Você está na página 1de 163

1

2
1
Conselho Editorial:
Diego Moreau
Douglas P. Freitas
Johnny C. Vargas
Editor:
Douglas Freitas
Layout da capa:
Guilherme Smee
Organização:
Daniel Braga
Tradução:
Mariana Costa
Revisão:
Diego Moreau
Diagramação:
Fábio Junior
digitalcomics.com.br
Ilustração da abertura:
Oz
Ilustração do encerramento:
Leander Moura

2
SUMÁRIO

Introdução - Mestres do Terror..................................................5


Prefácio - O Terror como Regente.............................................7
Mary Shelley - Transformação...................................................19
Edgar Allan Poe - O Estranho Caso do Sr. Valdemar......45
Julia Lopes - Os Porcos..............................................................61
Ambrose Bierce - O Estranho..................................................71
Bram Stoker - O Hóspede de Drácula.................................81
H. P. Lovecraft - Dagon........................................................... 101
Lima Barreto - Sua Excelência............................................... 111
Viriato Corrêa - Madrugada Negra..................................... 117
Coelho Neto - A Casa “Sem Sono”....................................... 127
H. G. Wells - O Corpo Roubado............................................ 135
Posfácio ...................................................................................... 157

3
4
MESTRES DO TERROR

por Daniel Gárgula


Organizador/Canto do Gárgula

A paixão pela Literatura Fantástica veio do hábito diário


da leitura, que se não faço, sinto muita falta. Sem dúvida é um
treinamento recursivo do cérebro através do pensar, recor-
rente em técnica e efetivo na ampliação de nossos horizontes.
Ler é muito bom, porém consumir o terror é absolutamente
arrebatador.
Do convite do meu amigo e editor Douglas Freitas, para
a organização deste volume, a mente se lançou ao mar e foi
bem longe. Não somente por ser um consumidor ávido de
autores atuais e de outrora, mas por me entender, antes de
tudo, um leitor questionador.
Dando continuidade nessa análise sobre o terror, opto
pela maneira mais direta possível que é a reflexão sobre o
próprio gênero. Se a leitura pode ser vista como uma espada
cortante, esse estilo é a pedra que mantém este gume sempre
afiado. Ele te obriga a sair da sua zona de conforto e coloca
sua mente em estado de reflexão e alerta. Instigante, provoca-
dor e sempre crítico são algumas boas qualidades que ele traz
em seu cerne.
Em meu caminho na busca pelo entendimento do que é
produzido hoje e o seu porquê, acabo por navegar em mares
antigos, repletos de influências. Gosto muito de singrar por
estas águas que sempre exerceram em mim fascinação. Dado
o motivo será fácil perceber a escolha pelos nomes clássicos
que você encontrará nesta obra. Mestres do passado que
sedimentaram o futuro. Se hoje temos uma gama farta de op-
ções, nomes, títulos, estudos acadêmicos e coleções, devemos

5
principalmente a eles. São gigantes que nos emprestam seus
ombros para vermos e chegarmos além.
Seguido desta introdução está o prefácio do Prof. Dr.
Alexander Meirelles da Silva, que captania o Canal Fantas-
ticursos. Seu texto dá profundidade e contexto tanto dos
autores escolhidos como da época que viveram, com a quali-
dade e mérito acadêmico pelo qual é amplamente conhecido.
Agradecer é apenas o mínimo e o faço em nome da Editora
Skript.
Do recorte temporal que fizemos, que se estende da
segunda metade de século XIX à primeira metade do século
XX, teremos uma boa dimensão de como a narrativa de terror
se transformou através do tempo, sem perder sua essência
entretanto. Lembramos como é importante conhecer cada
um desses autores e a cada página damos mais um passo na
busca incansável pelo conhecimento.
Todos os textos aqui reunidos foram escolhidos com
muito carinho, seja você um leitor iniciante ou já habituado
a esse tipo de literatura. Este livro é apenas o começo de uma
proposta que visa fomentar o gênero do terror. Trago a certe-
za de que esse caminho será longo e muito especial.

Boa leitura!

6
O TERROR COMO REGENTE

por Prof. Alexander Meireles da Silva


UFG - Regional Catalão

O que determina o impacto de um conto de terror? Seu


efeito sobre quem o lê? Seu tamanho? Quem o escreve?
Aqui, em Pequenos Contos de Grandes Mestres do
Terror, você se depara com diferentes respostas para essas
questões na forma das histórias escritas por nomes que se
tornaram sinônimos desta expressão da literatura fantástica
vinculada à emoção mais ancestral do ser humano.
“A emoção mais antiga e mais forte da humanidade é
o medo, e o mais antigo e mais forte de todos os medos é o
medo do desconhecido” (LOVECRAFT, 2007, p. 13). A afir-
mação do escritor estadunidense H. P. Lovecraft encontra sua
expressão na infância do ser humano em nosso planeta diante
da percepção do fim da vida, do inesperado eclipse lunar,
da escuridão da noite, do reboar de terremotos e erupções
vulcânicas, dos uivos das feras e da impotência diante das
tempestades. Na sequência, desde a ascensão das primeiras
civilizações, novos agentes do medo foram introduzidos
na forma das guerras, invasões e epidemias (DELUMEAU,
1989). Dentro deste cenário, podemos dizer então que, desde
o seu surgimento, a humanidade vive sob o reino do Terror
(do latim Terror, “assustar”, “causar medo”).
Nesta leitura, se o Terror é, etimologicamente, o regente
do medo, os escritores e as escritoras que você tem agora em
mãos são os seus maiores emissários e emissárias.
Comecemos por uma delas.
Assim como Victor Frankenstein em relação à criatura
por ele construída e que assombrou o resto de sua existência,

7
Mary Wollstonecraft Shelley também teve o seu nome intrin-
secamente conectado à sua “progênie horrível”, como a escri-
tora chamou seu romance Frankenstein (1818). No entanto, a
filha do escritor e anarquista William Godwin, da precursora
do Feminismo Mary Wollstonecraft e esposa do poeta Percy
Bysshe Shelley, soube escapar tanto do peso do nome de sua
família quanto do fantasma de sua primeira e maior obra.
Nos anos seguintes a morte de seu marido em 1822,
Mary Shelley manteve uma intensa carreira literária como es-
critora e editora. Ela escreveu outros romances e dezenas de
contos marcados pelos mesmos temas góticos celebrados por
diferentes escritores e escritoras românticas. Nesta coletânea,
os leitores e leitoras poderão ter um exemplo do uso dessa
tradição no conto “Transformação” em que o tema do duplo
aparece ao lado de outros elementos literários praticados pe-
los jovens artistas das primeiras décadas do século XIX, com
que Mary Shelley conviveu e sobreviveu.
Perto do fim da vida, Mary Shelley voltou ao lago de
Genebra onde, em 1816, ela e Percy Bysshe Shelley visitaram
o poeta Lord Byron e seu médico particular John William
Polidori. Nesta segunda visita, porém, seu marido e amigos
estavam todos mortos. Essa constatação a fez se indagar,
conforme deixou registrado, “Ainda sou a mesma pessoa que
viveu aqui, a companheira dos mortos?”. De fato, ao olhar-
mos como Mary Shelley terminou a vida, sozinha, retraída da
vida social e com obras que contribuíram sobremaneira para
a literatura de terror, entendemos as palavras proferidas pela
sua criatura mais conhecida: “Se eu não posso inspirar amor,
eu vou causar medo.”.
Assim como Mary Shelley em seus últimos anos, do
outro lado do Atlântico, nas ruas de Boston, Edgar Allan
Poe também caminhava tendo a morte como companheira.

8
Os efeitos da perda da mãe biológica, da mãe adotiva e da
esposa – todas ainda jovens – sobre a mente do poeta e escri-
tor mostraram que o terror não precisava ter sua origem em
construções antigas ou seres sobrenaturais tradicionais, como
demônios e lobisomens. A mente humana seria o novo celeiro
de terrores.
Escrevendo entre o fim das décadas de 1820 e de 1840,
Poe estava imerso em um contexto de época marcada por
experimentações e avanços científicos em relação ao corpo
humano. Essa afirmação encontra seu exemplo na utiliza-
ção, por parte do escritor, de doenças, distúrbios da mente
e do corpo e teorias pseudocientíficas. Assim, a catalepsia, o
sonambulismo, a tafofobia e o mesmerismo se constituíram
como matéria-prima para narrativas insólitas que flertavam
com o sobrenatural dada a incompreensão da sua manifes-
tação. Isto é exatamente o que encontramos em “O Estranho
Caso do Sr. Valdermar”, onde constatamos a contribuição do
escritor para a literatura de terror. Se Mary Shelley anunciou
que a ciência seria a nova fonte de medo, em Edgar Allan
Poe, conforme o leitor e a leitora poderão comprovar, vemos
como essa mesma ciência pode nos revelar que a nossa mente
é um portal para mundos que não estamos preparados para
adentrar.
De volta à Inglaterra, e ainda falando de mundos, a se-
gunda metade do século XIX foi marcada pelo ápice e crise do
Império Britânico. Governando um império “onde o sol nun-
ca se põe” (SILVA, 2005, p. 232), a Inglaterra viu sua literatura
refletir o incômodo provocado pelo contato prolongado da
Europa com a cultura das colônias sob o seu controle. Essa
influência se manifestou na forma de um Gótico Colonial
expresso de duas formas: primeiro, na manifestação do im-
pacto sobre a identidade europeia advinda do convívio com

9
as crenças e práticas locais nas regiões coloniais (WARWICK,
1998, p. 261). Segundo, do temor da presença de indivíduos,
objetos e outros elementos proveniente das colônias ou de
regiões enxergadas pelo víeis do atraso em solo europeu
(SNODGRASS, 2005, p. 61).
O Gótico Colonial é exatamente o que você vai encon-
trar na leitura de “O Hóspede de Drácula” (1914), de Bram
Stoker. Neste conto, originado do romance Drácula (1897),
temos um exemplo da postura arrogante inglesa em relação
aos costumes locais de regiões consideradas como atrasadas.
Em virtude desse comportamento, o jovem narrador do conto
acaba colocando a sua vida em risco ao entrar em territórios
onde o racionalismo perde espaço para o sobrenatural. Neste
ponto, vemos como Bram Stoker contribuiu para a literatura
de terror ao mostrar que, em um mundo dominado pelas
luzes, as sombras mantém a sua presença e poder.
Falar de luzes na Inglaterra da virada do século XIX para
o XX é falar de H. G. Wells. O escritor inglês foi o introdutor,
na ficção científica, de diversos temas ligados a esta vertente
da literatura fantástica como, dentre outros, a viagem no tem-
po (A Máquina do Tempo/1895), a invisibilidade (O Homem
Invisível/1897) e a invasão de alienígenas hostis (A Guerra
dos Mundos/1898).
Neste processo, ao escrever sobre os avanços e usos
dos conhecimentos científicos de fim de século, H. G. Wells
também explorou as ameaças dessas descobertas. Nesta cole-
tânea, o leitor e a leitora encontram em “O Corpo Roubado” a
contribuição do pai inglês da ficção científica para a literatura
de terror em uma história alinhada com as diversas experiên-
cias e práticas da Parapsicologia na Era Vitoriana.
Assim, o terror de H. G. Wells se alinha aqui com o que
o crítico Bráulio Tavares classifica em Páginas de Sombra

10
(2003) como um subgênero do modo fantástico definido pela
tensão entre o racional e o irracional. Nas palavras do crítico,
a ciência gótica tem um pé na ficção científica, utilizando
muitos dos seus aparatos exteriores (cenários, personagens,
artefatos), mas que se recusam a lidar com a lógica, a verossi-
milhança e a plausibilidade científica que os adeptos de ficção
científica usam [...]. Na ciência gótica, a parafernália tecnoló-
gica e a pseudo-racionalização materialista estão a serviço de
situações bizarras, grotescas, impressionantes. (TAVARES,
2003, p.15)
Retornando aos Estados Unidos da América de Edgar
Allan Poe, mas desta vez na virada do século XIX para o sécu-
lo XX, temos no autor de O Dicionário do Diabo (1906) outro
mestre do terror que você encontrará nas páginas a seguir.
Ambrose Bierce foi jornalista, contista, poeta e, acima de
tudo, um mestre no uso da sátira e na criação de histórias per-
meadas pelo humor negro e o cinismo. No campo do fantás-
tico, seu conto “Um Incidente na Ponte de Owl Creek” é uma
das histórias mais antologizadas da literatura estadunidense
pela construção de uma atmosfera de suspense que prende a
atenção do público leitor devido à quebra da sequência dos
eventos, ao manejo do tempo subjetivo e a sua reviravolta
final.
Ambientando no mítico Velho Oeste, nas regiões do
Arizona, “O Estranho” evidencia a maestria de Ambrose
Bierce no campo do terror ao contar uma história envolvente,
fazendo com que o leitor e a leitora também se sintam parte
do grupo que ouve a história tenebrosa contada sob o luar ao
redor da fogueira do acampamento.
Mas o terror assumiu muitas formas nos EUA. No fim
da década de 1910 surgiu um dos grandes nomes do gênero
no século XX: Howard Phillips Lovecraft. Em 1917 o Cavalei-

11
ro de Providence dá início a sua carreira profissional com a
publicação do conto “Dagon”.
Nele, como pode ser visto nesta coletânea, já é possível
observar alguns elementos que se tornariam recorrentes na
obra do escritor e que foram assinalados pelo pesquisador
Filipe Furtado em O Fantástico: Procedimentos de Constru-
ção Narrativa em H. P. Lovecraft (2017), como a diegese-tipo
lovecraftiana redutível em três fases essenciais: Avidez inte-
lectual – Possessão – Destruição.
Na primeira fase, temos um personagem que busca
conhecimento ou tem curiosidade sobre algo e acaba por
encontrar um elemento ou pessoa que o conduz a uma busca.
Na segunda fase, essa busca se torna uma obsessão enquanto
a pessoa vai desvelando informações que cada vez mais a
envolvem. Por fim, na terceira fase, a colheita da descoberta é
a destruição física ou mental.
Aqui, em “Dagon”, somos apresentados aos mistérios
antigos anteriores à História e que constituem a contribuição
de H. P. Lovecraft para o terror. Para o criador do ser Cthulhu,
o verdadeiro terror está na descoberta de que existe uma
realidade aterradora dentro de nosso mundo e o ser humano
é irrelevante no grande plano do universo. A partir dessa
constatação, o que sobra é o vazio e o desespero.
E no Brasil?
A diversidade cultural nacional, aliada a desigualdades
econômicas históricas e a permanência na sociedade de estru-
turas e comportamento coloniais têm sido matéria-prima rica
para a literatura de terror em nosso país. Essa tradição se faz
presente em Pequenos Contos de Grandes Mestres do Terror
em diferentes temas e abordagens.
Comecemos com a escritora que se tornou imortal não
por meio de um título outorgado por homens, mas sim pela

12
sua genialidade artística.
Júlia Lopes de Almeida fez parte do grupo inicial de 40
escritores que discutiram a fundação da Academia Brasileira
de Letras, mas sua nomeação foi rejeitada quando a institui-
ção optou por seguir as regras da academia francesa, onde
mulheres não eram permitidas. Ainda assim, Júlia Lopes de
Almeida foi considerada por críticos, como José Veríssimo,
como uma das maiores romancistas de seu tempo ao lado de
Machado de Assis, Aluísio de Azevedo e Coelho Neto. Nas
páginas a seguir, vemos em “Os Porcos” a contribuição da
escritora para a literatura de terror na forma de contos curtos
de forte impacto visual e que exploram as mazelas históricas
do interior do Brasil.
Falando da Academia Brasileira de Letras, tratemos
desta vez de um dos seus primeiros imortais.
Considerado “O Príncipe dos Prosadores” pelos
leitores e leitoras do Rio de Janeiro do início do século XX, o
maranhense Coelho Neto foi um dos escritores mais prolíficos
da literatura brasileira. Como aponta Afrânio Coutinho em
A Literatura no Brasil (1969) ao considerá-lo “no domínio
da prosa, um escritor dos mais completos, devendo seus
romances e crônicas, contos e críticas, e mesmo suas peças de
teatro, ser colocados entre os melhores dos nossos melhores
autores.” (COUTINHO, 1969, p. 210).
Em “A Casa Sem Sono” vemos como o escritor aborda
um dos temas mais tradicionais da literatura fantástica: a casa
que afeta os seus habitantes. Mas, por que isso acontece? Sain-
do do lugar comum da casa assombrada, o escritor mantém
a incerteza quanto à explicação do fenômeno sobrenatural
ao longo da história prendendo também, neste processo, a
atenção do leitor e da leitora.
Voltando a falar de nossas mazelas, temos em Afonso

13
Henriques Lima Barreto um escritor de excelência que co-
nhecia de perto a realidade dos subúrbios e do preconceito
das elites no período da Belle Époque carioca. Essas foram as
matérias-primas das histórias desse artista pobre e negro,
sempre pautadas pela denúncia tanto da corrupção social do
Rio de Janeiro de virada de século quanto da marginalização
das massas na capital federal da época.
Em “Sua Excelência”, Lima Barreto aborda essas maze-
las pelo prisma do fantástico ao provocar um deslocamento
da realidade do protagonista, membro da classe abastada da
sociedade, para uma posição enxergada por este mesmo gru-
po social como terrível. Ilusão? Devaneio? No Rio de Janeiro
da República Velha (1889-1930) o terror é ser pobre.
Assim como seu conterrâneo e contemporâneo Coelho
Neto, o maranhense e também imortal Viriato Correia de-
senvolveu sua carreira literária no Rio de Janeiro publicando
colunas e contos em jornais como Correio da Manhã, Jornal
do Brasil e Folha do Dia, além de atuar na fundação do Fafa-
zinho e A Rua. Escritor prolífico, também colaborou em Ca-
reta, Ilustração Brasileira, Cosmos, A Noite Ilustrada, Para
Todos, O Malho e Tico-Tico. Ele alcançou destaque na cena
literária carioca em 1912 com a publicação de Contos do Ser-
tão, reunião de contos publicadas originalmente no Gazeta de
Notícias.
Em “Madrugada Negra”, publicado originalmente em
Novelas Doidas (1921), vemos o diálogo com outro mestre
da literatura fantástica – Guy de Maupassant – na forma de
um encontro entre amigos em uma cervejaria para narração
de histórias alegres. Dois deles, porém, tem apenas histórias
horríveis para contar.
Esses são os Mestres do Terror aqui reunidos pela Skript
para o seu deleite literário. Entre por sua conta e risco neste

14
universo de medos diversos. Boa leitura e tenha cuidado com
os terrores que espreitam nas trevas ao seu redor e, principal-
mente, dentro de sua mente.

15
BIOGRAFIA

COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil: vol. III – Realismo


– Naturalismo - Parnasianismo. 2 ed. Rio de Janeiro: Editorial Sul
Americana, 1969.

DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente 1300-1800: Uma


Cidade Sitiada. Trad. Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia
das Letras, 1989.

FURTADO, Filipe. O Fantástico: Procedimentos de Construção


Narrativa em H. P. Lovecraft. Rio de Janeiro: Dialogarts Publicações,
2017.

LOVECRAFT, H. P. O Horror Sobrenatural em Literatura. Trad.


Celso M. Paciornik. São Paulo: Iluminuras, 2007.

SILVA, Alexander Meireles da Silva. Literatura Inglesa para


Brasileiros: Curso Completo de Literatura e Cultura Inglesa para
Estudantes Brasileiros. Rio de Janeiro: Editora Ciência Moderna,
2005.

SILVA, Alexander Meireles da (2008). O Admirável Mundo Novo


da República Velha: O Nascimento da Ficção Científica Brasileira no
Começo do Século XX. Tese (Doutorado em Literatura Comparada).
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. https://
goo.gl/Au75GN. Acesso em 30.Ago.2020.

SNODGRASS, Mary Ellen. “Colonial Gothic”. In: _____.


Encyclopedia of Gothic Literature. New York: Facts On File, Inc.,
2005, p. 61-62.

TAVARES, Bráulio (Org.). Páginas de Sombra: Contos Fantásticos


Brasileiros. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003.

WARWICK, Alexandra. “Colonial Gothic”. In: MULVEY-ROBERTS,


Marie. The Handbook to Gothic Literature. New York: New York
University Press, 1998, p. 261-262.
16
Transformação

17
Mary Shelley
1797 - 1851

Iniciar nossa viagem pelo conto Transformação, de


Mary Shelley, não poderia ter sido melhor. Quando escre-
veu esta história, em 1831, a mulher madura, já empreende-
dora e há muito viúva, estava bem distante da adolescente
sonhadora e desafiadora que escreveu Frankenstein, em
1818. Nem por isso menos fantástica ou corajosa, que en-
frentava a vida com as rédeas nas mãos e continuava com a
mente afiada e talentosa que lhe rendeu lugar na história.
Exatamente a maturidade que a vida lhe ofereceu
que perceberemos na essência do conto a seguir. Veremos
como Shelley acaba por refletir sobre o poder do tempo e
das vivências sobre o indivíduo. Admirável, como só ela,
faz paralelo perfeito entre a juventude, tão cheia de si, em
confronto com o olhar adulto, prudente e conhecedor de
alguns caminhos.
Ela busca no sobrenatural o mestre certo para ad-
ministrar as lições que o protagonista acaba vivenciando
durante o conto. Seja o tempo ou o desconhecido, ninguém
sairia de uma experiência assim sem perceber em si uma
transformação profunda.

Arte da página anterior por G. Pawlick


Transformação foi publicado originalmente em 1831
18
Transformação
A partir daqui essa minha carcaça foi retorcida
Com uma agonia lamentável
O que me forçou a começar minha história
E então isso me libertou
Desde então, a uma hora incerta
Essa agonia retorna
E até que meu conto medonho seja contado
Esse coração dentro de mim queima
Coleridge - Velho Marinheiro

E u ouvi dizer que, quando qualquer aventura estra-


nha, sobrenatural e necromântica ocorre com um ser humano,
este ser, por mais desejoso que ele possa estar para esconder a
mesma, sente-se, em certos períodos, assolado como que por
um terremoto intelectual e é forçado a desnudar as profun-
dezas internas de seu espírito para outro. Eu sou testemunha
dessa verdade. Jurei a mim mesmo que nunca revelaria a um
ser humano os horrores aos quais eu certa vez, por excesso de
orgulho diabólico, me entreguei. O santo homem que ouviu
a minha confissão e reconciliou-me com a igreja, está morto.
Ninguém sabe que uma vez...
Por que não deveria ser assim? Por que contar uma his-
tória de tentação ímpia da Providência, e humilhação da alma
subjugada? Por quê? Respondam-me, vós que são sábios nos
segredos da natureza humana! Eu apenas sei que assim é e,
apesar da forte determinação - de um orgulho que muito me

19
domina - da vergonha e até mesmo de medo de me tornar
odioso a minha espécie, eu devo falar.
Gênova! Minha orgulhosa cidade de nascença! Con-
templo as ondas azuis do Mar Mediterrâneo, tu se lembras
de mim na minha infância, quando seus penhascos e pro-
montórios, teu céu brilhante e vinhedos exultantes, eram o
meu mundo? Bons tempos! Quando para o coração jovem, o
universo delimitado deixa, por sua própria limitação, escopo
livre para a imaginação, acorrenta nossas energias físicas e,
por um único período de nossas vidas, a inocência e o prazer
estão unidos. No entanto, quem pode olhar para trás, para
a infância, e não se lembrar de suas tristezas e seus medos
angustiantes. Eu nasci com o mais arrogante, imperioso, e
indomável espírito que um ser mortal poderia ser dotado. Eu
tremia perante ao meu pai apenas e ele, generoso e nobre,
mas caprichoso e tirânico, em uma vez fomentado e verifica-
do a impetuosidade selvagem do meu caráter, fez a obediên-
cia necessária, mas sem inspirar respeito pelos motivos que
guiavam suas ordens. Ser um homem livre, independente
ou, em melhores palavras, insolente e dominador. Eram as
esperanças e orações do meu coração rebelde.
Meu pai tinha um amigo, um nobre rico genovês que,
em um tumulto político, foi subitamente banido e sua pro-
priedade foi confiscada. O Marquês Torella foi para o exílio
sozinho. Assim como meu pai, ele era um viúvo: ele tinha uma
criança, a jovem Juliet, que foi deixada sob a tutela de meu
pai. Eu deveria ser, certamente, um mestre descortês com a
menina encantadora, mas fui forçado por minha posição a me
tornar seu protetor. Uma variedade de incidentes juvenis ten-
deram todos a um ponto: fazer Juliet ver em mim um refúgio
sólido e me fez ver nela alguém que deveria perecer através
da suave sensibilidade, de sua natureza visitada com rudeza,

20
mas por meus cuidados de guardião. Nós crescemos juntos.
O florescer das rosas em maio não era mais doce do que esta
querida menina. Uma irradiação de beleza se espalhava sobre
suas feições. Suas formas, seu andar, sua voz, o meu coração
lamenta, ainda hoje, ao me lembrar de toda confiança, delica-
deza, amor e pureza que foram consagrados naquela celestial
moradia.
Quando eu tinha onze e Juliet oito anos de idade, um de
meus primos, muito mais velho do que um ou outro, parecia-
-nos mesmo um homem, prestou bastante atenção em minha
companheira de brincadeira. Chamou-a de sua noiva, e lhe
pediu em casamento. Ela recusou, e ele insistiu, puxando-a
contra a vontade para si. Com a expressão e as emoções de
um maníaco eu me atirei nele, esforcei-me para puxar sua
espada, e me agarrei a sua garganta com a feroz resolução
de estrangulá-lo. Ele foi obrigado a chamar auxílio para se
libertar de mim. Naquela noite conduzi a Juliet à capela de
nossa casa. Eu a fiz tocar as relíquias sagradas, devastei seu
coração infantil e profanei seus lábios com a promessa de que
ela pertenceria a mim, somente a mim.
Bem, aqueles dias do passado se foram. Torella retor-
nou em alguns anos, e tornou-se mais rico e mais próspero do
que nunca. Quando eu tinha dezessete anos meu pai faleceu,
ele tinha ido de magnífico à prodigalidade, Torella se rego-
zijou do fato de que minha menor idade forneceria recursos
para uma oportunidade de reparar minhas fortunas. Juliet e
eu tínhamos noivado ao lado do leito de morte de meu pai,
Torella se tornaria um segundo pai para mim.
Eu desejava ver o mundo e me saciei. Eu fui a Florença,
a Roma, a Nápoles, então eu passei para Toulon e alcancei fi-
nalmente o que, por um tempo considerável, era o desejo que
queimava em meus ossos, Paris. Havia uma agitação em Paris

21
então. O pobre Rei Charles VI, em uma hora com a mente sã,
em outra um louco, uma hora um monarca, e em outra con-
trário a escravidão - era a perfeita zombaria da humanidade.
A Rainha, o Delfim, o Duque de Borgonha, sucessivamente
amigos e inimigos que se encontram entre festas prodigiosas
e derramamento de sangue por rivalidade, estavam cegos ao
estado miserável de seu país e os perigos destinados a ele.
Entregaram-se completamente a apreciação dissoluta ou a
discórdia selvagem. Meu caráter ainda me escoltava. Eu era
arrogante e obstinado. Eu amava a exposição e, sobretudo, eu
joguei todo o controle para longe de mim. Quem podia me
controlar em Paris? Meus amigos novos estavam ávidos para
nutrir as paixões que lhes fornecessem prazeres. Eu era tido
como belo, era o mestre do cavalheirismo, e era desconectado
de qualquer grupo político. Tornei-me o favorito de todos,
minha presunção e arrogância eram perdoados em alguém
tão novo. Transformei-me em uma criança mimada. Quem
podia me controlar? Não as cartas e conselhos de Torella. Eu
era controlado somente por uma necessidade que me visitava
na forma de um bolso vazio, mas havia meios para preencher
este vazio. Acre após acre, propriedade seguida de proprie-
dade eu vendi. Minhas roupas, minhas joias, meus cavalos e
seus equipamentos, eram quase incomparáveis a maravilhosa
Paris, enquanto as terras de minha herança passaram para a
posse de outros.
O Duque de Orleans foi atacado e assassinado pelo
Duque de Borgonha. Medo e terror possuíam toda Paris. O
Delfim e a Rainha se calaram, cada forma de prazer foi sus-
pensa. Eu me cansei dessa situação e meu coração ansiava
pelas casas de minha infância. Eu era quase um mendigo,
mas ainda assim eu iria lá reivindicar minha noiva e recons-
truir minhas fortunas. Alguns empreendimentos acertados

22
como comerciante me fariam rico novamente, no entanto,
eu não voltaria disfarçado de humilde. Meu último ato foi
me desfazer de minha propriedade remanescente perto de
Albaro pela metade do valor, em troca de dinheiro rápido.
Então eu despachei todos os tipos de artífices, tapeçarias,
móveis de esplendor real, para preencher a última relíquia
da minha herança, meu palácio em Gênova. Demorei-me
um pouco mais, ainda envergonhado com papel de retorno
pródigo que eu temia ter que desempenhar. Enviei meus
cavalos. Um inigualável ginete espanhol eu despachei para
minha prometida noiva, seus jaezes adornados com joias e
um tecido de ouro. Em cada parte eu mandei entrelaçar as
iniciais de nossos nomes, “Juliet e Guido”. Meu presente me
colocou em graças sob os olhos dela e de seu pai. Entretanto,
retornar como um esbanjador proclamado, marcado como
prodígio impertinente, possivelmente alvo de escárnio e
encontrar sozinho as censuras ou insultos dos meus conci-
dadãos, não era uma perspectiva atraente. Como um escudo
entre mim e a censura, convidei alguns dos meus mais impru-
dentes camaradas para me acompanhar. Assim fui armado
contra o mundo, escondendo um sentimento irritadiço, em
parte medo e em parte penitência, com uma demonstração
insolente de bravata e vaidade satisfeita.
Cheguei em Gênova. Percorri a calçada do meu palácio
ancestral. Meu andar orgulhoso não era um indicativo do
meu coração, pois sentia profundamente que, embora cer-
cado por todo luxo, eu era um mendigo. O primeiro passo
que dei para reivindicar Juliet, deve me declarar amplamen-
te como tal. Eu li desprezo ou pena no olhar de todos. Eu
imaginava, tão apropriada é a consciência para imaginar o
que merecia, que ricos e pobres, jovens e idosos, todos me
olhavam com escárnio. Torella não se aproximou de mim.

