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AEiæîS&MÉAIO

LÍVRARÍA $£RTR&NI*
Íiili*"'

Sobre o tema da angústia de

viver, Alice Sampaio conseguiu


escrever uin livro profunda-
mente original, gracas a um
desloeamento poderoso através do
tempo e do espaco, que lhe per-
mite despôjar o problema do
destjno humano dos seus aspec-
tos secundários ou contingen-
tes, para chegar logo ao centro
do assunto.
Somos transportados, neste
romance aparentado å ficfão
eientífica, para um universo da
facilidade, derivado ôbviamente
do ((Admirável Mundo Novo» de
Aldous Huxley, mas
que assnme
também aspectos fantásticos e
até francamente inquietantes.
Com uma arte sugestiva, colo-
ridíssima, a raiar pelo visioná-
rin, a autora constrôi um mundo
•de paisagens e seres inconcebí-
veis, cheio de cidades minerais
e vidas subterrâneas, palpitan-
tes, evocado numa espécie de
^.ioraria Qôperanca
Rua dos Ferreiros, 119
Telefone, 21116
FUNCHAL-MADEIRA
',!■■ ■■'■:
O AQUÁRIO

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OBRAS DA AUTORA

A CIDADE SEM ESPACO (romance) —

1961

O AQUÁRIO (romance) —

1963
ALICE SAMPAIO

O AQUÁRIO
ROMANCE

LIVRARIA BERTRAND
Capa de

Guilherme Casquilho

(C) LIVRARIA BERTRAND, s. a. r. l.


«Sans le Mouvement, tout serait une
seule et même chose*.
Balzac

Capítulo I

monstruoso olho avermelhado, dei-


Alente,
xavafiltrar ténue raio de luz, luz que
emergindo do foco se ia rasgar em milhares
de dedos enroscados nos cabelos claros-som-
brios da rapariga. Esta, adormecida, rosto
atento e concentrado, o corpo em solitário
abandono, a sugerirem a vertigem dum sono

inquieto —
era uma delicada e extravagante
«manchette».
O quadro desencadeava-se em contido tur-
bilhão. Voltando-se na cama, Maga estendeu
uma perna e teve um lento e suave sorriso.

Nesse instante entrou no compartimento um


ser quase-monstro-quase-humano, dum verde

quitinoso, rebrilhando como metal polido, a


cabeca um esferôide onde aparecem e desa-
parecem fendas luminosas, todo um anár-
quico conjunto de tracos e orifícios abrindo-se
e fechando-se para o mundo envolvente: um

rasgar que mais parece uma mirada e que logo


é um sistema de perpendiculares, um sulco
8 O AQU AR I O

luminoso a semelhar pálido riso e que ime-


diatamente se apaga, fina e ardente poalha em
volta dos tracos—
talvez concisa e matemática
pergunta-resposta. . .

O monstro dirigiu-se å janela-lente am-


foco e voltou para junto da cama
pliando-lhe o

da rapariga, deixando-se ficar em contraluz,


estranha e imôvel silhueta espargindo esver-
deada claridade.
Assim, durante alguns momentos, Maga
transformava-se no alvo de misteriosa sinali-
zacão, o que de modo algum pareceu afectá-la,
pois manteve a posicão anterior e no rosto o
mesmo perdido sorriso.

Por fim o monstro debrucou-se e comecou a


chamar em voz inesperadamente humana e
afável:'

Maga, Maga, Maga...


A chamada repetia-se em inalterável e mo-
nocordico diapasão, macador como o adejar
dum insecto muito prôximo, e a rapariga
franziu o rosto incomodada. Depois procurou
melhor posicão e anichou-se mais junto da
almofada e, sempre sem descerrar os olhos,
escondeu a cabeca nos bracos. A voz que a
chamava subiu de tom, eivada de leve impa-
ciência:—

Maga, Maga, Maga...


Despertada de súbito, Maga abriu os olhos
e fitou o tecto
piscando por entre repousantes
arabescos de sombra e feéricos e desaustinados
tentáculos de luz.
O AQUARIO 9

A contragosto olhou o
<(monstro», demo-
rada e atentamente. Este mantinha-se em rí-
gida atitude de espera, o cérebro um globo
inerte, dir-se-ia apagado apesar das duas ja-
nelas ao alto espreitando vigilantes. ...Por- —

que não me deixas


dormir, Riri ?
Maga exprimia-se num tom entre ríspido e
amuado, de vítima â beira da rebelião, e em
gestos sacudidos enrolou-se mais nos lencôis
sedosos.

...Dormiste exactamente dois vegas e um

décimo, exactamente...

Deixa-me em
paz, Riri

interrompeu a

rapariga. •—

Qualquer deve ir
sono normal
além dos Quatro-Infinitos-Vega. Ou mais !

Deixo-te em paz... B claro que te deixo


em paz... —

Os olhos de Riri, duas fendas


oblíquas, dilatavam-se escarninhos: ...Estou —

cdmandado para o teu servico, mas se me


dispensas como dizes. Bom, fazes favor esta-
. .

beleces o necessário circuito para que eu possa


regressar ao Centro de Escravos...
 medida que falava, Riri como que se abria
e achatava, todo ele imensa placa metálica
de «interior» amarelado. Maga sentou-se na
cama, os bracos cruzados â frente das pernas,
entre impaciente e divertida:

Um escravo foi sempre um péssimo
achado; incomodativo, além do mais, se sabe
falar.—

Depois, a olhar a
chapa-corpo-robot :
io 0AQUARI0


Pára e faz-te gente. E ouve,
com isso, Riri,
tu não és capaz de conhecer outra fôrmula
senão «oito-ou-oitenta» ?
Com lentidão a «chapa» regressava â sua
forma inicial e gargalhava em surdina por
entre jactos de luz e redondas cavernas:

...Os meus Construtores e Senhores, os

Ômegas...
Maga riu, o
queixo apoiado nos joelhos, no

rosto expressão de intensa ironia:


Os teus Senhores, Riri? ! Deixa-te disso,


tu não tens Senhores. Não há Senhores... Sa-
bes o que me dizia Yarath no instante em que
vieste acordar me ? Calou se, extática,
-
. . .
— -

envolta em íntima e quente claridade. Riri


deslocou-se de novo até â janela-lente, e vol-
tou-se para a
rapariga. Esta cerrava as pálpe-
bras esticava o pescoco em voluptuosa en-
e

trega å luz.
— •
Yarath ? !
. . .

repetiu Riri como que


. . .

ao retardador, desfasado. Yarath? Nos so- —

nhos as pessoas não o são, nem sequer som-


bras.
Maga esbogou malicioso trejeito:

...Mesmo assim uma Yarath-Que-Nem-


-Chega-A-Ser-Sombra é uma coisa extraordi-
nária. Quando eu fizer parte do Conselho dos
Teta exigirei que o aperfeigoamento «sonho»
seja introduzido no vosso complicado maqui-
nismo.
O AQUARIO ir

Não proponho ascender å categoria de


me

robot biolôgico... respondeu Riri por entre


subtil acende-apaga.

És um robot sem ambigôes, um miserá-


vel robot portanto...
Bruscamente Maga saltou da cama, dirigin-
do-se a uma porta escura que impeliu â sua
frente. Riri foi atrás, seguindo-a monstruoso
e desajeitado, fosforescendo na sua carapaga

verde-garrafa.
No novo compartimento havia uma vasta
tina circular, tendo em volta complicada rede
de olhos metálicos, quadros registadores, re-

curvos e prateados filetes, coloridas esferas,


todo um completo arsenal de misteriosa apare-
lhagem.
Riri carregou num botão (no exactíssimo
botão, supôe-se. ) Riri,
. .
,
o monstro da cara-

paga verde, tal incrível e muito ágil polvo, aza-


famava-se no seu jogo de carregar em botôes.
E assim, durante bom lapso de tempo, Maga
foi vaporizada, esterilizada, massajada, bor-
rifada, inundada por avalanches de finas poa-
lhas em suspensão e tudo isto, enquanto ela,
calmamente, pacientemente, indiferentemente,
cantarolava a meia voz. Por fim, ao sentir-se
elevada no ar, sobre uma prancha nacarada,
espécie de balanga de precisão, perguntou um
pouco aborrecida já:

Nunca mais acaba esta brincadeira?...
12 O AQU ARIO

Faltam dois décimos-vega-dois.


Oh!...

A rapariga soltou um suspiro enervado:


Sabes o que significa sustar o processo

biolôgico? Sabes ao menos isso?


já se sabe...
Fazê-lo parar,

Não percebeste, Riri. Perguntei-te se


me

sabias o seu significado metafísico?...


Não é problema que me diga respeito.

A-rapariga fitou o monstro:


Bs um cínico, Riri, um cínico da pior es-

pécie, metálico e tudo. Sabes perfeitissima-


mente que não tem qualquer-significado-meta-
físico progredir para trás ou para diante...
Sabes tão bem como eu que é «bonito» percor-
rer as dimensôes e continuar humano...

Riri não respondeu e Maga insistiu, em


suave e divertida ironia:

Concorda ao menos que seja um espec-
táculo tão-razoável-como-outro- qualquer-es-
-

pectáculo onde pode dizer-se seres tu o único


espectador. Concorda !

Não posso concordar nem discordar, sou


uma máquina.

Permite-me que duvide.
Por momentos a
rapariga manteve-se ca-

lada, expressão meditativa e ausente; depois,


a

num esgar de desgosto, ao sentir


que o iso-sol
azulado lhe inundava em cheio o rosto, cerrou
de novo as pálpebras e murmurou: My God ! —
O AQUARIO 13

...Estamos a atingir um coeficiente de


estacionamento optimo disse Riri. —

■■—
De acordo... —

respondeu meio sufocada


pelo bombardeamento deslumbrante
e intenso

de que era alvo. Num repente, num acento de


intensa f artura : Vê se acabas !

Riri soltou um riso traduzido por rápido


abre e fecha de «portas» e «janelas», um riso
irritante, todo geometria plana: Lamento —

muito, Maga...
•—

...13 cáracterístico dos que sofreram a

fase pré-humana natural...



Deixa-te de histôrias, Riri. Sempre gos-
taste de coleccionar disparates disse a rapa-

riga no meio de fascinante nebulosa, claro


a desenhar-se como exôtica corola côs-
corpo
mica.
Riri dir-se-ia encolher os ombros com bono-
mia e gargalhar, enquanto bombardeava mais
e maisrapariga, submersa já
a
por caôticas e

complexas radiagôes.
Denise-Ya-Tsé poderá ter
:

sido uma re-


torta tão macia e fofa
todas as demais
como . . .

Deteve-se e acrescentou: Acabámos... —

Maga respirou fundo e saiu da tina:


Descansa, Denise-Ya-Tsé constituiu uma


retorta perfeita... Olhou o robot e riu, en-

volvendo-se em felpudo lengol de banho. And —

the father? Tu le connaisf Savez-vous que


moi, j'aime the father et que ca... l'amour
14 O AQUARIO

incestueuse, c'est le plaisir des plaisirs? Sa-


vez-vous ga?
O monstro emite algébricos sinais de per-
plexidade e incompreensão.

Pedirei também, no Superior dos


Conselho
Teta, que te tornes permeável qualquer lín-
a

gua morta. And the father? repetia a rir.


Calou-se ao sentir o lengol escorregar-lhe pela


pele e voluptuosa onda de ar quente envolvê-la
como um afago. Por momentos, breves milési-

mos vega, manteve-se assim, rindo, imôvel,


jovem e assustadora criatura sem coordenadas
humanas, inquietante como um círculo fe-
chado.
Lentamente dirigiu-se a uma outra porta de
metal avermelhado e translúcido. Olhou para
trás, ia acrescentar qualquer coisa, mas li-
mitou-se a um breve encolher de ombros. En-
trou num salão decorado (ao comprimento e â

largura, para cima, para baixo, em toda a su-


perfície susceptível de conter desenhos ou figu-
ras), por alucinantes arabescos, delicadas fu-
gidias sombras, e sempre formas, formas sem
conto multiplicando-se indefinidamente, infi-
nitamente, å saciedade. Aí, Maga procedeu a
uma rápida e atabalhoada escolha de vestuá-

rio, decidindo-se, num trejeito sacudido, por


um par de shorts azuis-escuros e um chemisier
claro. Vestiu-se num ápice e, enquanto cal-
gava grossos sapatos brancos, chamou Riri.
O AQUARIO 15

Este enquadrou-se na porta, atento, as fendas


cranianas em frenético acende-apaga.

Vês esta trapagem? E Maga apontava —

uma série de vestimentas


espalhadas ao acaso.

Envia tudo ao Átium e encomenda nova


remessa. Tipo WW-OO-r-2 e não WW-OO-
-s-4. Sabes bem que não sou verde...

Sei bem que não és verde... Porque hás-


-de invejar as mulheres-verdes ? ! . . .

Não invejo seja for, nada há inve-


o que
jável... —

respondeu alheada.
Bom, enco- —

menda o costume, excepto o habitual GB


novo-modelo. Prefiro inabitual
pele-preta-
o

-de-bicho-de-altitude, autêntico, a ressumar


sangue animal. Dispenso o sangue, bem en-
tendido...

GB novo-modelo é o indicado para os des-


portos Mar-das-Intempéries e eu sugiro...
no

Não sugiras... Maga fitou esse rosto


metálico que lhe ditava sensatas observagôes:



...O Mar das Intempéries é um pretexto
que dispenso... O mundo dividido em gomos
como um fruto, habitáveis alter-
os gomos
nando com os outros, ĸem branco», sub-huma-
nos, terríveis... Calou-se, nos olhos expres-

são de alheamento. Depois, como um adulto

que se divertisse a contar coisas


incompreen-
síveis a uma crianga, acrescentou: ...Em —

branco, ao natural, natureza-pela-natureza, aí,


paradoxalmente, encontras o Mar-da-Sereni-
16 OAQUARIO

dade desértico e assombrado como um Reino


de Fantasmas...
Num gesto redondo, gracioso, Maga faz uma

mesura em frente de Riri:


«Já não há Fantasmas, meus Senhores


Morreram os Fantasmas

Ah quem soubesse chorá-los ! »


Sabes onde vem isto?

Não há dúvida, no Livro de Syma, talvez
num dos últimos tomos, talvez no primeiro,

não me compete sabê-lo...


Nunca te compete nada, ((rapaz» ! Não,


não vem no livro de Syma; tal «trocadilho»,
deve ter passado â posteridade pela tradigão
oral...
Riri mostrava-se extremamente divertido:

...Gostas de flanar ao capricho antigeo-


métrico da natureza. ]5 isso.

Riri. Conto-te estas coisas
Enganas-te,
para que possas tirar sábias conclusôes, ultra-
passes o teu metálico espírito. Aos poucos
quem sabe ? tornar-te-ás um robot huma-
— —

nôide tão cínico como Albert ou Henry . . .


Maga levou um dedo aos lábios: ...Não,—

o que queremos é que tenhas senso de hu-

mor, espírito crítico, como qualquer pré-histô-


rico bobo, sômente isso. Nem de outro modo se
explicaria a tua existência, a não ser que uma
existência se justifique... Nunca se justifica,
é evidente. . .
O AQU AR 10 17

Riri curvou-se. Os tragos brilhantes do seu

esferôide-rosto fizeram-se mais brilhantes,


como
que reveladores de contentamento «ín-
timo» :

Sou o teu Escravo, Maga.


Maga dirigiu-se a uma porta doirada (esta-
vam em moda as portas doiradas)
parando an-
,

tes de a abrir para dizer:


•—
É melhor, de facto, continuares a desem-
penhar simplérrimo papel de eunuco-es-
o teu

cravo, melhor, de caixa metalo-orgânica


ou

onde se guardam «virtudes», isto é, proprieda-


des neutro-negativas. Quem nos diz a nôs que
um dia não necessitaremos dessa
bagagem para
sobreviver ?... Não fiques a pensar nisso, con-
tudo. . .

Maga abriu definitivamente a porta e entrou


em enorme sala-biblioteca decorada com a
mesma febril profusão de alucinantes ima-
gens, o livro Syma desdobrando-se em tomos
«ad infinitum». A meio da pega, notável, além
de tudo o mais, aparatoso sistema de lentes e
esferas encimado por um globo liso e branco,
meio encarapugado, tal um olho de gigante se-
midesperto (inofensivo S-D-H).
Maga sentou-se numa poltrona. Riri foi
buscar o Tomo MMMCMXCLX, que abriu
na
página prôpria e depois entregou å rapariga,
retirando-se em seguida. Esta olhou as folhas
desinteressada. A seu lado, uma jarra de giras-

2
18 OAQUARIO

sôis, de pétalas um pouco murchas já, perdidos


nesse mundo
agressivamente saturado e gri-

tante, punham no ambiente uma nota de fra-


gilidade e inútil desespero. Maga arrancou
uma das pétalas, mole, exangue, e deteve-se

a esticá-la com os dedos, absorvida pelo mis-

terioso encanto desse abandono vegetal, sem-


-coordenadas. Pouco a pouco comegou a sen-
tir-se irritada por toda uma lamúria sem-
-voz nem tino sem rosto e-sem-significado
- - - -
e
-

fechou os olhos, recostándo-se para trás, a ca-


bega apoiada nas costas macias da poltrona.
No mesmo instante esqueceu as caras-choronas
dos girassôis e a pétala-desesperada entre os

dedos, e não se dando conta foi-a esmagando


distraidamente (a memôria um borrão sem
cor) .
perceber na pele a seiva escorrega-
Ao
dia pegajosa, a memôria mudou de cor (uma
e

tímida alforreca fora do seu «habitat», o Sis-


tema-Dimensional-0-3) .

Riri, num outro compartimento, mexia-se


azafamado. Ou por outra, Riri não necessitava
de mexer um dedo sequer e não o mexia : era o
contínuo acende-apaga do seu esferoide cere-
bral, a féerie de jactos luminosos que podia
provocar num observador <(desprevenido» a
sensagão de ininterrupto movimento. Riri pos-
tava-se em frente da bocarra aberta do pesado
aparelho como um sacerdote perante o sacrá-

rio. Do interior deste, todo prateado e doirado,


OAQUARIO 19

esquisito labirinto de
pingas metálicas, adun-
cas garras movendo-se em
complicadas e ema-
ranhadas orbitas, em giros lentos, precisos,
pacientes, misturando aqui um líquido rosado,
além azulado, mais uma pílula encarnada, uma
outra negra de azeviche, ainda uma outra ama-

rela, depois numa paragem suave seguida dum


gesto argênteo, largo, o conteúdo da ampola-
-mistura, entornando-se para copos bojudos do
mais fino cristal de rocha, límpidos a toda a
transparência e reverberando a luz... (tudo
istô sob o olhar atento de Riri, comandado pelo
acende-apaga das suas portas e janelas cere-

brais), Riri, no momento exacto, retirou os

copos, que foi colocando sobre invisível ban-


deja. Em seguida veio junto de Maga, que, de
rosto apoiado nas bordas macias da poltrona,

pálpebras cerradas, parecia não dar pela sua


presenga. Esperou uns momentos, depois, ao
ver a rapariga continuar na mesma posigão,

tocou-lhe no ombro dedos afusados e


com os

longos. Ela estremeceu abriu uns olhos assus-


e

tados. A expressão adogou-se vendo Riri e sor-


riu-lhe :

Devo ter adormecido de novo...

Maga engoliu uma pílula encarnada, depois


outra preta, uma azul, mais uma acastanhada,
demorou-se examinar e a baloigar entre os
a

dedos a taga de oiro fosco que as con'tinha,


poisou a taga e pegou em seguida num copô
20 OAQUARIO

bojudo cheio de líquido transparente e rosado.


Bebeu'lentamente, religiosamente, pequenos e
medidos goles. Riu, de súbito:
Eis os vinhos capitosos da vinha do

Senhor. Preparaste-me um delicioso manjar.


Agradego-te, Riri.
...Sami-12, praff-415... Chegou o mo-

mento de partires, não?



Mais ou menos, não te preocupes. Vou
ler-te o Syma... Ia aqui... Ouve... «Mary Rio,
deliberadamente, para que aconteceria,
ver o

colocou-se na infravermelha, dentro do


zona

raio da calote. De repente e é ela que no-lo


conta viu-se a existir num espago a quatro


dimensôes, o mesmo que observado do exterior


nos dá a sensagão de informe Mary
e achatado.
surgia nele sem passado futuro, cami-
nem

nhando por uma rua infinita e solitária, deses-


peradamente infinita e clara, e percorria-lhe a
«eternidade» carregada com um objecto pesa-
díssimo, exactamente uma «mala». Tal pala-
vra, como muitas outras aliás, pertencia sô-
mente a esse mundo a quatro-dimensôes
segundo Mary Rio, Sem-Dimensão pelas in-
terpretagôes mais recentes. Mary percorria a
«sua» rua, chamada dos «Artistas Maiores»,

tendo casas dum lado e doutro, casas ditas


«familiares» e sem outra particularidade além
de serem «familiares» e terem paredes de vi-
dro transparente. Lá dentro as pessoas agita-
O AQUARIO 21

vam-se aflitas e descontroladas, como se esti-


vessem numa «feira» (outra palavra importada
de lá), havia criangas, «velhos», estranhos
jovens, todo um conjunto de incríveis persona-
gens, tão incríveis que algumas delas se senta-
vam em
«retretes», índice como se sabe duma
fisiologia primária, algumas gritavam, havia
enorme conf usão e promiscuidade : era a «famí-

lia». Contudo não eram estas as características


mais notáveis daquela rua... Esta tinha casas
e árvores... Ora, as árvores
«penteavam-se» to-
das do mesmo modo, num arranjo de cabelei-
ras curtas, mal soltas ao vento, inclinadas
no mesmo sentido arranjadinhas que
e tão

pareciam pintadas. Mary ficou perplexa e sô


depois soube que os «artistas» habitantes da-
quela rua tinham por «missão» pentear, muito
penteadas, as cabeleiras das árvores... Um
deles saiu de casa e agarrou Mary por um
brago, tentando levá-la consigo lá para dentro,
gritando-lhe : «Tens de constituir família, apo-
drecer e morrer. Entra ! »
Mary num ligeiro movimento soltou-se e

sorriu ao homem, dizendo:

«Prefiro a rua solitária e com sol, cami-


nhar por aí adiante e ver se vai dar a algum
ponto.» Então o homem levou as mãos â ca-
bega, arrepelou-se e lamuriou: «Sou um grande
artista, não posso ficar incompreendido e es-
quecido como qualquer mortal». Mary não con-
22 O AQU AR I O

seguía apreender o significado de tais palavras


e disse sô «...Mas se todos os homens são mor-
tais, incompreendidos e esquecidos, por qué
carga de água não há-de acontecer o mesmo
contigo» O homem também não entendia a lin-
.

guagem de Mary e crescia para ela chamando-


-lhe «musa», o rosto cada vez mais ampliado
para lá do vidro.
Ela tinha a sensagão de falta de ar, de
»
peso. . .

Mary Rio sonhou tudo isso natural-


mente?...

Naturalmente. Estava caída, exangue,


quando Tomi entrou no laboratorio.

Bom...

Não estás interessado?... Concordo que


o livro Syma quando se resolve a entrar na fic-

gão é sumamente aborrecido. Até logo, Riri.


Maga fechou o livro com brusquidão e, levan-
tando-se, dirigiu-se para a porta, uma lente
circular dum vermelho intenso coada por fosca
e suave claridade. De repente voltou-se:

Já me
esquecia !
Como de costume...

Riri, que seguira


a
rapariga, estendeu na ponta dos dedos mi-
mosa pulseira toda em compartimentos e cai-

xinhas, pequeno e artístico objecto primorosa-


mente trabalhado e que a rapariga num gesto
breve apertou å volta do pulso sobre um outro
aro de metal cravado na sua carne. Olhou o
O AQUARIO 23

espelho que lhe ficava


em frente, considerando

o
depois a silhueta e, ao longo dela, o
rosto,
brago longo mordido pelo precioso metal:
«Algo que faz lembrar o quê?...»
Caminhou para a porta que se abria a partir
do centro, ampliando-se mais e mais å sua
aproximagão. Cá fora no terrago os olhos dila-
taram-se-lhe de prazer ao ver o seu spaac de
linhas aerodinâmicas, amarelo claro, seme- -

lhando uma abelha gigante poisada no chão


negro de azeviche. Respirava em longos haus-
tos, atardando-se a enfiar e apertar a esfera-
-carapaga-de-protecgão. O céu transparente
apresentava-se polvilhado da vertigem de mi-
lhares de outros spaacs, flechas coloridas, pá-
lidas fulguragôes que apareciam e se volatili-
zavam num instante.
No terrago contíguo ao seu estava Mira,
uma rapariga verde que, como ela, procedia
aos gestos habituais de largada. «Um bonito
rosto dentro duma campânula», pensou ao

vê-la debrugar-se atenta, os cabeĩos escorri-


dos e escuros, os olhos duas fendas oblíquas a

absorver a luz. De súbito as suas miradas cru-

zaram-se e as duas raparigas sorriram, corpos


a escorrer sol, quentes e deslumbrados. Maga
prestou atengão aos comandos do aparelho e
um brilho intenso de excitagão alastrou nos

seus olhos azuis-escuros pintalgados de branco,

olhos de «biche» ,
calmos na inquietante vitali-
24 O AQU AR I O

dade animal. Marcou coordenadas, «Tx-8g-


as

-56-tr-6ooooo5-Anchow», atenta ao mostrador,


onde se viam oscilar agulhas e ponteiros des-
controlados em loucos movimentos de vaivém,
buscando frenéticos a posigão de equilíbrio, en-
contrando-a, por fim, numa paragem brusca,
vibrante de vida tensa, contida. A rapariga
olhou em frente, parecendo medir a constru-
gão a perder-se para lá da sua vista, sufo-
cante e maciga, idêntica â que ela prôpria

habita, colmeia monstruosa, cidade miniatura


donde largam âquela hora inúmeros outros
spaacs, tais abelhas incríveis e coloridas, pris-
mas opticos decompondo a luz solar em breves
tons irisados.
No instante seguinte, o seu spaac elevou-se
no ar, susteve-se durante um lapso mínimo de
tempo, depois, num repente preciso e mate-
mático, disparou vertiginosa corrida, breve
em

como um
génio de
imaginárias idades, um
ponto imaterial ou
quimérico sonho realizado.
Mira, num
aparelho em tudo semelhante ao
seu, levantou voo no milésimo-vega seguinte.
Capítulo II

baixo, a seus pés, Anchow, colosso


EM arquitectônico projectando se acha- -

tado, branco cogumelo encimado por uma


torre direita, uma recta perdida para lá da
abobada azulada, trago-de-união entre os as-
tros... Bem assentes no chão as patas do
colosso, cágado ou monstruosa hidra com mi-
lhares de cabegas e bocarras abertas, escadarias
claras, jardins entornados, vertigem. Psssss...
Psssss... Num baloigar fofo, em queda lenta,
suave, o spaac cor-de-favo-de-abelha, de foci-
nho afilado e evitar todo e qualquer
tacteante a

obstáculo, poisou definitivamente sobre a placa


numerada. P61o-Norte-P61o-Sul de dois ímans
beijando-se. Perto de si, em automáticas mano-

bras de aterragem, dezenas de outros spaacs,


como chuva caotica e multicolor de fogos de

artifício em pleno dia.


Maga saiu do aparelho e caminhou em
frente, pela faixa branca. Bruscamente deixou
26 OAQUARIO

a recta e pisou o relvado de miosotis embre-


nhando-se nele. Demorou-se a colher pequenos
molhos que apertava nas mãos e que em se-
guida deitava fora, desinteressada, olhando o
infindável campo ajardinado, monôtono na sua
exuberância educada e geométrica. Um sol
ardente envolvia os objectos esbatendo-lhes os
contornos, cobrindo-os duma poalha diáfana
de cintilagôes, escondendo-lhes a nudez, num
abrago cáíido e possessivo. (Os seres huma-
nos, esses, eram os Escravos da Lâmpada).
Maga quis fugir, subtrair-se a essa posse
absorvente, e vendo a multidão (bonecos de
luz, bonecos de luz) que se dirigia apressada
para dentro das bocarras do edifício e desapa-
recia, tragada, apressou-se também.
Contudo, uma vez no interior do edifício,
parou como que perplexa e sem destino. De
súbito, voltando costas ao Zut, comegou a ca-
minhar por uma espécie de túnel. Maga respi-
rava profundamente e com evidente satisfagão,

escolhendo caminho no labirinto de corredores


revestidos de mármores em toda a gama de co-
res e povoados sômente por colunatas, assom-

brosas estátuas de membros distorcidos, rostos


inquietantes e assustadoramente vivos e para-
dos, olhos que se tivessem alongado, crescido
monstruosos, sem por tal facto perderem a be-
leza e a perfeita harmonia expressional an- —

tes, muito ao contrário, o tamanho gigantesco


O AQUARIO 27

e descomunal conferindo-lhes a total dimensão


humana, painéis o chão, o tecto, um des-

medido painel —

e rostos,
sempre rostos e cor-
pos juvenis aprisionados num movimento ciclô-
pico, num êxtase pagão de agressiva libertina-
gem, de vida convulsa —

criacôes escultoricas
e pictoricas em todas as formas concebíveis em
desesperado brinquedo ou ante-espasmo de
diabôlica contensão.
«Oh, consegui perder-me, não fago a mais
pequena ideia do ponto onde me encontro» di- ,

zia-se Maga, parada numa encruzilhada de cor-


redores. «Desta vez vou optar, perder-me mais
e mais até se
metornarimpossívelregressar...»
Sentiu no brago ligeira picada seguida do
bem conhecido formigueiro. Olhou o minús-
culo mostrador do s-l-i, e franziu os lábios em
desconsolada mímica. Voltou a cabega: a dois
passos de si estava a lente oval do Zut, a
«recta», a mais curta distância entre dois pon-
tos, destruindo todos os emaranhados, todas
as charadas...

«Nem sequer isso...» Sem querer tocou com


a mão no painel que lhe estava prôximo; pa-

receu-lhe que algo de gelado e mole se lhe


colava ao corpo e recuou em instintivo movi-
mento de defesa.
«...Uma «seara», nada tem de repugnante
uma «seara»... Mas porquê a recriagão de mi-

tos tão extravagantes?...»


28 O AQU AR 10

Maga apressou o andar; parecia em fuga.


Nos bragos, nos nervos ficara-lhe a sensagão
de ter tocado num corpo repulsivo. «Estou com

medo, estou com medo, estou com medo...»,


repetia-se, falando alto e fitando as paredes
num desafio. Esguios e fugidios arabescos en-

trelagando-se, fundindo-se, dissociando-se num


anárquico e convulso emaranhado, cresciam
parasi, obsessivos e sem leis. «Estou com
medo!», gritou, e, acto contínuo, nova e mais
aguda picada se fez sentir na extremidade do
seu brago. Maga deixou descair os ombros num

desânimo: «Não posso perder-me, nem ter


medo, nada, nada mais que continuar uma
menina-bem-comportada. Voilá /» Em frente
estavaa porta elipsoidal e Maga parou um

instante a batidas violentas do cora-


conter as

gão. Mais um passo, a porta abrir-se-ia...


Transpôs a entrada. Lá estava o mundo branco
e silencioso de todos os dias, ao fundo a mesa

em forma de meia-lua, com suas antenas e

demais aparelhagem, lá estavam os objectos


familiares. Tocou-lhes e, em gestos breves,
automatizados pelo hábito, colocou na cabega
a fita prateada... O mundo branco sem dimen-

sôes criou comprimento, largura e altura, po-


voou-se de colorido e sons, objectos e pessoas,

e
Maga, visível e palpável como os demais,
fazendo parte dele. Sorriu a Alexei.

«Cheguei atrasada, o costume, voilá /»


O A Q U A R I O 29

O Ômega WXVL ia adiantado na explica-


gão do sumário. Era vermelho-cardeal, a ca-
bega em franca desproporgão com o resto do
corpo, aquela um esferôide geomêtricamente
delineado e concebido segundo os moldes mais
acabados da cibernética, em contínuo e mili-
métrico movimento de giroscôpio, exibindo
agora uma
placa registadora, mais logo uma
fita metálica-—

fazendo-se em seguida quadro


preto repreenchia-se de números, números-e-
-gráficos, perguntas-respostas.verificadas, con-
troladas por meio de gráficos-e-números, nú-
meros sucedendo-se descanso, quase inin-
sem

terruptamente. O Ômega WXVL, um gigan-


tesco quadro preto, desdobrado em planos e
contraplanos, multiplicava-se em caracteres
que por sua vez se iam dispor em fôrmulas,
gráficos, esquemas, tragos... As tantas Maga
deixou de prestar atengão, ficando a olhar 0
tecto, o côncavo perfeito duma hemisfera ar-
tisticamente decorada com formulas algébricas
dispostas num ritmo ascendente e vertiginoso.
A Álgebra transformada na Arte dum colorido
difuso e obsessivo, formulas que são gritos de
cor, absurdos e ilogicos, corpos e rostos tradu-
zidos «em ritmo» por meio de misteriosos ipsi-
lones ou transcendentes equagôes. (A Mona
Lisa em números, o fascinante sorriso da Mona
Lisa um gráfico colorido, tempestuoso e exal-
tado. Ou uma curva irônica. Formulas ofe-
3° O AQU AR 10

gantes, dilaceradas, apaixonadas ou violentas,


as rectas em sublevagão ! Um X gelado como
um Polo Austral. A vida e a inteligência, con-
vulso maelstrom hieroglífico, com vinte biliôes
de magníficos zeros å esquerda).
Maga fez uma careta de aborrecimento e des-
viou o olhar,
espreitando por entre a perna dum
Y e a curva bojuda duma elipse, para lá do
tecto transparente, o céu límpido, intensa-
mente azul e, na sua preguigosa e majestática

rotagão, o Satélite Alfa-K-3. O Alfa-K-3, um


rubro balão cheio de trevas, embebedava-se â
luz. Atingia o Zénite.
«...

Maga Moniz Ya-Tsé, atengão. Maga


Moniz Ya-Tsé, atengão».
O aviso, sômente audível para si, repetia-se
insistente, as palavras bem espagadas e certei-
ras. No Ômega-Quadro o mesmo desbobinar de
fôrmulas-dados fôrmulas-conclusôes. Hipô-
e

teses e teses, curiosas sínteses. Inesperada-


ménte todo o movimento pareceu suster-se, a
equagão resolvente da infinita divisibilidade
da matéria parar na sua corrida desenfreada
para 0 Nada. Os Ypsilones, os Xis, os Gamas
. .

deterem-se e aguardarem indiferentes, rindo,


o que ia passar-se. O
Ômega WXVL dirigia-
-se agora â classe:

A todos os que negligenciarem a Lôgica-


-Metafísica sô restará percorrer as suas etapas


com o mesmo fatalismo duma
espécie, sem
OAQUARIO 31

prazer portanto. O que é o prazer senão pen-


samento ordenado na mente dum «rhode»?...
uVoilá Monsieur Omêga WXVL, l'Emmer-
dant. Mais oui, Monsieur l'Emmerdant, la
pensée est la seule merde qui compte .» . .

No quadro preto, as formulas por instantes


contidas, convulsionadas, o pé no ar, retoma-
ram a caminhada em direcgão ås margens, ao

seu «nada», em exaustivo e lento desfile, cer-

tas bem
e comportadas como sonsos meninos
de escola.
Abruptamente, em letras
garrafais, ins-
creveu-se o dístico: «Tempo=Questionário=
=
d e =T ri v ialidades e Raciocínios Ilôgicos
= = =
> .

...Queres dizer, Ômega WXVL, que es-


tamos irremediâvelmente prisioneiros do nosso
Infinito-Matéria ? —

foi a primeira pergunta


duma rapariga verde, toda verde, a belíssima
Zadi.

