leviano a ponto de dizer que “não tem como errar”, sobretudo em um ano
em que grandes artistas se meteram em grandes canoas furadas – no caso particular de
Parker, Manafon… Mas o grande lance é que o gênio por trás dos quatro instrumentos,
livres dos microfones e valorizados pela acústica monumental da renomada igreja
inglesa, transforma o encontro numa experiência no mínimo impressionante, ao nível dos
melhores trabalhos de improvisação da música inglesa do século que passou. (Bernardo
Oliveira)
Outra peça exemplar é “Klokken”, que perfila uma série de sons que lembram os de um
relógio, porém de forma tão transfigurada, que muitas vezes o compositor se afasta
consideravelmente do objeto central e investe até mesmo em uma quase-melodia (lá pelos
quatorze minutos). O resultado é forte e deveras estranho, visto que a tal melodia não se
pronuncia definitivamente, mas apenas se insinua. “Fabrikas”, a última faixa do CD, se
destaca por ser a que menos preserva os sons como eles são emitidos originalmente, às
vezes lembrando até mesmo a barulheira irracional de um Merzbow, outras vezes
fazendo referências explícitas não somente ao trabalho das máquinas, mas ao aspecto
maquínico da ação do trabalhador. Por fim, cabe ressaltar também a beleza
aparentemente abstrata de “Labs”, cuja variedade de referências a aparelhos reais
utilizados em laboratórios extrapola certamente seu significado material, evocando o
eterno paradoxo entre as capacidades criativas e destrutivas do homem. “Labs” também
alude em diversos momentos a espectros de sons mais fáceis e melódicos,
particularmente lá pelos 21’30” quando engata em uma levada meio kraut, novamente de
forma ambígua, para depois novamente adentrar em um mar de abstração e demonstração
de poderio sônico.
Mas não é o caso de Hecker, muito menos do Yellow Swans. A dupla consegue criar
possantes ondas sonoras se valendo de certas sequências melódicas que “guiam”, por
assim dizer, a riquíssima nuvem noise que recobre a superfície das faixas. O diferencial,
isto é, onde me parece que o Swans sobressaem, pode ser observado sobretudo na
progressão consistente com que seu noise aos poucos cria corpo. Basta ouvirmos “Opt
Out” ou a faixa título para percebermos o poderio sônico da dupla. Às vezes assimilamos
a cacofonia dentro de um espírito sisudo, científico, mas no caso dos Yellow Swans de
Going Places há uma dimensão punk, um vandalismo escancarado que perpassa cada
uma das faixas. Mas há espaço também para que Pete Swanson e Gabriel Mindel
Saloman produzam também algo mais cerebral, “maduro” e delicado, como “Sovereign”,
o lindo drone de “New Life” e “Limited Space” – esta, no entanto, terminando com uma
barulheira dos infernos que chega a lembrar Merzbow e Wolf Eyes. O balanço geral de
Going Places não é exatamente o de uma obra-prima, mas tem consistência e força
expressiva suficientes para figurar como um clássico do noise. Ainda mais agora que
muitos por aí acham que basta mixar uma serra elétrica e manipular uns sinaizinhos para
edificar uma personalidade noise convincente. (Bernardo Oliveira)
In Stereo é fácil, fácil um dos álbuns mais coerentes, impressionantes e consistentes deste
ano, talvez desta década na seara da improvisação eletrônica. Basta se deixar levar por
suas seis faixas para perceber que não ocorre o tal amadurecimento que geralmente
separa os trabalhos distanciados por tantos anos, mas uma deliberada, saudável e
consciente alteração de rumo. Como disse no início, característica comum dos grandes
artistas. (Bernardo Oliveira)
4. Digo isso porque o que faz com que o primeiro CD do Eleh seja, desde já, uma dos
mais intrigantes lançamentos desse ano na seara do eletrônico, é justamente esta
combinação entre dois caminhos, dois formatos, que se entrelaçam em uma unidade
ambígua. Poderíamos considerar primeiramente o isolamento, isto é, de como uma
precaução em relação ao oba-oba mercadológico cria um contexto monástico onde, à
moda de Hecker, se desenrolam as mais inusitadas relações sonoras; por outro lado,
poderíamos sublinhar a imensa generosidade, a visão comunitária que agracia o ouvinte
através de um cuidado, de uma forma bastante peculiar de entrega. Entrega esta que Eleh
espera do mesmo ouvinte, desafiando-o em cada passo, conduzindo-o para o interior de
uma força expressiva ao mesmo tempo bruta (os sinais) e sofisticada (sua manipulação).
5. A primeira faixa, “HeleneleH”, pode ser identificada com os primeiros elepês e com as
“homenagens” de 2008 e 2009. A emoção que esta faixa aparentemente sem emoção
evoca, advém das passagens de uma frequência a outra, nas quais se altera o “tom” do
sinal, e também se demonstra um verdadeiro domínio do tempo em que essas mudanças
ocorrem. No fim, as mudanças se aceleram, se tornam mais radicais. Mas não tão radicais
quanto os rompantes de “Linear To Circular / Vertical Axis”, a faixa mais curta do
álbum, e até por isso a mais concentrada em termos de alterações abruptas. “Circle One:
Summer Transcience”, faixa que considero a mais interessante, também opera por
rompantes, diluídos porém em seus pouco mais de treze minutos, mais econômicos e
menos abruptos, sobrepondo o ritmo marcado, semelhante ao tic toc do relógio, com o fio
sonoro, hiper agudo, que percorre toda faixa, eventuamente entrecortado por sons
semelhantes a um aerosol. Lá pelo oitavo minuto, o ritmo cessa e, adiante, uma nuvem
noise cobre toda a faixa por alguns segundos, para finalizar novamente com o agudíssimo
apito. As duas últimas faixas, “Observation Wheel” e “Rotational Change For Windmill”,
já começam se utilizando de uma prerrogativa noise mais pronunciada, e se pode até
dizer que são as que mais acrescentam ao repertório de Eleh. Dois exemplares do que há
de mais acidentado e rascante no drone atual.
Um dos grandes responsáveis por esse contexto foi John Cage, não é novidade para
ninguém. Junto com outros nomes como Pound, Benjamin, Duchamp, Burroughs,
Deleuze, etc, eles projetaram um universo maquínico em franca expansão, uma sorte
poética determinante para o que pensaremos no século XXI, pelo menos em termos de
especulação artística e filosófica (há a neurociência…). Suas Number Pieces não só
constituem um exemplo fundamental do caráter aberto e da música de procedimentos,
como destaca a aleatoriedade como possibilidade “semântica”, tanto que passou a ser
utilizada, de uma forma ou de outra, por artistas ligados a improvisação, no jazz e no
rock. O título das faixas indica o número de indivíduos que devem executá-la, e o
procedimento utilizado permite ao intérprete optar pela forma de expressão, muitas vezes
imputando-lhe a escolha dos instrumentos a serem utilizados. A única restrição que as
Number Pieces trazem são indicações de tempo que vem entre parênteses, numa técnica
denominada “bracket technique”. Em uma dos mais brilhantes trabalhos da série SYR, o
Sonic Youth se arriscou na interpretação de “Four(6)”, no qual cada um dos quatro
instrumentistas escolhem doze sons a seu critério e opera por indicações de tempo
flexíveis. São formas mais ou menos vazias, para que o próprio músico preencha a seu
critério. O resultado me pareceu excepcional, pois se há uma banda que sabe lidar com
timbres, chama-se Sonic Youth. “Four(6)” também foi executada pelo Zeitkratzer em sua
recente homenagem a John Cage, por parte da série intitulada ironicamente “Old School”,
juntamente com outra Number Piece chamada “Five” e uma composição de 1986,
“Hymnkus”. E o resultado tem tudo a ver com nosso assunto, pois trata-se de um
exemplo contundente de como os diálogos entre cultura erudita e popular de fato
desaparecem em algumas (poucas) expresssões musicais.
Oren Ambarchi, Jim O’Rourke & Keiji Haino – Tima Formosa (2010; Black
Truffle, Reino Unido)
A capa, desenhada por Stephen O’Malley do Sunn 0))), não poderia ser mais adequada
para representar o som que vem deste álbum, gravado em 2009 no Japão. Três ícones da
música experimental em suas mais variadas vertentes, três alienígenas, escultores sonoros
do que há de mais interessante hoje na praça, se reúnem para produzir uma hora de
música. E o que fazer se não escolher a dedo os elogios mais desbragados: radiante,
intenso, arrebatador! Em três faixas homônimas e numeradas, o trio desenvolve uma
combinação prodigiosa de aspectos do drone, do ambient – particularmente, do dark
ambient – do noise e, ainda, da improvisação. De Ambarchi, o baixo e a guitarra
descaracterizadas, gravíssimas; de O’Rourke, o piano e o teclado prolíficos em timbres e
articulações; de Haino, as incursões vocais pavorosas e sons industriais ao lap top. Os três
criam texturas e momentos imprevisíveis, capazes de converter até mesmo o mais fiel
defensor da canção, de tanta exuberância e pulso firme que os três demonstram.
Retomando a capa e a sua metáfora, a das três medusas que se ramificam em vários
tentáculos, resisto à tentação de lançar mão de um conceito deleuziano para afirmar que
Tima Formosa é um álbum rizomático. Quer dizer, não resisto, e é por aí mesmo: música
improvisada com extrema habilidade e domínio da composição, cerebral, mas construída
por retalhos de elementos mestiços, por ramificações de formas fragmentárias… Se ao
final da audição o sentimento geral é de uma perplexidade muda e até mesmo soturna,
nada impede que se festeje com alegria a chegada de um disco tão poderoso. (Bernardo
Oliveira)
Janelle Monáe – The ArchAndroid (2010; Bad Boy/Wondalands Arts Society, EUA)
Para quem olha de longe, Janelle Monáe pode ser equiparada a cantoras como Beyoncé,
Estelle, Alicia Keys… Monáe, no entanto, não se limita ao diálogo com o rap e o R&B,
como suas contemporâneas. Embora enquadrada em um mega esquema publicitário, e
alusiva a uma tradição de cantoras americanas, Monáe é um pouco mais que um mero
badulaque pop. “Tighthope”, com a participação de seu maior incentivador, Big Boi
(50% do Outkast), abre o jogo e remete a moça imediatamente à linhagem de soulmans
inventivos como Prince, Stevie Wonder, Michael Jackson, Isaac Hayes… As múltiplas
habilidades, a liberdade para transitar entre os estilos, imprimindo-lhes no entanto um
sotaque indefectível, a quantidade absurda de modos, arranjos e instrumentos, a
habilidade em criar texturas diferentes de tudo e, ao mesmo tempo, populares… Soma-se
a isso a sua dança graciosa, influenciada por James Brown e Michael Jackson, mas que
também remete a outra tradição americana, o “musical theater” – não me parecem
gratuitas as alusões ao teatro, como a estrutura em atos, por exemplo. Monáe já havia
demonstrado personalidade no primeiro “ato”, o EP de 2007 Metropolis: Suite 1 (The
Chase), e até mesmo realizado uma ponta interessante no fiasco Idlewild, sobressaindo-se
como produtora e cantora. Ainda não era o suficiente para apresentar suas espantosas
habilidades – quem assistiu a moça no programa do David Letterman sabe do que estou
falando…
Mas são as primeiras nove ou dez faixas de The ArchAndroid que impressionam e
atestam esta diferença. A abertura megalômana, semelhante a de The Love Below,
conduz o ouvinte aos versos lépidos de “Dance or Die”, que emenda no pop-rock
delicioso de “Faster” (estilo Bangles! Sim, você leu certo…) e na steviewonderíssima
“Locked Inside”. Depois vem a soturna e bela “Sir Greendown”, “Cold War” com seu
ritmo frenético e outras já comentadas acima, como “Tighthope”, “Neon Gumbo” e “Oh
Maker”. Essa sequência permite compreender o conceito do disco, sua capa e razões para
tanta miscelânea. Trata-se da imaginação privilegiada de Monáe apostando as fichas na
própria capacidade, criando seu próprio recorte do caldeirão de estilos da música norte-
americana, pelo excesso. Juntamente com a superatividade de Prince, a música de Monáe
evoca o primeiro disco de Carlinhos Brown, um artista semelhante em aspectos
fundamentais (multifacetado ao exagero, popular e experimental). Não é à toa que ambos
utilizam indumentárias e adereços em seus discos que se referem a uma comunhão de
valores antigos e atuais. Antiguidade e ciborgues, mas mediados pelo poder atávico das
canções. Que Janelle Monáe venha e para ficar. (Bernardo Oliveira)
Zeena Parkins – Between the Whiles (2010; Table of the Elements, EUA)
Os que estão familiarizados com o trabalho e a quantidade de sons que Zeena Parkins é
capaz de extrair de sua harpa, não se surpreenderão com Between The Whiles. O mesmo
esmero e criatividade demonstrados em álbuns como Necklance e Pan-Acousticon,
respectivamente de 2002 e 1999, e se pode até dizer que igualmente poderosos. Podemos
também reconhecer um traço distintivo na obra de Parkins, que me chamou atenção
particularmente em Between the Whiles, que é a orientação especificamente dramática
impressa na alternância de climas e texturas. Pudera. Seu trabalho vem sendo utilizado
por coreógrafos como acompanhamento, algumas vezes composto especificamente para
seus balés, como no caso de Necklace, para a Compagnie Sui-Generis de Emmanuelle
Vo-Dinh. Mas o conjunto da obra, levando em conta a variedade de colaborações e
trabalhos realizados para teatro e dança, nos faz supor que, para além dos requisitos que o
trilheiro deve cumprir para entrelaçar os sons e o drama, a música de Parkins extrapola a
encomenda e acaba por manifestar um senso de dramaticidade incomum na música
instrumental. Por outro lado, se pode afirmar também que, mesmo sendo composta para
espetáculos de dança – no caso, de Vo-Dinh e John Jasperse – esta música possui uma
evidente autonomia em relação a seus propósitos dramáticos. Basta escutarmos a
construção rigorosa de “Glass”, para nos perguntarmos se se trata de uma composição
propriamente dita ou de obra improvisada ao sabor de alguma cena, devido a sua
estrutura errante e sensível a mudanças. “Vibratory”, a faixa seguinte, alterna um
dedilhado grave com noise do mais irascível, enquanto “Wire” e “Bubble” mantém um
diálogo mais acentuado com a música erudita contemporânea, particularmente com a
música eletroacústica. Se essa quantidade de variações pode indicar, por um lado, a busca
pelos sons mais adequados, por outro, livres que estamos das coreografias, podemos
simplesmente fruí-las como peças independentes de um vocabulário musical desbravador.
Por este caráter dramático, mas ao mesmo tempo, atento a tarefa de descobrir sons e
combinações, Between the Whiles é em 2010, o que foi Black Telephone of Matter, de
Mika Vainio, em 2009: uma pletora de ruídos, manipulados de forma a esgarçar os
limites da composição musical. (Bernardo Oliveira)
Big Boi – Sir Lucious Left Foot – The Son of Chico Dusty (2010; Def Jam Records,
EUA)
Não dá para fingir, apenas por uma questão de pragmatismo, que este é o primeiro disco
solo de Big Boi. Não é. Em Speakerboxxx ele já demonstra muitas das habilidades como
rapper e produtor que fazem boa parte da graça deste Sir Lucious… Também não dá para
fingir que toda a estratégia de lançamento, com a aparição esperta ao lado de Janelle
Monáe e o refrão emo do hit, “Follow Us”, não turbinou o disco para além do seu
verdadeiro estatuto. Não é que Sir Lucious… não seja um disco muito, muito saboroso e
eventualmente surpreendente. Mas também não dá para deixar de reparar que um certo
nível de “vagabundagem” – um suingue fácil, um teclado estratégico, um coro exagerado
– perpassa o disco inteiro. Em algumas faixas, essa inclinação para o óbvio funciona, ora
sob uma execução vigorosa e precisa, ora sob um refrão pegajoso que não sai nem da
cabeça, nem do mp3 player, mais geralmente por conta de uma ironia, uma irreverência
que casa muito bem com o estereótipo do rapper norte-americano. No entanto, não raro
temos a sensação de que algumas linhas fogem do esquadro, e algo acaba por se repetir
mais como farsa, do que como convicção. Mas o que intriga mesmo é, por exemplo,
“Night Night”, que se posiciona bem no meio das duas possibilidades. Dois sujeitos
discutem, um deles preso por porte de cocaína, corta para guitarrinhas mela cueca estilo
anos 80, teclados de igreja, gravão estilo funk carioca e, de repente, por obra da divina
providência, surge uma batida muito bem dosada no grave e marcada no aro da caixa que
redime e transforma toda a parafernália de pre-sets comuns em algo além. Conforme a
faixa vai evoluindo, percebemos uma série de detalhes que, a princípio, seriam
incompatíveis com o lugar comum da introdução, como a estranha participação da
cantora americana Loi, e do rapper B.o.B.. É nesta corda bamba entre a vulgata do rap e
sua exploração criativa, que se situa o hip hop de Big Boi. Funciona muito bem em
“Tangerine”, “Follow Us”, “You Ain’t No DJ”, “Turns Me On”, mas tropeça em “Shine
Blockas”, “Daddy Fat Sax”, “Theme song”. Depois de algumas audições, no entanto, é
inevitável reconhecer que mesmo o exagero pop das faixas listadas acima podem
funcionar como “guilty pleasure” ou como poderoso estimulante para as pistas de dança.
Soul e flow o rapaz tem de sobra, e Sir Lucious… confirma seu talento mais do que o
revela, como os marketeiros querem nos fazer crer. (Bernardo Oliveira)
Esta pegada irônica permanece na segunda faixa, “Flesh Strata”, onde Kaiser novamente
sobressai, mas há a participação também do saxofone soprano virtuoso de Vinni Golya,
que costura um solo no meio da polirrtimia destilada por Walter e William Winant, que
executa a segunda bateria. Da confusão para a parcimônia bêbada de “Cleistogamy”, a
menor do álbum, percebe-se a mobilidade com que o grupo aborda cada um dos temas.
Mas a faixa-título já retoma o aspecto cacofônico das faixas anteriores e prepara o
ouvinte para mais vinte e dois minutos de uma improvisação alucinada, mais
conservadora, é bem verdade. Digo: mais parecida com algumas outras orquestras de
improvisação ou com o tipo de desenvolvimento que elas tomam quando se trata de
muitos instrumentos em conjunto.
Não há dúvida que o tipo de improvisação contida neste álbum extrapola o conteúdo
“improvisacional” e remete o ouvinte a uma dimensão em que a composição se insinua
no mesmo passo que o caráter selvagem do free jazz. Se é verdade, como venho
martelando aqui na Camarilha, que a improvisação hoje requer mais consciência e
planejamento do que espontaneidade, então a diferença que o septeto de Walter Weasel
nos traz é a constituição de um limiar em que as texturas, as harmonias, os climas,
desenvolvem um diálogo aberto entre composição e improvisação. O que já reserva a
Invasion um espaço privilegiado no que de melhor se produziu na seara da improvisação
em 2010. (Bernardo Oliveira)
O tom pastoral das composições se equilibra com uma dinâmica cadenciada, mesmo
quando se escondem por trás de uma timbragem abrasiva e deliberadamente manipulada.
Às vezes, o tom da composição é mais abstrato, mas algumas qualidades aparentemente
distantes se insinuam, como em “Nold”, ao mesmo tempo abstrata e ambient, mas que
não esconde as modulações evocativamente melódicas. “Vuku” conta uma trama
harmônica formada com sons de gameboy, levemente desencontradas, mas que aos
poucos sugerem uma surpreendente estabilidade de composição. “Kvaale II” retoma o
tema minimalista da primeira parte, lançando mão de percussões com sons de madeira.
“Mendel” e “Tuv” são faixas mais cerebrais, a primeira explorando sínteses entre vozes e
sons eletrônicos, a segunda mantendo um forte diálogo com a música de Brian Eno.
Qual seria, então, a característica principal de Kreken se não o intenso equilíbrio entre o
brilho estranho dos seus timbres e o paradoxo de suas composições, abstratas e
melodiosas ao mesmo tempo? Esta força vem a ser, me parece, o fruto de uma pesquisa
extremamente acurada que passa pela composição e pela extração de sonoridades que
muitas vezes surpreende o ouvinte não através de saltos e sobressaltos, mas com uma
assustadora naturalidade. Talvez esta mesma naturalidade corresponda àquilo que mais
estranha o ouvido em Kreken, álbum que pode ser classificado como um verdadeiro
objeto não-identificado na música lançada em 2010. (Bernardo Oliveira)
Assim como cultuamos hoje álbuns como Timeless e Burial, penso que Da Trak Genious
é uma espécie de marco inicial, não de um gênero, mas de um artista. Tem-se a certeza
deste pioneirismo, bem como de sua contundência, assim que começa “Back Up Kid”,
com sua introdução especialmente lenta e adocicada, rachada ao meio por uma saraivada
de graves, lembrando o wonky em alguns aspectos. Na sequência, a sonoridade mais seca
e sombria de “U Ain’t Workin Wit Nuthin” mostra que a paleta de Nate é mais
heterogênea do que seu minimalismo pode fazer supor. Natural que a partir da décima
música nos perguntemos até onde é possível chegar diante de tanta testosterona,
alimentada pelo caráter ensandecido das repetições. Justamente quando entram faixas tão
saborosas como “3 Peat” e seu vocal subaquático, a frenética “Let Me Show U Girl” e a
versão inacreditavelmente dessensualizada de “Sexual Healing”. Todas preenchendo os
ouvidos e a mente de uma tenebrosa perturbação, que se transforma em delírio puro
calcado em repetições abusivas, percussões eletrônicas extremamente sintéticas e uma
vitalidade de fazer inveja ao mundo dos “critical beats”. E tudo isso concebido pela
cabeça de um pirralho de 20 anos, cujo epíteto “promissor” não parece fazer justiça a sua
criatividade. (Bernardo Oliveira)
Vários artistas – Ecstatic Music of the Jemaa El Fna (2010; Sublime Frequencies,
EUA [Marrocos])
Jemaa El Fna (“o ponto de encontro dos mortos”) é uma feira considerada um dos mais
espetaculares locais de encontro do planeta, que concentra comerciantes e artistas de
diversos gêneros, tipos e com as mais variadas intenções. A presente coletânea nos revela
três nomes, Troupe Majidi, Amal Saha e Mustapha Mahjoub, que executam o chaabi, a
música popular do Marrocos, tradição de que fazem parte nomes como Nass El Ghiwane,
Lemchaheb, Jil Jilala e Larssad. Ecstatic Music of the Jemaa El Fna é mais um
lançamento do selo americano Sublime Frequencies, compilando artistas do continente
africano, nesse caso especificamente de Marrakech, tradicional cidade do Marrocos.
Alguns artistas apresentados aqui já haviam aparecido no DVD Musical Brotherhoods
From the Trans-Saharan Highway, de 2008, feito a partir de filmagens registradas em
2005. (B.O)
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Existe toda uma precaução a ser tomada quando abordamos um universo musical do qual
temos apenas um recorte. Um recorte sem pano de fundo, sem ramificações que nos
autorizem a analisar que tipo de influência forma essa sonoridade. Há também que se
ressalvar, como em praticamente todos os lançamentos da Sublime Frequencies, a forma
de captação, gravação e equalização empregada, de que forma ela altera o sentido
originário de uma sonoridade produzida para ser tocada na rua, para exprimir e induzir ao
êxtase. Mas não o faremos. Simplesmente enalteceremos a beleza urgente dessas nove
faixas como se não houvesse amanhã… É um procedimento crítico duvidoso, mas
quando o espírito é desarmado por obra de um acontecimento musical, basta escutar as
musas…
A primeira vez que se ouve a faixa “Essiniya” do grupo Troupe Majidi, a gente pensa
assim: “C*! Pqp#@$%!!!”. Depois, passado um tempo, as hipérboles pouco educadas são
substituídas por uma curiosidade mortal, não só para conhecer mais sobre o grupo em
questão (quem? por que? como?), como também o tal “rendez-vous dos mortos”, onde,
reza a lenda, acontece de tudo. O título do álbum justifica os palavrões. Se o êxtase é
excitação dos sentidos e arrebatamento emocional, o que faz com que muitas pessoas
liguem este sentimento diretamente à religião, então podemos afirmar sem sombra de
dúvida que a música pode ser também uma eficaz indutora do êxtase. Exemplos não
faltam, pelos quatro cantos. Mas o que há de específico no chaabi do Troupe Majidi é
esse alaúde eletrificado, essa batucada alucinada, esses refrões entoado aos gritos…
Parece que o êxtase aqui não é algo que se alcança, não é um resultado, mas ao contrário,
é o motor da música. O êxtase constitui o tema e depreende a visão de que é para isso que
a música é feita. O arrebatamento é promovido essencialmente pela execução, e isto fica
evidente nas vozes, na percussão frenética, no alaúde cheio de pressão.
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Darren Cunningham não é exatamente um nome novo na seara da música eletrônica, mas
desembestou a lançar eps em 2010 (dois, na verdade), e em maio deste ano, lançou seu
segundo álbum, Splazsh (ou terceiro, já que o primeiro, de 2004, é um 12” com 6
faixas…). Mas ele esteve com Kode 9 em 2004, quando ambos já produziam na seara
daquilo que viria a se chamar dubstep. Ocorre que, não sei por qual obra do destino,
Cunningham se tornou owner do selo independente Werk Discs, responsável por
lançamentos do calibre de Zomby, Lukid e Radiocrlit, e estacionou seu trabalho por
quatro anos, retornando em 2008 com o intrigante Hazyville. O período como owner
deve ter lhe feito muito bem, pois tanto Hazyville quanto Splazsh trazem uma sonoridade
única no universo eletrônico mundial.
Dito assim, parece que Cunningham se aproxima do olhar histórico do incógnito Zomby,
mas somente enquanto opera claramente sobre um recorte histórico. Pois enquanto o
espectro temporal de Zomby remete às primeiras raves da década de 90, Cunningham
está mais atento para a cena contemporânea. E até mesmo o flerte com a música dos anos
80 tem um apelo evidente à atualidade da música eletrônica, embebida nos timbres
agitados do Synthpop e da New Wave. Mas o que Zomby tem de vivacidade,
Cunningham tem em esperteza e sede pelo novo. Splazsh testemunha não só seu vigor
criativo, mas também o caráter inquieto de sua personalidade artistica. Estaremos diante
de uma eminência parda do dubstep, que se manteve à parte para conservar liberdade
criativa? Não são poucas as evidências de que isto seja verdade, basta escutar os
primeiros singles de Kode 9 e o 12” de 2004 para perceber que o seu retorno em 2008
trouxe à tona possibilidades deixadas de lado pelos pioneiros do dubstep: o mesmo
diálogo com os sintetizadores, o grave nem tão proeminente, os ritmos mais
sequenciados, herdados do 2-Step… (Bernardo Oliveira)
Por outro lado, é certo que O possui toda uma aura inaugural, a começar pelo título, que
segundo o próprio autor pode ser concebido como uma espécie de marco zero. O
considerável espaço de tempo entre Ovalcommers, de 2001 para este O e o EP Oh,
também de 2010. E, de fato, parece que O exprime uma mudança radical na obra de
Popp. A duração e o fôlego de suas sententa faixas, como se o autor estivesse escrevendo
a suma de sua obra, ainda que às avessas, testemunha um processo de reconstrução onde
o excesso opera como motor da ruptura. Se antes a música de Oval era, em suas próprias
palavras, uma música 3D, que levava em consideração um tríptico formado pela criação,
o processo e a recepção, desta vez o aspecto musical se fortaceu de tal forma que é
possível atribuir ao disco uma qualidade musical proeminente em relação aos álbuns
anteriores – co-estendendo esta novidade ao ep Oh. E isto se comprova não somente
através de informações contidas no release do disco, onde se pode verificar que Popp não
criou uma plataforma de conversão, mas operou sobre um PC repleto de sons, mas
também pela própria riqueza musical. São impressionantes a intrincada imprecisão das
tramas polirítmicas, a mescla perfeita e bem dosada entre sons de comuns (de bateria, de
teclado) e timbres inusuais – mais especificamente, cordas truncadas em pizzicato e
tapping e timbres de piano que possuem algum laço com os pianos preparados de Drukqs
– e, sobretudo, a manipulação dos volumes, que, juntamente com a beleza das texturas e
timbres, estabelece um jogo entre tensões e distensões que imprime no álbum um caráter
bastante diferenciado em relação aos primeiros álbuns do Oval. Uma mudança radical,
sem dúvida, mas condizente com o teor desbravador que Popp sempre fez questão de
destilar em seus álbuns. Absolutamente indispensável. (Bernardo Oliveira)
*#*
Para tanto, o grupo lança mão de um altíssimo grau de controle, mas também uma sorte
de conceito que busca realizar o máximo com o mínimo, tanto no que diz respeito ao
superaproveitamento timbrístico dos instrumentos convencionais, como também na
pletora de ritmos e possibilidades em curtíssimo espaço de tempo – basta dizer que a
faixa mais longa do álbum, “Lambada Post-Mortem”, conta com pouco menos de 3
minutos. Bad Trip Simulator #2 conta com apenas vinte seis minutos, mas são senhores
vinte seis minutos, nos quais podemos perceber mais pujança e força no discurso do que
nas obras completas de muita banda incensada aqui e no exterior. (Bernardo Oliveira)
Sufjan Stevens, o queridinho da América, está presente em The Age of Adz (lê “odds”)
com todos os maneirismos que ratificaram seu nome como um dos maiores compositores
dos 00’s. As orquestrações grandiloquentes, que muitas vezes exigem um nível de
execução acima da média, convivem com melodias sinuosas e temas ambíguos,
simultaneamente românticos e inquietantes. Entretanto, inclua nesta fórmula consagrada
a utilização expressiva de sons pronunciadamente sintéticos (ruídos, batidas, teclados),
utilizados de forma a configurar uma faceta, se não completamente diferente, bastante
alterada de seu trabalho. Com a inclusão destes elementos, Stevens reforçou o caráter
sombrio das composições, outrora presente de soslaio através de canções como “John
Wayne Gacy, Jr.” e “Casimir Pulaski Day”. Antes, a letra bizarra destoava da música,
quase sempre graciosa, mesmo em compasso composto e repleta de dissonâncias. Ocorre
que a música, acrescida do poder singular dos sons sintéticos, nem simplesmente
melódicos, nem meramente rítmicos, mobiliza o ouvinte pela tensão sabiamente
controlada pelo autor. Orquestração pesada, tramas eletrônicas e canções precisas fazem
com que o resultado seja, desde já, clássico. “Too Much”, “Age of Adz”, “I Want to Be
Well” são faixas que certamente desempenharão um papel central nos shows e na obra de
Stevens como um todo. Assim como “I Walked”, a quarta faixa, que emociona pelo
equilíbrio preciso entre lirismo e inovação, entre um conteúdo pop irremediável e sua
apresentação poderosa. A última faixa, “Impossible Soul”, vinte e cinco minutos
acachapantes que contam com a presença de Shara Worden, do My Brightest Diamond, é
a mais impressionante do disco: uma coleção eloquente de detalhes imprevisíveis que
variam de viradas de baterias, guitarras de rock, coros falados e um intermezzo tecnopop
que parece conduzir a faixa para seu fim, quando na verdade ela ainda tomará um rumo
ainda mais inusitado, como que desmoronando aos poucos até terminar em silêncio.
Neste longo percurso, cabe até mesmo a aplicação do famigerado autotune na voz de
Stevens – coragem é pouco…
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Entre esses trabalhos, destaco o magistral refix de Mark Ernestus para uma faixa do
Konono n°1, “Masikulu Rhythm (Bonus Track)”, no qual o produtor explora célula
curtíssimas, retiradas da faixa original, para criar uma estrutura abafada, operando com o
volume extremamente comprimido e de forma massivamente repetitiva. O resultado é
intrigante, plenamente condizente com o trabalho de Ernestus. “Konono Wa Wa Wa” por
Yamatsuka Eye também surpreende pela transfiguração absoluta proposta pelo vocalista
japonês, através de uma colagem repleta de “movimentos”, variando do noise-pop ao
disco-punk. Shackleton, como sempre, não decepciona com seu remix/refix “Mukuba
Special”, no qual a faixa do Kasai Allstars é até lembrada, mas em função daquele clima
fantasmagórico, característico nas produções do autor. “Enter the Chief”, com o Woom
retrabalhando a música do Kasai Allstars traz alguns dos momentos mais tensos do disco,
com sua colagem concretista à la Prefuse 73. Juana Molina usa um riff do mesmo Kasai
para criar a graciosa “Hoy supe que viajas”, a mesma estratégia adotada pelo produtor
Burnt Friedman em “Rubaczech” e pelos Hoquets em “Likembes”. Dignos de nota
também “Traducteur de Transmission”, excelente trabalho do percussionista americano
Glenn Kotche, remixando Konono, o refix alucinado “No.K”, com o mesmo Konono e
Micachu & The Shapes, a dreampop “Kiwembo/Unstuck”, parceria do Skeletons com
Mimanisa, Deerhoof com Kasai Allstars em “Travel Broadens the Mind” e a ótima
“Nombre 1!” com Oneida, entre outros. Sim, a faixa do Animal Collective com o Kasai
Allstars é um bom exemplo deste desprendimento, mas talvez não tenha obtido um
resultado à altura dos últimos lançamentos do grupo.
Por mais que a variedade de sotaques e perspectivas salte aos olhos, o que determina o
sucesso do álbum é o fato de que a maioria dos produtores e artistas preferiram usar os
Congotronics para construir faixas marcadas por seus própros maneirismos, ao invés de
buscar somente reinterpretá-las. E, de fato, parece que Tradi-Mods vs. Rockers é um
trabalho único no cenário das interpretações, que traz um apanhado de possibilidades,
nem todas exitosas, mas entre elas, algumas pequenas obras-primas, como as que
assinalei acima. (Bernardo Oliveira)
Vários artistas – Night Slugs Allstars Volume 1 (2010; Night Slugs, Reino Unido)
Que o encerramento desta década seja marcado por uma profusão de coletâneas,
recenseamentos, compilações de selos, gêneros e parcerias as mais diversas apenas
demonstra que o caráter difuso e colaboracional da produção eletrônica contemporânea,
resulta em maior peso na eclosão de contextos do que de artistas distintos. Apesar do
surgimento de grandes nomes como Shackleton, Joker, James Blake ou Blue Daisy
trazendo à tona uma radicalidade subjetiva tão cara à arte moderna, penso que o mais
interessante deste panorama é a forma como os contextos se pronunciam de forma aberta,
primeiramente sem confundirem-se com a suposta coesão conceitual dos movimentos ou
das grandes tendências, e depois, sem predicar a nenhum gênero sua identidade musical.
Neste contexto, o papel dos selos, e particularmente do Night Slugs que batiza essa
coletânea, é fundamental, por uma série de razões. Um selo hoje não é mais um meio
através do qual um artista divulga seu trabalho, nem somente o que foi a Rough Trade
durante a década de 80, mas encarna características e funções as mais variadas,
agrupando possibilidades difusas e aludindo ao contexto como sua grande assinatura. É
como se, através dessa coletânea, o selo assumisse uma tarefa: conferir novos ares ao
club house, respeitando o aspecto dançante, investindo, porém, em outras sonoridades.
Mas o Night Slugs se destaca não somente pela saudável ampliação e atualização do
espectro formal e timbrísitico do house, mas sobretudo por infundir o arrojo das
modulações e timbragens do dubstep em um gênero aparentemente desgastado. Este
talvez seja o maior trunfo de faixas como “Bust Broke”, do Kingdom, as de autoria de
Girl Unit, além de “Square One VIP”, o primeiro lançamento de Mosca pelo selo. Se a
presente coletâna tem a intenção de expor esse contexto específico, resta torcer para que
venha logo o Volume 2. (Bernardo Oliveira)
Vários Artistas – Bangs & Works Vol. 1 – A Chicago Footwork Compilation (2010;
Planet Mu, Reino Unido [EUA])
Juke ou Juke House é uma modalidade de música eletrônica, criada em Chicago, Illinois.
Extremamente veloz (chega a 160 bpms) e sintética, repleta de recortes abruptos e
samplers inusitados, o juke costuma embalar o footworkin’, que desafia o dançarino a
criar coreografias igualmente velozes com os pés. A presente coletânea, lançada pela
mesma Planet Mu de Mike Paradinas, a mesma que editou o álbum do DJ Nate, é o
primeiro registro panorâmico do gênero. (B.O.)
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Inúmeros são os paralelos, em escala mundial, que podemos traçar em relação ao juke.
Ele pode ser comparado aos últimos desenvolvimentos do “funk carioca”, do kuduro
angolano, do shangaan electro da África do sul, ou ainda do Bubu de Sierra Leone, todos
sequenciados, investidos de velocidade e graves profundos, desenvolvidos a partir da
matriz jamaicana do djing, do toaster e, em última instância, voltados quase que
exclusivamente para a dança. Mas o que faz do Juke uma modalidade musical
absolutamente alienígena nesse contexto é que o seu suingue, plenamente contemplado
no funk carioca e no kuduro, não se dá de forma clara, ou pelo menos imediatamente
identificável segundo a tradição da música negra. O kuduro é uma espécie de champeta
acelerada, enquanto o funk carioca já deu sucessivas demonstrações de que é um gênero
aberto à mudança radical, migrando do miami bass para inovações rítmicas e timbrísticas
de amplo espectro, sendo a mais notória e imprevisível a aproximação com o batuque
semelhante ao dos pontos de umbanda. Mas o juke se caracteriza por um registro musical
peculiar e original, que a presente coletânea faz a cortesia de flagrar na fonte. Basta dizer
que, à exceção de CDrs e mixtapes que circulam pela rede, além dos álbuns de DJ Nate e
DJ Roc e singles de DJ Rashad entre outros, dispomos de pouco material sobre o juke, o
que enfatiza a importância de Bangs & Works.
A começar pela abertura, “Whea Yo Ghost At, Whea Yo Dead Man”, por DJ Elmoe, que
se inicia com o sampler de uma balada juvenil, agudíssima por conta do pitch alterado,
que é gradualmente picotada, repetida de forma massiva e transfomada em ritmo. Como
pano de fundo, o grave aceleradíssimo, e as intervenções percussivas esporádicas, como
se fossem viradas. Mas a faixa mais impressionante, criada segundo este procedimento, é
“Itz Not Rite”, produzida por DJ Rashad, e que apresenta uma concepção rítmica algo
divergente das anteriores, acentuadamente tingida pelo house de Chicago, além do
recorte deveras truncado das palavras, que confere mais expressão ao sequenciamento. Dj
Roc também se destaca com “Fuck Dat” e “One Blood”, dois exemplos de quão
atordoante pode ser o juke, muito por conta do sequenciamento de uma ou duas sílabas
do tema original. Já “Eraser”, de RP Boo e “2020”, do DJ Spinn, trazem uma primeira
surpresa: uma derivada mais “ambient” do gênero, que contam com menos elementos e
repetições menos saturadas, além de melodias que se repetem parcimoniosamente – a esta
altura, devo confessar, um refresco mais que necessário. E, é claro, DJ Nate, até então o
nome mais interessante e diferenciado desta cena, representado pela já conhecida “He
ain’t bout it” e a inédita “Ima Dog”, uma daquelas faixas que sustentam o horizonte de
toda uma cena, assimilando algo como vozes new age, à la Enya, com as repetições mais
rebuscadas que o Juke pode oferecer.
Se Da Trak Genious nos introduzia ao juke através do trabalho daquele que parece ser
seu maior artífice, esta coletânea fornece o contexto e suas possibilidades. Entre pegadas
barulhentas e radicais (com destaque para “Star Wars”, de DJ Killa E), flertes com
sonoridades mais anuançadas, e até mesmo com a famigerada música romântica (em “I
Love You”, com DJ Clent), Bangs & Works oferece um giro mais do que bem-vindo
pelas ruas de Chicago, certamente um dos pontos altos deste ano – juntamente com o
shangaan, o bubu, o retorno triunfal de Sufjan Stevens, The Books e Oval, a ousadia
taciturna de Eleh, Shackleton e seu habitual arrasa quarteirão… (Bernardo Oliveira)
Vários Artistas – Scientist Launches Dubstep Into Outer Space (2010; Tectonic,
Reino Unido [Jamaica])
Um dos mais representativos expoentes do gênero musical jamaicano mais incensado da
última década, Scientist nasceu Hopeton Brown, em Kingston, Jamaica. Scientist foi
apadrinhado por King Tubby, trabalhando como engenheiro de som em seu estúdio até
início da década de 70, quando se transferiu para o lendário Channel One Studio e, mais
tarde, para o não menos lendário Tuff Gong. A partir da década de 80, passou a editar
seus próprios trabalhos, criando uma mitologia híbrida, repleta de extraterrestres e
vampiros, em álbuns clássicos como Scientist Rids The World Of The Evil Curse Of The
Vampires e Scientist meets the Space Invaders. Neste CD duplo, Scientist remixa faixas
originais produzidas por representantes do dubstep como Pinch, Kode 9, Mala e
Shackleton. (B.O.)