23
Não é de se admirar que meu segundo pai espere de mim a
consideração de um filho em procurar primeiro por ele, mas
irritado e atormentado pela sensação de minhas insensatezes
e deméritos, lutei para jogar a culpa nos outros. Mantivemos
orgias noturnas no palácio Carega. Para noites sem dormir
e desenfreadas, seguiam manhãs apáticas e ociosas. Na hora
da Ave Maria nós mostrávamos nossas graciosas pessoas
nas ruas, zombando dos cidadãos sóbrios, lançando olhares
insolentes para as mulheres que se encolhiam. Juliet não se
encontrava entre elas, não, se ela estivesse lá a vergonha teria
me levado embora, se o amor não me jogasse aos seus pés.
Eu me cansei disso. De repente, fiz uma visita ao
Marquês. Ele estava em sua casa, uma entre as muitas que
cobrem o subúrbio de San Pietro d’Arena. Era o mês de
maio naquele jardim do mundo, onde as flores das árvores
frutíferas desapareciam entre folhagem espessa e verde, as
videiras se projetavam ao longe, o chão coberto com as flores
de oliveira caídas, os vaga-lumes estavam na cerca de murta,
céu e a terra cobriam-se com manto de insuperável beleza.
Torella me recebeu gentilmente, embora com seriedade, e até
sua sombra de descontentamento logo desapareceu. Tinha
alguma semelhança com meu pai, uma aparência e tom de
ingenuidade juvenil, ainda à espreita, apesar de meus delitos,
amoleceu o coração do bom velho. Ele mandou buscar a filha
e me apresentou a ela como seu noivo. A câmara tornou-se
santificada por uma luz sagrada enquanto ela entrava. Era
dela aquela aparência de querubim, aqueles olhos grandes
e suaves, bochechas com covinhas e boca de doçura infantil
que expressa a rara união de felicidade e amor. A admiração
primeiro me possuiu. Ela é minha! Foi a segunda emoção or-
gulhosa e meus lábios se curvaram com triunfo altivo. Eu não
tinha sido o queridinho das beldades francesas se não tivesse

24
aprendido arte de agradar o coração suave de uma mulher. Se
para os homens eu era arrogante, a cortesia prestada a elas era
mais contrastada. Eu iniciei meu cortejo com mil galanteios a
Juliet que, prometida a mim desde a infância, nunca admitiu
a devoção de outros e que, embora habituada a expressões de
admiração, não era iniciada na linguagem dos amantes.
Por alguns dias tudo correu bem. Torella nunca fez
alusão à minha extravagância, ele me tratou como seu filho
favorito, mas chegou a hora em que, ao discutirmos as pre-
liminares da minha união com a filha, sua visão justa das
coisas se nublou. Um contrato havia sido elaborado durante
a vida de meu pai. Eu havia tornado isso, de fato, nulo por
ter desperdiçado toda a riqueza que deveria ser comparti-
lhada entre Juliet e eu. Torella, por consequência, escolheu
considerar esse vínculo como cancelado e propôs outro o
qual, embora a riqueza agraciada fosse imensuravelmente
aumentada, havia tantas restrições quanto ao modo de gas-
tá-la, que eu vi independência apenas na carreira livre que
fora dada à minha própria vontade imperiosa. Provoquei-o
afirmando que ele estava se aproveitando de minha situação
e recusei-me inteiramente a concordar com suas condições.
O velho brandamente se esforçou para me trazer à razão. O
orgulho despertado tornou-se o tirano do meu pensamento,
o ouvi com indignação e o repeli com desdém.
- Juliet, tu és minha! Não trocamos votos em nossa in-
fância inocente? Não somos um à vista de Deus? E teu pai, de
coração e sangue frio, nos dividirá? Seja generosa, meu amor,
seja justa, não leves embora um presente, o último tesouro de
teu Guido, não retire seus votos. Vamos desafiar o mundo e
reduzir a nada os problemas da idade, encontramos em nosso
afeto mútuo um refúgio de todos os males.
Um demônio eu devo ter sido, com tanto sofisma para

25
me empenhar em tentar envenenar aquele santuário de
pensamentos sagrados e amor terno. Juliet se encolheu de
medo. Seu pai era o melhor e o mais gentil dos homens, e
ela se esforçou para me mostrar como tudo de bom se se-
guiria ao obedecê-lo. Ele receberia minha submissão tardia
com fervoroso carinho, e um perdão generoso seguiria meu
arrependimento. Palavras dispensáveis para uma filha jovem
e gentil, para usar com um homem acostumado a fazer sua
vontade lei e assentir em seu próprio coração um déspota tão
terrível e severo, que em nada prestaria sua obediência se não
fosse em seus próprios desejos imperiosos! Meu ressentimen-
to cresceu com resistência. Meus companheiros selvagens
estavam prontos para adicionar combustível a fogueira.
Estabelecemos um plano para levar Juliet. A primeira vista
parecia um sucesso. No meio do caminho, em nosso retorno,
fomos alcançados pelo pai agoniado e seus assistentes. Um
conflito se seguiu. Antes que a guarda da cidade chegasse
para decidir a vitória a favor de nossos antagonistas, dois dos
serventes de Torella foram perigosamente feridos.
Esta parte da minha história pesa mais fortemente em
mim. Homem mudado como eu sou, eu abomino a mim mes-
mo ao recordar. Que ninguém que ouça essa história jamais
tenha se sentido como eu. Um cavalo levado à fúria por um
cavaleiro armado com esporas farpadas, não era mais escravo
do que eu era à tirania violenta do meu temperamento. Um
demônio possuía minha alma, irritando-a até loucura. Eu
senti a voz da consciência dentro de mim, mas se eu cedi a
ela foi por um breve instante, apenas um momento após ser
assolado, como se por um turbilhão, conduzido pelo fluxo
de raiva desesperada, o brinquedo das tempestades geradas
pelo orgulho. Eu fui preso e, por súplica de Torella, libertado.
Mais uma vez voltei-me para a França, país infeliz, e então,

26
perseguido por flibusteiros e gangues de soldados sem lei,
ofereceram um refúgio bem-vindo a um criminoso como
eu. Nossos planos foram descobertos. Fui condenado ao
banimento e, como minhas dívidas já eram enormes, minha
propriedade restante foi colocada nas mãos de comissários
como pagamento. Torella novamente ofereceu sua mediação,
exigindo apenas minha promessa de não retomar minhas
tentativas suprimidas contra ele e sua filha. Eu rejeitei suas
ofertas e imaginei que eu triunfaria quando fui expulso de
Gênova para um exílio solitário e sem um tostão. Meus com-
panheiros haviam partido, foram expulsos da cidade algumas
semanas antes, e já estavam na França. Eu estava sozinho,
sem amigos, sem espadas ao meu lado e nem ducado em meu
bolso.
Vaguei pela costa do mar, com um turbilhão de paixão
possuindo e rasgando minha alma. Era como se um carvão
em brasa chamuscasse meu peito. No começo eu meditei
sobre o que eu deveria fazer. Eu me juntaria a um bando de
flibusteiros. Vingança! A palavra parecia um bálsamo para
mim, eu a abracei e a acariciei até que, como uma serpente,
ela me picou. Então, novamente eu abjuraria e desprezaria
Gênova, aquele cantinho do mundo. Eu voltaria a Paris, onde
muitos dos meus amigos se infestavam, onde meus serviços
seriam avidamente aceitos, onde eu arrancaria fortuna com
minha espada e poderia, com algum sucesso, fazer meu local
de nascimento insignificante, e os falsos Torella lamentariam
o dia em que eles expulsaram um novo Coriolano de suas
paredes. Voltaria assim a Paris, a pé, um mendigo, e me
apresentaria em minha pobreza a quem eu já havia entretido
suntuosamente? Havia um fel no mero pensamento de tal
coisa.
A realidade das coisas começou a surgir em minha men-

27
te, trazendo o desespero em seu rastro. Por vários meses eu
fui um prisioneiro, os males da minha masmorra chicotearam
minha alma à loucura, mas eles haviam subjugado minha
estrutura corporal. Eu estava fraco e debilitado. Torella. Ele
usara de mil artifícios para administrar o meu conforto, eu
tinha detectado os mesmos, desprezado todos e colhi os
frutos de minha teimosia. O que se podia fazer? Deveria eu
me agachar diante de meu inimigo e implorar por perdão?
Seria preferível morrer dez mil mortes! Eles nunca deveriam
obter essa vitória! Ódio. Jurei ódio eterno! Ódio de quem? A
quem? De um proscrito errante contra um poderoso nobre.
Eu e meus sentimentos não eram nada para eles, já haviam
esquecido de um ser tão indigno. E Juliet! Seu rosto angeli-
cal e sua forma silfídica brilhavam entre as nuvens do meu
desespero com vaidosa beleza, pois eu a perdi, a glória e a
flor do mundo! Outro a chamará de dele! Aquele sorriso do
paraíso abençoará outro! Mesmo agora, meu coração falha
dentro de mim quando retorno a essa linha de pensamento
sombria.
Agora reduzido quase às lágrimas, delirando em minha
agonia, ainda vaguei ao longo da costa rochosa que, a cada
passo se tornava mais selvagem e desolada. Pedras e preci-
pícios embranquecidos davam vista à um oceano sem ondas.
Cavernas negras se abriam e, para sempre entre os recessos
marítimos murmuravam e corriam as águas em vão. Agora
meu caminho estava praticamente barrado por um abrupto
promontório, tornando quase inviável pelos fragmentos
caídos do penhasco. A noite era quase palpável quando no
alto mar surgiu, como se num acenar de uma varinha de um
mago, uma teia turva de nuvens manchando o tardio céu ín-
digo, escurecendo e perturbando as, até então plácidas, pro-
fundezas. As nuvens tinham estranhas e fantásticas formas,

28
elas mudavam, se mesclavam e pareciam serem conduzidas
por um poderoso feitiço. As ondas levantavam suas cristas
brancas, o trovão primeiro murmurou, em seguida, rugiu
além da imensidão das águas, que ganharam um intenso tom
de roxo salpicado com o branco da espuma.
O lugar onde eu estava mostrava, de um lado um vasto
oceano, e do outro era barrado por um sólido promontório.
De repente, ao redor desse Cabo surgiu, impulsionado pelo
vento, um navio. Em vão, os marinheiros tentaram forçar um
caminho para o mar aberto, o vendaval os levava em direção
às rochas. Ele perecerá! Todos a bordo perecerão! Quisera eu
estar entre eles! E para meu jovem coração a ideia de mor-
te veio, pela primeira vez, misturada com alegria. Foi uma
terrível visão o navio lutando com seu destino. Mal podia
discernir os marinheiros, mas os ouvi. Logo tudo se acabou!
Uma pedra, apenas coberta pelas ondas intensas e assim,
despercebida, estava à espera de sua presa. Um estrondo
de trovão ressoou sobre minha cabeça no momento em que,
com um choque assombroso, o esquife quebrou sobre seu
inimigo invisível. Em um breve espaço de tempo, o navio se
partiu aos pedaços. Eu permaneci em segurança, e lá esta-
vam meus semelhantes lutando irremediavelmente contra a
aniquilação. Parecia até que os vi lutando para sobreviver,
de tão claramente que ouvi seus gritos, vencendo os uivos
das ondas em sua agonia estridente. A sombria arrebentação
jogava aqui e ali os fragmentos do naufrágio e logo o mesmo
desapareceu. Eu tinha estado fascinado a olhar até o final, por
fim eu afundei de joelhos eu cobri meu rosto com as mãos.
Eu novamente olhei para cima, algo estava flutuando sobre
as ondas em direção à costa. Se aproximou e se aproximou.
Era uma forma humana? Ela cresceu mais distinta e, em uma
última onda poderosa, erguendo toda a carga, a depositou

29
em cima de uma rocha. Um ser humano carregando um baú
marítimo!
Um ser humano! Ainda que, era mesmo um? Certamen-
te um como aquele nunca existira antes: anão, aleijado, vesgo,
com características distorcidas e corpo deformado até se tor-
nar um horror de se contemplar. Meu sangue, recentemente
aquecido frente a um semelhante arrancado de uma tumba
aquática, congelou em meu coração. O anão desceu de seu
baú, tirou seu cabelo liso e esparso de seu rosto odioso.
- Por São Belzebu! - Ele exclamou, - eu devo ter me exce-
dido. Ele olhou em volta e me viu. - Oh, pelo demônio! Aqui
está outro aliado do todo poderoso. A que Santo você oferece
preces, amigo, se não para o meu? No entanto, eu não me
recordo de você a bordo.
Eu tremi diante do monstro e sua blasfêmia. Mais uma
vez ele me questionou e eu murmurei alguma resposta inau-
dível. Ele continuou.
- Sua voz é abafada por este rugido dissonante. Que
barulho o grande oceano faz! Estudantes estourando de suas
prisões não são mais ruidosos do que essas ondas soltas para
brincar. Elas me perturbam. Não aturarei mais sua briga
temporal. Silêncio, Ancião! Ventos, avante! Para suas casas!
Nuvens, voem para as antípodas, e deixem nosso céu claro!
Enquanto ele falava, ele estendeu seus dois longos e es-
guios braços, similares a patas de aranhas, e pareceu abraçar
com eles a extensão diante dele. Seria um milagre? As nuvens
se quebraram e fugiram. O céu índigo espreitou e então se
espalhou em campo calmo de azul acima de nós. O vendaval
tempestuoso foi trocado para a suave brisa do Oeste. As on-
das diminuíram para uma maré baixa e o mar ficou calmo.
- Gosto da obediência mesmo nesses elementos estú-
pidos - disse o anão. - Ainda mais da mente indomável do

30
homem! Foi uma tempestade bem feita, você deve admitir,
tudo minha própria criação.
Era tentadora a providência em trocar conversa com
este mágico, mas o poder, em todas as suas formas, é vene-
rável para o homem. Temor, curiosidade, firme fascínio, me
atraiu para ele.
- Venha, não temas, amigo - disse o miserável. - Eu sou
bem-humorado quando agraciado, e algo me agrada em seu
corpo bem proporcionado e bela face, embora você pareça
um pouco desolado. Você sofreu pela terra um naufrágio.
Talvez eu possa aliviar a tempestade de seu destino como
eu fiz ao meu próprio. Seremos amigos? - E ele estendeu sua
mão, eu não podia tocá-lo. - Bem, então companheiros, isso
servirá também. E agora, enquanto eu descanso depois da
adversidade que acabei de sofrer, diga-me por que, jovem e
galante como parece, você vagueia assim sozinho e abatido
nesta costa selvagem do mar?
A voz do miserável era arranhada e horrível, e suas con-
torções enquanto ele falou foram assustadores de se ver. No
entanto, ele conseguiu uma espécie de influência sobre mim,
que eu não poderia dominar, e eu disse-lhe a minha história.
Quando terminei, ele riu alta e longamente, as rochas ecoa-
ram de volta o som, o inferno parecia gritando ao meu redor
- Oh, tu, primo de Lúcifer! - Disse ele - então tu caíste por
seu orgulho e, embora brilhante como o Filho da Manhã,
estás pronto para desistir de sua boa aparência, tua noiva,
seu bem-estar, em vez de submeter-te à tirania do bem. Eu
honro tua escolha, pela minha alma! Então tu fugiste, deu-se
por rendido e pretendia definhar nestas rochas e deixar os
pássaros bicarem seus olhos mortos, enquanto teu inimigo e
tua prometida se alegram em tua ruína. Seu orgulho é estra-
nhamente semelhante à humildade, penso eu.

31
Enquanto ele falava mil pensamentos me apunhalaram
no coração.
- O que acha que eu deveria fazer? - Eu chorei.
- Eu? Ah, nada. A não ser deitar e fazer suas preces antes
de morrer, mas se eu fosse você, eu sei que ato deveria ser
cometido.
Eu me aproximei dele. Seus poderes sobrenaturais fize-
ram-no um oráculo aos meus olhos. Ainda assim uma estra-
nha emoção sobrenatural corria através de minha estrutura
quando eu disse:
- Fale! Ensine-me! Que ato você aconselha?
- Vingança a si mesmo, homem! Humilhe seus inimigos!
Coloque o teu pé sobre o pescoço do velhote e possua a filha
dele!
- Para o Leste e Oeste eu me virei - eu chorei - e não en-
contrei maneiras! Se eu tivesse ouro, muito poderia alcançar,
mas pobre e solteiro, sou impotente.
O anão estava sentado em seu baú enquanto ouvia
minha história. Ele se levantou, tocou uma mola e ele se
abriu! Que mina de riquezas de joias resplandecentes, ouro
brilhando, e prata pálida eram exibidas lá. Um desejo louco
de possuir esse tesouro nasceu dentro de mim.
- Sem dúvida - eu disse. - Um ser tão poderoso como
você poderia fazer todas as coisas.
- Não - disse o monstro humildemente. - Sou menos oni-
potente do que pareço. Algumas coisas que eu possuo você
pode cobiçar, mas eu daria todos eles por uma pequena parte
ou mesmo um empréstimo do que é seu.
- Minhas posses estão ao seu serviço - eu respondi amar-
gamente. - Minha pobreza, meu exílio, minha desgraça, eu
faço deles presentes grátis.
- Bom! Eu lhe agradeço. Adicione mais uma coisa ao seu

32
presente e meu tesouro é seu.
- Como nada é minha única herança, o que além de nada
você tomaria?
- Seu rosto atraente e membros bem feitos.
Eu tremi. Esse monstro todo-poderoso me liquidaria?
Eu não possuía adaga. Eu esqueci de orar, e fiquei pálido.
- Eu peço por um empréstimo, não um presente - disse
a coisa terrível. - Empreste-me o seu corpo por três dias, você
deverá ter o meu como gaiola para sua alma durante este
tempo e, como pagamento, terá meu baú. O que me diz da
barganha? Três pequenos dias.
Dizem-nos que é perigoso manter conversas ilícitas, e eu
provarei do mesmo. Pode parecer incrível, ao ver por escrito,
que eu tenha dado qualquer ouvido a esta proposta, mas a
despeito de sua feiura não natural, havia algo fascinante em
um ser cuja voz poderia governar a terra, o ar e o mar. Eu
me sentia compelido a consentir, por um baú o qual poderia
comandar o mundo. Minha única hesitação advinha de um
medo de que ele não seria fiel à sua barganha. Então, eu pen-
sei: eu irei morrer em breve aqui nestas areias solitárias, e os
membros que ele cobiça não serão mais meus, a tentativa é
válida. E, além disso, eu sabia que, por todas as regras da arte
da magia, haviam normas e juramentos que nenhum de seus
praticantes já ousaram quebrar. Eu hesitei em responder e ele
prosseguiu, ora mostrando sua riqueza, ora falando do preço
mesquinho que ele exigira, até que pareceu loucura recusar.
Assim é: coloque seu barco na correnteza do riacho e ele cairá
pela cachoeira apressadamente, desista de conduzir perante a
torrente selvagem de paixão e ficará a deriva sem saber onde.
Ele proferiu muitos juramentos e eu o abjurei com mui-
tos nomes sagrados, até que eu vi a maravilha do poder, este
governante dos elementos, tremer como uma folha de outono

33
perante as palavras e como se o espírito falasse contra von-
tade por uma força de dentro dele. Por fim, prostrado com
sua voz falhando, revelou o feitiço pelo qual ele poderia ser
obrigado, caso ele desejasse me enganar, a retornar espólio
ilegítimo. Nosso sangue quente vital deveria ser misturado
para fazer e desfazer o encanto.
Chega desse tema profano. Eu fui convencido, estava
feito. Amanheceu sobre mim enquanto eu permanecia dei-
tado no cascalho, eu não reconheci minha própria sombra
quando ela surgiu diante de mim. Eu me senti mudado para
uma forma horrenda e amaldiçoei minha fé fácil e credulida-
de cega. O baú estava lá e nele o ouro e as pedras preciosas
pelos quais eu vendi a estrutura de carne que a natureza me
dera. A visão acalmou um pouco minhas emoções: três dias
logo passariam.
E eles passaram de fato. O anão tinha me fornecido uma
abundância de comida. No início eu mal podia andar, tão
estranhos e fora do comum eram todos os meus membros,
minha voz era como a do demônio. Eu fiquei em silêncio e
virei meu rosto para o sol, assim eu talvez não visse minha
sombra. Contei as horas e ruminei sobre a minha futura
conduta. Trazer Torella aos meus pés, possuir a minha Juliet,
apesar de seu pai, com toda essa riqueza poderia facilmente
alcançar tais feitos. Durante a noite escura eu dormi e sonhei
com a realização dos meus desejos. Dois sóis haviam pas-
sado, e então veio o terceiro amanhecer. Eu estava agitado,
amedrontado. Oh a expectativa, que coisa terrível és tu,
quando gerada mais pelo medo do que pela esperança! Como
tu serpenteias ao redor do coração, torturando as pulsações!
Como tu dardejas ferroadas desconhecidas por todo o nosso
mecanismo fraco, ora nos fazendo tremer como vidro que-
brado, ora nos dando uma força renovada, a qual nada pode

34
fazer e, assim, nos atormenta por uma sensação como a que
um homem forte deve sentir quando não pode quebrar seus
grilhões, embora eles se curvem em suas mãos. Lentamente
passeou a brilhante esfera pelo céu, demorou-se no zênite,
ainda mais lentamente vagou pelo Oeste, tocou a linha do
horizonte e se perdeu! Seu resplendor estava nos cumes do
penhasco, eles tornaram pálidos e sombrios. A estrela da
noite brilhou resplandecente. Ele logo estará aqui.
Ele não veio! Pelos céus vívidos, ele não veio! A noite
arrastou sua exaustiva extensão e, no declínio de sua era, “o
dia começou a pratear seus cabelos escuros”, (Lorde Byron
em Werner) e o sol se ergueu novamente sobre o mais infeliz
miserável que sempre repreendeu sua luz. Três dias eu pas-
sei. As joias e o ouro oh, como eu os abomino!
Bem, não vou enegrecer essas páginas com desvairias
demoníacas. Todos muito terríveis eram os pensamentos, o
tumulto furioso de ideias que encheram minha alma. No final
desse período eu dormi. Eu não tinha feito isso desde o tercei-
ro pôr do sol. Sonhei que eu estava aos pés de Juliet que sorriu
e então gritou, pois vira a minha transformação. Novamente
ela sorriu, pois seu amante ainda belo ajoelhou-se diante dela,
mas não era eu, era ele, o demônio utilizando meus membros,
falando com a minha voz, ganhando-a com meus olhares
amorosos. Eu me esforcei para avisá-la, mas minha língua
se recusou a funcionar. Eu me esforcei para arrancá-lo dela,
mas eu estava enraizado no chão. Acordei com a agonia. Ali
estavam os solitários precipícios cobertos de branco, o mar
ondulante, a costa deserta e o céu azul acima de tudo. O que
isso significava? Meu sonho era apenas um reflexo da ver-
dade? Ele estava cortejando e cativando minha prometida?
Eu retornaria em um instante de volta para Gênova, mas eu
estava banido. Eu ri, o grito do anão saiu dos meus lábios, eu

35
banido! Oh não! Eles não haviam exilado os membros sujos
que eu usava, com estes eu poderia entrar, sem o temor de in-
correr na ameaça da pena de morte da minha própria cidade
natal.
Comecei a caminhar em direção a Gênova. Eu estava,
de algum modo, acostumado com meus membros distorci-
dos, nenhum membro nunca foi tão mal adaptado para um
movimento direto, mas foi com uma dificuldade infinita que
eu prossegui. Então, eu também desejava evitar todos os
vilarejos espalhados aqui e ali na praia, pois eu não estava
disposto a fazer uma exibição de minha forma hedionda.
Eu não tinha certeza de que, se visto, os inocentes meninos
não iriam me apedrejar até a morte quando passasse. Tido
como um monstro: eu recebi algumas saudações indelicadas
dos poucos camponeses e pescadores que eu tive a chance de
encontrar. Entretanto, era uma noite escura antes de eu me
aproximar de Gênova. O tempo estava tão agradável e doce
que me ocorreu que o marquês e sua filha provavelmente
teriam deixado a cidade para seu retiro do interior. Eu havia
tentando levar Juliet de Villa Torella, mas eu tinha passado
muitas horas reconhecendo o local e conhecia cada centíme-
tro de terra das imediações. A Villa era lindamente situada,
cercada por árvores à margem de um riacho. Conforme me
aproximava, tornou-se evidente que a minha conjectura esta-
va certa, mas não somente estava correta, além disso, estavam
se dedicando às festas e comemorações, pois a casa estava
iluminada. Trechos de melodias alegres e suaves flutuavam
em minha direção trazidos pela brisa. Meu coração afundou
dentro de mim. Tamanha era bondade generosa do coração
Torella, que eu tinha certeza de que ele não teria sido indul-
gente com manifestações públicas de alegria logo após meu
infeliz banimento, exceto por conta de algum evento que não

36
ousei tentar prever.
As pessoas do campo estavam exultantes e se reu-
nindo, tornou-se necessário que eu me precavesse para me
esconder e, ainda assim, eu ansiava por abordar alguém, ou
ouvir outros conversarem ou qualquer forma de saber do
que realmente estava acontecendo. Entrando nas alamedas
nas proximidades da mansão eu encontrei um local escuro
o suficiente para ocultar minha repulsividade, bem como
eu, haviam outros esgueirando-se nas sombras. Logo reuni
tudo o que eu queria saber, tudo que, primeiro fez meu co-
ração morrer com horror, e depois ferver com indignação.
Amanhã Juliet seria dado ao penitente, reformado, amado
Guido. Amanhã minha noiva faria seus votos a um demônio
do inferno! E eu fui o causador! Meu orgulho amaldiçoado,
minha violência demoníaca e auto idolatria perversa tinham
causado este ato. Se eu tivesse agido como o miserável que
tinha roubado a minha forma tinha agido, se eu tivesse me
apresentado a Torella com um semblante rendido e digno
dizendo: “Eu errei, perdoe-me, pois eu sou indigno de filha
angelical, mas permita-me reivindicá-la de agora em diante,
onde minha conduta transformada se manifestará, pois eu
abjuro meus vícios e esforçarei para me tornar de alguma
forma digno dela. Eu servirei contra os infiéis e, quando meu
zelo pela religião e minha verdadeira penitência para com o
passado mostrar-te para cancelares meus crimes, permita-me
novamente me chamar de seu filho.”. Assim ele tinha falado
e o penitente fora bem-vindo da mesma forma como o filho
pródigo das escrituras: o bezerro gordo foi morto por ele e,
ainda percorrendo o mesmo caminho, exibiu um arrependi-
mento de coração tão aberto por suas loucuras, tão humilde
fora sua concessão de todos os seus direitos, e tão ardente
sua determinação para readquiri-los por meio uma vida de

37
contrição e virtudes, que ele rapidamente conquistou o gentil
velho, de modo que um perdão completo e sua adorável filha
como presentes seguiram-se em rápida sucessão.
Oh! Quisera eu ter um anjo do Paraíso me sussurrando
para que agisse assim! Mas agora qual seria o destino da ino-
cente Juliet? Deus permitiria a união imoral, ou que algum
pródigo a destrua, ligando o nome desonrado de Carega ao
pior dos crimes? Amanhã, ao amanhecer, eles estariam para
se casar, havia apenas uma maneira de evitar isso: encontrar
meu inimigo para impor a ratificação do nosso acordo. Eu
senti que isso só poderia ser feito por uma luta mortal. Eu não
tinha espada se, de fato, meus braços distorcidos pudessem
empunhar a arma de um soldado, mas eu tinha uma adaga, e
nela repousavam toda a minha esperança. Não havia tempo
para ponderar ou equilibrar bem a questão. Eu poderia mor-
rer na tentativa, mas além do ciúme ardente e desespero do
meu próprio coração, honra e mera humanidade, exigiam que
eu deveria perecer ao invés de não destruir as maquinações
do demônio.
Os convidados partiram quando as luzes começaram a
desaparecer, era evidente que os habitantes da Villa estavam
procurando por repouso. Eu me escondi entre as árvores. O
jardim se tornou deserto. Os portões foram fechados. Eu va-
guei em volta e recaí sob uma janela. Ah! Eu bem a conhecia!
Um crepúsculo suave cintilava no cômodo, cortinas estavam
parcialmente abertas. Era o templo da inocência e da beleza.
Sua magnificência era temperada, por assim dizer, pelos le-
ves desarranjos ocasionados pelo ser que o habitava, e todos
os objetos espalhados ao redor exibiam o sabor daquela que
os consagrava por sua presença. Eu a vi entrar com passos
leves e rápidos, a vi se aproximar da janela, ela abriu as corti-
nas ainda mais e procurou pela noite. A brisa fresca brincava