«Como ela gosta de fitas, fitas, fitas, la
jolie /»

...Sim... Se nos outros Infinitos-Côs-


micos a matéria não é a nossa matéria, se tem
portanto gerais, se as teorias conce-
outras leis
bidas pelo Homem... ^Aqui a voz do Ômega

fez-se profundamente escarninha, detendo-se


numa espécie de cacarejo. Alexei interpelou-o,

entre curioso e irritado:



A que propôsito fazes tu ironia å custa do
Homem, Ômega WXVL?...
32 OAQUARIO

O Ômega principiourir, a rir, e dali a


a

pouco os assistentes riam também, contagia-


dos. Sômente Alexei mantinha uma expressão
de sombria perplexidade. «Maldita máquina
de mastigar hipôteses. Maldita !»
O Ômega parou de gargalhar:

a empregar o tom conve-
...Limitei-me
niente, sâbiamente preconcebido pelo Homem.
Ah ! o Homem ! Esbarramos sempre nele. Mas
onde o Homem ? Sim, lá está aprovando a mi-
nha «existência», não sabendo dispensar-me
nem destruir-me, a mim que soube inventar

para ele uma nova natureza. Os meus agrade-


cimentos ao Homem !
O Ômega rodou duma volta completa o es-
ferôide-cabega, fitando impassível e irônico
toda a assistência.

Talvez fagas um pouco de confusão,
Ômega WXVL, tu não podes atribuir-te «exis-
tência» prôpria, não és mais que a materializa-
gão do pensamento. condensagão-exte-
. . uma

rior, digamos, do pensamento do Homem.


Uma-demonstragão-do-seu-poder !
Alexei exaltava-se. Maga desligou os trans-
missores.
«Mon amour, pourquoi tu t'emmerdes avec

les Omégas?n

Sou uma máquina capaz de conduzir ra-


ciocínios sem parar, a não ser para introduzir
novos cérebros e cerebelos, cérebros e cerebelos

i
OAQUARIO 33

estes deduzidos e teorizados por mim prôprio. . .

Sou uma máquina, sem dúvida, nada mais que


isso...
Um jovem de pele preta associou-se â dis-
cussão, para dizer em tom cinicamente diver-
tido:

Concordamos sejas tu o Super- que


-Homem, o Deus, e nesse caso imploramos-te :
prepara um espectáculo final e explica-nos os
truques que nunca chegámos a perceber; as
trapacices da Lôgica, da Física e da Meta-
física, as Causas Primeiras e as Ũltimas en-
fim...

Isso rapariga.
mesmo —

apoiou uma •—

E não nos venhas gordas


com equagôes finais
e sublinhadas a fogo. Nada disso.
Quere-
mos a Lôgica-das-Lôgicas, a Lôgica de Si-

-Mesma, Sem Olhos -Nem-Voz-Nem-Tempo-


-

-Nem-Medida. Queremos sobretudo saber por-


o Homem tão livre como um electrão na
que é
sua orbita. Explica-nos isso e desapareceremos
em paz.
:

. . .O gajo não quer ver-nos desaparecer em


paz

voltava Alexei —

, deseja quem b justi-


fique.

Quem escute verdades eternas.


•—

Quem mega o Incomensurável.


Invente o Robot-Biolôgico.

Jogue o Aba-Kaba.

Conte até Cem^

3
34 O AQU AR I O


Nos últimos mil vega-vega o eixo dos XX
da fungão-homem deslocou-se paralelamente a
si mesma de duas milésimas «ton»... Tem de
haver quem rode o eixo dos YY...

Quem vá em busca do Pitecantropus Erec-


tus reconstitua osso por osso.
e o


Ande para trás até se encontrar idêntico-
-a-si-prôprio, isto é...

Moi, j'ai peur! Depois de todas as mara-


vilhas inventadas sobre um hipotético e enfá-
tico «Eu» era chato esbarrar em mazelas e
monstruosidades esquecidas.

Oh, céus, se atendermos â sua essência


divina, concluiremos que todos os Pitecan-
tropus Erectus do mundo usaram vestimen-
ta. Diz-se mesmo que eles atingiram refinada

perfeigão e até grandeza na arte de se fazerem


vítimas, armar escândalos, afivelar a máscara,
vestir artifícios exibirem-se camuflados em

dogmas , luxos em suma !


Oh, céus ! quem não gosta de requintes,


de gozar a vida ? Não usufruímos nôs os nossos
proprios luxos dentro do nosso sistema de
coordenadas?...

Positivas !

Temos a pele nua. Somos trágicos e la-
=

mentáveis.

Trágicos e lamentáveis.
Faltam-nos as púrpuras do pecado e as

chagas da miséria (Gargalhadas).


O AQUARIO 35

Importante todavia é que continuemos a


existir, pois que «Existir» é em si o único Bem
concebível...
«

Zadi é tão séria que parece um livro de


Syma».
« Le roi est mort, vive le Roi.))


DoriaSawi, Dôria Sawi, o Pitecantro-
pus Erectus é uma bela lenda.

A Grande Cisão uma fuga desesperada.


Caminhando a passo deixaríamos que as

verdades e mentiras assentassem.


Um-disparate-perpétuo.

É irrisôrio que um pequeno «quanta»


possa decidir da sorte de todos os outros

«quanta» !
« —

Que-não-pedem-licenga-a-ninguém-para-
-serem-como-são. Voilán.
•—
Há um dispositivo logico-metafísico cha-
mado Ube-Ru-Bú que deve usar-se em digres-
sôes P61o-a-Pôlo do Meridiano...
« Como ela é parva ! »


Temos todos os quadrantes por nossa
conta.
Para quê provar dos frutos proibidos?

São bichados.

Ninguém ganha num jogo de dados sem

pintas.

Perder é a coisa mais fascinante que pode


acontecer a um tipo.
.—
?Como um barco velho que contra todas
36 O AQUARIO

as regras do real comega a voar e que de re-

pente cai, vai ao fundo, mergulha no lodo e


se prepara para apodrecer. Fechando os olhos.
É belo. Há sempre peixes que não são para
gragas.
Doria

Sawi, Dôria Sawi, quando vida a

é incurável morrer é Supremo Bem. Ah ! Dô-

ria Sawi, deves conquistar o direito de morrer.


E o Ômega WXVL?

Bo Robot Biolôgico?

Esses hão-de encontrar a explicagão para


nosso caso. São muito
o
estúpidos.

Ê uma optima Moral.


Mudemos as regras do jogo.


Gostaria de viver na Mongolia Deserta.


Há uma Mongôlia Deserta (Gargalha-


das).
« Hei-de escrever um romance policial

onde o assassino
seja o assassinado» .

Se voltares o rosto verás uma porta de


madeira, a cair aos bocados... Agora se a abri-
res... B melhor não a abrires...

Vou abri-la.

Oh! Oh! Oh!
(Dá para um campo pentadimensional, la-
macento sombrio,
e retalhado de sulcos. Po-
voando-o, estiragados e sangrentos,
corpos
semiapodrecidos uns, rastejantes e fugitivos
outros, crescendo nítidos, horrorizados e agô-
nicos. Crescem, crescem alucinantes e disfor-

i
O AQUARIO 37

mes. São Pitecantropus Erectus. Há uma

crianga pequena, de
pele negra ( Oh, my God,
porquê a pele negra e não azul ou verde ? ) que ,

num
lapso mínimo de tempo enche o espago
(antiespago), eĩimina as trevas e sorri um
doce sorriso húmido de ternura.
i.a voz —

]S um inocente.
2.a voz —

Daqui a nada o inocente não o

será mais.
i.a voz —

É um inocente.

2.a voz —

Um homem em poténcia.
i.* voz —

Voltaremos na alturaprôpria para


o
liquidar.
2.a vozÉ mais humano fazê-lo agora.

O rosto redondo de lua inunda-se de lágri-


mas redondas que são luas. Há um
objecto
metálico entre o rosto redondo e a lua. San-
gue, ossos, carne, sorriso e lágrimas são um
pouco de matéria pulverizada, uma massa de
átomos monstruosos e pegajentos, dos quais
se nota até ao mais ínfimo pormenor o pulsar

frenético e descontrolado dos seus «quanta».


O campo pentadimensional, aos poucos,
deixa de ser um campo de massacre povoado
de gritos de pavor, sombras paralisadas e san-
grentas. Nada mais agora que um corpo femi-
nino em putrefacgão com um pobre e doentio
sol a apagar-se para os lados do sexo. Voilá !
O Omega WXVL dava por esgotado o
Tempo TrivialidadesTlôgicas.
38 OAQUARIO

Larga curva parabolica enchia o quadro.


Maga sentia-se a escorregar por um dos ramqs
mordendo a curva tragada a fogo, empego-
nhando-a de baba como uma lagarta-de-couve,
a mergulhar deslumbrada na vertigem dum

abismo.
Sucediam-se as formulas, ahfôrmulas
! mas

sem imagens, simples e cegos batedores de

emaranhadas transcendências algébricas.


As mãos de Alexei crispavam-se sobre a
bobina de gravagão.
Capítulo III

Alexei encontraram-se por fim pa-


e

MAGA rados e como que perdidos no enorme


átrio NW de Anchow.
Maga pegou nas mãos do rapaz:

Vem. Na Mansão Austral esperam-nos.


Ninguém nos espera na Mansão Austral


e não me apetece ir.

Oh!...

Odeio a Mansão Austral e a Ternura-
-Sensual.

Oh!...
Maga percorria-lhe os bragos num afago
demorado:
Amo

os teus bragos. Não posso amar os

teus bragos ?

Podes amar tudo o que seja amável.
A Primeira=Verdade=Nobre.
Yes.

Bs uma menina exemplar.



Irritante-
mente exemplar. Larga os meus bragos.
40 OAQUARIO

As mãos dela foram caindo lentamente, len-


tamente, e sem deixar de fitar o companheiro,
alheada e pensativa, murmurou:

Como quiseres.
A rapariga comegou a afastar-se, dirigindo-
-se a uma entrada interior que um Beta abriu
â sua passagem. Ao sentir o clique da porta,
a fechar-se atrás de si, Maga esbogou um
breve movimento de recuo, mas deteve-se ao
esbarrar no corpo quente de Alexei. Em volta
o jardim solitário: folhagem e flores em alu-
cinante profusão, fantásticas corolas sôfregas
é abertas para a luz; mais adiante a imensa

piscina em forma de «capricho geométrico», e


as hemisferas-barracas dispostas como um ce-

nário' o mundo inteiro um sufocante cenário


de mal esbogada tragédia.


Vou estender-me ao comprido naquela

corola, adormecer, deixar que ela me devore


aos poucos...
Avoz da
rapariga vinha arrastada e sono-
lenta. Alexei passou-lhe um brago em volta
dos ombros.

Resigna-te. Não há canibalismo vegetal.


C'est dommage !
Entraram das hemisferas de interior
numa

decorado figuras humanas representando


com

a execugão dum bailado de sombras coloridas

e estilizadas com
requintes de suprema gra-
ciosidade e delicadeza. Alexei, abrindo um dos
O AQU AR I O 4i

compartimentos da sua pulseira, retirou mi-


núsculas bolinhas, que repartiu com a rapa-
riga. Demoraram-se um pouco nesse banquete
em comum; em seguida, saíram e mergulha-

ram na piscina. Nadaram até se cansarem,


andando cá e lá, esparrinhando água, rindo.
Maga agarrou-se â borda da piscina e fechou
os olhos, deliciosamente exausta. O rapaz
aproximou-se e beijou-a nos lábios. Ela soltou
um riso agudo, selvático, e, rasgando-lhe a

pele com os dentes, comegou a sugá-lo. Bebeu,


bebeu e, de súbito, deteve-se, uma gota de
sangue a escorrer-lhe pelo queixo, 0 pescogo
inclinado para trás ...Je t'aime.

Alexei afastou-se, brusco. Ela, a expressão


vibrante, estendia os bragos buscando o rapaz.

...Je t'aime faz parte duma linguagem


morta...
•—

Sempre as linguagens mortas e sem sig-


nificado ! respondeu ele, a espargir contida

ira, saindo da piscina e sentando-se na borda,


o corpo nu,doirado e musculoso a escorrer
grossas gotas de água. Detesto isso !


Oh!... respondeu ela, um dedo nos

lábios.

Detesto tudo !

...Se eu fosse Zadi ou o livro de Syma
dir-te-ia que...

O quê ? Diz ! . . .


Nada !
42 O AQUARIO

Saindo por sua vez da água, Maga esten-


deu-se lado de Alexei.
ao

Detestas Zadi, é evidente!...


Zadi?! Por que hei-de detestar Zadi?!


Zadi é detestável.
Sûbitamente Alexei ri:

Verde-Verde.

Yarath é verde-verde aussi. Mira, Verde-


-Negro. . .

Disparates ! Escuta, Maga e Alexei es-


— —

tendeu-se ao lado da rapariga e agarrou-lhe as


mãos não desejarias ir uns tempos até ao

Mar-Da-Intranquilidade ?... Dedicar-nos-ía-


mos å caga e å pesca, defender-nos-íamos das
feras como trogloditas...
Feras?!... Cétait joli.

Sobrdtudo sentir-nos-íamos intranquilos


•—

como Reis-No-Trono, livres de curvas


parabô-
licas e graus s-l-i, enfim...
As suas a almo-
cabegas juntavam-se sobre
fada fofa duma corola espessa e vermelha.
Ficaram calados. Depois Maga ergueu-se com
lentidão e ficou a olhar o rápaz demorada-
mente, os lábios franzidos:

Quanto a mim sinto-me suficientemente


solitária intranquila... Solitária e intran-
e

quila mesmo
sem
Mar-da-Intranquilidade ou
inôspitas e assombradas paisagens... Conheces
o Dr. Fausto?...
Quero dizer, Albert de Mi-
chigan ? . . .
O A Q U A R I O 43

Não.

O Dr. Fausto não toma ghone, dispensa


o s-l-i e um dia, não muito
distante, dar-se-á
ao luxo de morrer como um macaco ou um

sub-homem, andará para trás ou para a frente


tanto quanto for necessário...

Não acredito em charlatães —

cortou
brusco Alexei.
olhou em volta o jardim, em desolado
Maga
alheamento. Encolheu os ombros:

...Oui, mon amour... Sei que não gostas


de palavras «mortas» e é pena. São belas.
Na piscina, pequenos e coloridos peixes
deslocavam-se em movimentos lentos, entor-
pecidos. Maga agarrou um punhado de areia
e atirou-o å água:

...Tal qual como nôs, nem mais
prisio-
neiros nem mais livres dentro do nosso Aquá=
rio —

murmurou a rapariga, mergulhada em

doce catalepsia, a fitar a superfície onde, em


contraluz, se reflectia a sua silhueta sentada.

Vê, Alexei, como eles, mesmo em cardume,


são solitários...

...É um Universo-Com-Tanto-Sentido-
-Como-Outro-Qualquer. Nada tem de assus-

tador.
Um minúsculo peixe subiu å tona e ali ficou
a espreitar, mordendo as sombras projectadas

pelas ramadas de estrambôtica árvore. Era


azul e parecia mirar curioso e vigilante o
Å

44 OAQUARIO

mundo envolvente, além fronteiras azul, -


dum azul intenso, descarado. Maga agarrou o


brago de Alexei:
Vês isto? !

O peixe escapou-se å luz. Maga, num pulo


ágil, mergulhou piscina, desaparecendo
na

num ápice, como tragada. Dali a longos


que
instantes voltou, respirando fundo, zangada:
Safou-se. O tipo safou-se para o meio da

Comunidade. Como distingui-lo agora se é


idêntico o maldito ? !
a todo o mundo,
Ninguém gosta

de deuses que não sejam
da sua espécie e escapa-se deles sempre que
pode. . .

A rapariga saiu da água, os cabelos molha-


dos, a escorrer. Alexei espremeu-lhos com as
mãos.
.

Eu gostava que umDeus ou um Demonio


me distinguisse, me levasse sufocada para uma
mesa de vivissecgão; pelo menos, assim, pode-
ria espreitar para lá do aquário. E tu ? . .

Eu queria era safar-me dos Ômegas.


Os Ômegas não têm importância.


Do Robot Biologico...

acrescentou o —

rapaz, baixo, com contida violência.


...Podes falar em qualquer tom e sem
■—

medo. Aliás é o único Medo que podes experi-


. .

mentar sem formigueiros nas mãos.


Devíamos destruí-lo. Imaginar todos os

processos para a sua imediata destruigão.

J
O AQUARIO 45

No Instante-Seguinte encontrar -
nos -

-íamos a inventar Outro.


Dispenso-o definitivamente.
Maga deteve-se a olhar o rapaz; depoisdis-
se, como
que sonâmbula:

Nunca experimentaste o tédio, Alexei?...


Sem que o s-l-i intervenha ? . . .


Como?!...
Não prestando atengão ao espanto de Alexei,
Maga continuou:

Apesar de inôcuo, o tédio tem estranhas


propriedades... Ê amorfa, nau-
uma massa

seante, corpo mole, pegajento e esverdeado,


um

talvez uma sombra a adensar-se, a adensar-se


cada vez mais até que o objecto possuído «es-
toira» ou «recua»... Melhor: o tédio é uma

fofa almofada de penas, fofa e


entorpecente
como a morte...' —
a morte, o mais solitário e
humano de todos os actos —

ao estilo da época,

digamos...

.Nunca li nada de semelhante no livro


. .

de Syma. A verdade é que eu não posso ler


tudo o que vem no livro de Syma disse Ale- —

xei em tom já indiferente.


Não se trata do livro de Syma... Albert


trabalha em Dimensôes...

Todos os «rhode» inclusive nôs mais


tarde —

trabalham em Dimensôes...

-...Mas Albert...

Ê capaz de ser um charlatão, já te disse. . .


46 O A Q U A R I O

Desses que procuram o Sistema O-O, um modo


de escapar ao Robot Biolôgico. Tudo aldra-
bice no fim de contas, pois ninguém escapa.
E queres tu destruí-lo ? Oh, o herôi ! Vá,

pede-lhe pouco mais de sol para demons-


um

trares que não és um menino birrento.


Alexei estendeu a mão até ao nível da água,
cruzou dedos e, acto contínuo, um sol ar-
os

dente irrompeu através da atmosfera prima-


veril, envolvendo-os num abrago de fogo. Maga
fez uma careta de contrariedade, vivamente
incomodada pela claridade que lhe batia em
cheio no rosto.
Para quê tanta Inclemência-Solar, Ale-

xei?
Alexei estendeu de novo a mão, cruzando e
descruzando os dedos, a regular o Cosmos.
Uma brisa suave, morna, veio enxugar os
cabelos de Maga. A rapariga disfargou leve
bocejo :

...Temos optimo Robot Biolôgico:
um

alegre, amorável, fofíssimo, amantíssimo. . .


Fechou os olhos e riu: Alexei, diz a verdade,


tu não desejas destruí-lo, pois não?


Não penso noutra coisa.

...Mas vê, quando tu mudares de Sistema


Dimensional pela prôpria mão Dele...


Não quero mudar de Sistema Dimensio-

nal.
Maga estendeu-se ao
comprido ao lado do ra-
O AQU AR I O 47

paz. Buscou-lhe
os lábios,
que recomegou a
sugar. De súbito ele soltou-se e, colando a
boca ao pescogo da rapariga, prendendo-a a si
com forga, principiou por sua vez a «bebê-la».
Maga engoliu em seco, os bragos caídos,
abandonados em desesperada entrega. Alexei
sorvia-a, sôfrego, detendo-se por fim, os lábios
húmidos e tumefactos.

•—
Odeio-te disse ela muito proxima, os

olhos sarapintados, sombrios e fulgurantes de


ira. Alexei riu e afagou-lhe a face.

Eu
nunca rasgo a tua pele como fazes
comigo. Nunca rasgo a tua pele...
Albert rasga a minha pele;

sou a sua

cobaia, o seu campo experimental.


Alexei comegou a sentir picadas
nos pulsos,

formigueiros na extremidade dos dedos. O s-l-i


batia pancadas frenéticas. Instintivamente le-
vou a mão å sua pulseira, mas deteve-se e não

lhe tocou. Aos poucos as pancadas tornavam-se


menos violentas, normais quase:

Como seria agradável matar-te, apertar


o teu pescogo calou-se tenso.
e... —

Ai está
■—
interessante
uma violência que
valeria a pena reinventar. Verias a morte no
meu rosto. Maga fitou o rapaz, nos olhos

estranho e bravio fulgor : —

Gostaria que visses


a morte no meu rosto !

Inesperadamente a rapariga fechou as pálpe-


bras. Ele prendeu-lhe o rosto nas mãos.
48 O AQUÁRIO

Olha para mim, Maga, e escuta.


Estou a ver-te —
disse.
■—
Isso não é ver.

Com lentidão, pálpebras foram-se er-


as

guendo, suaves e preguigosas, as pupilas pin-


talgadas a inundarem-se de claridade, devas-
sadas por outras, inquietas, estranhamente
passionais.
Ouve... Um dia reinventaremos todas as

violências. Todas !
Todos sonham com isso... Que um dia

hão-de roubar, violentar, matar. Porquê?


perguntou Maga do mesmo modo preguigoso,


ausente.

-Decididamente tu não sabes empregar se-

não alinguagem morta. Queremos


tua um

Mal-Réplica å altura do nosso Bem.


Foste tu que disseste <(reinventar»

. . .

Disse mal.

Bien... Pede-Lhe Música. Uma Sinfonia


de Pássaros. por exemplo.


. .

Poderias fazê-lo tu, escolherias a teu


gosto.
Não gosto de falar com o Tipo.

Alexei encolheu os ombros e estendeu o


brago, voltando a mão de palma para cima.
Os seus lábios mexiam imperceptivelmente
ainda, quando fresco e harmonioso gorjeio
comegou a ouvir-se, sobressaindo dum fundo
musical que imitava â perfeigão o correr das
O AQU AR 10 49

águas primaveris, o seu jorro cantante e cris-


talino, todo um deslumbramento de sons en-
cantatôrios, quase mágicos. Maga ouvia de
rosto franzido. Inesperadamente
tapou as ore-
lhas e suplicou :
Ror favor, Alexei, <(manda» calar esse

chilreio. Por favor...


Os sons estancaram com
brusquidão. No si-
lêncio que se
seguiu a
rapariga ouviu a voz do

companheiro que perguntava irônica :



...Talvez Bella Sumatra, não?! Bella
Sumatra é antiespago-esférico-e-
como um

-branco-com-espago-para-tudo.

Bella Sumatra tem a alma colectiva dum


Ômega. Prefiro isso na verdade.
Mais uma vez a música jorrou, agora mú-
sica «perfeita», exacta, matemática, despida
de qualquer emotividade, qualquer horror,
qualquer sublime uma equagão.

Maga levou as mãos ao rosto e pelos inter-


valos dos dedos abertos, esparramados, esprei-
tava a expressão carrancuda de Alexei. Disse,
a esforgar-se por não rir : Creio que não che-

gaste a perceber o
que seja o tédio ! . . .

Não, percebi.
não

Tmagina uma corrida seguida de luta en-


tre o Desejo-e-o-Prazer, este matando aquele,

matando tudo, fazendo-se Presente do Indica-


tivo. Compreendes, n'est-ce pas?

Depois duma explicagão dessas sô se eu

4
50 O AQU AR I O

fosse macaco não entenderia respondeu fu-


rioso atirando pedrinhas å água.


Como queres que eu explique mais clara-

mente se o dicionário agoniza sem voz, le pau-


vre enfant ? !
Alexei pegou-lhe nas mãos e descobriu-lhe
o rosto, buscando a intimidade da companheira
através da luz que transitava de pupila a pu-
pila. Ela parecia longe, perdida em doce e so-

nolenta rêverie. Alexei mordiscou-lheosdedos:


O desejo é ilimitado como a vida e o ser.

. .

É, e mede-se em graus s-l-i.


Um dia deixará de caber num sistema de


coordenadas.

Deixará de haver «metamorfose» , inven-


tar-se-á a «morte»... dizer Primeiro Tipo será
mais uma expressão morta, etc, etc, etc...
Sempre Um-dia, um Grande-Dia !

Não sejas desanimadora.
Maga ficou calada a olhar em frente. De re-
pente, rindo:

Tanto me faz, sei como escapar na altura


propria.
Que queres dizer?...

Nada... Vamos andando...


Maga levantou-se e estendeu as mãos a Ale-


xei. No mesmo instante entravam no jardim
duas raparigas, uma verde e a outra azul, que
chegadas å borda da piscina se despiram num

ápice e entraram na água.


OAQUARIO 51

Maga ficou a olhá-las, ausente, vendo-as


afastarem-se uma da outra, voltarem a aproxi-
mar-se, rir esparrinhando água, os seus lábios
tocarem-se (verde-azul-azul-verde-verde-azul) ,

separarem-se de novo, num ciclo indefinível,


eterno e fechado. Via-se assistindo sem corpo
nem voz algo de distante e nebuloso, para
a

sempre perdido num tempo-espago-laracha-


-qualquer. Sentia sono. Era isso, sono, um
sono infinito. Murmurou:

Alexei...
O rapaz deu-lhe a mão:

Vamos...

...Não sabes, Alexei, que eu posso per-


correr curvas emocionais sem que o s-l-i...

Dégagée ? ! perguntou Alexei fincan-


— —

...

do-lhe as unhas na carne.

Dégagée —

repetiu ela agressiva e vulne-


rável.

Dr. Fausto, não?...

Oui. Je suis son cobaye, son champ expé-
rimental. Oui...

Onde posso encontrar esse charlatão?



Albert? Tu queres encontrar-te com Al-
bert?

Porque não? Supôe que o meu desejo é


fazer de ratinho inocente. Supôe !

Larga-me os bragos disse Maga com


súbita aspereza, acrescentando em tom de tro-


ga:

Talvez queiras «libertar-me» das gar-
52 0 AQUARIO

rasdo monstro. Como Albert vai achar-te pa-


. .

tuscoe divertir-se !

As picadas no pulso de Alexei tornavam-se


mais e mais agudas, quase insuportáveis. As
agulhas do s-l-i saíam das suas ôrbitas nor-
mais.
A víolência neutralizava-se aos poucos e com
dificuldade. Disse, a medir bem as palavras:
Albert de Michigan fez parte da equipa

introduziu a onda WO-V no Robot Biolo-


que
gico, é um dos «sacerdotes» arredados e como
tal deve odiá-lo. Não creio que os seus «pro-
cessos» me interessem muito, contudo talvez

me agrade ouvi-lo...

Albert não está preocupado com a destrui-
gão do Robot Biolôgico, se é isso que queres
saber; ele acha que nôs necessitamos dele como
um sub-homem do ar que respira... Quanto a
si, Albert vai escapar â dimensão através do
O-O...
Alexei soltou aguda gargalhada. Maga
olhou-o irritada voltou costas. O rapaz se-
e

guiu-lhe as passadas rindo sempre e dizendo:


..O semideus, o Fausto leva-te consigo,


.

bem entendido? Ah, está visto que quer fa-


zer-te participar do Paraíso-Escondido no Zero,
continuar a saborear-te a quente e líquida do-
gura?... Deve notar-se â vista desarmada que
se trata dum semideus a sério, um herôi da

antimatéria. Nota-se? Diz...


0 AQUARIO 53

A rapariga ultrapassou a porta e já no átrio


Alexei fê-la parar colocando-se å sua frente:

...Maga, tu não vês que os tipos como ele


procuram o humano andando para trás, na ani-
quilagão de todas as espécies, de todos os seres
inteligentes ? Não vês ?
. . . . . .

: Talvez o Nada seja uma coisa boa, a única


coisa boa. Vai, vai ter com Albert de Michi-


gan

disse
Maga como resposta.
Afastou-se do companheiro, o rosto inex-

pressivo sûbitamente apático, e entrou no

Zut.
Capítulo IV

de Michigan procurava ainda os


ALBERT últimos tijolos para o seu palácio-barreira
e atardava-se a romper pelo caos luminoso (de-

masiado luminoso) do conhecimento, definia


valores, limites humanos, o prôprio humano
limite-de-si-prôprio e da fungão R-Q-T-P.
Construía afanosamente o seu palácio, em-
briagando-se com a ideia de um dia aí se ins-
talar, liberto enfim adentro das paredes de in-
violável prisão (o Eu, pequeno e estapafúrdio
sistema planetário, ou mefistofélico e cínico
cosmôide estendido ao comprimento e â largura
sobre escura e fria laje, por cima uma abôbada
sem estrelas, nem lua, nem sôis, nem água,

nem fogo, nem caragas de papelão pintado, nem

nada, nem nada. ) e ciente de possuir a Morte


. .

preparava-se para ser definitivamente, defini-


tivamente...
Quando pensava demasiado nisso Albert de
Michigan acabava por rir em gargalhadas e
OAQUARIO 55

em
seguida tinha a sensagão de que estas volta-
vam ao
ponto de partida, estridentes e irre-
conhecíveis, doridas, em busca do dono.
( Arra-
sante, tudo deseja ter um dono, senhor). um

«Espera, não há um Sistema onde se produz


um fenômeno
parecido com esse, um fenôme-
nozinho elementar chamado «eco» ? ! Ocor- . . .

rera-lhe um dia e apressara-se a rectificar os


cálculos que fizera, revendo todas as teorias de
Rama, «rhode» desaparecido «misteriosa-
um

mente» —

aliás o único indivíduo que se sabia


ĸdesaparecido misteriosamente». Pertencia-lhe
a si, contudo, a descoberta
quase fortuita dum
sistema antimatéria, que ele classificara de
O-i. Por enquanto limitava-se a tímidas expe-
riências e falara delas sômente a José Fernan-
dez, que, coisa estranha, se recusava a assistir
a
qualquer sessão. Dissera-lhe na última vez
que falaram no assunto:

Acredito, acredito. Teôricamente a coisa


está provada de há muito, faltava o truque fi-
nal. Ôptimo ! O Conselho dos Teta vai ficar
radiante, é sempre assim quando se engendra
maisum malabarismo.

Não tenho a mínima ideia de participar o


meu achado ao Conselho dos Teta. Rama fez

o mesmo, aliás. Sei onde encontrar Rama,


compreendes ?

Não..
•—
Rama ou passou a um Sistema-antimaté-
56 OAQUARIO

ria ou então encontra-se no ponto que eu pre-


tendo atingir...

Lá voltas tu ao mesmo... Confesso que


não sei bem onde queres chegar?...

É simples: desaparecer como se nunca

tivesse existido.

Como quê ? ! . . .

Como-Se-Nunca-Tivesse-Existido.

Oh!
José Fernandez riu com leve cinismo:
• —■

Não-Ter-Existido é Morrer. Lembras-te


daquele Campo Subespécies onde nos lava-
de
vam em pequenos do espectáculo que aí se
e

desenrolava quando os seres entre o seu zero


relativo e o absoluto aguardavam, envelhe-
cendo e sofrendo ?

Lembro-me bem.

IÊ isso oque pretendes ?.. . .


<
Não ! Não tenho coragem para tanto.
Conhego outros Campos, aliás...

Não podes !—

interrompeu José Fernan-


dez. O Conselho dos Teta resolveu acabar

com tais
experiências.
Não me refiro a esses...

respondeu Al- —

bert alheado.
José Fernandez encolheu os ombros:

Recordo-me, já na nossa equipa-bebé tu


gostavas de destoar, fazer tudo ao contrário.
Um dia deitaste-te abaixo, largado, da última
espiral da Historia. Estudávamos nessa altura
0 AQUARIO 57

a teoria da Gravitagão e tu pretendias ir contra


a
Antigravitagão.
José Fernandez riu barulhento e acrescen-

tou:

O Conselho dos Teta expulsou-te do Ro-


bot Biolôgico depois de teres conseguido dimi-
nuir-lhe a eficiência... Consta até que não há
muito tempo um «rhode» pediu chuva e o
Grande-Tipo mandou granizo, não sei, talvez
seja anedota. Depois disso andaste embrenhado
nos corriqueiríssimos lugares-comuns da rapa-

ziada na fase Ykm, coisas que repetidas chei-


ram mal: «Continuar ou não continuar hu-
mano», «Temos ou não temos direito ao odio,
a recusar o s-l-i?». Temos, claro, e também

é certo que ninguém nos proíbe...


Pudera ! Albert riu por sua vez.


— —

Muito antes disso já o «ôdio» precipitou sob a

forma de composto insolúvel. Porque não «pre-


cipitar» o homem inteiro e acabar de vez com
a
questão?

Eu não digo ? ! Porque há-de um adulto


teimar em fazer perguntas metafísicas de tipo
em f ase pré-adulta ? Não tens feito outra coisa

em toda a tua vida senão perguntas para as

quais sabes de antemão não obter resposta.


Não te preocupes comigo e deixa-me con-


tinuar na zona dos «jovens».
Referiam-se ambos aos indivíduos que, como
Maga e Alexei, faziam parte ainda do grande
5§ O AQUÁRIO

grupo Ykm. Constantemente os Ômegas regis-


tavam perguntas desconexas, questôes fúteis
ou descabidas, confusas na maioria e que, de-
pois de convenientemente catalogadas e selec-
cionadas, ordenadas segundo um critério de no-
vidade ou a-propôsito, eram enviadas ao Con-
selho Científico dos Teta. Estes, em regra,
olhavam-nas negligentes, chegavam mesmo,

por vezes, elaborar evasiva resposta,


a que não
deixava de ser evasiva pelo facto de vir tra-
duzida e m números que nada esclareciam,
- - -

quase sempre sorriam de tais ingenuidades


e

mandavam arquivá-las num departamento do


Robot Biologico destinado a Pequenas-Curio-
sidades.

...Foste expulso do Conselho dos Teta...


recomegou José Fernandez, meio distraído.

O amigo enfrentou-o, com expressão de sur-

presa :
•—

Porque vens falar-me nisso, de novo ? Que


me importa o Conselho dos Teta?
Muito. Dali comandavas as entranhas do

Robot Biolôgico e era esse o teu desejo. Pro-


pus a tua readmissão. . .

Nesta altura não estou interessado e tu


sabe-lo bem, como sabes que haverá sempre


- uma dezena de Tetas a introduzir no Ômega-

-Padrão o dado pessoal «confuso e egoísta como


todos os Metafísicos» e consequentemente a
máquina a chegar sempre aos mesmos resulta-
O AQUARIO 59

dos: Perigoso. Sabes isso tudo e propôes a


minha readmissão, velho traste ! És um cínico
da pior espécie.
Ambos riram, dando a conversa por encer-
rada. Depois Albert continuara a trabalhar no
seu particular e misterioso
invento, a que asso-
ciara Maga...
Nesse momento encontrava-se no labora-
tôrio y-2. Interrompera o trabalho, os bragos
cruzados sobre folha de «átium». Pensava
a

na
rapariga. Pressentindo que alguém se vi-
nha aproximando, voltou-se råpidamente.
Era José Fernandez que contornava um bo-
judo aparelho de análises, bizarma.plantado a
meio do laboratôrio, este, por sua vez, uma
vasta floresta de máquinas e robots que vão
e vêm, surgem e desaparecem, transportando
objectos, deslizando ou parando, vigilantes e
atentos, e isto no meio de total silêncio. Ao
notar o amigo, Albert interrogou-o com os

olhos.
O disse jovialmente:
outro

Os habituais dilemas : Vida ou Morte !


A velhíssima questão, naturalmente.


Naturalmente ! Vinha saber se elaboraste


a curva de variagão do novo «Fag». O ômega

WV reclama-a.

Porque hão-de os Ômegas ter tanta


pressa ?

Não são os Ômegas, somos nôs.


6o OAQUARIO

Seja. Tenho mais em que pensar e não


elaborarei essa curva.

Bom, passa-me osdados. José Fernan-


dez foi dar uma mirada ao trabalho do amigo:


Continuas com essa loucura?...


Albert fitou-o por sua vez:

Pior. Pretendo arrastar-te comigo.


Ah, não, não creias —

respondeu José com

veemência. Não creias ! Pela minha parte te-


nho a «Regressão-Física», a «Metamorfose» e


muitos zeros relativos a ultrapassar. Recuso-
-me a continuar a servir-te de bengala; nunca

soubeste viver sem mim, o teu pôlo-negativo...


Albert riu com cinismo :

Como passarás tu sem o teu pôlo-positivo ?


Bem... Espero que bem...


Ah, meu futuro habitante do Alfa-Alfa-1,
—-

tu e os outros transmutados, os imortais !

Albert ria, demoníaco e mau, no olhar um


laivo de demência.

