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AUTERIVES MACIEL
í■ 1u,111
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Cada geração filosófica articula uma
O Todo-Aberto
,.
parte de uma questão contemporânea:
a ruptura de Bergson com a
compreensão dedutiva ou descritiva
do todo ou do absoluto como um dado.
A tese de Bergson, aqui explorada,
DURAÇÃO E SUBJETIVIDADE
equacionou a ideia de ser à ideia de
tempo: o todo temporal é aberto. EM HENRI BERGSON
O Todo-Aberto é, entre outras
coisas, um complexo estudo da
subjetividade. A partir de Bergson,
Auterives chega, através do
movimento evolutivo, ao momento em
que a vida humana perde o seu alento
criador, tornamo-nos autômatos
conscientes, submetidos à
regularidade dos hábitos
(sensório-motores). Somos impedidos
de agir livremente na medida em que
um sistema de sociedades fechadas se
opõe a toda forma de expressão. Ser
livre, antes de ser uma liberdade de
Rio de Janeiro
ação, é conquistar uma liberdade de 2017
expressão.e de criação.
© Copyright 2017 - Todos os direitos reservados ao autor
Sumário
PARTE 1
Do Movimento ao Todo-Aberto . . 13
I - Da Matéria como Imagem Móvel ao Todo . . .14
II - Subjetividade e Duração . . . . . . . .33
CIP - Catalogação na fonte
III -Do Ser do Passado ao Todo-Aberto .. 50
M152t Maciel Junior, Auterives, 1965 -
A
Conclusão: A Experiência do Aberto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 203 s rupturas com certos sistemas metafísicos clássicos se verifi-
cam em filosofias que questionam a abordagem da totalidade
Referências Bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 210 sob o domínio da objetividade e da presença. Seja por via analó-
gica ou ordenativa 1, diversos sistemas antigos e modernos bus-
cavam - para a explicação do ser enquanto totalidade dada - um princípio
ou um fundamento estável que tornasse possível uma abordagem objetiva
e universal do real. Tal era a função do eídos (ideia) do Bem para Platão -
ser real e transcendente postulado por esta metafísica como princípio de
um mundo constit4ído por essências eternas -; das substâncias com os
seus atributos essenciais e acidentais - os sentidos do ser - para Aristó-
teles e das três substâncias cartesianas inventadas na filosofia da reflexão
como a versão moderna de uma metafísica specíalís. Todos esses sistemas
traziam um propósito semelhante: pensavam o absoluto como dado, or-
denando-o em uma compreensão contemplativa ou reflexiva, segundo o
duplo procedimento da descrição ou da dedução.
Ora, no cenário moderno e contemporâneo tal posição vai sendo
questionada. Isto porque a compreensão da totalidade passa a ser proble-
matizada dinamicamente, e o tempo deixa de ser apreciado como um apên-
dice que só afeta a realidade acidentalmente, para ser constituinte do pró-
prio real. Além disso, as equações ser e tempo, que abalam as convicções da
existência de um todo fechado, supõem pensamentos qu..e abordam o real
buscando nele seu coeficiente de novidade e criação.
Podemos dizer que a superação da ideia de uma totalidade dada se rea
-liza, na filosofia contemporânea, em duas direções: na primeira, a realidade
de um todo dado é negada, pois o real pré-estabelecido é uma noção válida
1 Sobre a noção de totalidade nas ontologias clássicas ver o excelente artigo de Paolo
Tincati e Enrico Rambaldi, "Totalidade", in: Enciclopédia, Dialética, vol. 10.
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O Todo-Aberto Introdução
tão somente para o senso comum; na segunda, a totalidade é pensada histo- condição de um tempo uno e virtual. Ora, isto supõe dois problemas que
ricamente, já que o absoluto é configurado como dinâmico e aberto. devemos apresentar imediatamente nesta introdução: quais as caracte-
A primeira direção nos conduz a um pluralismo radical, onde nele o ser rísticas da duração como uma experiência heterogênea, isto é, como dado
se diz de um devir que é expressão de forças e de vontades que não se unifi- imediato de uma consciência que intui uma multiplicidade qualitativa ine-
cam. O retornar, o eterno retorno de todas as coisas faz do ilimitado devir a rente à vida? E como ocorre o salto ontológico promovido por Matéria e
expressão de uma pluralidade de vontades com múltiplas perspectivas que Memória que dá a Bergson as condições preliminares da execução da tese
não se totalizam, singularizando, assim, a filosofia de Nietzsche. Na segunda de uma totalidade aberta?