38
por entre seus cachos e soprava-os de seu cenho de mármore
transparente. Ela apertou as mãos e levantou os olhos para o
céu. Escutei sua voz.
- Guido! - Ela murmurou suavemente. - Meu Guido!
E então, como se dominada pela plenitude de seu próprio co-
ração, ela caiu de joelhos, seus olhos erguidos para o céu, sua
atitude negligente, mas graciosa, a gratidão radiante ilumi-
nou seu rosto. Oh, estas são palavras mansas! Coração meu,
tu sempre podes imaginar, embora tu não consigas retratar a
beleza celestial daquela criança de luz e amor.
Eu ouvi um passo rápido firme ao longo da alameda
escura. Logo eu vi um cavaleiro, ricamente vestido, jovem e,
penso eu, gracioso de se olhar, avançar. Eu me escondi ainda
próximo deles. O jovem se aproximou, ele parou sob a janela.
Ela se ergueu e, novamente procurando noite à fora, ela o viu
e disse algo. O que eu não sei dizer, não a essa distância de
tempo, não consigo me recordar dos termos de sua suave ter-
nura, para mim eles foram ditos, mas por ele foi respondido.
- Não irei. - Ele gritou. - Aqui onde você esteve, onde
sua memória flutua como um fantasma visitante do céu, eu
passarei as longas horas até nos encontrarmos. Nunca, minha
Juliet, durante o dia ou à noite, nos separaremos novamente.
Você, meu amor, se retire, a fria manhã e brisa inquieta tor-
narão suas bochechas pálidas e encherão com languidez teus
olhos iluminados pelo amor. Ah! A mais doce de todas! Eu
poderia pressionar um beijo sobre eles, eu poderia, acredito,
descansar.
E então ele se aproximou ainda mais perto e, penso eu,
estava prestes a subir em seus aposentos. Eu tinha hesitado,
não para aterrorizá-la, mas agora eu não era mais mestre de
mim mesmo. Eu corri para a frente, me joguei sobre ele, o
afastei e gritei:

39
- Ó repugnante de forma miserável.
Eu não preciso repetir epítetos, todos tendendo, como
pareciam, injuriar uma pessoa por quem eu, agora, sinto certa
predileção. Um grito emergiu dos lábios de Juliet. Eu nem
ouvi nem vi, sentia apenas o cabo de minha adaga e meu ini-
migo, cuja garganta eu agarrei. Ele lutou, mas não conseguia
escapar, finalmente, ele resfolegou estas palavras:
- Faça isso! Acerte-me! Destrua este corpo, você ainda
viverá, e que sua vida seja longa e alegre!
O punhal prestes a ser enterrado se deteve com aquelas
palavras e ele, sentindo o meu aperto relaxar, se libertou e
sacou sua espada, enquanto o alvoroço na casa, e o desloca-
mento de tochas de um cômodo a outro, mostrou que logo
seríamos separados e eu... Oh! Era bem melhor morrer. Eu
não me importava se ele também não sobrevivesse. Em meio
ao meu frenesi haviam muitos cálculos. Eu poderia cair e
dessa forma ele não sobreviveria. Não me importaria com
o golpe mortal que recairia contra mim mesmo. Ao mesmo
tempo que ele pensou que eu havia parado, enquanto eu via
o vil ser decidir tirar vantagem da minha hesitação. Repenti-
namente, com o impulso que ele tomou em minha direção, eu
me joguei em sua espada e ao mesmo tempo afundei minha
adaga, com uma mira puramente desesperada, em seu flanco.
Caímos juntos, rolando um sobre o outro, e a maré de sangue
que fluía da ferida escancarada de cada um se misturava a
grama. Mais eu não sei, pois desmaiei.
Mais uma vez voltei à vida, enfraquecido até quase a
morte, me encontrei esticado em cima de uma cama, Juliet
estava ao lado ajoelhada. Estranho! Meu primeiro pedido de-
bilitado foi por um espelho. Eu estava tão abatido e medonho,
que minha pobre menina hesitou, como ela me disse depois,
pelos deuses! Me considerei um jovem aceitável quando eu vi

40
o reflexo querido de minhas próprias feições bem conhecidas.
Confesso que é uma fraqueza, mas eu admito possuir uma
considerável afeição para com o meu semblante e membros,
que sempre admiro em um reflexo - possuo ainda mais espe-
lhos em minha casa, e os consulto com frequência, mais do
que qualquer beldade em Veneza. Antes que você me conde-
ne demais, permita-me dizer que ninguém melhor do que eu
sabe o valor de seu próprio corpo, ninguém provavelmente,
exceto eu, tendo tido o próprio corpo roubado.
Incoerentemente no início, eu falei do anão e seus cri-
mes, e repreendi Juliet por sua aceitação muito fácil de seu
amor. Ela pensou que eu estivesse delirando, como era de se
esperar, e ainda levou algum tempo antes que eu pudesse ser
bem sucedido em passar por cima de meu orgulho e admitir
que o Guido, cuja penitência tinha ganhado ela de volta para
mim, era eu mesmo, enquanto eu amaldiçoava amargamente
o anão monstruoso e abençoava o golpe bem dirigido que o
privou de sua vida. Eu subitamente me examinei enquanto
a ouvi dizer “Amém!” sabendo que aquele a quem ela in-
sultava era mesmo eu. Um pouco de reflexão me ensinou o
silêncio. Um pouco de prática me permitiu falar dessa noite
terrível sem qualquer erro muito excessivo. O ferimento que
eu infligira a mim mesmo não era motivo de zombaria, levei
um certo tempo até me recuperar e, enquanto o benevolente
e generoso Torella sentava-se ao meu lado, transmitindo
tal sabedoria como o arrependimento pode trazer amigos,
minha Juliet querida pairava perto de mim, administrando
meus desejos e me animando com seus sorrisos. O trabalho
de cura de meu corpo e reforma mental seguiram juntos. Eu
nunca, de fato, recuperei totalmente minha força. Meu rosto é
mais pálido e, desde então, meu corpo um pouco curvado.
Juliet às vezes se aventura amargamente a fazer alusão a

41
maldade que causou essa mudança, mas eu a beijo no mesmo
instante e digo a ela que tudo foi para o melhor. Eu sou o mais
carinhoso e mais fiel marido. E esta é a verdade: se não fosse
por aquele ferimento, eu nunca a chamaria de minha.
Eu não revisitei a costa do mar, nem procurei pelo tesou-
ro do demônio, ainda que eu pondere sobre o passado, e eu
muitas vezes penso. Meu confessor também não ficava atrás
em favorecer a ideia, de que poderia ser um bom espírito ao
invés de maligno, enviado pelo meu anjo da guarda para me
mostrar a tolice e a miséria do orgulho. Tão eu aprendi essa
lição, brutalmente ensinado como fui, que eu sou conhecido
agora por todos os meus amigos e companheiros pelo nome
de Guido, o Cortês.

42
A Verdade no caso do Sr.
Valdemar

43
Edgar Allan Poe
1809 - 1849

Falar de Edgar Allan Poe nunca é uma tarefa fácil,


mas sempre muito prazerosa. O escritor de Boston, com
sua personalidade complexa, acabou conhecido por suas
histórias macabras e sempre envoltas em brumas densas e
misteriosas.
Com seu talento literário, ele acabou por deixar sua
marca também na ainda jovem ficção científica, gênero
que então florescia. Exatamente por isso, é fácil imaginá-lo
atento aos vários avanços e teorias científicas que surgiam.
O Mesmerismo definitivamente deveria estar nesse escopo,
visto a popularidade que a teoria tinha à época, e deve ter
impressionado o escritor.
Na história O Estranho Caso do Sr. Valdemar (1845)
nos impressionamos até hoje pelo relato, que ao utilizar o
jargão médico ou técnico, acaba por se tornar mais crível.
Várias pessoas acreditaram fielmente na ocorrência dos
fatos narrados, o que mostra sua excelência como contista.
Neste mesmo ano ele lança seu famoso poema O Corvo.
Ambos, o conto e o poema, falam de morte, cada qual com
seu olhar: o prático e o emocional, respectivamente.
Dois anos após ele perdia sua esposa Virginia
(1822-1847), que era tísica (termo antigo para uma pessoa
tuberculosa). Ela já sofria dos sintomas desde 1842 e sua
convalescença marcou demais o escritor. Podemos apenas
imaginar como a iminência da perda de sua amada o
marcou, seja através de um poeta sofredor falando com um
corvo ou apenas um prático cientista burlando o inevitável.

Arte da página anterior por Immigrant


O Estranho Caso do Sr. Valdemar foi publicado originalmente em
1845 44
O Estranho Caso do Sr.
Valdemar

P or certo, não pretendo considerar admirável que o


caso extraordinário do Sr. Valdemar tenha provocado dis-
cussões. Teria sido um milagre se não tivesse, especialmente
sob as circunstâncias. Através do desejo de todas as partes
envolvidas de evitar a publicidade do caso, pelo menos no
momento, ou até termos mais oportunidades de investiga-
ção - durante nossos esforços para efetivar isso - um relato
entrecortado ou exagerado chegou à sociedade, e se tornou
a fonte de muitas deturpações desagradáveis, assim como,
muito naturalmente, de muita descrença.
Torna-se agora necessário que eu forneça os fatos - até
onde eu mesmo os compreendo. Eles são, sucintamente, es-
tes: minha atenção, nos últimos três anos, havia sido repetida-
mente atraída para assuntos referentes ao mesmerismo*. E, há
cerca de nove meses, ocorreu-me, muito repentinamente, que
na série de experimentos realizados até então, houvera uma
omissão muito notável e inexplicável: ninguém ainda estava
hipnotizado no articulo mortis**. Restava saber, em primeiro
lugar, se em tais condições, existia no paciente alguma sus-
cetibilidade à influência magnética; em segundo lugar, caso
existisse, se era prejudicada ou aumentada pela condição;
terceiro, até que ponto, ou por qual período de tempo, os
avanços da Morte¹ poderiam ser detidas pelo processo. Ha-
viam outros pontos a serem apurados, mas estes foram os que
mais despertaram minha curiosidade, a última em especial,

* Mesmerismo: Doutrina de Franz Anton Mesmer (1734-1815, médico alemão) sobre o magnetismo
animal e o hipnotismo na cura de doenças.
** Articulo Mortis: locução latina que significa “em artigo de morte, na hora de morrer”
45
pelo caráter imensamente importante de suas consequências.
Ao procurar algum indivíduo por cujos meios eu pu-
desse testar essas informações, fui levado a pensar em meu
amigo, Sr. Ernest Valdemar, o conceituado compilador da
“Biblioteca Forense” e autor (sob o pseudônimo de Issachar
Marx) das versões polonesas de “Wallenstein” e “Gargantua”.
Sr. Valdemar, que reside principalmente em Harlem, NY,
desde o ano de 1839, é (ou foi) particularmente notável pela
extrema magreza de sua pessoa - seus membros inferiores
muito semelhantes aos de John Randolph. Assim como pela
brancura de seus bigodes, em violento contraste com a escu-
ridão de seus cabelos - este último, por consequência, sendo
geralmente confundido com uma peruca. Seu temperamento
era notavelmente nervoso e o tornava um bom sujeito para
experimentos mesméricos. Em duas ou três ocasiões, eu o fiz
dormir com pouca dificuldade, mas fiquei decepcionado com
outros resultados, que sua constituição peculiar naturalmen-
te me levou a esperar. Sua vontade não estava em nenhum
período positivamente, ou inteiramente, sob meu controle, e
em relação à clarividência, eu não consegui atingir com ele
algo em que confiar. Eu sempre atribuí meu fracasso nesses
pontos ao estado desordenado de sua saúde. Por alguns
meses antes de eu me familiarizar com ele, seus médicos o
declararam confirmadamente tísico. De fato, era seu costume
falar calmamente de sua dissolução que se aproximava, como
uma questão que não deveria ser evitada nem lamentada.
Quando as ideias às quais aludi me ocorreram pela
primeira vez, era obviamente muito natural que eu pensasse
no Sr. Valdemar. Eu conhecia bem a filosofia consistente do
homem para suspeitar de qualquer escrúpulo dele, e ele não
tinha parentes na América que pudessem interferir. Eu falei
com ele francamente sobre o assunto e, para minha surpresa,

46
seu interesse pareceu vívido. Eu digo para minha surpresa
pois, embora ele sempre tenha cedido sua pessoa livremente
às minhas experiências, ele nunca havia me dado algum sinal
de simpatia pelo que eu fazia. Sua doença era daquele caráter
que admitia um cálculo exato em relação à época de seu tér-
mino em morte, e foi finalmente combinado entre nós que ele
me chamaria cerca de vinte e quatro horas antes do período
anunciado por seus médicos como o de seu óbito.
Faz, agora, mais de sete meses que recebi, do próprio Sr.
Valdemar, a nota:

MEU CARO P.,


Você pode bem vir agora. D. e F. concordaram que
posso não aguentar além da meia-noite de amanhã; e acho
que eles previram o tempo de forma muito precisa.
Valdemar.

Recebi esse bilhete meia hora depois que fora escrito, e


em quinze minutos eu estava nos aposentos do moribundo.
Eu não o via há dez dias, e fiquei horrorizado com a medonha
alteração que o breve intervalo lhe causara. Seu rosto tinha
uma tonalidade de chumbo, os olhos estavam totalmente sem
brilho e a magreza era tão extrema que a pele havia sido rom-
pida pelos ossos da face. Sua expectoração era excessiva. Seu
pulso era quase imperceptível. Ele manteve, no entanto, de
modo muito notável, tanto seu poder mental quanto um certo
grau de força física. Ele falou com distinção - tomou alguns
remédios paliativos sem assistência - e, quando entrei na sala,
estava ocupado em escrever memorandos em um livro de
bolso. Ele se apoiava na cama por travesseiros. Os médicos D.
e F. estavam presentes.

47
Depois de apertar a mão de Valdemar, afastei esses
senhores e obtive deles um relato minucioso da condição do
paciente. O pulmão esquerdo estava há dezoito meses em
um estado semi-ósseo ou cartilaginoso e era, obviamente,
totalmente inútil para todos os propósitos de vitalidade. A
direita, em sua porção superior, também estava parcialmente,
se não completamente, ossificada, enquanto a região inferior
era apenas uma massa de tubérculos purulentos, trespassan-
do um ao outro. Existiam diversas perfurações extensas e,
a certa altura, ocorrera uma adesão permanente às costelas.
Essas ocorrências no lóbulo direito eram de data relativa-
mente recente. A ossificação prosseguira com rapidez muito
incomum, nenhum sinal fora descoberto um mês antes e a
adesão só foi observada nos três dias anteriores. Independen-
temente da tísica*, o paciente era suspeito de aneurisma da
aorta, mas neste ponto os sintomas ósseos impossibilitaram
um diagnóstico exato. Os dois médicos acreditavam que o Sr.
Valdemar morreria por volta da meia-noite do dia seguinte
(um domingo). Eram sete horas da noite de sábado.
Ao deixarem a cama do inválido para manter uma
conversa comigo, os médicos D. e F. haviam se despedido
definitivamente. Não possuíam a intenção de retornar, mas
a meu pedido eles concordaram em examinar o paciente por
volta das dez da noite seguinte.
Quando eles se foram, conversei livremente com o Sr.
Valdemar sobre o assunto da dissolução que se aproximava,
bem como, mais particularmente, sobre o experimento pro-
posto. Ele ainda se professava bastante disposto e até ansioso
por fazê-lo, e me incentivou a começar imediatamente. Um
enfermeiro e uma enfermeira estavam presentes, mas não
me senti totalmente à vontade para me dedicar a uma tarefa
desse caráter sem testemunhas mais confiáveis do que essas
* Tísica: Palavra obsoleta para Tuberculose Pulmonar.

48
pessoas, uma vez que, em caso de acidente repentino, eles
poderiam testemunhar. Portanto, adiei as operações para
cerca das oito da noite seguinte, quando a chegada de um
estudante de medicina, com o qual eu tinha alguma familiari-
dade (Sr. Theodore L.), me livrou de futuros constrangimen-
tos. Originalmente, meu objetivo era esperar os médicos, mas
fui induzido a prosseguir, primeiro, pelos apelos urgentes do
Sr. Valdemar e, segundo, pela minha convicção de que não
tinha um momento a perder, pois ele evidentemente estava
deteriorando rapidamente.
O Sr. L. teve a gentileza de ceder ao meu desejo de que
tomaria nota tudo o que ocorreu, e agora o que tenho para
relatar, fora condensado ou copiado literalmente, na maioria
das vezes, a partir de seus memorandos.
Faltavam cerca de cinco minutos para às oito quando,
pegando a mão do paciente, implorei que ele dissesse, o mais
distintamente quanto fosse possível ao Sr. L., se ele estava in-
teiramente disposto a fazer o experimento de mesmerização
em sua condição. Ele respondeu debilmente, mas de maneira
audível:
- Sim, eu quero ser mesmerizado - acrescentando ime-
diatamente em seguida, - temo que você tenha protelado por
muito tempo.
Enquanto ele falava, comecei os passes que eu já havia
descoberto serem os mais eficazes em subjugá-lo. Ele foi
evidentemente influenciado com o primeiro golpe lateral
da minha mão em sua testa, mas apesar de exercer todos os
meus poderes, nenhum efeito perceptível foi induzido até
alguns minutos depois das dez horas, quando os médicos D.
e F. me chamaram, de acordo com o compromisso. Expliquei
a eles, em poucas palavras, o que pretendia, e como eles não
se opuseram, dizendo que o paciente já estava na agonia da

49
morte, procedi sem hesitação, trocando, no entanto, os passes
laterais pelos descendentes, e dirigindo meu olhar inteira-
mente para o olho direito do sofredor.
A essa altura, seu pulso estava imperceptível e sua
respiração era estertorosa* e a intervalos de meio minuto.Essa
condição ficou praticamente inalterada por um quarto de
hora. No final desse período, no entanto, um suspiro natural,
embora muito profundo, escapou do peito do moribundo, e
a respiração estertorosa cessou - ou seja, sua estertoridade não
era mais aparente, os intervalos não foram diminuídos. As
extremidades do paciente estavam frias como gelo.
Cinco minutos antes das onze, percebi sinais inequí-
vocos da influência mesmérica. O rolar vítreo do olho foi
alterado para aquela expressão de desconfortável avaliação
interna, que nunca é vista, exceto nos casos de sonambulis-
mo, e que é quase impossível confundir. Com alguns passes
laterais rápidos, fiz suas pálpebras tremerem, como no sono
incipiente, e com mais alguns as fechei completamente. En-
tretanto, não fiquei satisfeito com isso, mas continuei vigoro-
samente as manipulações e com todo esforço de vontade, até
enrijecer completamente os membros do adormecido, depois
de colocá-los em uma posição aparentemente fácil. As pernas
estavam totalmente estendidas, os braços estavam quase da
mesma forma, e repousavam na cama a uma distância mode-
rada da bacia. A cabeça estava levemente elevada.
Já era meia-noite quando terminei e solicitei aos cava-
lheiros presentes que examinassem a condição do Sr. Valde-
mar. Depois de alguns testes, eles admitiram que ele estava
em um estado incomumente perfeito de transe mesmérico.
A curiosidade de ambos os médicos se inflamou. O Dr.
D. decidiu por fim permanecer com o paciente a noite toda,
enquanto o Dr. F. se despediu com a promessa de retornar ao
* Estertorosa: Diz-se da respiração que imita o ruído da água que ferve

50
amanhecer. O Sr. L. e os enfermeiros permaneceram.
Deixamos Sr. Valdemar completamente imperturbável
até cerca das três horas da manhã, quando me aproximei
dele e o encontrei precisamente na mesma condição em que
quando o Dr. F. partiu, ou seja, ele estava na mesma posição,
o pulso era imperceptível, respiração era suave - parcamente
perceptível, a não ser através do posicionamento de um espe-
lho nos lábios - os olhos estavam naturalmente fechados, e os
membros eram rígidos e frios como mármore. Ainda assim, a
aparência geral certamente não era a de morte.
Ao me aproximar do Sr. Valdemar, fiz um meio esforço
para influenciar o braço direito dele a acompanhar o meu,
enquanto passava este suavemente para lá e pra cá sobre sua
pessoa. Em tais experiências com esse paciente, nunca havia
me saído perfeitamente bem-sucedido antes e, certamente,
tinha poucas esperanças em ter sucesso agora, mas, para meu
espanto, seu braço muito prontamente, embora debilmente,
seguiu todas as direções que eu designei com o meu. Decidi
arriscar uma breve conversa.
- Sr. Valdemar, - eu disse. - Você está dormindo?
Ele não respondeu, mas percebi um tremor nos lábios,
e fui levado a repetir a pergunta várias vezes. Na terceira
repetição, todo o seu corpo foi agitado por um leve tremor, as
pálpebras se abriram a ponto de exibir uma linha branca do
globo ocular, os lábios se moveram lentamente, e entre eles,
num sussurro quase inaudível, emitiram as palavras:
- Sim, durmo agora. Não me acorde! Deixe-me morrer
assim!
Nesse momento senti os membros e os achei mais rí-
gidos do que nunca. O braço direito, como antes, obedeceu
ao direcionamento da minha mão. Eu questionei o transeunte
dos sonhos novamente:

51
- Você ainda sente dor no peito, Sr. Valdemar?
A resposta agora foi imediata, mas ainda menos audível
do que antes:
- Sem dor...estou morrendo.
Não achei prudente perturbá-lo novamente, e nada
mais foi dito ou feito até a chegada do Dr. F., que veio um
pouco antes do amanhecer e expressou espanto sem limites
ao encontrar o paciente ainda vivo. Depois de sentir a pulsa-
ção e aplicar um espelho nos lábios, ele me pediu para falar
com o sonâmbulo novamente. Eu o fiz então, dizendo:
- Sr. Valdemar, você ainda dorme?
Como antes, alguns minutos decorreram e uma respos-
ta foi dada, e durante o intervalo o moribundo parecia estar
coletando suas energias para falar. Na minha quarta repeti-
ção da pergunta, ele disse muito fracamente, quase de modo
inaudível:
- Sim. Ainda dormindo… morrendo.
Era agora a opinião, ou melhor, o desejo dos médicos,
de que o Sr. Valdemar deveria permanecer imperturbável em
sua condição de aparentemente tranquilidade, até que a mor-
te se impusesse, e isso foi de acordo geral, o que deve ocorrer
agora dentro de alguns minutos. Eu decidi, no entanto, falar
com ele mais uma vez, e apenas repeti a minha pergunta
anterior.
Enquanto eu falava, houve uma mudança acentuada
sobre o semblante do mesmerizado. Os olhos se reviraram
lentamente abertos, as pupilas desapareceram para cima. A
pele assumiu uma tonalidade cadavérica, assemelhando-se
mais a um papel branco do que um pergaminho. E os pontos
circulares da tísica que, até agora, tinham eram fortemente
definidos no centro de cada bochecha, desvaneceram de
uma só vez. Eu uso essa expressão porque a rapidez de sua

52
partida me trouxe a mente de nada mais do que o apagar de
uma vela com um sopro. O lábio superior, ao mesmo tempo,
contorceu-se longe dos dentes que anteriormente cobria,
enquanto a mandíbula inferior caiu com um movimento
audível, deixando a boca amplamente estendida, e revelando
em plena vista a língua inchada e enegrecida. Presumo que
nenhum membro do grupo presente estava desacostumado
aos horrores do leito de morte, mas tão hediondo, além da
concepção, fora a aparência do Sr. Valdemar neste momento,
que um afastamento geral ocorreu para longe da cama.
Agora sinto que cheguei a um ponto dessa narrativa em
que cada leitor ficará espantosamente descrente. No entanto,
é minha obrigação simplesmente prosseguir.
Não havia mais o menor sinal de vitalidade no Sr. Valde-
mar e, concluindo que estava morto, estávamos designando-o
aos cuidados dos enfermeiros, quando um forte movimento
vibratório se tornou observável na língua. Isso continuou por
talvez um minuto. Ao terminar, a partir das mandíbulas dis-
tendidas e imóveis uma voz foi emitida, de tal forma que seria
loucura de minha parte tentar descrever. Há, de fato, dois ou
três epítetos que podem ser considerados como aplicáveis a
ele em parte. Eu poderia dizer, por exemplo, que o som era
duro, entrecortado e oco, mas o todo hediondo é indescrití-
vel, pela simples razão de que nenhum som semelhante já
abalou os ouvidos da humanidade. Havia dois detalhes, no
entanto, que eu pensei então, e ainda penso, que poderiam
razoavelmente se comprovarem como características da en-
tonação, bem adaptados para transmitir alguma ideia de sua
peculiaridade sobrenatural. Em primeiro lugar, a voz parecia
chegar aos nossos ouvidos - pelo menos o meu - a partir de
uma vasta distância, ou de alguma caverna profunda dentro
da terra. Em segundo lugar, impressionou-me (temo, de fato,

53
que seja impossível fazer-me compreender) como matérias
gelatinosas ou glutinosas impregnavam o sentido do toque.
Falei tanto de “som” quanto de “voz”. Quero dizer
que o som era de distinta - de mesmo maravilhosamente,
emocionantemente distinta - silabificação. Sr. Valdemar falou
- obviamente, em resposta à pergunta que eu havia lhe feito
alguns minutos antes. Há de ser lembrado que lhe perguntei
se ainda dormia. Ele agora disse:
- Sim. Não. Eu tenho dormido... e agora... agora... eu
estou morto.
Nenhuma pessoa presente tentou sequer negar ou re-
primir, o horror indizível e estremecedor que essas poucas
palavras, assim proferidas, provocavam. Sr. L. (o aluno) des-
maiou. Os enfermeiros imediatamente deixaram os aposentos
e se recusaram a retornar. Minhas próprias impressões eu não
pretenderei tornar inteligível ao leitor. Por quase uma hora,
nos ocupamos silenciosamente, em esforços para reviver o Sr.
L., sem emitir sequer uma palavra. Quando ele voltou a si,
dirigimo-nos novamente a uma investigação da condição do
Sr. Valdemar.
Ele permaneceu em todos os aspectos como eu descrevi
pela última vez, com a exceção de que o espelho já não tinha
provas de respiração. Uma tentativa de tirar sangue do braço
falhou. Devo mencionar, também, que este membro não se
sujeitava mais à minha vontade. Eu me esforcei em vão para
fazê-lo seguir a direção da minha mão. De fato, única indi-
cação real da influência mesmérica, era agora encontrada no
movimento vibratório da língua, sempre que me dirigia ao
Sr. Valdemar com uma pergunta. Ele parecia estar fazendo
um esforço para responder, mas não possuía mais vontade o
suficiente. Para questionamentos levantados a ele por qual-
quer outra pessoa ele parecia totalmente insensível, embora

54
eu me esforçasse para colocar cada membro do grupo em
contato mesmérico com ele. Eu acredito que relacionei tudo
que é necessário a uma compreensão do estado do transeunte
do sono nesta época. Outros enfermeiros foram contratados,
e às dez horas saí de casa em companhia do Sr. L. e dos dois
médicos.
À tarde, todos nós fomos chamados novamente para
ver o paciente. Sua condição permaneceu precisamente a
mesma. Tivemos agora alguma discussão sobre a possi-
bilidade e viabilidade de despertá-lo, mas tivemos pouca
dificuldade em concordar que nenhum bom propósito seria
obtido fazendo isso. Era evidente que, até agora, a morte, ou o
que é geralmente chamado de morte, havia sido aprisionada
pelo processo mesmérico. Parecia claro para todos nós que
despertar o Sr. Valdemar seria meramente para garantir sua
imediata, ou pelo menos a sua rápida, dissolução.
Desta data até o final da semana passada - um intervalo
de quase sete meses - continuamos a fazer visitas diárias a
casa do Sr. Valdemar, acompanhado, de vez em quando, por
médicos e outros amigos. Todo esse tempo o mesmerizado
permaneceu exatamente como eu o descrevi pela última vez.
As atenções dos enfermeiros eram contínuas.
Foi na sexta-feira passada que finalmente resolvemos
fazer a experiência de despertar, ou tentar despertá-lo. Foi,
talvez, o resultado infeliz desta última experiência que deu
origem a tanta discussão nos círculos privados, para muito
do que eu não posso deixar de pensar ser um sentimento
popular injustificado.
Com o propósito de desenvencilhar o Sr. Valdemar do
transe mesmérico, fiz uso dos passes habituais. Estes, por um
tempo, não resultaram em sucesso. A primeira indicação de
reavivamento foi concedida por uma descida parcial da íris.