íîs doido ! disse José, sombrio.


Sou doido, vê-se que sou doido preferindo


a
aniquilagão total a quejandas alternativas.
Ah, meu
querido amigo !
Albert apoiou a cabega nos bragos, desaparê-
cida toda a hilaridade, o rosto
aparentando en-
velhecimento.
Porque não tomas «ghone» ou fazes uma

depuragão somática? perguntou José em voz


surda. Albert ficou a olhá-lo, considerando-o.


O AQU AR I 0 61

O encontro desse dia ameagava transformar-se


em azeda
quezília, como era vulgar acontecer
ûltimamente. Tinham sido sempre unha com
carne e, de há uns
tempos para cá, essa ami-
zade ameagava transformar-se em ressenti-
mento e azedume.
Albert respondeu, com pouco a-propôsito:

O homem é um erro, um pequeno erro de
desvio da MatériaBruta. O pior é que é o
mesmo homem que vem desde há longos tem-

pos a tentar corrigi-lo, crente de que corrigin-


do-se o corrige, estando na verdade a acentuá-
-lo. Nota å medida que nos afastamos da
como

Placenta=Mãe, â medida que progredimos...


José Fernandez assobiou, impaciente, inter-
rompendo-o:

Já sei, já sei, mas escusas de te magar


com a liquidagão em massa das espécies. Nem

sequer com isso, pois Ela, a nossa Mãezinha,


a Matéria=Bruta se encarregaria, em qualquer

altura e por milhentos processos, de repetir


deliberadamente ou não os mesmos erros, re-

generando a vida, esta o pensamento, etc, etc,


etc, desde o princípio, quando era o Verbo, até
å Comédia dos nossos dias. Voilá ! José Fer- —

nandez suspirou em irônica resignagão e acres-


centou, depois de breve pausa:

Deixa que ela nos goze e devore com todos
os matadouros ! Eu pela minha parte sinto-me

um átomo indispensável do Universo, um


62 OAQUARIO

átomo ingénuo e bem comportado nem bem —

nem mal
comportado, digamos: passivo. Exac-
tamente como «Ela» quer, porque assim, e sô
assim, os meus gestos têm sentido, nenhum
deles discordando do pulsar gigantesco e mons-
truoso da Gorda.

José Fernandez riu barulhento, exclamando


em tom discursivo de troga:

Gloria âMatéria, a Indestrutível, a Bruta,


a Sufocante, Luxuriosa e Nauseabunda, glôria


â Gloriosa Putain ! Sou um rapazinho obe-
diente, nem mais ! e
que se lixe toda a imun-
dície restante e a liberdade em primeiro lugar.
Voilá !

És um amigo maravilhoso, a minha ver-

dadeira dimensão —

disse Albert em tom de


alheada ternura.

Não me comovas agora com protestos de


amor. Eu rebento !

Quero dar-te razão —

respondeu Albert
no mesmo tom. —

Temos umUniverso-Como-
-Outro-Qualquer, um pobre bicho sem patas
nem olhos a quem gritamos constantes pergun-
tas sem nos lembrarmos de que o tipo é tam-
bém surdo-mudo. . .

Nada disso

^atalhou o amigo

nada —

disso, o Falso-Inocente é um finôrio: cansou-se


de ouvir sempre as mesmas interrogagôes fei-
tas no habitual tom imperativo e lamuriento e
ri-se de nôs fazendo orelhas moucas. O que é
O A Q U A R I 0 63

preciso é fazer como o Falso-Inocente : não ter


olhos nem ouvidos, acertar a linguagem pela
sua. Disse !
José Fernandez, em irritado assobiaf, sen-
tou-se junto dum telescôpio. Em breve read-
quirindo o bom humor exclamou:

Formidável, vê !
Albert veio espreitar, regulando a ocular
para o seu ponto optimo de visão. Entretanto
José Fernandez ia falando:

O que interessa é isto, Grandeza. Mil


anos luz hoje, um milhão amanhã, é uma ver-

dade com barbas que já ninguém se atreve a


discutir senão tu.
Agora sou eu que te pego para te calares

com infantilidades. Ora repara


e Albert
prestava atengão ao microtelescopio —

,
a dois

milhôes de anos luz quase se pode distinguir

um átomo.

A dois milhôes, pá? ! Ena ! Ora vês como

gozas de olhos arregalados para o infinito-sim-


ples ! . . .

José, rodando sobre o assento, pôs-se a can-

tar monossilábica em voga. Inter-


uma cangão
rompeu-se para perguntar:

Não tens por aí um «zim» ?


Chamo Bob...

Não, não. Dispenso o «zim» Bob.


e

José recomegou a trautear a cangão mistu-


rada agora de assobio. Albert olhou-o consi-
64 O A Q U AR I O

derando-lhe a inalterável boa disposigão, a ba-


rulhenta alegria, onde havia algo de chocante
e agressivo, e mordeu os lábios com animosi-

dade.

Que chatice ! disse Albert rasgando a


folha de «átium» de alto a baixo.


José Fernandez fitou-o e, como se lhe adivi-
nhasse os pensamentos e isso q divertisse ao
máximo, cruzou os bragos em atitude de desa-
fio:

Podes agredir-me se isso te der jeito.

Não dá!

£ pena. As pessoas chateiam-se se não ti-


verem a quem chatear e é ,por isso
que nôs con-
tinuamos a viver Grupados.

Cada um de nôs tem de arranjar um tic


irritante, é isso !

Mais ou menos —

respondeu José. —
Eu
por exemplo arranho
finas sensibilidades
as

do prôximo cantando ou assobiando cangôes


monossilábicas, Maga fala uma língua morta
qualquer, tu... A propôsito como vai a nossa
deliciosa amiguinha ? Elle ne veut pas coucher
avec moi
je ne comprends pas, je ne peux pas
e

comprendre . . .

José Fernandez ria, desprendido e agarotado,


um brilho de selvática
alegria no olhar. Albert
de cenho franzido não respondeu.

...Se não quiseres não falemos de Maga,


a tua diva, la petite pucelle si douce á aimer,
O AQU ARI 0 65

non? Une belle s.s.s. aussi, I suppose ! Who


is she?
Como que alheado, Albert respondeu:

Maga é o Pássaro-de-Fogo. Quando tiver


ardido completamente... Conheci-a numas fé-
rias na Montanha Mágica, onde eu fora com
Yarath.
José Fernandez não conseguia disfargar a

expressão de maliciosa troga:


E então largaste Yarath em plena Monta-


nha e desceste ao vale transportando nos bragos
o Pássaro-de-Fogo ? . . . Clássico !
Yarath regressou connosco de trenô —

respondeu sombrio Albert.


Julguei-te mais imaginativo com o teu


Pássaro-de-Fogo.

Cala-te ! gritou inesperadamente Al-


bert, acrescentando em seguida: Se não con- —

seguir «ponto» que procuro


o retirar-me-ei para
outro qualquer, um, onde possa assassinar,

roubar, violentar, difamar ! Ah, sim, quero


retirar-me para um «ponto vivo» onde os actos
bons e os actos malditos tenham ainda qualquer
sentido ou significado. Quero infligir derrota a
alguém para que a minha vitôria não seja um
acontecimento gratuito.
José olhava o amigo dum modo vago e au-
sente, de quem não entende. Depois disse, num
trejeito de indiferenga:

. ...Se esses a quem pretendes infligir der-

5
66 OAQUARIO

rota se encontram num outro Sistema-Dimen-


sional diferente do teu. . . não são da tua espécie
e
portanto a vitoria-derrota continua sem sig-
nificado. ~B o mesmo que desatares aos ponta-
pés em Bob, creio. ..

Os deuses e os vermes sempre se diverti-


ram a devorar os homens e agora pergunta-lhes

se não o faziam com genuíno prazer.


Se a tua fúria vem de não realizares actos


fora do mercado, porque não os introduzes por
tua conta e risco ?
Como é que um nariz sem olfacto há-de

cheirar ? Como é que eu posso mudar o sentido


aos meus passos se sô sei caminhar
por-onde-
-vou?

Nesse caso muda de Dimensão como di-


zes. «Lá» talvez
consigas escoicinhar acon- —

selhou José com azedume, acrescentando: —

«Aqui», decididamente o dicionário do Mal é


arcaico, deixou de ter actualidade e nôs desa-
prendemos de manuseá-lo.
Assobiou de novo, impaciente, enquanto
rodava o eixo metálico dum pequeno gráfico
genético como quem se desinteressa da con-
versa. Estendeu uma folha a Albert. Este
pe-
gou-lhe sem olhar o esquema luminescente
que a preenchia de alto a baixo e disse:
O Universo que venho deduzindo desde

há longo tempo serve-me como uma luva e é


surpreendentemente simples.
O AQUARIO 67

Já sei, já sei respondeu José, desejoso


de ficar por ali.


Talvez saibas muito pouco!' disse Al-—

bert, e virou costas, debrugando-se sobre um


gráfico a que pareceu prestar toda a atengão,
estabelecendo-se em seguida um silêncio de
calmo labor entre os dois amigos.
Bob surgiu â porta. Anunciou:
—-
Alexei Osborne espera Albert de Michi-
gan no salão 1.

Manda entrar para o salão 3 ordenou—

Albert ao robot.

Quem é Alexei Osborne ? perguntou


José Fernandez enquanto Albert se libertava


do involucro anti-k.
:
Não sei. Talvez um desses Ykm que de-

pois que sabem que fui expulso do Conselho


dos Teta, que odeiam, me procuram de vez em
quando.

Entendo ! Querem-te como libertador.


Olha, leva-os, leva-os todos para a dita Dimen-
são não sei quantos. Ah, os tolos sempre a fa-
zerem perguntas de algibeira aos Ômegas,
sempre convencidos de que o Robot Biolôgico
é invengão do Robot Biolôgico. Alexei Os-
borne ! ! ? . . .
Capítulo V

Osborne levantou-se da poltrona


ALEXEIonde tinha enterrado e saudou Albert.
se

Admirou-se sobremaneira da sua expressão de


simpática afabilidade, pois construíra para si
uma imagem de Albert, com um quê de me-

que não coincidia de modo algum


fistofélico,
com do indivíduo que tinha â sua frente.
a

Contudo sentia-se intimidado, incomodado ao


máximo pelas pancadas do s-l-i.
Albert fixou-lhe o pulso cingido pelo metal.
Comentou com naturalidade :

Sem a neutralizagão dos instintos aonde


iríamos parar ! Alexei acalmava-se, deixava

de sentir o s-l-i:

-Naturalmente... Muitas vezes, em pe-
queno, tentei libertar-me «disto» cortando o
brago. Lera histôrias que falavam de elemen-
tos efectivâ e definitivamente cortantes...
Nunca bem entendido
consegui, disse. —

Albert ofereceu Zim-Ghone. Alexei recusou,


'
dizendo:


OAQUARIO 69

Não fumo Zim-Ghone.


Durante um bom intervalo mantiveram-se
silenciosos como dois velhos conhecidos que
fazem uma pausa na conversa. Observavam-se
sem qualquer espécie de constrangimento. Al-

bert disse, por fim, voltando inesperadamente


ao assunto anterior:


Nem sequer valeria a pena cortar o brago
por tão pouco. Ultrapassada a fase Ykm você
fica livre automåticamente de tal cadeia.
Nessa altura sentir-se-á senhor de todos os
abre-te-sésamo, poderá desesperar-se, experi-
mentar na carne as delícias da dor física, do

tédio, do odio, considerado tudo isso na zona


neutro-negativa, esvaziado de conteúdo por-
tanto...
■—

Quando formos cegos-surdos-mudos dir-


-nos-emos a nôs mesmos: olha, escuta, fala.

Mais ou menos —

concluiu Albert com

brandura.

Sei que esteve no Robot Biologico, que...

arriscou Alexei depois de breve pausa.


Já esperava que me falasse nisso. O Ro-


bot Biolôgico somos nôs, fora de nôs. Poderá
acrescentar-se qUe o espelho não nos é favo-
rável e irritamo-nos com ele.

Maga...

Maga ? ! —

Albert retinha o nome da ra-


pariga, punha-o entre ambos como um trago-
-de-união, a mais secreta afinidade. Maga? !

70 O AQUARIO

Maga falou-me num invento... Talvez


nos possa ajudar a destruir...
■—
Onde ficou a nossa amiga?
Alexei deixou assentar a pergunta, deten-
do-se a perscrutar o rosto do outro, desconfiado
duma zombaria, mas não, nada disso, Albert
fitava-o com interessada seriedade. Respon-
deu encolhendo os ombros:

Deve encontrar-se em Anchow.



Vamos dizer-lhe que venha aqui e nos ex-

plique...
Albert calou-se. Dirigiu-se ao aparelho S-D
colocado no centro da sala, rodou o fototipo e
ordenou :

Coordenadas Maga Moniz WW-OO-R-S.


A resposta veio lenta:

Maga Moniz, «abrigo».


'—
Contacte. Contacte.
'—
Sem contacto, sem contacto, sem con-

tacto. . .

Merde!
Albert cruzou os bragos å frente do corpo.
Parecia possuído de fúria demoníaca:

O
Pássaro-de-Fogo abriga-se. Comega a
ter medo ! Não haverá ninguém capaz de usu-
fruir sem medo o prôprio medo ? Que quer você
de mim afinal? Dirigia-se a Alexei, os pu-

nhos cerrados: Que faga malabarismos ?


Não sou feiticeiro.


O AQUARIO 7i

Dr. Fausto respondeu



Alexei num tom
neutro, quase apático.

Fausto ? ! Sabem ao menos o


que signi-
fica Dr. Fausto?

Não estou interessado por aí além em


aprofundar a questão, contudo sei como todo
0 mundo
que «Fausto» em linguagem moderna
significa ridículo-charlatanice-jogo-metafísico-
-de-dados-sem-dados-etc

Pobre criatura, simpático compra-e-


-vende espíritos, pobre «velho» ! Sim, um ve-
lho imbecil e por isso mesmo é que ele nego-
ciava a juventude e a sabedoria, subtis prazeres
da existência, nada corriqueiros ao tempo. —

Albert encolheu os ombros, acrescentando :


Aonde vai já o nosso malfadado negociante


de mercadorias raras, o caluniado. Sem ele es-
taríamos ainda ås portas da Proto-Historia.
-Não acredito em lendas. O Homem nas-
■—

ceu duma penada, por uma mutagão brusca


ZZZZZZZZ —

o cosmos a rasgar-se, a ar-


,

der, e ele nascendo das suas entranhas como


um cogumelo. Sô assim dá certo.

Albert serviu bebidas. Alexei, depois de ter


saboreado o primeiro gole, exclamou:

Mas é extraordinário este praff!

A minha verdadeira especialidade é pre-


parar praff. Ê um Aprendi com Bob.
filtro.
Alexei saboreou outro e outro gole, de re-
pente emborcou o copo, sôfrego.
72 OAQUARIO

Gostaria de beber mais.



=

Albert serviu-lhe com cuidado uma nova


dose. Å superfície do líquido azulado despren-
diam-se bolhas coloridas e fosforescentes num
plang-plang que terminava nos lábios do be-
bedor. Alexei riu descontrolado, o s-l-i a vi-
brar-lhe por todo o corpo. Foi junto do S-D
e procurou Maga. Em vão. A resposta era
sempre a mesma: «semcontacto, sem contacto,
sem contacto...» Levou as mãos å cabega e
gritou:
Maga.
■—
Onde estás
Maga? Oh, Maga, o
mundo está despovoado, fica despovoado
quando tu desapareces. Maga, ouve-me, por-
que não me disseste que ele te chamava o

Pássaro-de-Fogo? Porque disseste,


não me

pois já teria vindo aqui esmurrar-lhe o foci-


nho. Pássaro-de-Fogo, diz-se de alguém que
está condenado a arder, arder sem parar de
arder. É uma lenda. Estou rodeado de lendas.
Acode-me. Alexei levava as mãos ao rosto

ensandecido e continuou agritar: —

Maga!...
Ouvindo uma gargalhada voltou-se. A um
canto estava Albert que observava. Alexei
o

respirava a custo, ia levantar os bragos mas


deixou-os cair. Estava como que colado ao
chão, pesado como um corpo sujeito a desme-
dida gravidade. Ouviu o outro através duma
nebulosa clara e fria:

Aqui está o resultado de geragôes e gera-


O AQU AR 10 73

gôes de indivíduos «sem


psicologia», servindo
de cobaios umas âs outras, sucessivamente e

sem
interrupgão.
Falaria ele para alguém, o Dr. Fausto ?
Sim, havia uma outra sombra no
comparti-
mento. Onde se encontraria verdadeiramente ?
Alexei ouviu a sua prôpria voz:

Recuso-me a servir de cobaio, recuso-me


a fazer de ratinho.
Maga, porque não me avi-
saste do que se passava «aqui» ?

Alexei ! . . .

A quem pertenceria agora aquela voz e por-


que seria impossível mover-se ? Porque pesava
assim o seu- corpo ?

B como te digo, o curioso e


surpreendente
está no facto de o «ratinho» reagir sempre dum
modo inesperado, diferente do previsto. Por
isso é que o mundo ainda não morreu de velho.

Não há dúvida, a imaginagão da natureza


ultrapassa-nos...
Havia um diálogo entremisturado de risos.
Alexei escutava-o medroso e cheio de curiosi-
dade, sombras alongavam-se em frente dos
seus olhos.

...Ambicioso como um verdadeiro «rho-


de».

Que dizes a isto, Bob? (Havia um Bob.


Bob ?T Um Alfa-Beta ? Impossível. ) . .


Dá certo com o patético da humanidade.
Um longo assobio. Uma gargalhada.
74 O AQUARIO

As emogôes negativas são refinados es-


a ver com insí-


capes da mente que nada têm
pidos meios-termos, processando-se numa zona

branca... Vê...
O mundo girava em redor de Alexei, como
uma nebulosa rubra. Era o corpo de Maga
feito poeira estonteada, o corpo de Maga uma
onda escura, sanguinolenta, sufocando-o. Es-
tendeu as mãos que ficaram vermelhas, a es-

correr sangue. Gritou:


Deixem-me ! Maga !

O amor é uma propriedade dos seres



e

que sô se manifesta na idade pré-adulta.

Em banda negativa.

Negativa. Negativa. Negativa. Nega-


tiva...
De vez em quando partia-se qualquer disco.
Alexei comegava a ouvir mal. Muitos sons
chegavam-lhe sincopados.
...Não é um «Cy». Esperava que um

«rhode» fosse menos complicado.


Tens razão, Bob. Quanto a mim, nunca vi

mais complexo emaranhado de curvas e con-


tracurvas, gritos, desejos, aversôes. Não esta-
mos a induzidos em erro?
ser pergunto-te.

Liberta-o. Nada adianta ao que já sabes.


Enganas-te, enganas-te. Este é um rati-


nho especial...
Gargalhadas. Um ZZZZZZZZ intenso, en-

surdecedor.
O AQU ARIO 75

Maga !

Mesmo Helena Coimbra, esse monstro-


zinho da incultura, é pelo amor, pelo amor
entre robots, entenda-se. . .

Porque hás-de tu continuar contra os ro-


bots «sensibilizados» de Helena Coimbra,
Bob?!
•—
Não sou isso, nem a favor afinal.
contra
Sou um composto para-meta-físico capaz de
sínteses inteligentes e isso me basta.

Oh! (Gargalhadas).

Todos os electroscôpios acusam a carga


máxima.

Não toques na «gaiola» !


A gaiola... A gaiola, a gaiola... (Novo disco
partido. Era sempre uma palavra estranha
essa
que ficava a arrastar-se como uma ara-
nha mole e pegajenta sobre os miolos de Ale-
xei) .

Malditos !

A rapariga é um cobaio mais educado;


descreve-se em volta de pontos fixos...

Contrôle. Contrôle. Bob !


Dois mil miligraus. É demais !


Um riso solto, surdo:

...O bicho recusa a solidão, o maior luxo


inventado quanto a prazeres. ~& curioso, no la-
birinto de tracejados sô um há notável, quase
fogo nota !
quebras, tragado e es.se

a

sem

é o horror da solidão. Curioso, curioso...


76 OAQUARIO

Maga? Onde está Maga?


Alexei consegue erguer um brago e tem a

sensagão de arrastar pesada massa. Leva as

mãos ao (será aquilo o seu rosto,


rosto um

corpo estranho, gelado, rugoso como a face


duma montanha ? ) .

Contrôle. Contrôle. Contrôle...


Alexei comega a perder peso, sente os mús-


culos retesarem-se tensos e ágeis, o ouvido
apreender suave zunzum. Abre os olhos e
vê-se sentado na mesma poltrona onde esti-
vera ainda há pouco (pouco ou muito?) e em
frente de si, calmo como um Buda, Albert de
Michigan que observa.
Que se aqui? perguntou apôs

passou

demorado silêncio.
Nada de especial: você tomou um praff

a que não estava habituado e... foi necessário

que Bob lhe administrasse um antipraff.


Mentira ! Eu tenho estado a servir de

ratinho de laboratôrio. Não sou parvo.


Albert suspirou fundo:
Que culpa tenho eu das histôrias que
■—

Maga lhe conta? Você deve ter sonhado, tal-


vez...

A irritagão crescia dentro de Alexei e, coisa


curiosa, não experimentava o aperreamento
normal, mal dava pelas picadas do s-l-i. Olhou
o pulso: na verdade as
agulhas oscilavam len-
tas, não se dando conta das emogão do rapaz.
O AQUARIO 77

...Sonhei que alguém lhe chamava Pás-


saro-de-Fogo não sei que outros nomes hor-
e

ríveis. Foi isso ! Ah, se você volta a magar a


minha amiga ! . . .

ameagou.
Albert riu:

E como é que você lhe chama, vamos lá?


Ma petite soeur? Elle est ma fille, vous ne

savez pas? Qu'est-ce que ga vous dit? Rien,


I suppose, —

Sapo-sarapintado? Isso chama-


-lhe também Henry, Yarath e não sei quem
mais... Porque é que você há-de «enciumar»
pela mais inocente de todas as ternuras ? . . .

Não faga essa cara, porque não estou a dizer


palavrôes. «Ciúme» é um termo menos compli-
cado que n-n-5-z-n-tipo-e-v-red, não lhe pare-
ce ? Não quer responder-me ? Ah, já sei, você

veio aqui por causa do Robot Biologico e não


para disputarmos uma amiguinha... Dizia
você que atendendo aos meus conhecimentos
do Tipo-i poderia ajudá-los... Bem, se não es-
tou em erro, isso deve chamar-se uma conspi-
ragão. . . ?

Vá para o «Inferno» !
E Alexei, levantando-se, dirigiu-se para a

porta.
•—

rAlexei, isso é um palavrão: não há In-


ferno.
:

Há, você teve-me no Inferno. Onde está


a «Gaiola» ?
-^-Não há «Gaiola».
78 0 AQUARIO

Estive dentro dela. Vou ver se encontro

Maga.
Voltem juntos.

Com Maga ? Aqui ? !



. . .

Vendo que Alexei se afastava mais no sen-

tido da porta Albert procurou retê-lo:


Escute, eu sou um Henry qualquer.


Não é tal.

Espere um instante. Vou ler-lhe uma pá-


gina que talvez se aplique ao nosso caso.

Albert voltou costas, ficando parado em


frente de um painel, representativo de pré-
-histôrico «grupo» absorvido num trabalho
campestre. O quadro desdobrava-se adentro
das cinco dimensôes, a cores sombrias, os se-
res disformes, incompletos, mal-cheirosos.
Alexei, involuntåriamente, atentou na cena e

voltou o rosto, repugnado.


São sub-homens e pertencem å Mitolo=


gia... Não deixam contudo de constituir um
espelho... Eles, tal como nos, sô tinham um
fito: o prazer. A única diferenga, uma pe-
quena diferenga bem vistas as coisas, é que eles
não sabiam matematizá-lo, medi-lo em graus
s-l-i —

explicou Albert pausadamente.


grande diferenga respondeu Ale-


Uma —

xei quase com ferocidade, impaciente.


Albert arredou o painel e voltou-se tendo
nas mãos um livro pequeno e amarelado pelo

tempo e talvez longo abandono. Era uma pre-


O AQU ARIO 79

senga estranha e descabida. Alexei fitava Al-

bert entre curioso e escarninho.


Outro Mito?...

Sim. Trata-se do Mito «0


Triângulo
Amoroso», intriga quase obrigatôria na Di-
mensão. O prôprio título, a
linguagem, são
ao gosto...
Vejamos...
Albert comega a ler:

uMulher (para a amiga intima):


Não posso mais, querida.

Amiga intima:

Glenn já não te ama ?

Mulher:

Antes isso que este horror.

Amiga intima:

Que horror?»

Albert interrompe-se para explicar a Alexei


que dava mostras de impaciência:

Você desculpe, «eles» gostam de se alon-


gar em detalhes antes de dizer o que têm
a dizer. Por isso
gastam rios de tinta e con-
versa. É um desporto generalizado. Bom_._..
8o •
OAQUARIO

uMulher:

Glenn fez uma cena dizendo que eu o atrai-


goo.

Amiga íntima:

Oh ! filha, se ele não tem confianga em si


mande-o passear.

Mulher:

Tem confianga, tem...

Amiga íntima:

Então ? ! . . .

Mulher:

Diz suspeitar que eu o atraigoo com meu

marido.

Amiga íntima:
Mas isso é um
disparate !

Mulher:

Chegou mesmo a dizer-me que se fosse com

outro, por simples passatempo desfastio, ou

tal ideia lhe seria menos insuportável...


OAQUARIO 81

Amiga intima:

O seu marido é um pessegão na verdade,


mas não vejo motivo para a atitude de Glenn.

Mulher:

Gosta de atitudes e esta fica-lhe bem.

Amiga intima:

Nem bem nem mal. Um amante nunca é


atraigoado e muito menos com um marido.

Mulher:

Disse-lhe precisamente isso, que o único


atraigoado era já se sabe...

Amiga íntima:

Já se Glenn convém-lhe é não fazer


sabe, a

ondas, coucher avec toi mesmo nas barbas do


teu marido...»

Alexei teve um movimento brusco:


Nego-me a ouvir comédias tão tolamente


idiotas.
Albert fechou o livro, baixando os olhos a
esconder a expressão astuta e irônica:

Temos as nossas comédias para uso pri-
vado, não é verdade ? . . .

Que nada têm a ver com essa.


6
82 OAQUARIO

Albert soprou distraidamente um hipotético


grão de poeira da encadernagão:
Faga de conta que eu sou o marido atrai-

goado da Mitologia.
Alexei olhou o outro, sinceramente admi-
rado e perplexo, desaparecido por completo o
estonteamento provocado pelo praff:

Como posso levar em conta tal absurdo ?


Pode
'—
voltava Albert no mesmo tom

arrastado e displicente. Você pode supor


tudo, que eu sou o marido atraigoado e que lhe


convém não fazer ondas, coucher avec Maga,
a comédia toda enfim...

Alexei ia recuando sem deixar de fitar Al-


bert, como um fenômeno estranho e desconhe-
cido. Deixara de apreender o sentido das suas
palavras para sômente lhe ouvir o, som da voz,
o riso gutural, o acento desesperado.

Bruscamente Alexei desatou a correr e de-


sapareceu.
Albert continuou a rir, a rir, em estridentes
e loucas gargalhadas. José Fernandez entrou
no gabinete e parou a olhar o amigo. Este,

vendo-o, estancou o riso, chamando em tom


seco e imperativo:
^-Bob!
Bob surgiu também.

Prepara o Anti-E -ordenou Albert.


Então?!...
— —

perguntou por fim José


Fernandez.
0 AQUARIO. S3

Então, nada. Chega de perder tempo por


hoje. Ao trabalho !

Oh!
José Fernandez parecia mais disposto a con-

versar :

Sei quem é Alexei Osborne, um pergun-


tador das dúzias, um «malfiltrado».

Alexei Osborne é o 1-s-l de Maga.

Oh!!!
José Fernandez riu:

Deste-lhe o praff-v^?... Etc Etc...


Não vejo motivo...


O motivo deve ser mitolôgico como o mé-


todo e se não há nenhum inventa-se. Le petit
ami couche avec Maga, toi aussi, gâ suffit,
non? ...


Ca suffit. Dei-lhe o praff-v^ mesmo que
não acredites.
Perante a mudez de José Fernan-
espantada
dez, Albert encolheu os ombros e saiu.
Capítulo VI

quadro-I-robot o habitual jogo de fun-


No gôes em gigantesco eixo de coordenadas,
elipses e parábolas crescendo e desdobrando-
-se «ad infinitum».
Num brusco acende-apaga o quadro ficou
limpo dequalquer trago e o Ômega voltava â
sua forma inicial. Maga respirou fundo,
exausta e lentamente dirigiu-se para a s#aída
do recinto R-D.
«...Ah, é de todo impossível representar-me
por meio de imagens o que se passa na inter-
penetragão de dois ou vários «in». Contudo
vou supor que possuo um zero-não-zero, iso-

lado como um planeta, bem meu e visível, to-


cável pelos dedos... Agora o zero-não-
meus

-zero, adimensional em si, vai ser medido em


unidades a-w. Recapitulando : eu possuo um
zero-não-zero, «adimensional», medido em
unidades a-w... e não resulta coisa alguma !

Imagino agora um observador colocado num


O AQUARIO 85

terceiro sistema e capaz de nos isolar e medir,


0 zero em unidades do sistema
mega-o-8 e a
minha pessoa em unidades dum outro sistema;
micro-00-2 . Resulta neste caso que, «teôri-
. .

camente», o zero é um universo capaz não sô


de me conter... Não, não acredito que Albert
tenha posto tal teoria a caminhar por seu pé,
não acredito. Ele limita-se a fazer malabaris-
mos que nos deitam poeira nos olhos. E Ale-

xei quase convertido ! Ambicioso como um


verdadeiro ignorante. B isso, e então ! ? No
nefando catálogo dos prazeres está em pri-
meiro lugar o da vida, logo a seguir... o da
Imaginacão Que Se Diverte A Si=Mesma
= = = = =

considerado este, ûltimamente, por alguns pe-


ritos, como «prejuízo», pois que o indivíduo
corre o risco de se deixar possuir, absorver

num vôrtice pseudo-pseudo-pseudo-qualquer-


-coisa,inibidor da acgão. Mais um perito a dar
semelhante parecer e aí temos um prazer
transformado em emogão n-n. Apesar disso, se
eu conseguir a derivagão da fungão-base... E

Henry? Vou mandar Henry de encomenda a


Albert... Assim aos poucos, Albert terá como
«ragão» a melhor equipa de cobaios...»
Misturando fungôes gráficos e
e pessoas,
teorias, numconfuso monologo Maga entrou
no «zut». No instante seguinte a rapariga era
largada num terrago desabitado, de céu baixo
e espesso, fantasmagôrico. Parou a respirar,
86 O AQUARIO

o rosto voltado para cima a receber a carícia


pesada e sedosa do ar.

Em volta havia estrambôticas árvores de fo-


lhagem rala, esguias e esfarrapadas, seme-

lhando vida que inventasse as suas prôprias


leis num cenário de duendes. E assim, por
toda a parte, árvores e plantas arbustivas onde
flores de tons violentos, quase impudicas, da-
vam a nota que faltava
contrastante, aquela
percutir para completar a nova lei da selva:
uma fantasia gorda, cínica, bem educada.
Maga, a sugerir a vida como uma torrente
impetuosa, a correr no seu fluir apaixonado e
normal, rosada e vibrante, os bragos nus, in-
sensível como uma planta boreal å gélida tem-
peratura, era o mais estranho habitante conce-
bível nesse degrau plantado entre Anchow e
Visu. Silhueta de suave colorido recortada
cqntra um céu bago, crepuscular e densíssimo,
muito quieta, recebia no corpo o abrago cor-
tante do ar e sorria.
Lentamente a expressão de encantamento e

delícia foi sendo substituída por uma máscara


de desesperado sofrimento. «...0 s-l-i quase
deixou de me incomodar e também de me pro-
teger...»
Numa reviravolta brusca quebrou o ofer-
tante estatismo até ao fundo em direc-
e correu

gão a uma porta escura, abriu-a e entrou num


salão circular suavemente aquecido e ilumi-
O AQUARIO 87

nado. Não existiam môveis, apenas um ou


outro assento aéreo, uma ou outra almofada
espalhada pelo chão, este imensa chapa ani-
mada de fugidios e elegantes arabescos, tal
como as paredes e tecto e, a toda a volta,
por-
tas, portas sem conto, portinhas doiradas ao
gosto da época, todo ele, o salão, uma riquís-
sima gaiola redonda de portas redondas doi-
radas...
«

. .
.Desapareceram todos. . .»

Maga empurrou quatro. Para


a cento e

lá dela cenário banal, uma saleta decorada


um

com a mesma profusão obsessionante de figu-

ras requintadamente belas, deliciosa e deli-

cadamente sensuais, aliciantes (não havia


sentidos «desprevenidos», capazes de serem
aliciados) iguais a centenas, milhares de ou-
,

tras, como um sistema de vasos comunican-


tes de formas bizarras, contendo o mesmo lí-

quido.
Maga atentou nas sombras coloridas que
pareciam agitar-se nas paredes como que pos-
suídas de vida prôpria ou de qualquer auto-
matismo reflexo que as aproximasse dos seres
vivos, e estendeu as mãos, tocando-as. Va-
gamente ludibriada encolheu os ombros. Tra-
tava-se de mais um jogo, não de gráficos
e números mas do jogo da pintura moderna,

Hutah-L-E como se denominava a equipa ino-


vadora. Todavia a rapariga deixou-se ficar no
88 OAQUARIO

mesmo sítio, atengão desperta. Lembrava-


a

-se da violenta reacgão da equipa Watwy,

traída no seu estilo bem definido, refinado em


todos os tons e feitios, de linguagem perfeita,
exacta, sem sobressaltos, cristalina e cristali-
zada. O pequeno núcleo desagregado do seu
corpo principal tentava ainda um salto mortal,
langado na louca aventura duma busca reno-
vadora, expressional e emocional, ao encon-

tro... quê? O resultadc que ainda era


de —

experiência fora Hutah-L-E, sombras bi-


dimensionais, tão irreais e longínquas que


Maga, de súbito, teve a sensagão dum perdido
mundo ao fim-do-mundo, nebuloso e desorde-

nado e ao encontro desse futuro ia ela, de


olhos vendados, tacteante, a alma assombrada
e vazia.

Mordeu os lábios e soltou um riso libertino,


desgarrado. Descalgou-se, despiu-se, esten-
dendo-se ao comprido sobre o T. O tecto —

Hutah ou Watwy? povoava-se das mesmas


conhecidas e extasiadas paisagens onde o


mundo se transfigurava numa espécie de tarde
quente, sufocante e amorfa, no qual nada fal-
tava: nem os homens nem os sôis cavalgados

por eles.
Rápida emissão de sinais luminosos seguida
de surdoguinchar e a rapariga cerrou os olhos,
um sorriso parado nos lábios entreabertos,

Breves instantes de «Nada» (um Nada me-


O AQU AR I 0 89

dido emunidades mega-a-w, macio como uma


nuvem, melhor !, como um sonho-não-sonhado,
talvez nem sequer macio, Nada) e nova sinali-
zagão luminoso-sonora. Lentamente, muito len-
tamente, depois dessa morte quotidiana, Maga
abriu os olhos, a regressar ao mundo envol-

vente, entregando-se-lhe em desolado retorno.


Vestir-me de quê?... interrogou-se de-


pois consultando um
mapa.
•—
Cá está: Mito-Dois.
Råpidamente vestiu-se e toucou-se de flores
meio murchas -domada e vencida a violenta

vitalidade das suas pétalas o vestido como


uma segunda
pele, fosforescente e agressivo.
Voltando costas ao espelho, Maga pegou em
pequena esfera que colocou no chão ! Tocou-lhe
e desviou-se como que medrosa de ser
tragada
nesse desenrolar duma cena sem
personagens,
de pássaros e plantas aquáticas numa paisa-
gem Andromeda-Menor. No sombrio anoite-
cer, o ar coalhava-se de aves de pesadelo sol-
tando gritos estridentes e esvoagando ao resvés
do solo, a ferir as asas por entre as plantas do
vastíssimo charco. Sobre as coisas uma atmos-
fera de susto, de emogôes informes e mons-
truosas.
Ao bater das das aves de encontro aos
asas

encolheu-se e soltou novo e


espinhos Maga
riso. Mirou o pulso, os ponteiros iner-
agudo
tes do s-l-i:
90 0 AQUARIO

« ...Não tenho medo do medo. Voilá!»