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Consideremos, então, esta celebração tal como dos rappers do free-style, os partideiros e
todos os repentistas do ritmo e das palavras, isto é, segundo uma inflexão que apesar de
simpática e amistosa, se impõe através de uma certa “beligerância”. A estratégia deste
álbum é um convite indiscreto à comparação, por vezes cruel, entre as faixas originais e a
interpretação de Scientist. Enquanto algumas faixas originais (poucas, é verdade)
sobressaem em relação ao remix do produtor, outras são como que reavivadas pelo
processamento delirante que o trabalho de reconfiguração que ele propõe. No cd de faixas
originais, destaco a bela canção de abertura com Pinch e Emika, Shackleton com sua
batucada digital em “Hackney Marshs”, o suingue enxuto e repleto de percussões de
Distance em “Ill Kontent” e, sobretudo, a verdadeira pancada que é “Abeng”, mais uma
brilhante parceria entre Kode 9 e Spaceape. Armour e Mala também comparecem com
boas faixas, melhores por exemplo do que este inexplicável King Midas Sound, a injetar
as sonoridades do dubstep no som do Massive Attack, ou o farofeiro Guido, que em todo
caso nos fornece uma curiosa vertente tecnopop… Trata-se, portanto, de um cd irregular,
mas que contém faixas extremamente representativas da consolidação de um cenário e de
seus produtores mais importantes. E o que podemos esperar do trabalho de Scientist, uma
referência seminal, mas que reside no passado heróico do dub, já que não lança um álbum
à altura de seus clássicos há mais 20 anos - In The Kingdom of Dub tem lá seus
momentos, mas seus grandes álbuns estão na década de 80…
Pois penso que Scientist se saiu tão bem em seus remixes, que em alguns casos ele
mereceria até a autoria da faixa. A estratégia não traz novidade: inclusão indiscriminada
de efeitos, de modo a reconfigurar ritmo, melodia e harmonia; utilização vertiginosa do
estéreo; inclusão de baterias e apetrechos eletrônicos variados… Mas são admiráveis os
timbres que ele extrai de sua mesa de som, os abalos rítmicos em virtude da utilização
imoderada de ecos e delays, que quebram consideravelmente a regularidade da levada
arrastada do dub, a própria atmosfera esfumaçada que tornou mais delirante faixas
apolíneas como “U”, “Korg Back” e “Dog Money”. Apenas em dois momentos, Scientist
não supera a versão original: quando substitui a trama percussiva de “Huckney Marsh”
por uma levada de bumbo mais regular, e quando retira a batida de “Abeng”. Por outro
lado, reparem nas formas buriladas que encerram “2012 Dub”; ou as brumas sonoras que
envolvem “Dog Money Dub”; ou ainda o minucioso jogo de estéreo em “Ill Kontent
Dub” e “After All Dub”. E no quebra-quebra – literalmente, um quebra-quebra – que ele
promove na comportada “Footsteps”.
Estamos falando aqui de algo diferente de tudo o que se promoveu até hoje em termos de
compilação de inéditos, mesmo levando em consideração o também admirável Tradi-
Mods Vs. Rockers. Trata-se de um álbum duplo que promove o diálogo entre duas
consciências, ou melhor, entre duas escutas muito peculiares, cada uma pertencente a um
contexto específico – muito embora se possa afirmar que o dubstep é, em parte, produto
do dub. Mas aqui o diálogo é aberto, o homenageado é respeitado, mas também está
submetido ao perde-e-ganha de versões. E é nesta dinâmica de franca disputa que reside
todo a força do disco, certamente um dos acontecimentos deste início de década.
(Bernardo Oliveira)
PS.: Uma advertência: para captar essa “atmosfera”, um elemento indispensável é o uso
do fone de ouvido, que possibilitará ao ouvinte acessar as nuances do processo criativo
através do qual Scientist cria suas “tracks”.
Nem o “suporte” é meramente um suporte, nem o objeto musical está desvinculado das
limitações impostas pelo circuito. O circuito possibilita ao ouvinte reproduzir a 1-Bit
Simphony com roupagem e instrumentação próprias, efetuando uma operação que
dispensa o suporte, apesar da ausência do artista.
Quanto aos aspectos sonoros, o que dizer? Nada que escutei até hoje se parece com os
cinco movimentos da 1-Bit Simphony. A ausência quase absoluta de referências faz com
que a consideremos algo da ordem do incomum, do não-identificado. O timbre seco e
estridente das notas constitui um dos motivos principais desta diferença. Ora sobrepostas
em harmonias aparentemente dissonantes, ora desenhando curiosas tramas rítmicas,
provocam a estranha sensação de um êxtase controlado. Apolo encontra Dionísio.
De nada adiantaria, portanto, iniciar este texto separando o discurso propriamente sonoro
das questões técnicas implicadas na sua reprodução. De nada adiantaria também que
pipocassem nos próximos anos exemplares semelhantes, influenciados pelo feeling deste
multi-artista, atuante em diversas áreas como as artes plásticas, a música e as ciências.
Pois sua ideia propõe a interação prodigiosa entre muitos e diversos temas, como o
estatuto da composição na atualidade, a relação entre pensamento e fruição, entre sons
orgânicos e sons digitais, entre música e som, entre música e ruído, entre música e
procedimento, e outras questões agudas, afinadas com o universo musical
contemporâneo. Resultaria na manutenção do campo epistemológico contra o qual ele se
posiciona, não de forma frontal – como, aliás, nada na música dos últimos 60 anos - mas
generosamente, oferecendo como que um passo adiante, um rompante poético, um abre-
alas. (Bernardo Oliveira)
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Baptista Virou Máquina é uma peça cinematográfica com trilha sonora do Burro Morto,
ou um álbum ilustrado pelo cineasta Carlos Dowling e pelo excelente artista visual
Shiko? Aqui se torna necessário trocar a chave de interpretação, pois até o presente
momento não vi o filme. Porém conheço o álbum, o que me força a seguir somente o que
meus ouvidos “viram”.
E, meninos: eu vi!
Mas também porque constitui uma história musical, isto é, o testemunho de uma inflexão
instrumental que tem o que dizer além de firulas e credenciais, e que pode ser comparada
com o que de melhor se produziu na seara instrumental da última década, a saber, Itiberê
Orquestra Família, Hurtmold, Guizado…
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Álbuns póstumos costumam demandar grandes esforços, mas geralmente desaguam em
fracasso. Ou porque o autor não terminou a obra, deixando espaço para o trabalho
insuficiente do produtor, ou porque o material não era bom mesmo. Mas cabe perguntar
quanto vale um sopro de Itamar Assumpção, sete anos após sua morte. Como um sopro
de vitalidade na surrada emepebê? Natural que se possa questionar essa filiação, ainda
mais em relação a um artista que se desvencilhou estrategicamente de muitos rótulos.
Reggae? MPB? Maldito? Nada disso.
Encarando momentos difíceis, mas ciente do seu próprio valor – a grande característica
dos grandes artistas – Assumpção idealizou a Caixa Preta, contendo a totalidade de suas
obras, além de dois álbuns que constituiriam a continuação de Pretobrás, lançado em
1998. Com os esforços de suas filhas, Anelis e Serena Assumpção, a Caixa Preta foi
finalmente lançada, bem como a continuação de Pretobrás.
Um trabalho à altura do gênio, mas para o qual Assumpção projetou uma continuidade
em duas partes, gravando as faixas e trabalhando as ideias, mesmo prevendo o pior.
Como atesta sua filha, Anelis, ele “fez guias de voz e violão em diversos estúdios e,
graças a sua criatividade excessiva e seriedade com a música, essas guias têm
sentimentos interpretativos como se fossem pra valer.” A idéia foi convocar dois
produtores familiarizados com o pensamento e a obra de Assumpção, para finalizar a
trilogia. Pretobrás II – Maldito Vírgula foi produzido por Beto Villares, um dos nomes
por trás da caixa Música do Brasil, enquanto Pretobrás III – Devia Ser Proibido foi
produzido pelo baixista Paulo Lepetit, baixista da Isca de Polícia. Reunir pessoas que
trabalharam e conheceram Assumpção, misturando-as a jovens admiradores foi a solução
encontrada pela produção para chegar o mais próximo possível do que o artista projetou.
A unidade estilística particular, reforçada pela presença de espírito sui generis do autor
durante as gravações – sua voz comovente, a entonação grave – permite tanto uma
análise em separado, como também em conjunto dos álbuns. A presença do artista nas
composições e arranjos é forte o bastante para considerarmos um álbum de Itamar
Assumpção, mas é também um fato que Villares e Lepetit guiaram as ideias conforme
certas inflexões próprias de seus respectivoas trabalhos. Pretobrás II – Maldito Vírgula é
talvez mais coeso do ponto de vista do conceito, portando contornos mais definidos. E
também mais aberto à influências musicais mais recentes, tanto na timbragem quanto nos
que diz respeito aos gêneros. É um prazer inenarrável conhecer composições como
“Samba-Enredo”, “Je T’aime Mais Que O Jerome”, “Todo esse tempo” (com
participação de Bnegão), e “Breu da Noite”, cantada por Arnaldo Antunes. E arranjadas
com elegância e economia condizentes com o nível poético e musical proposto por
Assumpção. Sem contar a comovente simbiose entre a fabulosa Elza Soares e a canção
que Assumpção compôs em sua homenagem, batizada “Elza Soares”.
Ocorre, no entanto, que a terceira parte, Devia ser Proibido, sendo produzida por um
instrumentista que teve sua vida artística atrelada à banda Isca de Polícia, e que conviveu
com os modos e maneiras de Itamar, traz à tona uma desordem, uma saudável mistureba
de gêneros e canções, me parece, mais apropriadas para dar conta da personalidade
musical multifacetada do artista. De fato, a segunda parte é mais enxuta, mas trata-se de
uma releitura, como que respondendo à pergunta “o que Itamar estaria fazendo hoje?”
Mas a terceira parte é como se estivéssemos diante não de um disco póstumo, mas de um
disco descoberto, gravado pela banda Isca de Polícia em meados dos anos 80. Além do
ecletismo musical vertiginoso que passeia do rock ao sertanejo, podemos perceber
também as letras mais viscerais, versando sobre a morte, a dor e o ciúme com o humor
habitual, mas, ao contrário da primeira parte, não parecem tão angustiadas, pelo
contrário. Temas mais graves, abordados com o humor de sempre, e por uma teatralidade
latente, presente nos jogos vocais
Em “Ciúme doentio”, aborda o tema com ironia indefectível (“basta você me dizer ‘amor,
eu vou até o mercado ali na esquina, pra eu começar a sofrer como se o mercado fosse lá
na China”). Na empolgante “Anteontem (Melô da UTI)”, faz troça da morte, e do medo
debocha na retrô “Eu tenho medo”. São Paulo está presente na incrível “Persigo São
Paulo”, que traz ecos evidentes do apelo realizado no primeiro Pretobrás em “Outras
Capitais”. Mas a faixa mais emocionalmente evocativa da Banda Isca de Polícia é
“Ninguém como você”. A sutileza de seus arranjo de metais, o diálogo de Assumpção
com as cantoras, tudo conspira para que nos encontremos em um estranhíssimo interstício
entre o passado e o futuro.
Quanto vale um sopro de Itamar, em pleno 2011, sete anos após sua morte? Em
“Variações”, escutamos o verso lapidar: “quem quer fazer boa música / tem que bolar
uma fuga / contar compasso quebrado / cantar a boca que usa”. A boca e a mente de
Itamar estão presentes em ambos os álbuns. Não lembro de experiência póstuma tão
poderosa e evocativa da presença do artista. Talvez Sun Ship, de John Coltrane. Não
exatamente por sua música sublime, mas pela evidente permanência e atualidade daquilo
que ela tinha de melhor, preservada na máxima cantada em “Fico Louco”, de seu
primeiro disco: “espero ouvir você dizer que gosta de viver em perigo.” Mesmo falecido
há sete anos, Itamar Assumpção ainda teve o fôlego de nos legar este “perigo”, prazeroso
acima de tudo. (Bernardo Oliveira)
Ps.: Não sei se feliz ou infelizmente, a Caixa Preta (já) se encontra esgotada. Aguardemos
as reprensagens.
Meu faro – não tem jeito, preciso confiar nele – diz que Maya Arulpragasam representa
hoje o que Björk representou nos anos 90: uma artista plural, independente, capaz operar
em muitas sintonias, de promover reviravoltas e surpreender mesmo aqueles que não
admiram sua música.
Quem espera acordar no último dia do ano com presente tão auspicioso? Uma mixtape
produzida por M.I.A e sua turma, singelamente batizada como Vicki Leekx. Costurando
sobras de material do último trabalho com excertos inéditos produzidos por Diplo, Rusko,
Blaqstarr, Switch, entre outros, M.I.A. comanda um continuum de ritmos, percussões
digitais, ruídos e graves cavernosos, absolutamente alucinado e empolgante.
A ironia do título reitera a preocupação política que tanto irrita os jornalistas americanos,
mas pode ser lida como uma manifestação de júbilo e celebração pelo caráter guerrilheiro
da empreitada de Assange e cia. “Nada mais M.I.A.”, diria algum hipster maldoso de
Williamsburgh.
Quem acompanha M.I.A. de perto, sabe que ela nem sempre aparece como santa: irrita os
jornalistas com suas contradições, faz declarações controversas e se perde em
apresentações lastimáveis, como a do lançamento de seu último disco, meados do ano
passado em Nova Iorque. De nada adianta: meu entusiasmo por sua música permance tal
e qual, assim como seu vigor artístico. Vicki Leekx não é um CD de carreira, mas dá
mais uma prova do que M.I.A. pode. Um presente afetuoso em um ano conturbado, from
M.I.A. to you. (Bernardo Oliveira)
Gravado e editado em duas apresentações na casa de shows sueca Blå, En form for Blå se
afigura como um salto extraordinário no pensamento musical da banda. A inclusão de
Steve Noble, baterista que acompanhou Derek Bailey, e a permanência de Kristoffer
Rygg, abriu a paleta de cores, antes de alguma forma comprometidas com formas do
drone e do dark ambient, pela via do metal que tanto apraz O’Malley e marca seu
trabalho. A bateria de Steve Noble, a profusão de timbragens e climas que ela emana,
garantem o aspecto multifário das faixas, que eram antes batizadas por números, como
movimentos de uma composição, mas agora possuem nomes e, de fato, parecem
responder a questões diferentes.
“Jocasta” e “One Number Of Destiny In Ninety Nine” formam o primeiro bloco, as
faixas mais longas, que tomam mais de cinquenta por cento do álbum. Repletas de
reviravoltas, alternando a exploração de massas sonoras com texturas acidentadas, elas se
caracterizam por um diálogo intenso entre todos da banda. Mas a intensidade toma ares
exploratórios incomuns, quando nos vemos entre as cinco faixas finais. “Vyomagami
Plume”, por exemplo, com seus teclados jazzísticos e a proliferação de desenhos
rítmicos; o aspecto etéreo, quase gracioso, de “Dream Tassels”, além da aparente
retomada das modulações características da primeira parte em “Something To Sleep Is
Still”. Nestas faixas, fica evidente a contribuição do diálogo entre Noble e Rygg, ao que
parece, o trunfo do álbum, responsável por sua inclusão entre o que de melhor produziu
este projeto aparentemente lateral, capitaneado por dois estetas do Metal, Sullivan e
O’Malley. Mas a forma final, esta me parece de alguma forma distante do que seria
comum esperar de seus nomes. Mas por que?
Talvez aí resida o parentesco mais próximo de En Form for Blå: o jazz como conceito,
isto é, como criação de estruturas de improviso, de modulações improvisadas que, no
entanto, é composto por habilidades individuais em franca relação entre si. Os nomes na
capa expõem a individualidade, mas o azul cobre tudo, unificando as partes num todo
incrivelmente coerente. O que faz deste álbum uma das audições indispensáveis de 2011.
(Bernardo Oliveira)
Jaar, que tem praticamente a mesma idade que Blake, e partilha com ele de um universo
musical semelhante, chega a triscar a seara do inglês – como na beleza pastoral de
“Balance Her In Between Your Eyes” e em “Keep Me There”. Mas adquire autonomia
com faixas delicadas e surpreendentes, como “Être”, com sua estáticas ritmadas e
utilização sagaz das vozes, e no suingue estranho de “Variations”.
Você mexe com música de todas as décadas, com a história, você é crítica e é irônica e
seu show em SP, há uns anos, foi das coisas mais impressionantes que vi acontecer em
um palco, e olha que eu assisti muita proeza nesses anos de vida, e olha que foi assim
bem especial o que rolou no palco naquele dia, a disposição dos instrumentos e você e
seus amigos se revezando, ora num teclado, ora numa bateria, e mesmo baixinha você
parecia gigante no palco e eu não parava de olhar e lembrar da Bethânia dos tempos
áureos, e do Mau Val naquele programa que tinha na god fm, Radiola, e que ele tocou seu
disco e foi a primeira vez que sua voz agudagrave, ásperadoce penetrou na minha cabeça
pra sempre…
Eu já amava White Chalk, com aquelas baladas quase new age, que o mesmo amigo
herege chamou de emo – nem descurti – e agora amo muito mais Let England Shake,
com esses samplers inacreditáveis e a maneira totalmente natural com que você os
transforma em coisa sua, “Istanbul (Not Constantinople)” na faixa-título sombria, aquela
cornetinha marcial inusitada na melhor faixa do disco, “The Glorious Land”, aquela
entonação do coro pronunciando “england” ironicamente (engâleeeennnn!), e mesmo as
baladas melosas, nas quais você canta como uma adolescente apaixonada em “The Last
Living Rose”, parecem tolinhas, mas não são, e a gente sabe bem…
Desde que ouvi Let England Shake pela primeira vez, que ele não sai da vitrola, você
continua sendo uma tremenda artista, capaz de retorcer padrões e transformar gêneros,
que as pessoas acham que são eternos, mas ai vc vai e mostra que não é nada disso, que o
poder da arte tá em abrir caminho pra diferença, mostrando pra gente o que há de mais
quente em termos de grandeza e alegria, a prova dos nove, câmbio, desligo. (Bernardo
Oliveira)
Kelan Phil Cohran and Legacy – African Skies (2010; Captcha Records, EUA)
Kelan Phil Cohran é trumpetista, compositor, arranjador de jazz, nascido há 84 anos em
Oxford, no Mississippi. Ficou mais conhecido por integrar a Sun Ra Arkestra, do final da
década de 50 até meados da década de 60. A discografia escassa – mais precisamente
quatro álbuns com Sun Ra e três como leader –, contrasta com suas proezas: além de
reconhecido astrônomo, inventou o Frankiphone, ou “Harpa Espacial”, fundou a
Association for the Advancement of Creative Musicians (AACM), além de ser o pai de
oito dos nove membros do Hypnotic Brass Ensemble. African Skies foi gravado em
1993, por ocasião da morte de Sun Ra, mas foi lançado somente em 2010. (B.O.)
*#*
Gravado em 1993, African Skies é uma homenagem póstuma a Sun Ra, e traz uma
música cadenciada, cujo andamento mais lento atende à direção musical mais atenta às
nuances do que às saturações e sobreposições características da Fire Music. Vale reiterar
que Cohran se insere no seleto grupo de artistas cuja obra se fundamenta em diálogo com
outras instâncias, por vezes exteriores ao universo da arte. Esta diversidade influencia sua
música pelo caminho mais comum – o improviso, como simulacro do caos e de sua
insubmissão à formas prévias, a indicar o credo em uma indistinção entre saberes e
discursos.
Estamos falando de um parceiro de Sun Ra, às portas da eclosão do Free Jazz, da Fire
Music, do movimento pelos direitos dos negros, de Martin Luther King e Malcom X.
Faixas como “Theme” e “Dogon”, mais do que remeter a uma paisagem sonora
contaminada pela música africana, reiteram a pesquisa multifacetada de Cohran, que em
African Skies resulta em uma música delicada, que mais mobiliza atenção e a emoção do
que incendeia o ambiente. (Bernardo Oliveira)
Sidi Touré & Friends – Sahel Folk (2011; Thrill Jockey, EUA [Mali])
Nascido em 1959, em Gao, sul do Mali, Sidi Touré é um compositor, cantor e
instrumentista especializado no songhaï, uma espécie de blues malinês. Inicou sua
carreira na orquestra malinesa Songhaï Stars, colaborou com artistas como Bassekou
Kouyaté e Kassemady Diabaté e lançou seu primeiro álbum, Hoga, em 96. Sahel Folk é
seu segundo álbum, gravado com a colaboração de instrumentistas malineses. (B.O)
*#*
Sidi Touré, mestre do songhaï malinês, se junta a seus amigos Dourra Cissé (guitarra,
voz), Jambala Maiga (kutigui, violão de uma só corda), Douma Maiga (kurbu, violão de
três cordas), Jiba Touré e Yehiya Arby (ambos guitarra e voz). Sahel Folk encanta por
sua coesão, apesar de alternar sequências de imensa delicadeza, com outras mais
agitadas.
Faixas como as duas primeiras, “Bon koum” e “Adema”, e “Artiatanat” apresentam uma
vertente mais bluesy do songhaï, através de repetições melódicas e uma entonação mais
reflexiva e espaçada, que somada ao canto sinuoso de Touré, cria um atmosfera árida e,
ao mesmo tempo, atenta. “Djarii Ber” é como uma espécie de interseção entre os
momentos agitados, com seus arpejos mais velozes e repetições soltas, na qual as
imprecisões conferem mais ainda mais pujança ao conjunto.
Mas é na sobreposição conflituosa do dedilhado dos diversos instrumentos, inclusive o
kutigui e o kurbu malinês, que reside a magia do álbum. Em “Bera nay wassa”, a tensão
entre o canto parcimonioso de Touré, com as imprecisão rítmica das cordas; em “Taray
Kongo”, os ataques enérgicos das palhetas e os diversos momentos que se alternam sobre
a repetição da linha de contrabaixo. Nesses dois momentos, a música adquire um
conjunto que só encontra paralelo nas jams de Ali Farka e Toumani Diabaté.
Sahel Folk lembra Os Cinco Batutas, lembra os dois quintetos de Miles Davis, os grandes
discos do Época de Ouro, e todos os ensembles que trouxeram à baila a questão da
amizade, da afinidade, da conformidade a um propósito, mesmo que eventualmente esta
conformidade se traduza em uma sonoridade conflituosa. Equilíbrio não constitui um
bom adjetivo para determinar a beleza do disco, pelo contrário. É justamente nessa
relação desigual entre inclinações instrumentais diversas, mas que ao mesmo tempo
conseguem travar um diálogo pleno, que Sahel Folk constrói um dos mais belos diálogos
musicais dos últimos tempos. (Bernardo Oliveira)
Ciente desse desafio, o autor optou por “viralizar” faixas do álbum de forma gradual,
através de quatro belos singles, lançados entre outubro de 2010 e março deste ano. Neles,
fez questão de favorecer a experiência do ouvinte, submetendo-o pouco a pouco a uma
outra esfera de seu trabalho, mais lírica, evocativa e igualmente pessoal. Essa estratégia
demonstra que as ações de Lennox são cuidadosamente planejadas, ou pelo menos
obedecem a critérios estreitamente afinados com a dinâmica particular de seu trabalho.
Pois as novas canções, de fato, demandam um período para a digestão, e mesmo a criação
de um outro ambiente sonoro, condizente com o clima introspectivo que atravessa as
onze faixas do álbum.
De fato, quando se escuta Tomboy pela primeira, já tendo percorrido mais de cinquenta
por cento de suas canções, a audição ganha em fluidez, pois em certo sentido nos
referimos a um álbum que tem seu conceito na própria sonoridade, e não em algum tema
extramusical, ou mesmo nas letras. Tomboy requer que o ouvinte se desprenda do
aspecto onírico, imagético e memorial de Person Pitch e abrace a brisa quente e
melancólica que atravessa o álbum. Se a expressão “praiano” parece abusiva, substitua-a
pela ideia de uma inflexão mais afetiva e interiorizada, a cantar uma experiência pessoal
através de cores e sons, não de sentidos. A “família” permanece toda reunida, como na
capa de Person Pitch, mas Tomboy vocaliza os pensamentos de um daqueles jovens,
entregue às suas percepções e sentimentos.
A partir de um certo número de audições, que pode variar de ouvinte para ouvinte,
Tomboy se consolida como um conjunto coerente de canções, cada uma repleta de
detalhes e melodias que viciam, dia após dia. Dificilmente resistiremos em transformar as
onze faixas do álbum em trilha sonora constante para este e outros anos. O lirismo de
“Benfica”, a levada reggae de “Tomboy”, o experimento lírico-minimalista “Slow
Motion”, e mais: “Surfer’s Hymn”, “Last Night At The Jetty”, “Afterburner”, “Drone”,
“You Can Count on Me”… Ao contrário de Person Pitch, no qual se destacam duas ou
três faixas (“Bros”, “Good Girl/Carrots” e “Take Pills”), Tomboy é nivelado por cima.
Eis uma boa definição para esta empreitada estética: uma viagem nivelada por cima.
(Bernardo Oliveira)
O disco parte de uma concepção bem definidida, exposta pelo compositor Romulo Fróes,
que assina o press-release: “[Domenico] busca nessa antiga relação entre som e imagem,
material para compor uma trilha-sonora para um filme que ainda não existe. (…)
Domenico inverte o processo. Inventa um filme para a sua música.” Da bela faixa-título,
assinada pelo autor, à homenagem instrumental “Hugo Carvana”, é um álbum que exibe
uma paleta sonora equilibrada entre a suavidade de seu canto, arranjos econômicos e
eficazes, e a apropriação de elementos extramusicais como apitos, cordas que rangem e
“gravações de campo”.
Curioso que encontremos este “cine privê” completamente povoado por presenças
especiais, a começar pela co-produção de Moreno Veloso, pela gravação do guitarrista
Gabriel Muzak e a mixagem de Mario Caldato, que por sua vez trouxe Money Mark, “o
quarto Beastie Boy”, para tocar escaleta na lírica e impressionante “Fortaleza” – que
conta com a sonoridade agoniante de corda rangendo, simulada por uma combinação de
bateria, sax barítono e escaleta. “Receita”, parceria com Jorge Mautner, chama a atenção
pela prazerosa levada “transamba” – para usar um termo caro ao último álbum de
Caetano Veloso –, assim como a frenética “Zona Portuária”, versão da faixa homônima
composta para a trilha-sonora do espetáculo de dança Ímã, produzido pelo Grupo Corpo –
cuja letra revela um jogo divertido de palavras, divididas de acordo com o andamento da
percussão.
Duas outras são dignas de nota especial. A breve parceria com o trombonista Marlon
Sette, “Sua beleza”, composta em 3/4, cujo tom onírico se conjuga com a melodia
semelhante à trilha-sonora de seriado de ação, do tipo “Missão Impossível”. E a faixa
mais experimental, “Pedra e areia”, parceria a dez mãos com Pedro Sá, o guitarrista
Alberto Continentino, Moreno Veloso e a cantora Adriana Calcanhotto, que traz uma
saborosa levada afro, novamente marcada pelo jogo com as palavras e o ritmo.
Não me parece exagero afirmar que é um disco que espelha, simultaneamente, toda a
experiência musical do autor, filtrada pela lente da canção, mas de uma canção que não
se deixa levar pela tentação bem brasileira de amolecer a roupagem, torná-la palatável,
simplória. Antes testemunha uma maturidade concentrada, uma espontaneidade segura de
si e, sobretudo, absolutamente particular no cenário nacional. Neste sentido, Cine Privê se
apresenta como o documento mais convincente e poderoso da trajetória de Domenico,
bem como do talento de compositor e criador de sons.
Kode9 & The Spaceape – Black Sun (2011; Hyperdub, Reino Unido)
Kode9 é o pseudônimo do DJ, produtor, empresário e filósofo escocês Steve Goodman.
Junto a Digital Mystikz e Loefah, outros dois produtores pioneios do dubstep, Goodman
foi revelado pela coletânea Grime, do selo Rephlex. No mesmo ano, deu início aos
trabalhos do selo Hyperdub, adquirindo notoriedade por lançar o primeiro álbum de
Burial, em 2006. Também em 2006, junto com seu parceiro e MC Stephen Samuel
Gordon (conhecido como Spaceape ou Daddy Gee), lançou seu primeiro álbum,
Memories of the Future. Nos cinco anos seguintes, editou um volume dos DJ Kicks,
alguns singles e um livro, Sonic Warfare: Sound, Affect, and the Ecology of Fear. O
álbum ainda conta com a participação da americana Cha Cha em seis faixas. (BO)
*#*
Cinco anos depois, “Black Sun” retoma algumas premissas presentes nesse disco: a
música, ragga e dub, como matéria-prima, e o conceito, o “futuro”, como ambiente.
Portanto, não me parece estranho que Steve Goodman, conhecido como Kode9, e seu fiel
escudeiro Spaceape, tenham substituído os baixos BPMs por uma miríade percussiva
muito particular no cenário contemporâneo. Não se trata de adequação ao dubstep 2011,
mas da recuperação bem sucedida de elementos próprios ao trabalho da dupla.
***
Black Sun é mais uma pequena prova de que a arte nada tem a ver com a lamúria; antes,
ela irrompe como um problema, um deleite, um fetiche, uma obsessão. Portanto, todo o
“mal estar” é apenas parte de um truque, apenas cenário: resta, soberana, a novidade
desconcertante da música de Kode9 & The Spaceape. A topologia sonora acidentada
evoca a diversidade cultural proveniente do caldeamento racial inglês, resultando em uma
música apocalíptica e pós-diaspórica. E, no entanto, apesar de refletir sobre um contexto
tenso e injusto, este talvez seja o aspecto mais admirável em Black Sun, isto é, seu caráter
meditativo. Talvez por isso traga um gosto particular por sonoridades
“desmusicalizadas”, como recortes de guitarras carregadas de efeito e sons variados de
sintetizadores, adicionando-os sobre a base rítmica, em um procedimento inclusivo, caro
ao dub.
Percebe-se agora que as premissas de Memories of the Future não se encontram hoje tão
ultrapassadas como se poderia imaginar: Black Sun as utiliza, mas reconfigurando o
ritmo para criar mais densidade sonora e nuances climáticas, mas com um grau acima do
primeiro álbum. Caracterizado pela relação estreita entre sotaque patois de Spaceape e a
exploração de células rítmicas do ragga, Black Sun é um álbum de batucadas
contagiantes, com um forte acento experimental em cada uma das doze faixas.
Dentro desses critérios, o disco flui perfeitamente. Tem suas faixas enérgicas, como a
batida marcada no contratempo em “The Cure”, o ragga digital, parecido com um baião,
em “Black Smoke”, o acento grime de “Am I”. Repara-se também as faixas mais lentas,
que se destacam por sutis modulações da percussão em “Promises” e na introspectiva
“Otherman”. Duas faixas techno distanciam Black Sun ainda mais de Memories of the
Future: na faixa-título e na belíssima “Love is the Drug”, techno cujo suingue foi
realçado pelo posicionamento estratégico de alguns tambores e a bela voz da cantora
americana Cha Cha. Notáveis também as incursões “ambient”, como “Kryon” (com
participação de Flying Lotus) e a “Hole in the Sky”, e instrumentais interessantes como
“Green Sun”.
Rio de Janeiro, balneário cosmopolita, contradição das contradições: que outra cidade
poderia abraçar, na primeira hora, um grande nome do dubstep para, em seguida, negá-lo
até morte? A primeira aparição de Kode9 (sem Spaceape) no Brasil foi no Rio, junto a
outros nomes como Scanner e Daedelus, e já naquela época sua apresentação se
destacava pela introspecção e as vibrações sombrias. A cena era engraçada, imaginem:
umas oitenta pessoas no pilotis do Museu de Arte Moderna do Rio, sem saber exatamente
o que fazer com o andamento extremamente lento, uns batendo a cabeça, outros
marcando com o pé, outros simplesmente ouvindo. Depois disso, a cidade se fechou para
o gênero, mesmo depois da sua fragmentação e aceleração. E nada faz crer que sob a luz
deste “sol negro” algo mudará esta situação. (Bernardo Oliveira)
Alguns poderão dizer que Merzbow foi como que domado pelo instinto de produção de
O’Rourke, mas não é por aí: assim como nos volumes de Merzbient, a radicalidade aqui
reside na capacidade de mediar os volumes e fazer seus sons dialogarem. A intensidade
fica resguardada, portanto, nas modulações e diversos momentos, e não na pressão e na
saturação. Logo, não estamos diante somente de um exemplar raro ou de um momento
brilhante de improvisação contemporânea. Mas frente a um outro momento da música
barulhenta e asfixiante de Masami Akita – o que, diga-se de passagem, não é pouco.
(Bernardo Oliveira)
Our Likeness, lançado em 92, foi minha segunda experiência. Um álbum mais lírico,
próximo, por exemplo, do punk gótico de Siouxsie. Trazendo Jaki Liebezeit novamente
na bateria, o disco não constituía exatamente uma facilitação de seu trabalho, muito pelo
contrário. Mas não pude deixar de reparar a preocupação na instrumentação em favorecer
o canto e canção, do que o aspecto colaborativo e rigorosamente formal de 11 anos antes,
quando seu canto funcionava para a composição de um ponto de vista musical.
Mais tarde, escutei View, disco de 87 no qual a coisa desanda em canções mornas. E aí,
em pleno 2010, Phew nos brinda com um novo álbum, Five Finger Discount. A caçada é
dura, e o disco só aparece por aqui no início deste ano. Na lista de participações, nomes
do novo e do antigo rock experimental japonês, como Tatsuhisa Yamamoto, o guitarrista
do Most, Hisato Yamamoto, o multiinstrmentista Seiichi Yamamoto (que é um dos
membros do Boredoms, KK Null e Most), a fantástica improvisadora Eiko Ishibashi (que
gravou a pérola Slip Beneath The Distant Tree, com Tatsuya Yoshida), Jim O’Rourke,
entre outros. O que esperar?
Bem, a primeira música nos prega a peça de relembrar algo de View, talvez o aspecto
baladeiro. Chama-se “Rue Auble”, e só depois de simpatizar plenamente com o disco
encontramos sua beleza. Já a partir da faixa seguinte, “Sekai no Hatemade Tsuretette” a
boa impressão se consolida na progressão dissonante, no ritmo trôpego que aos poucos
sobe de tom até terminar em fade out. A comparação inevitável com o trabalho de
Brigitte Fontaine ocorre quando chegamos à versão irônica de “Love Me Tender” e
“Thatness and Thereness”.
Five Finger Discount é um disco difícil, sem dúvida. Ainda mais para quem tem como
parâmetro o agitado álbum de 81. A voz de Phew não é exatamente o que se considera
uma bela voz, mas ela explora outros caminhos, que não os da beleza. As
instrumentações são muito sutis, às vezes operando com pouquíssimos elementos, às
vezes explorando bem os andamentos, os climas. Mas conforme se percebe a
espontaneidade e a profunda concentração com que cada nota é executada nesse belo
trabalho, chegamos a conclusão de que estamos diante de uma autora especial, do quilate
de Kate Bush, Patti Smith, Brigitte Fontaine… (Bernardo Oliveira)
Boubacar Traoré – Mali Denhou (2011; Lusafrica/Proper, França [Mali])
A história do cantor, compositor e guitarrista malinense Boubacar Traoré começa no
início da década de 60, quando ele despontou no cenário musical de seu país com uma
mistura de ritmos tradicionais da etnia Kassonké, música árabe e blues. Amargou o
ostracismo nas décadas seguintes, mas em 1987 apareceu em um programa de TV no
Mali, causando comoção. Pouco tempo depois, com o falecimento de sua esposa, Traoré
se mudou para Paris, onde trabalhou na construção civil. Até ser redescoberto pelo selo
britânico Stern’s, que lançou Mariama, seu primeiro álbum, em 1990. Desde então,
Traoré se manteve como um dos nomes mais importante da música malinesa. Mali
Denhou é seu sétimo disco, o primeiro desde Kongo Magni, de 2005. (B.O.)
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Como evitar as analogias, como preservar a diferença desta música em relação a outras
inflexões griots, como por exemplo o songhaï de Sidi Touré, camarilhado na semana
passada? Apesar das dificuldades técnicas – por exemplo, a polissemia de palavras como
griots, kassonké e songhaï, que representam etnias e ritmos ao mesmo tempo –, paira
soberana a riqueza da mistura de Boubacar Traoré, conhecedor do blues, e habitué dos
grandes centros urbanos do Ocidente e o do Oriente.
Mali Denhou é o nome de batismo do novo trabalho deste incansável cantor, compositor
e instrumentista malinês. Seu aspecto, como no álbum abaixo, de Aaron Neville, é o de
uma música que mantém seu encanto porque permanece enraizada em práticas
relativamente ancestrais – a mais notável consistindo em inserir sutis variações sobre um
tema que se repete, pontuando as palavras sobre o eixo melódico. Mas a música de
Traoré não é meramente “tradicional”, ela se altera no tempo, se mistura na selva de
referências. Essas variações são perceptíveis, sobretudo em comparação com seu último
disco, Kongo Magni.
Cada vez mais sua música é permeada por alusões e inclusões. Guarda semelhanças
interessantíssimas com a música árabe, e também com a música arabo-andalusa – daí o
aspecto “latino” de faixas como “Dundobesse M’Bedouniato” e “Mondeou”. Se aparenta
demais com o blues, mas também com a levada sincopada do cajun de Nova Orleans, em
pérolas como “M’Badeou” e “Djougouya Niagnin”; e traz também uma percussão
sofisticada, quase melódica, que valoriza o diálogo entre as cordas balouçantes e a voz
arenosa de Traoré. Uma beleza que se traduz em parcimônia, mas também em esmero.
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Sejamos francos: a experiência política que Fela Kuti protagonizou em sua terra natal é
irredutível ao culto em torno de sua música e de sua personalidade explosiva e enérgica.
Trata-se apenas de uma ilusão ideológica, cultivada por fãs que, antes de mais nada,
idolatram a música. O mesmo ocorre com Bob Marley: o curioso que se debruça sobre as
realizações políticas de Haile Selassie, pode se surpreender, sobretudo contrastando-as
com os ideais de libertação e emancipação valorizados no seu discurso.
É preciso tomar cuidado para não confundir de forma simplória a inspiração causada pela
música e as cincunstâncias históricas e políticas que lhe dão suporte. Por outro lado, sua
audição não dispensa o arcabouço histórico de forma tão imediata. Vale lembrar, por
exemplo, que as guitarras e efeitos entre os chamados “tuaregs” podem ser explicados
pela necessidade de um povo nômade, prejudicado pela desastrosa intervenção francesa,
de transportar instrumentos mais leves e eficazes.
Dito isto, vale perguntar: como avaliar Agadez, o primeiro trabalho solo de Omara
“Bombino” Moctar, nome de destaque do contexto musical chamado “tuareg”? Segundo
consta, a terminologia correta, adotada por eles mesmos, é “kel tamasheq”, e não
“tuareg”, palavra árabe que significa “abandonado pelos deuses”… Não seria uma
incoerência analisá-lo esteticamente, deixando de lado as implicações políticas que dão
sentido à sua obra?
Agadez não é somente o terceiro ou quarto álbum “estrito sensu” deste panorama (os
primeiros são do Tinariwen), como também exprime a personalidade musical
especialíssima de Bombino. Depreende uma concepção musical específica, dando outro
sentido à sonoridade supostamente “universalizada”, projetada pela Sublime Frequencies.
Os álbuns do Tinariwen, Group Inerane, Group Doueh e de seu suposto grupo, o Group
Bombino, eram constituídos por uma série de procedimentos específicos – desde a
compilações de fitas cassetes até gravações de estúdio –, que traziam a novidade do estilo
de tocar guitarra, do ritmo sincopado e hipnótico, da semelhança com o suingue de Jimi
Hendrix e da aplicação dos efeitos – estas últimas características maliciosamente
“esquentadas” pela imprensa especializada.
Mas com as dez faixas de Agadez, algumas delas gravadas ao vivo na mesma cidade que
batiza o álbum, Bombino apresenta sua própria perspectiva musical, da forma como ele a
concebe de fato. Criada e desenvolvida por um indivíduo oriundo da história tamasheq, a
música de Bombino não é, de forma alguma, redutível a ela. Há, portanto, estilo,
tonalidades, nuances e diversidade em Agadez, presentes na guitarra repetitiva de
“Kammou Taliat”, na energia pop de “Tenere”, nos rasgos hendrixianos de “Tar Hani”.
Seu canto rouco, dobrado em estúdio, adquire um aspecto arenoso e aparentemente
vulnerável, mas que nunca se revela escasso, desértico. Bombino destila um toque de
guitarra que consegue emanar seus acordes com aspereza e limpidez. E finalmente
percebe-se a influência efetiva de uma linguagem rock, que se supunha apenas lateral.
E apesar do excesso de “fucks” e “faggots”, não se fala de outra coisa. É o hype, a moda.
Mas é preciso ir além. É preciso, inclusive, superar todo o entulho da lógica do hype para
aferir se de fato o garoto é talentoso mesmo, ou se é fogo de palha. E o fato é que já há
algum tempo o rap não ganhava um presente tão especial. Quando se imaginava que ele
seria cooptado definitivamente pelo clã “Rocawear”, pelos bad boys de plantão ou pelos
artistas bem comportados e devotados à música como Doom e Mos Def, vem esse tal
Tyler, com energia transbordante, ao lado de amigos igualmente talentoso (aguardo o
primeiro álbum de Earl Sweatshirt), criando rebu por onde passa, protagonizando uma
apresentação demente no Fallon… Será só hype? E a música?