55
Observou-se, como especialmente notável, que esta descida
da pupila foi acompanhada pelo fluxo profuso de um icor*
amarelado, debaixo das pálpebras, de um odor pungente e
altamente desagradável.
Foi sugerido agora que eu deveria tentar influenciar o
braço do paciente, como até então. Eu fiz a tentativa e falhei.
O Dr. F., em seguida, insinuou o desejo de que eu fizesse uma
pergunta. Eu fiz isso, da seguinte forma:
- Sr. Valdemar, você pode nos explicar quais são seus
sentimentos ou desejos agora?
Houve um retorno instantâneo dos círculos tísicos nas
bochechas, a língua tremeu, ou melhor, rolou violentamente
na boca, embora as mandíbulas e lábios permanecessem rígi-
dos como antes, e finalmente a mesma voz hedionda que eu
já descrevi, proferiu:
- Pelo amor de Deus! Rápido! Rápido! Me coloque para
dormir, ou, rápido! Me acorde! Rápido! Eu digo a você que eu
estou morto!
Eu estava completamente descontrolado, e por um ins-
tante permaneceu a indecisão sobre o que fazer. No começo
eu fiz um esforço para recompor o paciente, mas falhando
através da total ausência da vontade, eu retracei meus passos
e esforcei-me seriamente para despertá-lo. Nesta tentativa,
logo vi que eu seria bem sucedido - ou pelo menos eu logo
imaginava que o meu sucesso estaria completo - e tenho
certeza de que todos na sala estavam preparados para ver o
despertar do paciente.
Para o que realmente ocorreu, no entanto, é completa-
mente impossível que qualquer ser humano poderia estar
preparado.
Como eu rapidamente fiz os passes mesméricos, em
meio a exclamações de “Morto! Morto!” irrompendo inteira-
* Icor: Líquido purulento e fétido que escorre de certas úlceras ou feridas.

56
mente da língua e não dos lábios do sofredor, todo seu corpo,
de uma só vez - dentro do espaço de um único minuto, ou até
mesmo menos, encolheu - desmoronou - absolutamente apo-
dreceu sob minhas mãos. Em cima da cama, diante de todo o
grupo, havia uma massa quase líquida, pútrida, repugnante e
detestável.

Notas da Tradutora

Embora a palavra “morte” apareça em minúsculo por diver-


sas vezes no conto, durante a primeira menção o Autor utiliza
letra maiúscula. Para manter a fidelidade do conto a mesma
foi mantida exatamente como no original.
Todo o texto é escrito com menções por letras, exemplo: M.
Valdemar e Médico D. Após uma pesquisa foi constatado que
títulos de homens da ciência eram dados como M, assim como
existe o P.H.D. Porém tal título não possui o equivalente em
Português, sendo então recomendado utilizar Sr. como sinal
de respeito.

57
58
59
Júlia Lopes de Almeida
1862 - 1934

A produção textual especulativa da carioca Júlia Lopes de


Almeida me impressionou muito desde a primeira vez que a li. Seus
textos trazem sempre questões familiares estranhas e pesadas, que
mexem com o espírito do leitor. A autora foi sem dúvida alguma
uma mestra que, felizmente, vem aos poucos sendo redescoberta
pelo público brasileiro.
Apesar de ter participado da fundação da Academia Brasilei-
ra de Letras (ABL), em 1897, sua admissão na entidade foi proibida
por ser mulher. Absurdos do machismo da época ao se basear no
modelo da Academia Francesa que só permitia homens. Esse erro
foi postumamente corrigido com a criação da cadeira 41, que leva
seu nome.
Júlia faz sua crítica ao machismo pela reflexão que entrega ao
leitor nesse conto. Constatamos isso através da crueldade, impotên-
cia e inevitabilidade existentes na realidade da jovem Umbelina
que veremos em Os Porcos (1903). A jovem protagonista, enganada
e usada, está grávida e imagina uma vingança contra seu maldito
amante, sem perceber que seu destino já está traçado infelizmente.
Ao mesmo tempo busca fugir da brutalidade de seu pai.
As relações e segredos familiares aqui, sejam entre pai e filha,
ou entre ela e o filho do patrão, são pano de fundo para determi-
nar os fatos que se desenrolam. Exatamente por essa situação sem
qualquer saída é que a tragédia eleva o texto ao patamar de ser,
ainda hoje, um dos melhores contos de horror já escritos no país.
Engana-se quem acha que é um conto datado. Se repete
ainda hoje o abuso de filhos dos patrões contra as Umbelinas da
vida. Continuamos nos deparando com famílias falhando em dar
suporte a essas mulheres, cobrando mais do que as ajudando. Um
ciclo contínuo de jovens sem opção, impossibilitadas de mudar suas
histórias sendo esmagadas por elas. Que reflexões como essa pos-
sam mudar nossa forma de pensar. Obrigado sempre, Júlia Lopes
de Almeida!

Arte da página anterior por Cristal Moura


Os Porcos foi publicado originalmente em 1903
60
Os Porcos

Q uando a cabocla Umbelina apareceu grávida, o


pai moeu-a de surras, afirmando que daria o neto aos porcos
para que o comessem.
O caso não era novo, nem a espantou, e que ele havia de
cumprir a promessa, sabia-o bem. Ela mesma, lembrava-se.
Encontrara uma vez um braço de criança entre as flores dou-
radas do aboboral. Aquilo, com certeza, tinha sido obra do
pai.
Todo o tempo da gravidez pensou, numa obsessão cru-
delíssima, torturante, naquele bracinho nu, solto, frio, resto
dum banquete delicado, que a torpe voracidade dos animais
esquecera por cansaço e enfartamento.
Umbelina sentava-se horas inteiras na soleira da porta,
alisando com um pente vermelho de celuloide o cabelo negro
e corredio. Seguia assim, preguiçosamente, com olhar agudo
e vagaroso, as linhas do horizonte, tugindo de fixar os porcos,
aqueles porcos malditos, que lhe rodeavam a casa desde ma-
nhã até a noite.
Via-os sempre ali arrastando no barro os corpos imun-
dos, de pelo ralo e banhas descaídas com o olhar guloso,
luzindo sob a pálpebra mole e o ouvido encoberto pela orelha
chata, no egoísmo brutal de encontrar em si toda atenção.
Os leitões vinham por vezes, barulhentos e às camba-
lhotas, envolverem-se na sua saia e ela sacudia-os de nojo,
batendo-lhes com os pés, dando-lhes com torça. Os porcos
não a temiam, andavam perto, fazendo desaparecer tudo
diante da sofreguidão dos seus focinhos rombudos e móveis,

61
que iam e vinham grunhindo, babosos, hediondos, sujos da
lama em que se deleitavam, ou alourados pelo pó de milho,
que estava ali aos montes, flavescendo ao sol.
Ah! Os porcos eram um bom sumidouro para os vícios
do caboclo! Umbelina execrava-os e ia passando de modo de
acabar com o filho duma maneira menos degradante e menos
cruel.
Guardar a criança... mas como? O seu olhar interrogava
em vão o horizonte frouxelado de nuvens.
O amante, filho do patrão, tinha-a posto de lado... di-
ziam até que ia casar com outra! Entretanto achavam-na todos
bonita, no seu tipo de índia, principalmente aos domingos,
quando se enfeitava com as maravilhas vermelhas, que lhe
davam colorido à pele bronzeada e a vestiam toda com um
cheiro doce e modesto...
Eram duas da madrugada, quando a Umbelina entrea-
briu um dia a porta da casa paterna e se esgueirou para o
terreiro.
Fazia luar; todas as coisas tinham um brilho suavíssimo.
A água do monjolo caia em gorgolões soluçados, flanqueando
o rancho de sapé, e correndo depois em fio luminoso e trê-
mulo pela planície afora. Flores de gabiroba e de esponjeira
brava punham lençóis de neve na extensa margem do córre-
go; todas as ervas do mato cheiravam bem. Um galo cantava
perto, outro respondia mais longe, e ainda outro, e outro, até
que as vozes dos últimos se confundiam na distância com os
mais leves rumores noturnos.
Umbelina afastou com a mão febril o xale que a envol-
via, e, descobrindo a cabeça, investigou com olhar sinistro o
céu profundo.
Onde se esconderia o grande Deus, divinamente mise-
ricordioso, de quem o padre falava na missa do arraial em

62
termos que ela não atingia, mas a faziam estremecer?
Ninguém pode fugir ao seu destino, diziam todos; es-
taria então escrito que a sua sorte fosse essa que o pai lhe
prometia de matar a fome dos porcos com a carne da sua
carne, o sangue do seu sangue?!
Essas coisas rolavam-lhe pelo espirito, indeterminadas
e confusas. A raiva e o pavor do parto estrangulavam-na.
Não queria bem ao filho, odiava nele o amor enganoso do
homem que a seduzira. Matá-lo-ia, esmagá-lo-ia mesmo, mas
lançá-lo aos porcos... isso nunca! E voltava-lhe à mente, num
arrepio, aquele bracinho solto, que ela tivera entre os dedos
indiferentes, na sua bestialidade de cabocla matuta.
O céu estava limpo, azul, num céu de janeiro, quente,
vestido de luz, com a sua estrela Vésper enorme e diamanti-
na, e a lua muito grande, muito forte, muito esplendorosa!
A cabocla espreitou com olho vivo para os lados da roça
de milho, onde ao seu ouvido agudíssimo parecera sentir
uma bulha cautelosa de pés humanos: mas não veio ninguém,
e ela, abrasada, arrancou o xale dos ombros e arrastou-o no
chão, segurando-o com a mão, que as dores do parto cres-
tavam convulsivamente. O corpo mostrou-se disforme, mal
resguardado por uma camisa de algodão e uma saia de chita.
Pelos ombros estreitos agitavam-se as pontas do cabelo negro
e luzidio; o ventre pesado, muito descaído dificultava-lhe a
marcha, que ela interrompia amiúde para respirar alto, ou
para agachar-se, contorcendo-se toda.
A sua ideia era ir ter o filho na porta do amante, matá-lo
ali, nos degraus de pedra, que o pai havia de pisar de manhã,
quando descesse para o passeio costumado.
Uma vingança doida e cruel aquela, que se fixara havia
muito tempo no seu coração selvagem.
A criança tremia-lhe no ventre, como se pressentisse

63
que entraria na vida para entrar no túmulo, e ela apressava
os passos nervosamente por sobre as folhas da trapoeiraba
maninha.
Ai! Iam ver agora quem era a cabocla! Desprezavam-na?
Riam-se dela? Deixavam-na à toa como um cão sem dono?
Pois que esperassem! E ruminava seu plano, receando esque-
cer alguma minúcia...
Deixaria a criança viver alguns minutos, fá-la-ia mesmo
chorar, para que o pai lá dentro, entre o conforto do seu col-
chão de paina, que ela desfiara cuidadosamente, lhe ouvisse
os vagidos débeis e os guardasse sempre na memória, como
um remorso.
Ela estava perdida. Em casa não a queriam; a mãe re-
negava-a, o pai batia-lhe, o amante fechava-lhe as portas...
e Umbelina praguejava alto, ameaçando de fazer cair sobre
toda a gente a cólera divina!
O luar com a sua luz brancacenta e fria iluminava a
triste caminhada daquela mulher quase nua e pesadíssima,
que ia golpeada de dores e de medo através dos campos. Um-
belina ladeou a roça de milho, já seca, muito amarelada, e que
estalava ao contato do seu corpo mal firme: passou depois
o grande canavial, dum verde d’água, que o luar enchia de
doçura e que se alastrava pelo morro abaixo, até lá perto do
engenho, na esplanada da esquerda. Por entre as canas houve
um rastejar de cobras, e ergueu-se da outra banda, na negru-
ra do mandiocal, um voo fofo de ave assustada. A cabocla
benzeu-se e cortou direito pelo terreno mole do feijoal ainda
novo, esmagando sob a sola dos pés curtos e trigueiros as
folhinhas tenras da planta ainda sem flor. Depois abriu lá em
cima a cancela, que gemeu prolongadamente nos movimen-
tos de ida e volta, com que ela o impeliu para diante e para
trás, entrou no pasto da fazenda. Uma grande nudez por todo

64
o imenso gramado. O terreno descia numa linha suave até o
terreiro da habitação principal, que aparecia ao longe num
ponto branco. A cabocla abaixou-se tolhida, suspendendo o
ventre com as mãos.
Toda a sua energia ia fugindo, espavorida com a dor
física, que se aproximava em contrações violentas. A pouco e
pouco os nervos distenderam-se e o quase bem-estar da exte-
nuação fê-la deixar-se ficar ali, imóvel, com o corpo na terra
e a cabeça erguida para o céu tranquilo. Uma onda de poesia
invadiu-a toda: eram os primeiros enleios da maternidade,
a pureza inolvidável da noite, a transparência lúcida dos
astros, os sons quase imperceptíveis e misteriosos, que lhe
pareciam vir de longe, de muito alto, como um eco fugitivo
da música dos anjos, que diziam haver no céu sob o manto
azul e flutuante da Virgem Mãe de Deus...
Umbelina sentia uma grande ternura tomar-lhe o cora-
ção, subir-lhe aos olhos. Não a sabia compreender e deixava-
-se ir naquela vaga sublimemente piedosa e triste...
Súbito, sacudiu-a uma dor violenta, que a tomou de
assalto, obrigando-a a cravar as unhas no chão. Aquela bruta-
lidade fê-la praguejar e ergueu-se depois raivosa e decidida.
Tinha de atravessar todo o comprido pasto, a margem do
lago e a orla do pomar, antes de cair na porta do amante.
Foi; mas as forças diminuíam e as dores repetiam-se cada vez
mais próximas.
Lá embaixo aparecia já a chapa branca, batida do luar,
das paredes da casa.
A roceira ia com os olhos fitos nessa luz, apressando os
passos cansados. O suor caía-lhe em bagas grossas por todo
o corpo, ao tempo que as pernas se lhe vergavam ao peso da
criança.
No meio do pasto, uma figueira enorme estendia os

65
braços sombrios, pondo uma mancha negra em toda aquela
extensão de luz. A cabocla quis esconder-se ali, cansada da
claridade, com medo de si mesma, dos pensamentos peca-
minosos que tumultuavam no seu espirito e que a lua santa
e branca parecia penetrar e esclarecer. Ela alcançou a sombra
com passadas vacilantes; mas os pés inchados e dormentes
já não sentiam o terreno e tropeçavam nas raízes das árvo-
res, muito estendidas e salientes no chão. A cabocla caiu de
joelhos, amparando-se para a frente nas mãos espalmadas. O
choque foi rápido e as últimas dores do parto vieram tolhê-la.
Quis reagir e ainda levantar-se, mas já não pode, e furiosa
descerrou os dentes, soltando os últimos e agudíssimos gritos
da expulsão.
Um minuto depois a criança chorava sufocadamente.
A cabocla então arrancou com os dentes o cordão da saia e,
soerguendo o corpo, atou com firmeza o umbigo do filho, e
enrolou-o no xale, sem olhar quase para ele, com medo de o
amar...
Com medo de o amar!... No seu coração de selvagem
desabrochava timidamente a flor da maternidade. Umbelina
levantou-se a custo com o filho nos braços. O corpo esmagado
de dores, que parecia esgarçarem-lhe as carnes, não obedecia
à sua vontade. Lá embaixo a mesma chapa de luz alvacenta
acenava-lhe, chamando-a para a vingança ou para o amor.
Julgava agora que se batesse àquelas janelas e chamasse o
amante, ele viria comovido e trêmulo beijar o seu primeiro
filho. Aventurou-se em passadas custosas a seguir o seu
caminho, mas voltaram-lhe depressa as dores e, sentindo-se
esvair, sentou-se na grama para descansar. Descobriu então
a meio o corpo do filho; achou-o branco, achou-o bonito, e
num impulso de amor beijou-o na boca. A criança moveu os
lábios na sucção dos recém-nascidos e ela deu-lhe o peito. O

66
pequenino puxava inutilmente, a cabocla não tinha alento,
a cabeça pendia-lhe numa vertigem suave, veio-lhe depois
outra dor, os braços abriram-se-lhe e ela caiu de costas.
A lua sumia-se, e os primeiros alvores da aurora tingi-
ram dum róseo dourado todo o horizonte. Em cima o azul
carregado da noite mudava para um violeta transparente,
esbranquiçado e diáfano. Foi no meio daquela doce transfor-
mação da luz que Umbelina mal distinguiu um vulto negro,
que se aproximava lentamente, arrastando no chão as mamas
pelancosas, com o rabo fino, arqueado sobre as ancas enor-
mes, o pelo hirto, irrompendo ralo da pele escura e rugosa, e
o olhar guloso, estupidamente fixo: era uma porca.
Umbelina sentiu-a grunhir. Viu confusamente os movi-
mentos repetidos do seu focinho trombudo, gelatinoso, que
se arregaçava, mostrando a dentuça amarelada, forte. Um so-
pro frio correu por todo o corpo da cabocla, e ela estremeceu
ouvindo um gemido doloroso, dolorosíssimo, que se cravou
no seu coração aflito. Era o filho! Quis erguer-se, apanhá-lo
nos braços, defendê-lo, salvá-lo... mas continuava a esvair-se,
os olhos mal se abriam, os membros lassos não tinham vigor,
e o espírito mesmo perdia a noção de tudo.
Entretanto, antes de morrer, ainda viu, vaga, indistinta-
mente, o vulto negro e roliço da porca, que se afastava com
um montão de carne perdurado nos dentes, destacando-se
isolada e medonha naquela imensa vastidão cor de rosa.

67
68
69
Ambrose Bierce
1842 - 1913 ou 14

Dono de uma vida agitada, seja nos anos no exército,


seja no tempo de escritor, nada na história do autor foi
apenas trivial. Seu talento único criou e influenciou vários
gêneros literários e inúmeros autores posteriores. O olhar
crítico e a visão afiada garantiram para ele fama, assim
como alguns afetos e muitos desafetos. Não podemos
questionar entretanto que seu talento literário lhe garantiu
lugar no rol dos grandes nomes da literatura mundial.
Não se sabe ao certo quando morreu. Aos 71 anos
foi para o México e nunca mais se teve notícias dele. Seu
destino não poderia ser outro que não fosse envolto em
mistério.
Lendo o conto O Estranho (1909), penso que de certa
forma ele se relaciona com o destino funesto do autor. De
muitas maneiras essa pequena pérola do horror na obra
de Bierce faz alusão ao seu próprio fim de vida incerto e
nublado.
Ao terminar a leitura você entenderá e talvez veja
o velho Bierce apenas sumindo na escuridão, rumo
à eternidade. Cínico como era, não poderia ser mais
merecido.

Arte da página anterior por Oz


O Estranho foi publicado originalmente em 1909
70
O Estranho

U m homem saiu da escuridão para o pequeno círcu-


lo iluminado de nossa fogueira de acampamento e se sentou
sobre uma rocha.
- Vocês não são os primeiros a explorar essa região. -
disse gravemente.
Ninguém retrucou sua declaração, ele próprio era a pro-
va de sua verdade, pois ele não era do nosso grupo e devia
estar em algum lugar próximo quando acampamos. Além
disso, ele deve ter companheiros não muito longe, não era
um lugar onde alguém estaria vivendo ou viajando sozinho.
Por mais de uma semana vimos, além de nós mesmos
e de nossos animais, apenas seres vivos como cascavéis e
lagartos do deserto. Em um deserto do Arizona não se coe-
xiste por muito tempo apenas com essas criaturas, é preciso
ter animais de carga, suprimentos, armas, “vestes”, e tudo
isso implica em companheiros. Talvez fosse a dúvida sobre
que tipo de homens, os companheiros deste estranho sem
cerimônia poderiam ser, somado com algo em suas palavras
que soavam como um desafio, que fez com que cada homem
de nossa meia dúzia de “aventureiros” se empertigar e colo-
car a mão sobre uma arma - um ato que significava, naquele
tempo e lugar, uma postura de expectativa. O estranho não
deu atenção e começou novamente a falar com o mesmo tom
monótono, deliberado e inflexionado no qual ele havia profe-
rido sua primeira frase:
“Há 30 anos, Ramon Gallegos, William Shaw, George
W. Kent e Berry Davis, todos de Tucson, cruzaram as mon-

71
tanhas de Santa Catalina e viajaram para Oeste, avançando
tanto quanto a composição do território permitiu. Estávamos
explorando e era nossa intenção, se não encontrássemos nada,
passar pelo Rio Gila em algum ponto perto de Big Bend, onde
entendemos que havia um assentamento. Tínhamos um bom
equipamento, mas nenhum guia - apenas Ramon Gallegos,
William Shaw, George W. Kent e Berry Davis.”
O homem repetiu os nomes lentamente e distintamente,
como se para fixá-los na memória de seu público, cada mem-
bro do qual estava agora observando-o atentamente, mas
com uma apreensão enfraquecida a respeito de seus possí-
veis companheiros estarem em algum lugar na escuridão que
parecia nos enclausurar como uma parede negra. Na postura
deste historiador voluntário não havia sugestão de possuir
um propósito hostil. Seu ato era mais de um lunático inofen-
sivo do que um inimigo. Não éramos tão novos no local para
não saber que a vida solitária de muitos camponeses têm uma
tendência a desenvolver excentricidades de conduta e caráter,
nem sempre facilmente distinguível de desordens mentais.
Um homem é como uma árvore: em uma floresta com seus
companheiros ele crescerá tão corretamente quanto sua na-
tureza genérica e individual permitir. Sozinho ao ar livre, ele
cede às tensões deformadoras e torções que o cercam. Alguns
desses pensamentos percorriam minha mente enquanto eu
observava o homem por baixo de meu chapéu, puxado para
baixo para abrandar a luz do fogo. Um sujeito sem juízo, sem
dúvidas, mas o que ele poderia estar fazendo lá no coração do
deserto?
Tendo decidido contar esta história, eu gostaria de
poder descrever a aparência do homem, isso seria uma coisa
natural de se fazer. Infelizmente, e até estranhamente, eu me
vejo incapaz de fazê-lo com qualquer grau de confiança, pois

72
mais tarde nenhum de nós concordou com o que ele usava e
como ele se parecia, e quando tento definir minhas próprias
impressões, elas me iludem. Qualquer um pode contar algum
tipo de história, a narração é um dos poderes elementares da
raça humana, mas o talento para descrições é um dom.
Uma vez que ninguém quebrou o silêncio, o visitante
continuou a dizer:
“Este país não era então o que é agora. Não havia um
rancho entre Gila e o Golfo. Houve um pouco de caça aqui e
ali nas montanhas, e perto dos buracos de água um pouco de
grama, o suficiente para evitar que nossos animais morressem
de fome. Se tivéssemos a sorte de não encontrar índios, talvez
conseguíssemos passar, mas dentro de uma semana o propó-
sito da expedição tinha mudado: da descoberta da riqueza
para a preservação da vida. Tínhamos ido longe demais para
voltar, pois o que estava à frente não poderia ser pior do que
o que estava atrás, e então nos esforçamos para seguir adian-
te, cavalgando à noite para evitar índios e o calor intolerável,
e escondendo-nos durante o dia o melhor que conseguíamos.
Às vezes, tendo esgotado nosso suprimento de carne selva-
gem e esvaziado nossos barris, ficávamos dias sem comida ou
bebida, e então, um buraco de água ou uma pequena poça de
um arroio, assim, restaurava nossa força e sanidade para que
fossemos capazes de atirar em alguns dos animais selvagens
que procuravam por água também. Algumas vezes era um
urso, outras um antílope, um coiote, um puma - pela vontade
de Deus, tudo era comida.
Uma manhã, quando contornamos uma cadeia de
montanhas, buscando uma passagem viável, fomos atacados
por um bando de Apaches que seguiram nossa trilha até uma
ravina, não muito longe dali. Sabendo que eles nos supera-
vam em dez para um, eles não tomaram nenhuma de suas

73
precauções covardes habituais, mas correram sobre nós a
galope, atirando e gritando. Lutar estava fora de questão: nós
incitamos nossos animais fracos a subir pela ravina até onde
havia lugar para um casco, em seguida, jogamo-nos para fora
de nossas selas e nos dirigimos para o chaparral em uma das
encostas, abandonando todo o nosso equipamento para o
inimigo. Nós mantivemos nossos rifles entretanto, todos os
homens - Ramon Gallegos, William Shaw, George W. Kent e
Berry Davis.
- A mesma velha turma - disse o humorista de nossa
turma. Ele era um homem do Leste, não familiarizado com as
práticas decentes da relação social. Um gesto de desaprova-
ção de nosso líder silenciou-o, e o estranho prosseguiu com
sua história:
- Os selvagens desmontaram também, e alguns deles
correram até a ravina além do ponto em que o tínhamos
deixado, cortando caminho nessa direção e nos forçando a
subir pela lateral. Infelizmente, a charneca se estendia por
apenas uma curta distância até a encosta, e quando entramos
no solo aberto acima, fomos atingidos pelo fogo de uma
dúzia de rifles, mas os Apaches atiram mal quando estão
com pressa, e Deus queria copiosamente que nenhum de nós
caísse. Dezoito metros acima da encosta, além da borda da
trincheira, existiam falésias verticais, nas quais, diretamente à
nossa frente, havia uma abertura estreita. Para ela corremos,
nos encontrando em uma caverna tão grande quanto um cô-
modo comum em uma casa. Aqui por um tempo estávamos
seguros: um único homem com um rifle de repetição poderia
defender a entrada contra todos os Apaches na Terra, mas
contra a fome e a sede não tínhamos amparo. Coragem ainda
tínhamos, mas esperança era apenas uma lembrança.
Nenhum desses índios vimos depois, mas pela fumaça e

74
brilho de seus fogaréus na ravina sabíamos que de dia e à noi-
te eles observavam com rifles prontos na borda da trincheira
- sabíamos que se fizéssemos algum movimento, nenhum de
nossos homens viveria para dar três passos ao ar livre. Por
três dias, com vigílias em turnos, nós resistimos antes que
nosso sofrimento se tornasse insuportável. Então, quando era
manhã do quarto dia, Ramon Gallegos disse:
- Señores, não conheço bem o bom Deus e o que lhe
agrada. Eu vivo sem religião, e eu não estou familiarizado
com a de vocês. Perdon, señores, se eu causar choque, mas
para mim chegou a hora de vencer o jogo dos Apaches.
Ele ajoelhou-se sobre o chão da rocha da caverna e pres-
sionou sua pistola contra sua fronte.
- Madre de Dios, disse ele, aí vai agora a alma de Ramon
Gallegos.
E assim ele nos deixou, William Shaw, George W. Kent,
e Berry Davis.
Eu era o líder: era meu dever falar.
- Ele era um homem corajoso, eu disse. - Ele sabia quan-
do morrer, e como. É tolice enlouquecer de sede e cair por
balas Apaches, ou ser esfolado vivo, é de mau gosto. Vamos
nos juntar a Ramon Gallegos.
- Isso mesmo, disse William Shaw.
- Isso mesmo, disse George W. Kent.
Eu endireitei os membros de Ramon Gallegos e coloquei
um lenço em seu rosto. Então William Shaw disse:
- Eu gostaria de ficar assim, por um tempo.
E George W. Kent disse que também se sentia assim.
- Assim será, disse eu - os demônios vermelhos espe-
rarão uma semana. William Shaw e George W. Kent, empu-
nhem as armas e se ajoelhem.
Eles fizeram isso e eu fiquei diante deles.

75
- Deus Todo-Poderoso, nosso Pai - disse eu.
- Deus Todo-Poderoso, nosso Pai - disse William Shaw.
- Deus Todo-Poderoso, nosso Pai- disse George W.
Kent.
- Perdoe-nos os nossos pecados- disse eu.
- Perdoe-nos os nossos pecados - disseram eles.
- E receba nossas almas.
- E receba nossas almas.
- Amém!
- Amém!
Deitei-os ao lado de Ramon Gallegos e cobri seus ros-
tos.”
Houve uma rápida comoção no lado oposto de nossa
fogueira: um dos nossos membros se levantou, a pistola em
mãos.
- E você! - Ele gritou. - Você se atreveu a escapar? Você
se atreve a estar vivo? Seu cão covarde, eu lhe enviarei para
se juntar a eles, que me enforquem por isso!
Como o salto de uma pantera o capitão estava em cima
dele, segurando seu pulso.
- Espere, Sam Yountsey, espere!
Agora estávamos todos de pé, exceto o estranho, que
estava sentado imóvel e aparentemente desatento. Alguém
agarrou o outro braço de Yountsey.
- Capitão. Há algo errado aqui. Esse sujeito é um luná-
tico ou apenas um mentiroso, apenas um mentiroso comum
e ordinário que Yountsey não tem o direito de matar. Se
este homem pertencesse a esse grupo, o mesmo tinha cinco
membros, um dos quais - provavelmente ele próprio - ele não
nomeou. – eu disse.
- Sim - disse o capitão, soltando o insurgente, que se
sentou. - Há algo...incomum. Anos atrás, quatro corpos de

76
homens brancos, escalpelados e vergonhosamente mutilados,
foram encontrados na boca da caverna. Eles estão enterrados
lá. Eu vi os túmulos, todos nós os veremos amanhã.
O estrangeiro levantou-se, de pé à luz do fogo que
espiralava, que em nossa atenção esbaforida à história dele,
havíamos negligenciado.
- Havia quatro - disse ele. - Ramon Gallegos, William
Shaw, George W. Kent e Berry Davis.
Com essa chamada reiterada dos mortos, ele entrou na
escuridão e não o vimos mais. Naquele momento, um dos
homens de nosso grupo, que estava em guarda, adentrou
nossa reunião com o rifle na mão e um pouco alterado.
- Capitão - disse ele. - Na última meia hora, três homens
estiveram de pé ali no platô. - Ele apontou na direção tomada
pelo estranho. - Eu os via distintamente, pois a lua está alta,
mas como eles não tinham armas e eu conseguia cuidar deles
com a minha, pensei que estavam de passagem. Eles não fize-
ram nenhum movimento, mas caramba! Eles me deram nos
nervos.
- Volte ao seu posto e permaneça lá até vê-los novamen-
te - disse o capitão. - O resto de vocês sentem-se novamente
ou eu vou chutar todos vocês para a fogueira.
O sentinela retirou-se obedientemente, praguejando e não
retornou. Enquanto ajeitávamos nossos cobertores, o feroz
Yountsey disse:
- Desculpe, capitão, mas quem diabos você considera
que eles são?
- Ramon Gallegos, William Shaw e George W. Kent. - Eu
disse. - Acredito que conversamos com Berry Davis.
- Mas e quanto a Berry Davis? Eu devia ter atirado nele.
- Um tanto desnecessário, você não poderia tê-lo deixa-
do mais morto. Vá dormir.