Foi caminhando em frente até tocar a bar-


reira, a Andrômeda-Menor agora um aquário
bem prôximo; uma lameira inundada e, aqui
e ali, crescendo, bravios e rígidos, tufos de

abrôteas bolbosas e verdes, moitas rasteiras de


espinheiros selvagens; e esvoagantes, contor-
nando os objectos, emaranhando-se neles, os
pássaros de gritos estridentes...
«

Não, não acredito que Albert contacte


com «eles», lhes fale e os aprisione. Não acre-
dito ! »
Maga pestanejou como quem bate em reti-
rada e fixou uma das extremidades do «cam-
po». Esbatida em irrealidade surgia agora a
figura pálida e frágil duma
rapariguinha, ves-
tido e cabelos escorridos, corpo esguio e sem
formas, olhar assombrado, sobragando pesado
molho de abrôteas.
Maga estendeu o brago e pareceu-lhe que ele
ultrapassara a barreira, que a sua mão escor-
regara por uma face gélida e inumana.
Recuou aterrorizada sem deixar de olhar a

«outra», fascinada e cativa, chegando mesmo

a sorrir-lhe:

«
Juro a mim

mesma que «tu» és uma

sombra inanimada de matéria Yoe, um mala-


barismo das dimensôes. Vou estender a mão,
passá-la pelo teu pelos
contornos quase
rosto,
inexistentes- do teu corpo, tocar as tuas pupi-
OAQUARIO 91

las doridas e apáticas, misturar-me com a mi-


ragem...»
Por instantes viu o seu prôprio brago, como
o dum
gigante, sobrepor-se, tapar o campo;
de súbito as imagens desapareceram. Maga,
com a
pequena esfera presa entre os dedos,
ficou a considerá-la, depois, cuidadosamente,
foi colocá-la sobre uma mesa:
«

S6 nos faltava isto, a Magia... Depois


de tudo, a Magia ! Depois de tudo a Magia...
Um dia destes passo pelo Instituto-Genético
e acaba-se a brincadeira, acaba-se tudo.
Que
Albert desaparega como diz> que desaparega

numa «bolsa de plenum» e nos deixe em


paz...»
Abrindo fechando portas doiradas, Maga
e

dirigiu-se para o Terrago-Branco e já a meio


parou suspensa, recortada em baixo-relevo na
bruma esbranquigada.
Raras estrelas tremeluziam gélidas na pá-
lida luminosidade dum céu bago e denso.
«...

Oh, my God, porque não segui o

caminho normal e volto por aqui se de antemão


sei que me é «doloroso» ? Decididamente é por
isso mesmo, por saber que me é doloroso...»
Estendeu os bragos e abriu as mãos de
palmas para cima. Afastou os polegares, mur-

murando:
«
Que

a chuva me inunde até aos ossos...

Que...»
1^92 OAQUARIO

Dois graus menos. Fora do raio de acgão.


Dois graus menos. Fora do raio de acgão... —

vibrou uma voz aos seus ouvidos.


A rapariga baixou os bragos e esbogou um
trejeito de amuo !
my God, esquego-me sempre de que
Oh,

tens raio limitado de acgão. Excuse me !


um

Vou descer dois, três, quatro graus. On m'at-


tend. Estendeu de novo as mãos... God, sa- —

bes ao menos que nos preparamos para te «li-


quidar» Não ouves ?
?,. . .

Éa mim que tratas por my God? ifUma


gargalhada surda) .

Não gosto de dizer


Primeiro-Tipo-isto,
Primeiro-Tipo-aquilo. My God confere-nos, . .

a mim e a ti, outra grandeza.

Vocês, os Homens, são muito divertidos.


Nunca se sabe o que se deve esperar de tais
entidades.
■ —

Somos a Imaginagão da Natureza (Nova


e vibrante gargalhada).

Não estás atrasada?


:Sim, um pouco... Gosto de andar desfa-

sada dos outros, contemplá-los de fora se

assim me
posso exprimir...

Å vontade, â vontade...

Não gosto de te ouvir rir, Primeiro-Tipo.


Ê um feio vício, concordo.


■—
Não respondeste â minha pergunta ini-
cial.
O AQUARIO 93

...Se sei que vocês desejam liquidar-me?


Como não saber se o repetem a cada instante ?
Sei.
■—
^E então?...

Nada. A imaginagão não é meu atributo.


=

Não terias pena de terminar a tua actua-


gão junto de nôs, de nos deixar enfim?...

Pena?!

Pensei que de certo modo gostasses de


nôs, te tivesses habituado...

Oh! ! !

Máquina, mesquinha !
As gargalhadas sucederam-se e durante
breve intervalo de tempo Maga escutou-as
arrepiada.

Cala-te !

Sou o
Servo-da-Lâmpada. Que mandas?

És Deus caseiro que não serve senão


um

para fazer chuva ou sol e sempre dentro de

determinado raio. Um dia, talvez não distante,


inventaremos outro... Um autêntico...

É um erro, estou farto de o dizer: quanto


mais autênticos os deuses mais falsos os ho-
mens. Eu sou um Bom-Tipo e estou â vossa

medida.
Maga suspirou fundo e olhou os pulsos.

Os Homens têm que ser f alsos e sem me-

dida.
Ũúúúúúúú...
A rapariga passou as mãos pelo rosto, e pelos
94 OAQUARIO

cabelos, coando-os por entre os dedos esparra-


mados; depois comegou a caminhar e aproxi-
mou-se duma árvore de folhas encarnigadas,

a escorrer fosca claridade e


longas, longas e
agugadas, a saírem dum tronco direito em es-
pique. Tocou-lhe: as folhas tiveram sacudido
estremegão e buscaram-se umas âs outras,
unindo-se em tufo, ao alto.
Maga correu pelo Terrago como que aluci-
nada e em busca de saída. Empurrou a
pri-
meira porta que viu å sua frente e indo direita
ao «zut» num ápice se viu reconduzida ao
resvés da vida ordinária; salão-27, platafor-
ma-27.
Capítulo VII

dividia-se em células de
Olnfinito-Infinito
paredes até ali
tinha
intransponíveis. A Hu-
manidade, essa, habitáculo numa das
células, sabia-se fechada no seu Cosmos-Mi-
niatura e de vez em quando soltava gritos de
claustrofobia e horror. Vinha em seguida a
mascarada exuberante das formas artísticas,
traduzindo gestos e vozes raivosas soltadas aos
quatro cantos do mundo e saídos simultânea-
mente dos biliôes de figuras, sombras ou sim-

ples arabescos em alucinante cortejo de cores


ou concerto de sons e pensamentos. «Aqui es-

tou». Ou «Eu sou», e fechava-se um círculo de


solidão.
Maga, parada å entrada do BKA, respirava
num ritmo acelerado, as narinas frementes,
cínico intenso prazer de existir no brilho das
e

pupilas escuras e dilatadas. «Eu sou» !


Riu meio sufocada:
Sou um Cacto-Florido, talvez o Pássaro-de-
-Fogo ou uma Golfada-de-Escuridão. E Hen-
96 OAQUARIO

ry?... Henry um corpo suspenso no espago,


e doido, doido, tão doido
que vai desfazer-se,
desaparecer. Porque. não
.
pára ele de gi-
rar?...»
A música ia ao seu encontro, esmagando-a
entre a porta de oiro biombo de seda. O seu
e o

corpo era literalmente esborrachado e esparri-


nhava cordas vibráteis, as cordas uniam-se
ligando sôis a sôis, eram percutidas por mi-
lhôes de mãos. E havia paredes, a pele do
Cosmos colorida e povoada de formas que ar-
diam num mesmo apelo violento e imperioso
de existir. Maga era a corda tensa e vibrante,
portanto a música -e Henry... —

Soltou um grito que foi misturar-se aos


sons estridentes e harmonicos da música, de-

pois, contendo-se, levou as mãos ao rosto, uma


máscara de exaltagão tal obra de arte aper-
reada nas quatro paredes da forma.
«Sôpoderei agitar-me adentro de orbitas
pré-estabelecidas, fechada num «Inferno» que
está prestes a explodir e que nunca explode.
Porque não sou eu um «Canibal» capaz de
retalhar, mastigar carne humana? Comeria o
meu proprio corpo, devorar-me-ia a mim
mesma num festivo banquete de horror.
Assim...»
Mordeu o brago com fúria e sugou, sugou
até que a exaltagão foi morrendo no seu rosto
e o olhar se fez
negligente e irônico, pequena
O AQUARIO 97

gota vermelha perdida entre o


queixo e o
lábio.
Transpôs o biombo de seda e acto contínuo
viu-se envolvida pelos mil tentáculos do mundo
real. Van Li observou ao vê-la:

Tarde como sempre.


Van Li.
Desculpa,
A continuares assim teremos de te pas-

sar â Classe Pré-Guerreira... Mas


agora noto,
não trazes sequer a indumentária prôpria...

Maga mirou-se de alto a baixo.


Não?... O Mito-Dois estava na Ordem-

-Vega ! . . .

Esses enganos, em ti, são frequentes ûl-


timamente. Diz-me: que se passa contigo?



Nada. Verdadeiramente nada.
,Van Li fitou-a nos olhos:

Nada?... Não sabes que a «Magia» é a
Primeira Imoralidade?

Podes passar-me â classe Pré-Guerreira
quando te apetecer, mas por favor não me pre-
gues sermôes.

Maga, pequena Maga, escuta-me...



Não quero escutar-te.

Então diz-me: sabes ao menos o que acon-


tece aos que penetram a sério na Magia ?
A rapariga empalideceu, os lábios enruga-
dos e trémulos, e murmurou:

Que pode acontecer-lhes de mal se não há


Mal?...

7
98 O AQUARIO

Toma, veste uma dessas armaduras.


Van Li, ela propria, ajudou Maga a ves-
tir-se de Guerreiro-Medieval. A rapariga pren-
deu as mãos da outra:
Não sabes Van Li que

a Magia é a única
forma de liberdade e que...

Sei!
Porque desististe, se sabes isso, Van Li?
:

Van Li empalideceu por sua vez e respondeu


impaciente :
Não fagas perguntas tolas. ÍÊ doloroso ser

«
jovem» tão doloroso !
,
. . .

Ouve, conheces Albert de Michigan?...


Não me fales em charlatães, não me ve-


■—

nhas com isso. Para. mim acabou-se. Um


mundo sem riscos, matemático, é o melhor
dos mundos.
Um mundo onde cada

qual não sabe in-


ventar prôpria
a sua mundo
morte não é um —

respondeu Maga, acabando de afivelar o cinto


e correndo para o grupo de cavaleiros
que se
digladiavam em violenta luta formando duas
cerradíssimas fileiras.
Maga juntava-se aos
amarelos, enfrentava
Henry.
Durante longos momentos sô essa esgrima
gigantesca, corpo-a-corpo, ofegante e ritmada.
Em guarda, Henry, vou «matar-te» !

Em guarda, Maga !

O corpo de Henry subtraiu-se ao golpe.


Maga saiu do alinhamento, ia vibrar novo
0 AQUARIO 99

golpe. Henry defendia-se a custo e dêbilmente.


A rapariga sorria triunfante, a desinteressar-se
já da luta. Traigoeira e inesperadamente
Henry vibrou-lhe tão terrível estocada no peito
que ela soltou um grito e caiu estatelada no
chão.
Todos os lutadores se detiveram. Pergunta-
va-se ;

Que aconteceu ? Porque gritou ela ?


Maga gosta de simular disse Van Li,—

aproximando-se e olhando em redor com ex-


pressão irritada:

Continuem a Tu, Henry, fazes fa-


lutar.
vor de continuar a pega; leva-a
daqui.
Henry pegou em Maga ao colo e afastou-
-se. A música elevava-se num bem orquestrado

prantear e a rapariga gemeu. A cota de malha


cobria-se de sangue.

Maga, que gosto tens tu nisso?... Van


Li está zangada, é bem capaz de te passar â
Classe Pré-Guerreira...
A voz de Henry parecia vir de muito longe
misturada com atrozes sofrimentos. Porque
não a protegeria o s-l-i ? uMy God, estou assim
tão fortemente descondicionada ? Oh, my God,

my God /»
Levou a mão ao peito. O sangue quente jor-
rava ainda e empapou-lhe os dedos. Disse a

custo, estendida sobre o T:


Rester lá par terre comme morte...


ioo O AQUARIO

Compreendo o teu desejo de interpreta-


res uma tragédia que não nos pertence... Tam-


bém eu por vezes quando me feres e ougo as
batidas do s-l-i imagino como seria se... Nada,
nada. Vamos indo?

Que tal a morte no meu rosto ?


Nada mal
— —

respondeu o rapaz sorrindo.


Depois beijou-lhe as pálpebras que fechou com
os lábios e, tacteando-lhe as faces, disse com

apaixonada entoagão:

Je t'aime.

Monsieur, Je T'Aime, je t'aime aussi.


A dor desaparecera. Maga olhou o s-l-i e
com alegre surpresa viu
que os ponteiros gira-
vam e atingiam o zénite. Levantou-se
rápida:

Amanhã falo com Van Li. Vou sair ime-
diatamente de Anchow. Queres vir ?
■■
Vou
— —

respondeu lacônico o rapaz.


De «zut» ou caminhando por ruas desertas e
inundadas por um sol quente, muito pálido,
afastavam-se de Anchow, åquela hora um
mundo branco e assombrado, muito branco e
deserto. Calados, o rosto baixo, mãos atrás das
cruzavam-se de longe em
costas, longe, cada
vez mais de raro em raro, com indivíduos que,
como eles
prôprios, iam no mesmo andar com-
passado e solitário.
Maga, mergulhada em suave e distante en-
torpecimento, disse âs tantas para o compa-
nheiro :
OAQUARIO 101

Que pena !i

Que pena o
quê?!,
Ela pareceu ouvir a pergunta e olhou
nem

o céu onde dois spaacs passavam naquele


instante, breves e incandescentes, ferindo
lume, num ápice diluídos em luz. Impacien-
tou-se :
— ■
Nunca mais chegamos !

Aonde queres chegar ?


foi a pergunta—

do rapaz, e a sua voz surgia â rapariga como


que vinda das profundezas do tempo.

Aonde?! Oh, a qualquer-sítio !


Ele agarrou-lhe a mão:

Podemos flanar ao acaso como combiná-
mos.

Maga suspirou e olhou em volta desolada:


Henry !,

Uhm!

Há a Magia, sabes bem...


Há, mas eu tenho medo.


Tinham parado e recomegaram a caminhar
por entre, construgôes gigantes, sábia e geomê-
tricamente alinhadas, solitárias como num fim
de mundo. As vozes dos dois companheiros
morriam nesse Apocalipse de silêncio, cala-
vam-se assustadas. Maga e Henry, dois pontos

minúsculos descrevendo inconcebíveis trajec-


tôrias (rectas e curvas, rectas e curvas) num
mundo curvo, dois bonecos em movimento
adentro duma luz impiedosa e, no contraste
102 O AQU ARIO

grandioso de construgôes-colosso, dois frágeis


pontos...
Creio ter-se inventado o silêncio no mo-

mento preciso em que o ruído atingia o ponto


de saturagão. B lôgico.
Talvez preferisse um mundo barulhento,

não sei bem...' -respondeu ela parada no meio


da avenida.
os ombros
Ele parou também, â frente dela,
ligeiramente encurvados como se buscasse umî

maior proximidade da rapariga:


Escuta, Maga...

Diz..*
Tu há bocado falaste nisso... Dizem que

estás metida num grupo de Magia.


E tu querias entrar também, não?... —

interrogou meio alheada.


Bom, não é bem o caso... ~& que eu, ûlti-

mamente, não tenho enviado qualquer compo-


sigão ao Somatôrio Poético e...

Recusas o Livro de Syma e preferes ir


parar a um Museu de Documentagão Huma-
na ? Que Magia a ver com isso ?
tem a

Se calhar nada, lembrei-me...
Maga fazia-se desentendida, ironizava:

Consta que em determinados comprimen-


tos de onda especialistas da Dimensão têm
localizadô civilizagôes onde a cultura se trans-
mite assim na sua pobreza individual. Estás
a ver a manta de retalhos ? ! . . .
O AQUARIO 103

O rapaz irritava-se:

Quero que os meus poemas sejam acaba-


dos perfeitos, a demonstragão de que a
e

pobreza individual pode ser riqueza. Desculpa


os palavrôes.

Oh, Henry, que banalidades ! Sabes bem


como agonizamos em obras
perfeitas, dessas
que já nada significam porque dizem tudo o
que há para dizer. Porque não escreves «po-
bres» poemas ?
Henry desatou a cantarolar, furioso por ver
a
rapariga divertir-se com as suas confidências.
Ela apertou-lhe as mãos nas suas e acrescen-

tou séria:

Desculpa, Henry... Não sei se te com-


preendo... Talvez de facto não seja agradável
ver um Malfadado
poema retalhado pelo So-
matôrio Poético, talvez...
Ele interrompeu-a com uma gargalhada de
exasperagão :

Que interessa isso no fim de contas ? ! E


ficas sabendo uma coisa, odeio poemas, os meus
e os
que atingem o Livro de Syma. Odeio tal
Fantasíada ! Tu, como futuro «rhode» da
Física Interestelar, vês-te dispensada da Arte

a
porcaria ! -., considerando que aprisionar

espagos siderais e astros â mistura é já de si


uma forma de evasão suficientemente com-

plexa. Se eu pudesse destruir o Robot Biolo-


gico ! . . .
104 0 AQUARIO

Lá vens tu também com o Robot Biolô-


gico, o paspalhão !

Estou farto: Etapa Pré-Científica, Cien-


tífica, Artística, e humano
Filosofica, o ser

como um embrião a percorrer etapas. Bolas !

Calaram-se. Prôximos e solitários, submer-


gidos em luz e no silêncio da avenida deserta,
parecia-lhes ouvirem no barulho imperceptível
dos proprios passos o bater descompassado dum
coragão febril e monstruoso. A rapariga respi-
rou fundo, sufocada, e
recomegou a caminhar
em passadas
rápidas â frente de Henry. De-
pois, como
que å toa, sem dar qualquer con-
tinuidade ou sentido â conversa, disse:

...Seja qual for o Sistema-Dimensional


em que a vida se processe... Oh,
je n'aime pas
ga. Et toi, Henry?

Mapetite Maga, qu'est-ce que signifie


uMaga» ?

«Maga» ?... «Maga», significa coisa-nenhu-


ma, é um círculo, um ponto, um zero... Zero
por sua vez é uma dimensão sem dimensão, um
xadrez, um passatempo. E, como podes veri-
ficar experimentalmente, há sempre uma certa
lôgica e coerência numa classificagão como esta,
as coisas existindo para âs
se comerem umas
outras enquanto supercoisas...
as Sabes o

que são as supercoisas ? Tens alguma å mão ?


Não tens, mas que há supercoisas há,
pois que
se
provou já que as ditas, depois de arrancadas
\
OAQUARIO 105

ao Nada pelo conhecido Processo do Amianto


Platinado, servem para fabricar brinquedos,
ossos de rena,
lápis-lazúli, nomes prôprios,
adjectivos biformes, e outros objectos de uso
diário, inúteis portanto... Depois, e porque âs
supercoisas se seguem as não-coisas...
Estou elucidado. Percebi perfeitissima-

mente o significado da palavra «Maga», posso


mesmo garantir-te que nunca ouvi definigão

mais perfeita.
Não é uma coisa engragada fazermos nôs

prôprios o dicionário?
Entraram num «zut» e de olhos fechados,
rindo, marcaram as coordenadas. Quando saí-
ram de novo para o sol olharam
surpreendidos
a extensíssima, alongando-se a perder
praga
de vista, obsidiante e deserta, cega de clari-
dade.
Maga andou uns passos e parou, as mãos em
pala sobre os olhos a delimitar 0 espago povoado
de estátuas brancas, brancas, vestidas de sol
branco, desoladoras e brancas na esplendorosa
nudez dum Parnaso Inumano.
Inexplicâvelmente amedrontados, os dois
companheiros baixaram o olhar para o chão
ladrilhado de mármores coloridos e dispostos
de modo a constituírem figuras e arabescos su-
cedendo-se uns aos outros, harmonias desenca-
deando harmonias, formas desdobrando-se em
outras formas.
io6 OAQUARIO

Sabes onde nos encontramos ? •—

pergun-
tou Maga, tomada de grande excitagão.

Não é difícil, vê
!...
Arapariga olhou para o local indicado, a
expressão de entusiasmo a morrer-lhe no
rosto. Abaixo da superfície onde assentava
os pés lá estavam
agulhas pretas jogando
as

com doiradas,
as com as de pontas de
estas
nácar, e todas, sem excepgão, percorrendo cal-
mas e sem ansiedades os seus quadrantes.
Maga verificou o seu «relôgio» e murmurou:

Extremo Sudoeste Visu. Já alguma vez

te perdeste, Henry?
'—
Nunca.

Gostarias?...

Talvez...
:— Há pessoas que têm escapado...

Através do zero relativo, não?! —

ironi-
zou o rapaz.

Quem sabe !
Recomegaram a caminhar. Maga, mergu-
lhada numa espécie de catalepsia, desorien-
tada, tinha a sensagão de pisar um mundo
inconsistente e irreal e escolhia com cuidado
os sítios onde punha os pés, evitando sempre
os rostos humanos. «Se eu tocasse
naquele par
de olhos acabava-se, o par de olhos desataria
a gritar; talvez «chorasse». Como será?!...
Ah, não, não quero pisar os olhos dos seres
da minha espécie...»
O AQU AR I O 107

'—

-Maga, corre, ougo o Mar gritou-lhe—

Henry bastante distanciado dela.


A rapariga apressou-se, sem deixar de evitar
as figuras
aprisionadas a seus pés.
Em breve distinguiam uma praia deserta
que prolongava nas suas areias o diabôlico en-
candeamento desse local quente e branco,
exaustivamente branco e quente. O mar, o
prôprio mar, cintilante infinito, feito chapa mo-
vediga e inconstante, era branco, azul-branco...
Maga fechou os olhos num esgar de sofri-
mento :

Nunca vi um Mar-Tão-Branco !
:

~Ê, da luz que armazenaste nas pupilas.


Se as minhas pupilas não expulsarem a


luz que têm dentro, se não a trocarem por
trevas, gritarei de horror.

> o s-l-i.
Regula
Ela descerrou as pálpebras a medo e olhou

estonteada a praia deserta com redondas pal-


meiras aqui e além:
'—
O branco é como uma retorta macia, um
útero fofo...
Nesse momento erguia-se em frente deles,
tal colosso geolôgico num mundo de colossos,
uma onda branca que tapou o sol. A rapariga

soltou um riso agudo e correu pela areia gri-


tando:

B o fim de tudo, de tudo, Henry, vem !


O Mar é belo e branco, o nada é branco, a
io8 OAQUARIO

Morte é branca. Acabaram-se as cores, vem,


Henry ! —

repetia ela em crescente e vibrante


exaltagão, continuando a correr para o mar e
desaparecendo nele tragada por uma onda tão
branca e gorda que o rapaz fechou por sua vez
os olhos magoados. Quando os reabriu a cabega

da companheira surgia â tona, aureolada de


sol, distante e breve como um pequeno ponto.
Gritou-lhe :

Maga, vamos embora, estou farto disto.


Como ela não respondesse, sentou-se cansado
å sombra duma palmeira e viu a rapariga afas-
tar-se mais e mais e num repente diluir-se.

Henry suspirou fundo, aborrecido da espera,


e virou as costas ao mar. Assim se manteve

por longo tempo, entre alheado e impaciente,


até que por fim se voltou de novo. «Se se
demora naquela brincadeira ponho-me a andar
sôzinho».
Maga vinha vindo ao longe e vagarosa apro-
ximava-se do rapaz. Henry teve a sensagão de
que a rapariga nunca mais chegaria, e que
ele ia ficar indefinidamente naquela espera
absurda. Quando por fim a viu muito perto
estendeu-lhe as mãos. Maga, sem o olhar,
deitou-se ao comprido na areia e murmurou :

Lá dentro é azul. Devias experimentar.


0 Azul é bom.
Henry olhou a rapariga em sonolento amuo,
depois as estátuas sobranceiras á praia, corpos
O AQU ARIO 109

masculinos e femininos, andrôginos alguns, e

disse arrastando as palavras:


Talvez isso seja devido ao facto de poder-
■—

mos desdobrar o azul em noventa e nove cores

enquanto o encarnado, por exemplo...


Por f avor ! . . .

Maga apoiou o rosto nos bragos e acrescen-

tou em inesperado tom de malícia:

O Azul é bom-em-si !
■—

. Bom-em-si é uma verdade-nobre que não


oferece qualquer espécie de dúvida.


Ambos riram. Maga disse dali a instantes:

.~& impossível apagar as cbres do mundo.


. .

Afinal nada há de tão indestrutível como as


coisas e as cores...

Henry passava-lhe as mãos pelos cabelos


molhados :
Ma petite

Maga, ma jolie...

Essa linguagem, na tua boca, causa-me

arrepios...,

]£ uma bela linguagem.


Ela sentou-se, as mãos cruzadas sobre os

joelhos levantados, direito, hirto o tronco

quase. Henry aproximou-se mais e fitou-a nas


pupilas que, vistas assim de perto, eram dois
hemisférios azulados e inquietos, pintalgados
de branco:

Sapo sarapintado
Sapo sarapintado
Curtido em ácidos,
110 0 AQUARIO

Assado no fogo
A escorrer lama
Em saco fechado
Esfolado
Esmagado
A cuspir baba
Pegonhento
Pestilentd
Todo-verde, todo-verde, todo-verde
Malhado
De sangue raiado
Sarapintado...

Não há dúvida nenhuma de que és um Cy.

E tu um Sapo-Sarapintado-com-claustro-
fobia.

Ê natural... Habito um aquário elipsoi-


dal com biliôes de anos luz por eixo
biliôes e

principal, mas
que visto-de-fora...

Naturalíssimo !|

Não gostarias mais de te saber dentro
duma retorta de incubagão, um ûtero espon-
joso e
quente ? . . .

Teria de nascer, voltar ao comego.



Um útero donde nunca se nascesse...

Pobre Maga, nada saberias sobre o Pra-
zer-de-Existir.

Nada.,

Je t'aime^ —

-respondeu a rir beijando a

rapariga nos lábios.


Oui, nous nous aimons... —

E Maga le-
O AQU AR I 0 iii

vantou-se num pulo, sacudindo a areia dos

«shorts» curtíssimos e ainda vagamente mo-


lhados. O rapaz ficou å sua frente e tomou-lhe
as mãos:

...Os teus olhos são sarapintados como a


pele dum «sapo» porque é branco o teu

corpo e não todo ås malhas


como os olhos ? Os

corpos são todos duma sô pega, aborrecidos...


Oh!...

Porque não é Verde ou Azul o teu corpo ?


Não sei. Sou um Tipo-Contrôle...


.B branco e obsessivo como o duma es-


. .

tátua ao sol. Horroroso ! explodiu de súbito


o rapaz largando-lhe as mãos.


Oh!....
Maga comegou a afastar-se, esbatendo-se
cada vez mais em luminosidade.
Henry dei-
xou-a ir até que, ao vê-la contornar uma das
estátuas, correu atrás dela chamando: Maga, —

Maga...
A solitária e desolada. A rapa-
sua voz soava

riga parou å espera. Em silêncio estendeu-lhe


as mãos quando o sentiu prôximo.

Escurecia com incrível rapidez e em sucessi-


vas golfadas de trevas.
Apressaram-se. Mesmo
assim, quando acabavam de contornar a Bús-
sola era noite cerrada e o mundo das estátuas
iluminava-se de doce e fantasmagôrico fulgor.
Lá longe, as ondas continuavam a erguer bar-
reiras entre os mundos.
Capítulo VIII

apertou-se de encontro ao corpo dela


Orapaz em desordenada angústia. Maga tentava
libertar-se do sufocante abrago:

Je t'aime, je t'aime. Laissez-moi...


Levantou-se e foi direita ao S-D, ficando
parada em frente do Campo Pentadimensional,
a figura meio esbatida e tragada na fosfores-

cência da zona de demarcagão. Desenrolava-se


aí curiosa histôria de amor, um encadeamento
de situagôes «sem enredo», um conflito sem
conflito, num cenário nebuloso e sem-coorde-
nadas, onde a simples presenga da protagonista
de carne e osso punha uma nota de subtil vio-
lência e de insolito.
Maga olhava de rosto contraído, averme-
lhado pelas radiagôes. Voltou-se de repente
para Henry, que ficara no mesmo ponto e a

fixava :

Já alguma vez ((choraste» ?


Que pergunta ! Sô choram os descondicio-


nados. E tu, Maga?
OAQUARIO 113

Não. Nunca provei senão pequenos e tal-


vez inéditos luxos... Nada mais que morder a
carne e
sugar o prôprio sangue, so!... Ou
ainda...
Diz, já agora confessa outros crimes de

lesa-humanidade ...

Ca suffit.

No Campo S-D continuava um desbobinar


de «posigôes» partir a «hipôtese». As figu-
da
ras falavam-pouco-e-mexiam-se-menos e a de-

monstragão, que chegaria â tese «0 amor como


característica propriedade dos seres pré-adul-
tos» era morosa e não dispensava os símbolos
,

matemáticos. Maga tentou novo Campo:


«Procuremos antes de mais definir o humano
focando-o nas suas «fases» mais importantes:
a) um ponteiro ia seguindo a curva, bastante

esbatida aliás, duma fungão emocional-mental-


-primária e simultâneamente sublinhando cada
trago-imagem com largos esclarecimentos : —

Notemos uma única linha importante : é o pra-


zer de existir, subterrâneo, inconsciente, lar-

var. Comparemos agora com esta outra, sub-

-humana, na fase b ) As curvas desenvol-


viam-se monstruosas e deformadas para lá da


zona neutro-negativa, aí, onde crescem o medo,
a angústia, o tédio o tédio que fez correr

rios de tinta e que ninguém sabe, hoje, ao


certo de que emogão se trata ^, a inveja, o

ôdio enfim... O tracejado mais claro traduz

8
H4 O AQUARIO

a recuperagão das mixôrdias recalcadas sob a

forma de frustragão, autodestruigão, raivosa


negagão do valor da vida individual e colec-
tiva... Observe-se agora uma outra fase que
denominaremos imprôpriamente por c) ...

O indicador percorria demoradamente um

trago luminoso num plano mais vasto e su-

perior, uma zona de intensa claridade têndo


a contorná-la uma cinta, breve equador de som-
bras. O «indicador» desceu imperceptivel-
mente até ao «6dio», deteve-se um quase nada
na «angústia» sem passar pela inveja (ine-
xistente) e de novo súbiu, subiu, contornando
voluptuoso e nítido a escaldante luminosidade
do Prazer-de-Existir...
Henry colocara-se ao lado da rapariga e
pas-
sara a acentuar as paragens e encurvamentos
com prolongado assobio. Por fim não se con-

teve:

Que lorpas !

Quem?...,

Ora ! os Tetas e os
ômegas que fabricam
essas bodegas.
o S-D e
Maga desligou passou um brago por
cima dos ombros do rapaz:

Riri sabe dezenas de histôrias mais diver-


tidas.,

Como é possível que Riri se não limite
ao seu papel de Escravo-Doméstico ?
O AQUARIO U5

Riri é velho, fez parte da Grande-Cisão.


Quanto a mim tem um parafuso a menos...

Por certo lê o Grande Syma na tua ausên-


cia...,

Oh, não, Riri é um bom-escravo, não sabe


ler. Depois, detesta as verdades eternas do
Grande Syma, o Dissecador. Acha que devía-
mos dar-nos ao luxo de dizer e ouvir coisas

péssimas.

Se Riri é assim uma espécie de bobo-da-


-corte manda-o vir aqui å nossa presenga.

Não sei ele


se
quererá...
Maga fez rodar a esfera superior do S-D.
Chamou:

Riri.
A cabega do robot desenhou-se num écran.

Podes vir aqui ?,

Agora ? . .
.,

Desculpa interromper o teu descanso. ..

Vou...
Passados momentos Riri enquadrava-se na
lente-vermelha. Maga ordenou-lhe que en-
trasse. O robot capengava:

Que desejas, Maga?


Henry nunca ouviu nenhuma historia


dessas que aprendeste na Revolugão...

Foi por isso que me chamaste? Oh,
Maga ! . . .,


Conta aquela dos Dois-Amantes, encer-

rados numa Torre.


u6 O AQUARIO

O robot qualquer pausa comegou:


sem

Era uma vez um Pai-Ultrajado que para cas-


tigar os Amantes os encerrou numa Torre, jun-
tos, e sem que nada lhes faltasse a não ser a
Liberdade de saírem da prisão. Todo o mundo
se riu de tal Castigo, inclusive os Amantes,
sobretudo Amantes que podiam agora amar-
os

-se a seu-bel-prazer. Ora acontece que e não —

se sabe se diabolicas
artes os
corpos dos

por
dois pobrezinl^os comegaram a emanar Tédio,
uma substância de cheiro
desagradável e que,
em vez de se os envolvia com
desprender, antes
seus tentáculos sufocantes e esponjosos de
Polvo-Acéfalo, sua teia...
Maga e Henry desataram a rir, em francas
gargalhadas. Riri calou-se e ficou a mirá-los
indiferente. Henry disse, por entre incontro-
láveis risadas:

Sô mesmo dum robot, isto de falar em


«tentáculos» e «teias» para exprimir emogôes
que normalmente se traduzem por uma formula
correcta. Sô mesmo dum tipo destes. Conti-
nua !
...Um dia os Dois-Amantes, desesperados,
langaram-se lá do alto, do terrago da Torre, as
mãos bem unidas... Morreram.

Como é que
podiam morrer? Julgas que
se eu e
Maga nos atirássemos da plataforma-L
aconteceria alguma coisa?...

Não ! . . . Com eles era diferente.


O A QU AR I O 117

=

Não vês que se trata duma Lenda? —■

disse Maga.
■—
..Uma Tragédia.
.

=

Não Tragédia prôpriamente dita, mas ro-

tina-da-tragédia : o melodrama —

acrescentou
Riri, e
parecia gargalhar por sua vez em sur-

dina. Perguntou:

Posso retirar-me ?
■—
Podes... respondeu

Maga.
Ficaram novamente sôs. Maga disse, depois
de longo silêncio:

Sabes o que
me faz lembrar o ((Tédio»,

visto assim por meio de comparagôes e ima-


gens não algébricas ? Uma incubadora ou um
útero morno e macio.
Decididamente andas com a mania das

incubadoras mornas e macias. Tens a certeza


de que incubadora terá de ser, por forga,
uma

morna e macia ?

Oh ! J'aimerais bien rester lâ par terre
comme morte, mastigar, envolver-me em Té-

dio, adormecer sobre ele, a pele nua, desprote-


gida, beijar e acariciar o rosto triste e sombrio
do Tédio, consolá-lo...

Tudo isso não passa de jogo de palavras
de que tu prôpria desconheces o significado.

Um jogo não precisa de significar seja o


que for; Seulement il doit être amusant, intel-
ligent et plus rien. Amo o tédio e não gosto
que se tivesse eliminado tal qualidade humana,
u8 OAQUARIO

não gosto. Era o mesmo que privarem-me dos


sentidos com o pretexto de que há maus chei-
ros, cores garridas, asperezas tácteis, etc

Sô o s-l-i conhece os maus cheiros sob a

sua forma de coisas-nativas-em-si... Prâtica-


mente não tens olfacto e outras incomodidades,
nem tacto, nem vista, nem ouvido, nem nada,
nada, nada...
Maga comegou a caminhar de cá para lá, de
lá para cá, como um bicho enjaulado:

...Não gosto disso, Henry, não gosto que


me privem dos sentidos lá porque os inocentes

dos meus sentidos podem descobrir a verda-


deira face do mundo. Deixem-me ver o rosto
dos seres, palpá-lo, sofrê-lo. Why not? :

Terminou já tom ausente, perplexo, os


num

bragos caídos longo do corpo, abandonados.


ao

Henry prendeu-lhe as mãos e sacudiu-a com


brusca ternura:
Queres dizer que sômente

a Magia ? . . .