A música, pasmem, é também ela inebriante, forte, pesada. O hype não vem somente do
barulho causado pela fofocada em torno de seu nome, mas, sobretudo, pelo frescor do
rap, feito no quarto, estiloso, lento, repetitivo, com letras agressivas até um limite
perigoso. A voz estranhamente grave de Tyler entoa faixas já clássicas como
“Sandwitches”, “Yonkers”, “Radicals”, “Bitch suck dick”, “Tron Cat”. A hostilidade em
níveis alarmantes das letras, contrasta com os arranjos, comparáveis a um território árido,
inóspito ao flow do rap. Sabemos bem que não é exatamente inédito, mas destaca-se o
talento do autor para ambientar o ouvinte em um território que se esforça por parecer
inédito. Com isso, consegue de fato criar tonalidades estranhas, reduzindo o andamento, o
número de elementos e até mesmo retirando a batida de algumas faixas, como a faixa-
título, Goblin.
Tyler The Creator não poderia ter batizado seu primeiro álbum mais apropriadamente. De
fato, ele personifica o papel do “goblin” nesse universo de atitudes e projeções
desproporcionais, aquecido pelas redes sociais. Eu também não sabia, mas recapitulando:
o goblin é um personagem mítico, ligado aos jogos de RPG, que fomentam guerras
estragam comida, etc. Um personagem do mal, sórdido, desbocado, violento,
imprevisível. Em um mundo que valoriza cada vez mais aquele que se diz “do bem”, que
vive o desequilíbrio da proto-objetivação fajuta (a moral coletiva) e da pseudo-
subjetivação radical (a moral privada), Tyler é quase um equívoco, um contratempo, um
erro de percurso. Ele coroa essa percepção em uma das melhores faixas do ano.
“Fuck your traditions, fuck your positions/Fuck your religions, fuck your
decisions/They’re not mine, you gotta let ‘em go/We can be ourselves, but you gotta let
us know/You gotta let ‘em go” (“Radicals”)
Vladislav Delay Quartet – Vladislav Delay Quartet (2011; Honest Jon’s, Reino
Unido [Finlândia])
Conhecido por projetos e pseudônimos como o Vladislav Delay, Luomo, Uusitalo e
Sistol, além de integrar o trio de Moritz Von Oswald, o finlandês Sasu Ripatti (bateria e
percussão) juntou-se a músicos de vasta experiência no universo da eletrônica e da
improvisação. Mika Vainio (eletrônicos), metade do Pan Sonic (ex-Panasonic), parceiro
de Kaijo Haino e experimentado na área do noise. Lucio Capece (clarineta baixo e sax
soprano) parceiro de Vainio, do trombonista Radu Malfatti, do guitarrista Toshimaru
Nakamura, entre outros. Derek Shirley (double bass), jovem improvisador integrante de
grupos como Monno, Coal Oven e Unununium. Gravado na Radio Yugoslavia Studios,
na Sérvia, Debut, como diz o título, é o primeiro álbum do quarteto. (BO)
*#*
As raias da improvisação parecem cada vez mais distantes de uma forma tradicional, um
eixo sonoro que forneça um norte para a sonoridade e a composição. Apesar de presente
na grande maioria das manifestações musicais populares de todos os tempos, durante o
século XX a improvisação foi explorada majoritariamente pelo jazz, o gênero que a
abraçou como método e espírito.
E, no entanto, parece que hoje a forma foi descarnada dos maneirismos jazzísticos e
incorporada a uma variedade de possibilidades, algumas beirando o inominável. Este ano,
além do segundo trabalho do Moritz Von Oswald Trio, ainda tivemos a intrigante
reformulação do Aethenor, a colaboração espetacular de Masami Akita com Jim
O’Rourke e Mats Gustafsson e este registro poderoso do quarteto de Sasu Ripatti, sob a
alcunha Vladislav Delay.
Não deixa de chamar atenção o fato de que as últimas empreitadas do músico finlandês
tenham como elemento comum o trabalho de improvisação em conjunto. Porém,
enganam-se aqueles que julgam apressadamente o Vladislav Delay Quartet à luz da
participação de seu band leader no trio de Mortitz Von Oswald. A exceção da forma
aberta, “jazzística”, com que pavimentam a composição, a sonoridade difere
radicalmente, conservando-se apenas o elemento coletivo e improvisacional.
Emerge em Debut uma concepção aberta, para além do ritmo, dos andamentos regulares
e do colorido ocasionado pela síntese de elementos acústicos e eletrônicos. Aqui, é o
noise, o barulho, o ruído, que fornece a direção. Neste percurso, sobressaem dois
ambientes sonoros, unidos pelo caráter de improvisação livre.
Em “Killing The Water Bed”, outro grande momento, este crescendo se apresenta de
forma ainda mais acentuada, visto que, no início da faixa, a combinação da levada de
prato de bateria com contrabaixo e saxofone aproxima a sonoridade consideravelmente
do jazz tradicional, para culminar com uma pletora de ruídos, com ênfase na percussão
diáfana de Ripatti.
O emprego de expressões como drone, IDM, noise, free-improv, etc, em busca de uma
orientação, permite ao ouvinte tatear o espaço sonoro. Diante de um dos grandes
exercícios de improvisação dos últimos anos, ele se encontra preso ao inominável, ao
invisível, àquilo sobre o qual nada se pode dizer sem antes fruir. O título Debut, portanto,
condiz com o conteúdo da música, pois convida o ouvinte a acompanhá-lo neste zigue-
zague de possibilidades sonoras, aparentemente sem destino. Ao final, resta um zumbido
no ouvido e uma sensação de uma experiência sonora sem precedentes. (Bernardo
Oliveira)
*#*
Filha dos conturbados anos 60, a MPB é depositária de tantos conflitos e contradições
que sua consolidação e suposta representatividade chega a causar espanto. Não é
incomum ouvirmos a confusa identificação desta sigla histórica com o amplo espectro da
música desenvolvida em terras brasileiras – pois classificar tecnobrega e guitarrada como
“MPB” é, no mínimo, redutor. E no entanto, mais estranha ainda é sua condição: apesar
de todas as vertentes e possibilidades sociais e culturais que vieram a se cristalizar por
razões que ultrapassam a questão musical, restou uma sonoridade que enfrenta seu ocaso
estético há pelo menos vinte anos. Hoje, o rótulo MPB está ligado a um regime sonoro de
influências, modelos, timbragens e instrumentos na maioria das vezes idênticos.
São raríssimos os casos nos quais não se imponham violões e percussões os mais
ordinários, geralmente embalando canções igualmente ordinárias. Mas existem também
os casos que conjugam os elementos desta sonoridade com arte e engenho, que inventam
linhas de fuga de um sistema sonoro viciado e preguiçoso. Como os primeiros discos de
Guinga, as incursões musicais de Luiz Tatit e José Miguel Wisnik, algo de João Bosco e
Luiz Melodia, algo traficado pelo rock de Los Hermanos e Do Amor… Pois bem: olhos
abertos, pois estamos diante de um desses casos.
Metá Metá constrói seu primeiro álbum a partir das ruínas de uma MPB vetusta e
aparentemente sem rumo. Tanto que não soa anacrônico, mas, à moda dos últimos discos
de Allen Toussaint e Aaron Neville, confere outras nuances a uma sonoridade desgastada.
Ecos do já citado Baden Powell dos afro-sambas, do Edu Lobo de Cantiga de Longe, do
Fino da Bossa… E, evidentemente, uma forte presença de Itamar Assumpção, Premê e
todo o contexto experimental que marca a “lira paulistana” nos últimos 30 anos. Ainda
que as vertentes tropicalistas não sejam de forma alguma perceptíveis em termos sonoros,
estão presentes no espírito desbravador do álbum. De fato, não é todo dia que ouvimos
violões preparados e bateria quebrando tudo em discos do gênero. E este é apenas um dos
diversos motivos pelos quais Metá Metá é talvez o mais surpreendente disco brasileiro do
ano. (Bernardo Oliveira)
*#*
Não há como não recuar com um certo espanto diante da introdução de Passed Me By. A
foto da capa pode não dizer muita coisa, não indica nem mesmo o autor. Mas me arrisco
na hipótese de que se trata de algo relacionado à matriz africana de toda música
eletrônica europeia, ou a um sentimento ambíguo de comunhão atávica e distanciamento,
que reforçaria a frase que batiza ironicamente o álbum. Longe de querer questionar as
implicações que um tal raciocínio pode adquirir, me pergunto se o título do disco não se
refere a algo que está explicitamente demonstrado nesta foto, que se identifica com algo
que “passa”, mas que também “atravessa”, se me permitem tamanha “literariedade”. Algo
que nos integra e constitui, mas que parece distante ao mesmo tempo, resguardado em um
continente cercado de problemas e diferenças por todos os lados. Penso que este
raciocínio deve fazer sentido para um inglês. Já se vão aos montes as denúncias quanto
aos perigos de uma “história única”, e mesmo da petrificação de matrizes culturais para
fins de representação. Mas penso que aqui, trata-se de outro caso.
Não é exagero afirmar que este gosto pela imprecisão, por uma liberdade nas modulações
rítmicas, harmônicas e melódicas e, sobretudo, pelo espaço à improvisação tomou de
forma muito particular a música eletrônica dos últimos quinze anos. Por outro lado, como
o processo acaba por definir não só o meio pelo qual a música se produz, mas o seu
próprio caráter poético – o seu “sentido” – músicos como p. ex. Wolfgang Voigt, Richard
D. James e Florian Hecker trataram de produzir a rusticidade sonora a partir dos
apetrechos eletrônicos cada vez mais permeáveis à manipulação e ao controle da
reprodução. É também evidente a contribuição dos estudos e trabalhos de música
eletrônica do próprio Schaeffer, mas também de Russolo a Stockhausen, o que confere a
esta inflexão um caráter mais desbravador do que rústico.
É talvez neste sentido que Passed Me By pode ser considerado um álbum conceitual – ora
vejam vocês. Por um lado, apresenta uma roupagem sonora absolutamente “desnivelada”,
desprovida de um equilíbrio estético mais comum, e a apresenta de forma inteligente e
coesa (até mesmo nos aspectos visuais). Por outro, se esmera em extrair desses limites
algo que não se repetirá, talhando milimetricamente cada momento do disco e fazendo
um uso ilusório da repetição. Estamos, portanto, diante de um trabalho poderoso. A
despeito de seu hermetismo básico, Passed Me By destila um resultado sonoro que,
pouco a pouco, se torna uma experiência fascinante. (Bernardo Oliveira)
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No chão sem o chão: um compositor que evoca sua “geração”, mas cujo trabalho é
irredutível a análises de conjunto e comportamentos geracionais; um cantor de voz grave
e macia que deseja provocar a discussão acerca dos destinos da canção brasileira; um
experimentador em busca de soluções desafiantes, porém assentadas na sensibilidade
popular. Se a compatibilidade entre o discurso e a produção de Romulo Fróes parece
precária, o mesmo não se pode dizer dos aspectos internos da obra. Estes indicam um
trabalho regular em alguns aspectos, descontínuo em outros, mas que sempre convidam o
ouvinte para uma avaliação de conjunto da obra.
Aqueles que, como eu, acompanham sua carreira desde o hibridismo abundante de No
Chão Sem o Chão (2009), estranham o sambista esmerado dos dois primeiros trabalhos.
Para além da entonação e da instrumentação que induziram à imagem do “sambista de
raiz”, Calado (2004) e Cão (2006) já revelavam uma acentuada sensibilidade crítica,
impressa em sambas oblíquos e peças inusitadas – por exemplo, a versão demolidora de
“Mulher sem Alma”, de Nelson Cavaquinho, violentamente entrecortada por solos de
bateria executados pelo instrumentista e songwriter Curumin.
Duas tendências se misturam nestes primeiros trabalhos. A primeira, lírica, diz respeito às
experiências com as composições, concomitante a recorrente preocupação em refletir
sobre a atualidade do cancioneiro brasileiro. Esta vertente foi reforçada pelo próprio
autor, em artigos e entrevistas dedicados a refletir sobre o contexto e sua produção. A
segunda, musical, serviu para assinalar uma posição em relação ao mesmo cenário
musical. O foco se fixou na peculiaridade das canções, enquanto pouco se falou a respeito
do trabalho propriamente musical. De nada adiantaria experimentar os limites da canção
sem conferir um aspecto sonoro condizente com a ambição da empreitada.
Porém, tomemos a faixa “Boneco de Piche” (Fróes e Nuno Ramos) como exemplo
fundamental. A começar pela composição, preenchida por desconfigurações semânticas
(“Agora é minha voz / Ele morreu por nós” ou “Grudaram um soco em mim / Como um
cara ao contrário”) e nexos estranhos entre a paisagem carioca e signos religiosos,
“Boneco de Piche” é uma faixa desconcertante. Sua forma rítmica se destaca por uma
combinação eficaz de frevo, choro e rock, executada por um trio digno de nota, formado
por Marcelo Cabral, Pedro Ito e o mesmo Guilherme Held. A colaboração fundamental
de Campos se destaca no diálogo agudíssimo entre a cuíca e o cavaquinho, acompanhado
pela guitarra sutil de Held, em um dos grandes momentos do álbum.
Um Labirinto em Cada Pé é obra de transição, promovida por um artista que retirava sua
expressão do distanciamento de quem mirava a música com “cabeça” de artista plástico.
Ainda que por um caminho sinuoso, “labiríntico”, Romulo Fróes chega ao quarto álbum
com os dois pés fincados na música. Um Labirinto em Cada Pé traz um “cantautor” mais
coeso, e talvez por isso, mais palatável. “Ninguém canta para ninguém”, anuncia a voz a
capella de Dona Inah, na faixa de abertura, “Olhos da Cara” – mais uma prodigiosa
transfiguração de um elemento oriundo do samba. Não se discute o mérito da poesia…
Mas é evidente que um autor tão interessado no poder inebriante da canção há de cantar
para alguém, ainda que não precise afrouxar sua criação para isso. (Bernardo Oliveira)
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Dentro de Unreleased? cabem alguns momentos que rememoram o tal disco do Lean
Left, talvez pelo sax barítono timbrado com o grito rouco dos anos 50, uma certa
inconsequência juvenil na condução do improviso… Mas há nas quatro faixas uma
acentuada diversificação interna, destacada por três momentos em quatro faixas. As duas
primeiras, “Are You Both Still Unreleased?” e “Please, I Am Released”, constituem
poderosos “crescendos”, justapondo a capacidade de dar textura e volume a sonoridades
convencionais – como o sax barítono, como o baixo marcado – com a bateria marcial e
implacável.
Prodígio do MPC, Smith também se mostrou plenamente capaz de criar uma sonoridade
própria, sem filiar-se a nenhuma escola ou linhagem específica. Encarnando um daqueles
muitos casos na música atual nos quais o artista opera segundo uma série de influências,
sem que se confunda com elas, o Pursuit Grooves confirmou o traço distintivo de seu
trabalho – como Blue Daisy, Actress, Ikonika, entre outros. Promovendo o encontro do
hip hop experimental norte-americano com as batidas eletrônicas oriundas do contexto
dubstep, o Pursuit Grooves excede as expectativas com sua sonoridade sensual e oblíqua.
No entanto, paga-se um preço pela distinção. Na economia dos rótulos e das “cenas”, um
artista mal posicionado – ou inclassificável – há de ser questionado pela inadequação ou
pelo reposicionamento diante de um cenário já bastante conturbado. Imaginem um disco
de Hecker ou Leyland Kirby pelo Night Slugs, selo especializado em house/UKF? Ou
ainda a estranha inclusão do Hype Williams no cast da Hyperdub? Após editar um single
digital e alguns CDr’s pelo selo What Rules Records, Vanese Smith chega ao seu quarto
lançamento, o primeiro por um selo renomado. Não vejo como determinar objetivamente
se isto influiu ou não em seu trabalho, mas é inegável que Frantically Hopeful traz uma
série de novos aspectos à sonoridade do Pursuit Grooves.
O disco começa promissor, com três faixas que prolongam admiravelmente o que já havia
impressionado em Fox Trot Mannerisms: batidas sincopadas e justapostas, baixo
sintetizado e um jogo de vozes de tirar o fôlego. Quando termina a terceira faixa “I Sink”,
chegamos à conclusão de que estamos diante de um dos grandes discos de dubstep do
ano. Porém, alguns momentos do disco resvalam em uma tentativa oportuna de criar algo
mais próximo de sonoridades familiares ao cenário. Se antes a música do Pursuit Grooves
destoava no cenário geral, com Frantically Hopefull esta distância foi diminuída. Está
mais afinada com o Brainfeeder de Flying Lotus e Samiyan. Está mais próxima do Hype
Williams, do Peaking Lights, do L.A Vampires. O que dizer da batida regular e dos
modos synthpop de “Transformation of Consciousness”? Ou da estrutura magra e
simplória de “Mars is Rising” e “Bedazzled”? Ou ainda do acento soul pop de
“Clueless”, uma saborosa (porém ordinária) releitura do trip hop, temperada pelos
timbres do dubstep.
Felizmente, quase setenta por cento do disco extrapola o alinhamento inoportuno dessas
composições. A melancolia em “Peace Talks” é digna de nota, com seu contrabaixo
errante e a voz vulnerável de Smith. Três faixas poderosas encerram o disco: a hipnótica
“Attention”; a anomalia funky house “Bailouts”; e o encerramento polirrítmico, em tom
de Nouvelle Vague, “What about?” Fica a pergunta evidente: não valeria unir as três
primeiras, as três últimas e “Peace Talks”, incrementando o êxito de Fox Trot
Mannerisms, ao invés de buscar a adequação ao contexto “tectonic” através de faixas
vazias? Essa suposição, no entanto, não retira o brilho e a intensa particularidade de
Frantically Hopeful e do trabalho de Srta. Smith. (Bernardo Oliveira)
Ricardo Villalobos & Max Loderbauer – Re: ECM (2011; ECM Records,
Alemanha)
Ricardo Villalobos nasceu em Santiago, no Chile, mas se mudou para Alemanha ainda na
infância, fugindo da ditadura de Pinochet. Produtor e DJ, é uma das figuras mais
importantes da cena techno contemporânea, explorando de forma particular os elementos
do microhouse e do minimal. Lançou cerca de cinco discos solos, e diversos EPs em
selos como Playhouse, Perlon, Sei Es Drum, entre outros. Max Loderbauer é produtor
respondável por projetos como Sun Electric e NSI, além de fazer parte do Moritz Von
Oswald Trio. Durante o Outono de 2009, no estúdio Laika em Berlim, Villalobos e
Loderbauer reinterpretaram material bruto do catálogo do selo alemão ECM (Edition of
Contemporary Music), fundado por Manfred Eicher em 1969, especializado em explorar
os limites do jazz e da música erudita. Nas palavras dos autores, Re: ECM busca criar
“estruturas sonoras” – “novas contextualizações para os espaços sonoros” criados por
músicos filiados ao selo, como Louis Sclavis, John Abercrombie, Wolfert Brederode,
Paul Giger e Christian Wallumrød. Vale notar que Eicher produziu e masterizou o álbum.
(BO)
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Como na grande maioria das vezes recusei com veemência o trabalho excessivamente
cerebral do selo alemão ECM, me flagrei meio perdido diante das inúmeras referências
trabalhadas nesta colaboração entre dois nomes relevantes da eletrônica contemporânea,
Ricardo Villalobos e Max Loderbauer. Em busca de pistas que me aliviassem a barra de
ter de percorrer o abstracionismo de Miroslav Vitous, John Abercrombie e, mais
recentemente, Christian Wallumrød Ensemble, detive-me sobre a capa verde escuro em
busca de outras pistas. Na ausência de estofo suficiente para empreender uma crítica do
ponto de vista objetivo, me refugiei justamente na abstração da qual tentava fugir.
Reparei alguns borrões ainda mais verde escuros, além do risco branco, imperfeito,
cortando o incomensurável espaço verde. Contando com a benevolência do leitor para o
delírio que se segue, tais borrões pareciam dizer: se a arte pode manifestar uma dimensão
crítica e, por outro lado, pode gerar a representação estocástica de sua existência
enquanto fenômeno estético – desdobrando-se em outras obras e comentários – eis uma
capa perfeitamente adequada para o álbum em questão. Ela indica visualmente o grau e a
natureza da particularidade com que confluíram o trabalho de Villalobos, Loderbauer e
do produtor do disco, o alemão Manfreid Eicher, fundador da ECM.
Entre tais nomes, nomes importantes da música contemporânea, há de se supor que
existam abismos, pontes, conexões imprevisíveis, afinidades eletivas, formas diversas de
criar e desenvolver procedimentos concernentes à criação musical. E, de fato, Re:ECM é
um trabalho que dificilmente seria concebido por outros personagens que não os que
estão aqui em jogo. Eicher, por motivos óbvios, por ser o mentor e timoneiro de uma
utopia jazzística que no meu entender, já rendeu seus frutos mais suculentos. Villalobos
corrobora o impressionismo minucioso da ECM, ele que timbrou o techno com sutilezas
sonoras de modo a justificar brilhantemente o rótulo “microhouse”. Loderbauer,
aparentemente como um catalisador de ideias, da mesma forma como faz no trio de
Moritz Von Oswald.
Diante da excelência do trabalho, não tive outra opção se não buscar suas fontes – que,
sim, importam. Mas vale frisar que, independente de qualquer referência, Re:ECM possui
luz própria, encerrada em uma atmosfera idiossincrática, difícil de dominar à primeira
vista. Assim, convém destacar que o disco não é exatamente um álbum de remixes.
Artistas de épocas distintas e com um aporte variado foram “recriados”, isto é:
retalhados, remixados, sampleados, “loopados”, reconstruídos, adicionados a outras
composições. Em diversos momentos, os trechos são executados em sua perfeita unidade
sonora, apenas salpicados por efeitos. Em outros, a dupla cria novas peças, absolutamente
autônomas em relação à faixa original, e incorpora seus elementos, recontextualizando-
os. Neste aspecto, temos um capítulo à parte. Pois se os limites da interpretação foram
ultrapassados pelo recorte conceitual estabelecido pelos autores, o mesmo não se pode
afirmar da sonoridade ECM. Esta se mantém preservada em seu pontilhismo cerebral,
muitas vezes árduo e trabalhoso, que define o selo em seu caráter mais profundo.
Nas 17 faixas que compõem Re:ECM, são perceptíveis e evidentes suas características
gerais. Mas percorrê-lo faixa a faixa, seguidas e repetidas vezes, mostra que nem tudo
pode ser açambarcado pela visão geral. Por sua extensão e pretensão, o disco excede o
conceito geral e chega a dialogar abertamente com a obra de Villalobos e Loderbauer.
Como em “Resole”, do CD 2, recriação de uma faixa do russo Alexander Knayfel, na
qual a sobreposição de vozes femininas cria o contraponto perfeito ao ritmo
descompassado formado por bleeps e percussões. Ou na generosidade com que retiram
John Abercrombie da pasmaceira de “Timeless” (de 1975), através dos timbres abrasivos
de “Retimeless”. Duas “recriações” (ou “recontextualização”) da belíssima “Blop”, do
Christian Wallumrød Ensemble encabeçam os dois discos: “Reblop” (do disco 1) e
“Replob” (do disco 2) absorvem o aspecto onírico da harpa barroca de Giovanna Pessi, a
primeira de forma mais propriamente jazzística – tensa e irregular –, a segunda dispondo
de camas de teclados mais duradouras e meditativas. Com o mesmo Wallmurød, a faixa
que encerra o CD 2, “Redetach”, se inscreve nos momentos em que podemos escutar o
que seria algo como o duo de Ricardo Villalobos. “Reblazhenstva”, é retirada da obra do
mesmo Knaifel (de “Blazhenstva”, 2008); espantosa e fantasmagórica recriação de
“Rekondakion”, de Arvo Pärt (de “Kondakion”, 1998); “Reemergence”, uma forma mais
robusta de interpretar a peça de Miroslav Vitous (de “Emergence”, 1986); um caso raro
em que as duas versões se equiparam, “Rensenada” recria a peça “Ensenada” (1974), o
jazz afropsicodélico composto por Bennie Maupin.
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Com a intenção de sondar os mecanismos da memória, James Leyland Kirby (ou The
Caretaker) desenvolveu um trabalho de exploração da sonoridade peculiar dos discos de
78rpm. Para tanto, reuniu todo tipo de ruído e aproveitou a diferença entre as técnicas de
gravação e prensagem, que influem sobre a sonoridade da reprodução. Percepção,
memória, neurociência e, é claro, arte, convergiram de forma rara, por obra de um
procedimento relativamente simples: a valorização da “materialidade” nas reproduções
fonográficas.
Com An Empty Bliss Beyond This World, parte desta louca empreitada se torna mais
evidente e se amplia. A manipulação dos códigos da recepção estética ou da “memória”
do gosto, corresponde a conduzir o ouvinte a uma posição incômoda em diversos
aspectos. Primeiro, evidenciando que a sonoridade é um fenômeno maior do que a
“música” – pois conforme se estabelecem novos dispositivos de gravação e reprodução, a
percepção desenvolve tipos específicos de reação, que não se definem somente a partir de
uma prática cultural totalmente fechada. Segundo, há o aspecto “técnico”: enquanto a
grande indústria e o gosto médio perseguem a lógica da alta-fidelidade, Kirby traz à baila
todo o arsenal de zumbidos e acidentes sonoros que, sob sua batuta, adquirem alto grau
de expressão. E, por fim, o aspecto “crítico”: as crenças e convicções (inclusive o
“gosto”) se assentam nas informações que já foram decodificadas, ao passo que a música
de Kirby desperta o interesse por aspectos que nem sempre levamos em consideração.
Basicamente o conceito não varia (talvez em “Pared back to the minimal”, por seu talho
mais econômico). Mas a cada faixa, uma sonoridade e um procedimento diferentes:
recorte jazzístico na síncope do piano de “Tiny gradiations of loss”, ecos sutis em
“Camaraderie at arms length”, jogos rítmicos com o estéreo em “Bedded deep in long
term memory”, loops saturados em “A relationship with the sublime”. As linhas
melódicas comoventes de faixas como “All you are going to want to do is get back there”
e “Moments of sufficient lucidity” compartilham o mesmo espaço sonoro com uma
textura estranha e delicada, composta por ruídos de estática. Em muitas das faixas o som
fica ligeiramente estridente por causa da sujeira impressa no disco, soando como
verdadeiros borrões sonoros. Esse efeito testemunha e sublinha o aspecto material da
reprodução (duplamente evocativo, tanto pela melodia nostálgica, quanto pela
representação sonora da deterioração material do objeto: o problema da “aura” se
desdobra em muitos outros…).
Mas como transformar a ironia e a paródia em música? Eis outro fator que chama a
atenção na sucessão de peças de disco: a unidade obtida a partir da mistura vertiginosa de
registros sonoros, da Library Music ao shoegaze, sem grandes sobressaltos. Calcada não
em uma estética precária, mas em uma “estética da precariedade”, o álbum se mostra
plenamente capaz de dialogar com o luxo e o lixo da indústria cultural, nivelando-os sob
a lente da ironia.
A rigor, é uma experiência controversa, que joga com os preconceitos dos ouvintes, e não
com aquilo que eles gostariam de ver confirmado. Um álbum que, apesar de toda a
badalação, desafia e fica entre o que de mais intrigante se produziu neste ano que ainda
começa.
Dito isto, cabe exclamar: quem diria que dos Estados Unidos viria uma mistura tão
instigante e particular de ambient, 2-Step, UK Garage, jazz, house, sintetizadores,
síncopes inesperadas, profusão de timbres esranhos, diálogo sutil com a música africana e
muito mais?! Em doze faixas, o produtor Drew Lustman, ou FaltyDL, destila uma
saudável inclinação de criar suas produções com sotaque diferente em relação ao legado
inglês.
Nesse sentido, podemos destacar “Open space”, talvez a faixa mais poderosa do álbum,
na qual ouvimos uma sucessão de ritmos e timbres, que perpassam alguns gêneros
eletrônicos até desembocar em uma inesperada jam afrojazzística. “The pacifist”, que
alterna um tecno agudíssismo, quase desprovido de graves, com uma batucada efusiva,
repleta de viradas e um perceptível toque latino, enquanto “Lucky Luciano” trava um
diálogo ousado com o drum’n’bass expressionista da Metalheadz.
Se “You Stand Uncertain” não é um dos mais belos discos de dubstep dos últimos anos,
por conta de sua irregularidade, ao menos comprova a excelência do trabalho de Drew
Lustman. Mas também a possibilidade de que ele indique uma forte tendência americana
deste gênero de origem eminentemente inglesa.
Objetar-me-ão que a rapaziada da Costa Oeste, como Flying Lotus e Gaslamp Killer,
representam de forma eficiente o gênero na América, enquanto FaltyDL se enquadraria
em uma tentativa de reproduzir nos EUA o que se faz na Inglaterra. Mas enquanto os
primeiros professam sua perspectiva oblíqua e valorosa do hip-hop experimental, de
inspiração “prefuseana”, o álbum e o produtor em questão enviam novas propostas a este
gênero tão impreciso quanto misterioso chamado dubstep.
Sem discordar deste veredito, ressalto que, embora o funk, de fato, seja uma referência
para toda a banda – James Brown, sobretudo – o que sobressai na música do colectivo é a
sensibilidade para mesclar funk, afrobeat, música latina e psicodelismo com o sakpata e o
sato, ritmos ligados ao culto Vodun do Benin.
Assim, qual seria a probabilidade de que “Cotonou Club” fosse ao menos um bom disco?
Entendo a desconfiança de quem tomou o poderio da Poly-Rythmo por seus lançamentos
pregressos, considerando-a uma relíquia do passado, e que esta turnê – a primeira do
grupo fora do continente africano – seria apenas uma tentativa esforçada para
homenageá-los. Entendo, mas discordo.
Tive a oportunidade de assistí-los duas vezes e pude conferir que: a) após 42 anos de
existência e mais de 500 discos, entre lançamentos e participações, ainda estão a construir
um repertório particular; b) ainda é uma das bandas mais poderosas da face da terra,
mesmo na era da música “globalizada”. O verdadeiro circo que esse sexagenários
promovem no palco pode comprovar o que estou afirmando.
Regravações como “Ne te fache pas”, “Gbeti madjro” (com a participação de Angélique
Kidjo), “Oce” (versão de “Se ba ho”, presente na coletânea “Echos Hypnotiques“), e a
dobradinha “Mariage/C’est Lui Ou C’est Moi”, com Fatoumata Diawara, demonstram
que o grupo não está para brincadeira. Embora não se observe mudanças substanciais em
relação às gravações originais, essas faixas atestam o potencial efetivo da banda, através
de execuções vibrantes e enérgicas. Mas quando voltamos a atenção para o que há de
novo no clube de Cotonou, outras portas se abrem…
O único aspecto negativo em “Cotonou Club” é a presença demasiado tímida dos ritmos
ligados ao Vodun beninense, outrora destilados em clássicos como “Se ba ho”, “Azoo de
Ma gnin kpevi”, “Gan tche kpo”, “Koutome” e “Nouessename”. Assim como a
participação do Franz Ferdinand – uma participação de fachada, para fins comerciais –
esta ausência não retira o brilho, a peculiaridade e a absoluta relevância de Cotonou Club
para a música de hoje.
Não se trata de um juízo de valor, mas de uma questão formal: com sua gramática
heterogênea e peculiar, é uma obra que demanda alguma adaptação e maleabilidade. Leva
a crer que chegamos a um momento na produção eletrônica no qual a peculiaridade
formal não corresponde necessariamente a uma sonoridade inteiriça e coerente. Talvez
em virtude do esfacelamento do álbum enquanto formato, ou do contexto que emergiu
com o dubstep, este é um trabalho irregular, mas traz algum dos momentos mais
impressionantes da música eletrônica deste ano.
Obras com essa característica “plural” podem recair no discurso multiculturalista e vazio
da world-music e perderem a sua pregnância. No entanto, vale notar que, para além do
recenseamento criativo, no qual o autor recria, faixa a faixa, as principais correntes
musicais de seu tempo – particularmente nas obras de Breakage ou FaltyDL –, o Africa
Hitech destila sua miríade sonora ressaltando tendências inusitadas, mesmo se tomarmos
como parâmetro a eletrônica atual. Além do soul e do juke americanos, ouvimos a
influência do reggae e do dub jamaicanos, do candombe uruguaio e da música africana de
forma geral.
Estamos diante de uma série de grandes singles, tais como os psíco-jukes “Do u wanna
fight” e “Out In the streets”, a batucada afro de “Spirit” e o soul futurista de “Light the
way”. Ou se preferirem, trata-se de dois álbuns: um feito de dubstep stricto sensu
(“Future Moves”, “Gangslap”, a faixa-título), outro composto por aproximações e
sínteses listadas acima. Unidos em um mesmo contexto, se afiguram como um dos
panoramas mais curiosos deste ano incrível para o dubstep.
O disco pode ser questionado, pela incoerência e eventuais deslizes em uma sonoridade
mais fácil – como em “Our luv” e no reggae easy-listening “Don’t fight It”. Da mesma
forma, pode chamar atenção pela produção hábil, que consegue lançar mão de sons
sintetizados de tuba e trombone em um juke, sem maiores sobressaltos (em “Do u wanna
fight”). O mesmo com o violãozinho convencional sobre o candombe ralentado em
“Cyclic sun”.
Porém, é muito claro que a dupla opera segundo as condições que propiciaram a
volatilidade do dubstep, transformando-o em algo que não sabemos bem como chamar.
Apesar de alguns lapsos, cumpre a tarefa que se propõe a realizar: contribuir para o
alargamento do espectro de possibilidades deste gênero que vem tomando proporções
universais.
Antes de uma opinião, esse critério permite com que não tributemos todo um contexto
rico e fragmentário exclusivamente à ponte anglo-caribenha. O ouvinte há de estranhar a
forma heterogênea de Hour Logic, presente também nos discos de Zomby, Breakage,
Clams Casino. O interesse difuso dos produtores da última década aponta uma forte
tendência da música dos anos 20.
Porém, Hour Logic não se resume a um sintoma da música atual. Dentro de sua
pronunciada diversidade, é também um EP com algumas características próprias.
Vejamos por quantas searas passeia a Srta. Halo em Hour Logic: breakbeat em “Speed of
Rain”; synthpop experimental em “Aquifer”; electro com tinturas de darkwave em
“Constant Index”; ambient estrito sensu em “Strength in Free Space”; tecno abrasivo com
sotaque de GAS (Voigt) em “Head”; e o tour de force da faixa-título, um tecno abstrato
com pausas e silêncios. Quem topasse com a diversidade de Hour Logic durante os anos
90, talvez não enxergasse mais do que uma artista perdida no labirinto dos gêneros e
ritmos.
O grande trunfo de Hour Logic, portanto, reside nesta forma resoluta, forjada entre
sonoridades palatáveis impressas em uma composição abstrata. O que, por um lado,
fortalece a sonoridade de Hour Logic em relação ao EP anterior, mas também persiste
como seu maior desafio.
Sobre a máquina: Areia
“Rio que mora no mar…”, apregoa a canção, impregnada por uma visão idílica do
balneário mais célebre do Brasil. Grosso modo, pode-se afirmar que as inflexões mais
cerebrais da música do século XX não se acomodaram à anatomia cultural do Rio de
Janeiro. Não há por aqui, como há em São Paulo ou no sul, o hábito da música
experimental, e particularmente daqueles gêneros que se sustentam sobre um paradigma
essencialmente experimental, como é o caso, por exemplo, do noise, do drone, da IDM,
da eletroacústica, etc. Não seria exagero afirmar que, por muitos anos, nomes como
Black Future, Zumbi do Mato, Chelpa Ferro e Rabotnik, sustentaram o segmento
experimental na “cidade maravilhosa”.
Nos últimos dois anos, a consolidação do Plano B, uma loja de discos com ampla
programação, revelou que, mesmo em um contexto desfavorável, floresceu pelo Rio um
interesse voltado à experimentação musical estrito sensu. Localizada na Lapa carioca,
destacou nomes como J-P Caron, Marcos Thanus, Filipe Giraknob, Lê Almeida e muitos
outros, distribuídos por diversos grupos e projetos, confirmando a consistência da cena.
Pouco depois, o estúdio de ensaio Audio Rebel passou a alugar seu espaço para festivais
de bandas alternativas, reunindo o post-rock prematuramente finado do Avec Silenzi, o
metasoft-rock do Dorgas, e o shoegaze-darkwave do Sobre a Máquina, que acaba de
lançar o EP “Areia”.
Quero dizer que, por si só, “Areia” já é um fato curioso, dado o contexto e a
predisposição dos artistas. Tanto que meu primeiro contato com o Sobre a Máquina se
deu através de um blog estrangeiro. Tratava-se de um trio carioca por trás do sombrio
“Decompor”, que se destacava pela eficácia com que construíam blocos sonoros tingidos
por um alto grau de abstração, o que levava a crer tratar-se de improviso. Neste momento,
lembravam Keiji Haino, não só pela abstração, mas também por buscarem a qualquer
custo reforçar o ambiente sombrio.
Mas agora, o Sobre a Máquina mudou a tonalidade de sua música. Nas quatro faixas de
“Areia”, Cadu T, (ex-integrante da banda Ceticências), Emygdio Costa e Ricardo
Gameiro, com a colaboração do saxofonista Alexander Zhemchuzhnikov, se avizinham
do lirismo de Fennesz e Tim Hecker. Conjugando as sonoridades mais suaves (uma linha
melódica de piano em “Barca”, uma linha de baixo em “Garça”), constróem uma
sonoridade confusa no melhor dos sentidos. De um shoegaze improvisado e sombrio, o
grupo passou a operar com ares melodiosos, mas dentro de um âmbito sonoro saturado de
pequenos sons sobrepostos: sons de vozes, percussões, sintetizadores, costurados com
agulha fina, senso de direção e, principalmente, ímpeto.
“Areia” reforça a importância do Sobre a Máquina em uma cena que ainda não pode ser
medida adequadamente com a régua da história. É preciso aguardar os próximos passos,
mas pode-se dizer, de saída, que finalmente o leque musical carioca adquiriu outras
tonalidades. Evidente que “Areia” tem algumas limitações, particularmente ligadas à
mixagem (um pouco desequilibrada em alguns momentos) e à própria condução das
faixas, que dado o caráter viajandão, demandava um desenvolvimento mais paciente. Mas
no cômputo geral, trata-se do despontar de uma banda que pode vir a criar um belo
trabalho.
Chega a surpreender a percepção de que, mesmo tendo circulado por diversas rodas da
música brasileira, Kassin manteve-se estritamente em seu território. Algumas vezes sob a
forma de um humor perturbado, outras de canções coloridas e incoerentes, aproximando-
se da ironia grotesca do Monty Python, ou das formas desconexas dos Residents e de uma
porção de artistas que assinam embaixo do rótulo non-music. Em 2005, sob a alcunha
Artificial, uma de suas manifestações menos conhecidas, criou um disco inteiro a partir
de sons de game boy.
Ao mesmo tempo, Kassin compõe canções de amor e disco music com a mesma
naturalidade com que desenvolve arranjos híbridos e elaborados, lançando mão de um
amplo espectro de referências, que vai da bossa e do sambalanço ao pop ordinário dos
anos 80. Burilando esta pletora de referências e aspectos, que podem ser colhidos em
abundância nas dez faixas de seu “primeiro” álbum solo, Sonhando Devagar, produzindo
contrastes entre uma inflexão bem-humorada e detalhes escatológicos e violentos, o autor
criou um disco saborosamente doidivanas.
A começar pela capa em 3D, cuja tipografia lembra o traço espasmódico de Alan Voss,
ilustrador recém-falecido, responsável por algumas capas d’Os Mutantes. “Sonhando
Devagar” reitera o gosto do autor por sonoridades ao mesmo tempo acessíveis e
estranhas, avizinhando-o do estilo musicalmente rico, suave e bem-humorado de João
Donato – grande compositor brasileiro que flerta abertamente com o nonsense.
A excelente “Mundo Natural”, faixa que abre o disco, se apresenta em conformidade com
todos os elementos supracitados: é nonsense, engraçada, estranha, violenta e
musicalmente ambiciosa. Através de uma letra que alterna o discurso descritivo com o
poético, Kassin apresenta o cenário selvagem no qual age como um predador, admirando
o “padrão” que as zebras levam na pele. Ou como “um tubarão pela imensidão azul” à
procura do prazer de ter focas “entre os dentes”…
“Em volta de você”, um space rock cheio de bossa, conta com uma trama de guitarras e
cítara com efeito, enquanto “Sorver-te” encerra o álbum em grande estilo. Letra e
melodia engenhosas e ligeiramente evocativas, casam perfeitamente com a síntese de
tecnobrega e synthpop dos anos 80, resultando em um aspecto propositadamente
sintético.
Boa parte do sucesso do trabalho se deve à instrumentação, executada e gravada com alto
teor de consistência técnica e musical. Sonhando Devagar conta com Alberto
Continentino no contrabaixo, Stephane San Juan na bateria, Donatinho (filho do
supracitado João Donato) nos teclados, Gabriel Muzak na guitarra, Marlon Sette no
trombone, e a participação do trompetista Rob Mazurek, um dos nomes mais importante
da cena de improvisação de Chicago, com livre trânsito no Brasil – já tocou com
Hurtmold, Maurício Takara, Rabotnik, etc.