77
78
79
Bram Stoker
1847 - 1912

Não existe como falar de Bram Stoker e não lembrar


de Drácula (1897), sua maior e mais famosa criação. A
associação é imediata e inevitável, mas devemos lembrar
que ele escreveu outras obras, como o conto que leremos a
seguir.
Torna-se interessante saber que O Hóspede de Drá-
cula (1914) só foi publicado dois anos após o falecimento
do autor, por sua esposa Florence.
Ela explica a origem do texto, que foi extirpado do
romance mais famoso de Stoker, por opção dele mesmo,
e guardado como uma história independente. Após a lei-
tura será fácil perceber o motivo que o levou a fazer essa
alteração. Era realmente necessária exatamente porque
entrega rápido demais toda densidade que envolve o
mais famoso vampiro. No romance vemos como a mesma
atmosfera é construída aos poucos, durante a narrativa, o
que é magnífico.
Nem por isso esse texto perde significado. Lendo-o
como uma história à parte, apenas nos mostra como o tal-
ento e genialidade estavam em um patamar absoluto de
excelência. Seja num romance ou em um conto, a criação
de uma atmosfera terrível consegue enlaçar o leitor de
tal forma que todos os seus medos mais profundos são
aflorados.

Arte da página anterior por Marcel Bartholo


O Hóspede de Drácula foi publicado originalmente em 1914
80
O Hóspede de Drácula

E nquanto nos preparávamos para nosso passeio, o


sol estava brilhando vivamente em Munique, e o ar estava
cheio de alegria por conta do verão adiantado. Quando es-
távamos prestes a partir, Herr Delbrück (o maitre do hotel
do Quatre Saisons, onde eu estava hospedado) desceu sem
chapéu até a carruagem e, depois de me desejar uma viagem
agradável, disse ao cocheiro ainda com a mão na maçaneta da
porta da carruagem:
- Lembre-se, você deve estar de volta ao anoitecer. O
céu parece brilhante, mas o vento norte traz calafrios, o que
diz que pode haver uma tempestade repentina, porém, tenho
certeza de que você não se atrasará. - Então ele sorriu e acres-
centou - pois você sabe que noite é hoje.
Johann respondeu enfaticamente:
- Ja, mein Herr. - E, tocando seu chapéu, partiu rapida-
mente.
Quando deixamos a cidade eu disse, depois de sinalizar
para ele parar:
- Diga-me, Johann, o que é hoje à noite?
Ele fez o sinal da cruz, respondendo laconicamente:
- Walpurgisnacht.
Então ele pegou o relógio, de prata alemã à moda antiga
do tamanho de um nabo, e olhou para ele, com as sobran-
celhas juntas e um pequeno impaciente encolher de ombros.
Percebi que essa era sua maneira de protestar respeitosamen-
te contra o atraso desnecessário, e assim, afundei de volta na
carruagem, apenas fazendo sinal para que ele prosseguisse.

81
Ele seguiu rapidamente, como se quisesse recuperar o tempo
perdido. De vez em quando os cavalos pareciam erguer a
cabeça e cheirar o ar com desconfiança, nessas ocasiões eu
sempre olhava em volta alarmado. A estrada era bastante
desolada, estávamos atravessando uma espécie de platô alto
e varrido pelo vento. Durante o percurso, vi uma estrada
que parecia raramente usada e que parecia mergulhar em
um pequeno vale sinuoso. Ela parecia tão convidativa que,
mesmo correndo o risco de ofendê-lo, pedi para que Johann
parasse - e quando ele parou, eu disse que gostaria de seguir
por aquela estrada. Ele deu todo tipo de desculpas e frequen-
temente se benzia enquanto falava. Isso, de alguma forma,
despertou minha curiosidade, então fiz várias perguntas. Ele
respondeu de modo evasivo e olhou repetidamente para o
relógio em sinal de protesto. Finalmente eu disse:
- Bem, Johann, eu desejo ir por este caminho. Não pedi-
rei que você venha a menos que queira, mas me diga por que
você não gostaria de ir, é tudo o que peço.
Como resposta, ele chegou ao chão tão rapidamente
que parecia que ele havia se jogado da carruagem. Então ele
estendeu as mãos para mim de modo a apelar e me implorou
para não ir. Havia apenas inglês suficiente misturado com o
alemão para que eu pudesse entender a ideia geral de sua
fala. Ele parecia sempre prestes a me dizer algo - a ideia do
mesmo evidentemente o apavorava e enquanto fazia o sinal
da cruz dizia:
- Walpurgisnacht.
Eu tentei argumentar com ele, mas era difícil discutir
com um homem quando eu não sabia sua língua. A vantagem
certamente estava com ele, porque, embora começasse a falar
em inglês de um tipo muito cru e entrecortado, ele sempre
começava a falar excitado e retornava para sua língua nativa

82
e, cada vez que assim o fazia, olhava seu relógio. De repente
os cavalos ficaram inquietos e cheiraram o ar, com isso ele
ficou muito pálido, olhando em volta de um jeito apavorado.
Subitamente deu um pulo, pegou-os pelas rédeas e os guiou
a uns seis metros adiante. Eu o segui e perguntei por que ele
havia feito isso. Como resposta ele se benzeu, apontou para
o local que havíamos deixado e direcionou sua carruagem na
direção da outra estrada, indicando uma cruz, e disse, primei-
ro em alemão, depois em inglês:
- Enterrado ele... ele que matou a ele mesmo.
Lembrei-me do velho costume de enterrar suicidas em
encruzilhadas:
- Ah! Compreendo, um suicídio. Que interessante. -
Juro pela minha vida que eu não conseguia entender por que
os cavalos estavam aterrorizados.
Enquanto conversávamos, ouvimos uma espécie de som
entre um ganido e um latido. Fora ao longe, mas os cavalos
ficaram tão irrequietos que Johann levou muito tempo para
acalmá-los. Ele estava pálido e disse:
- Soa como um lobo, mas ainda não há lobos aqui agora.
- Não? - Eu disse, questionando-o: - Não faz muito
tempo desde que os lobos estavam bem perto da cidade, não
é mesmo?!
- Muito, muito, - respondeu ele - na primavera e verão,
mas com a neve os lobos já não estão aqui.
Enquanto ele estava acariciando os cavalos e tentando
acalmá-los, nuvens escuras flutuavam rapidamente pelo céu.
O brilho do sol se foi e um sopro de vento frio parecia passar
por nós. Foi apenas um sopro, no entanto, soando mais como
um aviso do que um fato, pois o sol surgiu brilhantemente em
seguida. Johann olhou sob sua mão levantada no horizonte e
disse:

83
- A tempestade de neve, ele vem em não muito tempo.
Então ele olhou para o seu relógio novamente enquanto
segurava as rédeas com firmeza, pois os cavalos ainda esta-
vam golpeando o chão inquietos, e balançando a cabeça ele
subiu para a boleia como se a hora de prosseguir com nossa
jornada tivesse chegado. Senti-me um pouco obstinado e não
entrei de uma vez na carruagem.
- Diga-me, - disse enquanto apontava para baixo - sobre
este lugar onde essa estrada leva.
Novamente ele fez o sinal da cruz e murmurou uma
oração antes de responder:
- É profano.
- O que é profano? - Eu questionei.
- A aldeia.
- Então há uma aldeia?
- Não, não. Ninguém vive lá centenas de anos. - Disse
ele.
Minha curiosidade foi despertada:
- Mas você disse que havia uma aldeia.
- Havia.
- O que aconteceu?
Ele disparou a contar uma longa história em alemão e
inglês, tão confusa que eu não conseguia entender exatamen-
te o que ele dissera, mas, com dificuldade, eu compreendi que
há centenas de anos, homens tinham morrido e sido enterra-
dos em seus túmulos lá. Sons foram ouvidos sob a argila e,
quando os túmulos foram abertos, homens e mulheres foram
encontrados corados e com vida e suas bocas vermelhas com
sangue. E assim, em desespero para salvar suas vidas (sim, e
suas almas! - e aqui ele se benzeu) aqueles que restaram fu-
giram para outros lugares, onde os vivos viviam, e os mortos
eram mortos e não... outra coisa. Ele estava evidentemente

84
com medo de falar as últimas palavras. À medida que ele
prosseguia com sua narrativa, ele ficava cada vez mais exal-
tado. Parecia que sua imaginação tinha tomado as rédeas, e
ele terminou em um perfeito paroxismo do medo - pálido,
transpirando, tremendo e olhando em volta, como se esperas-
se que alguma presença nefasta fosse se manifestar lá no sol
brilhante da planície. Finalmente, em agonia e desespero, ele
gritou:
- Walpurgisnacht! - E apontou para que eu entrasse na
carruagem.
Todo o meu sangue inglês subiu à cabeça e, recuando,
eu disse:
- Você está com medo, Johann, está com medo. Vá para
casa. Voltarei sozinho, a caminhada me fará bem. - A porta da
carruagem estava aberta. Peguei do banco minha bengala de
carvalho, que sempre carrego em minhas excursões de férias,
e fechei a porta. Apontando de volta para Munique disse: -
Vá para casa, Johann, Walpurgisnacht não diz respeito aos
ingleses.
Os cavalos estavam agora mais inquietos do que nunca,
e Johann estava tentando segurá-los, enquanto me implorava
com exaltação para não fazer algo tão tolo. Eu tinha pena do
pobre coitado, ele falava demasiadamente sério, mas mesmo
assim eu não conseguia deixar de rir. Seu inglês tinha ido
praticamente todo embora agora. Em sua ansiedade, ele tinha
esquecido que seu único meio de me fazer entender a situação
era falar a minha língua, então ele tagarelou em seu alemão
nativo. Começou a se tornar um pouco tedioso. Depois de dar
a direção “Casa!”, virei-me para descer a encruzilhada até o
vale.
Com um gesto desesperado, Johann virou seus cavalos
para Munique. Eu me inclinei em minha bengala e me voltei

85
para ele, que prosseguiu lentamente ao longo da estrada por
um tempo. Em seguida, na crista da colina, um homem alto
e magro surgiu. Eu mal podia ver à distância. Quando ele se
aproximou dos cavalos, eles começaram a galopar e dar coices
no ar, e então relincharam com terror. Johann não conseguiu
segurá-los, eles fugiram pela estrada, correndo loucamente.
Eu os observei sair de vista e então procurei pelo estranho,
mas descobri que ele, também, havia partido.
Sentindo-me leve, eu segui a estrada secundária através
do vale profundo ao qual Johann tinha condenado. Não havia
a menor razão, ao que pude ver, para sua reprovação, mas
ouso dizer que perambulei por algumas horas sem pensar no
tempo ou distância, e certamente sem ver uma pessoa ou casa.
No que diz respeito ao lugar, era a própria desolação, mas eu
não reparei nisso particularmente até que, ao virar uma curva
na estrada, eu me deparei com uma orla esparsa da floresta,
então eu entendi eu estava inconscientemente impressionado
pela degradação da região pela qual eu havia passado.
Sentei-me para descansar e comecei a olhar ao redor.
Surpreendeu-me que estava consideravelmente mais frio que
no início de minha caminhada - uma espécie de som parecia
me cercar, como se fossem suspiros e, de vez em quando, aci-
ma de mim, uma espécie de rugido abafado soava. Olhando
para cima, notei que grandes nuvens espessas estavam des-
lizando rapidamente através do céu de Norte a Sul em uma
grande altitude. Havia sinais de tempestade vindo de algum
lugar. Estava um pouco frio, e, pensando que era por conta
da parada após o exercício da caminhada, eu retomei minha
jornada.
O chão agora era muito mais rudimentar. Não havia
objetos marcantes que poderiam chamar atenção ao olhar,
mas em tudo havia uma beleza encantadora. Eu prestei pouca

86
atenção no tempo e foi só quando o crepúsculo se sobrepôs a
mim que comecei a pensar que eu deveria encontrar o cami-
nho de casa, e em como o faria. O brilho do dia havia partido,
o ar estava frio, as nuvens à deriva acima estavam mais
proeminentes. Elas eram acompanhadas por uma espécie de
rugido distante, o qual parecia vir intercalado com aquele
grito misterioso que o cocheiro tinha dito que pertencia a um
lobo. Por algum tempo eu hesitei. Eu tinha dito que veria a
vila deserta, portanto, eu prossegui e agora havia chegado a
um amplo trecho de campo aberto cercado por colinas. Suas
laterais estavam cobertas com árvores que desciam até a
planície, se aglomerando em alguns pontos, pontuando as
encostas mais suaves e depressões presentes aqui e ali. Segui
com meu olho a estrada sinuosa, vi que ela se curvava perto
de um dos mais densos desses aglomerados e se perdia atrás
dela.
Enquanto eu olhava surgiu um arrepio frio no ar, e a
neve começou a cair. Pensei nos quilômetros e quilômetros de
país desolado que eu tinha passado, e então corri para buscar
o abrigo da floresta à frente. Mais e mais sombrio se tornou
o céu, mais rápido e mais pesada caiu a neve, até que a terra
atrás de mim e ao meu redor se tornasse um tapete branco
brilhante, a margem mais distante se perdia e se tornava
indistinguível. A estrada ainda estava ali, mas era imprecisa,
em alguns níveis indistinta, quando cruzava certas áreas. Em
pouco tempo eu descobri que eu devo ter me desviado da
estrada, pois eu perdi sob os pés a superfície dura da mesma,
afundei mais fundo na grama e musgo. Então o vento ficou
mais forte e soprou com uma força cada vez maior, até que
me encontrei lutando contra ele. O ar ficou gélido e, apesar
do meu esforço, comecei a sofrer. A neve estava caindo tão
densamente e espiralando ao meu redor em redemoinhos tão

87
rápidos que eu mal conseguia manter meus olhos abertos. De
vez em quando os céus eram rasgados por raios vívidos e nos
clarões eu podia ver à minha frente uma grande massa de
árvores, principalmente teixos e ciprestes, todos fortemente
recobertos de neve.
Eu logo estava entre o abrigo das árvores e lá, em seu
silêncio comparativo, eu podia ouvir o rugido do vento acima
de mim. Neste momento, a escuridão da tempestade tinha se
fundido nas trevas da noite. Vez ou outra a tempestade pare-
cia estar extinguindo-se: vindo somente em sopros ferozes ou
explosões. Nessas horas, o som estranho do lobo parecia ser
ecoado por muitos sons similares ao meu redor.
De vez em quando, através da massa negra de nuvens
à deriva, surgia um raio de luar que iluminava a extensão, e
me mostrou que eu estava à beira de uma densa extensão de
ciprestes e árvores de teixo. Como a neve tinha deixado de
cair, eu saí do abrigo e comecei a investigar mais de perto.
Pareceu-me que, entre tantas fundações antigas que eu tinha
passado, poderia haver ainda uma casa de pé, ainda que em
ruínas, onde eu poderia encontrar algum tipo de abrigo por
um tempo. Enquanto eu contornava a orla do bosque, desco-
bri que uma parede baixa o cercava, até que encontrei uma
abertura. Aqui os ciprestes formaram um beco que leva a uma
extensão quadrada de algum tipo de construção. Assim que
eu a vi, no entanto, as nuvens escureceram a lua e eu cruzei
o caminho na escuridão. O vento deve ter se tornado mais
gélido, pois eu me peguei tremendo enquanto caminhava,
mas havia a esperança de abrigo então eu tateei meu caminho
cegamente.
Eu parei, pois houve uma quietude súbita. A tempes-
tade havia passado e, talvez em simpatia com o silêncio da
natureza, meu coração parecia ter deixado de bater, mas

88
isso foi apenas momentaneamente, pois de repente a luz da
lua rompeu as nuvens, mostrando-me que eu estava em um
cemitério e que o objeto quadrado diante de mim era uma
grande tumba maciça de mármore, tão branca quanto a neve
que estava sobre e ao seu redor. Com o luar veio um suspiro
feroz da tempestade, que parecia retomar seu curso com um
longo e baixo uivo, como de muitos cães ou lobos. Fiquei ad-
mirado e chocado, senti o frio perceptivelmente crescer sobre
mim, até que parecia me agarrar pelo coração. Então, enquan-
to a inundação da luz do luar ainda recaía sobre a tumba, a
tempestade mostrou mais evidências do seu retorno, como se
tivesse retomado fôlego. Impelido por algum tipo de fascínio,
aproximei-me do sepulcro para ver o que era, e por que tal
coisa ficava sozinha em tal lugar. Eu andei em torno dele e li
sobre a porta dórica, em alemão:

CONDESSA DOLINGEN DE GRATZ, DE ESTÍRIA.


ENCONTRADA MORTA, 1801

No topo da tumba, aparentemente atravessando o


mármore sólido - pois a estrutura era composta por alguns
grandes blocos de pedra - havia uma grande haste de ferro
ou estaca. Ao olhar para trás eu vi, gravado em grandes letras
russas:

“OS MORTOS VIAJAM RÁPIDO.”

Havia algo tão estranho e assombroso sobre a coisa toda


que me desnorteei e me senti muito fraco. Comecei a desejar,
pela primeira vez, que tivesse seguido o conselho de Johann.
Aqui um pensamento me atingiu, e veio sob circunstâncias

89
quase misteriosas e trazendo um choque terrível. Esta era a
Noite de Walpurgis!
Noite de Walpurgis, ou Noite de Santa Valburga, quan-
do, de acordo com a crença de milhões de pessoas, o diabo
estava na superfície - era quando as sepulturas eram abertas
e os mortos saíam e caminhavam. Quando todas as coisas
malignas da terra, ar e água se regorjizavam. Este mesmo
lugar o cocheiro tinha especialmente evitado. Esta era a vila
despovoada de séculos atrás. Era aqui que o suicida estava, e
este era o lugar onde eu estava sozinho - abatido, tremendo
de frio em uma mortalha de neve com uma tempestade sel-
vagem se reunindo novamente sobre mim! Foi preciso tudo
que a minha filosofia e a religião que me ensinaram, de toda a
minha coragem, para não entrar em colapso em um paroxis-
mo de medo.
E agora um tornado perfeito explodiu acima de mim. O
chão tremeu como se milhares de cavalos trovejassem atra-
vés dele, e desta vez a tempestade perfurou com suas asas
geladas, não neve, mas grandes pedras de granizo que eram
atiradas com tanta violência que poderiam ter sido atiradas
pelos Balearic - granizo que derrubaram folhas e galhos e
fizeram o abrigo dos ciprestes não mais proveitoso do que se
fossem plantações de milho. A primeiro momento eu tinha
corrido para a árvore mais próxima, mas logo fui forçado a
abandoná-la e procurar abrigo no único lugar que parecia
oferecer refúgio, a profunda porta dórica da tumba de már-
more. Lá, agachado contra a enorme porta de bronze, ganhei
uma certa proteção contra a batida das pedras de granizo,
pois agora elas eram voltadas apenas contra mim enquanto
ricocheteavam do chão e nas laterais do mármore.
Conforme me apoiei contra a porta, ela se moveu ligei-
ramente e abriu para dentro. O abrigo de até mesmo uma

90
tumba era bem-vindo naquela tempestade impiedosa e eu
estava prestes a entrar quando, de repente, um clarão de raios
bifurcados iluminou toda a extensão dos céus. No instante,
juro por minha vida, vi - uma vez que meus olhos estavam
voltados para a escuridão da tumba - uma bela mulher, com
face arredondada e lábios vermelhos, aparentemente dormin-
do em um ataúde. Quando o trovão explodiu, fui agarrado
pela mão de um gigante e arremessado para fora direto para
a tempestade. A coisa toda foi tão repentina que, antes que eu
pudesse perceber o choque, moral e físico, a tempestade de
granizo me derrubou, ao mesmo tempo eu tive uma estranha
e dominante sensação de que eu não estava sozinho. Olhei em
direção a tumba. Só então veio outro clarão ofuscante, que pa-
receu se descarregar atingindo a estaca de ferro que trespas-
sava a tumba, penetrou na terra, explodindo e desmoronando
o mármore, como em uma explosão de chamas. A mulher
morta ergueu-se em um momento de agonia, enquanto ela
estava envolvida na chama, e seu grito amargo de dor foi
afogado pelo trovão. A última coisa que ouvi foi essa mistura
de sons tenebrosos, quando novamente eu fui agarrado pela
mão do gigante e arrastado para longe, as pedras de granizo
me açoitavam e o ar ao redor parecia reverberante com o uivar
de lobos. A última que me lembro que vi foi uma vaga massa
branca em movimento, como se todas as sepulturas ao meu
redor tivessem despachando os fantasmas de seus mortos, e
que eles estavam se aproximando através da nebulosidade
branca do granizo.

****

Gradualmente veio uma espécie vaga de consciência,


em seguida, uma sensação de cansaço que era terrível. Por

91
um tempo eu não me lembrei de nada, mas lentamente meus
sentidos voltaram. Meus pés estavam recobertos de dor, mas,
mesmo assim, eu não conseguia movê-los. Eles pareciam estar
entorpecidos. Havia uma sensação gélida na parte de trás do
meu pescoço e tudo na minha coluna e meus ouvidos, assim
como meus pés, estavam mortos. Ainda em tormento, havia
no meu peito uma sensação de calor que era, em comparação,
deliciosa. Foi como um pesadelo - um pesadelo físico, se é
que pode-se usar tal expressão, pois algum peso no meu peito
tornava difícil de respirar.
Este período de semi-letargia pareceu durar por muito
tempo e, quando essa sensação desapareceu, eu devo ter
dormido ou desmaiado. Então veio uma espécie de aversão,
como o primeiro estágio de um enjoo marítimo, e um desejo
selvagem de se libertar de alguma coisa - eu não sabia do quê.
Uma imensa imobilidade me envolvia, como se todo o mun-
do estivesse dormindo ou morto - apenas com a interferência
de uma respiração ofegante de um animal próximo a mim.
Senti um raspar quente em minha garganta, em seguida veio
a consciência da terrível verdade, que me gelou o coração
e enviou o sangue direto para meu cérebro. Algum grande
animal estava deitado em mim e agora estava lambendo
minha garganta. Eu temia me mexer, pois algum instinto de
prudência me fazia ficar quieto, mas a fera pareceu perceber
que agora havia alguma mudança em mim, pois levantou a
cabeça. Pelos meus cílios, vi acima de mim os dois grandes
olhos flamejantes de um lobo gigantesco. Seus afiados dentes
brancos brilhavam na boca vermelha e eu podia sentir seu
hálito quente, feroz e acre em mim.
Novamente, por um período de tempo, não me lembro
de nada mais. Então me tornei consciente de um rosnado
baixo, seguido de um latido, repetido de novo e de novo.

92
Então, aparentemente muito longe, ouvi um “Olááá! Oláá!”
como muitas vozes chamando em uníssono. Cautelosamente,
levantei a cabeça e olhei na direção de onde vinha o som,
mas o cemitério bloqueava minha visão. O lobo continuava
uivando de um jeito estranho, e um brilho vermelho come-
çou a se mover pelo bosque de ciprestes como se seguisse o
som. Conforme as vozes se aproximaram, o lobo uivava mais
rápido e mais alto. Eu temia fazer tanto um som quanto um
movimento. Para mais perto veio o brilho vermelho, sobre o
manto branco que se estendia na escuridão ao meu redor. De
repente, do outro lado das árvores, surgiu uma tropa de ca-
valeiros carregando tochas. O lobo se levantou do meu peito
e foi de rumo ao cemitério. Vi um dos cavaleiros (soldados de
capacetes e longos mantos militares) levantar sua carabina e
mirar. Um soldado bateu em seu braço e ouvi o projétil zunir
sobre minha cabeça. Evidentemente, ele confundira meu cor-
po com o do lobo. Outro homem avistou o animal enquanto
ele se afastava, e um tiro o seguiu. Então, a galope, a tropa
avançou - alguns na minha direção, outros seguindo o lobo,
que desapareceu entre os ciprestes cobertos de neve.
Quando se aproximaram, tentei me mover, mas estava
impotente, embora pudesse ver e ouvir tudo o que acontecia
ao meu redor. Dois ou três soldados saltaram de seus cavalos
e se ajoelharam ao meu lado. Um deles levantou minha cabe-
ça e colocou a mão sobre o meu coração.
- Boas notícias, camaradas! - Gritou - O coração dele
ainda bate!
Então um pouco de conhaque foi derramado na minha
garganta, isso despertou um vigor em mim e eu consegui abrir
completamente os olhos e olhar em volta. Luzes e sombras
estavam se movendo entre as árvores e ouvi homens chama-
rem uns aos outros. Eles se uniram, proferindo exclamações

93
assustadas, e as luzes brilharam quando os outros saíram do
cemitério em debandada, como homens possuídos. Quando
os outros chegaram perto de nós, aqueles que estavam ao
meu redor perguntaram-lhes ansiosamente:
- Bem, vocês o encontraram?
A réplica veio rápido:
- Não, não. Vamos embora rápido, rápido! Este não é
um lugar para ficar, ainda mais nessa noite, dentre todas as
noites!
- O que era aquilo? - Foi a pergunta feita de vários jeitos.
As respostas vieram de maneira variada e indefinida,
como se os homens fossem movidos por algum impulso em
comum de falar, mas estivessem impedidos por algum medo
de revelar seus pensamentos.
- É ... é mesmo! - Gaguejou um, cuja inteligência havia se
tornado clara neste momento.
- Um lobo, e ainda sim não é um lobo! - Outro adicionou
estremecendo.
- Não adianta tentar matá-lo sem a bala sagrada. - Ob-
servou um terceiro de uma maneira mais casual.
- Bem feito por sair nesta noite! Verdadeiramente fize-
mos por merecer nossos mil marcos! - Foram as declarações
de um quarto homem.
- Havia sangue no mármore quebrado, - disse outro
após uma pausa - o raio nunca causou isso lá. E quanto a ele
- ele está seguro? Olhe para a garganta dele! Vejam, camara-
das, o lobo estava deitado sobre ele e mantendo seu sangue
aquecido.
O oficial olhou para minha garganta e respondeu:
- Ele está bem, a pele não foi perfurada. O que significa
tudo isto? Nunca teríamos encontrado-o, se não fosse pelos
uivos do lobo.

94
- O que lhe aconteceu? - Perguntou o homem que estava
segurando minha cabeça e que parecia o menos em pânico do
grupo, pois suas mãos estavam firmes e sem tremores. Na sua
manga estava a insígnia de um oficial de baixa patente.
- A coisa foi para casa. - Respondeu o homem, cujo ros-
to comprido era pálido, e que realmente tremeu de horror ao
olhar ao redor com medo. - Já existem túmulos suficientes nos
quais ele pode estar. Vamos, camaradas, vamos rapidamente!
Vamos deixar este lugar amaldiçoado.
O oficial me colocou sentado enquanto pronunciava
uma palavra de comando, então vários homens me colocaram
em um cavalo. Ele saltou para a sela atrás de mim, me pegou
nos braços, deu a palavra para avançar e, desviando o olhar
dos ciprestes, partimos em rápida ordem militar.
Até o momento minha língua se recusava a servir em seu
propósito, eu estava sempre em silêncio. Eu devo ter adorme-
cido, pois a próxima coisa que me lembro foi me encontrar
em pé, apoiado por um soldado em cada lado de mim. Era
quase plena luz do dia e, ao norte, uma faixa vermelha de luz
do sol brilhava, como um caminho de sangue sobre a neve.
O oficial estava dizendo aos homens para não dizerem nada
do que haviam visto, exceto que encontraram um estranho
inglês guardado por um grande cachorro.
- Cachorro! Não havia nenhum cachorro. - Interrompeu
o homem que tinha exibido tal medo. Acho que conheço um
lobo quando vejo um.
O jovem oficial respondeu calmamente:
- Eu disse um cachorro.
- Cachorro! - Reiterou o outro ironicamente. Era eviden-
te que sua coragem estava nascendo com o sol e, apontando
para mim, ele disse: - Olhe para a garganta dele. Esse é o
trabalho de um cachorro, chefe?