Ela, perseguindo qualquer pensamento sub-


til, escorregadio, disse, como se falasse con-
sigo:
A Magia não responde a qualquer per-
•—

gunta. Ensina indivíduo a devorar-se a si


um

mesmo mastigando metafísicos «eus» å falta


de melhor e mais acabado alimento. Experi-
menta.
Escuta-me... Tu sabes o que temos con-

seguido de progresso. Sabes. Vontade e ins-


. . . .

,í..ji
O AQUARIO 119

tintotelecomunicam-se, telecomandam-se, dor-


mem em camas
separadas e o homem-sem-psi-
cologia sô é tal por vontade deliberada...

Por favor, Henry ! Quanto a slogans vou


na página anterior.
Queres um praff?
Serviram-se dum praff rosado que saborea-
ram em silêncio.
Maga comegava a sentir-se
invadir por agradável estonteamento. Disse
rindo e sem se aperceber do tom exasperado
da propria voz:

Je t'aime.
>—
Nota-se.
Ela olhou-o surpreendida e riu, fazendo
cômica mesura em frente dele:

Monsieur Je T'Aime, n'aimez-vous pas


que je vous dise je t'aime ? C'est la même chose
avec Alexei. «Je t'aime» irrita todo o mundo.

Why?
Distraidamente Maga tinha pegado nas
mãos do companheiro e percorria-lhe os dedos
um a um:

Eu
prôpria mago quando ougo tal
me

linguagem. Åqui está um terrificante misté-


rio. Vou vestir-me de Qualquer-Coisa. Se qui-
seres, entretanto, chama Lisa. <


Lisa?!
'—
Lisa ou Zad. Nous ferons une petite Ba-
chanal, une três petite Bachanal...
Maga transpôs a lente vermelha. Dali a ins-
Henry ouvia alegre e desgarrada can-
tantes
i2o O A Q U A R I O

gão de assobio, depois o riso expansivo da


rapariga:

Não falas com Lisa?


Não!

Êtes-vous-faché-avec-moi ?

Oui.
Seguiu-se prolongado silêncio. A rapariga
voltou por fim e enquadrada na lente-doirada

ficou a olhar a nuca de Henry, de costas para


si. Ele virou a cara de repente:

Oh ! Que. . . vestimenta é essa ? . . .

Jeune Fille au Printemps.


B estranho, nunca vi nada de seme-

lhante...
Calaram-se deixarem de se fitar mû-
sem

tuamente. A rapariga, sem sair da sua mol-


dura, pensava: «A pega não tem continuagão,
contudo vou continuá-la...» E avangou dois
passos:
■—
Vou deixar-te, Henry. On m'attend.
Henry levantou-se dum salto e agarrou-lhe
as mãos:

Nem sequer mordeste a minha carne...


...Não, não tenho sede do teu sangue...


respondeu desviando o olhar, como sonâm-


bula.
Ele sacudiu-a e largou-a:

Eu sei, criatura infernal, estás presa nas

redes da Magia. Vai e estoira !


Que a tua maldigão caia sobre mim !


O AQU ARIO 121

Gostas de perturbar a Ordem-Universal,


sô isso.

...Na verdade... Como respeitar uma Or-


dem-Universal que me faz «objecto» quando
eu estou «viva» ? Sabes o
que seja estar «vivo»
no catálogo dos «mortos» ? Tu sabes, Henry,

sabes isso tão bem como eu, pequeno morto-


-vivo, pequeno irmão... —

Tocou-lhe ao de
leve no rosto, repetindo em catalepsia: —

Tu
sabes que a Ordem-Universal nunca nos levou
em conta. Esperam-me...

Onde está o Charlatão? O Mágico? Diz-


-me
por favor onde se encontra ! gritou

Henry.
Maga baixou a cabega, a esconder o clarão
vitorioso do olhar:

Queres vender-lhe a alma? Oh, não fagas


isso !
Capítulo IX

gargalhadas de Maga repercutiam-se es-


AS tonteadas e voluptuosas por toda a vas-
tidão do aposento. Albert enterrava as mãos
pálidas nos seus cabelos:

Quando páras de rir, Maga? !


A rapariga estancou o riso aos poucos:

B difícil não rir. Estás a ver, eu, Maga,


pertencente å espécie dos indivíduos que ô
laboratorio deverá seguir humildemente, pa-
cientemente, micromilimêtricamente, eu, um
Tipo nascido dum útero esponjoso, horrendo,
resultado extralaboratorial aprovado como es-
pécimen human-contrôle . . .
B de morrer a rir.

Nem tanto assim. Senão repara: Denise


Ya-Tsé tem um útero, o qual com a supervisão
dos Teta é fecundado por mim, Albert de Mi-
chigan... Daqui resulta um ente denominado
Maga Ya-Tsé, cuja histôria se desenrola se-
gundo trâmites normais, isto é, sem histôria...
■—
Até certo ponto...
O AQU AR I 0 123

A rapariga andou dois passos e ficou em


frente dum dos painéis da parede, «A Rapa-
riga das Papoilas» perdida numa seara sem
fim (da mesma maneira que as portas doira-
das, estavam em moda as «searas» contrôle-
-vegetal), disse:

...Até ponto em que


ao a «filha» e o
«pai» —

tratemo-nos assim, se não vês incon-


veniente —

se encontram de novo, um como

ratinho o outro experimentador.


como

A propôsito, não mandes aqui mais ne-
nhum dos teus amigos. São criaturas impos-
síveis, excepto talvez Alexei...

O «adão» acha que a magã está bichada


e não quer engoli-la. Pauvre Alexei ! . . .

Maga soltou um novo e mais louco riso.


Albert, depois de lhe langar um olhar repro-
vador, debrugou-se sobre uma placa horizon-
tal riscada de ponteiros e finas agulhas. Tocou
cuidadosamente numa delas, enquanto dizia
irritado :

Não é para rir, Maga, não vejo onde está
0 cômico, já disse. Asseguras a continuidade
duma fungão descontínua...
Maga silenciou. Fitaram-se de longe, ela
a mesma expressão de alguém que acusa, ele
fina crueldade å transparência das pupilas
claras. Disse amenizando a voz:

Fizeste-me falta todos estes dias. Nunca


consegui localizar-te. Escondeste-te, porquê?
124 O AQUARIO

A iludiu a resposta:
rapariga

= ...Ficou o Pigmalião sem mármore para
talhar a face do ser humano.

Tens medo.

Mais oui, mon amour, j'ai peur et je
t'aime.
Albert poisou-lhe as mãos nos cabelos e bei-
jou-a ao de leve nos lábios.

...Monsieur Je T'aime, Capítulo V.


A rapariga fixou-o e engoliu em seco, des-
viando o olhar para o quadro em frente: «As
papoilas são vermelhas e muito belas. Da-cor-
-do-sangue-de-Albert» .

Pequeno e guloso vampiro


... mur-...

murou ele seguindo-lhe o pensamento ...Pe- —

queno e guloso vampiro... Beijou-lhe de


novo os lábios sequiosos, enrugados numa ex-

pressão de cândido amuo. —

Não quero como-

ver-me, vem...

Albert pegou-lhe na mão, conduzindo-a em


direcgão duma porta redonda e escura. Ela
gritou de súbito:

Tenho medo.
Ele parou:

Aqui está verdadeiro suicida, desses


um

que não sabem viver.


morrer nem

Jogava entre as suas as mãos brancas e iner-


tes de Maga. Esta disse a medo:

O amor não poVle ser isso...


Albert riu com suave cinismo:
O AQU AR I O 125

:—
Se calhar não é. me olhe E agora não
mais desse modo sede...
e mate a sua

Oferecia-lhe os lábios. Ela voltou o rosto:


A minha sede é infinita.


Ele prendeu-a a si e colando os lábios aos

lábios, como uma


chupar
ventosa, comegou a

em suave e experiente sucgão. Engolia lenta-


mente, o pomo-de-adão em rítmico movimento
de vaivém a furar a pele do pescogo. Depois,
largando a boca da rapariga pálida de prazer,
murmurou :

. .
.Bs muito doce e o teu rosto fica mais
belo quando assim deixas que eu esgote as

tuas veias...

Maga escapou-se e correu, indo embater de


encontro a um em forma de funil.
aparelho
Parecia assustada e em fuga como um bicho
perseguido. Duas agulhas entrelagaram des-
controladas as preestabelecidas ôrbitas, os dois
sistemas rodaram sobre si prôprios, confundi-
ram-se.

Lá fundo, multiplicado em miríades de


ao

hemisferas doiradas, o seu rosto...


Quero sair
daqui ! gemeu.

Albert abragou-a pelas costas, os seus rostos


reflectiram-se unidos.

Amo-te. E passava-lhe

as mãos pelos
cabelos :

...Os teus cabelos são cor-de-cinza, tal-


vez cor-de-avelã. Já viste uma avelã? Viste
126 OAQUARIO

com certeza. Há-as no Campo Experimental


37-t... Os teus cabelos são cor-de-cinza-ou-
-avelã e a tua nuca é fina... Para que servem

coisas que não são elipses, parábolas, nem

nem cavalos, nem raparigas-de-papoilas-nos-


-cabelos, sabes?...
As suas mãos acariciavam-na até que foram
ficando paradas e a abandonaram. Ela solugou
alto, lágrimas. Viu-o debrugar-se sobre
sem

uma chapa rabiscada, esquecer-se dela. Se-


guiu-o, mas Albert não lhe prestava mais aten-
gão. Tocou-lhe no ombro. Ele, sem a olhar,
apontou a chapa onde um gráfico se desdo-
brava em curvas e contracurvas. Disse numa

voz neutra, indiferente:


...Aqui são as coxas e o sexo, mais além


os seios em decomposigão, este o rosto
que não
quero definir nem
compreender. Mas deixe- . .

mo-nos de melodramas e continuemos com as

nossas belas abstracgôes mentais, as nossas

fôrmulas matemáticas sâbiamente elabora-


das, os gráficos que dão a medida e o
nossos

significado exacto do
prazer-de-existir. Po- . .

des ir-te embora quando quiseres acrescen- —

tou, atirando para longe a folha de «átium».


Maga, o olhar feito lume, parecia descobri-lo
naquele instante, hipotético-habitante-dum-
-sistema-dimensional-qualquer. Ia entregar-se,
deixar que ele devassasse em si, surpreso, to-
O AQUARIO 127

dos os mistérios e segredos humanos, abando-


nar-se-lhe com serena alegria.
Desviou as pupilas sarapintadas e escuras
e a momentânea
vertigem desfez-se. Lá fora,
através da janela-lente, desenhava-se rubro e
afogueado o Alfa-k-3, prestes a desaparecer,
no seu ocaso, a dar por terminada a ronda
encarnigada e ardente de mais um «vega-
-vega».
Arapariga, os bragos caídos em patética
postura, parecia querer reter com o olhar a
lenta agonia do satélite, mantê-lo inofensivo â
sua guarda.

Desapareceu !

disse aterrorizada, ao

ver o astro esconder-se definitivamente. —

De-
sapareceu, não viste, Albert ?

Estão sempre a nascer e a morrer astros.


Este é um astro repugnante.


Tanto melhor, desapareceu !
■—

Todos os astros são repugnantes. Oh, eu


queria chorar !
Riu e disse despropositadamente :
Vou recitar-te um pseudo-poema...

Maga fez uma mesura em frente de Albert


e comegou:

Um dia 0 Não-Ser amancebou-se com 0 Nada


E partejaram as Trevas
Um bicho-acéfalo
Sem patas
128 O AQUARIO

A enroscar-se raivoso em si mesmo

A morder o rabo
A comer a Mãe
Depois de ter devorado o Pai
Na meninice

Quando ainda gatinhava


E brincava de esconde-esconde
Dava pataãas no traseiro do Não-Ser
Cuspia na cara do Nada

E calcava o Cosmos-Que-Era-Engano
Atordoando o Sem-Tempo
Com gritos Sem-Voz
Para dizer

Como qualquer garoto malcriado:

Merda!

Riri ensina-lhe coisas muito divertidas,


querida. Riri é a primeira raridade do nosso
tempo. Tome...
Oferecia-lhe um copo cheio de líquido esver-
deado. Maga, sem qualquer hesitagão, esva-
ziou-o em meia dúzia de tragos.
Albert bebera também por um copo igual e
apoiava as mãos sobre os bragos duma pol-
trona. Maga tinha a sensagão de que as veias
dessas mãos inchavam sem medida e a rapa-
riga tinha um único desejo: rasgá-las, acertar
O AQUARIO 129

o seu tônus até cair tonta. Fechou os olhos.

Corria por um campo de papoilas (era elá a ra-


pariga-das-papoilas-nos-cabelos, uma aflitiva
rapariga-de-papoilas-nos-cabelos), tentava es-

oapar; alguém quer agarrá-la, desnudar-lhe 0


corpo. Corria e gritava soltando loucas garga-
lhadas. Ninguém podia detê-la. O Campo era
infinito e alastrava como uma mancha de vio-
lência até ao fundo dos tempos (as veias de Al-
bert esgotavam-se ali no reino vegetal, rubras
corolas viradas do avesso). A meio lá estava
a Gaiola de
Faraday... Maga contornou o
imenso leito: C'est ici que nous allons coucher
pour de vrai? Tentava fugir, mas as mãos de
Albert, mãos sem corpo, barravam-lhe todas as
saídas, iam-na encerrando num círculo infer-
nal. «Finalmente estou morta. Oh, my God,
a morte é tão má como tudo o resto. Je ne veux

pas, je ne veux pas...» As mãos aproxima-


vam-se quentes e vivas. As suas estendiam-se

também a medo e poisavam-se por cima delas,


auscultando-lhes o voluptuoso latejar. «Ma-
ga ! » Assustava-se com a voz e fugia através
da incrível flora até um descampado onde plan-
tas arbustivas e arbôreas de ramadas esbran-

quigadas rasgavam o ar plúmbeo. Curvava-se e


prendia nos dedos uma assombrosa flor rosada
de pétalas hipersensíveis, que ao simples con-
tacto dos seus dedos s'e ensimesmou zangada, a
recuar até ås profundezas da sua solidão ve-

9
130 OAQUARIO

getal. A rapariga continha a respiragão, sus-


pensa do movimento reptilíneo da flor, da sua
recusa ao ser de sangue-quente. Largando a

flor, passou as mãos pelos cabelos num gesto


de perplexidade. «Por onde seguirá esta mor-


te ? Não tem seguimento, vê-se. .» Encolheu-se
.

de encontro a uma árvore, retraindo-se como


uma enovelada. Estonteantes, asfi-
pétala,
xiantes garras, estendiam-se para si, tentando
tocá-la, envolvê-la. Ela retraía-se mais e mais,
escondendo-se atrás dum girassol de estridente
colorido. Grosso e ávido, o rosto virado-para-
-o-solo, parado e inquietante como um fantas-
ma-que-não-é-bem-fantasma, o girassol assus-
tava-se também ao contacto da rapariga. «B
um cheio de medo. Nunca sugou
pobre girassol
o sangue de Albert». Por fim a
rapariga e o
girassol sorriam-se dos sustos que estavam
pregando um ao outro. «Um simples bebedor
de luz», concluía ela, e agradecida voltava-lhe
o rosto para si e
beijava-o. Beijou-o até sentir
os lábios doridos e inertes,
beijou-o para ver
se ele se entregava. Nem assim: o
girassol não
desvendava um único dos seus mistérios. 0
girassol sabia de tudo e estava-se nas tintas
a fingir-doutra-coisa, ou melhor, de Coisa-Ne-
nhuma. Chegou mesmo a virar a cara inteira
para a
rapariga, fitando-a de frente e rindo
com todo o descaramento.
Exasperada, ela cha-
mou-lhe «estupor», ele encolheu os ombros e

á
O AQU ARIO 131

chamou-lhe também um nome. Era de morrer


de raiva. Maga acabou por ficar indiferente âs
patifarias do companheiro, concluindo (com
acerto) que a si tanto se lhe dava e que por
conseguinte não levantaria mais questôes por
um diz-que-direi tão
insignificante como aque-
le... (O girassol chamara-lhe «viúva» e ela
afinal sô sabia que era um termo improprio,
mas
ignorava-lhe o significado indecente e
assim ficava na mesma).
Estendeu-se ao comprido no chão e sentiu a
humidade inundar-lhe as têmporas, bichos pe-
gajentos subirem pelo seu rosto, morderem-lhe
a carne
(afinal a morte era uma coisa Suja,
fazia parte da mesma revolta e imundície deno-
minada Existir). Desesperada agarrou-se âs
pétalas do girassol, sô lhe restava aquele ini-
migo-amigo, era a única coisa viva do Esjjago.
O girassol deu-lhe uma bofetada, vergastan-
do-a com as pétalas. Alguém disse «Não se
zangue com a flor, Maga» e a levantou no
ar estendendo-a depois sobre uma cama, a
mesma que se perdera Campo-de-Papoilas.
no

Era um rosto familiar aquele, mas não saberia


dizer de quem poderia ser. Talvez de Albert
ou Alexei, talvez mesmo de Henry, quem sabe
se de Yarath... Metade luz, metade escuridão,
o rostoapagou-se, esborratou-se em trevas,
sem que Maga tivesse podido tocar-lhe ou se-

quer reconhecê lo.


-

Quis levantar-se e cor-


132 OAQUARIO

rer e não conseguiu. Não podia com o cor-

po. O rosto inundava-se-lhe de «lágrimas».


«...Sou um cacto, um girassol, parede-de-cris-
tal, porta-doirada, onda-do-mar, spaac, bicho,
bicho, Yarath um vega-absoluto, uma recta,
um ponto, e «armadilha». Uma
estou presa na

bonita gaiola tecida com fios de qualquer-coisa.


Com sujos fios de qualquer-coisa. Ah, mas há
música, ao menos há música ! Ela irrompe do
centro das hemisferas, sai pelo «funil», de

jacto, a esguichar como qualquer garoto que

fizesse chichi da janela para a noite, e depois


visse as trevas arredarem-se, dissolverem-se...
Valia pena ver repovoar-se o cosmos, vê-lo
a

surgir da sua nebulosa encarnada ao som da


música majestática e titânica. Podia ter-lhe
acontecido pior que ver nascer o mundo, ver

um garoto maltrapilho, inventá-lo fazendo chi-


chi para a escuridão. Dava certo. A música
das hemisferas a chatear as pessoas, a inundar
o mundo å altura e å largura, para os lados e

déslados, para baixo e para cima (é mais que


sabido que o mundo foi engendrado ao som da
música das Hemisferas e que sem mûsica
nunca teria sido engendrado, nascido coisa aca-

bada, o que B. Que sem música era um mundo


lixado e mesmo assim Mande Deus Bom
Tempo) e o garoto-malcriado dando definigôes
do Mesmo, dizendo Pequenos Gracejos:
O mundo é uma coisa que -não-podia-deixar-
- - - -
O AQUARIO 133

-de-ser-mesmo-que-quisesse. Existe no anties-


pago entre duas fronteiras paralelas a uma ter-
ceira e entre si.Denominam-se por ordem não-
-alfabética: Estupidez, Safadez e Morte Por
Estrangulamento. B uma substância negra
com sabor a pasta-de-papel e cheiro a sulfídrico

(que é um mau cheiro). Da sua antítese, 0


Nada, e depois de convenientemente purifi-
cado, se fabricam os objectos mais úteis e até
os inúteis (de modo
que de coisa-em-si-prôpria-
mente-dita não se fabrica coisa nenhuma), in-
cluindo música para concerto-e-orquestra... A
música parou, parou, parou e não se sabe o
que acontecerá a seguir...
Albert aproximou um copo dos lábios secos
da rapariga. Ela bebeu ávida, os olhos abertos
de espanto :

Onde estou ? Estendeu as mãos tactean-


tes como as dum cego e tocou com os dedos no


rosto do companheiro: Albert?...

Não volte mais aqui, Maga. Acabe de be-


ber isso e ponha-se a andar, vá.

Sem saber?...

Nada há a saber.
Num gesto impetuoso a rapariga arredou o
copo e passou os bragos â volta do pescogo de
Albert. Este, por instantes, reteve a respira-
gão, tenso, subtraindo-se ao contacto, depois
em descontrolada emotividade entregou-se,
abragando-a também, as mãos pesadas afas-
134 O AQUARIO

tando o tecido fino do vestido dela, devassan-


do-lhe o corpo, violentando-o.
O copo foi deslizando, deslizando, a desenhar
colorida trajectoria de aga-aga, até cair no
chão num baque surdo e fofo. Um s-l-i marcava
vinte graus (donde se prova que as mesmas
monstruosidades podem descrever curvas de
vibrátil e confusa harmonia).
Capítulo X

átrio das colunas cor-de-rosa estavam


No reunidas algumas dezenas de indivíduos
como uma forga desencadeada pôlo-a-polo,
que,
em circuito fechado, movimentos e vozes desor-

denadas, iam e voltavam ao ponto-origem, es-


fuziavam em coro. Alexei empoleirou-se sobre
o
corpo negro de azeviche duma das estátuas

um gigante feminino semideitado, muito
nítido na sua nudez gloriosa —

,
uma das mãos

apoiada sobre o busto da mulher. Gesticulava


e arengava por entre gargalhadas e excla-
as

magôes dos companheiros :


:
Estamos aqui para revolucionar o mundo

e o mundo sô pode ser revolucionado: i) se

destruirmos os Ômegas e o Robot Biolôgico, os


escravos e o senhor; 2) se ganharmos o pão

com o suor do nosso rosto; 3) se...


Alexei ia embalado. Foi interrompido por
uma gritaria:

O «pão» ? !

Que coisa é essa, «pão» ? !


136 OAQUARIO

Palavreado subversivo ! (Risos).


Magia !
Alexei. comegou a irritar-se com tais apartes
(cínicos apartes, note-se).
-...«Pão» é uma imagem,
■—
uma metáfora.

B uma metáfora? Mas é uma imagem


chata.

Parva.
—-

Arte-pela-Arte.

Talvez úm palavrão-sem-dono.

Sem tino.

Ou uma miragem.

Calem-se ! berrou Alexei.


— —

Calem-se
e escutem-me. Estamos perante um sério di-
lema !

Número ! ? —

interrogou alguém inter-


rompendo-o.

rNão tem número. Nem representagão
gráfica.

Não é dilema. B um poema !

Julgas-nos na Proto-Histôria.

(Merde).

-(Merde alors).
<—
( Vai pentear macacos) .

Destruirei tudo
■—
o
que se opuser å minha
«liberdade».
Um dos rapazes aproximou-se da estátua
onde se encontrava Alexei e disse:


Oponho-me å tua liberdade. Mas tenta,
tenta «assassinar-me», desafio-te.
OAQUARIO 137


Alexei cerrou os punhos:

Aprenderei assassinar. Tudo !


a

Um outro saltou para o corpo da estátua fi-


cando lado a lado com Alexei, um pé sobre o
pescogo da mulher, o outro sobre os olhos:

Meus amigos ! Também tenho uma Revo-
lugão no bolso. Ei-la: proponho que se destrua,
visto que alguma coisa temos que destruir, 1)
0 centro-de-gravidade; 2) a vítima, a luz e 0

verbo haver; 3) o aba-ka-lá-ka-lá...


Alexei sentara-se e apertava os lábios irri-
tado, procurando Maga com o olhar. Viu-a
lá ao longe sobre o arrelvado de miosotis, di-
luindo-se cada vez mais em claridade, por fim
reduzida a um breve ponto. Tomou balango e
saltou para o chão, gritando:
Ainda estou para saber se soníos ou não

Vegetais.
Pergunte-se

å Esfinge!
Deixo-vo-la de

presente

respondeu
correndo, a descer os degraus quatro a quatro.
Quase a atingir a rapariga, chamou:
Maga !

Maga, como se não o ouvisse, continuou a


caminhar até â plataforma t-7 e aí parou junto
do seu spaac cor-de-favo-de-abelha e, a mão so-

bre o metal do aparelho, ficou a afagá-lo numa

carícia demorada e ausente. Alexei, vindo por


detrás dela, colocou a mão sobre a sua, aprisio-
nando-a a deter-lhe o movimento. A rapa-
(

138 O A Q U A R I O

riga voltou-se e sorriu —


osolhos azuis-escuros
sarapintados inundados de luz. Disse numa

meiguice distraída:

Tens a mão fresca e bonita. Oh, muito
bonita !

Gene 3004-xb —

respondeu, as faces a to-


carem-se.


...Muito parvo, muito «assassino»... —

ia dizendo Maga como que esquecida das prô-


prias palavras, o olhar radioso perdido nas
sombras foscas e húmidas do jardim em frente.

Vens comigo?
■—
Aonde ?

Depois te digo.,
Ela notou-lhe o pomo-de-adão em rápido e

seco sobe-e-desce : «Não posso comover-me por


tão pouco».

Vou contigo.
Instalaram-se ambos
no spaac e Maga pro-

cedeu âs ligagôes da partida. Vendo-a marcar


uma velocidade cúbica, Alexei ironizou:

desaparecermos no Todo terá


Se sido um

crime-passional-perfeito.
O Robot Biolôgico vela por ti
— —

respon-
deu no mesmo tom.
Em breve o spaac se elevava no ar e num

ápice desaparecia com dois ocupantes,


seus

trago-relâmpago rasando astros, estrelas, todo


um mundo familiar e pouco surpreendente.
O AQU AR 10 i39

Maga ! —

chamou Alexei passado um bom


intervalo de tempo.

Diz...,

Ainda f alta muito para chegarmos ?


'
. . .

Aonde ?.. . .

A voz dele veio eivada de impaciência:



Tu é que tinhas um lugar-qualquer, não
eu.

Gosto de «ficar» aqui, girar no
espago
como estivesse parada.
se

A mim irritam-me as longas viagens, já


sabes. Irrita-me sobremaneira a escuridão, es-


tar a teu lado e não te ver.

Sôisso?! Oh!

Parece-te que falta muito?... —


insistiu
a voz dele exasperada.

Estamos a
chegar —

respondeu Maga
em surdina e acrescentando em seguida: —-

Sei que tens as fontes a latejar, suores frios


pelocorpo, que te imaginas aperreado dentro
dum círculo infernal...

Deixa-me em paz.

A Magia tem as suas verdades-nobres e a


terceira é...

Pára com isso !
A mão dela fez-se trago fosforescente de ma-
téria. Apoiava-se sobre os comandos. Os dois
companheiros adensavam-se como sombras.

O «Quadrado»... Normal, normal... —

ia repetindo Maga.
140 0 AQU ARIO

Mergulharam de chapa na luz. A velocidade


corria embravecida a caminho da casa do zero,
oscilava em ponto-optimo. O spaac
volta do
agora rasava um globo muito prôximo, sobre-
voando extensas florestas de Campos-de-En-
saio, firmava-se depois a poucos palmos do solo
em imobilidade.
tensa

Maga Alexei olhavam em derredor, silen-


e

ciosos e absorvidos. A natureza exibia-se na


mais requintada delicadeza e boas maneiras,
baloigando corolas ao vento, dando-se-lhe; en-
tregando-se å luz numa oferta sem retorno,
cálida e generosa.
Maga saltou do spaac e riu um riso sufocado.
Assemelhava-se ela prôpria estranha a uma

corola solta, respirando a longos haustos, a


absorver luz, fundindo-se nela na mesma en-
trega biolôgica e irracional.

Alexei gritou

sai daí ! Vem ver a

Sonsa, como ela se autofecunda, odienta e sá-


dica ! Oh, My God !

Em que mapa descobriste tu este Mar-da-

-Intranquilidade ?
Ela voltou-se, olhar incendiado dessa fée-
o

rie de vida subterrânea e ardente do reino-ve-


getal e riu sem outra resposta, tentando agar-
rar uma borboleta que embatera contra o seu
ombro e
que fazia atordoados ziguezagues. De-
teve-se ao sentir a respiragão do rapaz na sua
O A QU AR I O 141

nuca e disse, espagando as


palavras como se

lhe custasse pronunciá-las :


B um belo Mardalntranquilidade,
um Pântano, talvez...

Não fagas confusôes.

...O Pântano secou, recobriu-se doutra


pele, mas existiu ! Cresciam ali abrôteas...

Que disparate !
Como se o não ouvisse ela continuou:

Vinha uma rapariguinha, pálida e insig-


nificante colhê-las, enfeixava-as em pequenos
molhos... Pobre subespécie ! O Reino=Vege=
tal devorou-a, c'est joli, n'est-ce pas?
Maga arrancava corolas, esventrava-as, ati-
rando-as em seguida para longe. Ria. Alexei
passou-lhe â frente. Ela correu até o apa-
nhar.

A rapariga-das-abrôteas-sou-eu. Fui-de-
vorada-e- voltei-para-castigar-os-culpados Não- .

-há-culpados. La pauvre petite tem um ar


triste de falso existente, acusa-nos. Não, nem
coragem para isso, le pauvre enfant ! Alexei,
não gostarias de ser um vingador-do-rei, quero
dizer, dos-fracos-e-donzelas ?

Que lengalenga, Maga !


Chegaram å margem dum rio e Maga des-
piu-se com vertiginosa rapidez, entrando na
água em seguida. Ele, como que ao retardador,
imitou-lhe os movimentos nadando até junto
dela em largas e vigorosas bragadas. Perto
142 O AQU ARIO

havia uma fina língua de areia e Maga diri-


giu-se para lá: -

Alexei, descobri uma ilha. Vou baptizá-la


com o meu nome.

Serena e luminosa, a escorrer gotas de água,


calcou ilha que passava a ter o seu nome:
a

«Maga». Depois, batendo o queixo e aper- '

tando os bragos em volta do busto, gritou:


Tenho frio e vou-me embora. Deixo-te a

ilha de presente.
Correu a vestir-se. Quando Alexei chegou
junto dela, o rosto vermelho, Maga perguntou:
Nunca tiveste frio?

Nunca.

Mentiroso.

Não tive, garanto !:


Nesse caso nunca saíste da tua prisão de


:

invulnerabilidade disse ela batendo o queixo


ostensi vamente .

Alexei, enquanto se vestia, fixava-a entre


incrédulo e curioso :
B imoral...

Ela riu:
B, sim, meu «assassino» de inofensivos

Ômegas. B imoral arrepiar-me de frio, provar


o sol, todo o mundo sabe isso. Fechava os —

olhos e expunha-se melhor å carícia do sol,


sorrindo, entre voluptuosa e irônica : B —■

um manjar-dos-deuses
que deves provar um

dia...
0 AQUARIO 143

Alexei parecia desconcertado e repetiu um

pouco infantilmente :

B imoral, Maga...

Mais oui, mon amour, usi le corps est la


seule réalité mentale, tu dois garder le corps»

primeira verdade-nobre, isto é, primeiro


slogan.
Um pássaro voou nesse momento por cima
das cabegas dos dois companheiros, interrom-
pendo-lhes o diálogo com seu grasnar estri-
dente, a tocá-los com as asas possantes. A ave
parecia querer arremeter contra eles, «feri-
-los», o que os deixou atonitos.
Maga silenciara, coando areia pelos dedos,
no rosto expressão raivosa de desafio.
uma

O pássaro, entretanto, afastava-se numa subida


rápida.

E mudássemos de poiso?
se perguntou

Alexei passado um bocado.



Tens medo do pássaro? Ah, eu gostava
que ele voltasse, havia de estrangulá-lo.
Inesperadamente a rapariga levantou-se, e

acto contínuo comegou a correr, distancian-


do-se cada vez mais do rapaz, que ficara pa-
rado a vê-la afastar-se, os dois, pontos-vivos-
-extremidades dum segmento de recta que
cresce indefinidamente. De súbito, o ponto
môvel fixou-se num términus, enquanto o ou-
tro iniciava a sua marcha, comendo distância,
devorando o corpo do segmento até que os
144 0 AQUARIO

pontos extremidades
-

coincidiram, um em

frente do outro, a respiragão opressa e arque-


jante, inundados de luz, a escorrer luz directa
do sol e luz reflectida pelas águas do rio fais- —

cantes como focos em chamas.

Maga fugiu de novo, escapando-se em irre-


gular trajectôria num jogo de esconde-esconde,
movimento pelo movimento. Alexei perseguia-a
no
desejo único e incontrolável de a apanhar,
perdida toda a nogão do para-quê dessa corrida.
Conseguiu-o por fim e ao tentar agarrar a ra-
pariga, submetê-la, rolaram ambos pela relva
a rir,
ofegantes. Olharam-se e sorriram, pos-
suídos ambos do mesmo desânimo, esgotado
todo de vitalidade e euforia. Alexei
o excesso

beijou lábios da rapariga emurchecidos num


os

amuo, sugando-os ao de leve. Estavam proxi-


mos duma moita e caules das mais variadas

espécies entremisturavam-se em asfixiantes e


enredados abragos, flores e frutos em pedún-
culos tão prôximos que se confundiam. Maga
aspirou o perfume rosado dum fruto, cálido e
entorpecente como a manhã, perdido e desaus-
tinado como ela, como Alexei, como as borbole-
tas de mil cores, como Riri, tão
perdido como
um Robot infinito
Biologico no dum eterno-
-retorno.
Mordeu o fruto, que depois ofereceu a

Alexei :

Come, não é uma «magã».


O AQU AR 10 i45

Não estamos o
que chama nus-e-ino-
se

centes para temê-la —

respondeu ele, cravando


os dentes na
polpa sumarenta e
encarnigada
do fruto.
Maga, silenciosa, colhia frutos, que depois

não sabendo onde guardar tais tesouros —

deitava fora, para longe. Juntou uns poucos


e empurrou-os com o viu-os rolarem, ver-
pé:
melhos e redondos, por sobre a erva rasteira,

um deles seguir desgarrado e embater de en-


contro a um caule de bamboeiro, parar hesi-

tante saber que caminho seguir e aninhar-


sem

-sepor fim num tufo de folhagem, desistir da

competigão com os outros, feliz. Maga fez


uma careta, enjoada desse fatalismo gordo e
rubro deu-lhe novo pontapé. O fruto seguiu
aos tombos. A rapariga procurava não sabia

o
quê, desinteressada já desse jogo. As has-
tes de bambu elevavam-se acima das de-

mais, crescendo direitas e esguias, soltando


graciosos e divertidos nôzinhos, lá em cima as
folhas achatadas e largas, dedos de sombra
estendidos e nervosos. Olhou o rapaz sen-
tado não longe de si, espreitando atento uma
pequena corola através do micro-d-1-11. Obser-
vou:

Acho estúpido o Reino-Vegetal.

Está calada. Vem ver isto !


Maga respondeu numa careta:

Detesto «criptonios» .

10
146 OAQUARIO


Mesmo assim, vê !
Pegando-lhe por um brago obrigava a rapa-
riga a espreitar pelo micro. Esta olhou e a
contragosto deixqu-se absorver fascinada pelo
crescimento vibrátil e desmesurado das péta-
las encerradas em seus prôprios e inconcebí-
veis sistemas dimensionais.
•—

B monstruoso observar um ser vivo,


comovente observá-lo... Pousser, pousser,
pousser. . .

Os dedos de Alexei agitaram-se lá ao fundo,


muito no fundo... Por cima um tumulto de
sombras, gigantes em luta. Maga fechou os
olhos. Insistiu, numa careta de sofrimento:

'Não percebo como não achas chocante


olhar assim a intimidade dos seres... Não per-
cebo !
Ele guardou o micro e manteve
por momen-
tos corola amparada pelos dedos, depois es-
a

magou-a e deitou fora os pedagos moles e pe-


gajentos. Disse, como quem não admite ré-
plicas :

Somos «deuses».

Deusoides.

Muito deuses !

Les nouveaux-riches .

O quê?!
Ela demorou a responder, fazendo girar
presa pelo pedúnculo uma corola vermelha:

São palavras. Sô.