Digo isso por que, no fim das contas, apesar de toda a carga de conceito e referências, o
barato total de Sonhando Devagar é o som. Funciona mesmo nos momentos menos
inspirados, nos quais Kassin dá vazão à sua obsessão por canções dorky – “Fora de área”
e “Potássio”, principalmente –, ou na emulação discopop infame em “Calça de Ginástica”
(“quero transar com você no banheiro dos paraplégicos”). Ou seja, não comprometem o
êxito do disco, pelo contrário. Parece que, para o autor, quanto mais contraditórias forem
suas referências, quanto mais conturbado seu âmbito criativo, quanto mais choques entre
climas e sentidos opostos, melhor.
Um motivo possível é a associação para fins de atualização. Por exemplo, quando Davis
se aproxima de Jimi Hendrix, buscando inspiração para discos como Bitches Brew e On
The Corner, ou quando Bowie explora o krautrock para fundar sua trilogia berlinense.
Por outro lado, pode soar como um exagero tosco afirmar que, em termos gerais, Bowie
“traduziu” o krautrock para o mainstream, ou que Davis adaptou o jazz para a
sensibilidade roqueira… Mas não parece absurda a hipótese de que este tipo de equívoco
serviu como um acesso, ainda que confuso e irregular, a outras possibilidades de fruição
musical. Com suas respectivas obras, Bowie e Davis introduziram o kraut e o jazz para
grandes audiências, constituindo assim o argumento “pedagógico”.
The King Of Limbs pode não ser o álbum mais impactante da obra do Radiohead, mas é
sem dúvida o mais estranho, a começar pelo curioso tratamento dado à percussão e a
elementos percussivos (mesmo as palavras são utilizadas com esse fim, como em
“Feral”). Diante deste panorama, o que se pode esperar de uma série de remixes
encomendados pela banda? Trabalhadas num plano marcadamente experimental, quais
seriam as possibilidades de reconstrução pelas mãos de uma cena eletrônica que
universalizou os processos horizontais da edição digital – isto é, processos que operam
por corte, sobreposição, texturização, repetição e demais procedimentos?
E esses remixes, sete ao todo, foram editados ao longo de pouco mais de dois meses.
Alguns se organizaram de forma contraditória, como o primeiro, com Caribou e Jacques
Greene. Outros foram mais coesos, como o último, que contou com SBTRKT, Anstam e
Jamie XX. Mas é nessa dinâmica de coesão e incoerência, revestida por uma percepção
ampla da música de hoje, que a atualidade da música do Radiohead encontra seu eixo
gravitacional.
O dubstep e o dubtechno comparecem com força total, como era de se esperar. A versão
de “Feral”, remixada por Lone, e “Give Up The Ghost”, com o desconhecido Thriller
Houseghost, se destacam. Mas a faixas mais poderosas são aquelas que apostam em uma
reinterpretação radical. Me refiro a “Little By Little”, com o Shed de René Pawlowitz; e a
desconcertante releitura de Anstam para “Separator”. A primeira recria o baião etéreo da
faixa original através de um jogo entre percussões editadas e vocais saturados de reverb.
A segunda injeta tensão na mais bela balada do disco, valendo-se igualmente de batidas
super recortadas por processos de edição.
As opções em TKOL RMX reiteram o interesse do quinteto em expandir sua música por
caminhos e gostos diferentes dos que marcaram os discos anteriores. É evidente que, em
sendo este raio de artistas amplo o suficiente para elencar sensibilidades muito diferentes
entre si, o resultado não poderia deixar de ser extremamente acidentado. Mas
“acidentado” é um adjetivo que dá conta dos muitos interesses do quinteto, o que faz de
TKOL RMX, em seu conjunto, mais do que uma compilação de remixes, mas também
uma parceria criativa ampla e bem sucedida.
Talhada a partir do Dabke, mas também do Choubi iraquiano e do canto árabe “mawal”,
Omar Soleyman traça paralelos inequívocos com a música do Atlântico Negro. Não
espero que o leitor aceite minha hipótese, só lhe peço que entenda o ponto: devidamente
assimilada, sua música pode ser situada no âmbito das recriações eletrônicas e dançantes
que definem o shangaan, a cumbia digital, o juke, o funk carioca, etc. Quando menos se
espera, passa-se a marcar os ritmos árabes com os pés e a cabeça, e até mesmo a
reproduzir em assovios, os intrincados arabescos melódicos, criados pelo multi-
instrumentista Rizan Sa’id.
A língua permanece como a única barreira “cultural” para o dabke digital, ainda que o
papel do poeta Mahmoud Harbi seja de fundamental importância para a perfomance de
Souleyman – na medida em que Harbi dita os versos no ouvido do cantor. Mas essa
barreira não compromete a energia de cada uma das apresentações contidas em Haflat
Gharbia. Se por um lado, percebe-se que o autor facilitou o diálogo com platéias
ocidentais – como na incursão techno de “Mendel”, gravada na Bélgica –, por outro,
empolga com o balanço sinuoso e contagiante de “Lansob Sherek” e “Wakhali”.
Certo é que não basta elencar as sonoridades e respectivas referências para julgar a
qualidade do trabalho, sem levar em conta, por exemplo, o caráter bricoleur da
composição. Neste sentido, eis aqui o trabalho de um autêntico “catador de latas”. Pode-
se até afirmar que não há grandes novidades, pelo menos em termos timbrísticos. Mas o
trunfo do disco reside na forma como o autor condensou algumas vertentes musicais
contemporâneas, convertendo-as em peças do seu próprio universo sonoro.
Este procedimento pode ser avaliado mais adequadamente na FACT Mix 285, já que o
autor se utiliza de faixas que todos conhecem. A oscilação dos volumes trabalha para
compor texturas, que se alternam entre as faixas e, muitas vezes, dentro delas. A mixtape
demonstra que a manipulação por compressão e aplicação de efeitos é mais do que uma
experiência, mas uma forma de expressão própria do autor. O tratamento dado ao clássico
dos Pixies, “Bone Machine”, logo no início, reitera o procedimento descrito acima. Esta
característica perpassa todas as faixas do álbum.
Como os grande álbuns de 2011, “Pinch & Shackleton” é um disco que desafia rótulos.
Em virtude de sua abordagem iconoclasta, característica que se equilibra com a
organicidade de seus timbres e texturas, “Pinch & Shackleton” é, sem dúvida, um
trabalho livre classificações, indomável e fascinante, produto da colaboração de duas
grandes consciências capazes de ampliar contextos e sonoridades supostamente
consolidados. E que se movem para além das delimitações de um tabuleiro que se
reconfigura a cada dia. Qualquer tentativa de associá-los à prisão dos gêneros vai de
encontro à originalidade de sua música.
Cada elemento soa como se tivesse passado por uma série de processos rigorosos,
elaborados segundo uma gramática irredutível a qualquer trabalho de música eletrônica
de que dispomos na praça. Como, por exemplo, os atabaques de “Levitation” (eleita para
o videoclipe), os timbres vítreos na genial “Jellybeans”, o contratempo (hi-hat) em
“Rooms Within a Room”, o loop histriônico em “Selfish Greedy Life” (“ya little greedy
life”…) e as vozes fantasmagóricas de “Boracry Drift” – entre muitos outros. A
imaginação vertiginosa de Shackleton e Pinch nos conduz por uma viagem sensorial, que
foge ao escopo das referências consolidadas e dos gêneros supostamente bem acabados
da música eletrônica.
Cozinhar um prato fora do cardápio, mesmo que isto implique em utilizar alguns
ingredientes assentados no paladar do ouvinte. Parece o lema de artistas que conferiram
graça e vigor ao ano de 2011: Moritz von Oswald, Andy Stott, Leyland Kirby, Travis
Stewart (Machinedrum), Akifumi Nakajima (Aube), patten, Florian Hecker… E, mais
uma vez, os nomes de Pinch e Shackleton figuram nessa lista, com todo os méritos.
Ekundayo: Ekundayo
Edição: Rodeadope CD
O que acontece quando um disco consegue equacionar as ideias do lendário
percussionista brasileiro Naná Vasconcelos, do músico e produtor Scotty Hard
(responsável por um dos mais impressionantes álbuns colaborativos da década passada,
Scotty Hard’s Radical Reconstructive Surgery), dos músicos Guilherme Granado e
Maurício Takara (Hurtmold, São Paulo Underground), do trumpetista Rob Mazurek (São
Paulo Underground, Chicago Undeground), e dos rappers Mike Ladd, Lurdes da Luz e
Rodrigo Brandão (Mamelo Sound System)? O octeto batizado como Ekundayo – “a
alegria que advém da tristeza”, em Iorubá – é uma dessas colaborações que se justificam
através do equilíbrio entre diversas contribuições e particularidades, sintetizando a
profusão de ideias em um todo coerente.
Em seus quarenta minutos, Ekundayo soa de forma orgânica e equilibrada, sem que um
ou outro artista se imponha. Soa, em suma, mais como produto de um trabalho de
conjunto, e não como um “projeto” abrupto e passageiro – fórmula que funciona melhor
em experimentos localizados na seara da improvisação. O motivo não guarda mistérios,
pois Takara já havia participado dos discos de Hardy e Mazurek, enquanto Brandão e
Lurdes já operam há tempos no Mamelo Sound System. Consta que, a partir de 2008,
Mazurek e Mike Ladd fizeram algumas jams com Mauricio Takara, Rodrigo Brandão e
Lurdez da Luz, e convidaram gradualmente os outros membros para integrar o time.
Resta saber se o resultado sonoro justifica tamanho equilíbrio e coesão.
Oval – OvalDNA
Edição: Shitkatapult CD
Na contramão de uma certa tendência em confeitar o aspecto icônico das décadas
passadas – à exemplo da recuperação dos sintetizadores germânicos, ou no synthpop dos
oitentas – a música de Markus Popp parece olhar exclusivamente para o futuro.
Investigando as potencialidades sonoras do CD – seja arranhando-o ou explorando os
comandos rewind e fast-forward – Popp gravou 94Diskont (1995). Pouco depois,
projetaria um aplicativo que permitiria não só manipular o resultado de sua pesquisa
timbrística, como também, ao usuário, reproduzir as técnicas empregadas no álbum.
Fazia questão de afirmar que a música que lhe interessava advinha dos procedimentos
com softwares, e não dos sintetizadores, concepção que resultou em álbuns como
Ovalprocess (2000) e Ovalcommers (2001). Após quase dez anos de silêncio, edita o
enigmático O (2010), setenta faixas trabalhadas sobre uma plataforma abastecida de sons
pré-selecionados, cujo modo de execução permitia a Popp conferir mais organicidade às
composições. Resumidamente, a música do Oval condensa no mesmo patamar o som e a
música, a técnica e a estética, o procedimento e a criação, em uma mesma perspectiva,
positiva, fulgurante e inspiradora.
Da pesquisa de Stallones e Gengras, emerge uma concepção que não pode ser
classificada exatamente como “dub” em sentido estrito – pois nem sempre a mesa de som
é utilizada como instrumento musical, se não que parte de seus efeitos são obtidos a partir
de plugins etc. Mas “Earth” e “Multiply” são, ainda assim, riddims arejados e sem pátria,
que exemplificam a forma fragmentária e colaborativa da música de hoje e dialogam com
os pressupostos desbravadores do reggae e do dub, expandindo sua paleta sonora e
estimulando as mais promissoras expectativas.
Nota-se que os altos BPMs que identificam o shangaan e o juke decorrem da necessidade
de criar uma ambiente musical favorável à dança. O mesmo ocorre com o kuduro
angolano e o “passinho” do Rio de Janeiro, na medida em que os dançarinos carecem de
uma música acelerada para executar os passos com a velocidade necessária. As respostas
para essa demanda variam, mas constitui-se um denominador comum em função do
passo, que se exprime no digitalismo rudimentar e massivo do shangaan e nos arabescos
frenéticos da percussão do juke.
Kyoka: iSH
Edição: Raster-Noton 12”, Digital
Não deixa de ser curiosa a menção, no site da Raster-Noton, de que Kyoka é a primeira
mulher a figurar no selo. Pergunto-me se isso importa, e de que forma? A música pode
desconhecer credo, raça e gênero, mas até que ponto é possível determinar o elemento
“gênero” em uma música? Diante da improbabilidade de tal empreitada, me pergunto se
há algum fundamento na expressão “música de meninos”, cuja história remonta às
minhas primeiras audições de rock progressivo (King Crimson, para ser mais exato):
diante da profusão de sons rascantes e “difíceis”, alguém teria exclamado que aquilo era
música para homens, ao passo de que os sons mais palatáveis seriam supostamente
reservados ao sexo oposto.
É claro que minha opinião a esse respeito mudou consideravelmente, sobretudo após
conhecer Ikue Mori, Yoshimi, Eliane Radigue, entre outras mulheres que se embrenham
com afinco nas sendas da experimentação sonora. Justamente o campo onde a artista e
produtora japonesa Kyoka parece se inscrever. Antes, Kyoka desenvolveu vertiginosas
colagens pop, a lembrar algo do drill’n’bass da década de 90, que resultou na série
batizada como ufunfunfufu, em 3 volumes lançados entre 2008 e 2010. Sua chegada à
Raster-Noton trouxe mudanças substanciais para o trabalho.
Produzida pelo parceiro Frank Bretschneider, Kyoka se esmera em uma concepção mais
econômica, sem abrir mão dos glitches e demais timbres de ferro velho que caracterizam
seu trabalho. Na sequência, o leitor desfaz qualquer preconceito que venha a ter, diante
de intrincadas tramas percussivas, composta por fragmentos de timbres (por isso o
aspecto de “ferro velho”) e da aplicação elegante das vozes. A ironia fica por conta do
andamento techno do remix de Atom TM para “HADue”, o único vacilo de iSH. Que seja
assinado por um homem é motivo suficiente para enterrar definitivamente qualquer
relação possível entre música e gênero.
Burial: Kindred
Edição: Hyperdub 12”, Digital
O mistério que rondava a figura enigmática de Will Bevan, mais conhecido como Burial,
era reforçado pela profunda melancolia sci-fi que emanava de suas primeiras produções.
Bevan oferecia a seus ouvintes uma sonoridade particularíssima, atrelada inevitavelmente
a uma série de gêneros e subgêneros da eletrônica inglesa dos 80 e 90. Porém, seu
trabalho se constituía basicamente a partir de dois desses gêneros: o trip hop, nas
harmonias, nas vozes fantasmagóricas, no clima soturno; e o UK Garage, na batida, ao
mesmo tempo sincopada e marcial, por vezes considerada lenta demais para as pistas de
dança.
Porém, Bevan propôs uma ciência beatmaker ainda mais complexa: que esses elementos
do trip hop e do garage fossem como que borrados uns pelos outros, a batida atravessada
pelos detritos das gravações de campo – como nos timbres férreos de “Distant Lights”, ou
nas estáticas e sons mecânicos de “You Hurt Me”. Este método conferia densidade e peso
ao seu primeiro álbum, sem prejuízo do caráter profundamente obscuro das produções.
Das nove faixas, produzidas e mixadas por Zé Rolê, dificilmente o ouvinte detecta a
passagem de uma faixa para a outra, ou mesmo reconhece a procedência de todas as
citações. Mas isso só aumenta o interesse. Pois Zé Rolê apresenta, antes de mais nada,
uma visão crítica dessa mesma “música eletrônica” que atribuem a seu trabalho. A partir
da perspectiva sonora de um jovem de Pouso Alegre, que combinou freneticamente os
insumos culturais coletados antes e depois da internet, Zé soube desenvolver uma
concepção original, que apesar de se valer de samplers e softwares, não se inscreve
necessariamente no que chamamos de “música eletrônica” – sobretudo quando buscamos
vincular seu nome a uma “cena”, ou identificá-lo a um segmento. Mal comparando, o
Psilosamples está mais próximo do estilo narrativo do The Books, do ferro velho sonoro
de James Ferraro, da ambição lúdica do Matmos, do que da chamada “música eletrônica”.
Mas basta escutar o aspecto delirante de faixas como “Ovelha Negra”, “Bom Dia Menina
Pelada!” ou “Meteorango Kid” para dissociarmos o trabalho do Psilosamples dos artistas
citados. Mental Surf certifica seu ouvinte de que Pouso Alegre deu à luz a um macunaíma
da manipulação digital, para quem a falta de um “caráter” estático (entenda-se: de um
caráter sério, rigoroso e, portanto, limitado) só rendeu bons frutos.
Dito assim, parece que estamos a falar de um som saturado, indigesto, mas o que se ouve
aqui é o inverso. A elegância faz seu papel, não só através de poucos e eficazes
elementos, mas também pela diversidade de formas. Segue-se uma profusão de faixas
fortes e vigorosas, que ressaltam a habilidade do coletivo de ser acessível (“pop”?) sem
ser simplório – o que tem se predicado equivocadamente a meros facilitadores das
“batidas críticas”, como The Weeknd e SBTRKT, por exemplo. O LHF nos traz uma
perspectiva histórica sobre a música eletrônica inglesa, mas com frescor de coisa nova,
vistosa e, sobretudo, saborosa.
Atire a primeira pedra o cidadão que jamais lidou em seu próprio país com a “questão
nacional”, perguntando-se e, eventualmente, debatendo-se com assuntos relativos aos
conflitos entre nação e cultura. Quem somos nós? Filhos da pátria, da comunidade local,
do hábito? Produto do “local” e do “global”? E o que isso significa precisamente? Por
mais que o caráter fictício dessas questões seja, forçosamente, reflexo da constituição do
estado moderno, que obteve do colonialismo europeu seu impulso propagador universal,
é inevitável a percepção de que tenha adquirido um aspecto múltiplo, moldado conforme
os mais diversos aspectos, desde conflitos territoriais até contextos econômicos, passando
por traços culturais e outros fatores.
No filme Tenda dos Milagres, Nelson Pereira dos Santos se baseou na obra de Jorge
Amado para aprofundar um tema comum no debate descrito acima: a denúncia e a crítica
do do artista e do intelectual colonizado, que ao rebaixar a cultural local em favor da
europeia, busca sua própria autoafirmação. Ao narrar a história de um alemão que chega
ao Brasil para pesquisar a vida fictícia de Pedro Archanjo, importante antropólogo e
pensador baiano, desconhecido da maioria dos brasileiros, Santos enfoca o aspecto
ridículo deste sentimento de menoridade, cujo pior efeito é a própria ignorância.
Reproduzindo-se o desejo íntimo e escancarado de ser “europeu” ou “americano”,
desconheceríamos a riqueza e a dinâmica própria dos muitos “países” (e culturas) que
habitam o Brasil.
É evidente que essa situação mudou e muito nas últimas décadas, embora perdurem
muitos de seus traços mais terríveis. Permitam-me ressaltar o estranho fato de que o
brasilianista americano Thomas Skidmore foi o primeiro a ressaltar criticamente a
questão racial durante o período que cobre a primeira metade do século passado até o
golpe militar de 1964, desavisadamente esquecida em grande parte do debate político e
cultural brasileiro. A questão racial durante o tropicalismo, também foi exclusivamente
analisada pelo professor norte-americano Christopher Dunn em seu livro “Brutalidade
Jardim: A Tropicália e o Surgimento da Contracultura Brasileira”. Por fim, diante da
decisão do Supremo Tribunal Federal em favor da adoção de cotas para negros nas
universidades brasileiras, tivemos a oportunidade de topar com opiniões convictas de que
não há absolutamente racismo por essas terras. Ainda vale o que é dito em uma canção de
Aldir Blanc, na voz de Elis Regina: “O Brasil, não conhece o Brasil…”
Este longo preâmbulo pretende identificar um problema, cujo antídoto parece se alastrar
sobre o Quilombo do Futuro de Maga Bo: a relativa inversão de uma determinada
situação cultural. Sim, é inegável que ainda padecemos de um certo prejuízo moral em
ser “colônia”, presente no discurso de uma classe média possuída por miragens do
american way of life e dos benefícios do welfare state. Mas é igualmente inegável que
esta situação vem mudando e tomando nuances imprevisíveis — e não somente pelo fato
simplório de que agora são europeus e norte-americanos os maiores interessados em
ritmos africanos e latino-americanos, mas, sobretudo, porque muitos deles são
conscienciosamente introduzidos em artes e ritos como a capoeira, o candomblé, a escola
de samba, o baile funk, a umbanda, etc. E pensar que há pouquíssimo tempo, essas
práticas eram criminalizadas e discriminadas pelos governos e elites locais… Por outro
lado, não se pode negar que entre o roqueiro que cultiva somente o gosto pela música
anglosaxã, e o funkeiro que transforma o “miami bass” em “baile funk” há no mínimo
uma semelhança: a maneira livre e selvagem, sem grandes culpas e dilemas ideológicos,
com a qual a população lida com os artefatos culturais ditos “estrangeiros”.
Quilombo do Futuro possui a característica comum a muitos dos artistas citados, qual
seja: superar tais tensões e dicotomias entre nacional e internacional, entre nacional e
popular, através de um só e único elemento: a música. Do ponto de vista da sonoridade, o
panorama é homogêneo por obra da qualidade técnica e do arrojo da concepção.
Desaparece a tensão entre digital e analógico, cada instrumento de percussão, tocado por
Maga Bo e por João Hermeto, se integra perfeitamente aos sons eletrônicos, filtros,
vozes, configurando um todo orgânico, pesado e consistente. E surgem pérolas como
“Rapinbolada”, com a participação do rapper Gaspar, “É da nossa cor”, com a
participação do Mestre Camaleão — mestre de capoeira de Maga Bo, que toca um
berimbau estridente, processado por algum plugin, “No balanço da canoa”, com
Rosângela Macedo, do grupo paulistano Paranapanema, e Marcelo Yuka, ex-O Rappa, o
maculelê do funk carioca em “Piloto de Fuga”, com Funkero e Bnegão, e “O Neguinho”,
com o rapper-funkeiro Renato Biguli… Nota para a participação do saudoso rapper de
Niterói Speed Freaks, na rapercussão de “Drobrado” e do nuyorican soul Jahdan
Blakkamoore na fanfarra desvairada de “Maga Traz a Lenha”.
Sun Araw, M. Geddes Gengras Meet The Congos: FRKWYS Vol. 9: Icon Give
Thank
Edição: RVNG Intl. CD
O leitor há-de se lembrar: ainda nos primeiros dias deste ano antecipávamos o prelúdio
para a promissora colaboração entre os norte-americanos Cameron Stallones (Mr. Sun
Araw), M. Geddes Gengras e o lendário grupo vocal jamaicano The Congos. Refiro-me
ao 12” “Multiply”/“Earth”, duas faixas exemplares de um gênero batizado pela dupla
como “outer orbit dancehall”, com a participação dos toasters jamaicanos Dayone e Early
One. Como desdobramento deste 12”, o álbum foi lançado pelo selo RVNG Intl. em
Março, como o nono volume da série FRKWYS. A série, dedicada a reunir artistas de
gerações diferentes para projetos colaborativos, já rendeu boas convergências entre
Julianna Barwick e Ikue Mori, Excepter remixado por Carter Tutti e JG Thirlwell e David
Borden com Laurel Halo, James Ferraro, entre outros. Porém, na medida em que vivemos
uma época saturada de colaborações, muitas vezes sem resultado efetivo ou razão de ser,
vale notar que estamos diante de um dos momentos musicais mais instigantes deste ano.
E não me refiro somente à seara do dub e do reggae.
Para começo de conversa, vale enaltecer a forma do trabalho, pois não basta reunir dois
grandes artistas sem intuir alguma relação de composição entre eles. Pois, neste caso, a
contribuição produziu um efeito positivo em ambas as partes, reforçando e expandindo as
características criativas dos envolvidos. De um lado, a formação original do The Congos,
com Roydel Johnson (tenor), Cedric Myton (falsete) e Watty Burnett (barítono),
acrescido por um novo membro, Kenroy Fyffe (classificado como “cosmic vocal”).
Responsáveis por um dos grandes álbuns dos anos 70, The Heart Of Congos, produzido
por Lee “Scratch” Perry, o grupo, que havia encerrado suas atividades no início da
década de 80, lançou recentemente o excelente Dub Feast, confirmando seu melhor
momento desde o retorno em meados da década de 90. De outro, Cameron Stallones e M.
Geddes Gengras, dupla de artistas norte-americanos da costa oeste, que vem se dedicando
a explorar um percurso singular, situado na encruzilhada do dub com o lo-fi e o rock
psicodélico, triscando a seara “cósmica” de Sun Ra e Acid Mothers Temple.
Acompanhados por uma equipe de filmagem encabeçada pelos cineastas Tony Lowe e
Sam Fleischner, Stallones e Gengras viajaram até St. Catherine, 45 minutos de Kingston,
para encontrar com o The Congos por dez dias, resultando na produção de Icon Give
Thank e, em paralelo, de Icon Eye, o filme.
Icon Give Thank não se resume exatamente a um prolongamento dos “riddims arejados e
sem pátria” com o qual identificamos o 12” com Dayone e Early One. A começar pelo
universo de referências, que não se restringe ao dancehall e ao dub, mas, como sugere a
introdução “New Binghi”, aposta em reinterpretações psicodélicas dos cantos religiosos
niyabinghi, marcados pelo temperamento meditativo, o andamento lento e a marcação
característica do bongô — celebrizado por Bob Marley no clássico “Rastaman Chant”, do
álbum Burnin’, de 1973. Depreende-se o ânimo contemplativo das próprias texturas
vocais reproduzidas pelo quarteto, fortemente marcadas pelo fervor dos cantos religiosos,
que tende a se reconfigurar “cosmicamente” com as guitarras e intervenções
protagonizadas por Stallones e Gengras. Como em um processo positivo e inesperado de
desenraizamento das sonoridades tradicionais, ocorre a relativa intensificação do sentido
contemplativo do canto nyabinghi e das percussões, tocadas por Roydel e Negus Johnson,
amparadas pela trama difusa de violões, sintetizadores e efeitos. O trabalho magistral de
edição e composição das bases empresta um recorte ordenado a este ambiente rico em
sonoridades, de modo a favorecer as canções, ao que tudo indica compostas em parceria:
o núcleo norte-americano encarregando-se do instrumental, enquanto os jamaicanos
elaboram os arranjos vocais e as letras. A imposibilidade de se delimitar qualquer
preeminência na contribuição dos artistas testemunha que se trata de uma interação se
não perfeita, certamente uma das mais bem sucedidas dos últimos anos. Do chamamento
sincopado de “Happy Song”, marcada pelo entrelaçamento das percussões acústicas e
digitais, até a confraternização com cara de field-recordings em “Thanks and Praise”,
somos tomados por uma beleza simultaneamente ímpar e orgânica, límpida e carregada,
que se exprime canção após canção através de momentos excepcionais, com destaque
para os tambores com efeitos em “Jungle” e “Invocation”, um convite expresso ao transe.
Mesmo para um indivíduo pouco dado a sentimentos religiosos, não há como evitar a
recepção austera e atenta de Icon Give Thank. Apesar da originalidade, sua fluência
liberadora me lembrou a revolução silenciosa que Candombless de Carlinhos Brown
protagonizou na história recente do batuque afro-brasileiro. Mas foi Amazing Grace, o
magistral álbum de convalescença de Aretha Franklin, que me ocorreu como uma
reminiscência à altura. Pois não se trata de música para ouvir com a disposição
supostamente impessoal do crítico, ou ao sabor evanescente do contexto pessoal — e,
aqui, me reservo o silêncio diante da crença religiosa, que parte de tendências particulares
e culturais. Posso dizer por mim mesmo que, da audição de Icon Give Thank, decorreu,
sobretudo, um sentimento vigoroso de alegria, louvação à vida e à força intensa que a
música exerce sobre ela.
KTL: V
Edição: Editions Mego CD, 2xLP
Para os que apreciam a música eletrônica às raias da junção aparentemente contraditória
entre o noise e a ambient, a dupla KTL, formada por Stephen O’Malley e Peter Rehberg,
representa mais do que a colaboração entre dois artistas significativos na música atual.
Reunido em 2006 para a elaboração da trilha sonora do espetáculo Kindertotenlieder,
dirigido pela artista francesa Gisèle Vienne e pelo escritor americano Dennis Cooper, o
KTL já descreve uma notável rota criativa. Antes de representar a linha de abordagem do
noise mais cerebral, ou um trabalho “em progresso”, eles oferecem uma obra viva,
permeada pela contribuição dos trabalhos que desenvolvem em paralelo, sejam através de
instalações, do teatro ou de seus respectivos projetos musicais. Tal diversidade se refletiu
de modo particularmente surpreendente no resultado final deste álbum, batizado
simplesmente como V — que além de contar com arranjo para orquestra de Jóhann
Jóhannsson, executado pela Filarmônica da Cidade de Praga, foi gravado em estúdios
tradicionalmente ligados à música eletrônica europeia, tais como o EMS, em Estocolmo e
o Meccas GRM, em Paris.
Quem esperava alguma das cinco faixas de V na apresentação do KTL no Sónar São
Paulo deu de encontro com um monumental crescendo sonoro, cujos pontos altos foram
precisamente a transcorrência metódica da improvisação e o epílogo devastador. Em
termos de instrumentação, o caráter estratégico se confirmou, pois tal como no Sunn O))),
O’Malley é ladeado por quatro ou cinco pilhas de amplificadores, —que no ambiente
ideológico do metal remete simplesmente à “potência sonora”. Mas o procedimento se
mostra mais sofisticado à medida em que o guitarrista constrói a obra camada por
camada, enviando acordes e notas emitidos pela guitarra para cada um dos
amplificadores. Do nevoeiro de guitarras sobrepostas, minuciosamente elaborado por
O’Malley, emerge o condutor sonoro eficaz de uma experiência musical absolutamente
invulgar.
Assim também o indica a primeira música do disco, “Phil 1”, um drone fantasmagórico
preenchido pela miríade de ruídos produzidos pelos sintetizadores (modular synthesiser,
vale lembrar) de Peter Rehberg —sublinho que, por trás da descontinuidade destes ruídos
manifesta-se um inegável aspecto rítmico, que se repetirá ao final de “Tony”, a única
faixa que conta com o contrabaixo de O’Malley. Esta, por sua vez, mantém uma relação
curiosa com “Study A”, elaborada unicamente a partir da utilização de dois
computadores. Ambas apostam em uma reinterpretação das longas texturas monofônicas
que caracterizavam os primeiros trabalhos do KTL. Contudo, as peças se distinguem pelo
tratamento dispensado às variações em relação ao centro harmônico: se em “Study A” a
harmonia recorre às notas de forma aleatória, reproduzindo modulações dissonantes,
“Tony” trabalha com intervalos mais próximos ao investir na diferenciação pelo timbre,
transitando alternadamente de uma sonoridade límpida à estridência.
Nas duas últimas faixas, porém, a dialética do KTL pende sua balança para um terreno
que, se não pode ser considerado exatamente inexplorado, ao menos aponta para um
outro nível de experimentação. Como na faixa que encerra o disco, intitulada “Last
Spring: A Prequel”, na qual o ator e marionetista Jonathan Capdevielle, que já havia
participado do terceiro álbum do KTL, interpreta as palavras de Dennis Cooper para a
instalação homônima de Gisèle Vienne. Mais do que mero adereço para a dramaturgia
psico-escatológica de Cooper, O’Malley e Rehberg imprimem os motivos sonoros
precisos para ressaltar o clima aterrador das palavras sussurradas por Capdevielle — com
destaque para a performance de O’Malley com o microfone de contato. Mas é na
participação do compositor e produtor islandês Jóhann Jóhannsson na apocalíptica “Phil
2” que reside o ponto alto do álbum. Jóhannsson compôs a orquestração da faixa e
convocou a Filarmônica da Cidade de Praga, conduzida por Richard Hein, para executá-
la. Uma experiência arrebatadora, de tal forma que não seria exagero afirmar que se trata
da faixa mais elaborada e impressionante da dupla até então. A polifonia indisciplinada
na sequência em que soam as trombetas (lá pelos 9 minutos), contrasta com a
simplicidade da melodia em loop, que atravessa impassível os quinze minutos da faixa. O
resultado não se pode exprimir em palavras, e reivindica a atenção absoluta do ouvinte do
início ao fim.
Lançado em abril deste ano, este autêntico tour de force ocupa um CD inteiro, compondo
uma caixa suntuosa que ainda conta com The Drawbar Organ, trilogia de EP’s de 12” e
um livreto ilustrado pelas formas espasmódicas criadas pelo inglês Zeke Clough. Music
for the Quiet Hour remete às noções de “viagem”, “deslocamento”, seja geográfico, seja
mental, mas tambem deriva da parceria com as palavras e a voz monocórdia de Tenfold
(que já havia participado de “Death is Not Final”) e a noção de “paisagem sonora”, que
atinge um outro patamar nesta peça. Adapatado às longas durações, Shackleton desdobra
vertiginosamente sua paleta de sons em uma imensidão de artifícios, demonstrando
fôlego e engenho para experimentar em cada uma das “danças” com uma imensa
variedade de timbres, texturas, climas, gêneros e demais dispositivos — muitos deles
inéditos em sua obra, a exemplo da chiadeira noise que toma a segunda parte lá pelos
cinco minutos. Não há dúvida de que Shackleton elaborou esta que pode ser considerada
sua obra-prima a partir da experiência de Devon, desta vez convidando o ouvinte a repor
mentalmente a motivação visual propiciada pela viagem ferroviária.
Composta em cinco movimentos, Music for the Quiet Hour organiza sua estrutura de
forma semelhante a de uma suíte clássica, com quatro movimentos e uma introdução,
cada uma trazendo uma série mudanças e remissões internas — quando, por exemplo,
alguma melodia faz intercâmbio entre as diversas partes, como a que é executada com
algo semelhante a uma “buzina de bicicleta” na parte dois e repetida na parte três. Como
declarou em entrevista recente, Shackleton não usa patterns eletrônicos e escreve cada
uma das seções da composição no computador, fator que incide diretamente sobre a
complexidade da beats, texturas e tramas percussivas. É possível listar uma infinidade de
timbres que se entrelaçam nos cinco movimentos, desde flautas andinas, tubos percutidos,
sons naturais modificados eletronicamente (ondas do mar, tempestades, avalanches,
pássaros), sons digitais e analógicos com as mais diversas características, orgânicos e
inorgânicos, pianos, teclados, vozes alteradas e sequenciadas, efeitos os mais diversos —
detectei até o som de uma tevê sintonizando. Há, portanto, mais do que um virtuosismo,
mas um movimento criativo capaz de explorar inesgotavelmente seu próprio repertório e,
mais que isso, de organizá-lo em pequenas composições coerentes e articuladas entre si.
Como por exemplo, nos primeiros minutos da quarta parte, a maior de todas, quando
Shackleton confere ritmo às sílabas emitidas pela voz que repete o mantra metafísico “It
is”. E como explicar/nomear/descrever em palavras a síntese de voz, cítara e cello que
descreve a melodia que finaliza a parte quatro?
Em 2004, após mudar para o nome para Carter Tutti, a dupla lançou Cabal, um disco que
fundia o que havia de mais introspectivo no aspecto pop com o background experimental,
desenvolvendo uma sonoridade voltada para melodias tristonhas e climas mais sombrios.
E, ainda assim, percebe-se nesta segunda fase a mesma inclinação a criar uma harmonia
entre sons maquínicos e sons tradicionalmente musicais, como rezava a profissão de fé do
Throbbing Gristle. Esta característica sobressai em Transverse, colaboração da dupla com
Nik Colk Void, guitarrista e cantor da banda de pós-industrial (sic) Factory Floor.
Lançado em março deste ano, Transverse representa mais um projeto bem sucedido,
voltado para a improvisação com os sintetizadores e máquinas afins. Nas quatro faixas
gravadas em Londres no Short Circuit Festival em maio de 2011, todo o lado pop —
mesmo o “pop maduro” — foi extraído em favor das nuances e detalhes decorrentes da
interlocução entre máquinas e cérebros. Batizadas com a letra V e um número
identificador, cada composição é resultado de extenso improviso que parte do andamento
meio techno, meio ska, atribuído à Chris Carter, dos sons de guitarra, samplers e
sintetizadores destilados por Void e da voz sempre etérea de Cosey Fanni Tutti. O
processo é, se me permitem, “dubístico”, mas vale destacar esta referência nos graves em
“V3” (Andy Stott meets Markus Popp?) e na versão em estúdio de “V4”— que permite
assimilar com mais nitidez este panorama dosadamente poluído.
Talvez por conta da intensa atividade no universo das artes plásticas, através de
instalações e happenings, a música de Chris, Carter e Void flui na duração com
naturalidade, mesmo repleta de intervenções barulhentas, descompassadas e, no entanto,
perceptivelmente manipuladas. Neste percurso, desponta uma torrente de sons, mas
organizadas sobre uma mesma planície sonora, um mesmo plano conceitual: sugerir a
interação efetiva entre o cérebro e a máquina. De forma que, diante de um projeto
deliberadamente sinestésico, não há muito o que observar: a música do trio convida o
ouvinte a deslizar com (e sobre) o som — se possível com um bom par de fones de
ouvido.
E são outros por conta, sobretudo, de uma modficação considerável na escalação dos
músicos, com o acréscimo de três reforços: além do trumpete de Studnitzky, Jonas
Schoen no saxofone, clarinete baixo e flauta, Marc Muellbauer no baixo (que já havia
participado em 2010 de “Restructure 2”) e os efeitos de Tobias Freund, que também
desempenhou a tarefa de gravar e mixar o disco. Completando a “orquestra”, a percussão
(ou os “objetos de outro mundo”) de Sasu Ripatti, o sintetizador de Max Loderbauer e o
piano elétrico de Oswald. A tarefa, determinada pelo timoneiro Oswald, é a mesma dos
álbuns anteriores, qual seja, improvisar de forma “jazzística” não apenas com melodias,
harmonias e ritmos, mas também com frequências, volumes, samplers e o que mais
estiver ao alcance dos músicos.
Como notei acima, esta liberdade não se confunde com falta de critério. Ao contrário,
parece redobrá-los, como se pode apreciar nas intervenções em “Jam”. No fone se
percebe melhor o engenho secreto com que Moritz e Schoen distribuem espacialmente
esses sons, criando articulações que escapam à audição direta, nas caixas de som. Por
outro lado, o que se ouve à primeira vista é o entrelaçamento inteligente de sintetizadores,
glitches, percussões, melodias, etc, executadas por um trumpete longínquo, apresentados
em diversos volumes e intensidades. “Jam” culmina nos gemidos de roldana e no ruído
silencioso de alguma máquina em funcionamento, até penetrar pela faixa seguinte, “Dark,
doando-lhe a mesma compleição sonora. Mas desta vez, o ritmo vem do reggae e uma
sonoridade densa preenche o ambiente, com a inclusão de percussões pontuais,
sintetizadores ostensivos e algo como uma estação de rádio em baixo volume, no canal
esquerdo. É de longe a faixa mais viajante (e “canábica”) do trabalho, a lembrar o
pioneirismo do Rhythm & Sound.
Representando a ala Basic Channell (!), “Club” assume uma roupagem techno, e, mais
uma vez, aposta na dinâmica de inclusão que caracteriza o trabalho do trio, com destaque
para a balbúrdia promovida por algo como uma percussão de vidro ou louça. Mas o
melhor do disco ainda está por vir. Interpretando com sequenciadores a batida do
lenzenko, tambor utilizado pelos pigmeus Aka em seu canto ao mesmo tempo polifônico
e minimalista, a base rítmica de “Yangissa” soa de maneira ligeiramente “amontoada”,
mas se casa perfeitamente com a placidez do naipe de metais, que aludem curiosamente
ao clássico “Milestones”. Pode-se inscrever a faixa na vertente que vem aproximando
música eletrônica e ritmos africanos (com Falty DL e Mark Ernestus, por exemplo), mas
é impossível não notar a reviravolta aos dez minutos, a partir da qual “Yangissa” se torna
uma espécie suave de industrial. Eis, inclusive, uma boa fórmula para o trabalho deste
trio, que chega ao quarto disco queimando lenha: industrial suave, música de máquinas
interpretada por corações quentes.
No caso dos Dirty Projectors, esta tensão se apresenta de modo igualmente evidente,
todavia amparada pela visão particular do cabeça do grupo, Dave Longstreth. “Can it ask
a question? Can it sing a melody? Can it be interpreted?”, perguntas ensaiadas pela
canção “Cannibal Resource”, presente no álbum anterior do grupo, Bitte Orca, delimitam
a seguinte situação: são seus modos flutuantes como compositor, instrumentista e
arranjador, suspensos entre a canção e a experimentação, que emprestam vigor e surpresa
ao trabalho do grupo.
Não que Swing Lo Magellan seja o disco mais arriscado do Dirty Projectors — Rise
Above e Bitte Orca soam bem mais esquisitos e impactantes, seja pelos devaneios
hiperativos dos arranjos, seja pela poética bizarra destilada nas palavras cuidadosamente
escolhidas por Longstreth. Que elemento é, então, responsável pela graça irresistível de
Swing Lo Magellan? Como afirmei acima, dificilmente se pode sustentar seu valor sobre
a relação entre canção e arranjo, ainda mais nos termos de um suposto caráter
comunitário e palatável da primeira, em oposição às possíveis dificuldades do segundo.
Então como abordar a canção simultaneamente universal e particular de Longstreth se
não enquanto desenvolvimento de uma abordagem que não elide possíveis disrupções
entre forma e conteúdo, abraçando-os incessantemente enquanto conflito?