95
Instintivamente, levei a mão à garganta e, ao tocá-la,
gemi de dor. Os homens se reuniram em volta para olhar,
alguns inclinando-se para baixo de suas selas, e novamente
veio a voz calma do jovem oficial:
- Um cachorro, como eu disse. Se outra coisa for dita
seremos ridicularizados.
Fui atrás na cavalaria de um soldado e nos dirigimos
para os subúrbios de Munique. Aqui nos deparamos com uma
carruagem vazia, na qual fui inserido e assim levado para o
Quatre Saisons. O jovem oficial me acompanhou, enquanto
um soldado seguia com seu cavalo, os demais partiram para
seu acampamento.
Quando chegamos, Herr Delbrück correu tão rapida-
mente pelas escadas para me encontrar que era evidente que
ele estava observando lá de dentro. Tomando-me pelas duas
mãos, de modo solícito ele me levou para dentro. O oficial
bateu continência e estava virando para se retirar, quando
compreendi seu propósito ali e insisti que ele viesse aos meus
aposentos. Com um copo de vinho agradeci calorosamente a
ele e a seus bravos companheiros por me salvarem. Ele res-
pondeu simplesmente que estava mais do que feliz por isso e
que Herr Delbrück havia tomado as primeiras medidas para
estimular toda a equipe de busca. Com esse discurso ambí-
guo, o maitre do hotel sorriu, enquanto o oficial retornou a
seu dever e se retirou.
- Mas Herr Delbrück, - perguntei - como e por que os
soldados procuraram por mim?
Ele encolheu os ombros, como se depreciasse sua pró-
pria ação, e respondeu:
- Tive a sorte de obter a permissão do comandante do
regimento em que servi, para pedir voluntários.
- Mas como você sabia que eu estava perdido? - Pergun-

96
tei.
- O cocheiro chegou até aqui com os restos de sua car-
ruagem, ficou aborrecido quando os cavalos fugiram.
- Mas certamente você não enviaria um grupo de solda-
dos apenas por esse motivo?
- Ah, não! - Ele respondeu. Antes mesmo da chegada
do cocheiro, recebi este telegrama do nobre senhor de quem
você é convidado. - Ele tirou do bolso um telegrama que me
entregou e li:

Bistritz,
Seja cuidadoso com meu convidado, a segurança
dele é muito preciosa para mim. Se alguma coisa lhe aconte-
cer, ou se ele se perder, não poupe esforços para encontrá-lo
e garantir sua segurança. Ele é inglês e, portanto, aven-
tureiro. E sempre existem perigos da neve, dos lobos, e da
noite. Não hesite nem por um momento se você suspeitar do
perigo. Retribuirei o seu zelo com a minha fortuna.
- Drácula.

Enquanto eu segurava o telegrama na mão, a sala pa-


receu girar ao meu redor e, se o atencioso maitre do hotel
não tivesse me segurado, acho que teria caído. Havia algo
tão inusitado em tudo isso, algo tão estranho e impossível de
imaginar, que surgiu e cresceu em mim uma sensação de eu
ser, de alguma maneira, o centro de disputa de forças opostas
- mesmo essa mera ideia vaga parecia, de algum modo, me
paralisar. Eu certamente estava sob alguma forma de proteção
misteriosa. De um país distante havia chegado, na hora mais

97
precisa, uma mensagem que me tirou do perigo das garras da
neve e das mandíbulas do lobo.

Nota da Tradutora:

Como citado no texto por Jonathan Harker, o inglês do


cocheiro Johann é bastante rudimentar, todos os erros em sua
fala são propositais e foram mantidos com a maior fidelidade
possível do conto original.

98
99
H. P. Lovecraft
1890 - 1937

Dagon (1919) surge na vida de H. P. Lovecraft da


mesma forma em que aparece em seu conto - emerge
absoluto e poderoso de sua criatividade. De certa forma
é um marco da mudança narrativa do autor, onde o
sobrenatural deixa o palco para a entrada de conceitos
científicos que revelam uma realidade terrível e impossível
de ser assimilada.
Por ser um conto que participa das fundações de sua
pseudo mitologia, Dagon já embriona todos os elementos
que posteriormente serão utilizados na fase madura dos
escritos de Lovecraft. Interessante frisar que várias de
suas criações acabam por se interligar e que a entidade
apresentada volta a aparecer posteriormente.
O autor foi um homem de posições e opiniões
bastante reprováveis, muitas das quais preconceituosas ao
extremo. Indico sempre que os leitores façam uma análise
crítica de sua obra, visto que suas criações estão hoje acima
da fama de seu criador.
Talvez Dagon, assim como o próprio Lovecraft,
tenham sido ofuscados pela criatura mais famosa do
escritor - Cthulhu - mas há quem defenda que ambas
as entidades são a mesma coisa. Não entraremos nessa
polêmica entretanto. Vamos nos ater ao seu relato, preciso
e hediondo, de um encontro acontecido ao acaso, mas nem
por isso menos sinistro.

Arte da página anterior por Cayman Moretti


Dagon foi publicado originalmente em 1919
100
Dagon

Estou escrevendo isso sob uma pressão mental consi-


derável, uma vez que esta noite posso deixar de existir. Sem
um tostão, e no fim do meu estoque de droga que, sozinha,
torna a vida tolerável. Eu não posso mais suportar a tortura,
e devo lançar-me a partir desta janela do sótão para a rua
esquálida abaixo. Não pense que, devido a minha escravidão
à morfina, sou um fracote ou um degenerado. Quando ler
estas páginas rabiscadas às pressas você poderá adivinhar,
embora, sem nunca compreender completamente, por que eu
devo sofrer de um esquecimento completo ou da morte.
Foi em uma das partes mais vastas e desertas do imenso
Pacífico que o paquete¹ do qual eu era imediato de cargas
gerais² se tornou vítima do navio corsário alemão. A grande
guerra estava então em seu início, e as forças oceânicas dos
hunos não haviam afundado completamente rumo à degra-
dação posterior, de modo que nossa embarcação foi consi-
derada um prêmio legítimo, enquanto nós de sua tripulação
fomos tratados com toda a justiça e consideração que nos era
devida, como prisioneiros navais. Tão liberal, de fato, foi a
disciplina de nossos captores, que apenas cinco dias depois
de sermos capturados, eu consegui escapar sozinho em um
pequeno barco com água e provisões para um bom período
de tempo.
Quando finalmente me encontrei à deriva e livre, eu
tinha pouca idéia dos meus entornos. Nunca fora um nave-
gador competente, então eu só podia adivinhar vagamente

¹ Paquete eram antigos navios de luxo, conhecido como navio dos pacotes por levarem carga (pacotes)
e passageiros. Um exemplo de paquete era o Titanic.
² Supercargo, geralmente é um Comandante ou Imediato com experiência em carga geral que auxilia
o Comandante do navio.

101
pelo sol e estrelas que eu estava um tanto quanto ao sul do
Equador. De longitude eu nada compreendia, e nenhuma ilha
ou costa estava à vista. O tempo manteve estável e por dias
incontáveis eu fiquei à deriva, sem rumo, sob o sol escaldante,
esperando que um navio passasse, ou então ser lançado nas
margens de alguma terra habitável, mas nem navio nem terra
surgiram, e eu comecei a me desesperar em minha solidão
sobre as vastidões ondulantes do interminável azul.
A mudança aconteceu enquanto eu dormia, seus deta-
lhes eu nunca saberei, pois o meu sono, embora conturbado
e infestado de sonhos, foi contínuo. Quando finalmente
acordei, foi para me descobrir parcialmente engolido em
uma extensão viscosa de lama negra infernal, que se estendia
à minha volta em ondulações monótonas até onde eu podia
ver, na qual meu barco estava aterrado a alguma distância.
Embora possa-se imaginar que minha primeira sensa-
ção seria de admiração com uma transformação de cenário
tão extraordinária e inesperada, eu estava na realidade mais
horrorizado do que estarrecido, pois havia no ar e no solo
apodrecido uma característica sinistra que me arrepiava até
o âmago. A região era pútrida com as carcaças de peixes em
decomposição, e de outras coisas menos descritíveis que eu
pude ver sobressaindo-se da lama desagradável no terreno
interminável. Talvez eu não devesse esperar transmitir em
poucas palavras o indizível horror que pode habitar no silên-
cio absoluto e na imensidão estéril. Não havia nada ao alcance
dos ouvidos, e nada à vista salvo uma vasta extensão de lodo
preto, no entanto, a completa quietude e a homogeneidade da
paisagem me oprimiam com um medo nauseante.
O sol ardia em um céu que me parecia quase negro
em sua impiedade sem nuvens, como se refletisse o pântano
manchado de tinta sob meus pés. Enquanto me arrastava

102
para o barco encalhado, percebi que apenas uma teoria po-
deria explicar minha posição. Por meio de uma turbulência
vulcânica sem precedentes, uma parte do fundo do oceano
deve ter sido lançada à superfície, expondo regiões que, por
inúmeros milhões de anos, permaneceram escondidas sob
profundezas aquáticas insondáveis. Tão grande era a exten-
são da nova terra que se erguia debaixo de mim que, por mais
que forçasse meus ouvidos, eu não conseguia detectar o mais
fraco ruído das ondas do oceano. Também não haviam aves
marinhas para atacar as coisas mortas.
Por várias horas, fiquei sentado, ponderando ou medi-
tando no barco, que estava deitado de lado, e me proporcio-
nava uma leve sombra enquanto o sol se movia através do
céu. À medida que o dia avançava, o solo perdeu parte de sua
viscosidade e pareceu que iria secar em tempo o suficiente
para meu propósito de viajar. Naquela noite dormi pouco e
no dia seguinte preparei para mim um pacote contendo comi-
da e água, preparações para uma viagem por terra em busca
do mar desaparecido e de um possível resgate.
Na terceira manhã, percebi o solo seco o suficiente para
caminhar com facilidade. O odor do peixe era enlouquecedor,
mas eu estava muito preocupado com coisas mais críticas
para me importar com um mal tão pequeno e parti corajo-
samente para um destino desconhecido. Durante todo o dia,
segui para o oeste, guiado por uma elevação distante, que se
erguia mais alto do que qualquer outra no deserto. Naquela
noite acampei e, no dia seguinte, ainda viajei em direção ao
monte, embora esse parecesse pouca coisa mais próximo do
que quando eu o espiei pela primeira vez. Na quarta noite,
cheguei à base do monte, o qual era muito mais alto do que
parecera à distância. Um vale permeava e destacava um
relevo mais nítido da superfície geral. Cansado demais para

103
subir, adormeci sob a sombra da elevação.
Não sei por que meus sonhos foram tão selvagens
naquela noite, mas antes que a lua minguante e extraordina-
riamente notória se elevasse muito acima do terreno oriental,
eu estava suando frio quando acordei, e determinado a não
dormir mais. Tais visões que eu havia experimentado eram
demais para eu suportar novamente. Sob o brilho da lua,
vi como tinha sido imprudente viajar durante o dia, sem o
brilho do sol seco minha jornada teria custado menos energia.
De fato, agora, sentia-me capaz de realizar a subida que me
dissuadira ao pôr do sol. Pegando meus pertences, me enca-
minhei para a crista da elevação.
Eu dissera que a monotonia ininterrupta do terreno
ondulante era uma fonte vaga de horror para mim, mas acho
que meu horror foi maior quando cheguei ao cume do monte
e olhei para o outro lado, para um poço ou cânion imensurá-
vel, cujos negros recessos a lua ainda não havia iluminado.
Eu me senti na extremidade do mundo, espiando por cima
da borda, para um caos insondável de noite eterna. Através
do meu terror percorri curiosas reminiscências do Paraíso
Perdido e da hedionda escalada de Satã através dos reinos
obsoletos da escuridão.
Enquanto a lua se erguia mais alto no céu, comecei a ver
que as encostas do vale não eram tão perpendiculares quanto
eu imaginara. Bordas e afloramentos de rochas proporcionam
apoios de pés bastante acessíveis para uma descida, enquan-
to depois de uma queda de algumas centenas de metros, o
declive se tornava muito gradual. Impulsionado por um
estímulo que não consigo explicar definitivamente, subi com
dificuldade pelas rochas e fiquei na encosta mais suave abai-
xo, olhando para as profundezas estígias³, onde a luz ainda
não havia penetrado.

³ Stygian- Que diz respeito ao Estíge, rio dos Infernos na mitologia grega.

104
De repente, minha atenção foi capturada por um objeto
vasto e singular na encosta oposta, que se erguia abrupta-
mente cerca de cem metros à minha frente; um objeto que
brilhava branco nos raios recém-concedidos da lua ascenden-
te. Era meramente um pedaço gigantesco de pedra, eu logo
me assegurei, mas eu tinha consciência de uma impressão
distinta de que seu contorno e posição não eram de todo um
trabalho da natureza. Um exame mais minucioso me encheu
de sensações que não posso expressar, pois, apesar de sua
enorme magnitude e posição em um abismo, o qual bocejava
no fundo do mar desde que o mundo era jovem, percebi, sem
sombra de dúvida, que o objeto estranho era um monólito
bem formado, cujo o volume maciço conhecera a arte humana
e, talvez, o culto de criaturas vivas e pensantes.
Atordoado e assustado, mas não sem um certo entusias-
mo e deleite de um cientista ou arqueólogo, examinei meus
arredores mais atentamente. A lua, agora perto do zênite,
brilhava estranha e vivamente acima das íngremes escarpas
que cercavam o abismo, revelando o fato de que um extenso
curso de água corria sinuoso no fundo, fluindo em ambas as
direções e quase lambendo meus pés enquanto eu estava na
encosta. Do outro lado do abismo, ondas roçavam a base do
monólito ciclópico, cuja superfície eu agora podia traçar tanto
as inscrições quanto as esculturas rudimentares. A escrita
estava em um sistema de hieróglifos desconhecido para mim,
diferente de tudo que eu já havia visto nos livros, consis-
tindo na maior parte em símbolos aquáticos convencionais,
como peixes, enguias, polvos, crustáceos, moluscos, baleias
e similares. Várias figuras obviamente representavam coisas
marinhas desconhecidas pelo mundo moderno, mas cujas
formas em decomposição eu observara na planície erguida
no oceano.

105
Foi a escultura pictórica, no entanto, que mais me
deslumbrou. Claramente visível através da água devido ao
seu enorme tamanho, havia uma variedade de baixos-relevos
cujas temáticas teriam despertado inveja à Doré. Acredito
que essas coisas supostamente representavam homens -
pelo menos, um certo tipo de homem, embora as criaturas
estivessem se divertindo como peixes nas águas de alguma
gruta marinha, ou venerando algum santuário monolítico
que parecia, também, estar sob as ondas. De seus rostos e
formas, não ouso falar em detalhes, pois a mera recordação
me atordoa. Grotescos, além da imaginação de Poe ou
Bulwer, eles eram terrivelmente humanos em geral, apesar de
mãos e pés palmados, lábios chocantemente largos e flácidos,
olhos esbugalhados e vítreos e outras características menos
agradáveis de se recordar. Curiosamente, eles pareciam ter
sido cinzelados fora de proporção com o cenário ao fundo,
pois uma das criaturas foi ilustrada no ato de matar uma
baleia, e foi representada como pouco maior que o mamífero.
Eu observei, como disse, sua forma grotesca e tamanho
estranho, mas em um momento, decidi que eram apenas os
deuses imaginários de alguma tribo primitiva marítima ou
de pescadores, alguma tribo cujo último descendente havia
morrido antes do nascimento do primeiro ancestral do
Homem de Piltdown ou Neandertal.
Impressionado com esse vislumbre inesperado de um
passado, além da concepção do antropólogo mais ousado,
fiquei pensando enquanto a lua lançava reflexos esquisitos
no canal silencioso diante de mim.
Então de repente eu vi. Com apenas uma ligeira agitação
para marcar sua ascensão à superfície, a coisa deslizou a vista
acima das águas escuras. Imensa, polifêmica e repugnante,
disparou como um estupendo monstro vindo para o monó-

106
lito, sobre o qual atirou seus gigantescos braços escamosos,
enquanto inclinava a cabeça hedionda e produzia certos sons
ritmados. Eu acho que enlouqueci então.
Da minha frenética subida da encosta e do penhasco, e
minha jornada delirante de volta ao barco encalhado, pouco
me recordo. Acredito que cantei bastante e ri enlouquecida-
mente quando não consegui mais cantar. Tenho indistintas
recordações de uma grande tempestade algum tempo depois
de chegar ao barco, de qualquer forma, sei que ouvi trovões e
outros ruídos que a natureza profere apenas em seus humo-
res mais selvagens.
Quando saí das trevas, estava em um hospital de São
Francisco, trazido até lá pelo capitão de um navio americano
que havia resgatado meu barco do meio do oceano. Em meu
delírio eu falei muito, mas descobri que minhas palavras
tinham sido recebidas com pouca atenção. De qualquer emer-
são terrestre no Pacífico meus salvadores de nada sabiam, e
nem eu considero necessário insistir em algo que eu sabia
que eles não conseguiriam acreditar. Uma vez procurei um
célebre etnólogo, e o diverti com perguntas peculiares sobre
a antiga lenda filistina de Dagon, o Deus Peixe, mas logo per-
cebendo que ele era irremediavelmente conservador, eu não
insisti em minhas perguntas.
É à noite, especialmente quando a lua está minguante,
que eu vejo a coisa. Eu tentei morfina, mas a droga deu-me
apenas um alívio passageiro, e me atraiu para suas garras
como um escravo sem esperança. Tendo escrito um relato
completo para a informação ou a diversão desdenhosa dos
meus companheiros, agora devo encerrar tudo. Com frequên-
cia me pergunto se tudo não poderia ter sido fruto de pura
fantasmagoria - um mero surto de febre enquanto eu estava
desorientado, castigado pelo sol e delirando no barco aberto

107
após a minha fuga do navio corsário de guerra alemão. Eu
me pergunto isso, mas sempre em resposta surge diante de
mim uma visão terrivelmente vívida. Não consigo pensar no
mar profundo sem estremecer com as coisas inomináveis que
podem estar, neste momento, rastejando e se arrastando em
suas camas viscosas, adorando seus antigos ídolos de pedra e
esculpindo suas próprias semelhanças detestáveis em obelis-
cos submarinos de granito encharcados de água. Sonho com o
dia em que eles subirão acima das ondas, para arrastar para o
fundo, com suas garras fedorentas, as reminiscências de uma
humanidade insignificante e exausta pela guerra - o dia em
que a terra afundará, e o tenebroso do oceano subirá em meio
ao pandemônio universal.
O fim está próximo. Ouço um barulho na porta, como
se um imenso corpo escorregadio se arrastasse contra ela.
Aquilo não me encontrará. Deus, essa mão! A janela! A janela!

108
109
Lima Barreto
1881 - 1922

O horror pode ser usado de muitas formas. Seja


como ferramenta de um simples susto à mais rebuscada
opinião, passando por reflexões e pensamentos, em todos
encontramos um denominador comum. Ao retirar o leitor
de seu lugar de conforto, o gênero o força a raciocinar, no
mínimo.
O carioca Lima Barreto tinha a crítica social como
parte integrante de seu espírito. Ao me deparar com o
conto Sua Excelência (1920), percebi como o autor utilizou
o fantástico para incitar a imaginação daquele que o lê,
desnudando a classe dominante através do insólito e
mostrando seu lado mais mundano.
A soberba e egolatria do protagonista o ilude de tal
forma que este não percebe nada ao seu redor. O autor
também usa do cinismo e da comédia, enquanto se alia ao
sobrenatural para desfazer a imagem aristocrata, distante
e intocável, dando-lhe perfil humano e ridículo. É uma
abordagem que continua atual mesmo tendo sido uma
crítica de época.

Arte da página anterior por J. L. Padilha


Sua Excelência foi publicado originalmente em 1920
110
Sua Excelência

O Ministro saiu do baile da Embaixada, embarcando


logo no carro. Desde duas horas estivera a sonhar com aquele
momento. Ansiava estar só, só com o seu pensamento, pesan-
do bem as palavras que proferira, relembrando as atitudes
e os pasmos olhares dos circunstantes. Por isso entrara no
cupê depressa, sôfrego, sem mesmo reparar se, de fato, era o
seu. Vinha cegamente, tangido por sentimentos complexos:
orgulho, força, valor, vaidade.
Todo ele era um poço de certeza. Estava certo do seu
valor intrínseco; estava certo das suas qualidades extraor-
dinárias e excepcionais. A respeitosa atitude de todos e a
deferência universal que o cercava eram nada mais, nada
menos que o sinal da convicção geral de ser ele o resumo do
país, a encarnação dos seus anseios. Nele viviam os doridos
queixumes dos humildes e os espetaculosos desejos dos
ricos. As obscuras determinações das coisas, acertadamente,
haviam-no erguido até ali, e mais alto levá-lo-iam, visto que
ele, ele só e unicamente, seria capaz de fazer o pais chegar aos
destinos que os antecedentes dele impunham…
E ele sorriu, quando essa frase lhe passou pelos olhos,
totalmente escrita em caracteres de imprensa, em um livro ou
em um jornal qualquer. Lembrou-se do seu discurso de ainda
agora.
“Na vida das sociedades, como na dos indivíduos…”
Que maravilha. Tinha algo de filosófico, de transcen-
dente. E o sucesso daquele trecho? Recordou-se dele por
inteiro:

111
“Aristóteles, Bacon, Descartes, Spinosa e Spencer, como
Sólon, Justiniano, Portalis e Ihering, todos os filósofos, todos
os juristas afirmam que as leis devem se basear nos costu-
mes…”
O olhar, muito brilhante, cheio de admiração – o olhar
do líder da oposição – foi o mais seguro penhor do efeito da
frase…
E quando terminou! Oh!
“Senhor, o nosso tempo é de grandes reformas; esteja-
mos com ele: reformemos!”
A cerimônia mal conteve, nos circunstantes, o entusias-
mo com que esse final foi recebido.
O auditório delirou. As palmas estrugiram; e, dentro do
grande salão iluminado, pareceu-lhe que recebia as palmas
da Terra toda.
O carro continuava a voar. As luzes da rua extensa apa-
reciam como um só traço de fogo; depois sumiram-se.
O veículo agora corria vertiginosamente dentro de uma
névoa fosforescente. Era em vão que seus augustos olhos se
abriam desmedidamente; não havia contornos, formas, onde
eles pousassem.
Consultou o relógio. Estava parado? Não; mas marcava
a mesma hora e o mesmo minuto da saída da festa.
– Cocheiro, onde vamos?
Quis arriar as vidraças. Não pôde; queimavam.
Redobrou os esforços, conseguindo arriar as da frente.
Gritou ao cocheiro:
– Onde vamos? Miserável, onde me levas?
Apesar de ter o carro algumas vidraças arriadas, no seu
interior fazia um calor de forja. Quando lhe veio esta imagem,
apalpou bem, no peito, as grã-cruzes magníficas. Graças a
Deus, ainda não se haviam derretido. O leão da Birmânia, o

112
dragão da China, o língam da Índia estavam ali, entre todas
as outras intactas.
– Cocheiro, onde me levas?
Não era o mesmo cocheiro, não era o seu. Aquele ho-
mem de nariz adunco, queixo longo com uma barbicha, não
era o seu fiel Manuel.
– Canalha, para, para, senão caro me pagarás!
O carro voava e o ministro continuava a vociferar:
– Miserável! Traidor! Para! Para!
Em uma dessas vezes voltou-se o cocheiro; mas a es-
curidão que se ia, aos poucos, fazendo quase perfeita, só lhe
permitiu ver os olhos do guia da carruagem, a brilhar de um
brilho brejeiro, metálico e cortante. Pareceu-lhe que estava a
rir-se.
O calor aumentava. Pelos cantos o carro chispava. Não
podendo suportar o calor, despiu-se. Tirou a agaloada casaca,
depois o espadim, o colete, as calças.
Sufocado, estonteado, parecia-lhe que continuava com
vida, mas que suas pernas e seus braços, seu tronco e sua
cabeça dançavam, separados.
Desmaiou; e, ao recuperar os sentidos, viu-se vestido
com uma reles libré e uma grotesca cartola, cochilando à por-
ta do palácio em que estivera ainda há pouco e de onde saíra
triunfalmente, não havia minutos.
Nas proximidades um cupê estacionava.
Quis verificar bem as coisas circundantes; mas não hou-
ve tempo.
Pelas escadas de mármore, gravemente, solenemente,
um homem (pareceu-lhe isso) descia os degraus, envolvido
no fardão que despira, tendo no peito as mesmas magníficas
grã-cruzes.
Logo que o personagem pisou na soleira, de um só ím-

113
peto aproximou-se e, abjetamente, como se até ali não tivesse
feito outra coisa, indagou:
– V. Exa. quer o carro?

114
115
Viriato Corrêa
1884 - 1967

Quando me deparei com o conto Madrugada Negra


(1921), do maranhense Viriato Corrêa, tive a impressão de
ser aquele tipo de terror humano e real, que se afasta da
especulação. Isso se deu muito antes de buscar saber um
pouco mais sobre seu criador.
A leitura é uma descoberta e devemos buscar
conhecer mais sobre os autores que lemos. A faceta
de jornalista quando descreve o absurdo de atitudes
inconsequentes e machistas. Mesmo tendo vivido em uma
época de valores completamente diferente da atualidade,
ele opta pela reflexão através da culpa do protagonista, o
que foi bastante acertado.
A escolha dessa história se deu também pelo
contraponto ao fantástico, que nos alça para lugares além
ou revela uma existência atrás do véu que chamamos de
realidade. Aqui o autor nos leva pela escuridão da alma
humana, mostrando como o egoísmo vil pode trazer tantas
consequências, quando praticado.
O relato que leremos a seguir adentra pela insensatez
do erro, da prepotência e da ignorância, propagando-se
em um desfecho nefasto até o último momento, onde o
destino parece se deliciar com a ironia da vida.
O horror se mostra mais uma vez uma ferramenta
poderosíssima de reflexão. Passados praticamente cem
anos da criação deste conto, ainda vemos e veremos muitas
manchetes e notícias trazendo nomes invisíveis de vítimas
que tiveram suas madrugadas sombrias, infelizmente.

Arte da página anterior por Fabricio Bohrer


Madrugada Negra foi publicado originalmente em 1921
116
Madrugada Negra

R iamos ainda do desfecho comico da historia que


o Dr. Câmara acabava de contar, quando o Nogueira Lins,
sempre triste, com aquelle todo esguio de cegonha, começou:
- Não tenho, infelizmente, um caso alegre para contar
aos amigos. A mìnha historia é horrivel.
Era nos fundos de uma cervejaria, às duas da madruga-
da. Reuniamo-nos ali todos os dias, e, naquela noite, alguem
lembrara que contassemos os casos da nossa vida.
Ninguem vai contar coisas tristes no fundo de uma
cervejaria, diante da espuma da cerveja. Todos nós havíamos
escolhido o que havia de cômico no nosso passado.
- Talvez os amigos não me queiram ouvir. A minha
historia é dolorosissima.
O Conrado Pinto chegou a cadeira para mais perto da
mesa:
- Era também uma historia má que eu queria contar.
- Não pode ser mais dolorosa que a minha, insistiu o
Nogueira Lins.
- Por mais horrivel que seja a sua, nunca se poderá com-
parar à minha.
- Duvido. O meu caso é toda a minha desgraça. Eu hoje
devia ser, pelo menos, senador da República, ministro ou
banqueiro ou um grande nome no país. Arrasei-me
completamente e, agora, nada mais sou que um guarda-livros
de segunda ordem. Tudo pelo caso que lhes vou narrar. E o
que é pior, em tudo isso, é que não tive e não tenho a mais
pequena culpa.

117
E depois de uma ligeira pausa:
- Um dia vi-me envolvido na morte de uma mulher,
mulher que eu nunca tinha visto, mas que morreu nos meus
braços. Fui apontado como o assassino, passei vários
anos na cadeia, desorganizei toda a minha vida, nunca
mais tomei pé e aqui estou de nome mudado para poder
viver o resto de meus dias.
E, voltando-se para o Conrado Pinto:
- Será mais dolorosa a sua historia?
- É!
- Conte-a. Prefiro guardar-me para o fim.
- Faça favor..
- Não, não. Insisto. Insisto porque tenho a certeza que a
minha será mais triste que a sua.
Dispuzemo-nos a ouvir. O Conrado Pinto afastou para
o meio da mesa o copo de cerveja:
- Casei-me muito moço. Cinco anos depois o banco, em
que eu era empregado, resolveu criar uma agência na capital
de S. Paulo. Fui eu o encarregado de organizar a agência.
Deixei a família aqui no Rio e parti. Entre as muitas cartas de
recomendação que levei, havia uma para o velho conselheiro
Publio de Sá, uma das figuras mais altas e mais respeitáveis
de São Paulo. O conselheiro era baiano e com aquela expres-
são de hospitalidade que só se encontra na gente do norte.
Apresentou-me à família, fez-me íntimo de sua casa.
Havia na família do conselheiro um caso triste. D. Maria
da Gloria, sua filha mais velha, era viuva. Casamento infeliz
– o marido morrera seis meses após o enlace, de um desastre
de estrada de ferro. A pobre moça morava com os pais.
Não era uma criatura bonita, mas havia no seu ar de
tristeza resignada, nas suas olheiras roxas, qualquer coisa que
deixava na gente uma profunda impressão de simpatia.