via, encontramos o pensamento de um todo dinâmico, absoluto processual Nos Ensaios Sobre os Dados Imediatos da Consciência 3, Bergson faz
que se desdobra em uma dimensão historicista do ser lançado. A ideia de ser uso da intuição com o propósito de pensar a duração como condição da ex-
e tempo, a diferença ontológica entre o ser e o ente, a dimensão processual periência subjetiva, isto é, como condição de um fluxo de emoções, de afe-
,.,..
de uma abertura onde a existência, na sua mais autêntica possibilidade, se
efetua ao se referir a possíveis e não a entes determinados no mundo conso-
tos, de sensações, que compõem uma sucessão sem exterioridade. Trata-a
como um tempo heterogêneo e contínuo, fluxo ininterrupto de vibrações
lidado dos fenômenos, caracteriza, no nosso entendimento, a ontologia fun- que constitui uma multiplicidade qualitativa que prolonga o passado no
damental de Heidegger. Cumpre dizer que em ambas as vias a objetividade presente, dando espessura ao intervalo de tempo que constitui o presente
reclamada pelos antigos vê-se abolida, pois tanto o perspectivismo nietzs- vivo. Tal intervalo é intuído na sua indeterminação pelo fato do presente
cheano quanto o historicismo de Heiddeger põem em cena uma ideia de tem- durável se.r pleno de antecipações e carregado de retenções, compondo
po para abordar o problema do ser. um fluxo vibracional que habita a hesitação existente em todo aquele que
O bergsonismo emerge nesse cenário. Sendo uma filosofia da duração, escolhe entre as percepções reais a resposta possível a ser executada pela
ela se constrói na abordagem dinâmica da realidade. Para Bergson, o Todo ação motriz.
apresenta-se a partir da duração do universo, não podendo ser compreen- Nesses termos, a duração é reportada, em princípio, ao tempo in-
dido à luz da pura presença. Desta forma, guardando um parentesco com terno do intervalo existente entre a percepção do mundo externo e a ação
uma noção que é também presente na filosofia de Heiddeger, Bergson diz motriz deflagrada pela atenção à vida organizada. Para compreendê-la é
que o todo não pode ser dado pelo fato dele ser Aberto 2• Assim, é enquanto preciso não medi-la, não tratá-la de forma homogênea, nem tampouco re-
totalidade aberta que o sistema de pensamento depreendido das démarches presentá-la abstratamente. Nos Ensaios Bergson denuncia a representa-
do bergsonismo é abordado pelo nosso texto. Da duração como experiência ção abstrata do tempo através da ênfase dada à noção de multiplicidade
psíquica à experiência ampliada do tempo pela intuição de uma pluralidade e propõe, assim, uma filosofia pautada nos dados imediatos de uma cons-
de durações, Bergson nos conduz, de uma maneira ímpar, à ideia de um todo ciência informada pela intuição. Sendo assim, o conceito de multiplicida-
durável consolidado por um monismo do tempo. de aplicado por ele na sua filosofia assume uma importância especial no
Desta forma, o Todo-Aberto é alcançado pela experiência intuitiva da nosso estudo uma vez que viabiliza a ultrapassagem de dualismos filosó-
duração, que se estende do âmbito psíquico - onde ela é pensada na sua ficos pautados na convicção de que o múltiplo se encontra enraizado em
pureza heterogênea - para o plano de uma experiência real que a eleva à unidades substanciais. É que o par Uno-Múltiplo sugere que a diversidade
seja posta como inerente a um sujeito ou a um objeto considerados como
2 Tanto em Heidegger como em Bergson a concepção de totalidade aberta substratos que existem em si mesmos.
se faz por intermédio da ideia de tempo, sendo, inclusive, esta a única tese
semelhante entre os dois autores. 3 H. Bergson, Essai sur les données immédiates de la conscience, in: Oeuvres, Paris, cap. 1.