Deste acolhimento deve sobressair não as dúvidas cínicas de “Cannibal Resource”, mas
uma resposta contraditória, amplamente situada no campo da canção popular e, portanto,
permeável às mais diversas possibilidades: “There was a single one/Then there were
ten/When ten made a hundred/And a hundred million…”, ele canta em “Offspring are
blank”, faixa que abre o disco. A partir de então, instaura-se um “vale-tudo”
minuciosamente dosado: a “zona de conforto”, como se costuma dizer, é estabelecida de
forma instável, ora contemplando a referência direta — como na pegada Simon &
Garfunkel da faixa título, ou nas fraturas harmônicas de “Maybe That Was It”, a remeter
ao grande melodista que é Robert Wyatt —, ora conduzindo o ouvinte por uma estrada
sinuosa, que desemboca na orquestração súbita em “Dance For You” ou no desenho
rítmico acavalado de “Just for Chervon”. Vale notar que ambas contam com texturas
percussivas produzidas com bateria eletrônica e palmas, presentes também no folk-soul
“Unto Caesar”.
Muitos entoarão os belos versos de “About to Die” (How could I hope to seize the tablet
of values and redact it?/Foolish I know but I’m about to die”) e “Impregnable Question”
(“It would help to seek/Comfort in destiny (…) I need you/And you’re always on my
mind”) como a manifestação mais evidente da canção pop, permeada contudo por uma
energia que não é e nem pode ser “retrô”, porque é, antes de mais nada, manifestação
vital e presente. Quanto a isso não restam dúvidas, sobretudo quando chegamos ao fim do
disco e topamos com alguns dos versos mais inspirados de Longstreth, entoados com um
indefectível sotaque dos anos 50, a lembrar Cash e Orbinson:
Ainda em relação a R.I.P., nota-se que as texturas são compostas por sons mais fortes e
expressivos, enquanto as estruturas de composição dialogam diretamente com a música
eletrônica orientada para a pista. Estamos na seara das “batidas críticas”, mas a palavra
“crítica” neste sentido diz respeito ao caráter criativo da desconstrução. Assim, Classical
Curves trata de se estabelecer sobre a saudável deglutição do house e do garage, como se
pode perceber em músicas como “Club Thanz”, “The Courts” e as duas partes de “Hyatt
Park Nights”. De um lado, uma estrutura mais cerebral; de outro, sons mais palatáveis,
identificados com o house e o techno. O que faz de Classical Curves um disco
sensacional é que se por um lado, os sons são aparentemente conhecidos, o mesmo não se
pode dizer da forma inspirada das composições.
Duas esferas aparentemente inconciliáveis, mas que compõe a visão singular (e irônica)
de Latham. Ironia que, novame nte, de mãos dadas com a ambiguidade, nos leva a
considerar dicotomias como dançante/experimental, orgânico/sintético, além de
questionar a forma da composição na música eletrônica. Como a frase que dá título a uma
de suas faixas mais impactantes, trata-se de fornecer uma resposta, ainda que
saborosamente provisória, à seguinte pergunta: “How We Relate to the Body”? Se
depender do Jam City e de Classical Curves, a resposta fica a meio palmo entre a dança e
o pensamento.
Lembra-se de Horace Andy nas torções de “‘Bout The Shoes”, que conta com a bela voz
do desconhecido Boston Fielder, mas não se pode afirmar que se trata exatamente de uma
referência, dado alto grau de manipulação dos timbres e da composição dos beats.
“Rhymin’ Slang”, “Dawg Friendly”, “Retarded Fren” (que retoma no final o tema de
“Rhymin’ Slang”) e a infame “Wash your hands” marcam presença, mas é em
“Banished” que o JJ Doom diz a que veio: levada rock’n’roll abafada pelo suingue
arrastado, o beat pontuado por um snare drum que mais parece um molho de chaves; a
linha de baixo marcial marca no tempo forte, enquanto Doom destila todo o poder
hipertextual de seus versos, justapondo lirismo, comentário político e observações
jocosas:
O que me parece mais atraente em Room(s), seu primeiro lançamento pelo selo inglês
Planet Mu, é a habilidade de Stewart em elaborar as batidas e os grooves com suingue
matador. E, precisamente, o que é o suingue (ou, em bom português, “o balanço”) em
música? Nada me parece mais evidente de que a síncope fornece a estrutura rítmica
básica de qualquer suingue. A síncope é que aciona o dispositivo do corpo, convidando
para a dança. Aliando vocais e harmonias soul em R&B aos insumos da eletrônica
inglesa, particularmente do dubstep, Stewart elaborou um disco dançante e arrojado,
capaz sustentar uma festa inteira.
Lembremos que um dos argumentos centrais dos detratores da música eletrônica era que,
além de tirar o emprego dos músicos, as máquinas seriam responsávei por uma música
fria, matermaticamente calculada, incapaz de reproduzir o metrônomo natural dos
instrumentistas. Ocorre que com o advento do MPC e dos equipamentos que funcionam
através de “pads” sensíveis, os músicos são convidados a batucar no aparelho, tal como
se estivessem tocando sobre um tambor. Um bom exemplo desta tendência são os
funkeiros Sany Pitbul e DJ Cabide, que batuca sobre os MPC, mas dentro do estúdio essa
prática também faz a diferença.
Enquanto Andy Stott, com o excepcional Passed Me By, borrou os limites do compasso,
aproveitando-se de timbres saturados, Stewart o esquadrinhou de forma a obter um
andamento mais veloz, frenético. O resultado lembra às vezes o drum’n’bass, pelos altos
BPMs, mas é perceptível a influência do UK Garage e do dubstep, sobretudo em relação
à harmonia. Em uma cena infestada de artistas que se autoproclamam representantes da
“nova” soul music e do “novo” R&B, eis um álbum que traz algo de realmente novo para
este contexto.
Por seu turno, Friedl já gravou alguns álbuns como intérprete, e suas opções também não
deixam dúvida. Além dos discos de improvisação, com parceiros como Bernhard Günter,
Michael Vorfeld e Elliott Sharp, e um tributo à obra do compositor greco-romeno Iannis
Xenakis, com a participação do Zeitkratzer, Friedl lança Inside Piano, por incrível que
pareça, seu primeiro trabalho realmente solo. O músico alemão desenvolveu uma
abordagem própria do “Piano preparado”, técnica celebrizada pelo compositor americano
John Cage, que consiste em utilizar diversos objetos (vidro, pedra, molas, parafusos, fios,
etc) sobre as cordas do piano. Porém, sua pesquisa resultou em uma gama sonora
peculiar, garantindo o interesse durante mais de duas horas de duração.
Stephen O’Malley & Steve Noble – St. Francis Duo (2012; Bo’Weavil, Reino Unido
[EUA])
A consolidação de Stephen O’Malley como um dos artistas decisivos deste ano não
decorre somente dos três grandes lançamentos que ele protagonizou até então, a saber: V,
o último do KTL; Nazoranai, com Keiji Haino e Oren Ambarchi, ainda no prelo; e este
acachapante St. Francis Duo, lançado em abril deste ano pelo selo Bo’Weavil. Quem
esteve mês passado no concerto fenomenal que o KTL fez no Sónar São Paulo, há de
concordar que foi um dos melhores momentos do festival, e, com certeza, um dos mais
impressionantes realizados no Brasil este ano. À primeira vista, é comum reconhecer no
trabalho de O’Malley apenas seu traço aparente, qual seja, o poderio sônico e os altos
volumes. Contudo, sua performance serviu para mostrar que por trás da névoa barulhenta
e sombria, revelam-se artifícios e procedimentos técnicos que, por fim, favorecem a
construção de um ambiente preeminentemente catártico — como se pode conferir de
forma mais completa através do Sunn O))).
Como estamos diante de duas sessões distintas, uma comparação do ponto de vista da
estrutura me parece inútil, já que esta se encontra submetida à dinâmica da improvisação,
mas vale destacar o ímpeto e a inspiração. Neste caso, opto pelo segundo improviso em
ambos os dias. No “Side B” ressalto tanto o pulso firme com o qual a dupla conduz a
instrumentação na seara dos baixos volumes — aproximadamente dos quatro minutos até
por volta do décimo primeiro —, como também pela admirável opção timbrística de
O’Malley, que usou a guitarra sem distorção na maioria do tempo, explorando acordes
graves e encorpados. No segundo dia, que em termos gerais me soou melhor sob os
aspectos técnicos e criativos, o “Side D” traz uma improvisação descontínua, repleta de
meandros e surpresas até mesmo em seus momentos mais indigestos — como se pode
conferir a partir do sexto minuto, em meio aos escombros da batalha entre os pratos da
bateria e os ruídos abstratos da guitarra distorcida. Este aspecto se deve não somente à
maior variação na guitarra de O'Malley, mas em uma atitude rítimica mais agressiva de
Noble, cujo desenvolvimento culmina na catarse que anuncia o fim do disco.
Mas em que consiste o brilhantismo deste trabalho? Ora, logo nos primeiros segundos da
faixa intitulada simplesmente como “Side A”, o indício claro de uma tensão que irá
percorrer toda a sua duração: ao invés da habitual massaroca densa e compacta, a
alternância de climas, texturas e diálogos entre os dois instrumentistas. Porém, o
entrosamento se dá mais pela diferenciação do que pela afinidade do método. Enquanto
Noble busca a diversidade de timbres à moda de Derek Bailey, explorando seu
instrumentos para além das convenções —usando seus tambores como poucos, mas
também batendo nas ferragens, jogando os pratos uns contras os outros, roçando as peles
e os pratos com baquetas de madeira, feltro, e até de ferro! —, O’Malley desempenha o
papel do construtor paciente, explorando as repetições e circunscrevendo um território
harmônico consistente de onde retira suas intervenções. E, no entanto, há que se ressaltar
a riqueza do diálogo, pois se a diversidade de Noble indica o caminho, O’Malley dispõe a
todo instante de argumentos eficazes para segui-lo. Denso ou rebuscado, noisy ou
silencioso, St. Francis Duo é, no mínimo, o valioso registro desta relação de
complementaridade que percorre todo o disco.
Vendidos e pirateados a peso de ouro mundo afora, os chamados “ugly edits” constituem
um capítulo à parte nesta história. Primeiramente, pelo sopro de informalidade: cada um
dos escassos e disputadíssimo exemplares vinham assinados pelas mãos do próprio
Parrish, o que aumentava a aura do objeto. Em cada um deles, intervenções estético-
cirúrgicas sobre clássicos assinados por Jill Scott, Sylvester, James Brown, Harold
Melvin & The Bluenotes, Freddie Hubbard, Etta James, entre outros. Compilados,
remixados e editados em CD, através do selo homônimo pelo qual lançou os vinis
durante oito anos, Ugly Edits atesta a peculiaridade do trabalho deste que é um dos
produtores musicais mais importantes dos últimos 20 anos.
Espero que o leitor não tome a expressão estético-cirúrgica como um artifício retórico.
Pois me pareceu a metáfora perfeita para o procedimento utilizado por Parrish.
Primeiramente, ele afirma que a palavra “ugly” (feio em inglês) significa que os “ugly
edits” não serão gravados em alta fidelidade, não serão cortados com precisão, muito
menos serão alinhados no 4/4 característico da vertente funk-soul-disco. Nas palavras do
autor, trata-se uma reinterpretação, cujo método consiste em “pegar o disco, gravá-lo,
equalizá-lo, cortar as partes e inseri-las no Akai MPC 2000.” E ele prossegue, elucidando
seu método com a clarividência e a simplicidade de um mestre: “tenho toda a canção,
quebrada e distribuída em sessões sobre os pads, e simplesmente aciono todos os trechos
em conjunto, ao mesmo tempo.”
Como se cada uma dessas faixas fosse um cadáver, e com seu bisturi Parrish produzisse
intervenções no corpo da obra, esquartejando seus membros para dar vida a outra
composição. Sim, Parrish promove a “frankensteinização” de clássicos da disco music,
equilibrando-se elegantemente entre a referência e a recriação, mantendo a faixa por
longo tempo em sua integridade estrutural, tal como a dupla Loderbauer/Villalobos.
Através de Ugly Edits tomamos contato, não mais com as faixas avulsas que volta e meia
apareciam através de blogs e redes P2P, mas com um corpus inteiriço, conceitualmente
forte o suficiente para sustentar as duas horas e quarenta de audição. E não são poucos os
momentos que compensam tamanha dedicação. A começar pelas repetições obsessivas no
final da alegre “Love I Lost”, a recomposição com toques ambient em “Slowly Surely”, a
sequenciação de texturas rítmicas do clássico “Got a Match”, os minutos finais de “Little
Flower” e “Slick”. Destaque também para a orgia rítmica de “Shave Mister” e a
estranhíssima versão para o funkão “Never Seen a Tree” – notem no início como Parrish
se utiliza das estáticas do vinil com intenções "percussivas"...
Bad Trip Simulator #1, terceiro álbum do grupo, é menos explícito que os primeiros, mas
confirma o interesse do Satanique em volatilizar os clichês da música instrumental,
particularmente aquela que se dedica aos gêneros nacionais. Jogando com seus limites
timbrísticos e formais, vai por um caminho diferente de outros grupos instrumentais
brasileiros da atualidade, como o São Paulo Underground, o Chinese Cookie Poets e o
Burro Morto. Estes abraçam prontamente a influência do rock, do noise, do free-improv
americano e inglês, enquanto o Satanique opera a partir do esfacelamento das células
rítmicas do samba, dos ritmos regionais e da bossa-jazz. Sua música, portanto, vai de
encontro amiúde com o legado da música brasileira instrumental, na intenção de
desembaraçá-la dos clichês e armadilhas em que ela mesma se colocou.
Para tanto, o grupo aposta na descontinuidade das composições e arranjos, no excesso
absurdo de convenções e, sobretudo, na experimentação com os timbres, obtida muitas
vezes pela captação das partes incomuns dos intrumentos – nesse sentido, reparem
principalmente na intrigante “We Have Obitum”. O caráter fragmentário da música se
exprime na sucessão de variações em “SPLATTER GORE FINESSE”, nas texturas
sinistras de “E.F.M-M in concert”, no suingue interrompido de “Afro-Sinistro”, nas cinco
badtriptronics – troça com as frippertronics de Robert Fripp –, e na concentração do
arranjo de “Banzo Bonanza”. Uma sucessão de faixas que, goste-se ou não, destoa de
tudo o que se faz em música instrumental hoje no Brasil.
Desta vez, porém, uma tonalidade mais viva percorre todo o trabalho, devido à
valorização de temas e melodia – como em “–” e na maior faixa do disco, “Diabolyn
(original remix)”. Em outros momentos, o Satanique deixa transparecer uma frieza na
execução e na articulação dos diversos temas – ideia com a qual não concordo
propriamente, mas vá lá, estamos falando de instrumentistas virtuosos... Ora, nota-se
claramente que a condução impassível das faixas justifica-se, pois opera em favor da
“profissão de fé” do grupo: não permitir, nem sequer por um minuto, que o ouvinte se
acomode diante da música.
1.
Parece consensual a percepção de que algumas obras e artistas demandam um tempo
determinado para germinar na consciência da época, em virtude de uma série de fatores,
técnicos, estéticos, filosóficos. Richard Wagner costumava lidar com o fracasso, tantas
foram as vezes que, em busca de “obra de arte total”, esbarrava em dificuldades técnicas
ou financeiras. Há também os entraves contextuais, em virtude dos quais algumas obras
descansam por anos, décadas e até séculos para encontrar seus interlocutores – ainda que
nos dias de hoje não se possa avaliar como se dará essa peneiragem no futuro, diante do
volume monumental de produção. Assim, vale sublinhar uma modalidade de reajuste
técnico e estético que emergiu nos últimos anos a reboque da fragmentação da
reprodução e do formato: a transliteração técnica do conceito de uma obra em outros
modos de exposição, influindo decisivamente sobre o seu significado.
2.
Desde 2004, o músico e pesquisador Emmanuel Holterbach organiza os arquivos da
compositora francesa Eliane Radigue. Há mais de 40 anos, Radigue experimenta na seara
da música eletrônica e eletroacústica, aprendiz e parceira de Pierre Schaeffer e Pierre
Henry, e é uma dos grandes nomes a emergir do interesse arqueológico que reabilitou os
pioneiros da produção musical eletro-eletrônica, como Catherine Christer Hennix,
Daphne Oram, entre outros. O reconhecimento de seu pioneirismo lhe rendeu uma ampla
retrospectiva em Londres, no ano passado.
“Esta fita monofônica deve ser executada em 4 alto-falantes dispostos nos quatro cantos
de uma sala vazia. Tapete no chão. A impressão de diferentes pontos de origem do som é
produzido pela localização das várias zonas de frequências, e pelos deslocamentos
produzidos por movimentos simples da cabeça dentro do espaço acústico da sala. Um
baixo ponto de luz no teto, no centro da sala, produzido pela iluminação indireta. Vários
projetores de luz branca de intensidade muito fraca cujos raios, vindo de ângulos
diferentes, se encontram em um único ponto.” (Eliane Radigue, 1973)
3.
Trata-se, portanto, de uma peça que explora a espacialidade em dois níveis. Primeiro, a
espacialidade objetiva através da qual o som se propaga e cuja modulação propicia
formas variadas de emissão das frequências. Mas também o “espaço interior”, que diz
respeito não somente às alterações decorrentes dos deslocamentos do indivíduo no
ambiente, como também aos efeitos subjetivos desses mesmos deslocamentos. A partir
do release editado pelo site da Important Records, podemos perguntar: como escutar de
forma remota uma obra composta para a apreciação in loco, constrangendo o ouvinte a
seguir os limites impostos pelo formato-disco? Em outras palavras, como escutar uma
obra com alto teor sinestésico como “Transamorem-Transmortem”, que implica em uma
série de cuidados e prescrições, mas que se apresenta agora comprimida no formato-CD?
Quando, em suma, uma obra elaborada para manifestar-se através de uma relevo sonoro
acidentado e minucioso, além de portar uma grande abertura para o acaso, é transposta
para o território limitado e aplainado do CD?
4.
A transliteração – ou, em outros termos, a “licença poética” – que permite levar os
pressupostos de “Transamorem-Transmortem” para o CD, diz respeito mais ao seu
aspecto conceitual do que ao substrato propriamente sonoro. Não se pode acessar a
mesma experiência através do CD, de modo que só podemos apreendê-la como uma outra
experiência, que ainda assim, permanece batizada como “Transamorem–Transmortem”.
E como se pode resumi-la, mesmo sem acessar suas prescrições primordiais? A julgar
pela audição da peça, realizada com fone de ouvidos, arriscaria a hipótese de que a
espacialidade subjetiva da obra “original” é ampliada pela compressão do formato-CD.
Por mais que se perca o jogo com as frequências, produto do deslocamento do ouvinte no
espaço, sublinha-se o caráter harmônico e letárgico da composição. Em uma hora e sete
minutos de duração, Radigue explora a continuidade subjetiva mais do que o espaço
objetivo, ainda que com pequenos movimentos de corpo – ou com o fone – sobressaiam
as frequências mais agudas – experimente, por exemplo, levantar uma das abas do fone
ou comprimi-lo ao ouvido.
Vale ressaltar que apenas com o advento do CD, que comporta longas durações de forma
contínua, a obra de Eliane Radigue pôde ser devidamente registrada. Esta possibilidade
nos revela o talento de uma artista que sabe manipular o conceito e a técnica no mesmo
passo, além de revelar um talento poético e abstrato para talhar as sonoridades com
talento de escultora. Mas, acima de tudo, “Transamorem–Transmortem” é uma
experiência atordoante, testemunha do talento inominável de uma artista que chegou a
hesitar em utilizar a palavra “música” para definir seu trabalho.
Mats Gustafsson, Paal Nilssen-Love, Mesele Asmamaw – Baro 101 (2012; Terp
Records, Holanda [Suécia/Noruega/Etiopia])
É difícil mesurar o que há de mais interessante nesta sessão de improvisação, ocorrida há
cerca de dois anos num quarto de hotel em Addis Abeba. A começar pelo fato de que
Baro 101 é produto direto da longeva colaboração entre os roqueiros holandeses do The
Ex com artistas etíopes, documentada pela dupla Terrie Ex e Andy Moor na edição de
março da revista Wire. Desde 2002, o grupo mantém um trabalho consistente de
colaboração e divulgação da música e da cultura etíopes, uma das mais ricas e antigas da
África Oriental. Contabilizando as proezas decorrentes destas viagens, podemos citar a
aparição para o ocidente de artistas como Zerfu Demissie, Jimmy Mohammed e
Getatchew Mekuria (com quem o The Ex gravou em 2007 o sensacional Moa Anbessa),
ou ainda os lançamentos do selo Terp, dirigido por Terrie, dentre os quais vale destacar a
coletânea Ililta – New Ethiopian Dance Music, testemunha da atualidade desconcertante
da música etíope, para além de seu expoente mais conhecido, Mulatu Astatke.
Baro 101, nome e número do hotel onde ocorreu a gravação, conta com o sax barítono do
sueco Mats Gustafsson e a bateria de Paal Nilssen-Love, dois instrumentistas que, junto a
Han Bennink, Anne-James Chaton, entre outros, foram convidados pelo The Ex a
participar da combinação de happening, concerto e workshop promovidos pelo grupo em
Addis Abeba. O etíope Mesele Asmamaw completa o trio com o krar, instrumento
tradicional, comum na Etiópia e na Eritreia, espécie de lira com 5 ou 6 cordas, que
geralmente soa como uma kora um pouco mais grave. E aqui se inicia a segunda parte da
descrição do aspecto mais interessante do álbum, que vem a ser a adaptação inteligente
que Asmamaw fez em seu instrumento. Ao lado de dois improvisadores à moda europeia,
ávidos por explorar não só os timbres convencionais, como também a própria
materialidade de seus respectivos instrumentos, Asmamaw desenvolveu uma série de
timbragens pouco comuns e as aplicou conforme o clima e o andamento do improviso.
Assim, pode-se perceber ao longo dos mais de quarenta minutos de música, uma sucessão
de momentos nos quais a interação entre bateria, sax barítono e krar soa imprevisível e,
sobretudo, intrigante.
Coeso, porém abstrato, executado de forma enérgica, mas ao mesmo tempo delicada,
pródigo em sua exploração do timbre e fluente: Baro 101 transmite ao ouvinte a sensação
de que foi gravado em um ambiente de vibrante sintonia entre os três instrumentistas.
Trata-se, portanto, não de uma homenagem deferente, mas de um trabalho imbuído da
mesma curiosidade e abertura ao diálogo que caracteriza não somente o trabalho dos
músicos em questão, como também o projeto (ou o processo?) The Ex-Etiópia como um
todo.
O grupo carioca Chinese Cookie Poets, que já foi entrevistado pelo Matéria, chega ao
primeiro álbum operando de forma peculiar sobre esta premissa. Valendo-se de uma
estratégia de improvisação que ilumina justamente o aspecto obscuro do improviso (o
controle), Worm Love confirma que o CCP tem cacife de sobra para entrar na alta roda
da improvisação contemporânea. O método consiste em dois movimentos básicos:
registro de quarenta minutos de improvisação livre e sem esteios; edição criativa que
fermenta e altera o material gravado. De um lado, o material bruto (o improviso); do
outro, o editor-criador, que com ferramentas de corta-e-cola (de)recompõe esteticamente
o material.
Worm Love é, portanto, resultado desse método em nada inédito – já foi utilizado por
Peter Evans, Jim O’Rourke, Keiji Haino etc. Mas o que suscita o suprassumo da arte não
é exatamente o método, mas o resultado. O que há, portanto, de particular neste trabalho?
Além dos maneirismos instrumentais inspirados, vale ressaltar o trabalho com os ritmos,
talhado a partir do processo de manipulação digital. Se do ponto de vista da timbragem, o
CCP se inscreve na linhagem do post-rock, em termos de concepção trata-se de um trio
que parece seguir seu próprio caminho.
Já no clipe de “En La Mano del Payaso”, uma das faixas mais representativas do conceito
geral, revelava-se parte de um método de elaboração comparável ao da edição de
imagens. Da mesma forma que a edição cria espasmos corporais a partir das imagens das
pessoas dançando, as variações rítimicas, harmonias, melodias e ruídos instrumentais
retiradas do longo improviso são redesenhadas de modo a produzir espasmos análogos
aos que ocorrem no vídeo. O procedimento chega ao ápice na suíte “Three Worms”,
sobretudo na terceira parte, “Ziran”, mas é perceptível por todo o disco.
Trata-se de um trabalho relativamente curto (vinte e poucos minutos), mas que adquire
densidade conforme o grupo desembolsa seu amplo repertório de possibilidades: a
desconjuntada “Plastic Love”, “Discipline and Manners” (com participação de Arto
Lindsay, uma das referências do grupo) e o pontilhismo radical de “Free The Monkey”.
Claro, há que se notar as influências diretas: Haino, Zu, John Zorn, Fantômas, Boredoms.
Mas já há algum tempo, o Chinese Cookie Poets vem se destacando não somente no
cenário carioca, mas dentre os artistas mais interessantes quando o assunto é música livre,
improvisada ou não. Em relação ao grupo, Worm Love não funciona exatamente como
um divisor de águas, mas como a consolidação de um trabalho que, pelo visto, ainda pode
render grandes momentos aos admiradores da música experimental.
O primeiro álbum que Caetano Veloso produziu para Gal Costa, Cantar (1974), com
Perinho Albuquerque, se inscrevia no refluxo londrino, a partir do qual ele e Gilberto Gil
reconfiguraram suas posições no cenário da música brasileira. Lá se pode escutar a
mistura de estilos (bossa, rock, soul, fado…) que caracterizou o Tropicalismo, bem como
os compositores afinados com o mesmo legado (Donato, Jobim, Péricles Cavalcanti,
Carlos Lyra, Mautner). Porém, percebe-se uma diferença importante. Nos primeiros
discos, Gal experimentava consideráveis variações de registro, ora investindo na
economia singela de Domingo (com Caetano, 67), ora esbanjando vigor e uma certa
ironia, como nos dois discos homônimos de 69 e Le Gal, de 70. A pluralidade de
interesses cara ao Tropicalismo contaminou seu canto até explodir no verdadeiro
acontecimento que foi Gal a Todo Vapor, disco e show.
Ocorre que em Índia e, adiante, Cantar, estas variações deram lugar a uma estabilidade
estilística, que conjugava seu timbre melífluo com energia e força de expressão. Pode-se
dizer que até início da década de 90, o canto de Gal Costa manteve-se nesse registro, sem
prejuízo para bons álbuns como Gal Canta Caymmi (1976) e Água Viva (1978). Desenho
essa genealogia de seu canto para sublinhar algo que parece ter passado desapercebido
em relação a Recanto. Muitos foram seus produtores, de Manoel Barenbein a Arto
Lindsay, de Mazolla a Morelembaum, de Perinho Albuquerque a Waly Salomão, entre
outros. Mas o canto de Gal Costa, me parece, sempre foi e ainda é um assunto para uma
única pessoa: Gal Costa.
Desta lista de produtores, o mais ousado e criativo é, sem dúvida, Caetano Veloso, que
até por conta do laço de amizade, conhece sua biografia, compreende seu pensamento
musical, o estágio no qual se encontra sua voz e, sobretudo, aquilo que Gal Costa de fato
quer cantar. Em entrevistas, ambos manifestaram receio em relação à proposta de
Recanto, cuja sonoridade se encontraria em sintonia com duas importantes cenas
contemporâneas: a produção eletrônica e o improviso instrumental. Pela primeira vez em
muitos anos, um trabalho de Gal Costa retoma o espírito experimental comum aos discos
dos 60 e 70. Mesmo em relação a seu último disco digno de nota, O Sorriso do Gato de
Alice (1993), produzido por Arto Lindsay, Recanto sobressai, pois trata-se não só de uma
investida em outras sonoridades, mas na própria concepção estética de intérprete.
Em termos temáticos, tal qual o último disco de Chico Buarque, o momento pessoal
forneceu a matéria-prima a partir da qual Caetano elaborou as letras, misturando olhares e
perspectivas: Caetano olhando para Gal em “O menino”, Gal respondendo a Caetano em
“Recanto Escuro”, os dois se entreolham em “Mansidão” (que retoma a prática do canto
como tema, tal qual em Cantar) e riem juntos no suingue sagaz de “Miami Maculelê” –
cujo pulo do gato é o prato do samba de roda se fazendo de hi-hat do funk.
Por exemplo, na primeira faixa, “Mesa de samba” (2009), o som é gerado por um
aparelho montado com máquina de costura, arame, molinete de pesca, mesa de madeira,
caixa de bateria e dímer. Quando o circuito é acionado, agita o fio de arame de forma a
percutir sobre a caixa, gerando um batuque aleatório, realçado pelo zumbido da máquina.
Por cerca de doze minutos, as guitarras de Arto Lindsay e Pedro Sá redobram a
irregularidade das configurações rítmicas, conduzindo a tensão do improviso através da
utilização de microfonias, acordes soltos e ruídos.
Percutindo trinta sacolas plásticas contra a parede, comandadas por motores, cabos e um
circuito eletrônico apelidado como “cabeção”, “Jungle Jam” (2008) é dos momentos mais
instigantes dos cinquenta e um minutos do trabalho. E isso graças não só à sonoridade
gerada pelo engenho conceitual da máquina, mas ao diálogo entre Kassin e Berna
Ceppas. Munido por seu contrabaixo, Kassin imprime uma dinâmica marcial sobre à
percussão frenética das sacolas plásticas, ao passo que Ceppas recorre aos sintetizadores
e à lap steel guitar para explorar as mudanças de clima no transcorrer do improviso. Em
relação às cinco faixas do álbum, esta é a que equilibra de forma mais perceptível e
eficiente o conteúdo sonoro da instalação e a intervenção do improviso.
Por seu turno, “On – Off Poltergeist” (2008), com a participação de Chico Neves, se
inscreve de forma contundente no aparente revigoramento das experiências sonoras
limítrofes que marcam a música hoje — por exemplo, através da reabilitação do interesse
pela otoacústica, a espacialização do som e de nomes como Maryanne Amacher e Eliane
Radigue. A instalação consiste em sete auto-falantes extraídos de sete aparelhos de
televisão, separados e dispostos em cada um dos extremos de uma sala, com a intenção
de desvincular som e imagem. Neves manipula um Simmons SDS-V, recortando padrões
rítmicos a partir dos sons emitidos pelos aparelhos. A aparência espectral — ou
fantasmagórica, como indica o título — não compromete a preponderância do ritmo
sobre os outros elementos. Dupla tendência reafirmada na última faixa, “Acusma”
(2008), que conta com o baterista Stephane San Juan interagindo com trinta vasos de
cerâmica em treze formatos e tamanhos diferentes, cada um contendo um auto-falante
que reproduzem o solfejo editado e processado de cinco cantores. Os cantores entoam
números ao invés de notas, com a intenção de estimular no ouvinte uma sensação
“acusmática” — termo explicado no encarte, que designa uma “alucinação auditiva pela
qual se julga ouvir vozes humanas ou instrumentos musicais”.
“pensar é pão”
De seu reaparecimento triunfal até Tropicália Lixo Lógico, a música de Tom Zé vem se
constituindo a partir de teorias saborosamente anômalas a respeito da mulher (Estudando
o Pagode, 2005), do “defeito de fabricação” da mentalidade terceiro-mundista (Com
Defeito de Fabricação, 1998), do efeito liberador da Bossa Nova na cultura brasileira
(Estudando a Bossa, 2008), além de um trabalho instrumental-onomatopaico sobre a
“pós-canção”, batizado como Danç-Êh-Sá, 2006. (É bem verdade que, em relação a The
Hips of Tradition, não se sabe bem ao certo se há um centro gravitacional, mas teimo em
acreditar que trata-se de uma avaliação implacável dos fluxos e refluxos da Terceira
Revolução Industrial, do ponto de vista de um brasileiro).
Nesses discos, o artista estabeleceu relações francas, abertas e muitas vezes incômodas
(no melhor dos sentidos) entre uma teorização sobre a formação de aspectos da cultura
brasileira e um conjunto de canções que, ao contrário de explicar a tese, jogava ainda
mais fogo na lenha da provocação. Acerca da abordagem original deste procedimento, ou
mesmo de seu êxito propriamente artístico, é possível uma conclusão parcial: que não há
na atualidade esforço similar, qual seja, o de articular ímpeto teórico, citações eruditas,
relevância na poesia, na música e no pensamento através de canções estritamente
acessíveis.
Tom Zé vem aproximando, justapondo, confundindo esferas separadas por conveniência
política e cultural, sejam elas acadêmicas, estéticas, psicológicas, filosóficas, etc. Sendo
assim, não é de se estranhar que o único artista brasileiro a introduzir elementos teóricos
em sua dinâmica criativa desminta a “morte da canção” preconizada por Chico Buarque
há cerca de seis anos. Principalmente porque seus exercícios teóricos não se constituem
segundo a prerrogativa acadêmica, ciosa da consistência lógico-formal que fornece
sentido à progressão das pesquisas, e , em última instância, afiança sua autonomia perante
os órgãos institucionais — questão de poder, portanto.
Com Tom Zé, aprende-se de saída que a teoria não é privilégio da academia. Arrancando
desabusadamente o exercício teórico da pesquisa universitária, Tom Zé fomentou sua
convergência com a poesia e a música como forma de promover uma dupla emancipação:
a canção deixa de ser prisioneira dos temas fáceis e recorrentes, ao passo que a teoria
pode galgar outras perspectivas, sem necessariamente prestar contas aos afiançadores do
saber. A canção é, neste sentido, a catalisadora desta inversão de valores. Com seus
procedimentos anárquicos, Tom Zé nos mostra que se a canção de fato morreu, foi de
tanto rir.
Ora, estamos diante de uma obra paradoxal, que nos conduz em direção a uma espécie de
dobra: não seria o paradoxo, em detrimento da dialética, o ambiente próprio da chamada
cultura brasileira? Em outras palavras, não seria justamente esta capacidade de apropriar-
se de modo carnavalizante da cultura ocidental, diversificando as configurações culturais,
o conteúdo inominável do “lixo lógico”? Do suposto conflito entre teoria e estética, nos
resta salvaguardar o fato concreto de que em Tropicália Lixo Lógico a teoria já foi
ruminada, e a canção popular, sublimada.
Mais abaixo, no texto do encarte, outra possibilidade interpretativa: sobre a placa mental
“virgem e faminta” da primeira infância, marcada no córtex cerebral, o lixo lógico
eclode, quando a cultura ocidental dá de encontro com as potencialidades e vicissitudes
da “creche tropical”. E ainda há uma terceira hipótese, segundo a qual os brasileiros
foram formados pela junção do “saber de Aristóteles com a cultura do mouro”. Aqui a
imprecisão conceitual é criativa e criadora, assim como o paradoxo é manipulado
enquanto valor, retrabalhado a partir da confluência com o “lixo-lógico”. O paradoxo em
Tom Zé não se deflagra em oposição frontal aos ditames da instância avaliadora da lógica
europeia, mas como uma reapropriação antropofágica do termo técnico, através do
grande sismógrafo da cultura brasileira, a canção.
Vale enaltecer o canto e a interpretação do compositor por todo o disco. Sua voz
consegue obter variações imprevisíveis, exibindo um tom mais declamatório e
arriscando-se em melodias improváveis e jogos de interpretação. Como em “Amarração
do Amor”, quando nos fala daquele ódio similar ao de “Odeio você”, canção de Caetano
Veloso: o ódio do amante. A interpretação hilária de Tom Zé, ao forçar o sotaque para
extrair o efeito cômico da frase “desse tamaninho”, adere perfeitamente ao conteúdo
meio trágico, meio irônico, dos versos:
“A mãe-de-santo já me deu
Miniatura de você
Des’tamanhinh
É de palha costurada com agulha de crochê
Vou te derreter
Numa panela de dendê”
Tomemos a canção que, não à toa, dá nome ao disco. “Tropicália Lixo Lógico” se inicia
com a sequência melódica com tinturas românticas de “Coração Materno”; os primeiros
versos afirmam que o lobo (bobo?) não comeu ninguém. Alusão à bossa nova? Apesar da
forte sugestão nessa direção, o verso diz respeito ao processo de colonização: a pureza de
Chapeuzinho é invadida por Seu Lobo, que no entanto “não come ninguém”. Em ritmo de
Jovem Guarda, tomamos conhecimento do processo constitutivo do lixo lógico: o “pacote
de pensar” de seu Aristote (corruptela de Aristóteles), ao entrar em contato com “nossa
moçárabe estrutura de pensar”, gera, por um processo psico-fisiológico, o subproduto do
lixo lógico. Tom Zé concentra sua teoria diretamente sobre a canção-título, liberando
espaço para uma sequência de canções que tangem o conceito indiretamente. Tal
procedimento, ao contrário de enfraquecer, ampliou e enriqueceu o panorama da obra.
Ps.: Em tempo: os “defeitos” que permeam todo o disco, justificados por Tom Zé como
“invenção”, constituem intervenções do lixo lógico sobre a lógica linear e limitante da
grande indústria fonográfica.
I. “sonic fiction”
Dois aspectos se encontram intimamente ligados em Bish Bosch, novo trabalho de Scott
Walker. Primeiramente, é o estatuto do corpo, problematizado através de uma relação
determinada entre os sons e as palavras. Os sons dos corpos (peidos, suspiros, gemidos),
mas também a conexão entre os diversos corpos, sejam históricos, biológicos ou
culturais. Em segundo lugar, é a dimensão teatral da vida que nos permite traçar
contornos e conexões atemporais com tudo o que lhe diz respeito, desprovida de
distinções radicais entre a natureza e a cultura. O corpo e o teatro: se há hoje um autor
capaz de produzir a convergência entre as múltiplas possibilidades evocadas por esta
relação, este autor se chama Scott Walker e Bish Bosch é um espaço privilegiado para
que elabore sua obra-prima.
Em uma entrevista recente, realizada em virtude do lançamento do disco, David Toop
advertia o leitor para o conteúdo esfíngico da trama: “Bish Bosch is not easy to get into,
but why should it be?” Para ele, a senha para a complexidade se dá a partir da
contradição, característica que dificilmente se pode negar diante das faixas do disco: “…a
lot of contradictions (…) there are no mysteries solved.” Ora, mirando atentamente para
“O Jardim das Delícias Terrenas”, a obra mais conhecida do pintor holandês Hieronymus
Bosch, pode-se tomar consciência do mistério a que se refere Toop. Tal concepção do
mistério subjaz sua trama poética, em particular com relação aos procedimentos estéticos
e ao tema das relações imprevisíveis entre os corpos, sejam territoriais (Dinamarca,
Hawai, os Alpes), culturais (os gregos, Roma), míticos e humanos (Gorbachev, Átila, o
Huno). Não dizendo respeito ao mito encoberto, nem ao assassino oculto, o primeiro
mistério de Bish Bosch é o corpo em suas mais variadas relações— “o que pode um
corpo…”, perguntava no século XVII outro holandês, Baruch de Espinosa.
Por outro lado, guardadas as devidas proporções de tempo, intenção e consistência, Bish
Bosch indica uma inclinação semelhante a que perfaz Tragedy (2011) de Julia Holter. A
obra de Holter obtém uma estrutura própria em diálogo com a tragédia grega Hipólito, de
Eurípedes, ao passo que Bish Bosch se constitui a partir de um efeito semelhante. Pode-se
extrair deste parentesco a consolidação de uma certa inclinação contemporânea à busca
de referências e matéria-prima fora do espectro da produção musical — tanto em relação
aos procedimentos de produção, como no que diz respeito às perspectivas conceituais e
filosóficas. Ou, em último caso, podemos falar de uma obra atenta ao teatro como
metáfora da vida, um teatro que convoca o leitor a reconstituir, à sua maneira, as imagens
cifradas pelo autor. Com a característica diferencial de partir não de uma obra somente,
mas de uma miríade de referências que vão desde o pintor holandês que contribui para o
título, passando por diversos períodos históricos, considerações e metáforas a respeito da
história recente, da biologia molecular, das ciências médicas, da Bíblia…
Alguém pode interpretá-los como uma consideração irônica do autor, com a intenção de
anunciar que está mais vivo do que nunca. A imagem sugestiva, a própria consideração
depositada sobre a imagem de um “canto do cisne depenado”, indica que podemos ir
além. Na sequência, os primeiros versos de “Corps De Blah?”, indicam que trata-se não
de um processo de reação ou redenção, mas de algo que se debate conflituosamente, algo
que aponta para uma inclinação subterrânea, simultânea à morte e à fundação imaginária
de mundos possíveis. Algo, enfim, que joga um lance de dados com o abismo e aponta
para a instabilidade perigosa entre o estado de vigília e a inconsciência:
Não são apenas os sons de peidos que eclodem, a castigar o gosto e o senso histórico do
ouvinte (afinal, já não estamos no século XX…), mas acima de tudo a emersão do
palavrório, das entrelinhas, torrentes de palavras e entrepalavras de sentido fluido e
maleável, que promovem uma experiência poética radical. Contribuem para a empreitada,
a canção de Purcell e Kurtag, Os Cantos de Ezra Pound, as imagens tenebrosas de
Lautréamont e da terra devastada de Eliot, o heavy metal, o samba e uma utilização dos
instrumentos que remete à experimentação ao mesmo tempo onírica e realista da musique
concrète. Além de Walker himself, o bardo…
Bish Bosch começou a ser escrito em 2009, enquanto Walker compunha a trilha para o
balé Duet for One Voice da companhia ROH2. “Bosch” se refere ao célebre pintor
holandês; “bish” é corruptela de “bitch”; mas, no geral, “bish bosch” quer dizer “job
done”, “trabalho finalizado”. Acrescente-se a esta informação, uma derivação mítica
cunhada pelo próprio Walker: “I was thinking about making the title refer to a
mythological, all-encompassing, giant woman artist.” Revestida pela força poética do
mito, emerge a figura de uma “mulher artista gigante”, capaz de reaver a sensação de
poder e redenção diante de um mundo que apodrece a olhos vistos. Preconizada de forma
delirante pelo artista a partir de uma expressão cotidiana, a “mulher gigante” também se
impõe como efígie de um mundo natimorto, que se movimenta à custa de sobressaltos,
tragédias, genocídios — e “alguma literatura”… Como Bosch, mas também como
Rembrandt, o corpo humano é elemento de tenebrosas operações que circunscrevem o
corpo doente e moribundo da natureza, da ciência, da cultura e, é claro, da arte.