O AQUARIO 147

Ah, bom, pensei que tereferisses ao fac-


to... Sou um deus, tenho a minha Tragédia !

Oh ! E desde quando usufruis de tal con-
forto?
Maga deitou-se para trás. Alexei fez o mes-
mo. A sombra dos bambus fazia e desfazia
rendilhados sobre os seus corpos e faces, des-
dobrava-se em fantasias, encenava o desenro-
lar de histôria-nenhuma. A rapariga aproxi-
mou-se dele buscando-lhe os lábios e,
depois
de lhe ter mordido a carne, comegou a beber, a
beber, sem parar de beber até qúe a cabega
lhe descaiu lânguida e entontecida.
Alexei tocou-lhe a face semidesmaiada, afa-
gava-a. Ela murmurou:

Muito doce; muito, muito doce...


Pequena larva
empanturrada. Pequeno
bem... A linguagem é difícil e ridícula... Não
deveria haver linguagem.

Oui. Je t'aime.
Lentamente o abrago dele foi abrandando.
Disse, de súbito, em tom irritado:

Qualquer gráfico ou fôrmula é menos ri-


dículo que isso.

(Merde, mon amour, c'est un joli dialec-


te). Para que finges não gramar uma língua
morta? Julgas que eu não sei que andas me-
tido na Magia?
A rapariga levantava-se, bravia como um
animal selvagem que acabasse de despertar

1
148 OAQUARIO

de prolongado sono, e acrescentou: —

Estou
farta !
Aposto que ainda não viste «aquilo»

disse o rapaz como única resposta, apontando


para longe. Maga voltou-se rápida:

Aquilo» ? ! Mas é uma manada de cavalos !


«

,0s bichos aproximavam-se batendo os


cascos.Eram todos pretos.
Se calhar soltaram-se do

Campo-Experi-
mental-12-0 !

Vou buscar um deles ! —

respondeu a ra-
pariga e, sem esperar por qualquer comentá-
rio, afastou-se correndo.
Alexei, por momentos, teve a sensagão de
que a via ser tragada pela fornalha do sol, que
ardia com ele, ultrapassando-o a seguir e sur-
gindo límpida e incôlume do outro lado, muito
prôxima agora da manada, frágil e comovente
silhueta humana a sair vitoriosa desse recon-

tro com o fogo.


Alexei fechou os olhos num esgar de an-

gústia. Parecia-lhe ter sido definitivamente


vencido, definitivamente aniquilado. Quando
os reabriu, Maga agarrava-se ao pescogo dum

dos cavalos, desgarrado dos demais, e saltava-


-lhe para cima dum pulo. Depois, como num
pesadelo de Magia, viu-a vir para ele numa
corrida louca e suster de repelão a montada,
que, acto contínuo, comegou a andar â roda, å
roda do rapaz, em voltas cada vez mais aper-
O AQUARIO 149

tadas, cada mais prôximas, até parar, es-


vez

puma e baba
escorrer-lhe do focinho, nari-
a

nas abertas dorido


e humilde a um
palmo

do seu corpo. Em apática e lassa morosidade


olhou a rapariga que o fitava lá de cima (de
muito longe, de muito longe), bravia e sádica,
um baixo-relevo em movimento contido, sus-

penso. Por cima e em redor dela os insectos


descreviam doiradas e antigeométricas ôrbitas,
eram incentros de sombra a retalhar o espago.

Infinita modorra tomava o rapaz, cuspia-o do


incrível momento !
«
Maga, não me interessa, não me inte-

ressa mesmo nada; Zadi é verde, toda-verde,


muito verde...»
O cavalo negro-de-azeviche corria de novo
å volta de Alexei, afastava-se, voltava sempre
adentro dum círculo inultrapassável. Maga
era o génio, o demonio alado, e soltava gritos

e mordia a luz e ria, ria numa alegria desen-

freada, enraivecida.

Alexei, vê, vou apagar o sol !


Desaparecia, era tragada, voltava, detinha-
-se:

...Et rester lâ par terre comme morte...


Maga deixou-se escorregar lentamente do
cavalo e ficou de bragos cruzados em frente de
Alexei, olhando-o sem desfitar:

...Este horrível Mar=da=Intranquilida-


de! Vamos?
15° O AQU ARIO

Gira e não me maces mais !



Pauvre Alexei. Êtes-vous fâché avec

moi? Toi aussif... Bien...


Maga entrou no spaac e marcou as coorde-
nadas. Perguntou ainda, antes de largar:

Não queres ao menos


que te deixe numa

Estagão-de-Zut ?

Gira, já te
:
disse !

O spaac rodou por sobre a cabega de Ale-


xei. Maga debrugou-se uma única vez para
dizer :
■—
Não te esquegas de que hoje, ao anoitecer,
Albert de Michigan nos espera, desta vez jun-
tos.
E desapareceu.
Capítulo XI

sôs com Bob, inte-


encontrava-se a

ALBERT
ligentíssimo servo construído especial-
mente para investigadores Youri.

Que dizes a isto, Bob?


Albert estendia ao robot uma folha de
«átium».

Está certo.

B agora? !...

Estou pronto.

Não trata disso ! Ainda não é desta


se

vez
que enviar-te
vou ao «Passado» a dar- —

mos fé ao que nos ensinam, este deve ter sido

bem colorido e tumultuoso em contraste com


o futuro, essa página-em-branco...
Bob teve um gesto de indiferenga :

Não me interesso pelos objectos ou hipô-


teses que tenham povoado ou venham a
povoar
o
Tempo.

Pensei que o espectáculo te divertisse
pelo menos...
152 O AQUARIO

Não...

Estás morto, Bob.


Riram ambos. Albert acrescentou dali a ins-
tantes :

...Para te ser franco, agradego-te. . .

O quê?...

Isso mesmo, que me deixes as incôgnitas.


Que jogo aborrecido sem elas, não te
parece?

Talvez...
Albert levantou-se e comegou a caminhar
de cá para lá por entre a aparelhagem do labo-
ratôrio :

Esta, por exemplo, de descortinar alter-


nativas na continuidade passado-futuro. Ou- . .

ve !
Porque é que aquele não há-de dar um

salto brusco e surgir presente num ponto ines-


perado ?. Foi o que aconteceu quando, uma
. .

vez, a Imaginagão-da-Natureza ficou cansada.


Estás a ver, não ? ! Sô assim pudemos ter che-
gado ao Robot Biolôgico, a mais acabada prova
de falta-de-imaginagão.
Albert aproximou-se duma esfera branca e
carregou no manípulo que a encimava:

Deixemo-nos de lérias.
A sua frente e como que saída duma nebu-
losa foi-se evidenciando gigantesca
ampola de
paredes trémulas e inconsistentes, brilhante
como bola de sabão, a
surgir cada vez mais
nítida, mais nítida e
prôxima como um uni-
verso captado numa objectiva —

um cosmos-
OAQUARIO 153

-miniatura. Albert, sem surpresa, via o estra-


nho mundo crescer sobvista, estacionar
a sua

límpido e azulado, permanecer fechado e total


como um ovo. Dentro da ampola havia um

homem-subespécie, o que era demonstrado


å evidência pelos tragos pouco formosos e ave-
lhentados do rosto. O espécimen cogou-se dis-
fargadamente e olhou em derredor, descon-
fiado e receoso de ser observado. Estava ves-
tido dos pés å cabega e tinha ao pescogo a
característica gravata pequeno-burguesa, en-
tre o triste e o berrante mau-gosto. Agitava-

-se, torcia as mãos e tossia. Ficou parado a


olhar, piscando para o limite-energético que o

envolvia e lhe servia de barreira-protecgão.


Albert ordenou a Bob:

Sistema-Contacto. Contacto.
O homem deu mostras de suprema agitagão,
mexendo-se em descontrolados movimentos de
afogado, a fitar como cego o espago em frente.
Depois, tacteante, parecia querer aproximar-se
das paredes da ampola, tocar-lhes... Por fim
aquietou-se lá no fundo, fitando o observador;
frente a frente, ratinho e super-rato... E a sur-

presa aos poucos diluiu-se em indiferenga e

momentâneo conforto.

Contacto ordenou de novo Albert, e em


seguida colocou os auscultadores. Fez a pri-


meira pergunta-padrão :

Diga-nos, sabe onde se encontra?


i54 OAQUARIO

O homem fitou as sombras em frente e res-

pondeu um pouco bobo, como quem não perce-


beu:

Se eu contasse a minha mulher um so-

nho destes tão estrambôtico aposto que não


acreditaria. Ela é assim, como S. Tomé...
O homenzinho respirou fundo. Demons-
trava umâ satisfagão de rapazola em férias, ao

ar livre. Murmurou:
Muito catita isto !

Estendeu as pernas,

B o maldito reumático. Ou então é


gemeu:
porque um tipo, depois de tantos anos sentado
naquele escritôrio estréito, já nem sabe esticar
as pernas.
Ao notaras biqueiras cambadas dos sapatos

encolheu-se rápido escondendo os pés:


Ora esta ! Porque não comprei eu uns

sapatos, mesmo de saldo?


B um bicho estranho, Bob

murmurou —

Albert. ...Duvido que nos traga qualquer


dado útil sobre o Sistema que habita... Du- —

vido, vejamos...
O homenzinho coscuvilhava de novo o
mundo envolvente. Depois esfregou os olhos.
O rosto de Albert agigantava-se prôximo. O
homem desviou o olhar, a expressão envelhe-
cida de intensa amargura:

...Que quererão de mim ! ? Não sabem já


que sou um rato-medroso ? Um
rato-pelado de
sacristia ?
O A Q U A R I O 155

Bob, Padrão-dois: «A sua^lin-


contacta.

guagem é articulada?»
Oh ! Oh ! Oh ! Se falo? Então que tenho

estado eu a f azer ? Não me ouvem ? Pois claro


que tenho língua. Olhe !
0 hoínem deitava de fora uma pobre lín-
gua esbranquigada, em seguida recolheu-a e

riu:

Bem a escusávamos, cá por mim, pois o

que temos a dizer uns aos outros, desde que


não sejam mentiras, cabe numa unha. Ah, o
safado, o cornúpeto do prôximo ! Devia ser
incolor, inodoro e sem bico como um espírito.
Mas quê ? ! . . .

O homenzinho entremisturava as frases com


gargalhadinhas agudas. Albert mostrava-se
fortemente impressionado e perplexo:
Esta pequena «coisa» que vês, Bob, apre-

senta características muito semelhantes âs dos

pré-histôricos sub-homens... B quase incrível


enega teoria...
a Presta atengão.
:...Minha mulher diz-me muitas vezes:

«Se não fosse o maldito vício que tens de ma-


tutar, de olhares para as porcarias que se fa-
zem na vida, a estas horas serias já um chefe
de repartigão». Concordo, o pensamento, tal
como a língua, é um prejuízo e este mais gra-

ve, pois se um tipo fala corta-se-lhe a língua,


aos boca- homem
se pensa tem de se cortar o

dos. Minha mulher tem carradas de razão,


156 OAQUARIO

a cabra ! Cabra é uma maneira de dizer... uma


expressão de carinho...
Pergunta Padrão-três?... arriscou Bob. —

Deixa-o, Bob,

não vale a pena. A verdade
está aí, nítida e miserável. Deixa-o em paz.

...Tenho quarenta anos e já fiz versos.
B claro que com esta idade ainda podia fazer
versos e lê-los aos meus inimigos, se não
temesse que eles se rissem... Ah ! Ah ! B

que um poeta de quarenta anos, por con-


sagrar, é tão ridículo como uma solteirona
enfeitada de petite-vierge. Todas as autênticas
aventuras reclamam juventude e esta, de um

tipo ensaiar o seu voo como um balão expe-


riencial que serasteja,
ergue poisa ora
e ora

se levanta, esfrangalhando-se por vezes a dois

passos do solo, mais que todas é risível. B


tarde, é tarde para langar os meus balôes-son-
das, e vê-los esfarraparem-se no chão. Cá está
tudo na minha mente, pronto a passar ao pa-
pel, arquivado, mas é tarde, é muito tarde,
para que um ganha-pão como eu comece a in-
ventar tempo e alegria, tempo e prazer-de-
-existir. B tarde !
Albert pediu um charuto a Bob. Fumava
sem pressas, de costas para a ampola, pare-

cendo mesmo ter esquecido o estranho homen-


zinho e a sua mais estranha arenga traduzida
em palavras duma linguagem que não lhe era
afim.
O A Q U A R I 0 157

—-

Desligo ?
Não, que fale. B um bicho curioso,

ape-
sar de tudo.
O homenzinho perdia-se num desbobinar de
palavras sem
nexo, por catadupa
vezes numa

de expressôes desligadas, num desaustinado


discurso misturado de palavrôes e gargalha-
das; por fim, aos poucos, as frases arruma-

vam-se, ganhavam sentido:


.Um dia direi å humanidade isto mesmo


. .

e mais umas botas, dir-lhe-ei. ...Bom, dei-


xemo-nos de comédias e digamos a verdade,
nessa altura hei-de cuspir-lhe em cima, pisá-
-la ! Guardo este truque final, um pontapé no
cu da humanidade, e isto depois de ter sido

discutido e laureado, ter comido gloria em


sandujches fenomenais de sucesso em sucesso,
sucessivamente, etc... O homenzinho agita-

va-se, o rosto magro e famélico enrugado de


riso: Comia também um bom jantar, lá

isso... Um jantar que nem o idealista mais


convicto soubesse recusar. Comia já, se pu-
desse.
Albert, em profundo silêncio, observava-o.
O homenzinho ås tantas parecia dirigir-se-lhe,
irônico e descarado, pequena formiga, lá ao
fundo da ampola:

O senhor-supersenhor também comeria


qualqiier coisa, não? Nem sequer celebridade
em sanduíches? Admirar-me-ia se...
158 O A QU A R I 0

A estranha criatura aguardava. Albert res-


pondeu, depois de longo intervalo, compassa-
damente, como um adulto que explicasse coi-
sas a uma crianga inconsequente :

'Souelemento Youri.
um

Um elemento Youri... Um elemento


Youri repetiu o homenzinho.

Um ele- —

mento Youri?...

Explica-lhe, Bob ordenou ao robot.


Bob, sem se fazer rogado, disse:


'No plano tragam-se figuras de formas e


feitios diferentes, nunca mais notáveis umas
que outras.

No plano? ! Não vejo nenhum plano.
Era uma curiosidade simples e simultânea-
mente complexa, aquela do homenzinho, indo
ao
âmago da metafísica como uma arma pré-
-científica vai ao coragão dum ser vivo.

Bob!...

Cada indivíduo percorre no seu desen-
volvimento mental as mesmas etapas que a es-
pécie percorreu já através dos seus três siste-
mas-dimensionais. A cada homem o mesmo
«quantum», necessário...
O homenzinho de súbito desatou a rir, a
rir como doido. Descontrolado e fora de si le-
vantava-se do chão onde estivera anichado e
caminhava no sentido da periferia da ampola,
dava passadas umas atrás das outras, sem que
por isso aparentasse sair do mesmo ponto, agi-

á
O AQUARIO 159

tava-se como um feto dentro do


líquido aniô-
tico. Por entre solugos de riso, e depois de
fitar o rosto impassível de Albert, berrou:

Connosco não é assim, não, senhor ! B


tudo aos altos e baixos, com relevos mentais
e fundas depressôes de
espírito. E não me olhe
com esse ar de Deus-Mumificado
porque eu
juro que estou a dizer a verdade. Logo o meu
chefe de repartigão, uma besta, um safado no-
tável ! Para o gajo o que conta é dinheiro,
comer â tripa forra, mulheres, o cretino; o la-

drão, sempre metido em negôcios sujos, pulhi-


ces, tudo porque é dotado de razoável dose de
esperteza-saloia, o gajo ! O homenzinho —

teve
um solugo de riso ou choro e continuou: —

A
natureza connosco fez-se rica e variada, mais !
depois de nos ter engendrado tal como somos

abengoou-nos acada um de per-si, dizendo:


«Vai, meu filho, e faz-te um bom parvo», «vai
tu agora, criatura, e que dês razoável para-
um

nôico-assassino» , «vai, vai menino mimado e


que sejas um génio...» A nossa-mãe-natureza
tem os seus momentos de bom e humor,
mau

raros os primeiros, normais os últimos, é uma


fêmea frustrada e sádica divertindo-se â nossa

custa, a loba ! Ah, se o senhor-supersenhor me

desse un petit morceau do tal «quantum», essa


coisa que faz esticar a esperteza nos idiotas e
0 talento nos manga-de-alpaca ! . . .

O homem encolhia-se, parecia menor, mi-


i6o OAQUARIO

rava e remirava as biqueiras dos sapatos trom-


budos :

...O homem é uma pobre, uma
paupér-
rĩma coisa, entre o nascer e o morrer —

es-

cusam de me gritar o contrário um macaco —

a fazer momices no jardim zoolôgico. Estou


no
jardim zoolôgico ! Apôs a minha morte
vou ter uma estátua com os dizeres: «Pri-
mata» características de «Pitecantro-
com

pus». Não era cego nem surdo. Até falava, se


muito instado. Foi um antropôide notável. Paz
å sua alma».' Num breve gargalhar acres-

centou: Nascer e morrer, uma trampa can-



=

sativa e dolorosa. Não se pode escolher outra


coisa ?
Albert marcava imperceptíveis pontos sobre
um mapa de «átium». Bob aproximou-se :

-O espécimen é do tipo chorão.


B característico nos seres primários um


sentimento denominado inveja, quando medem
o seu handicap em relagão aos «meninos mi-

mados». Tens a certeza, Bob, que não nos


perdemos ? . . .

...Tenho a certeza de ser este o sistema


visionado por Rama.
:Bom...

. .

perfeigão ? Olhar os
.B isto atingir a

seres com olhos deste super-boy,


os mesmos

reduzir as pessoas a frios e esquemáticos tra-


gados ou fechadas elipses? Sapatos de morto,
0 A Q U A R I O 161

tenho calgados uns sapatos demorto. B porque


estou morto. Ai ! —

O homenzinho levou as
mãos å cara, gargalhou: Lá ficou a carga

da mulher e dos filhos. Não deviam ter-me


deixado morrer, assim vencido e humilhado,
mas se eu estou bem morto que interessa ? ! . . .

B uma análise lamentável, Bob.


E não se pode dizer que a Tragédia


atinja «neles»elevado grau de beleza.
um

Yes, yes. Tratar-se-á talvez duma tragé-


dia em estilo pequeno-burguês, que é como
quem diz modestíssima...
Na ampola o homem monologava:

Pois é... um tipo precisa de ultrapassar-


-se, eternizar-se vivo e morto, ter Deus por
ele, pensar que não é uma mosca estonteada
batendo as asas de encontro ås paredes dum
recinto fechado. Claro que Deus é inexplicá-
vel, incompreensível, mas, pudera !, se o Tipo
se demonstrasse, andasse tu cá tu lá connosco,

quem é que lhe ligava?


Sem prestar atengão ao frenético tragado dos
ponteiros sobre a placa macia de «átium», Al-
bert falou para Bob:
^- Ao fim e ao cabo o Deus do tipo é uma
espécie de Robot Biolôgico ou outro gerin-
gongo capaz de se inventar a si prô-
qualquer
prio, e sair do cosmos através dos pon-
entrar
tos nevrálgicos do dito, jogar ao jogo-das-di-

n
i62 O A QU A R I O

mensôes, como quem joga xadrez, etc, etc,


etc

Rama dizia-me muitas vezes: «Que nada


te surpreenda, Bob.»

Oh ! . . . Rama lá tinha as suas razôes.


A mim, francamente, surpreende-me ver uma

criatura destas que, a darmos crédito â aná-


lise, mal sabe ler, escrever e contar, que
não tem que «comer», fazer-se metafísico
quando a
lôgica o encaminharia antes para a
caga e a
pesca, e naturalmente as lutas violen-
tas. Surpreende-me, porque não confessar?

Não seria melhor continuar o


interroga-
tôrio-padrão ?

B inútilrespondeu Albert. —

Contudo voltou-se para a ampola.


.Compro um par de sapatos novos assim


. .

que receba. E não quero saldo, raio ! Têm sem-


pre a sola mais podre que o papel. A rogar —

os calcanhares um no outro: Malditos sapa- —

tos ! —

Encolheu-se rápido, de novo tímido ba-


tendo pálpebras assustadas,
as arcos das os

sobrancelhas paralelos ao arco descaído da bo-


ca, uma máscara profundamente entristecida :
...Ela ontem riu-se de mim e foi por causa

dos sapatos: «Sr.


Sacadura, se não manda pôr
meias-solas no calgado não tarda que ande
com os pés de fora» !
Que garota, Senhor !
Mesmo ao meu lado no escritorio, mais parece
O AQUARIO r63

sonho que realidade, o dia inteiro tic-tic-tic-


-tic-tic na
máquina de escrever, de vez em
um olhar, um olhar
quando todo-de-fogo capaz
de nos derreter por dentro uma
expressão de

abandono e ao mesmo tempo de quem sabe


manejar os cordelinhos da porca-da-vida, umas
pernas longas, bem torneadas, e um busto!...
Como impedir a imaginagão de lhe desnudar
os seios de bicos rosados,
brancos, redondos,
tão belos seios pontudos e rijos da Graga
os

Maria ! O homenzinho tapou o rosto, ven-


cido e amarrotado. Manteve-se assim por longo


tempo, depois levantou um olhar tímido, as
pálpebras pendentes batendo rápidas como as
dum animal assustado. De súbito deu de om-
bros e olhou a barreira-protecgão, fitando-a
como cego:

Nunca dormi com uma mulher que não


fosse a minha-mulher, mas acontece, natural-
mente, qualquer que, se vai a Paris, tem
a

obrigagão de ir para a cama com uma prosti-


tuta, se sonha é capaz de dormir com a propria
mãe, está acordado, e sem-nada-mais-que-
e se

-fazer, vai despindo as raparigas. Suspira


fundo: Nem sempre é fácil despir as rapari-


gas. Com a Graga Maria, por vezes, quando eu


me aproximo tentando desnudá-la, quando
julgo que o seu corpo vai surgir â minha frente
esplêndido e branco e os seus contornos pare-
cem esbogar-se já, nítidos, substitui-o um outro
164 O AQUARIO

corpo impudico e flácido, 0 único que na ver-

dade conhego, envelhecido, odiosamente hu-


milde humilhante. Odeio-os !
e a esses dois
coexistindo no fundo de mim mesmo
corpos
como um bicho informe de dezenas de patas e
milhares de olhos traigoeiros e escarninhos,
um monstro repulsivo e lúcido, observando-

-me... Odeio esses dois corpos, testemunhas

passivas e inertes, temíveis ! Mas um dia,


quando assim me surgirem unidos, fundidos
um no outro, sô olhos-patas-e-sexo, estrangu-

lo-as... A Graga Maria é amante do Sousa,


essa besta, esse Maldito
violador de menores.

seja ele e toda


espécie humana,
a maldito Deus
e 0 Diabo ! Maldito seja tudo o que existe ! Gozo

quando leio as notícias nos jornais a anunciar


horrores, a futura hecatombe do mundo, trá-

desastres ou terrificantes chacinas, terra-


gicos
motos, cataclismos, gozo até å medula e sô não-
-

pelas -ruas a -gritar-de-puro-e-infernal-


corro - -

-gozo-porque-sou-um-homem-normal e res- - -

peitável. Maldito seja eu !


O homenzinho deitou a cabega nos bragos e
comegou a solugar. Tossia e solugava. Bob
olhou Albert, ironizou:
Sousa
•—
o
Temível-Algoz, Sacadura a Po-
bre-Vítima.

,...Tenho asma. Quando me vê sufocado


o Sousa fala-me sempre no tal remédio. Hei-de
experimentá-lo. Coitado, no fundo não é má
O A Q U A R I O 165

pessoa, talvez... Gosta de se gabar, de passar


por femeeiro. A segunda-feira é o dia das gaba-
rolices do gajo: bebedeiras de caixão-â-cova e
mulheres-a-pataco. . .

■—
Vê isto, Bob Albert debrugava-se sobre

um tragado luminoso o nosso


manga-de-al-

paca é um interessante somatôrio de vícios e

virtudes, um
ponto médio-viragem...

Umaliga de metais pobres, digamos. Tal-


vezque captando um dos sábios-da-grécia ou
um-homem-das-sete-partidas as conclusôes se
modificassem. sugeriu Bob.
. .

Não creias. Este espécimen tem todas as


características fundamentais dum sub-homem.
Vê ! A mesma existência como um aconteci-
mento subterrâneo interditado de assomar de-
masiado å superfície para não pôr em risco a
sobrevivência individual, a mesma raquítica
mentalidade todo ele disforme e monstruosa

raiz, alguns vestígios de decência onde come-


gam a reconhecer-se já elementos de transigão
para o verdadeiro humano. Repara !
Ambos, Bob e Albert, pareciam observar o
negativo duma fotografia. Gargalhavam por
vezes, depois prestavam de novo atengão:

...Bem
modesto, um gajo em tudo, nin-
guém diga o contrário, nunca chega a matar
nem a esfolar. Esfrega as mãos de contente se

um inimigo ou amigo perde dinheiro, fica


chumbado num concurso, leva sopa duma tipa
i66 OAQUARIO

e outras pequenas chatices, imagina-se a dor-


mir com uma garota tão catita como a Graga
Maria, e a passar-Ihe, quando muito, uma
mirada por cima das teclas da máquina de es-
crever, chora se alguém vai a enterrar bem —

modesto, um gajo...
O homem fita as biqueiras dos sapatos. So-
bressalta-se.

...Engole odio e desforras, fica cada dia


mais burro. Que aconteceria se assim não fosse,
se cada qual frente a frente com o seu Sousa,

conhecendo-lhe as pulhices asquerosas, as in-


vejas e maldades, as hipocritas velhacarias, re-
solvesse fazer-lhe guerra aberta, cuspir-lhe nas
ventas ? Impossível tal coisa, impossível com-
bater em campo-raso. . . Decididamente so os

fracos, os invertebrados eu, podem sobre-


como

viver vegetando. Sô mesmo os fracos, pois aos


fortes liquida-os o Sousa duma penada assi-
nando de cruz. Nada, cá por mim recuso-me a
ver-e-ouvir, estou morto, perfeitamente morto
e
digno de inveja como qualquer defunto a
sério. Até sapatos...
os

Albert, lentamente, meditativamente, retirou


osauscultadores que Bob recebeu nas mãos. Na
campânula o homenzinho gesticulava patético
e
insignificante, perdendo-se numa pequenez
progressiva onde imperceptivelmente desapa-
receu.
O AQUARIO 167

O Youri folheou um dossier e fechou-o num

movimento brusco:

Que tal se captássemos um outro espéci-


men?

Por mim estou de acordo.


Talvez o problema tenha nova e inespe-


rada face, quem sabe ? !
Capítulo XII

is a woman !
/T —

Cette pauvre petite chose-lá c'est une

femme !
O Campo tremeluzia na obscuridade, cinti-
lante gota de orvalho ampliada å escala
como

de um universo. Dentro, a mulher agitava-se


como se estivesse sô, no rosto pálido e vin-

cado ainda um resto de frágil beleza. Pas-


sou as mãos pelos cabelos, pelas faces envelhe-
cidas, num afago demorado e pensativo, depois
olhou em volta de si e esbarrou perplexa na
barreira energética e para lá dela num rosto
atento. Sorriu, num trejeito subtil e irônico

que emprestava juventude aos seus lábios, a


todo o seu ser. «Se calhar comego a ver fantas-
mas; depois de ter errado como fantasma». Riu
alto, com amargura, profunda ruga a vincar-
-lhe a testa vasta e límpida.
Anichou-se no chão e fechou os olhos. Pâ-
recia aquietar-se como um animalzito frioren-
to, a amargura substituída aos poucos por uma
OAQUARIO 169

expressão de resignada calmaria. «B bom


fechar os olhos e dormir, dormir, pelos séculos
fora, até ao infinito dos tempos. Nada há —

que se
compare a isto: dormir, sempre, assim
anichada, enovelada como um feto dentro de
um útero. Amanhã compro o tecido «ceri-

se». O vermelho rejuvenesce; muito mais que


o violeta-de-parma, ou o amarelo, que sô dá
com a cútis fresca da adolescência...»
A mulher anichava-se mais e mais, enrolada
sobre si propria como um bicho-de-conta. Al-
bert e Bob observavam-na sem deixarem de
vigiar a aparelhagem, tragando esquemas so-

bre folhas de «átium».


■—■
. . .Não há dúvida nenhuma de que per-
tence â espécie «Sacadura»...
A mulher inesperadamente agitava-se den-
tro da campânula, corria, tentava atingir a
sua periferia. Interpelava-os, violenta e agres-

siva:

Deixem de me olhar e de escrevinhar


mentiras a meu respeito. Eu não sou eu ! Não
sou coisa nenhuma.

Sustinha-se, tensa como um cavalo em plena


corrida, as mãos å frente do corpo, protegen-
do-o de invisíveis agressôes e acrescentava, já
num tom de lamúria:

.
mulher-tipo. Há toda uma lite-
. .Sou uma

ratura sobre mulheres-padrão, em regra bur-

guesas: ou chatamente bem-comportadas ou


170 OAQUARIO

escandalosamente desobedientes. Mulheres do


Grupo-A, cujo tempo se preenche de vazio e
gestos inúteis; do Grupo-B, tão atarefadas ! ; do
C, com marido e filhos. O D, uma variedade já
descrente de qualquer regra, qualquer norma,
mas
respeitando-as e obedecendo a todas, pois
seria duro sacrifício transgredi-las. Há cen-
tenas de Tipos, na generalidade desobrigados
de qualquer tarefa na transformagão do Mun-
do. Eu pertengo a uma subvariedade-E (con-
sultar literatura respectiva), uma existência-
-como -
outra
qualquer -e-que-nem-chega-a ser
- -

suspensa por sobre um escuro abismo, deses-


peradamente agarrada ao suporte de podres ve-
lharias, único ponto de apoio. A mulher sorri —

e esboga um
gesto evasivo: Sou uma bur- —

guesa banal de quarenta e tantos -anos ;


-

uma
- - - -

tipa-como-outra-qualquer. Voilá.
Irreal e patética no interior da mirabolante
campânula, o pescogo alongado de exaustão, a
mulher parou de arengar. Parecia assim con-
centrar-se, reter
energias poderosas, preparar
qualquer salto demoníaco
e mortal. Bob se-
guia-lhe no quadrante o pulsar agigantado e
monstruoso do coragão. Alberto veio
espreitar
por sua vez:

Talvez espécimen não aguente esta ex-


o

periência, Bob? Que dizes?


Estamos na zona ôptima. O bicho aguen-


ta, está bem vivo.
O AQUARIO 171


Demasiado vivo !

Talvez seja algo de muito semelhante


âquilo que em outras dimensôes se denomina
uma neurôtica.

Talvez...,
A mulher olhava-os, prôxima, passando uma
das mãos por sobre a outra, em suave iro-
nia.

Nota como é acentuada e larga, apesar de


subterrânea, a curva do ôdio...

.Verdadeiramente sô odeio uma coisa: a


. .

Juventude, e essa porque é o único fenômeno


que, quando genuíno e autêntico, tem signifi-
cado humano. Fica parada a olhar as mãos

longas e brancas e acrescenta num ilôgico mur-

múrio: Ninguém sabe retê-la, comandá-la.


Na verdade a Juventude é odiosa a todos os


títulos, martirizada e martirizante. Ninguém
sabe eternizar-se, forga e beleza, adentro dum
campo de massacre, num combate que é sempre
de morte. Muito cansativa a juventude, muito
indesejável . . .

Leva as mãos ao rosto, estica-lhe a pele fa-


nada e
comega cantar baixinho a na toada
duma cangão de embalar:

«Não chores amor, não chores meu

A luta processa-se sempre â custa


Da carne e do sangue da Juventude,
Sempre â custa
172 O AQU ARIO

Do maravilhoso e intocável
Um assassinato-suicídio
Um-tipo a esgrimir contra-si-prôprio
Em raivoso-ímpeto
A defender-se combraveza
De maquiavélica-heranga
Trai-la-rai-la-rai
Todos sucumbem vencidos
(Porque a vitôria é movimento
uma coisa incomível)

E vão para as bancadas descansar


Assistir ao fantástico espectáculo
Sem-comego-nem-fim
(em continuagão)
Doloroso parto-de-nada
Que conduz a coisa nenhuma
(Não chores, meu amor)
Na bancada estamos bem
Aqui ficam os que passaram pela arena
Como nôs: bravios ou medrosos
Agora espectadores
Sádicos e vingativos
Assistindo â morte de todas as juventudes
(Não chores, meu amor, ah, não chores)
Somos dois velhos sádicos
Na bancada
Na bancada
Muito cômoda, muito cômoda,
Mais confortável que a arena
Trai-la-rai-la-rai,
OAQUARIO 173

Comem-se tremogos, pevides, rebugados


Meu Deus
Quem suportaria de novo

A alma e corpo em sangue


o

Quem suportaria voltar a ouvir


0 gargalhar dos mortos-vivos
Atigando a luta
A claque virada-do-avesso
Exigindo a agonia dos culpados-de-existir
A claque dos possessos contra-a-vida
Nos os que usamos emogôes-de-empréstimo
Porque as prôprias doem
Doem e ninguém quer a dor
Mesmo desses
Que mal-arranhados no combate
Depôem as armas

Pedem tréguas, paz, bancada


Com limonada e sorvete
Carnes flácidas
Mau cheiro
(Um pestilento mau-cheiro)
Estamos na bancada
Com eles
(Meu amor, não chores)
Trai-la-rai-la-rai
A nossa morte não foi indolor nem rápida
Meu amado:
Já viste um vencedor?
Alguém com a forga de criar no caos
Tirar luz do inferno
174 O AQUARIO

E aplicá-la em candeeiros de petrôleo


Ou mesmo lâmpadas eléctricas de algibeira e
Eu vi, eu vi [tecto?
(Não chores, meu amor) .

(Cangão da Emparedada-Triste que não ti-


nha mais nada que contar aos netos. Muito
cantada ao tempo em feiras-e-romarias).
Amanhã compro o dito tecido que não é vio-
leta-de-parma. Acabou-se. Mas este super-
senhor ou swper-constellation nem sequer sabe
o
que seja uma emparedada. Não sabe, nota-
-se ao primeiro olhar. Que cômico super-rato !

Uma Emparedada vive entre muros que a


isolam do mundo que é seu de direito ! quase

sempre em total escuridão, dando cabegadas


que não sabe evitar. B certo que, a pobre, âs
tantas, cria o seu prôprio sistema de radar,
insignificante defesa mas que na maioria dos
casos lhe evita o esfacelar-se. Mais ! é-lhe per-

mitido que continue viva, pode mesmo ser


autorizada gritar pelo sol que nunca viu,
a

desde que o choro seja ininteligível. Tem


seu

falta de ar, oxigénio, de luz, mas dizem-lhe


que não, que o que ela é, é neurôtica, que deve
extirpar o cérebro... A mulher leva as mãos

â garganta, sufocada pela imagem construída,


e
respira fundo, em longos haustos. ...As

de sentidos mais apurados tacteiam nas tre-


O AQUARIO 175

vas, cautelosas, e descobrem fendas no muro,


vêm... Vêm abruptas montanhas, rios cauda-
losos, céus abertos, noites sombrias, espagos
infindos e misteriosos... Depois disso não po-
dem voltar ao centro onde nôs esbarramos
umas nas outras,
por lá se deixam ficar e
martelam a periferia, quebram os ossos no
muro... Odeio humanidade inteira e a mim
a

mesma em primeiro lugar, vencida por forgas


que mal sei definir, eliminada do combate an-

tes de
qualquer descoberta, qualquer pobre
achado, réstia de luz ou corrente gelada que
me oriente na exploragão do meu Antro-
-porque toda a existência-feminina-se-processa-
-num-Antro-mal-cheiroso, onde os corpos ago-
nizam e morrem muito antes da verdadeira-
-morte. (Oh, em belas mortalhas, em belíssi-
mas mortalhas. Voilá) .