118
Em pouco tempo eramos amigos. Maria da Gloria toca-
va violino e eu arranhava o meu bocado de piano. Passáva-
mos as tardes de domingo fazendo música, no largo salão do
palacete, à Avenida Paulista.
Essas coisas são fatais, meus senhores. Dois corações
novos não podem viver impunemente juntos. Quando dei
por mim, estava apaixonado por ela, e ela apaixonada por
mim.
Uma loucura aquilo - eu era casado. Combinamos então
cortar o mal pela raiz: eu me afastaria procurando esquecê-la,
e ela procuraria esquecer-me também.
Nem sempre essas coisas são faceis, nem sempre são
possiveis.
Posso-lhes afirmar que, durante duas semanas, sincera-
mente procurei sufocar o coração.
O amor foi mais forte do que eu.
Voltei ao palacete do conselheiro. As tardes de música,
aos domingos, recomeçaram.
Não pode haver vislumbre de juízo entre duas criaturas
que se amam doidamente; não pode. Quando se abrem os
olhos, está-se a rolar inevitavelmente no abismo. Foi o que
se deu conosco. Um dia Maria da Glória confessou-me a sua
desgraça. Sentia que ia ser mãe.
Quase enlouqueci. Não lhes preciso pintar a situação
horrenda que me surdia diante dos olhos. Uma família da-
quelas, com as melhores relações da cidade, sempre vivendo
num ambiente de moralidade rigorosa, ilustre, querida, e eu
a desmanchar a tranquila felicidade doméstica! Uma pobre
viúva que tinha sempre vivido sem o mais leve deslize, boa,
suave, dentro da resignação da sua sorte, de um momento
para o outro desgraçada, sem poder esconder a sua falta, e
desgraçada por mim, um homem casado que, de maneira

119
alguma, podia reparar a minha culpa! Ah! Não lhes preciso
dizer a minha situação!
Andei como um doido varios dias. O caso, porém, pedia
um movimento pratico qualquer e urgente. O remédio, o úni-
co, era eliminar o filho.
Como? Em S. Paulo? A família saberia. O maior pavor,
tanto meu, como de Maria da Gloria, era que a família soubes-
se, ela não resistiria à vergonha; eu não me sentia com forças
para suportar a minha própria infâmia. Uma noite, depois de
muito pensar, resolvi tudo. Seria aqui no Rio.
Maria da Gloria tinha uma tia velha, ali, em Botafogo,
a qual, de tempos em tempos, costumava visitar por longos
meses. Nada mais fácil. Viria visitar a tia, e eu aqui me encar-
regava do resto.
Tive sempre uma certa queda pela medicina. Se hoje
não sou médico, a culpa foi só minha que, em rapazote,
não tive paciência para suportar seis anos de bancos acadê-
micos. Comprei livros e livros e pus-me a estudar abundan-
temente o meio de eliminar a criança que sete meses depois
viria naturalmente ao mundo.
Não sei se por muito estudar ou se pelo desejo febril
da eliminação, acabei por me convencer que tudo era fácil e
que eu tinha a perícia e o manejo necessários à operação do
aborto.
Combinei tudo. Maria da Gloria começou a falar da
viagem à família. Vim ao Rio e aluguei, na rua da Alfandega,
um segundo andar. Aluguei-o de nome trocado; convi-
nha-me que nada transpirasse.
Não se diga que tivesse havido nos meus planos uma
linha de ingenuidade ou de precipitação. A minha má sorte é
que os fez falhar.
Tais quais os tracei eram excelentes: fingindo que tele-

120
grafava à tia, Maria da Gloria embarcaria sozinha para o Rio
(o que mais de uma vez havia feito) e, em vez de seguir para
Botafogo, seguiria comigo para o segundo andar da rua da
Alfandega. Lá eu me encarregaria do resto e, logo que tudo
estivesse realizado, no dia seguinte ou dois dias depois, ela se
apresentaria em Botafogo, como se tivesse chegado naquela
noite.
No principio as coisas correram bem.
Fui à “gare” da Central recebê-la. Metemo-nos num
automóvel fechado. Uma noite fria, de muito vento e muita
chuva.
O segundo andar da rua da Alfandega era de um desses
casarões antigos, de salas vastas como anfiteatros, sombrias,
desoladas. Não havia luz. Muni-me de uma caixa de velas.
Ninguém morava no prédio. No andar térreo - um depósito
de cordames de navios; no primeiro andar - escritórios de ad-
vogados e médicos. Àquela hora da noite não havia viv’alma
na casa.
Os meus amigos serão forçados a concordar que eu fora
hábil na escolha do prédio.
Era uma hora da madrugada, quando comecei a opera-
ção. Não me faltava um ferro cirúrgico.
Eu devia estar completamente louco, quando imaginei
que pudesse realizar aquilo, de que nem mesmo os cirurgiões
os mais peritos, os de mais longa prática, podem garantir o
sucesso.
Horrível! Horrível! Em menos de dez minutos Maria da
Gloria estava lavada em sangue. Faltava-me tudo ali: panos,
algodões, aparelhos necessários para conter a hemorragia.
Eu tinha sido um desastrado. Errara tudo. E diante
do sangue que já escorria pelo assoalho, diante do corpo
desmaiado de Maria da Gloria, desnorteei e pus-me a fazer

121
loucuras.
Cada vez mais o sangue borbotava. Fiquei como um
doido, a mover-me desordenadamente por aquelas imensas
salas que as velas mal alumiavam, ora a sacudir Maria da
Gloria, a chamá-la, friccionando-lhe o peito, ora correndo à
janela, sem sentir coragem de gritar por socorro.
A noite era profunda. Chovia como num diluvio. A rua
parecia o corredor de um subterrâneo.
Às duas horas da madrugada podiam meter-me no hos-
pício, que eu devia estar completamente louco. Percebi que
Maria da Gloria ia morrer.
Considerem um instante o meu caso. Que ia ser de mim,
depois daquilo? Que ia ser de mim, se ela morresse? E ela
começava de fato a morrer, esvaída em sangue, de cabeça em
brasas, desço num pulo a escada para gritar socorro. Não ha-
via ninguém na rua. A chuva continuava a cair ruidosamente.
Corro à primeira esquina. Um homem vai passando,
embuçado. Agarro-o. Conto-lhe por alto a minha desgraça,
insisto, arrasto-o.
Por pena ou curiosidade ele acompanha-me ao segundo
andar. Ao ver o quadro, estatela-se, comove-se.
- Corra, corra, vá buscar um médico! Grita-me.
- Onde, a esta hora?
- Chame a Assistência, depressa!
Desço de novo à rua. Cabelo ao vento, molhado pela
chuva, ando por todo o bairro, à procura de um telefone. De-
balde. Não passa um carro, um automóvel, nada. Começo a
sentir a cabeça tonta. Tento acender as energias e andar. Mas
sinto que vou cair e caio no batente de uma porta.
Estive um mês de cama, delirando. Quando voltei a
mim, e pude ler os jornais, soube de tudo. A polícia prendera
um homem junto do cadáver de Maria da Gloria, no segundo

122
andar da rua da Alfandega, e processava-o. Havia todas as
provas contra ele...
Conrado Pinto não pôde concluir a última palavra.
Nogueira Lins, de súbito, avançara-lhe à garganta, sufo-
cando-o.
Erguemo-nos todos, surpreendidos, procurando
detê-lo.
E ele, de dedos crispados no pescoço do Conrado, olhos
fuzilantes, gritava, apertando e apertando mais:
- O homem era eu! Era eu!

123
124
125
Coelho Neto
1864 - 1934

Da fama ao ostracismo: poucos escritores


brasileiros foram tão esquecidos ou cancelados quanto
o maranhense Coelho Neto. Alvo escolhido pelos
Modernistas, foi tão criticado e combatido, que deixou de
ser citado ou lido nas escolas de nosso país.
Seu resgate vem sendo feito pelas editoras
independentes e pelos pesquisadores, retirando-o do
exílio do esquecimento. Suas criações no fantástico muitas
vezes são colocadas no mesmo patamar de autores como
H. P. Lovecraft ou Edgar Allan Poe, fato este que o nosso
leitor desconhece completamente.
Veremos no conto A Casa “Sem Sono” (1923),
uma residência assustadora que consegue atormentar com
a vida e com a mente de quem lá permanece. Sentiremos
o sobrenatural pairar naquela atmosfera incômoda com
uma maestria incrível.
Não fica claro exatamente porque a casa se tornou
um lugar abominável. Em todo caso, a ambientação criada
pelo relato consegue deixar o mais cético leitor em dúvida
sobre a veracidade ou não da história, mexendo inclusive
com nossa curiosidade, por mais mórbida que pareça.

Arte da página anterior por Oz


A Casa “Sem Sono” foi publicado originalmente em 1923
126
A Casa “Sem Sono”

A rua, em alameda, toda de prédios novos, com a


montanha ao fundo, alta e frondosa, agradou-me logo de
entrada.
Aprazível e quieta com seus jardins cuidados, fresca
e trescalando fortemente as silvas, realizava o meu ideal de
serenidade bucólica: silêncio para o espírito e recreio para os
olhos fatigados, como se achavam, dos rumores atordoantes
da cidade da vista das avenidas e ruas, com o casario denso,
sempre atravancadas de veículos e transeuntes.
Ali eram chilreios de pássaros, ziar de insetos, de longe
sons dormentes de pianos. Àquela hora não havia viv’alma.
Os meus passos soavam estrepitosos.
Guiado pelo anúncio fui ter à casa. A primeira impres-
são foi de espanto.
Através do gradil escalavrado avistei o terreno que
fora, outrora, jardim. Tudo era mato, de relva alta, recortado
por uma vereda sinuosa. Mamoneiros, carregados de frutos
híspidos, fechavam uma das passagens laterais. Os muros,
cobertos de trepadeiras selvagens, tinham o aspecto intonso
de altas sebes.
Abri o portão e foi um trabalho para levá-lo dentro,
escarvando a terra. Caminhando era-me preciso parar, por
vezes, para afastar galharias espinhosas, ramos; o solo úmido
era balofo; em alguns pontos meus pés topavam com bordos
de antigos canteiros afogados pela vegetação agreste.
A casa, cuja pintura externa descascava, era triste, com
uma varanda enxadrezada em ladrilhos, alguns já deslocados,
oscilando ao piso. Para abrir a porta tive de forçar a chave,

127
martirizando os dedos. A muito custo consegui dar volta e,
com forte impulso, fazendo estalar crepitantemente a madei-
ra, abri-a, recebendo no rosto úmido bafio, hálito nidoroso da
casa despertada.
Que esforço para abrir as janelas, todas perras! Con-
seguindo luz bastante para o exame, pus-me a percorrer os
aposentos amplos.
O soalho começava a apodrecer em certos pontos, fen-
dendo-se em frinchas; a barra cobria-se de tisne de umidade;
manchas esparralhavam-se nas paredes. Toda a casa tresan-
dava a bolor. Entretanto, com o sol que entrava pelas janelas,
que eu conseguira abrir, pareceu-me alegre.
Pus-me a notar a construção — havia até capricho: o
salão nobre, pintado a óleo, com floreios de estuque, era rico;
a sala de jantar, com o teto de madeira envernizada, frisa para
cerâmica e louça, soalho encerado; ampla cozinha, banheiro
magnífico.
Os dormitórios vastos e arejados, e, embaixo, dois sa-
lões nos quais logo imaginei instalar-me, trabalhando em um
e arranjando em outro a biblioteca.
Ainda que tal “tapera”, para tornar-se habitável, exi-
gisse obras de certa monta, decidi-me falar ao proprietário,
propondo-lhe um acordo razoável. O ponto agradava-me e os
cômodos satisfaziam-me. Com algumas reformas e substitui-
ção de madeiramento, pintura, papel novo em certas peças, e
refeito o jardim, ficaria um paraíso.
No terreno ao fundo, que percorri, espantando lagartos,
havia árvores pomareiras, algumas em flor. Uma delícia para
as crianças.
Ao tornar com a chave ao taverneiro da esquina, infor-
mei-me das condições do aluguel e da residência do proprie-
tário.

128
Junto ao poste, à espera do bonde, compunha eu men-
talmente os arranjos da casa, quando ouvi meu nome em
exclamação alegre. Voltei-me.
Era o Dimas, antigo colega de academia, que abando-
nara o curso no terceiro ano para dedicar-se ao comércio,
onde chegara a constituir uma das mais importantes firmas,
decaindo, porém, com sucessivos desastres durante a guerra.
Em todo o caso sempre lhe ficara o bastante para viver folga-
do, e até com alguma representação.
- Tu por aqui, no subúrbio! Que isto? Amore…?
- Casa, meu amigo, suspirei. Ando à procura de casa.
A minha está a cair e o senhorio todos os meses aumenta-me
uns tantos por cento. Demais, quero justamente o que me
oferece esta rua — largueza e silêncio. Achei aqui uma casa,
que me convém. Está um pouco estragada, mas com alguns
consertos ficará um brinco.
- Casa! Nessa rua!
- Sim lá em cima. Dei-lhe o número.
Dimas recuou encarando-me d’olhos muito abertos,
com tal espanto na fisionomia que, deveras, me impressio-
nou.
- Quê! Naquela casa! Tu!?
- Então? Que tem?
- Que tem? Ora essa! Bem se vê que não frequenta o
bairro. Sabes como é conhecida aquela casa, em que morei
uma semana, uma semana! Entendes? E fincou o indicador.
É conhecida pelo nome de casa “sem sono”. Nunca ouviste
falar?
- Não.
- Pois os jornais já trataram do caso, até com fotografias.
- Não vi. Mas casa “sem sono” por quê? Assombramen-
tos? Fantasma…?

129
- Não. Apenas isto: ali não se dorme.
- Como não se dorme?
- É como te digo. O sono não entra naquela casa. Passei
uma semana. Pois meu caro, nem eu, nem pessoa alguma da
família, nem animais, ninguém consegue pregar o olho.
- Por quê?
- Sei lá. Dizem que é a “sina” da casa.
- Lenda.
- Lenda ou não, a verdade é que eu posso dar testemu-
nho de fato. Essa casa pertencia a uma viúva doente, foi, por
ela, hipotecada a um tal Silva, tipo de avarento, que segundo
é voz pública, fez a fortuna à custa de sangue e lágrimas.
Esperto e trapaceiro, como todos da sua laia, enredou a
pobre senhora em tais dificuldades que acabou ficando-lhe
com a propriedade. Começou, então, o fadário do prédio. O
primeiro que o habitou foi um engenheiro da Central. Não
esteve ali quinze dias. Vieram outros. O que mais se demorou
não chegou a completar um mês. O último fui eu. Resisti uma
semana. Mudei-me há quase dois anos e ela está vazia até
hoje.
- Mas, afinal, que viste? Por que te mudaste?
- Ora, porque… Porque ninguém dormia. Passávamos
as noites em claro. A princípio atribuímos ao cansaço dos
trabalhos de mudança e arranjos da casa. Passaram-se dias
e a insônia persistiu. Recorremos a calmantes, consultamos
médicos. Nada!
Ah! meu amigo, não imaginas o suplício de toda uma
semana de vigília, todos acordados, desde minha mãe, com
seus oitentas anos, a andarejar arrastadamente pela casa, até
o meu caçula de oito meses, resmungando, choramingando
no berço. Os próprios animais — era o cão no jardim farejan-
do os canteiros, a uivar lamentosamente, era os pássaros nas

130
gaiolas.
Às vezes deitávamo-nos, com a casa toda apagada. De
repente ouvíamos passos, vislumbrávamos claridade: era
alguém que levantara, acendera a luz e andava à toa, a fazer
sono. Pouco depois estavam todos de pé e víamos nascer a
manhã. Sabes lá que é isso!
Sentir a gente o sono em volta de si, todas as casas em
silêncio, a rua inteira quieta, a natureza adormecida e nós…
É horrível! Podes compreender que, em noite plena, escura,
haja algum ponto iluminado pelo sol? Pois era a impressão
que tínhamos, impressão de que o dia não nos deixava, sem-
pre conosco, sempre!
Anoitecia. Pouco a pouco ia-se fazendo o silêncio, fecha-
vam-se as casas. De quando em quando um rumor longínquo
e as vozes noturnas: coaxos de sapos, latidos de cães, até o
primeiro cantar dos galos, o amiudar dos poleiros, os ruídos
espertos da madrugada, a claridade, o sol… E nós com a luz
lívida das lâmpadas, acordados, olhando-nos sem compreen-
der aquele desvelar que nos consumia.
Ao cabo de seis dias parecíamos espectros. Andávamos
aos cambaleios, tontos, atordoados, mas sem sono. Foi minha
mãe que descobriu o mistério, e uma manhã, denunciou-o:
“O sono não entra nesta casa. Não entra. É alguma maldição”.
Ainda insisti dois dias. Nada. Então veio o pavor. Uma tarde
— e foi a última — eu fui para a casa de um cunhado.
- E dormiste?
- Se dormi? Dormimos todos, quase vinte horas, e, se
não nos despertassem, creio que teríamos enfiado dois dias e
duas noites. Estávamos atrasadíssimos. Só lá tornei para fazer
a mudança. E eis porque uma casa como aquela, neste tempo,
nesta rua, e por preço relativamente módico, está vazia há
dois anos. É que todos a conhecem, é a casa “sem sono”, onde

131
não se dorme.
- E a que atribuis essa história?
- Sei lá! Essas coisas não se explicam. Olha o bonde.
Vamos. É pena que não venha ser meu vizinho, mas por tal
preço, não quero. Isso não! Sem sono não se vive e ali nunca o
terias, juro!

132
133
H. G. Wells
1866 - 1946

Se podemos notar uma característica que se repete na


obra de H. G. Wells é sua lembrança dos limites da ciência,
sejam eles éticos ou prudentes, mas sempre colocando ao
leitor a reflexão sobre as fronteiras científicas. Elas existem
e os riscos de serem ultrapassadas sem responsabilidade é
sempre enorme.
Aliado ao sobrenatural, seu conto O Corpo Roubado
(1927) reflete sobre as consequências terríveis ao se
adentrar por áreas ainda inexploradas. Vemos então o
relato de uma testemunha buscando entender o que
se sucedeu a terrível experiência de seu amigo. Wells
consegue virtuosamente misturar o esoterismo à ciência,
criando uma zona cinza e desconhecida, cheia de perigos.
Visionário por definição, Wells era um homem
muito à frente de seu tempo e muitas de suas ideias
tornaram-se realidade. O que você lerá a seguir ainda não
se comprovou pela ciência, e talvez nunca seja, mas dá um
certo medo imaginar que pode, algum dia, se concretizar.
Espero realmente que não!

Arte da página anterior por Val Oliveira


O Corpo Roubado foi publicado originalmente em 1927
134
O Corpo Roubado
Sr. Bessel era o sócio sênior na firma de Bessel, Hart
e Brown do fossário de St. Paul, e por muitos anos, ele fora
muito conhecido entre aqueles interessados em pesquisa
psíquica como um investigador liberal e consciencioso. Ele
era um homem divorciado e, ao invés de viver nos subúrbios,
depois da moda de sua classe, ocupava os quartos em Albany,
próximo ao Piccadilly. Ele estava particularmente interessado
nas questões da transferência de pensamento e aparições dos
vivos e, em novembro de 1896, ele iniciou uma série de expe-
rimentos em conjunto com o Sr. Vincey, de Staple Inn, a fim
de testar a suposta possibilidade de projetar uma aparição de
si mesmo, pela força de vontade, através do espaço.
Seus experimentos foram conduzidos da seguinte ma-
neira: em uma hora pré marcada, o Sr. Bessel trancou-se em
um de seus quartos em Albany, e o Sr. Vincey em sua sala de
estar na Staple Inn, e cada um então fixou sua mente tão re-
solutamente quanto possível no outro. Sr. Bessel havia adqui-
rido a arte de auto-hipnotismo, e na medida do possível ele
tentou primeiro se hipnotizar, e em seguida projetar-se como
um “fantasma dos vivos” através do espaço interveniente de
quase três quilômetros até o apartamento do Sr. Vincey. Por
várias noites isso foi tentado sem qualquer resultado satisfa-
tório, mas na quinta ou sexta ocasião, Sr. Vincey de fato viu
ou imaginou ter visto uma aparição de Sr. Bessel em sua sala.
Ele afirma que a aparição, ainda que breve, fora muito vívida
e real. Ele notou que a face de Sr. Bessel estava branca e sua
expressão era ansiosa e, além disso, que seu cabelo estava
desordenado. Por um momento, Sr. Vincey, apesar de seu

135
estado de expectativa, ficou surpreso demais para falar ou se
mover, e naquele momento pareceu-lhe que a figura olhou
por cima do ombro e prontamente desapareceu.
Fora planejado que se fizesse uma tentativa de foto-
grafar qualquer fantasma visto, porém Sr. Vincey não teve
a presença de espírito imediata de tirar a câmera que estava
pronta na mesa ao lado dele, e quando o fez era tarde demais.
Demasiadamente eufórico, entretanto, mesmo com esse su-
cesso parcial, ele anotou a hora exata, e prontamente tomou
um táxi para Albany para informar ao Sr. Bessel sobre esse
resultado.
Ele ficou surpreso ao ver a porta externa do Sr. Bessel
aberta para a noite, e os apartamentos internos acesos e em
uma desordem extraordinária. Um champagne Magnum jazia
vazio e esmagado no chão, seu gargalo fora quebrado contra
o tinteiro do escrínio e permanecia ao lado. Uma mesa octo-
gonal, que continha uma estatueta de bronze e alguns livros
escolhidos, fora rudemente revirada e, no papel de parede de
prímulas, dedos escuros foram marcados, como se fosse pelo
mero prazer de macular. Uma das delicadas cortinas de chita
fora violentamente arrancada de seus anéis e jogada ao fogo,
de modo que o cheiro de sua queima preenchia o cômodo.
De fato, o lugar todo estava desordenado da maneira mais
estranha. Por alguns minutos, Sr. Vincey, que acreditava que
encontraria Sr. Bessel em sua poltrona aguardando por ele,
mal podia acreditar em seus olhos, e ficou olhando impotente
para esses acontecimentos inesperados.
E então, preenchido por uma vaga sensação de calami-
dade, ele procurou pelo porteiro na entrada do alojamento.
- Onde está o Sr. Bessel? - Ele perguntou. - Você sabe
que toda a mobília está quebrada no quarto do Sr. Bessel?
O porteiro nada disse, mas, obedecendo a seus gestos,

136
chegou imediatamente ao apartamento do Sr. Bessel para
verificar o estado da situação.
- Isso explica tudo. - ele disse, observando a confusão
lunática. - Eu não estava ciente disso. Sr. Bessel partiu. Ele
está louco!
Ele então contou ao Sr. Vincey que, cerca de meia hora
antes, isto é, por volta da hora da aparição nos aposentos de
Sr. Vincey, o cavalheiro desaparecido saiu às pressas pelos
portões de Albany para a Vigo Street, sem chapéu e com o ca-
belo desgrenhado, e desapareceu na direção da Bond Street.
- E, ao passar por mim, - disse o porteiro, - ele riu, uma
espécie de riso ofegante, com sua boca aberta e seus olhos
brilhando, eu lhe digo senhor, ele honestamente me assustou!
De acordo com sua imitação, era tudo menos uma risa-
da agradável.
- Ele acenou com sua mão, com todos os seus dedos
tortos em forma de garra – assim. E ele disse, em uma espécie
de sussurro feroz, VIDA! Apenas essa palavra, VIDA!
- Meu caro, - disse Sr. Vincey. - Tsc tsc.- Ele não conse-
guia pensar em mais nada para dizer. - Meu Caro!
Ele estava naturalmente muito surpreso. Ele se virou da
sala para o porteiro, e do porteiro para a sala na mais solene
perplexidade. Além de sua sugestão de que o Sr. Bessel vol-
taria em breve e explicaria o que aconteceu, a conversa entre
eles foi incapaz de prosseguir.
- Pode ser apenas uma repentina dor de dente, - disse
o porteiro, - uma dor de dente muito repentina e violenta,
o atacando de repente e deixando-o selvagem. Eu mesmo já
quebrei coisas nesse caso.... - Ele pensou - E se foi, por que ele
diria VIDA quando passou por mim?
Sr. Vincey não sabia. Sr. Bessel não retornou, e final-
mente, Sr. Vincey tendo feito mais alguns olhares desampa-

137
rados, e tendo dirigido uma breve nota de questionamento e
a deixado em uma posição conspícua no escritório, retornou
em um estado de espírito muito perplexo para suas próprias
instalações em Staple Inn. Esse caso havia lhe chocado. Ele
estava em desvantagem em explicar a conduta do Sr. Bessel
com qualquer hipótese sã. Ele tentou ler, mas não conseguiu,
ele saiu para uma breve caminhada, e estava tão preocupado
que escapou por pouco até o topo da Chancery Lane, e final-
mente – uma hora inteira antes de seu horário habitual – ele
foi para a cama. Por um tempo considerável ele não conse-
guiu dormir por causa da lembrança da confusão silenciosa
no apartamento do Sr. Bessel e, quando finalmente alcançou
um sono inquieto, fora às onze horas perturbado por um
sonho muito vívido e angustiante do Sr. Bessel.
Ele viu o Sr. Bessel gesticulando desesperadamente, e
com seu rosto branco e contorcido. Inexplicavelmente mes-
clado a sua aparência, sugerida talvez por seus gestos, havia
um medo intenso, uma urgência de agir. Ele até acreditava
que ouvira a voz de seu colega pesquisador chamando-o
aflito, embora no momento, ele considerasse isso uma ilusão.
A impressão vívida permaneceu mesmo após o Sr.Vincey
acordar. Por um tempo ele continuou acordado e tremendo
na escuridão, possuído com aquele vago, inexplicável terror
de possibilidades desconhecidas que saem dos sonhos para
cima de até mesmo os bravos homens. Finalmente ele se des-
pertou, virou-se e foi dormir novamente, apenas para o sonho
retornar com vivacidade renovada.
Ele acordou com uma convicção tão forte de que o Sr.
Bessel estava em aflição e precisava de ajuda que o sono já
não foi mais possível. Ele foi persuadido de que seu amigo
passava por uma horrenda calamidade. Por um tempo, ele
colocou em vão o raciocínio contra essa crença, mas por fim

138
cedeu a ela. Ele se levantou, contra toda a razão, ligou seu
gás, vestiu-se e saiu pelas ruas desertas – desertas, exceto
por um policial silencioso e as primeiras carroças de notícias
da manhã – em direção a Vigo Street para perguntar se o Sr.
Bessel havia retornado.
Ele nunca chegou lá. Enquanto descia a Long Acre,
um impulso inexplicável o afastou daquela rua em direção
ao Covent Garden, que estava apenas despertando de suas
atividades noturnas. Ele viu o mercado à sua frente – um
estranho efeito de luzes amarelas e figuras negras ocupadas.
Ele tomou consciência de uma gritaria e percebeu que uma
figura dobrava a esquina do hotel e corria com agilidade em
sua direção. Ele soube imediatamente que era o Sr. Bessel,
mas era o Sr. Bessel transfigurado. Ele estava sem chapéu e
desgrenhado, o colarinho pendia aberto, ele agarrava uma
bengala de cabo de osso perto do final da ponteira, e sua boca
estava distorcida. E ele correu, com passadas ágeis, muito
rapidamente. Seu encontro fora algo de um instante.
- Bessel! - gritou Vincey.
O homem que corria não deu sinal de reconhecimento
nem de Sr. Vincey ou de seu próprio nome. Em vez disso, ele
cortou seu amigo violentamente com a bengala, acertando-o
no rosto a dois centímetros do olho. Sr. Vincey, aturdido e
atônito, cambaleou para trás, perdeu o equilíbrio e caiu
pesadamente na calçada. Pareceu-lhe que o Sr. Bessel saltou
sobre ele quando ele caiu. Quando olhou novamente Sr. Bes-
sel havia desaparecido, e um policial e vários vendedores e
carregadores do jardim estavam correndo em direção a Long
Acre em alta perseguição.
Com a ajuda de vários transeuntes – pois a rua inteira
estava viva rapidamente com várias pessoas correndo – Sr.
Vincey lutou para ficar de pé. Ele imediatamente se tornou o

139
centro de uma multidão afoita para ver sua lesão. Uma multi-
dão de vozes competiu para reassegurá-lo de sua segurança,
e então para contar-lhe sobre o comportamento do louco,
como consideravam o Sr. Bessel. Ele subitamente apareceu
no meio do mercado gritando -“VIDA! VIDA!” golpeando
para a esquerda e para a direita com a bengala manchada
de sangue, e dançando e gritando com risadas a cada golpe
bem sucedido. Um rapaz e duas mulheres tiveram as cabeças
atingidas, e ele havia quebrado o pulso de um homem; uma
criancinha fora derrubada insensivelmente, e por um curto
período de tempo ele havia se dirigido a cada um diante dele,
tão furioso e resoluto fora seu comportamento. Então ele
irrompeu uma barraca de café, arremessou seu lampião pela
janela do correio, e fugiu rindo, após atordoar o principal dos
dois policiais que tiveram a coragem de acusá-lo.
O primeiro impulso de Sr. Vincey fora naturalmente
se juntar a perseguição de seu amigo, a fim de, se possível,
salvá-lo da violência do povo indignado. Sua ação foi lenta
entretanto, o golpe o surpreendeu, e enquanto isso não se pas-
sava de uma resolução veio a notícia, gritada pela multidão,
que Sr. Bessel havia eludido seus perseguidores. A princípio,
o Sr. Vincey mal podia acreditar nisso, mas a universalidade
do relatório e, presentemente, o digno retorno de dois poli-
ciais fúteis o convenceram. Depois de algumas perguntas sem
objetivo, ele voltou para Staple Inn, pressionando um lenço a
um nariz agora muito dolorido.
Ele estava com raiva, surpreso e perplexo. Parecia-lhe
indiscutível de que o Sr. Bessel deve ter ficado violentamente
louco no meio de sua experiência de transferência de pen-
samento, mas por que isso o faria aparecer com um rosto
triste e branco nos sonhos do Sr. Vincey parecia um problema
além da solução. Ele torturou seu cérebro em vão para ex-