Produzido por Peter Walsh, Bish Bosch foi gravado por Ian Thomas (bateria), Hugh
Burns e James Stevenson (guitarras), Alasdair Malloy (percussão) e John Giblin (baixo),
além de contar com as participações de Guy Barker (trumpete) e BJ Cole (pedal steel). As
orquestrações são de responsabilidade do diretor musical e tecladista Mark Warman.
Instrumentistas comprometidos, primeiramente, em levar a cabo uma iniciativa de cunho
sonoro: “os sons vestem as palavras” (“It's just dressing the lyrics”). Não estamos diante
de arranjos que vestem canções, mas de uma pesquisa sonora em franco diálogo com as
evocações da poesia delirante de Walker. Para fruir a riqueza de Bish Bosch, convém ao
ouvinte entregar-se com atenção ao percurso, como quem se entrega a uma experiência
entre a performance e a literatura. A cada instante uma modulação situada entre o caos e
o silêncio, mas, na maioria das vezes, manifestando confluências inusitadas entre sons e
palavras.
“This is my job,
I don’t come around and put out
your red light when you work…”
Ora, em que medida o trabalho se insere nesse contexto musical permeado por múltiplos
interesses, no qual o teatro – a dimensão do jogo teatral — se torna referência para a
criação musical? Poderíamos ir além, perguntando em que medida seu trabalho nos
últimos 30 anos vem se tornando referência para procedimentos híbridos, sobretudo a
partir de Climate of Hunter (1984), Tilt (1995) e The Drift (2006)? É certo que Walker
sobreviveu a quase todos os artistas que influenciou, o que nos autorizaria a atribuir-lhe
esta propensão à demiurgia. Mas convém manter a singularidade de Bish Bosch, mesmo
em relação ao autor que a tornou possível. Em uma época em que a performance e as
demais possibilidades de criação artística são justapostas, fustigando os gostos mais
conservadores, Bish Bosch pode até soar excessivo, disforme, doidivanas para além do
tolerável. Mas dificilmente se pode negar que manifesta de forma contundente algo raro
neste mundo tomado por conflitos e degeneração, qual seja: a decantada e indomável
necessidade de “ir-além”.
E então ocorre algo improvável: a despeito das estruturas rigorosas, sobrevém o caráter
eminentemente rítmico e suingado das composições. Neste caso, vale relembrar as
palavras de Granado: “o Hurtmold é uma banda basicamente percussiva”. Além da
polirritmia, em Mil Crianças percebem-se compassos compostos (como, por exemplo,
“Joji”, “Beli”, entre outras) e manipulação do andamento (como na guitarra que introduz
“Hervi”). Sublinho também dois momentos em que o grupo desenvolve uma espécie
exitosa de “afro math rock”: as texturas rítmicas formada pelo riff e os tambores no
“refrão” de “Tomeletomele”; e algo similar à uma costura da precisão do Tortoise com o
espírito da Congada, na primeira modulação de “SNP” (lá pra 1:40 de faixa).
A história segue um rumo mais ou menos comum nos dias de hoje: o grego Adamantios
Kafetzis, pesquisador e DJ, viaja a Thiès, pequena cidade a 40 milhas de Dakar, onde o
movimento operário, constituído majoritariamente por construtores de rodovias,
desempenhou um papel fundamental no processo de independência do país. Lá, se depara
com a Royal Band de Thiès tocando em um dos clubes mais conhecidos do local, o
Sangomar. Fundada em 1972 por Mapathe Gadiaga com o cantor Adam Seck (ou Secka),
permaneceu até 2012 como um daqueles segredos mais "mal guardados" da música
senegalesa — pois não há segredo "bem guardado" em termos de arte...
Então, diante do balanço sinuoso de “Korolober”, todo marcado nos tempos fracos,
imagino que a cabeça desses músicos esteja maquinando uma série de informações que
passam ao largo do bebop e do legado funk/soul norte-americano, tal qual na Orchestre
Poly-Rythmo ou na Baobab. Seguindo a pista de Kafetzis, encontrei informações a
respeito de uma cidade responsável por boa parte da originalidade musical do Senegal,
mesmo em relação à África oriental, marcada pela atuação do grande instrumentista
Moussa Diallo. Percebe-se que não se trata somente de uma inflexão do mbalax, mas um
refinamento pontual de aspectos da música senegalesa. Por este motivo, nas primeiras
audições de Kadior Demb o ouvinte se flagra em meio a uma espécie de desencontro
cultural, que tende a se torna mais comum a cada dia. Mesmo com a “familiaridade
remota” propiciada pela diáspora digital africana, este desencontro convoca o ouvinte a
alimentar com a imaginação tudo aquilo que simplesmente desconhece.
Bassekou Kouyate & Ngoni ba – Jama Ko (2013; Out Here Records, Mali
[Alemanha])
A grande maioria das resenhas dedicadas a avaliar as qualidades inegáveis de Jama Ko,
sugerem o nexo entre o golpe de estado que agravou a situação política conturbada do
Mali e sua respectiva repercussão sobre a aparição de tendências mais agressivas do
Ngoni Ba, o grupo que acompanha Bassekou Kouyate. Ainda que a situação se apresente
de forma bem mais complexa que a perspectiva de Kouyate pode fazer supor, vale
destacar seu desabafo em entrevista recente por ocasião do lançamento de Jama Ko: “Há
mais de 90% de muçulmanos no Mali, mas nossa forma de islamismo não tem nada a ver
com uma forma radical da Charia: esta não é a nossa cultura. Temos entoado canções de
louvor para o Profeta por centenas de anos. Se os islamistas interromperem a música que
as pessoas fazem por aqui eles vão arrancar o coração do Mali.”
Jama Ko se apresenta com uma sonoridade mais frenética e incisiva, tanto em relação aos
álbuns anteriores, Segu Blue (2006) e I Speak Fula (2009), como também no que diz
respeito às inflexões mais conhecidas da música malinesa — Youssou N’dour, Amadou
et Mariam, Ali Farka Touré, entre outros. Embora pareça bastante provável que tais
características decorram de um conturbado contexto político — basta dizer que o álbum
foi gravado no Mali, durante o golpe em março de 2012 — convém destacar os elementos
propriamente musicais que contribuíram para o êxito de Jama Ko.
Primeiramente, podemos notar uma diferença substancial no punch das percussões e dos
ngonis, sem prejuízo para as sutilezas das justaposições rítmicas e harmônicas. Ao
contrário dos dois primeiros álbuns, produzidos respectivamente pelo jornalista Jay
Rutledge e pela etnomusicóloga Lucy Duran, a produção de Jama Ko ficou a cargo de um
músico ligado ao rock, Howard Bilerman, ex-baterista do Arcade Fire. Com sensibilidade
“antropológica”, a produção de Bilerman foi responsável por uma sonoridade mais forte e
robusta, mantendo relativamente intactas as formas timbrísticas características do
ensemble. Digo “relativamente” porque esta síntese se favoreceu ainda mais da utilização
de distorção e wah-wah no Ngoni de Kouyate — sobretudo nos solos desvairados de “Ne
me fatigue pas” e na parceria com o bluesman americano Taj Mahal, “Poye”.
Em 73 minutos, o octeto conduz o ouvinte por cinco faixas que tanto podem se associar à
noção geral de jazz (isto é, de improviso), como mantém laços criativos com duas ou três
vertentes da música instrumental dos anos 70: a fase fusion de Miles (Bitches Brew, On
The Corner), sobretudo na dosagem entre partes ensaiadas e o improviso; o aspecto
extático, spiritual, da Fire Music de Sonny Sharrock, Archie Shepp, William Parker; e,
por fim, a música brasileira, particularmente do instrumental dos anos 70 desenvolvido
por nomes como Hermeto Pascoal, Airto Moreira e Egberto Gismonti.
Vale notar que essas referências devem apenas situar o leitor no alistamento de
contribuições que, parece, constituem o trabalho, mas não esgotam sua significação. A
bem da verdade, as Skull Sessions se encontram a meio caminho das modulações do
Chicago Underground Duo e da profusão sonora da Exploding Star Orchestra, situando-
se assim entre a economia estratégica do primeiro e a ambição harmônica da segunda.
Das estratégias, a fluência com que ocorrem as “deixas” para mudar o clima, o
andamento ou o arranjo; da ambição harmônica, um certo despojamento punk na hora de
sobrepôr muitas informações sonoras, característica que dialoga com o jazz de Sun Ra,
mas que também constitui um dos grandes talentos de Mazurek. Soma-se a isso a prática
do “layering”, da sobreposição (ou justaposição) de linhas e volutas rítmicas, harmônicas
e melódicas, com a contribuição fundamental da miscigenação de timbres eletrônicos e
acústicos.
Neste contexto, a frase de Jeff Parker, presente no texto do encarte de Stellar Pulsations,
ganha um sentido muito específico: “Rob Mazurek vem explorando a idéia de criar
ambientes para perder-se no som”. Ora, há um claro, pregnante, luminoso paradoxo nesta
ideia! Trata-se de uma operação que se propõe a conjugar a disposição intencional, isto é,
tudo aquilo que o artista pode prever, com o campo de possibilidades em aberto que esta
mesma disposição cria. De um lado, a extrema sabedoria técnica, criativa, formal; de
outro, um “deixar-se-levar”, uma espontaneidade que se reflete no aspecto cromático do
som.
Talvez a faixa mais que contenha o trecho mas abstrato do álbum, “Passing Light
Screams” começa com a contribuição de todos os instrumentos degladiando-se de forma
tensa e desordenada. De repente, a fonte seca: resta o vibrafone e alguns ruídos discretos
executados pela percussão e pela rabeca. Com timbre macio, o trumpete descreve uma
melodia para, alguns minutos depois, juntar-se à flauta e ao teclado para iniciar um tema
sinistro que irá conduzir em crescendo a faixa para seu fim. O vibrafone introduz a
marcha “Skull Caves of Alderon”, cujo belíssimo tema remete ao maracatu e às fanfarras
nordestinas. A zoeira noise de seus últimos minutos contrasta com a última faixa do
trabalho, “Keeping the Light Up”: neste caso, o jogo passa a ser com as lacunas, os
vazios, os silêncios, ocupados de forma parcimoniosa por melodias breves e intervenções
discretas.
Siba e a Fuloresta – Toda Vez Que Eu Dou um Passo o Mundo Sai do Lugar (2007;
Ambulante Discos, Brasil)
Cantor, compositor, guitarrista, rabequeiro, mestre na poesia rimada, por três discos Siba
capitaneou o Mestre Ambrósio, um dos grupos mais expressivos do manguebeat. Após o
fim do grupo e de uma estadia de 7 anos na cidade de São Paulo, Siba retornou a
Pernambuco e fixou residência em Nazaré da Mata, importante eixo de produção musical
de maracatu rural, coco, ciranda entre outros. A partir da instalação de um home studio,
criou o grupo A Fuloresta, reunindo a nata dos poetas e instrumentistas da Zona da Mata:
Biu Roque (percussão e voz), Mané Roque (percussão e voz), Zeca (percussão), Roberto
Manoel (trumpete), Galego (trombone), João Minuto (sax tenor) e Bolinha (tuba). O
grupo lançou em 2002 o independente e aclamado Fuloresta do Samba, e, em 2007, Toda
Vez Que Eu Dou um Passo o Mundo Sai do Lugar, com as participações da cantora Céu,
do guitarrista Lúcio Maia, de Fernando Catatau e de Isaah, ex-integrante do Comadre
Fulorzinha.
*#*
“A vida não dá certeza, pois tudo se movimenta”: com seu último disco, ainda que Siba e
Fuloresta se posicionem de alguma forma neste debate, o fazem de modo a superá-lo
definitivamente. Pois nele, apesar de termos perfilados uma série de cocos, cirandas e
frevos, gêneros considerados “folclóricos” e/ou “regionais” e que, por isso, são arrolados
em alguns dos discursos listados acima, pode-se dizer, com segurança, que as palavras
“registro”, “essência”, “tradição” e, até mesmo, “mobilidade” e “interlocução” não
comportam toda a invenção que grupo e álbum nos trazem. A música da Fuloresta reside
à parte deste universo, válido, mas excessivamente acadêmico, burocrático e idealista.
Com Toda Vez…, o grupo afirma pelo menos duas novidades interligadas: uma
naturalidade, uma sabedoria, um “estar-à-vontade” em relação aos gêneros trabalhados, e,
ao mesmo tempo, uma disposição para recriá-los às antípodas das gravações que até
então foram consagradas a eles. É música viva, que se explica por si só, que não carece
de adendos e notas. Aqui, não cabe o velho discurso sociológico, que a cada faixa tem de
perfazer toda uma gama de fenômenos extra-musicais para explicar, por exemplo, o que é
o coco (“Com influência africana e indígena, o coco é uma dança de roda acompanhada
de cantoria e executada em pares…”). Devo observar também que, ao contrário da
música da Nação Zumbi ou de Marcelo D2, que acabaram por privilegiar o elemento
estrangeiro, Siba e a Fuloresta propõem que a base seja criada a partir dos sons de Nazaré
da Mata, e que o adereço seja “estrangeiro” (uma guitarra, um piano, um efeito na voz,
um sample…). Obviamente, digo isso sem preconceito, pois idolatro o Nação Zumbi.
Mas é uma diferença digna de nota, observável não só em toda a carreira de Siba e a
Fuloresta, como também em Candombless, de Carlinhos Brown.
KEVIN DRUMM
Nos próximos dias 17 e 18 de agosto, quarta e quinta-feira, o compositor e produtor
Kevin Drumm fará duas apresentações no SESC-Belenzinho, em São Paulo. Oriundo da
cena improv da Chicago dos anos 90, Drumm é um dos produtores e músicos mais
intrigantes e originais da atualidade. Capitaneadas pela produtora paulistana Noropolis, as
apresentações terão as participações do Objeto Amarelo, formado pelo músico paulistano
Carlos Issa, e o Test, duo de “death metal old school com grindcore”, formado pelo
guitarrista João Kombi (ex-Are You God?) e o baterista Barata (D.E.R.).
“Eu não me importo se chamam de música, som ou qualquer outra coisa”, afirma Kevin
Drumm durante a entrevista que fizemos com ele na última semana. Para quem não
conhece o trabalho deste americano de 40 anos, basta escutar qualquer um dos inúmeros
lançamentos para entender a natureza desta frase. Pois Drumm opera justamente na
fronteira entre o que o senso comum considera sob o rótulo “música” e todas aquelas
sonoridades que não são consideradas como tal: os barulhos, ruídos, estalidos, estampidos
e outros pruridos sonoros, relegados à categorias supostamente menos nobres. Na
fronteira e além dela, diga-se de passagem.
Drumm vem desenvolvendo sua música a partir de procedimentos e estilos que envolvem
um aparato técnico e conceitual complexo, como a eletroacústica e o noise,
permanecendo irredutível a esses mesmos gêneros. Porém, equacionando sua verve
idiossincrática com o aporte de músicos e instrumenistas igualmente desafiadores,
Drumm já colaborou com artistas do calibre de John Butcher, Daniel Menche, Jim
O’Rourke, Phil Niblock, Tony Conrad, Ken Vandermark, Mats Gustafsson, entre outros.
***
Esta profusão sonora está ligada a algum tipo de busca? O que você procura
quando elabora seu trabalho?
Sem querer parecer piegas, busco algo que mexa comigo internamente.
Então posso dizer que você está usando sons não apenas para fazer “música” ou
“gêneros musicais”, mas a fim de desenvolver uma experiência de som solipsista?
Como você descreveria o seu trabalho?
Solipsismo pode soar como “auto-absorção egoísta” (egoistic self absorption). Eu nunca
pensei desta forma, mas talvez seja verdade, espero que não. O que eu faço com som ou
“música”, se você prefere, é uma coisa pessoal, é a liberdade para fazer o que eu quero
(ou talvez isso seja uma ilusão). Eu não me importo se chamam de música, som ou
qualquer outra coisa. O termo mais adequado seria “áudio”, mas é ainda mais geral do
que chamar alguma coisa de música.
Você concorda que a sua abordagem ao fazer música é mais crítica e filosófica – do
que o estritamente ‘musical’?
Não sei se é filosófico. Eu não quero soar cauteloso mas é o que é. Não é misterioso e
não adquire mais legitimação do que qualquer outro tipo de música.
Mas aqui vai uma pequena lista – Euro free jazz/FMP, Peter Brötzmann, Caspar
Brötzmann, Borbetomagus, P16.D4 e Ralf Wehowsky, praticamente quase todo o
catálogo da Selektion, The New Blockaders, o som do baixo de Lemmy Kilmister,
AMM, Hugh Davies, Hans Reichel, Stephen Wittwer, Radu Malfatti, os 2 primeiros
discos do Deicide, Iron Maiden, death metal do final dos 80 início dos anos 90, Hafler
Trio, Zbigniew Karkowski, Jim O’Rourke, Robert Ashley e muitos mais.
O Cineasta André De Toth disse uma vez “eu não me importo como você faz, eu só quero
uma boa refeição”. Já me perdi de novo, desculpe… Sim, o impacto é enorme, MAS
agora temos mais coisas e algumas são boas e outras ruins, o que é a mesma situação,
como sempre … Então eu acho que nada mudou… (risos)
Antes mesmo de seu primeiro álbum, que tipo de envolvimento você tinha com a
música? A guitarra já fazia parte de seu universo musical?
Sim, foi principalmente a guitarra. Eu toquei guitarra por alguns anos, eu não era muito
bom, mas em algum momento eu fiquei mais interessado em “outros” ruídos e tudo o que
eu tinha era uma guitarra, então tentei fazer algo interessante com ela.
E como surgiu a oportunidade de gravar seu primeiro álbum, pela Perdition Plastics
(1997)? Que tipo de experimentos você trabalhava antes de gravá-lo?
Eu planejei fazer um disco solo de guitarra por alguns anos. E eu tentei algumas vezes
mas não gostei dos resultados. Um dia decidi gravar o disco todo de uma só vez, juntando
as coisas boas e ruins, e lançá-lo. Eu tinha algumas ofertas interessantes de fora da
cidade, mas a Perdition Plastics parecia querer lançar o disco mais rapidamente, no
entanto, levou um ano para fazê-lo. Eu não acho que seja uma música muito boa, mas
talvez seja um começo interessante… talvez não.
***
MURCOF
Neste fim de semana, de 10 a 13 de novembro, Braga terá a oportunidade de assistir ao
projeto do mexicano Fernando Corona, o Murcof, que se apresenta no Festival
Semibreve. No início de Dezembro, Corona parte para o Brasil para se apresentar no
Festival Novas Frequências, no Rio de Janeiro, entre os dias 07 e 11 de dezembro (com
apoio da FACT Magazine PT). Julgamos oportuna a ocasião para ir à conversa com este
importante artista da cena eletrônica experimental da atualidade. E não julgamos errado.
Corona se revela um pensador tão rico e direto quanto sua música. Constrói um castelo de
ideias com palavras parcimoniosas, citando nomes datas, locais, percepções com
precisão, enquanto explana, dedicadamente, os diversos aspectos de sua obra e concepção
musical. Talvez por isso, aqueles que buscam a integridade dos sons e dos gêneros nos
discos do Murcof enfrentam sérios problemas: eles não fornecem um ponto de apoio que
assegure a obra de Corona em um só gênero musical. Trata-se de uma música híbrida, de
caráter austero, porém expressiva e maleável.
Essas características justificam tamanho interesse pelo trabalho deste mexicano, nascido
há 41 anos em Tijuana, no México, e residente há cinco anos em Barcelona. Uma passada
de olhos sobre sua discografia, confirma o interesse acentuado na música clássica,
trançada ao sabor dos ventos mais inconstantes: minimalismo, glitch, música
contemporânea, música mexicana Huichol, etc. De fato, a sonoridade das composições de
Murcof indicam uma convivência musical aberta, eclética e curiosa, mas que pode
também ser arrolada no âmbito da música pós-colonial – ainda que devamos advertir para
a relevância provisória deste termo.
La Sangre Iluminada, trilha sonora de 2009, para o filme homônimo assinado por Iván
Ávila, foi relançada recentemente pelo selo francês Rafiné. Este foi seu último trabalho
em disco, mas a marca deixada por Murcof permanece através de uma pluralidade de
projetos, como o que apresentará em Braga, ao lado do AntiVJ. Para além dos rótulos que
buscam separar a linguagem do chamado primeiro mundo, do mundo colonial, a música
de Murcof é articulada, viva e, sobretudo, contemporânea. A seguir, a conversa que
tivemos com o artista.
***
Quais são suas principais influências? Ouvi dizer que você cresceu entre os discos
clássicos e dos Beatles. Você acha que sua música reflete a indistinção dos dois
universos, popular e clássico?
A música é um ótimo meio para exercitar visões utópicas da existência harmônica entre
mundos ou situações aparentemente distantes ou opostas, clássico e popular, oriental e
ocidental, tonal e atonal, etc. O ar que carrega o som “não se importa” se é uma sonata de
Chopin ou o som de uma manada de búfalos correndo. Tento seguir esse exemplo, não
me importando muito com a fonte do som, mas com o som propriamente e o que ele me
diz. É claro, sons diferentes têm significados diferentes, sempre tentamos traçar um som
até sua fonte, é muito emocionante jogar com isso. Por exemplo, o som de um violino
muito processado, que ainda mantém um pouco de sua características originais,
vagamente sugere que vem de um violino, mas alguma coisa aconteceu a ele ao longo do
caminho, e é diferente agora, evoluiu para um som independente, novo e original.
Poderia nos falar um pouco sobre sua discografia? Penso que seus discos são bem
diferentes uns dos outros. Então gostaria de lhe pedir para compará-los, pelo menos
Martes (2002), Utopia (2004), Remembranza (2005) e Cosmos (2007).
Claro que são diferentes, pois cada um está ligado a uma situação muito especial na
minha vida. Vindo do trabalho com o Coletivo Nortec, que era mais orientado para club e
dance, Martes surgiu da necessidade de explorar o lado mais contemplativo da música.
Na época eu era muito influenciado pelo techno minimal e tech house no lado eletrônico,
e compositores como Morton Feldman e Kancheli. Durante o processo de composição
minha esposa estava grávida de nosso filho Oliver, que nasceu logo depois do lançamento
de Martes.
Utopia veio como resultado do sucesso de Martes, foi um disco auto-indulgente. Ter
artistas que eu admiro remixando a minha música foi muito emocionante e motivador.
Também aproveitei a oportunidade para explorar ainda mais as mesmas idéias estéticas
que comecei em Martes, através da inclusão de quatro novas faixas com o mesmo viés,
mas um uma estrutura um pouco menos convencional.
Remembranza foi feito durante a doença de minha mãe até sua morte, portanto é um
diário daqueles dias difíceis. Foi lançado logo depois de nos mudarmos para Barcelona…
Muitas mudanças ocorreram em torno desse álbum, que foi gravado entre 2004 e 2005.
Como este será o seu primeiro show no Brasil (em dezembro, durante o Festival
Novas Frequências), gostaria de saber o que você espera do público do Rio de
Janeiro. E também se você costuma ouvir música brasileira.
Eu não tenho idéia de como o público brasileiro vai me receber. Estou sem expectativas,
porém muito animado para descobrir, e muito feliz porque vou ficar alguns dias extras
também. Quanto à música brasileira, eu sei muito pouco, lembro que minha infância foi
cheia de todos os clássicos da Bossa Nova. Mais tarde eu descobri compositores como
Villa-Lobos e, em seguida, o movimento tropicalista. Mas isso é tudo.
Que será a base das apresentações em Braga (durante o Festival Semibreve, neste
fim de semana)? E no Rio?
Em Braga será a versão mais recente da minha colaboração com AntiVJ, que tem
progredido de forma constante nos últimos dois anos. É uma espécie de micro/macro
viagem cósmica, projetada em uma tela widescreen semi-transpartente, colocada entre o
público e nós. Já no Rio, saberei no momento em que estiver no local e tiver uma idéia do
lugar. Levarei todo o meu material, velho e novo, para fazer um tracklist de acordo com a
vibe do local e do público.
O Projeto Wixarika é uma comissão do festival Grenoble, na França, projeto que estou
desenvolvendo junto com meu bom amigo e músico de Tijuana, Edgar Amor. É inspirado
na música Huichol tradicional dos povos Wixarika do centro do México, por isso,
estamos trabalhando com dois músicos Huichol, o que é realmente um privilégio. São
eles Jose Luis (que é um Mara’akame, ou curandeiro/cantor) e Enrique Ramirez, seu
filho. Tivemos uma sessão de gravação com eles em Tijuana no ano passado, que
forneceram as bases para as composições destas gravações. No ano que vem eles vão nos
acompanhar no palco no Detours de Babel e outros festivais na França. Erik Truffaz e
Dominique Mahut também estão trabalhando com a gente, então é uma mistura grande de
mundos musicais.
Outro projeto, que ainda está em sua fase de desenvolvimento, é com a pianista francesa
Vannessa Wagner, com quem estou trabalhando em reinterpretações de músicas para
piano clássico, de Satie a Arvo Pärt. Já com Francesco Tristano, tenho uma colaboração
que vem e vai, e que já se existe há cerca de quatro anos. São principalmente compostas
de piano ao vivo e improvisações eletrônicas.
***
MAGA BO
Na semana passada, Maga Bo lançou “Piloto de Fuga”, o segundo clipe do disco, dirigido
por Fernando Salis. O primeiro, “No Balanço da Canoa”, dirigido pelo cineasta Emílio
Domingos, conta com as participações de Rosângela Macedo e Marcelo Yuka e foi
lançado a cerca de um mês. Estão previstos também um álbum de remixes, com
produções de Digitaldubs, Buguinha Dub, Uproot Andy, El Remolón, entre outros, e o
show de lançamento, no próximo dia 02 com Marcelinho Da Lua, Digitaldubs Sound
System, Ras Schack, Leo Justi, Marcelo Mbgroove e o MC Funkero, que também
participa do disco.
***
Fui criado em Seattle, que na época (não sei como está hoje em dia) sempre tinha shows
de música africana e reggae. Vi King Sunny Adé umas cinco vezes, Thomas Mapfumo ia
todo ano, Burning Spear. Eu era craque em entrar sem pagar e fui a todos os shows que
podia. O que mais me chamava a atenção era música com DNA africano e jamaicano,
então corri atrás. Fiz minha primeira viagem sozinho pra Jamaica aos 18 anos, descobri o
ragga e o dancehall e me amarrei no som. Era a época da disputa entre Shabba Ranks e
Ninja Man…
Então, não foi necessariamente a mistura de idiomas que me interessou, e sim, a mistura
de linguagens músicais. Acho que estão falando tudo na mesma linguagem, mas com
sotaques diferentes. Sempre reconheci que as músicas que me interessavam tinham as
mesmas raízes — da África. Aí, fui atrás… Aos 23 anos, passei um ano e meio viajando
de mochila sozinho de Cairo até Cidade do Cabo em busca de música, mas achei muito
mais. Presenciei o fato de que nós, seres humanos, somos todos conectados. Viajando
pela terra (ao contrário do que viajando de avião), dá pra ver como todos nós somos
vizinhos. Existe uma continuidade na cultura, na música, na comida, na cor da pele, no
idioma, sotaque, costumes, roupa, tudo. No Cairo eles gostam de fuul (feijão) com pão,
no Sudão adicionam jibna (um tipo de queijo de cabra), mais pro sul, adicionam pimentão
verde ou tomates, em Eritrea é servido com injera (um tipo de panqueca fermentada), na
Etiópia é o tipo de feijão que é diferente… E por aí vai. A mesma coisa acontece com a
música, o idioma e a cor da pele. Você pode viajar para qualquer lugar do mundo e
perceberá essas similaridades. Hoje em dia, no mundo bem mais globalizado, as misturas
tomam formas mais complexas e extremamente interessantes. É nesse mundo que eu
trabalho.
Quilombo do Futuro possui forte sotaque brasileiro, não só por causa da língua
(predominantemente o português), mas pelos ritmos. Fale um pouco a respeito da
sua relação com o Brasil e a música brasileira.
Me mudei pro Rio de Janeiro em 1999. Agora é minha casa. Sou capoerista — angoleiro.
Comecei logo depois de chegar ao Brasil, que foi uma época muito difícil pra mim.
Costumo dizer que a capoeira, de alguma forma, me salvou. Aprendi através dela não só
os movimentos e como tocar os instrumentos, mas aprendi tambem muito sobre mim
mesmo. O meu mestre (o Mestre Camaleão, que está no disco também) sempre falava
que a solução de qualquer coisa reside dentro de nós. Cabe a nós procurá-la. A outra
coisa foi que a gente é capaz de tudo, se fizer pouco a pouco, passo a passo.
Procuro praticar esses ensinamentos todo dia. Na minha música, procuro escutar a minha
intuição. O que é que faz o meu coração vibrar? A resposta era sempre os ritmos afro-
brasileiros, que já eram presentes no meu dia-a-dia — na capoeira, na escola de samba
(toco repique e caixa). Então, a minha relação com os ritmos afro-brasileiros tem
evoluído bem organicamente.
Costuma-se dizer que a música é uma “linguagem universal”. Ninguém melhor do que
você, que já colaborou com artistas de diversos países e continentes, para especular em
que sentido se pode afirmar que a música é uma linguagem universal?
Acho que é verdade. A música, mesmo que seja complexa ou sofisticada, se trata de
quatro coisas — duração, tom, volume e timbre. São elementos comuns a todo tipo de
música. Então, é facil para as pessoas entenderem uma música qualquer, pelo menos
superficialmente. A profundidade vem com experiência e tempo.
Mas, pra responder a sua pergunta, sim, é uma concepção — queria juntar a cultura de
sound system com os ritmos afro-brasileiros (que já existem há MUITO tempo no baile
funk, o que eu faço não é exatamente novidade). A cultura do sound system (que no Rio é
chamado “Equipe de Som”) existe quase tanto tempo quanto na Jamaica. E o baile funk é
baseado em ritmos afro-brasileiros (particularmente o maculelê) junto com outros
elementos.
As percussões constituem um dos aspectos mais instigantes de Quilombo. Por favor, fale
um pouco sobre a parceria com João Hermeto.
A participação do João Hermeto foi muito importante para o disco. Mesmo sendo
percussionista, não toco no mesmo nível que o João. Então, eu fazia as bases de uma
maneira bem crua, entrava no estúdio com ele, já com uma ideia do ritmo na cabeça.
Cantava o ritmo e ele trazia a levada para um outro nível. Geralmente, pedia pra ele tocar
o ritmo bem “careta” e fazer improvisações, depois eu editava. Fui selecionando os
instrumentos pra chegar nos timbres que imaginei. Foi ele que me ajudou manifestar o
que já estava na minha cabeça. João Hermeto é muito FODA! Mestre! Me sinto muito
privilegiado por trabalhar com ele.
Sua música faz parte de uma tendência mundial que tem em DJ/Rupture e DJ
Dolores dois representantes fundamentais. Alguns chamam de global ghettotech,
mas trata-se de uma música internacional, que não vê fronteiras musicais. A que se
deve essa universalização do discurso musical? À internet, por exemplo?
Obviamente começou há decadas ou até um seculo atrás (talvez mais), mas realmente
ganhou terreno com a revolução tecnológica, que posibilitou gravar música de alta
qualidade em casa. Nos últimos dez anos ocorreram tantas mudanças tecnológicas, que
transformou tudo — a indústria fonográfica, quem faz a música e até mesmo os estilos de
música. E todo mundo faz música no computador, que, eu diria, é o instrumento
folclórico mais universal que existe hoje em dia. E essa música que vem sendo chamada
de global ghettotech (e por aí vai — o uso desses rótulos já é uma outra questão
importante) é basicamente música folclórica — é feita por qualquer um e é baseada em
ritmos populares (o baile funk, por exemplo, é baseado em maculelê).
Diante da interação entre cultura digital e cultura online, como você vê hoje o
problema da autoria? E em relação à independência dos artistas?
Essa pergunta vale escrever um livro. Cabe ao artista dar crédito para as pessoas. Ponto.
É o certo. MAS… Às vezes não é possível, mesmo querendo. O que fazer quando você
acha uma música incrível em MP3, comprada num camelô na Etiópia, intitulada apenas
“faixa 3”? Já coloquei coisas assim em playlists e pedi para as pessoas me avisarem o que
era. E já descobri coisas maravilhosas!
Bom, descobri o meu disco sendo disponibilizado gratuitamente nos sites russos de MP3
— o disco ainda não foi lançado! Eu mesmo raramente uso samples ou loops no meu
trabalho. Faço tudo eu mesmo. Agora, não quero criticar o uso de samples ou loops — ao
contrário, acho que pode resultar em música extremamente sofisticada, bonita e profunda.
Mas o problema é que a maioria das pessoas não trabalham assim — baixam um loop da
internet, jogam no programa e já é! Já vi pessoas fazendo isso de Nova Iorque ao Rio de
Janeiro, de Casablanca à Nova Delhi. Parece que hoje em dia está mais dificil do que
nunca se sustentar com música, mas a gente luta, diversifica, adapta, dá um jeito.
Fora isso, passei dificuldades para chegar em lugares onde eu queria visitar músicos,
gravar ou simplesmente curtir um show. No Congo, meu passaporte foi confiscado sem
motivo por militares corruptos na busca de dinheiro. É incontável o número de vezes que
eu levei uma “dura” (revista policial) indo ou voltando de um baile funk aqui no Rio de
Janeiro. Essas experiencias não são nada especiais, ao contrário, são muito comuns. E
olha que eu sou branco, homem e tenho passaporte dos EUA — relativamente
privilegiado. Não posso imaginar os problemas que alguém, por exemplo, do Togo ou do
Afeganistão tem em se apresentar num festival na Alemanha (ou EUA, ou Dinamarca
ou…). Mesmo em tempos de globalização, nos quais podemos viajar facilmente, está
cada vez mais difícil para a arte e a cultura atravessarem essas fronteiras. A
monetarização da cultura e da arte é problemática.
Para finalizar, conte-nos a respeito dos clipes? Quais foram as referências visuais?
O clipe “Piloto de Fuga” tenta tratar o assunto da vida cotidiana de um “piloto de fuga”,
sem romantizar a vida e nem fazer apologia pelo trabalho dele. O piloto se encontra num
momento difícil, de crise. Ele não sabe se vai ou não. As imagens das ruas, carros, luzes,
etc. são lembranças, visualizações da vida dele — ele tá dentro do carro lembrando essas
coisas, tentando decidir se vale a pena arriscar tanto. Quanto às influências visuais, um
grande fator foi que a gente não tinha dinheiro nenhum pra fazer o clipe — foi tudo feito
“no amor”. Influências específicas — a cena de abertura do Drive, a abertura do livro
“Abusado”, de Caco Barcellos, e a cena de abertura de “Amigos Improváveis”.
Já o outro clipe, “No Balanço da Canoa” (com Rosângela Macedo e Marcelo Yuka), está
mais na onda do conceito do disco em geral. Mostra uma realidade alternativa (ou talvez
nem tão alternativa) onde a música é proibida (que nem na época quando a capoeira ou
samba foram proibidos, ou hoje em dia com o funk proibido). Uma grande influência
para o clipe foi o livro Neuromancer do William Gibson, no qual uma communidade de
rastafaris sobrevivem numa aeronave espacial escutando dub. Tentei imaginar como as
músicas afro-brasileiras iam continuar no futuro….
***
STEPHEN O’MALLEY
Com o KTL, O’Malley se junta ao inglês Peter Rehberg (mais conhecido como Pita) para
lançar-se à experimentação eletrônica, buscando recriar, sobre outras bases, o clima
soturno dos discos de death e black metal que o acompanham desde a adolescência. A
dupla, que iniciou os trabalhos em meados dos anos 10, lançou em maio seu quinto
álbum, simplesmente batizado como V (eMego, 2012).
Esta variedade se refletiu no resultado final do disco, que foi gravado em estúdios
tradicionalmente ligados à música eletrônica europeia, como o EMS, em Estocolmo e o
Meccas GRM, em Paris. Assim, V é talvez um dos trabalhos mais elaborados da dupla,
trazendo consideráveis variações de abordagem e composição entre as cinco faixas, ora
remetendo ao clima carregado dos trabalhos anteriores, ora dialogando com as
dissonâncias e sonoridades eletroacústicas presentes na obra de Gÿorgy Ligeti e Eliane
Radigue. A escatológica “Last Spring: A Prequel”, por exemplo, repleta de diálogos em
francês, advém do trabalho de Rehberg e O’Malley com a coreógrafa e diretora de teatro
Gisèle Vienne, ao passo que “Phil 1” se aproxima das experiências anteriores, dedicadas
à exploração dilatada dos drones. Mas o carro-chefe reside na participação do compositor
e produtor islandês Jóhann Johanson na apocalíptica “Phil 2”. Johanson compôs a
orquestração da faixa e convocou a Filarmônica da Cidade de Praga, conduzida por
Richard Hein, para executá-la, realçando o ambiente lúgubre com uma pletora de
detalhes.
Sobre como pretendem levam esta diversidade para os palcos e, particularmente, como
conduzirão o concerto no Sónar São Paulo, O’Malley demonstra a intenção de abordar
sonoridades divergentes:
“No último concerto que fizemos em Moscou, no mês de março, resolvemos improvisar
sobre a estrutura de uma peça antiga, composta em 2007. Não fazíamos isso em uma
apresentação há muitos anos! Quando você toca em um festival como Sónar, onde há
tanta música ambient e eletrônica no programa, bem como um tipo de música mais
baseada no ritmo… Bem, Pete e eu provavelmente faremos algo completamente diferente
(risos). Pode ser mais black metal, mais pesado… Estou apenas estimando…”
Não há dúvidas de que seu métier é a música, muito embora manifeste habilidades que
não se resumem ao universo musical. Além de percorrer com desenvoltura o espectro de
expressões artísticas de nosso tempo, como instalações, performances, design e
experimentações de toda sorte, O’Malley foi designer de numerosas capas de disco
(Onehotrix Point Never, Boris, Earth, etc.), elaborou peças e instalações com a já citada
coreógrafa Gisèle Vienne, o escultor americano Banks Violette, o performer ialiano Nico
Vascellari, o coletivo suíço KLAT e o cineasta belga Alexis Destoop. Não pairam
dúvidas quanto ao aspecto imagético, quase cinematográfico — e, com certeza, dramático
— que perpassa todos os seus trabalhos, mas ele acrescenta:
“Uma das coisas mais interessantes da música é que você pode entrar em contato com ela
de muitas maneiras, não apenas através da audição … Sempre pensei a música como um
dispositivo visual, mas também ‘físico’. A música não é simplesmente direcionada para
os ouvidos, parte de seu poder de atração advém do fato de que ela estimula a imaginação
de maneiras diferentes. Me surpreende o fato de que as pessoas possam ser estimuladas
pela música que eu faço, mantendo uma relação ‘visual’ com a escuta. Porém, a grande
ilusão é que a audição é um sentido isolado! Pois ela tem a ver também com o toque e a
visão.”
“Em primeiro lugar, o Æthenor nunca foi realmente uma banda direcionada para as
apresentações. Na verdade, fomos convidados para tocar em um festival, cerca de três ou
quatro anos atrás, e Daniel O’Sullivan, que é como o líder da banda, trouxe Steve Noble
para o projeto. Foi a primeira vez que tocamos juntos ao vivo e, é obvio que passou a soar
diferente, porque é uma outra coisa. Os três primeiros discos do Æthenor são basicamente
produções de estúdio, e falando por mim mesmo, tenho muito pouco a ver com esses
discos, é algo que eu honestamente não domino. Quer dizer, eu sei quais são as partes em
que eu estou tocando (risos)… Mas quando começamos a tocar ao vivo, aí a coisa ficou
real, pelo menos para mim. Então, é um tipo diferente de projeto. Noble já não esta mais
envolvido no Æthenor, mas, de certo modo, houve sim uma segunda geração do grupo
que contou com sua presença. Ora, tocar com Steve Noble foi um prazer, e sempre que
conseguimos cumprir uma tarefa diferente em conjunto é realmente estimulante!”
Para finalizar, pergunto a O’Malley a respeito do selo Ideologic Organ, distribuído pelo
eMego de Peter Rehberg. Como se não bastasse sua hiperatividade como artista na
música e nas artes visuais, o autor é o responsável pela curadoria e a programação visual
do selo. Desde 2007, o Ideologic Organ se dedica a lançar trabalhos de O’Malley e
companhia, mas também a desvendar autores misteriosos como Ákos Rozmann e Eyvind
Kang. Trata-se de um trabalho em progresso, segundo as palavras de O’Malley:
“Estou tentando descobrir qual é o conceito do selo. Acho que trata-se de uma
composição conceitual. Você pode ter Ákos Rozmann, que é um compositor eletrônico, e
algo como Sunn O))), trabalhando em um mesmo universo. E ainda assim, tento
descobrir que tipo de universo remete ao conceito do selo. Acho que ainda estamos longe
de defini-lo. Estamos ainda definindo a identidade visual, trata-se de um selo diferente de
todos nos quais já trabalhei. Demora um tempo até que se consolide uma identidade.”