A mulher exprimia-se voz plena de


numa

suavidade, entoagôes,
sem olhos fechados,
os

as mãos, estranho sistema de radar, colocadas

å frente do corpo, tacteando como as de um


cego a evitar todo e qualquer obstáculo.

Talvez não se trate duma «mulher» mas


de qualquer irritante fenomeno da natureza
em estado de desesperada lucidez... arriscou —

Bob.
Albert riu mordaz :

Na verdade já tivemos cobaios femininos


mais felizes.
176 O AQU ARIO

Não lhe puseste nenhuma pergunta-chave


porquê ?

Não vale a pena.
A mulher abriu os olhos. Disse com indife-
rente dogura:
que nada vos possa chocar, arra-
Que pena

nhar sequer, pois doutro modo contar-vos-ia


uma bonita histôria. Passada no Antro. A
Histôria dum Primeiro Amor: (Era uma
vez Eu-apaixonada-por-mim-mesma, tão doi-
damente apaixonada que tudo o mais, pessoas
e objectos, deixaram de ter qualquer signifi-

cado. Eu, o único objecto amável ! Inexistente


o antro-habitáculo e o mau-cheiro-reinante,
amava-me, pois não encontrava mais nada
digno do meu-amor, nada que não provocasse
em mim repulsa e desprezo. Escrevia-me car-
tas, naturalmente, e falava-me, porque 0 meu-
-amor necessitava de ter voz. (O amor tem
de ter voz e olhos ouvidos, tacto, e pala-
e

dar, deve ser tão parvo-como-isso). Eram


cartas doidas e conversas alucinantes de pai-

xão, oralamentosas queixas de terno amor,


ora desaustinada e violenta imposigão de dese-

jos-sem-desejo, quase sempre a violência apa-


gando as outras vozes, uma violência surda e
estática a morrer â superfície duma vida pa-
rada e solitária. Ninguém senão eu podia amar-
-me com tamanho desamor e ôdio. E o meu

supremo prazer era esse : a autodestruigão pelo


O AQU AR I O 177

odio mais desesperado e agônico. Maravilhoso !


Um Eu amante-perfeito nunca dando azo a
que eu-me-entediasse-de-amar, proporcionan-
do-me toda a casta de supra-requintes e deleites
da sensibilidade, incluindo um público que
seguia interessado as peripécias várias duma
provável e iminente «perdigão», aguardando
ansioso e contente o momento em que me veria
cair sucumbida nos bragos do Outro. Sem
saber que o outro era eu! Ah! Ah! Ah!
Ah! O desprezível-público, deliciado de hor-
ror, lia e relia cartas da mais desbragada
paixão que eu escrevia a mim-mesma e que
abandonava para alimento (prato-forte) do
espectáculo. Atingia assim o supremo-pra-
zer-de-existir-o-espasmo final estava f arta- e
- - - -

-restava-me-morrer. . .
) .

A mulher sorriu, numa delicadeza medita-


tiva e distraída:
...Não morri. O calvário de mentiras con-
tinuava agora noutro diapasão. E assim se ar-
rumava sem comegado o caso duma neurô-
ter
tica a pão-e-laranjas, uma histérica que, atin-
gido o colapso, as unhas em sangue, caía por
terra, vencida. Arrancavam-lhe o cérebro, os

olhos, os nervos.O castigo estava na razão di-


recta do meu masoquismo. Confessei tudo, até
verdades, e deixei que me espicagassem até fi-
car inerte. Disseram-me depois que foi um bom

espectáculo e que todos riram â parva. Mais


12
178 OAQUARIO

uma juventude era vencida, posta fora de com-


bate, eliminado o amor e odio, o desejo-de-mor-
rer-e-demais-fingimentos. Â volta ficou este si-
lêncio e escuridão, o ser a afundar-se nas delí-
cias de irrecusável torpor. Nada, nada que se
compare a isto: rester lå par terre comme mor-
te... Amanhã compro o vermelho-vivo. B pena

que o amarelo sô dê bem com a pele fresca das


adolescentes... pois gosto do amarelo...»

B estranho, Bob, que todas estas subes-


pécies aspirem å liberdade e que não consigam
contornar os mais insignificantes obstáculos...
Estranho. Ouve !

. .
.Quanto melhor conhecem os condiciona-
mentos mais se' enredam neles. (... —

Mesmo
que o Sol me inundasse, mesmo que eu ardesse
no seu centro e fosse o prôprio Sol... Ah, eu

nunca saberei provar a liberdade. Ela foi-me


interdita desde o primeiro dia-de-vida e eu tor-
nei-me inapta, perfeitamente inapta para sabo-
rear tal coisa. B o mesmo
que terem-me enfai-
xado para que a minha coluna vertebral fosse
em forma de S e
agora me pedissem para ficar
direita. Inútil inundar o meu corpo de sol !
Mais: a luz cega-me, dá-me tonturas, fujo dela
como o diabo da cruz, o meu
reino, foi dito
mil vezes, é o das sombras, da passividade, é
o Antro onde deslizo
cega com todo um já aper-
feigoado sistema-de-radar. Não, não quero a

luz,..)
O AQU ARIO 179

A mulher transformava-se numa sombra


recortada fogo
a
paredes da ampola:
nas

(Aliberdade é desnecessária quando não há


escolha. Imaginemos uma pobre criatura habi-
tada por dois «eus» : um passivo, estático, bem
comportado, o outro arrogante, um demônio â
solta, maravilhoso de impetuosidade, sentindo
e exprimindo as paixôes, todas as sensualida-
des, esplêndido e vibrante. A pobre criatura
tem que liquidar um deles, «escolher» Mas . . .

não há escolha se quer sobreviver vegetando. . .

Assim-seja-ámen ! Aqui estou, Eu-O-Primeiro,


sofredor e abúlico, o amante sem paixão nem
alegria, que deseja-sem-desejar, que não vê,
não ouve, não tem bragos nem sentidos, o Eu-

-cego-surdo-e-mudo que nunca soube apreen-


der o Mundo dum modo directo e imediato. ) . .

A mulher fecha os olhos e tacteia o espago â


sua frente com as mãos envelhecidas :

-...Conhego os objectos pelo tacto. Sinto-


-lhes o rosto macio e rosado, tão frágil o rosto
rugoso do Mundo ! Não, não preciso doutros
sentidos para ver e auscultar o coragão do
Mundo, estremecer de paixão por infinitos
assombrados que nunca me será dado conhe-
cer. Nunca...

Lágrimás silenciosas deslizam pelo rosto


cansado da mulher:

...Paz, paz para aqueles que têm pulmôes


e não respiram, paz para os que têm olhos e
i8o 0 A QU A R I 0

não vêem,têm ouvidos e não ouvem, paz, paz


para todos os que desistem...
A mulher leva as mãos å cabega e acrescen-
tou inesperadamente, em raivoso e surdo de-

sespero:

Não estou morta. Não, não estou morta.


Não estou morta. Porque não estou morta,
Deus meu ? Porque é que as minhas mãos con-
tinuam a estender-se ávidas como garras?...
Passa as mãos pelas faces e aquieta-se, ani-
chando-se mais no fundo da ampola. Albert
observa atentamente a mulher, enquanto
acciona prateado manípulo. Ela volta-se re-
pentinamente para ele e comega a rir, a rir —

perdida a compostura que mantivera até ali , —

num riso acanalhado e libertino que termina


em brusco solugo. Albert mantém-se no seu

posto de observagão e faz um sinal a Bob. Vê


depois a criatura erguer-se e caminhar em di-
recgão å «barreira», vir ao seu encontro, num
instante o rosto da mulher ficar-lhe proximo,
nítidas rugas aos cantos dos olhos, a pele le-
vemente flácida, onde sômente os olhos, de

pupilas azuis-escuras, conseguem manter e

irradiar juventude, emprestando-lhe estranha


e subtil beleza. A mulher traz ao
pescogo um
medalhão e pergunta, exibindo-o entre os de-
dos:
Vês isto?


Vejo.
O AQUARIO 1S1

No reverso está escrito em


grossos caracte-
res: Respeitável.

Pertengo de corpo-e-alma ao Concílio


dos mortos parasempre.

Compreendo. . .

•—

Daqui vejo uma luz-de-oiro e alguém que


passa através dela. Bs tu ? Como te chamas ?

Qualquer-coisa-não-interessa.

Não interessa de facto. Se tu soubesses !


Tenho a alma seca e estéril como a dum cardo.

Quando me aproximei desta frincha e te vi,


tive a impressão de que vinhas libertar-me.
Podes deixar que eu aperte as tuas mãos nas
minhas ?
A mulher estendeu as mãos pálidas, longas,
e ficou a olhá-las como
que soltas å frente do
corpo, banhadas em patética irrealidade. De-
pois deixou-as cair ao longo do corpo.

Bs um fantasma, já sabia, mas


quis cer-

tificar-me.
Inesperadamente, em tom aflitivo e surdo,
a mulher
sem sequer levantar os olhos, pediu:

Por favor, retira o muro para que eu
possa abragar-te em pleno Sol. Por favor, dei-
xa-me ver a luz.

Não posso... O muro tem de ser mi-


nado por dentro, abandonado como uma casca
vazia.
■—
Por favor,
ajuda-me a nascer.

Ninguém pode ajudar-te a nascer.


182 O AQUARIO

A mulher curvou mais a cabega:


Dou a minha vida^


Não podes dar uma coisa que não possuis.


Estás morta.
■—
Não é verdade !

Vou dizer-te: habitamos esferas concên-


tricas, a minha de raio maior, infinitamente
maior... As passadas são mais largas, mais
larga a claridade e o prazer-de-existir, sô...
A mulher soltou agressiva gargalhada:

Sô ? ! Não és a liberdade e a juventude,


portanto? !...

Não sou.
Mesmo assim... Gostaria de acertar as

minhas passadas pelas tuas, absorver a luz do


teu sol, percorrer a esfera circuhscrita â minha
e de raio infinitamente maior. Sô !

Sûbitamente ela levou as mãos aos lábios e


ficou a olhar em derredor:

Tudo em ti me é antipático e odioso. Amo


a minha esfera de raio apertado, na


qual a
minha pessoa se reduz a um ponto sem dimen-
sôes, imovel e nirvânico, um pequeno ponto
que não corre nenhum risco...
Passou distraidamente as mãos pelos cabe-
los acinzentados, de novo pela face fria-de-
-morta :

( —

Acabou-se. Vou estender-me na minha


urna vestida de vermelho. O vermelho fica bem
aos mortos, rejuvenesce-os).
O AQU ARIO 1S3

Isto é o Proto-Histôria se chamava


que na

uma louca disse pensativo Albert.



Total-

mente louca. Rama é bem capaz de ter ficado

prisioneiro num Antro desses...


Oh, não acredito!


Albert moveu o manípulo e aos poucos a
mulher foi-se afastando, diminuindo cada vez
mais até desaparecer, tragada pela nebulosa-
-antidimensional .
Capítulo XIII

isso, Bob, vai descansar.


DEIXA —

Não estou cansado.


Mas estou eu. Vou deixar-me destas expe-
riências.

Fazes bem. Rama... Sabes o que deve ter


acontecido a Rama ! ?

Não me percebeste, Bob. São estas expe-


riências, particularmente, que já não me des-
pertam curiosidade nem acrescentam seja o

que for aoque já sei. Mas há outras. Via-


rumo a uma «esfera» mais ampla. Não
jarei
me interessa mais esta rotina de captar pobres

seres, humanôides ou não. E não julgues por

isso que ponho de parte a teoria de Rama,


nada disso. Quero evitar-lhe os pontos fracos,
que não são poucos...

Deves mandar-me numa sonda-


primeira
gem. Sou Beta-Ômega que
um conhece do seu
ofício e há hipôteses que nunca foram postas
å prova, não se sabe portanto...

Todas as sondagens correm por minha


0 AQU ARIO 185

conta, inclusive primeira. Vê se Maga já


a

chegou. Maga ou Alexei.


Bob, antes de sair, disse sem olhar 0 inter-
locutor :

A rapariga tem uma inteligência «Youri»


notável, mas o rapaz possui um mais alto ín-
dice neutro-negativo. Bem vistas as coisas são
dois fedelhos horrorosos e tu farias bem dei-
xando-os em paz.
Albert levantou-se com rapidez, parecia agi-
tado:

Tens razão, vou acabar com isso.
Saiu do laboratôrio. Cá fora encontrou a
rapariga enterrada numa poltrona escura, o
rosto apoiado nas mãos, atenta
painel que ao

lhe ficava frente. Como não desse pela sua


em

presenga, Albert acercou-se mais e tocou-lhe


no ombro. Ela voltou-se com vivacidade:

Oh!

Pequeno amor, como vão os nossos ami-


gos Henry, Alexei, Yarath?...

Alexei não deve tardar. Teimou que en-
contraria os originais de Rama no Centro
K.O.2.

O Robot Biolôgico informá-lo-ia melhor.


Sim, o Robot Biologico, o Grande-Tipo...


Alexei preferiu andar â procura.
As paredes cobertas de painéis pareciam
girar em torno de si. As belas raparigas Hu-
tah, sempre a mesma rapariga desdobrada até
186 OAQUARIO

ao paroxismo, sorrindo ou caminhando em in-


definidos movimentos, a sair do quadro, pri-
sioneira dele, as ancas pesadas e vibráteis, no
rosto fugidio sorriso, entonteciam-na quando
muito olhados. Maga levantou-se e foi junto
do painel:
Creio que a imaginagão-humana está
— —

como direi? ^cansada e parece-me que seria


conveniente deixar em liberdade a imaginagão-


-da-natureza. Por mim dar-lha-ia dizendo: «Já
que me inventaste provê å minha subsistên-
cia...
senão adeus mamy

que me voy a Franga


buscar una langa
continua a danga».

Albert veio por detrás dela e enlagou-a:


Petite enfant, tenho uma surpresa para


si e Alexei.
Ela voltou-se, no olhar a expressão de assus-

tadora lucidez:
-Já?

Não éo
que julgas... Nada mais que uma

pequena digressão...

Hum...
■—
Um jogo de esferas-limites, limites con-
cêntricos-circunscritos aos limites, assim «ad

infinitum», infinitamente-ilimitado, etc, etc.


Que mais quer saber?
OAQUARIO 187

Maga, numa distracgão meditativa, respon-


deu:

Nada, sei o suficiente...


Petit enfant —

e Albert afagava-lhe os
cabelos e as faces —

,
mon
petit enfant, és o
meu nada, a minha única dimensão.
Ela olhava para fora, para lá da lente, ensi-
mesmava-se friorenta e arrepiada. Disse num

tom desatento, aéreo:


...Respondi-lhes que sou um tipo-natural

e que duas geragôes seguidas de tipos-naturais

nada adiantam â espécie. O que interessa é


adiantar alguma coisa e não marcar passo em
ponto morto, não? !...
.

O quê? Albert mostrava-se surpreen-
! —

dido. —

O Conselho-dos-Sil propôs-te a in-


cubagão-hibernante? Oh, mas é uma rara

honra ! ?
Recusaste, porquê ? !
Maga suspirou de aborrecimento. Deu uma
resposta evasiva:

Um dia o homem ver-se-á compelido a


desistir da inútil e fantástica aventura, mas
até lá sô tem uma tarefa
digna: impedir que
0 Deus Matéria- -

Omnipotente Omnipresente
- -

-Intocável-e-Inviolável se divirta å sua custa


e de si gato-sapato. Impedir que
faga 0 a fera
torne vítima, ande â volta do seu corpo fare-

jando-o como a uma presa. Voilâ. Porque é


que Alexei demora tanto?
iS8 0 AQUARIO

Albert voltou costas, aborrecido:


Alexei é o teu relogio-de-tempo-imediato,


a tua medida. B justíssimo que lhe desejes a

presenga, pois sem medida nem chegamos a


ser.

Simultâneamente davam ambos pela pre-


senga de Alexei, parado, enquadrando-se no

círculo da entrada. Maga estendeu-lhe as duas


mãos:

Alexei !
Tinha assim
a sensagão de protegê-lo e pro-

teger-se de Albert. Este parecia alhear-se, o


a tocar a extremidade do painel,
corpo quase
a sua sombra
projectando-se sobre «A Rapa-
riga-das-Papoilas». Disse:

Le parfait ménage á trois. Oh, ce será


une petite bacchanale, une três petite baccha-

nale.
Maga e Alexei olharam-se. O rapaz pergun-
tou-lhe rindo:
Percebes

a linguagem dos mortos? Moi,


non!

Oh, Alexei, fujamos ! Albert vai usar-

-nos em terrível experiência.


Deixa andar ! Não devemos ter medo do


medo. Sabes tipo nos prometeu ! ?
o que o

Sei.
«Libertos da carapaga protectora,
senhores do nosso destino poderemos coman-
dá-lo, dizer que nascemos, enfim...» Cheira-
-me a slogan, Alexei, não acredites nele.
O AQU AR 10 189


-Teremos de comprovar pela experiên-
cia. Rama...
Uma gargalhada de Albert interrompeu o

rapaz :

Rama, o
Magnífico, sô desejou uma coisa
quando conheceu a «verdade» : desaparecer !
Foi o
que fez, o bandido ! Deixou uma bela
teoria, simples quando se trata de passar duma
dimensão para a outra como
quem passa-
-paredes nega lei da e a impenetrabilidade da
matéria. Pobre Rama ! —

Albert suspirou tro-


cista.

Pobre Rama, concordo —

disse Maga —

legou-nos uma tragédia -


farsasô visível a
olho nu da Dimensão-Zero : A Lua-2 entrando
no átomo de Hélio como o botão na sua casa,
0 Neutrão engolindo a Giboia, Albert comendo
0 Universo em fatias, etc, etc, de modo que...

. . .Não temos farsa-tragédia ! —

concluiu
Alexei rindo.
Bob entrou com uma bandeja de bebidas que
serviu, dando a cada um seu copo cheio de
líquido esverdeado. A rapariga hesitou antes
de o levar aos lábios. Vendo isto Albert disse-
-lhe:
Podes recusar...
.

Não quero recusar !


E comegou a beber lentamente, decidida-


mente. Alexei, esse emborcou metade do lí-
ĸpo 0AQUARI0

quido em três ou quatro tragos e em


seguida
levantou copo å altura dos olhos;
o

Proponho que brindemos ao Instante=


=seguin*e! Pois que o prazer não tem pre
sente.

A
Vagabundagem !

Ao regresso do Pássaro=de=Fogo.
Alexei esvaziou o copo, que atirou depois
para longe, gritando em esfuziante e desassi-
sada alegria:

Ao R-Q-T-P!
Bob continuou a servir líquidos rosados ou
esverdeados que eles bebiam, quebrando em
seguida as tagas, que iam estilhagar-se de en-
contro aos painéis, num rumor abafado pelas

gargalhadas dos três.,


Os deuses ! Os deuses bêbedos ! gritou —

Maga apontando Alexei e Albert e tapando em


seguida o rosto.
— ■
Bêbedos ? ! —

perguntava-se Alexei.

Why not ? ! Desde sempre os deuses se

embebedaram.
Fez-se silêncio. Maga e Alexei olhavam-se
perplexos.
Ela fugiu para o Terrago e o rapaz seguiu-a,
tomando-lhe as mãos geladas entre as suas:

...Desta vez não acontece nada, verás...


Desta vez...
Albert estava a dois passos deles, os cabelos
cor-de-avelã espetados e em desordem, todo
O AQUARIO 191

ele vibrátil e tenso atleta que se


como um

preparasse para um salto definitivo e mortal:



Desta vez o Pássaro-de-Fogo experimen-
tará as asas ou não existe Pássaro-de-Fogo.
Albert caminhou até ao fundo do terrago,
onde se encontrava um spaac preto. Voltou a
cabega, chamando-os:

Venham.
Como autômatos seguiram-no e meteram-se
no aparelho ao lado dele. Maga passou os bra-

gos â volta do pescogo dos dois rapazes. As


faces ardiam-lhe e ela buscou o fresco na face
dos companheiros, primeiro na de Albert, de-
pois na de Alexei.
Este levou as mãos â garganta:

Estamos no Inferno.
■■—
Há um Purgatôrio.

Sou Pássaro-de-Fogo.
o

■—

Parfait ! disse Albert, as mãos sobre


os comandos, solitárias, muito brancas. —

Vou levá-los ao meu foguete espacial. Nada


de surpreendente portanto.

Muito surpreendente ! E desgosta-me es-
tar um pouco bêbedo para gozar dessa glôria.

Maga disse suavemente:



Vamos queimar-nos nas trevas. Espere-
mos que seja belo, ao menos !

Que haja alguém a gozar o espectáculo


de fora —
acrescentou Alexei como um garoto
irresponsável. —
Albert vai conduzir-nos ao fu-
192 O AQUARIO

turo. Entrego-me a esse futuro quase sem


condigôes. Não me perguntes qual é o «qua-
se», Maga, porque não sei, perdi-o. Perdi-o e
é importante A voz do rapaz tomava um

acento chorão de lamúria. Onde está o «qua-


se» ?
Ah, encontrei-o. O quase é uma condi-
gão, uma única : que o pensamento sobreviva !

Rindo: Mesmo sob a forma de cogumelo.


Mesmo sob a forma de ostra-no-fundo-do-


-mar-chapéu-de-três-bicos-girassol-a-boiar !
Maga cerrou as pálpebras, a cabega deitada
no ombro de Albert. Alexei tinha um zumbido
pavoroso nos ouvidos e calou-se.
Lentamente o spaac saiu do facho de pe-
numbra e
ergueu-se no
espago cinzento.
Capítulo XIVj

o hangar de chegadas e
vasto

Sobrevoaram
partidas interplanetárias, um mundo des-
povoado e alucinante, de construgôes gigantes-
cas arredondadas, encimadas de fusos brancos,
as pontas espetadas lá longe, no espago, ma-
cigas e fantasmagôricas, assentes na espectral
luminosidade de invisíveis projectores.
O spaac parou na plataforma prôpria.
Albert, sem uma palavra para os compa-
nheiros, pisando com familiar â-vontade o chão
escuro do hangar, seguiu â frente deles como

se lhes ignorasse a presenga. Estes, assusta-

dos, escutavam o barulho dos passos no pavi-


mento.
Não agarres a minha mão com essa forga,

Alexei.

Pensei que estivesses com medo.


Porque havia de ter medo, «agora» ?


Pois... Desta vez vamos dar uma volta


por lá...

13
194 O AQUARIO

Nem mais. O tipo viu que éramos péssi-


mos cobaios.
Riram. As suas vozes, e o riso, soavam

falso, tomavam estranhas ressonâncias no si-


lêncio.
Albert chegara junto do foguete, mais
seu

pequeno que os demais emvolta, a base bo-


juda e achatada como fantástica botelha, e

tocava-lhe com as polpas dos dedos num afago


prolongado:

Bs um bonito bicho e eu venho habitar-te


as entranhas, possuir-te... Riu em surdina:

Muito gostaram sempre os homens de pos-


suir coisas. Pois é, querido bicho, vamos rodar
um pouco. Sô nos resta isto, rodar...

Albert demorava-se acariciando a liga metá-


lica feita corpo, os seus dedos alastravam,
teciam sombras. Maga e Alexei pararam não
longe dele, curiosos e interditos,
cuspidos da
prôpria aventura em
que estavam metidos, in-
vejosos desse diálogo entre o homem e a má-
quina, dessa estranha comunhão. Albert vi-
rou-se para eles num repente:

Que vêm vocês aqui cheirar?


Vendo-os manter-se calados, olhando-se um

ao outro confusos, olhando-o a si depois, acres-

centou :

Acabou-se. Desandem para o ninho.


Maga adiantou-se:
O AQU AR I O 195

■—
Não fomos nôs quem lembrou esta Roma-
gem-de-Amor.

Conversa ! Com uma coisa destas —

e dava
pancadas no foguete espacial sô é —

possível ter brincadeiras a sério. Acabou-se a


Magia !
■—
Estamos fartos de brincadeiras-de-brin-
car —

respondeu por sua vez Alexei.



Ponham-se a andar, já disse.
A voz de Albert fazia-se surda e irritada.
Alexei cresceu para ele:

Estamos fartos de Mágicas. Queremos


qualquer coisa que valha a pena.

Querem então continuar a brincar, os


pequerruchos, os meus bebés sem psicolo- - -

gia ! ? Ah, mas sem dúvida que encontraram


ama-seca competente, capaz até de lhes pro-

porcionar passeios pela galáxia, â velocidade


do carrocel, com paragens em todas as ilhas
cosmicas e chuva-de-estrelas, coloridas a tinta
See. E a seguir? A que quererão brincar a
seguir ?

Uma vez esgotada a Magia e o Cosmos


vai difícil inventar mais brincadeiras, con-
ser

cordamos... respondeu Maga, meio distraí-


da, a mirar uma reentrância do foguete.


Albert rodeou o aparelho. Viram-no abrir
uma porta redonda ao resvés do solo e entrar.

Eles correram e entraram por sua vez. Logo


apôs, a porta cerrou-se com um clique surdo,
196 OAQUARIO

desaparecendo qualquer vestígio da abertura


ou ranhura. Foram atravessando sucessivos
vestíbulos iluminados por luzes avermelhadas
e, sempre seguindo Albert, detiveram-se em

frente duma porta doirada. Albert, pela pri-


meira vez depois de entrarem no foguete, en-

carou-os :

Como vêem é uma maquineta como-ou-

tra-qualquer.

Não tanto assim. O índice C é muito


superior ao previsto pela teoria respondeu

Alexei.
Albert riu:

Quem me manda a mim convidar dois


«rhode» a visitarem o interior do meu Antro.
O índice C é na verdade grande.
: Vinte unidades

disse Maga.


Como sabes ? perguntou Albert sur-

=■

preendido.

Tenho olhos.
A rapariga apontava um quadrante a
pe-
quena distância deles.

Oh ! Na verdade é-me necessário todo


este espago-interior não me convinha aumen-
e

tar o tamanho do aparelho. B melhor


seguir-
mos.

Albert fez incidir um foco azulado sobre o


centro geométrico da porta doirada, esta abriu-
-se... Estavam
por fim no coragão do foguete.
Os dois aprendizes de «rhode», habituados
O AQU AR 10 *97

como estavam a desmontar pequenas e


montar e

delicadas «maquetas», a desvendar os segredos


mais assombrosamente teoricos de qualquer
máquina, uma vez dentro mostravam-se sur-
preendidos e curiosos como leigos. Coscuvi-
lhavam por toda a
parte; a sala dos comandos
com suaaparelhagem complexa, seus qua-
drantes e êcrans visores, seus sistemas de es-
feras garatujadas de números, eixos rotacio-
nais, logo a a sala-biblioteca onde dois
seguir
Beta-Beta entretinham a regular o micro-
se

-tele; depois debrugavam-se intimidados sobre


o «0z», e sem
parar andaram de um lado para
outro, â vontade, livres da presenga um pouco
intimidante de Albert.
Maga, por fim, deteve-se em frente dum
Hutah, obsessivo como os demais, a mesma
Rapariga das Papoilas repetindo-se desola-
- -

dora e desolada, nessa indescritível plenitude,


rôseo-doirada. A Rapariga-das-Papoilas es-
tendia as mãos para colher as flores que em
volta quase a submergiam, guardando no
fundo das pupilas escuras um fulgor receoso,
como se temesse encontrar escondido
no seio

das corolas repelente lagarta ou acerado agui-


lhão. O gesto eternizava-se assim, empapado
na luz intensa dum sol pagão que submergia

tudo, sufocava o mundo.


Maga olhava «aquilo» sem desfitar. De sú-
bito afastou-se, nos lábios um esgar de repul-
198 OAQUARIO

sa. Voltou de atraía-a.


novo a cabega : o painel
Os seus olhares encontravam-se os da com

Rapariga-das-Papoilas, falavam-se numa lin-


guagem irritada. Voltou costas e saiu
dali
murmurando:

Que absurda tipinha.


Esbarrou em Albert que desaparecera, dei-
xando-a a si
Alexei, entregues
e a siprôprios.
Disse, a sacudir os bragos onde as picadas do
s-l-i erammais intensas:

Nunca vi tanta porcaria num foguete-


-cosmico.
-
B natural
— —

respondeu ele sem elevar a


voz —

,
tu nunca tinhas visto um foguete-côs-

mico.

Dentro de dois vega-vega ser-me-á per-


mitido possuir um.

Dois vega-vega é muito tempo.


A voz de Maga alterava-se furiosa:

Seja como for, quando tiver uma coisa


destas quero-lhe as paredes nuas, sem prisio-
neiros esfinge, desgragadinhas-carregadas-
em

-de-papoilas.
Albert aparecia e desaparecia, percorria o
foguete de lés a lés, dava ordens aos Beta-
-Beta, verificava ele proprio os maquinismos,
mostrando-se eficiente dinâmico como um e

senhor-todo-poderoso reino. no seu

Maga Alexei,
e reduzidos ao
papel de espec-
tadores sem utilidade nem voz -activa, conti-
- - - -
O AQUARIO 199

nuavam remirando tudo entre admirados e


ofendidos.
Alexei por fim não se conteve, quis tomar
parte na aventura e debrugou-se sobre uma

ampola Bad; ia aumentar-lhe a


capacidade.
Ouviu um berro:
Não se atrevam a alterar seja o que

for.
Este Bad está muito abaixo da capaci-

dade-limite respondeu Alexei interrompendo


0 gesto que esbogara.


Cuidem do que lhes diz respeito: olhar.


Irritado e interdito o rapaz voltou-se para
Maga:

Estás a ver o gajo ! ? Cá por mim púnha-


mo-nos a cavar.

Maga encolheu osombros:


O brinquedo é dele.

B...
Albert parecia exercer um domínio completo
sobre a máquina e isto acabou por fasciná-los;
seguiam-lhe movimentos, as vozes preci-
os

sas de comando, viam-no atender aos mais


ínfimos pormenores, vigiar de perto as mano-
bras dos Beta-Beta e esqueceram-se mesmo de
que estavam metidos numa aventura de que
desconheciam os limites.
O micro-tele rasgou-se å sua frente e o cos-
mos pareceu desabar de repente sobre eles,

tal catadupa de sôis em queda abrupta e ver-


200 0 AQUARIO

tiginosa. Maga, os olhos desmesuradamente


abertos, estonteada, murmurou:

O céu vai esmagar-nos ! . . .

Por momentos, os três mantiveram-se para-


dos a olhar o espago em frente, em baixo, por
cima, aos lados, envolvendo-os, escuro, esfé-.
rico, palpável, aterradoramente belo. Um halo
verde-sombrio aureolava os astros mais prô-
ximos, enrolava-se em volta deles como uma
cobra enroscada na carne-viva da sua vítima.
Maga estendeu um brago: um sol brilhante
estava na extremidade dos seus dedos.

...Dôi ter os astros assim â mão.
Ouviu-se a voz de Alexei num berro exci-
tado:

O que é isto ? !
Alexei indicava uma nebulosa elipsoidal de
densos vapores cor-de-fogo, contidos, e enci-
mando-a, suspenso, insôlito objecto prateado
em forma de manípulo.

Isso ? . Albert inesperadamente riu :


. .

Ah, nada mais que um pouco da escarne-


cida Mágica, a matéria desobedecendo âs leis
gerais da matéria.
Depois, sem disfargar o tom de troga, debru-
gou-se sobre um quadrante horizontal e acres-
centou:

O Dr. Fausto é assim, quando faz mila-


gres rodeia-se sempre de vapores-de-fogo. Uma
maneira de atrair o Pássaro-de-Fogo.
O AQUARIO 201

No quadrante deslocava-se lentamente fina


e escura agulha.

Logo que o ponteiro atinja o trago ver-


melho, Zip !
Maga e Alexei, instintivamente, debruga-
ram-se sbbre o
quadrante onde a agulha pa-
cientemente, metôdicamente, se aproximava
mais e mais do trago vermelho-vivo. Fascina-
dos e medrosos parecia-lhes vê-la tocar um
fantástico limite.
As tantas Maga suspirou fundo; subtraía-
-se assim â insôlita
emogão:

Oh, Alexei, como é aborrecido possuir


um simples spaac !
Alexei disse, sem desfitar quadrante:
o

Mais um pouco de paciência e temos um


brinquedo destes por nossa conta.
O foguete fremia no seu sustentáculo. A ra-
pariga plantou-se em frente do écran-visor e
comegou a cantar uma bonita cangão monossi-
lábica. Tinha assim a sensagão de vogar so-
nâmbula por sobre deslumbrante abismo.

Tens uma linda voz disse Albert,


quando ela parou de cantar, e segurando-lhe


os bragos caídos ao longo do corpo.

Oh, Albert, tu és um Louco.


Maga, Maga ! Maga !


A voz de Alexei vinha em frenesim não se

sabe donde. O rapaz apareceu de súbito entre


202 O AQUARIO

eles, esguedelhado, deu um empurrão em Al-


bert e puxou a rapariga para a saída.

-Maga, vem daí, temos de pôr-nos a an-

dar !
Ela oferecia resistência:

Como? !.... Que te aconteceu?..,


Sei lá o
que me aconteceu. De repente vi
o
que o gajo queria. Vem !

Não podemos ir. Eu não quero ir !


Maga tentava soltar-se das mãos dele.
Albert observava a cena com superior iro-
nia. Disse:

Se é por uma questão de dificuldade na


saída eu prôprio me encarrego de vos conduzir
ao exterior. Têm dois micro-vega para se deci-

direm...

Não ouves,Maga?!

Ougo. Vai tu.


Alexei prendia-lhe de novo os pulsos:

Não sabes o que aconteceu a Rama? B


isso que ele quer, mas levando-te consigo.

Larga-me, já disse.

Eu fui a isca !

Oh ! De vez em quando atribuis-te pre-


dicados...
Minha idiota !

No écran -visor recortou-se a figura dum


Ômega, interrompendo-lhes a agitada dis-
cussão, e que apagando os sois se movia gro-
tesco como uma sombra. Falou:
O A QU AR I 0 203


^Youri Albert de Michigan, atengão !
Albert respondeu rápido:

Está tudo em ordem.



O aparelho não pode largar com dois
«rhode» na fase para-adulta. O aparelho não
pode largar...

Temos a
aprovagão do Conselho dos Teta

gritou Maga.

A rotina.

Fora com a rotina !


Albert desligou o écran-vigia. e olhou em
volta de si.

Não é possível fazer andar mais depressa


as malditas agulhas ? perguntou Maga no

desejo incontrolável de fugir ao contrôle do


Ômega.
Alexei fitou-a ironico:

Não esquegas, minha amiga, que os Ôme-
gas detêm o poder de sustar o movimento de
qualquer corpo seja qual for a velocidade e a
distância a que se encontre. Não podes escapar
aos amáveis inventos que zelam pelo teu bem-

-estar. Mesmo que as agulhas se despachem ! . . .

Bom, ei-los que surgem, que batem â porta...


Riu com nervosismo: =Não, eles não usam


bater.
Maga fechou os olhos procurando abrandar
a tensão que a tomara. Que lhe importava no
fim de contas que essa aventura ficasse em
nada? Seria de facto uma aventura ou mais
204 O AQUARIO

uma das de Albert? Era bem pro-


Mágicas
vável que assim fosse.
Alexei andava de cá para lá, e parecia tão
contrariado como Maga:

Sem o «sim» dos Ômegas, sem nos terem


posto lá fora como garotelhos que precisam de
agoites, o teu amiguinho não poderá largar.
Bonito ! Ouve, Maga...
Bruscamente um buuummmuuummm bbbu-
mmmuuumuum bbbbummmuuuunmmmbnnn-

mmuuu pavoroso e Alexei sen-


e surdo. Maga
tiram-selangados por terra, de encontro aoum

outro. Seguiu-se longo e indefinido silêncio.


Pareciam ambos petrificados. Maga por fim
estendeu um brago e ficou admirada de poder
movê-lo; depois virou a mão de palma para
cima, murmurou:

Vê!

Talvez o eixo dos XX tenha rodado so-
bre si mesmo e...
Alexei interrompeu-se. Albert estava å
frente deles, agigantava-se como uma sombra
debrugado sobre as suas cabegas.