140
plicar isso. Parecia-lhe enfim que não apenas o Sr. Bessel, a
ordem das coisas estava insana, mas ele não conseguia pensar
em nada para fazer. Ele fechou-se cuidadosamente em seu
quarto, acendeu seu fogo - era uma fogueira com tijolos de
amianto – e, temendo novos sonhos se fosse para a cama,
permaneceu banhando sua face ferida, ou segurando livros
em uma tentativa vã de ler, até o alvorecer. Durante toda
aquela vigília, ele teve uma curiosa convicção de que o Sr.
Bessel estava empenhando-se para falar com ele, mas ele não
se permitiria aceitar tal crença.
Por volta do amanhecer, sua fadiga física se firmou, e
ele foi para a cama e dormiu afinal, apesar de sonhar. Ele se
levantou tarde, sem descanso e ansioso, e com considerável
dor facial. Os jornais da manhã não tinham notícias da aber-
ração do Sr. Bessel – já era tarde demais para eles. As perple-
xidades do Sr. Vincey, para as quais a febre de sua contusão
adicionava nova irritação, tornaram-se enfim intoleráveis e,
depois de uma visita infrutífera à Albany, ele foi ao fossário
de St.Paul, ao Sr. Hart, sócio de Bessel e até onde o Sr. Vincey
sabia, seu amigo mais próximo.
Ele ficou surpreso ao saber que o Sr. Hart, embora não
soubesse nada sobre o surto, também havia sido perturbado
por uma visão, a própria visão que o Sr. Vincey tinha visto
– Sr. Bessel, branco e desgrenhado, rogando seriamente por
socorro através de seus gestos. Essa foi sua impressão da
importância de seus sinais. “Eu estava justamente indo pro-
curá-lo na Albany quando você chegou,” disse o Sr. Hart. “Eu
estava certo de que algo estava errado com ele.”
Como resultado dessa reunião, os dois senhores de-
cidiram averiguar na Scotland Yard notícias de seu amigo
desaparecido.
- Ele é obrigado a estar confinado, - disse o Sr. Hart. - Ele

141
não pode continuar nesse ritmo por muito tempo.
Entretanto, as autoridades policiais não encarceraram
o Sr. Bessel. Eles confirmaram as experiências noturnas do
Sr. Vincey e adicionaram novas circunstâncias, algumas de
caráter ainda mais grave do que as que ele conhecia – uma
lista de vidros quebrados ao longo da metade superior da via
de Tottenham Court, um ataque a um policial na estrada de
Hampstead, uma investida atroz a uma mulher. Todos esses
ultrajes foram cometidos entre meia noite e meia e quinze
para as duas da madrugada, e entre essas horas – e de fato,
desde o momento da primeira investida do Sr. Bessel de seu
aposento às nove e meia da noite – eles puderam traçar a pro-
funda violência de seu fantástico percurso. Durante a última
hora, pelo menos desde antes de uma hora, ou seja, até quinze
para as duas, ele correra por Londres, escapando com incrível
agilidade de todos os esforços para detê-lo ou capturá-lo.
Porém, após quinze para as duas ele havia desaparecido.
Até aquela hora as testemunhas eram numerosas. Dezenas
de pessoas o viram, fugiram dele ou o perseguiram, e então
as coisas cessaram repentinamente. Às quinze para as duas,
ele fora visto correndo descendo a Euston Road em direção a
Baker Street, bradando uma lata de óleo de colza em chamas,
e sacudindo e salpicando chamas nas janelas das casas por
onde ele passava, mas nenhum dos policiais na Euston Street
além da Exposição de Cera, nem qualquer um nas ruas secun-
dárias pelas quais ele deve ter passado se tivesse deixado a
Euston Street, tinha visto qualquer coisa dele. Abruptamente
ele desapareceu. Nada de seus feitos subsequentes vieram à
tona apesar da mais profunda investigação.
Aqui estava um novo assombro para o Sr. Vincey. Ele
havia encontrado consolo na convicção do Sr. Hart: “Ele
é obrigado a estar confinado logo,” e com essa segurança,

142
pode suspender suas perplexidades mentais, mas qualquer
desenvolvimento recente parecia destinado a adicionar novas
impossibilidades a uma pilha que já estava além dos poderes
de sua aceitação. Ele se viu duvidando se a sua memória
não poderia ter jogado algum truque grotesco, debatendo se
qualquer uma dessas coisas poderia ter acontecido, e à tarde
ele procurou o Sr. Hart novamente para compartilhar o peso
intolerável em sua mente. Ele encontrou o Sr. Hart envolvido
com um conhecido detetive particular, mas como esse cava-
lheiro não realizou nada neste caso, não precisamos estender
seus procedimentos.
Durante todo aquele dia o paradeiro do Sr. Bessel es-
capou de uma investigação incessantemente ativa, e durante
toda aquela noite. E durante todo aquele dia houve uma per-
suasão no fundo da mente do Sr. Vincey de que o Sr. Bessel
buscava sua atenção, e durante toda a noite o Sr. Bessel, com
uma expressão de angústia manchada de lágrimas, o perse-
guiu através de seus sonhos. E sempre que via o Sr. Bessel em
seus sonhos, também via vários outros rostos, vagos, porém
malignos, que pareciam perseguir o Sr. Bessel.
Foi no dia seguinte, domingo, que o Sr. Vincey relem-
brou certas histórias memoráveis da Sra. Bullock, a médium,
que estava chamando a atenção pela primeira vez em
Londres. Ele decidiu consultá-la. Ela estava hospedada na
residência daquele bem conhecido investigador, Dr. Wilson
Paget, e o Sr. Vincey, embora nunca tivesse conhecido o ca-
valheiro antes, reparou nele súbita intenção de invocar sua
ajuda, mas mal mencionara o nome Bessel quando o Doutor
Paget o interrompeu.
- Noite passada – logo no final, - ele disse, - nós tivemos
uma comunicação.
Ele deixou a sala e voltou com uma lousa na qual havia

143
certas palavras em uma caligrafia, de fato trêmulas, mas in-
discutivelmente a caligrafia do Sr. Bessel.
- Como você conseguiu isso?- disse o Sr. Vincey. -
- Você quer dizer... ?
- Nós conseguimos ontem à noite, - disse o Doutor Pa-
get.
Com numerosas interrupções do Sr. Vincey, ele come-
çou a explicar como a caligrafia fora obtida. Aparentemente
em suas sessões, a Sra. Bullock passa por uma condição de
transe, seus olhos rolando de uma forma estranha por baixo
das pálpebras, e seu corpo ficando rígido. Ela então começa
a falar muito rapidamente, geralmente em vozes que não a
dela. Ao mesmo tempo, uma ou ambas as mãos podem se
tornar ativa, e se as lousas e os lápis forem providenciados,
elas escreverão mensagens simultaneamente e de certa forma
independentemente do fluxo de palavras de sua boca. Por
muitos ela é considerada uma médium ainda mais notável do
que a célebre Sra. Poper. Era uma dessas mensagens, aquela
escrita por sua mão esquerda, que o Sr. Vincey tinha agora
diante dele. Consistia em oito palavras desconexas: “George
Bessel . . . escavação experimental . . . Baker Street . . . socorro
. . .inanição.”. Curiosamente, nem o Doutor Paget, nem os
outros dois inquiridores que estavam presentes ouviram falar
do desaparecimento do Sr. Bessel – as notícias sobre o aconte-
cido apareceram apenas nos jornais vespertinos de sábado – e
eles colocaram a mensagem de lado com as muitas outras de
tipo vaga e enigmática que a Sra. Bullock recebe de tempos
em tempos.
Quando o Doutor Paget ouviu a história do Sr. Vincey,
ele se entregou imediatamente com grande energia à busca
dessa pista para a descoberta do Sr. Bessel. Não serviria a
nenhum propósito útil aqui descrever as investigações do

144
Sr. Vincey e de si mesmo, é suficiente dizer que a pista era
genuína e de que o Sr. Bessel de fato fora descoberto por sua
ajuda.
Ele foi encontrado no fundo de um poço isolado que ha-
via sido afundado e abandonado no início do trabalho para o
novo trem elétrico perto da Estação de Baker Street. Seu braço,
perna e duas costelas estavam quebradas. O poço é protegido
por um açambarcamento de quase seis metros, e, além disso,
por incrível que pareça, o Sr. Bessel, um cavalheiro corpulen-
to de meia idade, deve ter se arrastado a fim de cair no poço.
Ele estava coberto de óleo de colza e a lata fina esmagada se
encontrava ao lado dele, mas felizmente a chama se extingui-
ra na queda. E sua loucura cessara dele completamente, mas
ele estava, é claro, terrivelmente debilitado, e ao sinal de seus
salvadores ele se permitiu um choro histérico.
Em vista do estado deplorável de seu apartamento, ele
foi levado para a casa do Dr. Hatton na Upper Baker Street.
Onde ele foi submetido a um tratamento sedativo, e qualquer
coisa que pudesse trazer à tona a crise violenta pela qual
passara foi cuidadosamente evitada, mas no segundo dia ele
ofereceu uma declaração.
Desde aquela ocasião, o Sr. Bessel repetiu diversas ve-
zes essa afirmação, para mim mesmo entre outras pessoas,
variando os detalhes como o narrador de experiências real
sempre faz, mas nunca, por acaso, se contradizendo em
algum detalhe particular. E a declaração que ele faz é subs-
tancialmente como se segue.
A fim de compreender claramente, é necessário voltar às
suas experiências com o Sr. Vincey antes do notório ataque.
As primeiras tentativas de auto projeção do Sr. Bessel, em seus
experimentos com o Sr. Vincey fora, como o leitor recordará,
sem sucesso, mas durante todas elas ele estava concentrando

145
todo o seu poder e vontade em sair do corpo – “desejando
com todas as minhas forças,” disse ele. Finalmente, quase
contra a expectativa, veio o sucesso. E o Sr. Bessel afirma que
ele, estando vivo, na verdade, por um esforço de vontade,
deixou seu corpo e passou para algum lugar ou estado fora
desse mundo.
A libertação foi, ele afirma, instantânea.
- Em um momento eu estava sentado em minha cadei-
ra, com os olhos bem fechados, minhas mãos segurando os
braços da cadeira, e fazendo tudo que podia para concentrar
minha mente no Sr. Vincey, e então eu me vi fora do meu
corpo – vi meu corpo próximo a mim, mas certamente não me
contendo, com as mãos relaxadas e a cabeça inclinada para
frente no peito.
Nada o abala em sua certeza dessa libertação. Ele des-
creve de maneira calma e prática a nova sensação que ele
experimentou. Ele sentiu que se tornara impalpável – tanto
quanto ele esperava, mas ele não esperava encontrar-se enor-
memente grande. Então, no entanto, parece que ele se tornou.
- Eu era uma grande nuvem – se assim posso me ex-
pressar – ancorada ao meu corpo. Pareceu-me, a princípio,
como se eu tivesse descoberto um eu maior, do qual o ser
consciente em meu cérebro era apenas uma pequena parte.
Eu vi Albany e Piccadilly, Regent Street e todos os quartos
e cômodos das casas, espalhados abaixo de mim como
uma pequena cidade vista de um balão. De vez em quando
formas vagas como coroas de fumaça flutuantes tornavam
a visão um pouco indistinta, mas a princípio eu dei pouca
importância a elas. A coisa que mais me surpreendeu, e que
ainda me surpreende, é que vi claramente o interior das casas
tanto quanto as ruas, eu vi pessoas jantando e conversando
em casas particulares, homens e mulheres jantando, jogando

146
bilhar, e bebendo em restaurantes e hotéis, e vários locais de
entretenimento abarrotados de pessoas. Era como assistir os
assuntos de uma colmeia de vidro.
Essas foram as palavras exatas do Sr. Bessel como eu
as coletei quando ele me contou a história. Completamente
esquecido do Sr. Vincey, ele permaneceu em um espaço ob-
servando essas coisas. Impelido pela curiosidade - ele conta -
se abaixou e, com o braço sombrio que ele descobriu possuir,
tentou tocar um homem caminhando ao longo da Vigo Street,
mas ele não conseguiu, embora seu dedo parecesse atravessar
o homem. Algo o impediu de fazer isso, mas o que fora ele
achava difícil de descrever. Ele compara o obstáculo a uma
folha de vidro.
- Eu me senti como um gatinho deve se sentir, - disse
ele, - quando vai acariciar pela primeira vez seu reflexo no
espelho.
De novo e de novo, na ocasião em que o ouvi contar
essa história, o Sr. Bessel voltava a essa comparação da folha
de vidro. Embora não fosse uma comparação totalmente
precisa, porque, como o leitor rapidamente verá, houve in-
terrupções dessa resistência geralmente impermeável, desse
meio de passar novamente pela barreira do mundo material.
Naturalmente, há uma grande dificuldade em expressar essas
impressões sem precedentes na linguagem da experiência
cotidiana.
Uma coisa que o impressionou instantaneamente, e que
pesou sobre ele durante toda essa experiência, foi a serenida-
de deste lugar – ele estava em um mundo sem som.
A princípio, o estado mental do Sr. Bessel era uma ma-
ravilha sem emoção. Seu pensamento era sobretudo onde ele
poderia estar. Ele estava fora do corpo – de seu corpo material
de toda forma - mas isso não era tudo. Ele acreditava, e eu

147
ao menos acredito também, que ele estava em algum lugar
fora do espaço, como entendemos, completamente. Por um
esforço extenuante de vontade ele passou seu corpo por entre
um mundo além deste mundo, um lugar inimaginável, mas
tão próximo dele e tão estranhamente situado, no que diz
respeito a ele, que todas as coisas nesta terra são claramente
visíveis tanto de fora quanto de dentro deste outro mundo
ao nosso redor. Por um longo tempo, como lhe pareceu, essa
percepção ocupou sua mente à exclusão de todos os outros
assuntos, e então se lembrou do compromisso com o Sr.
Vincey, para o qual essa formidável experiência era, afinal de
contas, apenas um prelúdio.
Ele voltou a sua mente para a locomoção nesse novo cor-
po em que se encontrava. Por algum tempo ele não conseguiu
se desvencilhar de seu apego a carcaça terrena. Por algum
tempo, esse novo estranho corpo de nuvem simplesmente
se balançou, contraiu, expandiu, enrolou e se contorceu com
seus esforços para se libertar, e então, repentinamente, o elo
que o prendia se rompeu. Por um momento, tudo ficou oculto
pelo que parecia ser esferas espiraladas de vapor negro, e por
um intervalo momentâneo, ele viu seu corpo que pendia des-
moronar flacidamente, viu sua cabeça sem vida cair para o
lado, e descobriu que ele estava dirigindo como uma imensa
nuvem em um lugar estranho de nuvens escuras, que tinham
a complexidade luminosa de Londres espalhadas como um
modelo abaixo.
Agora ele estava ciente de que o vapor flutuante em
torno dele era mais do que vapor, e a excitação temerária de
sua primeira tentativa foi alvejado pelo medo. Pois ele per-
cebeu, a princípio indistintamente, e então de repente muito
claramente, que ele estava rodeado por ROSTOS! Que cada
redemoinho e espirais que pareciam nuvens era um rosto. E

148
aqueles rostos! Faces de fina sombra, faces de tenacidade ga-
sosa. Faces como aquelas faces que brilham com estranheza
intolerável sobre o dorminhoco nas horas maléficas de seus
sonhos. Olhos malignos, gananciosos, cheios de curiosidade
cobiçosa, com sobrancelhas franzidas e lábios sorridentes
em rosnado, suas mãos obscuras se agarravam ao Sr. Bessel
conforme ele passava, e o resto de seus corpos não passava
de uma faixa indistinta de escuridão. Nunca uma palavra
disseram, nenhum som saía som das bocas que pareciam
tagarelar. Todos sobre ele pressionavam naquele silêncio
sonhador, passando livremente pela névoa escura que seu
corpo era, reunindo-se cada vez mais numerosamente sobre
ele. E o fantasmagórico Sr. Bessel, agora de repente assusta-
do, atravessou a silenciosa e ativa multidão de olhos e mãos
arrebatadoras.
Tão inumanos eram esses rostos, tão malignos seus
olhos fixos, e sombrios gestos em garra que não ocorreu ao
Sr. Bessel tentar se relacionar com essas criaturas à deriva.
Fantasmas idiotas, eles pareciam, filhos dos desejos vãos, se-
res não nascidos e proibidos de ser, cujas únicas expressões e
gestos contavam a inveja e o anseio pela vida, que era o único
elo com a existência.
Diz muito de sua resolução que, em meio aquele enxa-
me de espíritos malignos silenciosos, ele ainda pode pensar
no Sr. Vincey. Ele fez um esforço violento de vontade e des-
cobriu-se, sem saber como, inclinando-se para Staple Inn, viu
o Sr. Vincey sentado atento e alerta em sua poltrona junto ao
fogo.
E se agrupando também sobre ele, como eles sempre se
agruparam sobre tudo aquilo que vive e respira, havia outra
multidão destas sombras sem voz e vãs, desejando, ansiando,
buscando alguma brecha à vida.

149
Por um tempo o Sr. Bessel procurou inutilmente atrair
a atenção do amigo. Ele tentou ficar em frente aos seus olhos,
mover os objetos do quarto, tocá-lo, mas o Sr. Vincey perma-
neceu inalterado, ignorante do ser que estava tão perto do
seu. O estranho algo que o Sr. Bessel comparou como uma
folha de vidro separou-o impermeavelmente.
E finalmente o Sr. Bessel fez algo desesperado. Eu contei
que de alguma forma ele podia ver não apenas o exterior de
um homem como o vemos, mas dentro dele. Ele estendeu sua
mão fantasmagórica e empurrou seus dedos negros difusos,
como pareciam, através do cérebro desatento.
Então, de repente, o Sr. Vincey despertou como um
homem que retorna sua atenção de volta dos pensamentos
errantes, e apareceu para o Sr. Bessel que o pequeno corpo
vermelho escuro, situado no meio do cérebro do Sr. Vincey,
inchou e brilhou ao fazê-lo. Desde esta experiência foi mos-
trado a ele figuras anatômicas do cérebro, e agora ele sabe
que é essa estrutura inútil, como os doutores chamam, o olho
pineal. Por mais estranha que pareça a muitos, nós possuí-
mos, no fundo de nossos cérebros – onde não é possível ver
qualquer luz terrena – um olho! Na época, isso, com o resto
da anatomia interna do cérebro, era bastante novo a ele. Ao
ver sua aparência alterada, entretanto, ele esticou o dedo
e, ainda temeroso das consequências, tocou esse pequeno
ponto. E imediatamente o Sr. Vincey despertou, e o Sr. Bessel
sabia que era visto.
E naquele instante veio ao conhecimento do Sr. Bessel
que o mal havia acontecido com o seu corpo, e eis que, um
grande vento soprou por todo aquele mundo das sombras e
o dilacerou. Tão forte era essa persuasão que ele não mais
pensava no Sr. Vincey, mas virou-se imediatamente, e todos
os incontáveis rostos voltaram com ele, como folhas antes de

150
um vendaval, mas ele retornara tarde demais. Em um instan-
te ele viu o corpo que ele havia deixado inerte e colapsado
– deitado, de fato, como o corpo de um homem morto – havia
despertado, havia despertado em virtude de alguma força e
vontade além da sua. Aquilo ficou de pé com olhos arregala-
dos, esticando seus membros de maneira duvidosa.
Por um momento ele observou em desalento, e então
se inclinou em direção a isso, mas o painel de vidro havia
se fechado contra ele novamente, e ele foi frustrado. Ele se
debateu fervorosamente contra isso, e sobre ele os espíritos
malignos sorriram e apontaram e zombaram. Ele cedeu a
uma cólera furiosa. Ele se compara a um passarinho que se
esgueirou cuidadosamente para uma sala, e que está batendo
na vidraça que impede sua liberdade.
E eis que o pequeno corpo que outrora fora dele agora
estava dançando com deleite. Ele viu aquilo gritar, embora
não pudesse ouvir seus gritos, ele viu a violência de seus
movimentos aumentar. Observou-o arremessar sua mobília
estimada no prazer louco da existência, rasgar seus livros, es-
magar suas garrafas, beber descuidadamente dos fragmentos
pontiagudos, pular e ferir em uma aceitação apaixonada de
viver. Ele observou essas ações com um assombro paralisado.
E então, mais uma vez, ele se atirou contra a barreira intrans-
ponível e, depois, com toda aquela tripulação de fantasmas
zombeteiros, correu de volta em uma confusão devastadora
para o Sr. Vincey, para lhe contar a indignação que lhe ocor-
rera.
O cérebro do Sr. Vincey, porém, estava agora fechado
contra aparições, e o incorpóreo Sr. Bessel perseguiu-o em
vão enquanto ele corria para Holborn para chamar um táxi.
Frustrado e aterrorizado, o Sr. Bessel recuou de novo, para
encontrar seu corpo profanado gritando em um glorioso fre-

151
nesi pela Burlington Arcade. . . .
E agora o leitor atento começa a entender a interpreta-
ção do Sr. Bessel da primeira parte desta estranha história. O
ser cuja corrida desvairada por Londres infligira tanto dano
e desastre tinha, de fato o corpo do Sr. Bessel, mas não era o
Sr. Bessel. Era um espírito maligno daquele estranho mundo
além da existência, no qual o Sr. Bessel tinha se aventurado
tão imprudentemente. Durante vinte horas ele se apoderou
dele e, durante todas aquelas vinte horas, o corpo espiritual
desapropriado do Sr. Bessel estava indo e voltando naquele
inaudível mundo das sombras procurando ajuda em vão. Ele
passou muitas horas batendo nas mentes do Sr. Vincey e de
seu amigo, o Sr. Hart. Cada um, como sabemos, ele despertou
com seus esforços. A linguagem que poderia transmitir sua
situação a esses ajudantes do outro lado do abismo, ele não
conhecia, seus dedos fracos apalparam em vão e impotente-
mente em seus cérebros. Uma vez, de fato, como já dissemos,
ele conseguiu desviar o Sr. Vincey de seu caminho para que
ele encontrasse o corpo roubado em seu curso, mas não
conseguiu fazê-lo entender o que havia acontecido: ele não
conseguiu retirar qualquer ajuda desse encontro. . . .
Durante todas aquelas horas, foi devastadora na mente
de Sr. Bessel a convicção de que naquele momento seu corpo
seria morto por seu inquilino furioso, e ele teria que perma-
necer nesta terra sombria para sempre. De modo que aquelas
longas horas foram uma crescente agonia de medo. Ele fora
jogado de lá para cá em sua excitação ineficaz, inumeráveis
espíritos daquele mundo sobre ele o cercavam e confundiam
sua mente. E então, uma multidão de aplausos invejosos se
derramou sobre seu companheiro bem sucedido enquanto ele
seguiu seu glorioso percurso.
Para isso, parece, deve ser a vida dessas coisas incor-

152
póreas deste mundo, que é a sombra de nosso mundo. Eles
sempre observam, cobiçando um caminho para um corpo
mortal, a fim de que possam descer, tão furiosos e coléricos,
quanto violentas luxúrias e loucos, estranhos impulsos,
regozijando-se no corpo que conquistaram. Pois o Sr. Bessel
não era a única alma humana naquele lugar. Testemunhe o
fato de que ele encontrou primeiro um, e em seguida várias
sombras de homens, homens como ele, que pareciam ter per-
dido seus corpos do mesmo modo como ele havia perdido, e
vagaram, desesperados, naquele mundo perdido que não é
nem vida nem morte. Eles não podiam falar porque aquele
mundo é silencioso, mas ele os conhecia por causa de seus
corpos humanos obscuros, e por causa da tristeza em seus
olhos.
Como eles haviam entrado naquele mundo ele não sa-
beria dizer, nem onde os corpos que eles perderam poderiam
estar, se ainda deliravam sobre a Terra, ou se eles estavam
fechados para sempre na morte sem retorno. Que eles eram
espíritos dos mortos nem ele nem eu acredito, mas o Doutor
Wilson Paget acredita que eles eram almas racionais dos ho-
mens que estão perdidos na loucura na Terra.
Finalmente, o Sr. Bessel encontrou um lugar onde uma
pequena multidão de tais criaturas desencarnadas e silen-
ciosas se reunia e, ao passar por elas, viu abaixo uma sala
bem iluminada, e quatro ou cinco cavalheiros quietos e uma
mulher, uma mulher corpulenta vestida de bombazina preta,
e sentada desajeitadamente em uma cadeira com sua cabeça
jogada para trás. Ele a conhecia de seus retratos como sendo
Sra. Bullock, a médium. Percebeu que trechos e estruturas em
seu cérebro brilhavam e se agitavam como ele vira no olho
pineal brilhando no cérebro do Sr. Vincey. A luz era muito
irregular, algumas vezes uma ampla iluminação, e, às vezes,

153
meramente um ponto fraco crepuscular, e se locomovia len-
tamente por seu cérebro. Ela continuou falando e escrevendo
com uma mão. E o Sr. Bessel com as sombras de homens
apinhadas à sua volta, e uma grande multidão de espírito das
sombras daquela terra sombria, se empenhavam e empurra-
vam para tocar as regiões iluminadas de seu cérebro. Confor-
me um deles alcançava seu cérebro ou outro era empurrado
para longe, sua voz e escrita de sua mão mudavam. Então, o
que ela disse foi desordenado e confuso na maior parte, em
um momento um fragmento de mensagem de uma alma, e
em seguida um fragmento de outra, e agora ela balbuciava as
fantasias insana dos espíritos do desejo vão. Então o Sr. Bessel
entendeu que ela falava pelo espírito que havia lhe tocado,
e ele começou a lutar muito furiosamente em direção a ela.
Ele estava do lado de fora da multidão, entretanto, e naquele
momento não conseguiu alcançá-la, por fim, ficando ansioso,
ele partiu para tentar descobrir o que havia acontecido com
seu corpo. Por um longo tempo ele foi de um ponto a outro
procurando em vão e temendo que tivesse sido morto, e então
o encontrou no fundo do poço em Baker Street, contorcendo-
-se furiosamente e amaldiçoando sua dor. Seu braço, perna e
duas costelas foram quebradas com a queda. Além disso, o
espírito maligno estava irado porque seu tempo havia sido
tão curto e, também, por causa dos movimentos violentos que
causam dor ao seu corpo
E então o Sr. Bessel retornou com fervor redobrado para
a sala onde a sessão estava ocorrendo, e tão logo alcançou a
vista no lugar, ele viu um dos homens que ficava em volta
da médium olhando para seu relógio como se dissesse que a
sessão deveria terminar agora. Nisso, um grande número de
sombras que estavam se empenhando se viraram com gestos
de desesperança, mas o pensamento de que a sessão estava

154
quase no fim apenas tornou o Sr. Bessel mais empenhado. Ele
lutou tão vigorosamente com sua vontade contra os outros
que acabou alcançando o cérebro da mulher. Aconteceu que
naquele momento ele brilhou muito intensamente, e no mes-
mo instante ela escreveu a mensagem que o Doutor Wilson
Paget preservou. E então as outras sombras e a nuvem de
espíritos malignos ao seu redor afastaram o Sr. Bessel dela
e, durante todo o resto da sessão, ele não conseguiu mais
recuperá-la.
Então ele voltou e observou através de longas horas no
fundo do poço, onde o espírito maligno se encontrava, no
corpo roubado que havia mutilado, contorcendo-se e amaldi-
çoando, e chorando e gemendo, e aprendendo a lição da dor.
Ao amanhecer a coisa pela qual ele havia esperado aconteceu.
O cérebro brilhou intensamente e o espírito maligno saiu, e o
Sr. Bessel entrou no corpo que ele temia nunca mais entrar.
Ao fazê-lo, o silêncio – o silêncio inquietante – terminou, ele
ouviu o tumulto do tráfego e as vozes das pessoas acima, e
aquele mundo estranho que é a sombra do nosso mundo – as
sombras escuras e silenciosas do desejo ineficaz e as sombras
dos homens perdidos – desapareceu limpo.
Ele ficou lá por cerca três horas antes de ser encontrado.
Apesar da dor e sofrimento de suas feridas, e do lugar úmido
e turvo que ele estava deitado; apesar das lágrimas – arranca-
das por seu sofrimento físico – seu coração estava repleto de
alegria ao saber que, no entanto, ele estava de volta mais uma
vez ao amável mundo dos homens.

155
PÓSFACIO

por Douglas Freitas


Quadrinista/Escritor

Tenho certeza que você, assim como eu, se sur-


preendeu com esta obra. Foram pequenos contos de grandes
mestres, pérolas de mulheres e homens que marcaram época.
Alguns gozaram do reconhecimento em vida, outros somente
postumamente.
Reconhecimento é algo que não deve deixar para de-
pois. Por isto, deixo aqui registrado o agradecimento a todos
envolvidos neste maravilhoso projeto (certamente, primeiro
de muitos).
Ao Daniel Braga, vulgo “Gárgula”, pelo brilhantismo
na escolha dos contos e adaptação dos textos, à Camile Que-
iroz pela preparação dos textos do organizador; a Mariana
Costa, sem ela, este projeto sequer teria começado; Juliana
Costa por todo auxílio; Fábio Junior, da Digital Comics, um
amigo e parceiro de outros projetos; Diego Moreau, sócio e
exímio revisor; Amanda Pestana, que fez a revisão inicial de
O Corpo Roubado, quando sequer pensávamos nesta antolo-
gia; aos artistas convidados e seus lindos trabalhos; Professor
Alexander Meirelles, que nos ilumina com sua sabedoria;
Johnny C. Vargas, sócio que deixa tudo pronto e belo para im-
pressão; Daniel Herculano, do Clube Box, parceiro que acred-
ita em nossos projetos; Romeu Martins e Nati Scotuzzi, pelas
consultorias.... e é claro, a você, leitor, que literalmente leu até
a última frase desta obra. Obrigado, vocês são incríveis!

156
www.skripteditora.com.br
Instagram: @skript_editora • facebook.com/skripteditora • Twitter: @skript_editora
E-mail: skripteditora@gmail.com
158
159
160

Você também pode gostar