***
SUN ARAW
Que o leitor não estranhe o título desta entrevista. Mas basta uma olhadela nos vídeos do
Youtube, nas páginas da rede, nas revistas e fotos que destacam Cameron Stallones ou
algum de seus projetos. Estaremos diante da personificação do equilíbrio trágico, pela via
da não agressão, em busca de uma “outra consciência, estados alterados, experiências
elevadas”.
O artista vem ao Brasil em dezembro para o Festival Novas Frequências, com apoio da
FACT Magazine PT. Entre as brumas, reflexões, The Congos (sim, The Congos!), cores e
música com alto teor de vertigem e delírio, surge um indivíduo articulado, hiper-
informado e, ao que tudo indica, extremamente consciente das peculiaridades de sua
geração e da posição do seu trabalho na atualidade. O que para um rapaz de vinte e
poucos anos não é pouca coisa.
***
Seus álbuns parecem grandes sessões de improvisação, mas, ao mesmo tempo, soam
como se fossem minuciosamente concebidos e editados. Como você avalia a tensão
entre a espontaneidade da improvisação e o rigor do conceito no seu trabalho?
Improvisação tem que ser o ponto de partida, há uma energia e uma conexão que você
alcança apenas em momentos de descoberta e que não podem ser simuladas. Mas, sim,
tudo fica muito meticuloso após essa fase inicial. Eu gasto muito tempo misturando e
esculpindo as improvisações, acrescentando e subtraindo coisas. O objetivo é remover
toda a intenção do início do processo, e então preenchê-lo com intenções durante a fase
ornamental.
Ouvindo seus discos, percebe-se que você despreza a integridade dos gêneros
musicais. Podemos ouvir de tudo, desde o rock até o afrobeat, passando pelo funk,
jazz, música eletrônica, etc. É possível continuar lidando com a ideia de gênero na
era da informação digital?
“Desprezar” talvez seja uma palavra forte. Eu as respeito pelo que são, mas o fato é que
para alguém da minha idade, crescendo na geração que cresci, eu não sou capaz de
“legitimamente” participar de qualquer gênero em particular. Eu acho que é o preço que
se paga por um acesso total à cultura mundial. Na verdade acho que todo o sistema de
pensamento sobre o ser humano é destrutivo: “válido”, “inválido”, que tem um “direito”
de fazer um certo tipo de música. “Autenticidade” é um conceito incapacitante para o
espírito humano, é a retrospectiva em perspectiva, uma qualidade que só existe para a
“transcendência” acadêmica (geralmente de ocidentais brancos), e mantê-lo para sempre
ligado à sua própria insegurança. Claro que a autenticidade real é muito importante, mas
você consegue obtê-la de uma forma totalmente diferente: sendo um ser humano e
interagindo com outros seres humanos com o coração aberto.
Em seu último trabalho, Ancient Romans, uma série de novos instrumentos foram
incluídos, tais como trumpetes e saxofones. Existem limites para a paleta sonora do
Sun Araw? Cada novo álbum do Sun Araw trará concepções de instrumentação e
arranjo diferentes?
Sendo o meu projeto solo, Sun Araw está sempre girando em torno de tudo o que me for
interessante naquele momento. Estou sempre interessado em instrumentos diferentes,
texturas diferentes, e como se apresentam. Quero que este avião super-sônico se
mantenha em expansão.
A propósito, como foi concebido Ancient Romans, seu último álbum? Alguns
elegeram como seu trabalho mais palatável, mas a repetição, o improviso e o caráter
“mântrico” permanecem. Ancient Romans é um álbum de transição?
Eu acho que pode ser mais palatável, simplesmente porque foi melhor gravado do que os
anteriores. Por outro lado, sei que minha perspectiva é distorcida, mas acho que é mais
estranho do que quaisquer dos meus discos anteriores. As estruturas das canções são mais
estranhas, as texturas são muito difíceis. Para mim é um disco incrívelmente espiritual, e
é uma expressão de algumas idéias poderosas que estavam me movendo na época.
Ancient Romans parece seu trabalho mais equilibrado, pois podemos observar
certas polaridades: tonal/atonal, improviso/composição, melodia/noise,
instrumental/canção. Como interpreta esta característica em relação a seus
trabalhos anteriores?
Isto é interessante. Acho que você está certo. Não foi consciente, mas em quase todas as
músicas há ideias contrabalançadas muito particulares. Texturas para detonar outras
texturas, uma guitarra melódica combinada com algo muito mais atonal. Acontece
intuitivamente quando estou gravando. Mas a idéia é muito poderosa, ela ilustra que os
opostos não são resolvidos pelo extermínio de um deles, mas por uma nova perspectiva
na qual ambos podem ter seu lugar paradoxalmente sem se agredirem.
Como este será o seu primeiro show no Brasil, no Festival Novas Freqüências,
gostaria de saber o que você espera da plateia do Rio de Janeiro. E também se você
costuma ouvir música brasileira.
Eu não tenho certeza do que esperar, mas estou incrivelmente animado de ir pro Brasil.
Eu não sei muita coisa sobre música brasileira, mas eu amo os discos psicodélicos feitos
aí na década de 70, especialmente Marconi Notaro, No Sub Reino Dos Metazoários, que
é um disco muito especial para mim. Também o Paêbiru álbum de Lula Côrtes e Zé
Ramalho e, claro, Os Mutantes.
Qual será a base das apresentações no Rio? O que podemos esperar de um show de
Sun Araw?
Atualmente o show da banda Sun Araw consiste em 3 peças. Nós tocamos músicas de um
monte de álbuns e também fazemos um monte de improvisações. A coisa ao vivo é
construída inteiramente por conta própria, por isso é muito diferente dos discos.
E sobre seus próximos projetos? Ouvi falar sobre um novo projeto do Magic
Lantern e uma colaboração com o The Congos, é verdade?
Não sei ainda sobre o Magic Lantern, é algo para o qual ainda estamos esperando que o
universo manifeste. Mas eu acho que vai acontecer. O disco com o The Congos chegará
em breve, no início de 2012. Passamos 10 dias na Jamaica gravando, e foi a viagem mais
incrível, em todos os níveis. Estamos prestes a voltar! Também enquanto estávamos na
Jamaica, fizemos um monte de outras músicas com artistas do dancehall local, e estamos
abrindo um selo chamado DUPPY GUN PROD, para lançá-los em singles de 12”. O
primeiro será lançado em uma semana ou duas.
***
Formado por Renato Godoy (bateria), Felipe Zenícola (baixo) e Marcos Campello
(guitarra), o Chinese Cookie Poets lançou dois trabalhos até o momento: o EP homônimo
de 2010 e o bootleg Dragonfly Catchers and Yellow Dog. Porém, em 2012, o grupo
promete pelo menos mais 3 lançamentos até o meio do ano, entre trabalhos de carreira e
parcerias. Quem estiver interessado em conferir o som do grupo ao vivo, terá a
oportunidade no próximo fim de semana, dia 21 de janeiro, quando o CCP se apresentará
na Casa do Mancha, em São Paulo, ao lado de outra boa surpresa carioca de 2011, o
Sobre a Máquina – em ambas as apresentações, a participação do saxofonista Alexander
Zhemchuzhnikov. Abaixo, um bate papo virtual que tivemos com os integrantes do
grupo.
***
Um dia bebendo uma cerva, Felipe me apresentou umas faixas com umas programações
de bateria, pensando em fechar aquele material num EP. Na hora que ouvi gostei muito
da proposta, mas achava que o resultado soava muito aquém do que seria se fosse alguém
tocando mesmo. Foi quando propus de gravar umas baterias em cima, apenas pra
registrar o EP sem intenção de formar uma banda. Em março de 2010 marcamos a sessão
de gravação e aproveitamos pra registrar uns takes de improvisos. Os caras editaram tudo
e me mandaram o material pronto. Ouvi o resultado, achei excelente e me toquei que
precisava seguir com o projeto. Logo depois em julho surgiu a possibilidade de fazer um
show na Audio Rebel (estúdio carioca) com o EKE (trio holandês de free jazz).
Foi quando o Felipe, depois de todo o processo de gravação/edição e já com as músicas
prontas, me apresentou ao Marcos na véspera do primeiro ensaio pro show. Fizemos uns
três ensaios e o show rolou. Aí a banda começou de fato, em agosto de 2010. O Ep
mesmo só foi sair em dezembro.
Felipe: Otomo é sem dúvida uma grande influência, assim como outros artistas japoneses
como Boredoms, Melt Banana, Merzbow... Sobre nosso processo de edição/construção
dos arranjos me influencio muito pela linguagem usada pelo duo Haino/Yoshida,
mencionado pelo Renato. Fora isso John Zorn, free jazz em geral, Fantômas, Mr. Bungle,
a cena No Wave... Também os trios Primus, Zu e Trans AM. “Baixisticamente” é
impossível não impregnar o CCP com o som do Les Claypool, do Primus, faz parte da
minha (de)formação como instrumentista.
Marcos: Frank Zappa e Alvin Lucier são grandes influências no que diz respeito à
composição. Na guitarra, muito Derek Bailey, Marcelo Birck, Raphael Rabello, Brian
May, John Russel, Fred Frith, Pepeu, João Bosco, Arto Lindsay. Atualmente tem o
Hamilton de Holanda, Alex Macacek, Allan Holdsworth (não tão atual), Scott
Henderson.
Mas tudo isso depende do conceito inicial que vamos seguir no disco, sempre estamos
conversando sobre essas possibilidades se vamos gravar ao vivo, separado, editar,
sobreposição, 4tracks… Até agora, em estúdio não gravamos nenhuma música composta
previamente, todos os arranjos foram feitos durante a pós, processo que usamos pra fazer
o primeiro Ep e o próximo álbum. Já o bootleg Dragonfly catchers and yellow dog
(segundo Ep) é um show gravado na Audio Rebel na íntegra.
De qualquer forma, parece que há uma lacuna entre as gravações dos dois Eps e as
apresentações ao vivo, pois percebe-se uma certa dificuldade para levar as nuances para o
estúdio e vice-versa. Isto é previsto, ou vocês pretendem criar arranjos específicos para os
próximos lançamentos?
Marcos: Na verdade o primeiro Ep foi feito em estúdio, sem sessões em que os três
presentes, apenas takes em duplas e solos, com muita edição (onde surgiram os temas),
num trabalho sem muita organicidade, mas com o objetivo justamente de criar algo
minimamente orgânico – o que consideramos que foi atingido.
O segundo Ep foi o contrário, uma gravação tosca de um show nosso que ao ouvirmos
achamos boa pela musicalidade. E nesse sentido ela mostra o fim do caminho de um dos
nossos processos de composição, onde improvisamos/editamos em estúdio e depois
aprendemos a tocar as músicas.
Com relação à diferença entre o show e os discos, na verdade às vezes temos dificuldade
para levar as nuances da música editada para a situação de tempo real, pois o que está nos
discos muitas vezes tem um suingue estranho, difícil de ser realizado ao vivo. Além
disso, nos shows acontece muita coisa extra-musical que nos levar pra outros lugares
aonde uma sessão em estúdio não tem chegar, assim como sessões também levam a
lugares por onde os shows não passam.
Além do single, estamos lançando hoje nosso segundo clipe, da música En la mano del
payaso: um clipe pop pra uma música pop, é nossa "Ana Júlia", digamos assim.
Finalmente, acho que muitos contatos são criados nestes lugares, muitos choques
estéticos são vividos e muitas questões levantadas, e é isso que coloca o
experimentalismo na roda, confrontando opiniões e gerando discussões, levando sempre
ao contato com algo desconhecido ou ignorado. Daí surge um novo caminho, geralmente.
Felipe: Do que há de novo, Domenico Lancelotti, Bixiga 70, Duplexx, Cidadão Instigado,
Kassin, Negro Leo, Abayomy Afrobeat Orquestra, Ava Rocha…
Renato: Hoje em dia Rubinho Jacobina, Negro Leo, Cidadão Instigado, Kassin,
Domenico, Ava Rocha, Rumpilezz Orquestra, Alberto Continentino (um dos discos mais
clássicos que ouvi em muitos anos, deve sair esse ano), Stephane San Juan, Orquestra
Contemporânea de Olinda também... Muita coisa boa acontecendo no Rio!
ROB MAZUREK
Uma das obsessões criativas de Rob Mazurek, ou pelo menos uma das mais recorrentes,
diz respeito ao seu procedimento de trabalho: “layering”, quer dizer, sobreposição de
camadas, de texturas, de culturas, personalidades, possibilidades e trabalhos: “Eu elaboro
minhas obras visuais de uma forma semelhante a que organizo o SOM: sobrepondo
camadas, dinâmicas de cor, rabiscos estáticos e vermelhos pesados se misturam em uma
espécie de nebulosidade do movimento cósmico, embora esteja aparentemente parado.”
Em constante movimento após lançar três discos nos últimos meses — as Skull Sessions
com o octeto, Eclusa com o Objeto Amarelo e Stellar Pulsations com o Pulsar Quartet —,
o compositor, trumpetista e artista plástico americano relatou ao Matéria um de seus
projetos mais mirabolantes. Há alguns anos, Mazurek vem desenvolvendo as partes que
integram The Book of Sound, ópera eletroacústica de ficção científica, baseada nos
escritos do poeta e cineasta brasileiro Helder Velasquez Smith. Sobreposições,
novamente: “Usando o SOM, o VISUAL e o TEXTO, desenvolvo sete horas de festa
para os olhos e ouvidos”.
Prestes a lançar o quarto trabalho com o São Paulo Underground, batizado ironicamente
Beija Flors Velho e Sujo (não, você não leu errado…), o artista segue lançando, tocando,
gravando. A superatividade pode denotar uma personalidade forte e auto-centrada, mas o
olhar mais cuidadoso revela generosidade e espírito de colaboração incomuns. “É
divertido pular no abismo, mesmo que os resultados nem sempre sejam os melhores”. E
não foram poucos seus parceiros e colaboradores, dos chapas da cena de Chicago como
Jeff Parker e Chad Taylor, até os manos Maurício Takara e Guilherme Granado, sem
contar mestres e heróis como Bill Dixon, Pharoah Sanders e Roscoe Mitchell. Abaixo,
um pouco dessa generosidade através de uma profusão de palavras, sentidos, sons, cores,
maiúsculas e minúsculas…
***
No texto que acompanha Stellar Pulsations, assinado por Jeff Parker, li talvez a
melhor definição de seu trabalho: “Durante a última década ou mais, Rob Mazurek
vem explorando a idéia de criar ambientes para perder-se no som”. Como você
interpreta este “perder-se no som”? Qual é a posição do artista quando se perde em
meio a um ambiente que ele mesmo projetou?
Gosto de pensar que o som pode existir dentro de certos parâmetros determinados pelo
compositor/intérprete = MÚSICA... mas também pode existir fora dos parâmetros da
idéia de música (ou) de “som organizado”. Como John Cage declarou há alguns anos, o
som existe muito bem por si mesmo. Minhas ideias para a distribuição do SOM levam a
ideia de Cage em consideração, mas também a estruturação ou concepção de um
ambiente sonoro que me agrade e afete mais alguém de forma semelhante.
O que me parece mais impressionante no seu trabalho é que ele mantém uma unidade na
diversidade: muitos gêneros misturados, uma quantidade brutal de projetos, mas, no
geral, percebe-se o mesmo caráter exploratório e “cósmico”. O mesmo na sua obra visual
(em capas de disco ou em White On White), na qual percebemos deteriorações,
emaranhados, mas sempre com uma forte unidade visual. A que se deve essa unidade?
Assim como não se pode nunca experimentar um SOM da mesma forma, não podemos
também ver algo da mesma maneira. Eu elaboro minhas obras visuais de uma forma
semelhante a que organizo o SOM: sobrepondo camadas, dinâmicas de cor, rabiscos
estáticos e vermelhos pesados se misturam em uma espécie de nebulosidade do
movimento cósmico, embora esteja aparentemente parado. Com minhas fórmulas
elaboradas para a ambientação do SOM ou do VISUAL, busco maneiras de varrer a ideia
conservadora de sentimento de morte, como forma de abrir o diálogo entre o pensamento,
a respiração e os seres humanos compassivos.
Li que suas primeiras referências vieram do hard bop, sobretudo Lee Morgan,
Freddie Hubbard, Kenny Dorham e, depois, Bill Dixon. Houve inicialmente uma
tentativa de síntese desses estilos? Conte-nos um pouco a respeito do processo de
formação do seu som como trumpetista?
Primeiramente, você arrisca um som por vontade própria, depois você tenta copiar os
mestres. Daí você deve abandoná-los completamente e tentar criar seu próprio
vocabulário. Assim como é importante parar de culpar seus pais pelas coisas que
aconteceram em sua infância, você deve abandonar sua fantasia de soar como outra
pessoa e tornar-se quem você é. Minha trajetória como alguém que faz SOM gira em
torno dessa busca. Presenciar borboletas azuis translúcidas na Floresta Amazônica, uma
tempestade em Brasília ou ouvir enguias elétricas no INPA em Manaus constituem
influências tão importantes como foram Art Farmer, Bill Dixon, Miles Davis, Alan
Shorter, Chet Baker e Don Cherry.
Qualquer biografia a respeito de Rob Mazurek cita a “fértil cena jazz de Chicago em
meados dos anos 90” como o ambiente no qual você se afirmou como músico,
compositor, experimentador. Gostaria de saber quais seriam, do seu ponto de vista, as
características sonoras e conceituais mais fundamentais deste momento? O jazz de
Chicago contribuiu para a percepção que temos hoje do jazz e do improviso jazzístico?
O SOM sempre esteve presente em Chicago e sempre estará. Durante a década de 90,
quando eu morava em Chicago, haviam grandes músicos que buscavam experimentar
com diversos gêneros e com o SOM em determinados ambientes — combinando
minimalismo com o rock, peças gráficas com Musique Concrete, Jazz com Punk, Techno
com Free Jazz abstrato. Tinha gente como John McEntire e Jim O’Rourke, Fred
Anderson e Hamid Drake, Isotope 217 e Chicago Underground, a nova música de
computador com pessoas como Casey Rice, Nobukazu Takemura e John Herndon, a nova
música contemporânea com os músicos japoneses de noise, uma espécie de explosão de
SOM. Estávamos todos viajando e tocando sempre no Japão, influenciando uns aos
outros. Isso ainda está acontecendo, como sempre tem acontecido desde o início dos
tempos, apenas com instrumentos e estrutura um pouco diferentes. Mas eu diria que a
espacialidade do temperamento do centro-oeste norte-americano sempre esteve presente.
O ambiente e o som do ambiente.
Com São Paulo Underground, Mauricio Takara e Guilherme Granado, todos esses artistas
e conceitos! Nós fazemos música juntos como um experimento tanto em extremos como
também em não-extremos... Quão longe você pode ir quando quer expandir os limites?
Quão longe você pode ir com o SOM, quão longe você pode expandir os limites com
uma bela melodia, um ritmo de candomblé ou um feedback, o quanto podemos
influenciar uns aos outros? É divertido pular no abismo, mesmo que os resultados nem
sempre sejam os melhores. MESMO NO RUÍDO EXTREMO há também potencial para
a extrema beleza.
Como surgiu a ideia de formar a Exploding Star Orchestra? Surgiu com a intenção
exploratória, por exemplo, dos workshops de Charles Mingus?
Não, veio de minha própria ideia de compor para uma paleta maior de cores e
personalidades. Expandindo o vocabulário com o qual ja vinha trabalhando há dez anos
ou mais, usando todas as minhas faculdades em composição, arranjo, construção,
eletrônica, minha experiência com noise, jazz, minimalismo, música africana, brasileira,
indonésia, japonesa, mexicana, polonesa, lituana, italiana, croata, de Marte, Júpiter,
Saturno e tudo mais que venho acumulando ao longo de anos e anos de desenvolvimento,
som e vocabulário. Tudo isso para apresentar uma experiência SONORA por meio de
músicos escolhidos a dedo para elaborar um ruído exultante. Eu literal e figurativamente
queria e ainda quero EXPLODIR A ESTRELA para novos começos e amores futuros.
Sei que Bill Dixon é como um herói para você. Como se deu a participação dele com
a Orquestra?
Bill estava sempre expandindo os limites com suas ideias e seu trabalho. Eu tive o
privilégio de passar um bom tempo com o mestre desde nosso primeiro encontro no
Festival de Jazz de Guelph Internacional em 2006. Nossa reunião nesta ocasião era para
ser fortuita, mas nos tornamos muito próximos depois disso.
Foi na passagem de som de Bill nesse mesmo dia que ouvi o som mais incrível que já
tinha escutado até então, que eu gosto de explicar da seguinte forma:
Após a passagem de som, um fotógrafo queria uma foto de Bill tocando seu trumpete. Ele
parecia um pouco cansado e pronto para ir embora, após o longo calvário de uma hora
para alcançar o som adequado ao local. Bill parou por um segundo, olhou diretamente
nos olhos do fotógrafo, colocou o sopro nos lábios e tocou o som mais sublime e
poderoso que eu tinha escutado de um trumpetista até então. Era como se a igreja se
abrisse e um milhão de pássaros brancos voassem, deixando traços de ouro e prata no céu
tingido por uma luz explosiva. O que pareceu para mim uma eternidade foi, de fato, um
minuto de som. Ele terminou a peça com uma agitação ascendente, e era como se o som
tivesse penetrado os pilares de granito para ser incorporado na rocha por toda a
eternidade... e depois ele fez de novo!
Neste mesmo dia, Bill me presenteou com a caixa de 6 CDs da sua obra-prima Odyssey
e, mais tarde, tocou em um concerto extraordinário com Joelle Leandre, prometendo que
viria para a performance do São Paulo Underground à meia-noite. Eu não achei nem por
um minuto que Bill iria aparecer de fato, pois ele parecia absolutamente cansado do
concerto anterior. Mas lá estava ele sentado na plateia com Sharon Vogel, sua linda
parceira.
Infelizmente não houve tempo suficiente para levá-lo ao Brasil para tocar com o São
Paulo Underground, o que ele manifestou interesse em fazer. Mas houve tempo para
levá-lo como convidado especial para tocar com a Exploding Star Orchestra, em Chicago,
no Festival de Jazz de Chicago, em 2007 (onde gravamos Bill Dixon with Exploding Star
Orchestra para Thrill Jockey Records), em Lisboa, no Festival de Jazz em Agosto em
2009 (tenho uma gravação incrível desta noite, que deve ser lançada) e na Filadélfia, na
International House. Tive o prazer de tocar em Tapestries for Small Orchestra (para
Firehouse Records) e tambem naquele que viria a ser seu último concerto em
Victoriaville, 22 de maio de 2010.
Chegada na casa de Bill ao meio-dia. Bill já terá tocado por algumas horas. Ele pede para
que eu saque meu instrumento, tocamos por boas quatro, cinco horas, intercaladas com
histórias maravilhosas sobre seus dias em Nova York, Bennington, Itália... Ele sempre
concentra a lição sobre o som das notas, o som, o som... Sempre procurando o puro tom
do instrumento. Discutiríamos composição e orquestração, e por cerca de quatro, cinco
horas escutaríamos infinitas gravações que ele fizera ao longo de sua vida. Peças solo,
duetos com Cecil Taylor, material inédito da banda Vade Mecum, performances dos
alunos, seu quarteto de cordas, performances de dança/música com Bill e Stephen
Haynes, noite adentro sem parar, às vezes pulando para um concerto de Bartók ou Hakan
Hardenberger tocando “Endless Parade”. Sempre acerca do som, buscando chegar ao
centro do som... Fizemos isso todos os dias, durante semanas.
Lembro-me de uma vez quando me preparava para voltar para Chicago, depois de um
período de duas semanas com Bill. Parei em frente à sua casa por volta nove horas da
manhã para dizer adeus. Me dirigi ao seu quarto e, sobre sua cama, estavam espalhados
cerca de quinze a vinte livros de matemática sobre todos os tipos de teorias, idéias...
Olhei para Bill e perguntei: “o que está acontecendo aqui?” Ele me olhou muito sério e
disse: “deve haver uma maneira melhor para fazer uma maldita boquilha, e eu vou
descobrir”.
Enquanto esteve em Chicago Bill ficou muito impressionado com as grandes esculturas
sem cabeça intitulada “Ágora de Magdalena Abakanowicz” no Grant Park. Ele estava
trabalhando em uma peça que imaginou para lançamento em TV e em áudio, centrado em
torno da idéia dessas esculturas com entrevistas com o artista e música escrita para dois
trumpetes, o meu e o dele. Era para ser lançado pela Thrill Jockey. Infelizmente não
houve tempo suficiente para realizar este projeto.
Bill estava sempre expandindo os limites com novas idéias, refinando velhas idéias,
buscando o som e o momento. A passagem de Bill é uma perda devastadora, mas sua
obra imensa e a memória de seus métodos rigorosos, sagacidade, humor e inteligência
vão ficar comigo para sempre.
Trabalhos como Boca Negra e Age of Energy diferem em forma e conteúdo dos
discos com a orquestra, o quarteto e, o mais estranho, o trio… Existe uma lógica
conceitual dentro dos trabalhos e das várias formações do Chicago Underground?
SIM, a lógica é criar uma música interessante através de todos os meios que se fizerem
necessários. Tenho tocado com o Chad por mais de vinte anos. Nós ainda construímos
um vocabulário sob o pretexto de que QUALQUER COISA PODE SER FEITA A
QUALQUER MOMENTO. Por isso usamos o básico de nossos instrumentos (bateria e
trumpete) como um trampolim para outras maneiras de elaboração do SOM, de tal forma
que consigamos projetar a UNIDADE e a GRAÇA à nossa própria maneira. Pianos,
computadores, drum machines, marimbas, mbira, caixas de eco, flautas, vibes, voz,
sintetizadores, samplers, wood blocks foram utilizados. A idéia é fazer um enorme e belo
barulho através de ritmos ondulantes, linhas sequenciadas pesadas de baixo, aparelhos
eletrônicos, som ambiente, mbira “assombrada” e estruturas melódicas dolorosamente
belas... É o nosso SOM e tenho muito orgulho disso.
Por que escolheu viver por um tempo no Brasil? E o que de mais valoroso e
interessante o núcleo brasileiro trouxe para seu trabalho?
Falemos sobre o Ekundayo, um grupo maravilhoso concebido pelo infinitamente criativo
Rodrigo Brandão, um cara original em personalidade, energia, idéias, SOM e tudo mais.
Ele teve a idéia de montar a banda, que inclui o São Paulo Underground, o grande músico
e repentista (“wordsmith”) Mike Ladd, o incrível Naná Vasconcelos, os versos doces de
Lurdez Da Luz e Brandão, tudo misturado pelo brilhante produtor novaiorquino Scotty
Hard. Para mim, esta é a ideia de colaboração no sentido de lançar um som de verdade,
uma ideia verdadeira... Isto parece que só poderia acontecer no Brasil.
São Paulo, em particular, possui hoje essa energia para músicos criativos e arte em geral.
Isto influiu na minha decisão de morar lá e trabalhar com músicos e artistas de todo o
país. Guilherme Vaz é um dos tesouros do som e das artes no Brasil. Suas ideias tem me
afetado profundamente. Por exemplo, coletar o som de um índio pertencente à uma
determinada tribo e criar uma peça a partir disso, o poder de tal ideia! Buscando
imaginar, em primeiro lugar, a própria origem do som! Muito interessante para mim...
Radical, eu diria...
Há um trabalho muito interessante e poderoso feito pelo artista Nuno Ramos (tive o
prazer de conhecê-lo em seu estúdio) que vi no Instituto Tomie Ohtake há alguns anos.
Recipientes cheios de vários líquidos: petróleo, glicose, vinagre, água do mar, em diálogo
com bombas, tubos e estruturas de vidro. Uma enorme escultura em 3D, pinturas nas
paredes que pareciam um carnaval flutuante de outro mundo, bastante lírico para os meus
olhos...
Quando escutamos sua colaboração com Takara e Granado, é possível detectar ecos
nítidos da música brasileira dos anos 70 como Hermeto, Clube da Esquina… Havia um
interesse pela música brasileira antes de seu primeiro contato com essa turma?
Antes e depois: Pedro Santos (Krishnanda), Belchior, Caetano Veloso, Guilherme Vaz,
Chico Buarque (Construção), Jobim, Tamba Trio, Milton Nascimento, Moacir Santos,
Naná Vasconcelos, Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal, Cartola, Nelson Cavaquinho,
Marisa Monte, Martinho da Vila, Paulinho da Viola, Clementina, Gal Costa, Ratos de
Porão...
Quando você sobrepõe grandes camadas de tinta sobre uma superfície, segue-se um
acréscimo de emoções, o sentimento e o gosto por alguma coisa é ativado. Esta ativação é
o que é importante para mim tanto com relação ao SOM como em relação ao visual. Meu
bom amigo, escritor, professor, crítico de arte Tiago Mesquita me perguntou uma vez
“por que você trabalha com limites em seus quadros? Por que não tratá-los como objetos
que não tem começo nem fim?” Pensei a respeito e compreendi que essa ideia poderia ser
aplicada tanto ao visual quanto ao som.
Você também pode levar em consideração o trabalho de Nelson Félix, outro artista
brasileiro que admiro. Ele dispõe placas gigantes de aço ao longo de um caminho de
figueiras que em 100 anos ou mais irão deformar o metal, transformando-o em estruturas
orgânicas. Isso com base no modo como as árvores se apropriam e transformam o metal
através do tempo... Pensei: “como isso pode ser feito com som?” Como produzir uma
estrutura atemporal de SOM que será entortada, mutilada, empurrada para seus limites ao
longo de um período muito longo de tempo e, em seguida, conduzida suavemente de
volta para o mundo das coisas? Explorar a ideia de reconfiguração radical das coisas: eis
um conceito que me parece estimulante. Como Tunga, como Hélio Oiticica, como
Maurício Takara, como Guilherme Granado, Paulo Monteiro, Rodrigo Andrade e Panda
(Antonio Panda Gianfratti).
O que mais te interessa na exploração das artes visuais? De que forma essas instâncias
(som, imagem) dialogam no seu trabalho?
Eu estava assistindo a um filme chamado Girl on a Motorcycle, que destroça uma história
bastante comum... É muito mais interessante para mim do que as besteiras de
Hollywood... Por que nesse mundo a mágica das coisas tem que ser extirpada de tudo em
favor da chamada “sociedade normal”? O SOM e a IMAGEM possuem potencialidades,
é preciso manipulá-los, quebrá-los, martelá-los, acariciá-los, beijá-los, afundá-los,
enterrá-los, catapultá-los para novas dimensões, a fim de iniciar um diálogo entre
universos. Às vezes o que está escondido é mais poderoso do que o que é visto: o poder
das pinturas advém das qualidades subjacentes à coisa pintada, a energia acumulada ao
longo do tempo, do pensamento e da ação. O poder do SOM emerge quando você toma
uma simples partícula de alguma coisa e a transforma radicalmente através da beleza, do
ruído, do tempo e tudo mais, para lançar bandos de aves em direção ao céu azul. O sol
assimila essas imagens, esses SONS e sentimentos, e o universo responde... Som e
imagem devem ser amantes... O potencial para voar
Você poderia falar um pouco a respeito de cada um dos três discos que você lançou
recentemente: o 7” com o Objeto Amarelo, as Skull Sessions e o Pulsar Quartet? Soube
que tem um São Paulo Undeground a caminho…
Carlos Issa é um ser humano brilhante. Em sentimento, em SOM, em VISÃO, uma ave
rara que ATIVA o ambiente e tem a sensibilidade para deixar que algo se desenrole tão
naturalmente como rebanhos de renas no sol do ártico.
O novo São Paulo Underground se chama Beija Flors Velho e Sujo, uma espécie de grito
para os Ol Dirty Bastard, a idéia de romper a barreira para o outro lado de uma coisa
através da potência do som e da beleza. Trabalhar com Maurício e Guilherme é uma das
coisas que eu mais gosto de fazer no mundo. Beleza sônica, amizade pessoal, honestidade
e uma razão para mergulhar no éter de possibilidades, tanto musicalmente quanto
pessoalmente. Meus irmãos.
Uma colaboração recente que me chamou atenção foi no disco do Marcelo Camelo. Qual
a principal diferença que você sente quando precisa trabalhar com cantores e canções?
Marcelo é uma coisa rara. Tão atencioso e carinhoso. Quer trazer a beleza e as cores para
o ambiente. Suas canções são poderosas e estranhas ao mesmo tempo. Trabalhamos
juntos há alguns anos e eu vim a perceber que, para mim, o seu poder vem de seu
coração. Trabalhar com o escritores, músicos, cantores e rappers criativos como Marcelo,
como Kassin, como Malu, como Jorge du Peixe, como Vanessa da Mata, como Rodrigo
Brandão, como Will Oldham, como Tulipa, é um prazer e um sopro de ar fresco.
Por fim, li na entrevista recente uma lista de seus próximos projetos e fiquei curioso para
saber mais sobre Extreme Musique Concrete e Illumination Drones…
Isso tudo caminha na direção da minha grande ideia de uma ÓPERA. Uma ópera
abrangente de ficção científica multimídia baseada nos escritos de Helder Velasquez
Smith. Usando o SOM, o VISUAL e o TEXTO, desenvolvo sete horas de festa para os
olhos e ouvidos. Nesta peça vou incluir minhas ideias para Extreme Musique Concrete,
Illumination Drones e dois pequenos contos que ocorrem dentro do ópera chamados
Android Love Cry e Throne of the House of Good and Evil, todos sob o seguinte título:
The Book of Sound.
A concepção de Extreme Musique Concrete e de Illumination Drones é, mais uma vez,
centrada nas sobreposições, criando situações em que a massa de informações torna-se
outra coisa. Os harmônicos do som, os harmônicos da visão são constantemente
multiplicados até que a ILUMINAÇÃO assume, formando os seus próprios estalagmites
alados de uma brilhante revelação.
***
Entrevista realizada e traduzida por Bernardo Oliveira (via email), para o blog Matéria.
Agradecimentos ao Fred (Submarine/Norópolis), Tiago Campante, Antonio Marcos
Pereira e Mariana Mansur
ROMULO FRÓES
Romulo Fróes costuma se dirigir a seu interlocutor com um discurso prolífero e
articulado, cujo aspecto plural encerra um interesse comum no passado, presente e futuro
da canção brasileira. Acompanhá-lo não é simples. E isso não somente pela desenvoltura
com que encadeia pontos de vista, mas por um conflito salutar entre interesses
intelectuais e musicais, exposto sem pudores: “quero fazer uma canção bonita”, e
completa, irônico: “que contenha todas as questões que estão na minha cabeça.”
Ambientados em seus três primeiros discos, “Calado” (2004), “Cão” (2006) e “No Chão
Sem o Chão” (2009), nos deparamos tanto com o pensador inquieto, quanto com o
melodista popular, capaz de surpreender e agradar. Vale notar que há tempos não
contávamos no Brasil com um “cantautor” tão empenhado em herdar e transfigurar o
legado crítico da Tropicália e da “Lira Paulistana” – dois momentos da cultura brasileira
que catalisaram preocupações semelhantes as que Fróes traz à baila. E não por falta de
pretensos candidatos.
Fróes reivindica para si o árduo papel de bardo pensante, desempenhado por artistas
como Tom Zé, Gilberto Gil e, sobretudo, Caetano Veloso. Compartilha com eles o desejo
de atiçar a reflexão através do poder inebriante da canção. Mas pretende superá-los,
investigando com desenvoltura os papéis, atribuições e contextos técnicos e estéticos que
caracterizam o que ele chama de “sua geração”. E, no entanto, considera o díptico Cê/Zii
e Zie, do mesmo Caetano, como “o grande momento” desta mesma geração. Uma
contradição? Talvez. “Eu tô sempre dando rasteira cara, sempre com ‘um labirinto em
cada pé’…”
“Um Labirinto em Cada Pé”, a fórmula poética encontrada pelo cantor e compositor
paulistano para batizar seu quarto e último disco, diz muito a respeito do seu apreço pelas
contradições, pelos paradoxos, curtos-circuitos e demais operações com as quais constrói
seu trabalho e ideias. Mas para aquele que se dispõe a atravessar esse “mar russo”,
antecipo: de nada adianta ouvir o que Fróes diz, sem escutar seus discos, sua voz
indefectível, a instrumentação e os arranjos. Não há como permanecer impassível diante
da canção e da poética desenvolvida com os artistas plásticos Nuno Ramos, Clima e seu
mais novo parceiro, Rodrigo Campos. Uma estética que subverte os hábitos, a função
cotidiana das palavras (e das canções), harmoniza ideias opostas e provoca a imaginação.
“Vivo um momento na minha carreira que preciso começar a falar de música”, afirmou
durante a entrevista concedida à FACT há uma semana. E, de fato, parece que o álbum é
menos a obra de um artista plástico interessado em explorar as possibilidades da canção,
do que obra de um compositor e instrumentista plenamente instalado em seus próprios
domínios estéticos.
***
Para os leitores lusófonos que não conhecem o seu trabalho, uma pergunta bem
genérica. Quem é o Romulo Fróes?
Sou Romulo Fróes, 40 anos. Sou cantor, compositor e estou lançando meu quarto disco
de carreira que se chama “Um Labirinto em Cada Pé”. Sou um compositor que lida com
música brasileira de todas as formas que ela existe, em todas as suas vertentes, do samba,
rock, baião, frevo. Me sinto proprietário, me sinto dono dessa música e a minha intenção
desde sempre foi lidar com a música brasileira como todo. Nos meus dois primeiros
discos, acho que fiquei muito mais mergulhado no mundo do samba, no mundo do
“samba triste”, que é o que mais me agrada. Nelson Cavaquinho talvez seja o meu grande
ídolo, o grande cara da minha vida.
Então esses dois primeiros discos mergulhavam no universo lírico do samba mais triste, e
por causa disso, ganhei a pecha de sambista. E ai, no terceiro disco, um disco duplo,
realizei o que sempre quis: fazer música brasileira de todo o jeito que ela se apresenta,
que também é um retrato da minha geração. Essa geração é isso, lida com a história da
música brasileira da forma como melhor lhe convém sem ter muito pensamento sobre
isso, sem ter um movimento organizado ou questões sobre a sua história, ela
simplesmente pega tudo pra ela, tudo pertence a ela e ela faz uso disso assim e é por isso
que é muito difícil organizar essa geração. Acho que esse é o fato dela ser tão diversa.
Dela nem negar o passado, nem incensar o passado, nem pedir a benção ao passado. Para
ela o passado é dela. Não tem essa coisa de vou negar a música brasileira ou vou
continuar a música brasileira. Eu vou fazer música, eu sou brasileiro, to no Brasil e tudo
isso faz parte da minha música.
Sou um compositor que lida com música brasileira de todas as formas que ela existe, em
todas as suas vertentes, do samba, rock, baião, frevo
Quando cheguei aqui, falei que não era jornalista exatamente e você falou: eu
também não sou músico. Eu não ouço isso como um descompromisso, pelo
contrário, acho isso um compromisso do caralho, difícil de se sustentar. Não ser
músico, mas também não ser literato, não ser intelectual… Ser tudo isso ao mesmo
tempo. Mas por que a música?
Sou desenhista. Teria que ter sido desenhista, teria que ter sido artista plástico que desde
sempre desenhei. Tenho muita facilidade para desenhar, tenho muito talento para isso,
pintava bem, e isso me levou ao encontro do Nuno Ramos que hoje em dia é um dos
meus parceiros, mas foi o meu emprego durante 15 anos. O Nuno foi meu contato com
esse mundo das artes plásticas, um mundo que eu tenho muito mais acesso e entrada do
que o mundo da música, coisa que eu estou tentando reverter já há alguns anos.
O que me agradou no mundo da música é que no Brasil todo mundo joga bola e todo
mundo faz canção e isso é um pouco verdade mesmo. Existe algo no inconsciente
nacional que diz que todo mundo é capaz de fazer uma canção. Acho que quando saquei
que em artes plásticas eu não ia ser um grande artista apesar de todo o meu talento, quis
procurar um negócio que eu tivesse menos habilidade para exercitar. Em música, toco
violão para fazer as minhas canções e tal, mas não sou um grande instrumentista. No
entanto, me agradava a ideia de não ter habilidade necessária para fazer aquilo. Do
mesmo jeito que se me meter a fazer um filme.
O Nuno (Ramos) diz muito sobre isso, que ignorância é algo forte em artes. Ela sozinha
não é nada, mas ela associada a outras coisas, é muito forte em se tratando de artes.
Porque ao mesmo tempo tenho uma ignorância técnica e uma não-formação musical,
pouquíssimas pessoas conhecem tanto de canção brasileira que nem eu, do ponto de vista
do conhecimento da história da música brasileira. Faço parte de um núcleo de pessoas
que conhecem esse assunto a fundo, que discute canção brasileira profundamente.