B simples
o que aconteceu, se vocês
que-
rem saber... Deteve-se a mirá-los atenta-

mente: O foguete deixou de ter dimensôes.


Viajamos entre o Zero e o Nada.


Pareceu aguardar uma resposta que não veio
e em seguida acrescentou:

Era a única maneira de escapar å auto-


O AQU ARIO 205

ridade dos Ômegas. Espero que tenham ficado


satisfeitos.
Os dois companheiros ergueram-se a custo.
O foguete era o mesmo, nada aparentemente
mudara â sua volta. Alexei olhou em derredor
e disse:

-Eu tenho dimensão, olhos, bragos e per-
nas, não sou um zero.

Albert foi até ao écran-visor, agora uma


chapa branca e sem vida, voltou-se ficando em
frente deles, os bragos cruzados, as pernas
afastadas, fina calga preta a moldar-lhe os
músculos rijos e longos:

O coeficiente C ultrapassou o limite teô-


rico, isto é... Por outras palavras, o nosso fo-
guete pode dizer-se um cosmos-miniatura sub-
traído â acgão do cosmos-gigante, encontra-se
fechado na carapaga do Zero, invulnerável aos
deusôides e ao homem, sem dimensôes por
fora, em resumo...

Albert passeava pela sala dos comandos, ia


e voltava, expandia-se em acintosos ditos:

Tão fantástico e misterioso, tão inexpli-
cável ao fim e ao cabo, biliôes de «pos-
como os

sibilidades» que foram


nuncaobrigadas a
acontecer. E, depois, vejam sô esta coisa sim-

ples: por aqui, por este atalho eu garanto que


atingiremos o limite-último, talvez até possa-
mos rasgar a pele do estabelecendo
Aquário,
0 contacto entre Reinos-distintos. Que dizem
206 0 AQUARIO

vocês a isto? Porque ficam para aí parados e


mudos como mortos ! ? Não ouvem ? Porque se
assustam? Ah, quem me mandou a mim me-
ter criangolas a bordo, subtraí-los å autoridade
Omnisciente dos Ômegas !
Se foi para servir um Senhor=Todo=

=Poderoso como tu, talvez a troca não tenha


valido a
pena.
Maga, dizendo isto, sentou-se e apoiou a
cabega nos joelhos. Usava uns shorts curtíssi-
mos
que lhe deixavam toda a coxa ao léu.
Albert fitou-a:

Vem cá, Maga.

Ougo-te-daqui-meu-senhor.

Não comeces com palermices. Ele apro-

ximava-se da rapariga, prendia-lhe os om-


bros: Diz a verdade, Maga, não desejas fu-

rar a casca do ovo-choco, observar o Antro


por fora?...
A rapariga escondeu o rosto entre os joe-
lhos, enquanto Alexei furioso assobiava.
Albert sentou-se numa poltrona e disse pas-
sado algum tempo: Aconselho-os a insta-

larem-se confortâvelmente. Os espectáculos


mesmo gratuitos devem gozar-se sem sacrifí-

cio do corpo.
Alexei deu um murro no chão:

Renego o conforto e os espectáculos que


não doem. Renego a Magia e quero regressar
å origem.
O AQU ARIO 207

Albert olhou-o condescendente :



mania a vossa de sô me atribuírem
Que
truques. Isto é a sério.
Mesmo assim queremos regressar. Não

queremos ser joguetes de meninos-diabôlicos.


Albert levantou-se:

Com ou sem o vosso consentimento esta
coisa irá para diante. Sou o único senhor aqui
dentro.
Alexei cerrou os punhos (O s-l-i não o de-
fendia da colera) e sem saber porquê viu-se a
mirar os pulsos. Chamou a companheira:
Maga, não ouviste?

Ela levantou a cabega e


respondeu:

Ouvi.

Estamos å mercê dum paranôico. Tudo
por tua culpa, tudo porque para ti o Caminho
é a Magia !
Ela olhou-o longamente; depois, num gesto
de indiferenga, deitou novamente a
cabega nos

joelhos sem qualquer resposta.


Tudo normal?
Era a voz de Albert.

Tudo normal responderam



em coro os

dois Beta-Beta.
Alexei viu o outro debrugar-se, mas não
pôde notar o brilho de vitôria alastrando nas
suas pupilas claras, nem as agulhas, fios de

energia azulados e fosforescentes, oscilando


precisas como dados teoricos.
Capítulo XV

Um dia Riri recitara-lhe um poema:

Deixa correr a nave fantasma


E nôs dentro dela
Que interessa o mundo achado
O mundo buscado
Se estamos dentro dela
A nave fantasma

Riri sabia contar-lhe tão belas histôrias !


Quantos vega-vega teria ? Mil ? Um dia per-
guntara-lhe e ele respondera:

Mil é o limite-do-infinito
Mil fica para lá de todos os nûmeros
Sete é da Álgebra-Mágica
Três, o mais antigo,
Tem Feitico.

Nunca chegara a saber a idade de Riri.


Também não sabia a de Albert.
OAQUARIO 209

Este, como se a
pressentisse atrás de si, vol-
tou-se:

Então?!...
Ela encolheu os ombros:

Je suis. I am.
Atentou no líquido sanguinolento que caía
gota gota da
a clépsidra.

Perfeito !

Parfait, oui !
•—
-Se o não fosse também não faria mal.

Porque não dormes?


Alexei dorme... Ela olhava a clépsi-


dra, o desprender das gotas coloridas e trans-


parentes, riu: Fico insone â simples ideia

de ter de nascer de novo, furar a casca do


ovo...

Tens o T...

Tenho. Não gosto de deixar-te sô, pauvre
enfant ! A sua voz arrastava-se em irônico
...

recitativo :

Que significa viver


Que significa morrer

Se os outros
Ah, os outros
Não souberam da nossa vida e da nossa morte.

,—
Riri, Capítulo XX !
Ele prendeu rapariga a si. Maga,
a sur-

preendida, buscou-lhe as pupilas.


14
2IO 0 AQUARIO

Oh, não, nunca mais !


Libertando-se do amplexo fugiu. Na sala-
-biblioteca, estendido no chão, as pernas le-
vantadas ao alto, fumando com-
estava Alexei

prido cachimbo. Ela estendeu-se ao lado do


rapaz e silenciosamente tomou-lho das mãos
e

aspirou duas fumagas. Mantiveram-se assim


por longo tempo, calados, cachimbo a ir dum
o

ao outro em muda comunhão. Maga por fim


voltou para ele um rosto ausente:
De que cor será o Aquário, visto de

fora?... Talvez cor-de-burro-a-fugir.


Ou branco.
.

Branco? !

De-que-outra-cor-quererias-que-fosse ?

Cor-de-laranja ou furta-cores. Vou dese-


jar três coisas essenciais: a primeira que o Ovo
tenha a casca lisa e fina, pouco dura; a segunda
que essa casca seja duma-cor-qualquer-ou-sem-
-cor; a terceira... Ah, não desejo mais nada.
E tu, Alexei ?

Nada !
Continuaram a'fumar, calados. Maga fixava
um
ponto da parede, aquilo a que ela chamava
«A estúpida-rapariga-das-papoilas (a abelha
escondida na corola vai picá-la, provocar-lhe
dor, o s-l-i acorrerá em sua defesa e eu vou
rir, rir de prazer, Voilá ! Pobre rapariga-ex-
perimental, porque não foge-ela-da-abelha e
imprime um verdadeiro impulso åquele corpo
O AQU ARIO 211

estático, porque não cerra os punhos e esmaga


o réptil. Vou rir
quando o s-l-i der o sinal.
Idiota rapariga, transportada de-dimensão-
-para-dimensão, encerrada numa ampola...)

Alexei.

Ummm !

Nunca viste humanôides-em-ampolas ?


Fantasmas !

Eu «vi» o cheiro deles, repulsivo e insu-


portável a menos de cem graus; «vi-os» so-

frendo de doengas repelentes, envelhecerem —

o envelhecimento, uma variedade de Cancro

que os devora lenta, muito lentamente mor- —

rerem, tudo isto no espago mínimo de um ve-

ga-vega. O tempo é a sua coordenada mais


importante. Assustadoramente feios e depra-
vados; vivem em colonias denominadas Cida
des...
A rapariga calou-se e tirou uma fumaga.
Alexei, sem comentário, levantou-se e pôs mú-
sica (a música longa e preta como as pernas de
Henry. Henry um demônio vestido de preto,
as
pernas longas agitando-se num ritmo fre-
nético, possesso, pé assente na lua-4, o
um

outro na alfa-centauro, unindo galáxias, cal-


cando sôis: Carne-osso-músculo de que se-

riam feitas as pernas de Henry ? De nada, de


nada...)

Alexei !

Ummm !...
212 0 AQUARIO


Como consegues ficar tão longo tempo dei-
tado?

B simples.
Alexei ajeitou melhor as pernas.

Pareces o Louco abrigando-se da chuva-


-que-há-de-vir.
=
Entrego-me â Voluptuosidade

-
do Des-
-

tino. Nunca experimentara.


O teu destino provoca-me náuseas; temos


é que nos safar daqui e de Albert, definitiva-
mente... Albert é a causa-prôxima dos nossos
males.

«0 inferno são os outros». Agora deu-


-te para isso, Maga !

Talvez os Beta-Beta...

o melhor será fazeres oô. Vå,


Oh, Maga,
fecha os dorme sossegada.
olhos e

Queres que eu grite de horror?


per-

guntou ela de pupilas dilatadas, as pintas bran-


cas alastrando empapadas de fúria. —

Porque
deixamos que ele tome assim conta de nôs?
(A pega não tem contihuagão, vai acabar. Por-
que não nos matamos uns aosoutros?)
Um terrível estrondo. O painel em frente
comegou a escorrer
sangue verde, vermelho,
azul, sangue fosforescente castanho-doirado,
esborratava-se em cores sombrias e espessas,
fazia-se cenário. (No palco não-se-passava-
-nada. Isto é, no palco ensaiava-se a seguinte
cena:)

;■ .
.
^^L^iũjijy
O AQUARIO 213

( Alexei, porque destruíste Hutah ?


Ouve Alexei ... Pateta


Meu —

amor —

Pe-
queno bicharoco Magia Pássaro deFogo

palavrasterminadas em ão como Salomão).


Não gosto que me encerrem dentro do Zero.
Sou um garoto malcriado e fago diabruras.
0 Hutah esvaía-se em miríades de cores e a
Rapariga-das-Papoilas sem ancas já, metade
do rosto um borrão macabro, a outra metade
um sorriso plácido e estúpido, estendia as mãos

medrosas serenas. (Como adivinhar?)



Vais continuar a fazer fitas? Choramin-
gar?

Quem sabe !

Vou descrever-te o ponto exacto onde nos

encontramos, escuta...

Já sei, dentro do PipeLine.


...Idêntico åquele onde Rama desapare-


ceu.

Albert estava plantado å frente deles e acres-

centava :

Rama percorrera doze trânslagôes com-

pletas sempre em volta do mesmo centro —

ele
proprio...
Rindo, acrescentou:
Rama descansa em paz, ámen.

Bruscamente, como viera afastou-se. Os dois


olharam-se e, quase simultâneamente, ergue-
ram-se do chão da cabina, seguindo Albert até

å sala dos comandos. Aí resolvia-se todo um


3i4 OAQUARIO

jogo de paciência que lhes estava interdito. Os


dois Beta-Beta, sob a supervisão de Albert, e
em
imperturbáveis movimentos, dirigiam a
nave. Os seusolhos multifacetados não deixa-
vam nem
por instantes de vigiar os quadros
onde agulhas ultra-sensíveis tragam curvas,
esguicham pontos, se alargam em círculos
mais amplos, agugam ângulos, tremem inde-
cisas...
De súbito ouve-se um berro de Albert:

Oh ! ultrapassámos o cubo ! Não fiquem


,

com essa cara de lesmas,


pasmados como dois
idiotas. O cubo !
Albert, tomado de excitagão, afastou um dos
Beta-Beta, atrapalhando-lhe os movimentos:

Agora é possível rasgar a pele do odre,


nascer enfim !

Albert movia-se desaustinado, soltando ex-


clamagôes loucas e vibrantes, dando ordens.
Alexei avangou para a frente e, como
cego,
deu-lhe tremendo murro. O outro estatelou-se
no chão.

O rapaz berrou em seguida para os Beta-


-Beta:

Parem-me esta merda, senão desfago-vos,


mostrengos. Tu, maldigão da Dinâmica, tu,
cabega de GT, fagam-me andar isto ao contrá-
rio.
Como surdos, os robots continuavam a des-
bobinar, atentos, os mesmos gestos. Albert,
O AQU AR 10 215

o soerguido sobre os cotovelos, olhava-o


corpo
sorrindo, com divertida ironia:
Alexei, perplexo, virou-se para Maga:

Como obrigar estes safados a pôr-nos em


casa?
Ela, como resposta, curvou-se para Albert:

Porque desejas tanto aprisionar-nos ?


B o contrário que eu desejo: libertar-


-vos.

Oh ! ninguém se liberta de fora-para-den-


tro, diz o
Grande-Livro-de-Syma...
Albert levantou-se dum pulo:

Vou fazer-vos o que me pedem, mas pre-


vino-os: não voltem a magar-me que querem
brinquedos, magias. Desaparegam de vez da
minha frente ! Isso mesmo, vou levar os bebés
a casa e deixo-os a fazer oô.

Inesperadamente Albert agarrou o rosto da


rapariga e buscando-lhe os olhos de pupilas
sarapintadas perguntou com suave
meiguice:

B isso que queres, Maga ?


B isso exactamente respondeu ela,


rosto pálido, exangue.


Quero ir para casa

fazer oô.
A face de Albert fez-se sombria, quase lúgu-
bre. Maga vira já uma face parecida com
aquela, magoada e flácida. (Onde vira Maga
uma coisa assim doentia e sinistra ?) Fitaram-

-se longamente. Ela fechou e reabriu os olhos :

( desaparecera o velho já -entrevisto-antes-tal-


- - -
2i6 OAQUARIO

vez-no-país-dos-gatos-que-miam). Ele largou


a
rapariga e disse:

Vou deixar-te em casa como desejas.


Depois virando-se para um dos Beta:

Materializa-zona-pipe-line.

Impossível !

A é senhora-de-si !
nave responderam

simultâneamente os dois robots.


quase

Impossível? ! Quem vos disse? !


Albert, ele prôprio, ia tocar no maní-
pulo... Um medonho estrondo, um silvo,
ainda um guinchar seguido do conhecido bbu-
uuummmmbbbbuuuuummmbbbbuuuuummm-
mm, depois suspiro fofo dum balão que poi-
o

sou esvaziando-se, a escuridão total e o silên-


cio. Albert sabia-se deitado em qualquer parte,
largado ao comprido por sobre a dureza das
Coisas, sentia-lhes o pulsar subterrâneo, es-
pesso e pesado, um pulsar sem voz," crescente
e assombroso alastrando pelo interior do Nada:
Bum, Bum, Bum, Bum, Bum, Bum, Bum...
Com as mãos enclavinhadas ia tacteando o
chão em busca dos dois companheiros. Tinha o
rosto inundado de lágrimas e bebeu-as ávido.
Tocou num
depois num segundo. Um
corpo,
brago vivo
mexeu-se e
quente.

Estamos vivos disse alto, e riu, esten-


dendo-se ao comprido ao lado dos dois corpos.


De súbito as trevas foram varridas por um
facho de luz esbranquigada e tétrica emitida
O AQUARIO 217

pelo corpo dum dos Beta-Beta. O outro juntou-


-se-lhe e o facho de luz ampliou-se. Numa voz
sarcástica o primeiro explicou:

Youri Albert de Michigan, a nave deso-


bedeceu-nos. Que ordena?

Que ordena? —

-repetiu o outro.
Albert soergueu-se, ainda arquejante:

Nada. Para já, nada ! Esfregou os olhos,


parecia concentrar-se : —

Nunca imaginei que


os vossos corpos, nas trevas, fossem assim...
Nunca pensei...
Fitando os dois Beta-Beta lado a lado, en-
quadrados na porta de comunicagão entre a
sala-biblioteca, fosforescentes de luz branca,
tais duas tochas no-enterro-dum-rei-medieval,
disse ainda:

Sejam luz e deixem-nos em paz.


E durante muito tempo não se ouviu mais
nenhum som. Por fim Maga soltou um leve
suspiro disse num murmúrio :
e

Talvez estejamos mortos. C'est triste.


Cala-te

admoestou Alexei

B
■—
bela a voz humana. '

A rapariga levantou-se dum salto e olhou


em volta como besta enjaulada. Depois come-

gou a caminhar num monôlogo irritado:


'Não quero estar morta. Não quero. A dar


crédito a Rama, o Inconcebível, o-Volxex-sepa-
rado-do-corpo-do-Volvex, estamos encalhados
na
prôpria parede do Aquário ! Como não rir
2i8 O AQUARIO

do disparate dum Grande=Universo=Infinito=


=Ilimitado Mastodonte Sem Bordos Nem
= = = = =

=Fim contendo o aglomerado de ínfimos-infini-


tos-aquários-incomunicáveis-entre-si-ridículos-
-e-o-mais-que-segue... Oh, Alexei, acorda !
Vou dizer as coisas mais loucas e incríveis sô
para te provar que não estou morta.

Todos mortos.
O rapaz puxou-a por um brago. Dôcil, ela
estendeu-se entre ambos, os olhos abertos de
espantada ausência.
Um grande e espesso silêncio correu por
sobre eles.
Capítulo XVI

petite et charmante Maga emparedada.


La Até parece historia ! Não foi istoexacta-
mente o que eu quis, amigos, acreditem-me ! —

Albert, por entre froixos de riso, interrompia-


-se, por vezes adormecia, a cabega meio escon-
dida, enovelado como um bicho em sono hiber-
nal. Voltava: —
No final do espectáculo há
quem use desvendar os truques de que se ser-
viu. B um mau costume. A Magia tem uma
série de contra-sensos : primeiro lisonjeia a
criatura, depois pôe-lhe a inteligência em che-
que. Os truques eram todos de trazer-por-casa.
Assim seja ! Acontece que desta vez não se
trata dum truque : estamos mortos por dentro e

por fora.
•—

Eh, macacosAlbert interpelava os


! —

dois Beta-Beta eh, sábios da Grécia, vocês


não podem dar mais luz ! A escuridão ener-


va-me. Alexei dorme. B um morto muito bem

comportado. E tu, Maga, podes fechar também


220 0 A Q U A R I 0

os olhos. Sobretudo não fiques preocupada.


Aqui nada nos faltará, podemos até perpetuar
a
espécie se estiveres de acordo. Estás ou não
a ver ? Nôs, as criangas, uma família, a huma-

nidade completa. Vai pensando nisso, naquele


de nôs dois que mais desejas e amas. B conve-
niente que não haja confusôes como nos velhos
tempos e isto por uma questão de arrumo, com-
preendes? Desculpa o mau jeito e o prejuízo
que daí advém para ti, n'est-ce-pas? Escolhe
com consciência de causa e não digas depois

que é impossível desejar um sem desejar o

outro também, que Alexei é a ternura-agres-


siva e eu o apaixonado-surpreendente, que tra-
tando-se de indivíduos-sem-psicologia, sô em
feixe poderemos obter toda a gama de proprie-
dades, inacabados como são os seres huma-
nos...

Albert adormecia e acordava.


Maga vai partejar o Bem e o Mal, os fi-

lhos de Deus do Diabo, condenados a errar


e

nas trevas pelos séculos dos séculos, ámen.

De que cor será um Zero?


perguntou

Maga depois de longo silêncio. Levou as mãos


ao pescogo e
experimentou o frio do s-l-i de
encontro å pele. Tic-tac-tic-tac era a inquie-
tante sinfonia.

O tempo está vivo.


Alexei levantou-se num repente de ira:

O gajo pode tirar-nos daqui e vai fazê-lo.


O AQUARIO 221

Eu juro que está a


gozar-nos, que se diverte å
nossa custa. Ah, eu mato-o !
Alexei atirou violento murro å cabega de
Albert. A pancada seguinte foi perder-se de
encontro â
parede. Os dois homens agarra-
ram-se, rolando pelo chão da cabina, tentando
estrangular-se, esmagar-se um ao outro, numa
fúria cega. Eram um nô arquejante, olhos
e patas, raiva a soltar-se sem freio, ôdio em

movimento. A luta arrastava-se sem tréguas


nem fim.
Maga, encostando a cabega a um dos apare-
lhos de comando, desinteressada deles, come-

gou a cantar balada.


uma
^

Eles pararam de lutar, e olharam-se. Ela


surpreendeu-lhes a mirada vitoriosa, a forga
animal apaziguada. Interrompeu o canto para
dizer :

Lutar ! aí está a mais requintada forma


de amor.
Ambos estenderam as mãos para a rapariga,
cruzando-as por cima da cabega desta. Ela
olhou um, depois o outro. Bruscamente tapou
o rosto.
Eles mantiveram-se imôveis frente dela,
em

depois Alexei aproximou-se mais e com as


mãos em anel feitas garras rodeou-lhe o pes-

cogo alto e fino. Foi apertando, apertando sem-


pre, mais e mais, num jeito firme e sádico de
estrangulador. Ela cerrou os olhos. O rapaz,
222 OAQUARIO

por fim, deteve-se e numa carícia suave encos-


tou a cabega da rapariga no seu ombro, cur-
vando-se a sugar-lhe os lábios franzidos e pá-
lidos.
Albert voltou costas:

:
Cãezinhos-de-água !

Passaram escassos vega. Escassos infernos


de tempo.
(O nosso programa vai comegar dentro de
momentos. (Pausa). Cangão-de-giesta, de au-
tordesconhecido, cantada por Riri â sua Se-
nhora, Maga Moniz Ya-Tsé:

O Grande-Inquisidor tinha uma mulher-verde


Verde-verde-relva o corpo,
V erde-verde-mar os cabelos,
Os olhps duas esmeraldas
O Grande-Inquisidor era o seu escravo

Um dia ela disse:


Falaram-me dum Conspirador
Um homem que anda de terra-em-terra
A consertar relôgios (fingidos)
E depois os ponteiros
Giram em sentido contrârio
Amo o Conspirador
Uma luta se travou entre o Conspirador e Ele
Um Youri inventou o ôdio
Outro a injustiga e a dor
O AQUARIO 223

A angústia e 0 tédio eram moeda corrente


A inveja ao prego-da-chuva
Lavrava grande azáfama de inventos mortife-
[ros
Mas ninguém morria
Até que chegou a hora
Em que 0 Conspirador se adiantou
A morte presa p'las orelhas
E atirou com ela á cara do outro
Venceu-o, pisou-o, pôs-lhe um
pê na
barriga
Falou-lhe:

Todo 0 humano é inferior


Se não doseado com o quanto baste de tortura
Um bom assassinato e uma riquîssima intriga
De prepotentes algozes
E vitimas inocentes
Marcam todos os relôgios parados
Vou acertar o teu relôgio

Isso não, isso nunca
O meu relôgio não marca horas
Fica com a mulher-verde
Em troca do meu relôgio-parado

E por hoje, ouvintes, terminou a nossa


caros

emissão transuniversal. Good night, Good


morning.)
Maga ensimesmava-se, deixando que 0
tempo corresse por sobre si: tic-tac-tic-tac O
tempo inundava-os, submergia-os já.
não banquete de Nada, isso

Porque um
224 OAQUARIO

que está lá fora ? ! murmurou a rapariga.


— —

Porque não? O Nada sempre foi espesso e

comível, melhor que Coisa-Nenhuma.


Na mesma expressão aérea, idiotizada, le-
vantou-se e correu para a porta onde os dois

Beta-Beta feitos archotes lhe barraram a pas-


sagem. Enlouquecida, desatou aos pontapés
nos robots, arranhando-os até se ferir, deixar

as proprias unhas em sangue. Por fim, exaus-

ta, deixou-se escorregar e apoiou a cabega no


metal dos seus corpos. Solugava sem lágrimas.
Albert veio até junto dela, suave como uma
sombra :
■—
A experiência está terminada.
Ela olhou-o como morta:

Que experiência?

Esta... —

Abria os bragos, calava-se.


Maga manteve-se quieta e
apáticá. Não o en-
tendia.
-

Vou descer por aqui e


quando eu
chegar â
extremidade do OZ, tu, Beta-i, carregas neste
manípulo, tu, Beta-2 ! responsabilizo-te pelo
regresso. Good night. Good morning.
Como sonâmbulos Maga e Alexei debruga-
ram-se sobre o OZ.

Albert ! gritou ela.


Vou ter o meu banquete-Metafjsico-de-


-Nada. Ca-rre-gar !
Estarrecidos deslumbrados, escutaram o
e

pulsar gigantesco da máquina jorrando luz por


O AQUARIO 225

todos os poros, esferas vermelhas e azuis a

girar batendo nas trevas e o Bum, Bum, Buu-


ummmbbbummm bem característico. Maga
voltou-se :

(Oh ! não, não, é impossível!) Albert


assemelhava-se feto gigante nadando no
a um

líquido da ampola, exibia-se para lá do êcran-


-visor num esgar demoníaco e vingativo.
Maga abriu a boca e recuou. O rosto per-
seguia-a, os olhos desse rosto aumentavam,
espantosos e redondos.
■—
Socorro !,
Esbarrou em Alexei.

Está do lado de lá...


Vejo...,
Ela desnorteada até ao OZ, um saco
correu

hermêticamente fechado :

-Nunca há saída quando um de nôs a pro-


cura. Nunca.
Deixou cair os bragos tomada duma loucura
calma, inofensiva:

Ficaríamos os três lá fora, três Mortos
assustadores e imundos.

Não íamos fazer uma fita dessas, parva !



A voz de Alexei era fria e calma.
Maga plantou-se em frente do écran, face a

face com Albert. Levou as garganta, mãos â

sufocada de horror, mas manteve-se rígida,


sem desfitar:

(A fauna dos sacrificados tão medonha


15
226 OAQUARIO

como a dos sacrificadores. Syma, CapítuloXC.


Julgas que acredito em espíritos-de-bem-e-do-
-mal? Ah, miserável palhago!)
Alexei pegou-lhe nas mãos e beijou-as. No
mesmo instante eram atirados por terra e o

rosto de Albert desaparecia para sempre Ũo


ccran de visibilidade. Fazia-se silêncio. O Hu-

tah, sofisticada tragédia, ficava em frente da


ausência de Albert de Michigan este a engo-—

lir golfadas de metafísica, a alimentar-se do


prôprio corpo como um perfeito espírito, aquele
a abortar em cores, morrendo sem nascer (um
Hutah lúcido em-namoro-descarado-consigo-
mesmo- como é costume até perpetuar a es-
- - - -
- - -

pécie. E quem não comeu-comesse. Quem se

não alimentou de Melafísica que fizesse. o

Pois que a Metafísica sempre serviu de


justificacão aos mais belos crimes. Pois
que a metafísica é um tapete virado-do-avesso,
um pobre limpa-pés cheio de buracos. Todo

roto e comido dos ratos. Tem servido para que

garotos malcriados fagam mija e o ponham âs


costas. Quem pode parecer o Rei=louco
quer
com um mantodesses.Todosgostamdeparecer
oRei=louco, ninguém sabe porquê. Explica-se:
o espjrito é tacanho e encontra-se fechado na

barreira de sensagôes-percepgôes, um cosmos-


-miniatur a-rodeado-de-trevas-por todos os -la- - -

dos e sem imagens-luz que lhe aclarem a mar-


cha pelo infinito. Condenado, o pobre vai-se
. .
0 AQUARIO 227

enfeitando e fazendo buracos e gritando: S011


0 Rei-louco. Entre uma e outra ausência,
Maga
preparando-se para saborear os seus pequenos
e
maquiavélicos prazeres sem causa-nem-efeito
(lugares-comuns) como uma lagarta-da-couve
,

comendo e roendo. Um perfeito-rasga-a-manta.


Alexei fazendo parte do coro) .

Um solavanco. O écran ilumina-se, esférico


e
proximo, pontilhado de sois e cometas, tão
familiar !
Maga deitou a cabega nos joelhos e riu, riu
até que o riso se cansou e morreu esgotado
nos seus lábios. Alexei, deslizando como um

gato, anichou-se-lhe aos pés e murmurou:

^Estamos em casa.

Shiu!
Maga estendeu um brago. Ao alcance da sua
mão ficava o infinito de todos-os-dias, sôis
como que suspensos duma abobada escura, de

brinquedo, crescendo em bola fantástica de


fogo, aparecendo e desaparecendo num ápice.
Fechou osolhos feridos e deslumbrados :

Estamos em Casa.

r
Capítulo XVII

vermelha subiu para o dorso


Arapariga
da estátua. Daí gritou:

Alexei, ninguém acredita !


Os olhos de Maga estavam ao nível dos seus
pés e tinham uma expressão escarninha. (Ale-
xei tem a perfeita imaginagão dum «rhode»,
que é uma fraca imaginagão) .

Vem tu contar, Maga !


Maga é um «rhode» com

a fantasia dum
CY. Mente descaradamente !
Não mente.

Ora! .

Provas. Vamos âs provas.


Provas... Alexei subira por sua vez


para cima da estátua e sentara-se ao lado da


rapariga vermelha. Provas há: os Teta en-

contraram na Nave vestígios de Metafísica


Ih! Oh!

B um
corpo espesso, de cortar å Faca
A epiderme do Aquário.
O AQUARIO 229

Não sou o Robot Biolôgico.


Raio que o parta


O Porco.

-O espírito e a sua luxuosa futilidade.


Ámen.

Gozemos sobretudo o que é inútil re-


quinte, porque o útil e necessário, bem feitas
as contas ! Voilá.
. . .

Alexei passeava por sobre o mármore da


estátua, pisava-lhe os músculos tensos, a vida
aprisionada e vibrante:

Já agora pego um instante de silêncio â


memôria de Rama-o-Incompreensível e de Al-
bert-o-Grande, os dois únicos Mortais conhe-
cidos. Ámen.

Que arrepio !

A verem oMundo-de-Fora.
■—
A rirem-se da Humanidade.

Do Eu Colectivo

Uns Asnos !

Maga !
Alexei encontrou a companheira junto do
spaac cor-de-favo-de-abelha. Foi por detrás e
poisou a sua mão sobre a dela, pressionando-a
de encontro ao metal, interrompendo-lhe os
movimentos demorados. Um ciclo acabava de
fechar-se.
Entraram no spaac.
Em breve sobrevoaram o Campo=de=Abrô=
teas
230 0 AQU AR 10

Cinzento e alagado
Mal-assombrado
Corpo desolado
desamparado
(Riri em visita â Proto-Historia),

Maga manobrou o spaac, fazendo-o deslizar


lentamente, e como um pássaro preguigoso ir
poisar na ilha de areia, a mesma que um dia
baptizara com o seu nome.
Ele entrelagou os dedos nos dela:

Meu amor.

(O é uma propriedade dos serea não


amor

definitivamente formados, ou melhor, uma


característica específica dos corpos imaturos
que na ânsia do crescimento, de atingirem a
paz e estatismo adultos, se agarram a outros
seres em busca de equilíbrio. N enhum-Capî-

tulo-de-nenhum-Syma) .

Ela mordeu-lhe as mãos:


Muito doce, muito doce...


Saíram ambos do spaac e caminharam pela
pradaria alagada e meio gelada. Tudo era
branco-fosco-esverdeado.
(Um mundo onde ninguém precisa de
ninguém. )

Azul-com-pintas-brancas.
Je ne veux pas coucher seulement avec

toi. Je ne veux pas, mon amour. Je t'aime.


Mais oui, mon amour, j'ai déjå promis...
O AQU AR 10 231

(A linguagem deixou morrer o seu


signifi-
cado mas conserva a encantatôria sonoridade
da fonética.

Lá é o único sítio decente onde se


pode
existir.

Odeio-te.

Mil maneiras de cozinhar uma tragédia


indolor e cômoda.

Temos um habitáculo. )
Ela correu â frente do rapaz, blue-jeans es-
curos colados ås pernas longas, fino chemisier
a moldar-lhe o busto. Chamou em voz vi-
brante:

Vem, Alexei. Vem !


Depois de correrem, para a frente e para
trás, a direito e círculo, cansados, vol-
em

taram para o spaac, ela explicando qual-


quer-coisa-que-não-significava-coisas, ele dei-
xando-se arrastar contra-vontade-fingida. De-
pois supuseram estar a consertar o aparelho
de importante avaria. Alexei, âs tantas, desco-
briu que não havia avaria-nenhuma-nem-se-
quer-fingida, e deu um pontapé no spaac para-
-demonstrar-que-não-ligava-ås-fitas-dela.
Maga mordeu os lábios para não rir e mos-

trou-se furiosa-sem-estar-tal.
Ele (que não-estava-para-aí-virado) bei-
jou-a. (Competia-lhe colaborar no happy-end.)
232 O AQUARIO

O spaac baloigou å deriva, agitando-se im-


paciente de vida mecânica, descontínua. Por
instantes, no Anti-G afectado as agulhas os-
cilaram loucas, depois detiveram-se e desce-
ram até zero num movimento de
queda brusca.

Lisboa, 16 de Abril de 1962.


Composto e impresso na

IMPRENSA PORTUCAL-BRASIL

R. Henrique de Paiva Couceiro


VENDA NOVA —
AMADORA
[/?* ;/;|

.ij^
>íil
poema do estranho, profunda-
mente perturbante.
Nesse mundo perfeito, po-
voado de «super-homens» que se
mov.em para lá do ano 20000,

pareee numa luz .sidérea vinda


de nebulosas desconheeidas, rei-


na o tédio. Também reina a so-

lidão, entre seres que perderam


a faculdade de amar, sequer de
se entender verdadeiramente, e
a quem não res.ta nada além
dunla sede de comunicacão ja-
mais satisfeita, e de uma neoes-

sidade imensa de mistério, de


desconhecido e de esquecimento

de si prôprios. As três persona-


gens prineipais tentarão um dia
ultrapassar o «seu» mundo, por
ilimitado que lhes pareca, trans-
por as paredes d<> seu aquário e,

depois de atravessar o Nada,


atingir... o quê ?
Esta aventura, científica e me-

tafísica ao mesmo tempo, situa-


-se num plano muito diferente
da procura clássica dum «sen-

tido da vida»: busca-se, sim,


uma justifica?ão fundamental do
fenômeno da existência e da

consciência, para além dos pre-


textos que nos oferecemos diâ-
riamente. Neste livro de grande
densidade psicolôgica e filosô-
fica, escrito numa linguagem
altamente poética, quase cinti-
lante, Alice Sampaio quis des-
mistificar, talvez, o «progresso»
em que é
(no sentido limitado
tomado habitualmente tal con-

ceito), e explorar o destino do


homem quando, superados todos
os limites da nossa actual con-

di?ão, sô ficar, como hoje, o mis-


tério e a sua angústia, de solu-
jão sempre duvidosa.
Coleccão
Autores Portugueses
YOLUMES PUBLICADOS:

de Augusto Abelaira: Os Desertores * \ Palavra


é de Oiro * A Cidade das Flores * O Nariz de

Cleopatra.

de Fernanda Botelho: O Ângulo Raso * Calen-


dário Privado * A Gata e a Fábula.

de Branquinho da Fonseca: Bandeira Preta.

de Irene Lisboa: Voltar Atrás Para Quê? + Cr6-


nicas da Serra.

de Agustina Bessa Luís: O Manto * O Sermão


do Fogo.

de Vitorino Nemésio: Mau Tempo no Canal.

de Ferro Rodrigues: Lusitânia Expresso.

de Urbano Tavares Rodrigues: Vida Perigosa *


A Noite Roxa * Uma Pedrada no Charco * As Aves
da Madrugada * Nus e Suplicantes * Os Insub-
missos * Exílio Pcrturbado * As Máscaras Finais.

de Alice Sampaio : A Cidade Sem Espaco *

O Aquário.

de Mário Ventura: A Noite da Vergonha.

A PUBLICAR:

Luís Forjaz Trigueiros: O Carro de Feno.


Fernanda Botelho: Xerazade e os Outros.

Augusto Abelaira: As Boas Intencôes.


Mário Ventura: A Sombra das Árvores Mortas.

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