Fico intrigado quando você fala a respeito desse papel intelectual do artista, porque
no Brasil isso sempre foi uma coisa meio dissociada da criação artística, por mais
que nós tenhamos vários exemplos em contrário. Falou do Caetano, a gente pode ir
lá atrás e falar de Flávio de Carvalho, de artistas e intelectuais…
…do jeito esquizofrênico dele, aquilo é uma discussão altamente intelectual sobre
canção.
A gente vive uma época muito, muito rasa na verdade. Isso que me acusam e acusam a
minha geração de “ah, nunca mais teve música brasileira boa, porque a música morreu
nos anos 60”… Ai neguinho vê um vídeo no YouTube da Elis e do Tom e fala: “ai, que
saudade”. Isso que me irrita profundamente. Mas tem algo de verdade, porque no fundo
tem uma fuga da discussão, tem uma fuga de encarar a história assim, tem uma certa
proteção. Hoje li uma entrevista do Reinaldo Moraes (escritor paulistano) em que ele diz:
“sempre tiveram os idiotas, mas eles ficavam esquecidos, eles ficavam escondidos, eles
não tinham acesso”. Então os caras que estavam pensando e que eram mais profundos e
que pensavam a história da arte como um todo, eram os caras que chegavam lá e
produziam, enquanto os idiotas ficavam anônimos e tal. Agora os idiotas apareceram,
então quem não escreve, escreve, quem não canta, canta e quem não compõe, compõe.
Estão todos na internet, todo mundo tem a sua opinião e as opiniões são muito rasas. Os
idiotas ganharam vozes no mundo, entendeu? Então, quanto mais idiota falar no mundo,
mas difícil aparecer a voz contrária. E ai cria uma sensação do tipo “ah esse moleque é
intelectual”.
Vivo um momento na minha carreira em que preciso começar a falar de música. Tenho
que começar a querer que ouçam a minha música, porque já ocupei um lugar… Esse
negócio tá se repetindo assim, porque como ninguém fala nada, como neguinho fica
assim meio na defensiva, como neguinho foge da discussão até por uma questão de
proteção mesmo… É difícil você ficar dando conta da história da música brasileira. Você
querer se medir com João Gilberto, Caetano Veloso.
Se a canção é esse termômetro cultural, como se aproximar dela de uma forma mais
ambiciosa?
A ambição morreu?
Como necessidade de análise, esta ambição pode estar morta, mas não como desejo
de exploração estética. Tem muita coisa legal acontecendo. Fiquei muito surpreso
com o “Labirinto”, sobretudo quando entra aquele funk na terceira faixa, depois de
uma introdução com a Dona Inah… Ai de repente você joga a gente num forró, uma
coisa meio afro, um frevo…
É.
Ai de repente um funk. É inevitável que alguém vá ouvir o teu disco, pô esse cara
tá…
…perdido!.. [Risos]
Mas perdido naquele sentido de ignorância que você colocou agora há pouco, essa
ignorância que tá aberta à exploração.
O meu trabalho é tudo isso. Só não quero que seja hermético, tenho que tomar cuidado
para que não seja hermético. Porque, acima de tudo, quero fazer canção popular. Me
associam muito a vanguarda paulistana pelo simples fato de eu ser paulista e fazer música
de invenção, digamos assim. Mas sou muito afastado daquilo, eu sou muito afastado do
Arrigo Barnabé e do Itamar Assumpção. Sou afastado daquilo porque quero fazer uma
canção, quero compor “Detalhes” do Roberto Carlos, só que com todas as “caras”, com
tudo que eu quero dizer, com toda a história da música brasileira. Não quero separar uma
coisa da outra. Faço canção. Quero que as pessoas ouçam a minha música e cantem a
minha música. É óbvio que não facilito verdadeiramente para elas. Também espero algo
delas. O que digo que talvez a ambição morreu, eu acho que a ambição do público
morreu, a ambição do ouvinte morreu, o ouvinte não quer ter problemas. Não quer ter que
pensar. Ele quer balançar as cadeiras, ele quer… não é à toa que a música de dança tenha
superado a canção mais reflexiva e já faz muito tempo. Não é a toa que o axé é a
principal música do Brasil. Eu acho que o ouvinte foi emburrecendo, foi perdendo
contato com a arte.
Escutando novamente seus dois primeiros álbuns, “Calado” (2004) e “Cão” (2006),
fiquei pensando nos primeiros discos dos Novos Baianos, eles vinham com aquele
rock e ai conheceram o João Gilberto e fizeram todos aqueles grandes discos,
Acabou Chorare, Futebol Clube… E você não, você veio com aqueles discos de
samba clássico mesmo, com uma pegada anos 60.
Mas com uma esquisitice de paulista, que pelo simples fato de ser paulista já zoava o
esquema… [Risos]. As letras já zoavam o esquema, os arranjos. Mas era um samba
clássico. Eram discos “clássicos”, nesse sentido.
Quero que as pessoas ouçam a minha música e cantem a minha música. É óbvio que não
facilito para elas. Também espero algo delas. O que digo que talvez a ambição morreu, eu
acho que a ambição do público morreu, a ambição do ouvinte morreu, o ouvinte não quer
ter problemas. Não quer ter que pensar
Mas aí você lança “No Chão Sem o Chão”, né. Um álbum duplo, com muito rock e
uma variedade de ritmos… Não tem frase que defina melhor o seu trabalho do que
essa: “no chão sem o chão”… Você tirou o “chão” do fã do Romulo sambista…
Que agora se desenvolveu em “Um Labirinto em Cada Pé”…
Qual o significado dessa mudança? Claro, você já falou, um desejo de explorar mais,
mas houve algum estalo? Foi a pecha de sambista que te incomodou?
Foi isso sim. Estou muito feliz com o disco novo porque acho o seguinte: tem uma
trajetória. No primeiro disco tava encantado pelo Nelson Cavaquinho, pelo Batatinha,
pelo Zé Keti, pelo Paulinho da Viola, recém-chegado do rock inglês. Eu era gótico,
gostava de Joy Division, New Order, era depressivo… E ai fui fazer canção, canção
depressiva e o Nelson Cavaquinho era o meu negócio. Então fiz um disco “clássico”,
como você mesmo disse. Apesar de ter coisas estranhas, arranjos estranhos e tal. E no
“Cão” quis continuar no samba, queria aplicar algo no samba que viesse as outras coisas
e ai eu tive um raciocínio e um comportamento que foi meio fraco na verdade. Vou botar
guitarra no samba e é óbvio que não “aconteceu”… A canção permaneceu samba só que
tinha o Curumim [cantor, compositor e baterista paulistano] tocando umas baterias loucas
e o Lanny Gordin [lendário guitarrista brasileiro] enlouquecendo na guitarra. Eu acho que
a canção ficou dissociada da sonoridade.
Tenho que sair dessa coisa clássica da música brasileira, do violão. Tem que sair do
violão, cair na guitarra e no mundo do rock mesmo e ver o que acontece. Não é à toa que
fiz um disco duplo, porque começou a ir para muitos lados. Foi uma tentativa de esgotar
essa pecha de sambista, mas também uma forma de explorar as possibilidades da canção.
Tem lá baião, canção romântica, canção de piano e voz, solos de guitarra de 14 minutos,
uma faixa que é meio rap.
Pode parecer pretensioso, é sempre difícil você mesmo falar do seu trabalho, mas acho
que “Um Labirinto em Cada Pé” é uma realização da minha canção. Depois desses três
discos, encontrei um vocabulário através do samba, fiz um tipo de canção norteada pelo
samba. Esse disco tem a contribuição incomensurável do Rodrigo Campos, um cara do
samba, mas contaminado por outras coisas. Ele tem um cavaquinho do samba, um violão
do samba, e trouxe um pulso que eu queria de um sambista sem ser sambista, sem deixar
que o samba contaminasse tanto a minha canção, mas que ele permanecesse ali como um
“pulso”. E a partir disso eu tive a possibilidade de finalmente chegar a uma canção
própria. De todos os discos, eu acho que esse chega nesse patamar, através de faixas
como “Boneco de piche” ou “Máquina de fumaça”. Apesar de muito influenciadas por
outros gêneros, elas se parecem com a gente, não com outras coisas.
…a letra…
Sim, a letra. Mas também a tua entoação, tua voz que recobre tudo. Pode entrar um
rock agitado, ou um dueto intimista, como aquele com a Mariana Aydar [cantora
paulistana]… E lá está a tua voz, equalizando aquilo…
…que foi outra coisa que tentei escapar um pouco nesse novo disco também. Fui um
pouco atrás disso, mas acho também que meu canto se firmou, que é esse canto João
Gilberto, digamos assim. Quer dizer, João Gilberto perto de mim tem a expressão de um
cantor de ópera…[risos]. Mas esse canto brasileiro que é um canto para dentro, um canto
mais…
… Sem firulas…
Mas além da voz, acho que tem a coisa da letra. Posso dizer isso porque não sou eu que
faço. Acho que tem um capítulo novo em termos de letra e eu fiquei muito feliz com o
texto do Francisco Bosco [escritor carioca, autor do texto de apresentação], que identifica
isso. Ele identifica parentescos como o Djavan, o Luiz Melodia, o Carlinhos Brown, de
um tipo de letra que não fala sobre nada especificamente. Mas nesses casos, a letra é
coisa vinda de músicos, a melodia é um imperativo. O Djavan compõe pelo suingue, pela
melodia, e não é o caso do Nuno e do Clima, definitivamente. A letra é autônoma, apesar
de combinar com a melodia. Quatro discos depois isso parece muito claro. No “Chão sem
o chão” foi importante para fazer o Nuno e o Clima escreverem de maneira mais livre e
não tão clássica. Fez aparecer coisas mais absurdas, mais loucas, mas também eram
muito loucas, muito absurdas. No último disco esse aspecto ficou mais “formatado”. Eu
sinto que esse disco é um disco mais formatado no melhor dos sentidos. Ele tem um som
claro, ele tem um groove claro, ele tem um jeito de letra claro. E isso com toda a
esquizofrenia que ele possa ter. Foi o que você falou, começa com a Dona Inah, funk,
depois tem rap. Um carimbó feito por um baterista que estudou em Berklee, isso também
me agrada. Eu tô sempre dando rasteira cara, sempre com “um labirinto em cada pé”…
… No chão sem o chão. Fica muito claro que “Um Labirinto em Cada Pé” é um
disco de síntese. Podemos identificar algumas coisas, outras coisas mais sintetizadas,
mais formatadas. O anterior disco era discrepante sonoramente, enquanto o novo é
inteiriço. Como você situa o disco na música brasileira hoje? Supera as dicotomias
que amarram a canção brasileira, tipo nacional/popular, erudito/popular, etc.?
Mas isso que você acabou de falar é a definição da minha geração. Então a minha
geração é um problema…
… Que transcendeu todo esse debate. Mas será que transcendeu ? Estamos falando
aqui desde o ínicio sobre a canção, um debate quase teórico…
Sim, transcendeu…
Mas esse debate ta amarrado a problemas que a gente arrasta desde 1920…
…da Tropicália…
Antes, desde o modernismo, quer dizer, é uma coisa que a gente arrasta, é uma
corrente…
… Mas ai a Tropicália implodiu tudo isso. Neguinho fica querendo achar movimentos, a
Tropicália acabou com essa possibilidade, implodiu. Se o Kassin [Alexandre Kassin,
produtor, integrante do +2] diz achar que o Chimbinha do Calypso é um puta guitarrista,
não é igual ao Caetano falar que o Odair José é do tamanho do Roberto Carlos, e gravar
“Coração materno” de Vicente Celestino. Isso era um acontecimento. Eram os anos 60,
ele tinha que organizar um país, cunhar uma ideia de país, organizar a nação, dar conta do
Brasil.
Hoje o Brasil caminha para uma coisa mais rasa. Quero fugir loucamente disso, minha
função é essa. Estamos fazendo o caminho inverso. Se antes tinha essa coisa elitista da
zona sul carioca, dos festivais universitários, uma cisão entre a elite e a música popular, a
gente deve ao Caetano a superação dessa merda. Ele diz na década de 60 que o Odair
José é um puta cara, a guitarra é um puta instrumento… Mas nessa cisão o país foi
caminhando para uma cultura do entretenimento muito forte, de muito pouco
aprofundamento.
Mas o Caetano continua perseguindo isso… Acontece que ele foi gravar “Um tapinha
não dói” (funk carioca) e ninguém reparou, ninguém deu bola para ele…
Ele tá fazendo turnê com a Maria Gadu [cantora paulistana]. Agora, onde ele acerta é
justamente nos dois últimos discos ["Cê" e "Zii e Zie"]. O Skylab [Rogério Skylab,
cantor e compositor carioca] lá na entrevista da Folha de São Paulo, ele pega e critica o
que chama de “contorcionismos” do Caetano Veloso e do Arnaldo Antunes. O Marcus
Preto, jornalista da Folha, me perguntou o que achava disso. Eu disse: “mas é justamente
quando esses caras se contorcem que eu gosto”. Quando eles estão ligados, quando eles
vão atrás é que eu os admiro. E isso aconteceu no “Cê” e no “Zii e Zie”. É o grande
momento da minha geração. O Caetano Veloso dando conta da gente, entrando em
contato com outras coisas, com outro tipo de som, com outro tipo de rock que ele não
ouvia, de uma geração que é influenciada por ele, mas que já o esqueceu, já foi para
frente. E ele consegue dar conta disso, e faz aquelas canções que só o Caetano é capaz de
fazer com o som dessa geração.
Essa é a grande vitória da minha geração e é o grande problema dela. É o que faz ela ser
anônima, ela não tem mais grandes questões para lidar. O Brasil não precisa mais disso.
O mundo já desmentiu tudo. Os idiotas estão escrevendo, compondo e filmando na
internet, quer dizer, não tem mais ninguém para organizar as coisas, então a gente fica
fazendo coisas que ninguém vai ouvir ou que muita gente ouve, mas não sabe quem é.
Falando de forma imodesta, “Um Labirinto em Cada Pé” está no lado de cima dessa
geração. Tem uma coisa técnica impecável, que não se deve a mim, mas a todos os
músicos que gravaram e ao estúdio. Cada um sabe do seu instrumento, como grava, como
tira um som, o que é um amplificador, o que é um pedal. Isso parece uma bobagem, mas
é uma coisa muito forte nessa geração, de ter aprendido a coisa técnica. Então ele
pertence a categoria dos grandes discos tecnicamente gravados.
Ao mesmo tempo, tem essa vontade de lidar com a música brasileira e travar um diálogo
íntimo com ela, sem algum pensamento mais forte. O único pensamento que eu tenho é
fazer arte. Pode parecer uma bobagem, pode parecer papo de auto-ajuda, mas eu sinto
que isso está acabando. Acho que nunca foi tão necessário fazer arte, de pensar em arte.
Eu quero fazer uma canção bonita. Uma canção bonita que contenha todas as questões
que estão na minha cabeça.
E como você reuniu toda essa turma? Sinto no disco uma coesão fortíssima, embora
as composições sejam de autores diferentes…
Esse é o primeiro disco da minha vida que tive contato com músicos, que virei amigo de
músico. Era amigo de artista plástico, só tinha ideia de artes plásticas, vamos fazer uma
cuíca imitando um cachorro… E a capa vai ser assim: eu nunca apareço, são fotos de
umas obras de arte loucas, uns pés derrentendo, uns passarinhos dourados, uns cachorros
vira-lata… Aí chegava um cara e tocava um baixo acústico desafinado e pede desculpas
por não ter afinado. Mas a gente falava: “assim é que ficou bom”. Era um comportamento
de artista plástico. Nesse disco fiquei mais próximo de uma galera com quem consegui
travar um diálogo, de gente que entendia o que eu queria.
Aí, encontrei o Rodrigo Campos. Eu chapei com ele em São Mateus… E por causa dele
eu fui conhecer o baixista Marcelo Cabral, que produziu o disco do Criolo e toca com o
Metá Metá… O saxofonista Thiago França entrou na onda, que era do samba de Belo
Horizonte e depois começou a tocar com o Quinteto em Branco e Preto em São Paulo e
mais tarde aconteceu o encontro com essa turma toda. É o tipo de músico que me agrada.
O cara fez faculdade de música, só ouvia John Coltrane, caiu no samba mais clássico e
daí vai se desenvolvendo, conhecendo outras possibilidades, encontrando novas pessoas,
influenciando e sendo influenciando por elas,. Esse núcleo foi se formando, nos vemos
quase todo dia, estamos envolvidos com o trabalho do outro. Eu estou no novo disco do
Rodrigo Campos. O Kiko Dinucci, o Cabral e o Thiago tocam no disco do Rodrigo. Aí o
Kiko com o Thiago tem o Metá Metá. E pela primeira vez na vida eu tive um núcleo
musical. Todo mundo entrou, os caras são da banda totalmente. E eu acho que é daí que
vem o aspecto coeso desse disco.
O cavaquinho, que é um instrumento do samba clássico… Por isso que eu falo que a
pulsação do samba tá ali, mas não é samba. Apesar de ser samba também. Você pode
chamar aquilo ali de samba.
Não, é o assunto, é falado. Até nesse disco se cortou algo. Não antes, na composição isso
permaneceu. Permaneceu Romulo, Nuno e Clima. Quando chegou o disco que era uma
coisa que eles sempre estavam muito presentes, eles saíram fora. Nesse não tem Clima,
ele não esteve no estúdio, não mixou o disco comigo e o Nuno então menos ainda. Eu até
fico pensando o que será o próximo trabalho. Talvez o próximo seja só com canções
minhas, finalmente. Acho que eu me descolei um pouco deles nesse disco também. Do
ponto de vista sonoro, completa e absolutamente. Eles ouvem o disco e ficam meio
afastados. Eles são muito mais da cuíca latindo, arco dissonante, prato fora do tempo do
que esse groove arrumadinho, formatado. Mas eu me sinto muito responsável por essa
coisa da canção, por conta desse núcleo de composição e de discussão de canção. Desde
2001 que a gente faz essa porra sem parar, eu, Clima e Nuno.
Em busca de um formato?
Em busca de uma voz própria, de letras cada vez mais inventivas… Quando eu digo que
a letra é o aspecto central, é porque onde os caras estão plenos de sua capacidade. O
Nuno é um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos, por algum motivo
louco, parecido com o meu, ele foi virar artista plástico. Do mesmo jeito que eu virei
músico. A mesma coisa com o Clima, que é cineasta, artista plástico e o que mais quiser.
Você acha que a coesão do disco tem a ver com o aprimoramento técnico?
Tenho certeza que isso mudou a música brasileira, cara. Eu tenho certeza que foi o som
que fez o Caetano compor “Perdeu”. Ele não comporia “Perdeu” se não tivesse o Pedro
Sá fazendo aquela guitarra, e o Marcelo Callado (baterista) e o Ricardo (Dias Gomes,
baixista). É uma música pornográfica, ele nunca fez uma música pornográfica na vida
dele.
Todos são músicos. Aliás é uma geração de grandes músicos que é uma coisa que não é
tão comum. E tem uma coisa que é legal, que é o seguinte: o Curumim que é um monstro
de baterista, que tem o trabalho dele que adoro, música pop de altíssima qualidade, é
baterista do Lucas Santtana e do Guizado. Não é o Arthur Maia, não é o Paulinho Batera,
não é o Luizão Maia, não é o Arismar do Espírito Santo. Porque antes era uma coisa
assim: o Gil chamava o Jorginho Gomes, o Arthur Maia… O Caetano chamava o Lanny
Gordin, o Tutti Moreno. As coisas não se misturavam. O Curumim é batera do Arnaldo
Antunes, do Jeneci. O Jeneci é tecladista do Arnaldo Antunes, do Curumim, o Guizado
tem o próprio trabalho, toca trumpete. Então os músicos também são artistas agora no
sentido de criar a nova música brasileira. Isso se misturou também. E são grandes
músicos do ponto de vista da técnica.
Eu nunca faria uma música como “Diversões Eletrônicas” (do compositor paulistano
Arrigo Barnabé). Aquilo não me toca, eu fico incomodado e num certo sentido se realiza
nesse neu incômodo. Conheço a grandiosidade do Arrigo Barnabé, tenho admiração por
ele e pelo Itamar Assumpção, mas não me toca, nunca me tocou. Araçá azul (disco de
Caetano Veloso), por exemplo, que seria um parente próximo da vanguarda paulistana, é
um disco que me toca, que eu entendo. Eu acho aquilo muito hermético. Eu tenho
dificuldade com o Tom Zé, por exemplo, tirando o Estudando o Samba, que acho a obra
prima das obras primas. Mas quando o Tom Zé começou a ficar hermético demais, ficar
muito “amalucado”, eu tenho dificuldade. Eu quero, profundo, dar rasteira em mim
mesmo, dificultar o meu acesso à canção o máximo que eu puder. Mas, ao mesmo tempo,
quero fazer uma canção. É o João Gilberto, o mais alto nível de raciocínio artístisco. O
Tom Jobim se referia às músicas dele como “sambinhas”, quer dizer, é uma espécie de
ideal da vida. O cara compõe “Insensatez”, que é o mais alto nível da cultura mundial, e
aquilo é um “sambinha”. “Chega de saudade” é um sambinha. Mas isso não é pra todo
mundo, tenho que me contentar com isso.
A vanguarda paulistana era um negócio de momento, eu acho que eles tinham que se
destacar por isso, mas se descolaram muito da canção, por mais que eles digam que não.
Afinal de contas, como diz o Luiz Tatit, “canção é fala e tudo que é mais próximo da fala
é mais próximo da canção”. Tá bom, legal, eu entendi tudo, achei massa, mas não cara,
eu gosto de melodia, eu gosto de letra com melodia, eu gosto de canção, sei que eles
faziam canção, mas não é uma canção que eu goste.
Acho curiosíssimo ouvir isso de você, porque como te falei, “No Chão Sem o Chão”
você ta falando uma coisa, mas o que a gente ouve é outra. Penso que a tua canção é
“metacanção assoviável”, plenamente assoviável…
Então, mas é isso mesmo que eu estou querendo dizer, é o que eu procuro. E isso me
afasta da vanguarda paulistana.
Então, o Kiko Dinucci está resgatando o Itamar para mim, eu sempre gosto do Itamar via
Kiko Dinucci. Acabamos de fazer uma vinheta para a MTV sobre o dia dos namorados e
ai a gente tocou um Itamar, uma música linda. (Canta) “Quando eu estou longe,
loooonge, quero ficar perto”. (“Apaixonite Aguda”, do álbum Pretobrás I)
Lindo isso, né. Agora eu acho que se eu ouvisse o Itamar cantando, não ia gostar porque
eu já botei ele numa categoria assim, eu travei ele na minha cabeça de um jeito e o Kiko
ta ajudando a refazer isso. O Arrigo eu não entendi errado, eu entendi certo, o Arrigo é
um louco. Pierre Boulez, música dodecafônica… Reconheço a importância dele, acho um
cara inacreditável, inteligente, bom para conversar…
Mas é isso, eu fico tentando esgarçar a canção, mas quero esgarçá-la até dar a volta,
entende? Até virar canção de novo. Não quero que ela deixe de ser canção, não quero que
ela vire fala… Pode ser meio incoerente, mas tem o Nelson Cavaquinho, né? Eu quero
que aquilo permaneça, que aquele pulso, que aquela coisa por mais tensa que exista, você
se apegue àquilo. Eu quero que o ouvinte se apegue à canção pela tensão que ela te causa,
não por ela ser fácil, não por ela ser “cantarolável”. Quero que você se sinta atraído pela
canção, pela estranheza que ela tem, mas essa estranheza para mim não pode ser
hermética. “Máquina de fumaça” é uma canção que eu adoro, ela tem todos os conteúdos
que eu espero. Ela tem um groove que você não consegue parar de dançar. Aliás os
rappers poderiam samplear aquela bagaça para fazer coisa…
… É solar…
O que você espera de “Um Labirinto em Cada Pé”? Você acha que será ouvido por
um público mais amplo?
Ah, eu sempre espero isso. Eu quero que as pessoas ouçam. E eu quero que elas
apreendam isso sem ter que ter ouvido os outros. Eu quero que “Boneco de Piche”
funcione por si mesmo.
Sobretudo sem ter ouvido os outros, que ela funcione. A cada disco que lanço é um disco
inédito. Teve um maluquinho agora lá, tava vendo no twitter que falou: “Nossa, esse
“Um Labirinto em Cada Pé” é tão bom quanto o primeiro disco do Romulo, “No Chão
sem o chão”. O cara não sabe que eu fiz dois discos anteriores. Então a impressão que eu
tenho é isso, que a cada disco é um disco inédito. Cada vez novos jornalistas vem falar
comigo e falam: e ai, esse é o seu primeiro disco? É muito louco isso.
Não é à toa que eu já fiz mais de duas matérias pra jornal falando de geração, de cena.
Parece que não forma uma história, parece que os dez anos não se passaram, que não tem
uma cena. Só que agora eu acho que começa pelo menos nos meios mais tradicionais dos
jornais, começa a se organizar. Hoje na Gazeta do Povo, de Curitiba, tem uma matéria
falando sobre isso, pegando o gancho d’A Banda Mais Bonita da Cidade para falar da
geração de curitibanos, dos “novos curitibanos” – já inventaram esse rótulo. Mas aí o cara
pega e amplia isso para a geração como um todo.
Fiz uma longa entrevista com o Marcus Preto, da Folha de São Paulo em torno disso.
Esse assunto tá sendo mostrado, tem uma música sendo feita no Brasil já faz dez anos e
ela tem características próximas. E eu sinto falta de que meu disco rebata nos outros. E
ele não rebate porque cada vez tem alguém que está ouvindo pela primeira vez.
Abaixo, a entrevista virtual que fizemos com Guilherme Granado. Amanhã, crítica para o
disco Mils Crianças. Boa leitura.
Bernardo Oliveira
***
Começo a entrevista com uma pergunta anti-entrevista: Edmundo Clairefoint, que assina
apresentação do documentário Agatha Christie, afirma que o filme retrata “a inexistência
de perguntas e a falta de respostas (…) o significado soterrado por essa preguiça de falar,
de conversar, de explicar”. Podemos estender essa definição ao trabalho do Hurtmold?
Algo semelhante a um “discurso sobre o nada” ou a ausência absoluta da necessidade de
se criar um discurso sobre o próprio trabalho?
Acho que não precisamos, nem queremos criar um discurso sobre o que fazemos. Não
por preguiça, ou pelas músicas serem vazias de significado. Não é esse o caso. Só acho
que a nossa música deve falar por si só, sem amarras a nenhuma “escola” ou qualquer
coisa do tipo.
Em todo caso, trata-se de um trabalho repleto de referências (do punk ao pós-rock, do
dub ao jazz espiritual, etc.) que se catalisam em um resultado original. Durante mais de
uma década em atividade, como você descreveria ou resumiria a posição do Hurtmold no
cenário da música brasileira da última década?
É realmente difícil pra mim descrever ou apontar isso. Até porque nunca pensei sobre
isso, e acho que ninguém da banda pensou. Nunca conversamos sobre algo do tipo. Eu
vejo nosso trabalho como algo bem prático: começamos a fazer, continuamos fazendo e
agora estamos aqui, onde quer que seja. Gostamos de tocar juntos e somos amigos muito
próximos. Simples assim.
Quando você afirma que as músicas não são vazias de significado, fico me perguntando
que significados são esses? Ou é algo que vocês pretendem que o público mesmo
descubra?
Acho que esses significados são muito pessoais pra cada um de nós. Acho que entre nós
mesmos temos interpretações e sentimentos diferentes por cada canção, ou até passagens
particulares delas. O mais legal é deixar cada pessoa achar o significado que ela quiser,
ou a sua própria relação com cada música.
Para mim, há um apelo imagético muito forte: podemos imaginar cenas de um filme
escutando as convenções e mudanças de clima em “SNP”, ou o sotaque afro de
“Tomeletomele”… Como vocês lidam com a influência de artes extra-musicais?
Tudo influencia, acho que a vida mesmo é a nossa maior influência. Quase não
conversamos sobre música, conversamos sobre a vida, somos amigos há muito tempo e
realmente passamos tempo juntos, fora da hora de tocar. E isso é cada vez mais a nossa
maior influência. E não só entre nos seis, mas nossas famílias, amigos, etc.
Li em uma entrevista recente (para a Soma) que vocês se consideram uma banda punk e
entendi como se fosse uma provocação ou uma alusão à filosofia de vida ou de trabalho.
Isso por conta da diluição do discurso punk nos dias de hoje, como ocorre em diversos
segmentos do hip hop, por exemplo. Como o punk se reflete na vida e no som de vocês
hoje?
A maneira como eu entendo o punk rock ainda informa muito tudo o que eu faço, tanto
na música como fora dela. Sei que isso também serve para o resto da banda. O Hurtmold
é, sim, essencialmente uma banda de punk rock. Até porque nossa ideia de punk é bem
aberta e permissiva, no sentido estético. Não acho que foi uma “provocação”, de maneira
nenhuma. É sim, uma afirmação de como vivemos e trabalhamos. Mas é estético
também.
Tem mais a ver com a questão ética (independência, “faça você mesmo”, cooperação,
etc.) do que propriamente com uma sonoridade?
A questão da independência, num sentido bem amplo, conta bastante. Mas a sonoridade
também faz parte, crescemos ouvindo punk rock (e muitas outras coisas) e ainda ouvimos
esse tipo de música, com certeza. E isso, de alguma maneira, vai aparecer no que a gente
faz.
Na mesma entrevista você diz que considera Mil Crianças como “o nosso disco mais
estranho” (no que eu concordo). Você acha que essa estranheza resume o contraste entre
o primeiro Hurtmold (de 3am: A fonte secou e Et Cetera), para o Hurtmold a partir de
Mestro e do penúltimo disco? Mils Crianças é, assim, um disco de síntese?
Difícil analisar isso. Acho que Mils Crianças é uma síntese desses últimos cinco anos,
antes de tudo. Em nenhum momento conversamos ou pensamos sobre dialogar
diretamente com nenhum trabalho anterior ou com a nossa “obra”. Fomos compondo,
resolvendo problemas, polindo as coisas e esse foi o grupo de canções que saiu no final
desse processo. Mas, é claro, somos as mesmas seis pessoas, com as mesmas
experiências e tudo isso informa e aparece no que a gente faz.
Vocês passaram cinco anos sem lançar, mas não pararam de trabalhar. Acompanharam
Pharaoh Sanders e Marcelo Camelo e levaram adiante seus respectivos projetos solo. Em
que medida, pelo menos de sua parte, Mils Crianças reflete a contribuição de todas essas
experiências externas ao grupo?
Não existe separação. Tudo que a gente viveu, musicalmente ou não, vai entrar no
processo de composição. Não consigo exatamente apontar momentos ou escolhas que
vieram por causa de uma experiência específica. Mas está tudo lá, com certeza. Todo
mundo que a gente conheceu, colaborou, viu e ouviu faz parte do disco. Aliás, obrigado.
Não. Nossa ideia é fazer música que fale ao nosso coração e espírito e que, com sorte,
chegue também nas pessoas.
Como eu já disse, acho realmente o Mils Crianças o disco mais estranho do Hurtmold,
sobretudo em comparação com o clima de experimentação jazzística do disco de 2007. O
clima excessivo e os improvisos mais ruidosos permeam o disco anterior, enquanto Mils
Crianças é límpido, quase apolíneo — talvez por isso o considerem mais “acessível”.
Quais as principais diferencas que você detecta no processo de criação entre um e outro?
Demoramos cinco anos pra fazer esse disco. O processo de composição foi mais longo, e
até por causa disso, mais esmerado. Cinco anos se passaram nas nossas vidas e isso conta
muito pra uma pessoa. Estamos cinco anos mais velhos. Colaboramos com muita gente,
tocamos bastante, viajamos pelo mundo e isso claro que conta também. Eu não consigo
exatamente dizer “isso ou aquilo esta diferente”, até porque estou dentro do furacão e pra
mim tudo acontece naturalmente. Acho que as músicas do disco anterior talvez fossem
mais longas, com passagens mais estendidas, e esse pode ser visto como mais “direto”
por algumas pessoas. O tempo das canções é uma diferenca clara, pra mim.
Tempo em que sentido? Duração das faixas ou os ritmos compostos? Pergunto porque
Mils Crianças é um trabalho muito rico do ponto de vista do ritmo. Não em relação aos
compassos compostos (com destaque para “Joji”, que se não me engano é em 6/4), mas
também quando vocês criam ritmos paralelos (a bateria vai prum lado, o baixo pro outro),
e jogam com o andamento (como por exemplo na guitarra que introduzem “Hervi”)...
Eu quis dizer na duração das faixas mesmo. Elas são mais curtas.
Eu acho, e já disse antes, que o Hurtmold é uma banda basicamente percussiva. Ritmo
sempre contou bastante nas nossas composições, e não só nos instrumentos de percussão.
Acho que de uma maneira ou de outra, isso sempre esteve presente nos nossos trabalhos.
Mils Crianças soa mais minucioso, detalhista e econômico, como se pode escutar em
faixas como “Tomeletomele” e “Cleptociprose”, entre outras. Como funciona esta
dinâmica de construção e estruturação das músicas? Mais de uma década depois, você
possuem algo como um método de composição?
Acho que temos algo que se pode chamar de “método”. E isso consiste em não ter
nenhuma ideia pré-concebida de como nenhuma canção deve soar. Trabalhamos juntos,
os seis, o tempo todo em todas as músicas. Todas as ideias são esmiuçadas e mexidas.
Ninguém, pelo menos até hoje, chegou com alguma canção ou estrutura já pronta. As
músicas partem de ideias, fragmentos, conversas. A partir de uma pequena ideia todos
começam a trabalhar, testar e tentar até que obtemos, ou não, alguma coisa que nos diz
algo.
Sobre seus trabalhos solo como Guilherme Granado: este ano assisti a uma apresentação
no Walden e me surpreendi com o caráter espiritual que você imprime na composição e
na interpretação — que de certa forma também está presente no Bodes e Elefantes. Há de
fato uma inclinação pessoal místico-religiosa, ou seu interesse é puramente musical?
Eu me considero uma pessoa espiritual. Não no sentido religioso. Não tenho religião.
Mas sei que, pra mim, em muitos sentidos, ouvir e fazer música ou arte me conecta com
as pessoas e com o mundo de uma maneira que eu só posso dizer que é espiritual. Não
faço isso conscientemente, não tento fazer de nada uma experiência “religiosa”, mas
acho, sim que isso pode acontecer. Não diria que meu interesse é puramente musical. Não
sei apontar com precisão meu interesse... Acho que as palavras “busca” e “conexão” são
as que mais se aplica. Com quem esta vendo, ouvindo, com o que esta tocando, com a
sala, com tudo.
Não existe previsão. Tenho coisas gravadas, coisas compostas. É cada vez mais difícil
lançar discos. Mas tem material sim, é só encontrar a melhor maneira de registrar e de
colocar na rua. O São Paulo Underground tem um disco novo gravado e deve sair em
algum momento em 2013.
Quais os motivos que te levam a considerar que está cada vez mais difícil lançar discos?
Acho que um dos principais motivos é econômico mesmo. As pessoas não compram mais
discos como compravam. E isso nos deixa, nós que produzimos os discos, numa posição
de reavaliar como fazê-los e como produzi-los. Não estou reclamando ou criticando, só
estou apontando um fato. Existem custos a serem levados em consideração, e isso às
vezes faz com que você demore mais pra terminar um disco e colocá-lo na rua, seja qual
for o formato (cd, vinil, download, etc.).
Diante das turbulências e incertezas do mercado fonográfico, como vocês que fazem
música independente estimam que será possível produzir e lançar discos a médio e longo
prazo? Você concorda com vários críticos e estudiosos que afirmam que o formato
“disco” está com os dias contados?
Realmente não sei como responder essa pergunta. O que me parece é que o formato
“álbum” não acabou, a única coisa é que as pessoas não querem mais pagar por isso. Mas
o formato long-play não é tão antigo assim também. Já foi diferente, e não há tanto
tempo. O número de lojas de discos e selos independentes fechando e sumindo é um sinal
(pra uns bom e pra outros ruim) do que vem acontecendo. E os artistas um pouco mais
mainstream (ou nem tanto) procurando “patrocínio” ou “apoios” de grandes marcas ou
corporações tambem é um sinal. Me parece que o grande dinheiro ainda continua nas
mesmas mãos e as pessoas talvez tenham inventado uma fantasia de que o grande mal
(nesse caso, as grandes gravadoras) estejam perdendo força. Mas, sinceramente, qual é a
grande diferença entre a Sony ou a Universal e a Nike, Coca-Cola, Red Bull ou algo do
tipo? Dito isso, é muito legal ver que as pessoas tem acesso à música de uma maneira
rápida. Mas também existem muitas meias-verdades e ilusões sobre a “democratização”
da música por causa da internet, me parece. Vamos ver o que acontece, realmente nesse
momento tudo parece em aberto
E para terminar: o que mais te chamou atenção na música dos últimos meses? Você
toparia dizer o que mais te agradou musicalmente em 2012?
“Cotonou Club”, agora editado, é o primeiro álbum do grupo com lançamento mundial. A
turnê mal começou e seus integrantes já plenejam a gravação de um novo álbum. Energia,
como eu dizia. Quem teve a oportunidade de assistir a uma das catárticas apresentações
do grupo pode ter uma ideia de seu potencial. “Cotonou Club” já obteve crítica da FACT-
PT. Agora é a vez do depoimento de Vincent Ahehehinnou, cantor e membro original da
banda, que explica o processo de criação, as influências e nos assegura que o grupo
prossegue.
O processo é bem complexo, mas geralmente cada compositor escreve sua canção (letra e
música) e, em seguida, mostra ao grupo que pode adicionar alguns elementos. Para o
álbum “Cotonou Club” foi um pouco diferente pois não trabalhávamos todos juntos há
quase 30 anos. Antes nós entrávamos no estúdio e poderíamos gravar um álbum em uma
noite. Neste disco, ensaiamos no Benin e em seguida fomos para uma residência artística
no interior da França por duas semanas, para trabalhar as nossas músicas e escrever
novas. Então, finalmente, gravamos em um estúdio analógico em Paris, em duas sessões
espaçadas em dois meses.
Considera que “Cotonou Club” é um álbum diferente dos anteriores? Em que sentido?
É uma ponte entre a velha e a nova Poly-Rythmo, no sentido em que continuamos com a
lógica da sonoridade e das criações antigas e, sobretudo porque nós gravamos
analogicamente que é uma característica dos nossos discos. Mas desta vez tivemos a sorte
de ter algumas participações, graças a Elodie Maillot (jornalista da “Radio France”, da
“Vibrations”). Para descobrir “Cotonou Club” tem que ouvi-lo várias vezes e entrar nos
detalhes.
Como foi contar com dois membros do Franz Ferdinand na gravação do último disco, e
também excursionar com eles?
Foi graças a Elodie Maillot que, por insistência nossa tornou-se nossa produtora e
empresária. Foi graças a ela que saímos da África pela primeira vez. Um pouco depois de
nos reunirmos no Benin para uma entrevista, ela também havia entrevistado os músicos
do Franz Ferdinand, que sonhavam em nos conhecer. Passamos cinco dias juntos em
Paris ensaiando para um concerto e, finalmente fizemos a música juntos.
Fale-me a respeito das primeiras apresentações fora de Benin. Soube que até 2007, a
Poly-Rythmo nunca tinha saído da África. Como foi a recepção? E a banda, como reagiu?
O que nos aconteceu, não havíamos imaginado nem em sonho. Nunca imaginamos que
tocaríamos e gravaríamos na Europa, ou mesmo iríamos para o Brasil. O público europeu
é muito diferente do público do Benin, que normalmente é muito calmo, enquanto isso na
Europa as pessoas se levantam, gritam e nos pedem para voltar, mesmo quando já saímos
do palco.
Ouvi dizer que James Brown foi mais importante para a Poly-Rythmo do que Fela Kuti.
Qual a dimensão da importância do soulfunky concebido por James Brown para a banda?
Ele inspirou nossa música desde o início, só conhecemos Fela anos depois, James Brown
foi desde sempre… “Yaooooooo I feeel goooodd!!!”
Em que sentido Brown influi na sonoridade das bandas africanas nos anos 1970,
principalmente as da Costa Oeste?
Era uma época em que só havia a música soul e funk, não havia outra música estrangeira
capaz de competir com o poder do soul.
Não temos parentes no Brasil, são os brasileiros que têm parentes aqui na África. Mas,
efetivamente em Salvador na Bahia nos sentimos em casa, pois até a comida é muito
parecida. Visitamos pequenos restaurantes e supermercados e os produtos são os mesmos
que encontramos no Benin. Existem também gêneros musicais brasileiros que são muito
presentes no Benin e são parte do patrimônio cultural nacional, chamamos de Bourignan
(Nota: tradição de dança e música levada pelos Agudás, descendentes de escravos que
retornavam do Brasil para o Benin).
Não, não poderíamos incorporar esses gêneros em nossa música lá … porque este
gêneros apareceram 40 anos depois de nós já existirmos… Nós até tentamos um pouco,
mas não muito, no entanto alguns rappers nos sampleiam e entendem nossa música…
Quarenta e dois anos de carreira, mais de quinhentos discos, uma das discografias mais
cobiçadas do planeta, considerada hoje por muitos a maior bandas de funk-soul do
mundo: a que o sr. deve a longevidade da “tout pouissant” Poly-Rythmo?
Nossa longevidade se caracteriza pelo espírito de equipe, pela disciplina do grupo e pela
personalidade forte do nosso maestro, Mélome Clément.