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-
O Todo-Aberto Introdução
Quando Bergson utiliza o conceito de multiplicidade, ele ultrapassa es- problemas centrais que ensejam a nossa pesquisa: como pensar a totalidade
ses dualismos metafísicos, propondo um entendimento das coisas físicas e aberta pela concepção de um Uno Todo virtual sustentado em uma teoria das
da duração como duas multiplicidades. Para ele, a suposta unidade numérica multiplicidades? E em que sentido as durações imanentes ao Todo-Aberto
das coisas não impede que a tratemos como multiplicidades de termos variá- podem ser compreendidas como fontes de novidade e criação? Daremos as
veis que entram nas suas composições. São multiplicidades quantitativas, respostas a tais questões ao longo de um percurso construído com cinco par-
objetivas, numéricas, extensivas, que podem ser medidas e compreendidas tes acrescidas de uma conclusão.
segundo critérios científicos de quantificação. São multiplicidades atuais que Na primeira parte, buscaremos a elucidação do conceito de "Todo-Aberto';
correspondem a um aspecto objetivo da matéria que pode ser analisado pela compreendendo a filosofia bergsoniana na sua especificidade, uma vez que
nossa inteligência. Tais multiplicidades são discretas e, por isto mesmo, elas ela afirma a existência de uma totalidade que não pode ser dada porque coin-
podem ser divididas e, até mesmo, subdivididas. Por outro lado, a duração cide com a duração. A totalidade durável e aberta conferirá, como veremos,
consiste em uma multiplicidade de fusão, virtual, q lifativa e heterogênea, ao bergsonismo um estatuto singular na história da metafísica que deve ser
onde os termos só se dividem mudando de natureza. As diferenças intrínse- precisado nos seguintes termos: ao invés de constatar o eterno como faziam
cas ao tempo são, portanto, diferenças de natureza, que conferem à subjetivi- as antigas metafísicas, Bergson se move interrogando o novo, isto é, procu-
dade a característica temporal da heterogeneidade e da continuidade. rando entender as condições reais da experiência da criação.
Além disso, a compreensão intuitiva da duração exige que tratemos Para o empreendimento dessa investigação colocaremos em análise
os afetos, as emoções, as sensações e os movimentos intrínsecos a tais da- outros conceitos. D_iremos, em primeiro lugar, que Bergson inovará a con-
dos subjetivos como multiplicidades heterogêneas, existindo entre os seus cepção de matéria ultrapassando os procedimentos que situavam as imagens
termos uma mudança de natureza consoante as suas diferenças qualitativas. qualitativas no espírito e reduziam a matéria a puros movimentos quantita-
Ora, a análise da duração e da multiplicidade qualitativa com movimentos tivos. Rompendo com tais filosofias, ele não só afirmará que a matéria é um
heterogêneos dá a Bergson as condições de fundar uma filosofia do tempo a conjunto de "imagens móveis", como dirá também que os seus movimentos
partir da experiência real das mudanças qualitativas. Entretanto, no primeiro reais são heterogêneos e que eles expressam - em conjunção com os movi-
livro a análise incidia prioritariamente sobre a condição da experiência sub- mentos qualitativos e evolutivos do espírito - uma mudança qualitativa em
jetiva. Restava interrogar sobre a existência da duração para além da subjeti- uma totalidade sempre aberta, Além disso, o conceito de Virtual - noção tem-
vidade. Existiria algo de durável na matéria? Participaria a matéria com todas poral por excelência - ganhará na filosofia bergsoniana um estatuto rigoroso,
as coisas de uma duração universal? servindo para precisar a natureza de um real coexistente com o estatuto atu-
O salto ontológico que viabiliza o conceito de totalidade aberta é inse- al da matéria. Disto se depreenderá um conceito insólito de memória cósmi-
parável de uma dupla afirmação: há uma realidade da matéria que suprime ca, já que um ser do passado será postulado na sua metafísica, possibilitando
a diferença idealista entre ser e perceber; há uma realidade do espírito que uma articulação da duração com a memória. Em terceiro lugar, mostraremos
prolonga a duração na coexistência virtual de um passado ontológico, isto que as experiências restritivas condicionadas pelo organismo e fundadas no
é, de um ser do passado posto como fundamento da experiência subjetiva. senso comum - experiências estas que reduzem o conhecimento aos interes-
Matéria e Memória, livro que estende as teses dos Ensaios, apresenta as con- ses práticos dos seres humanos - poderão ser ultrapassadas em proveito das
dições de uma multiplicidade de durações, afirmando, a um só tempo, a rea- condições da experiência real do tempo na sua dimensão virtual. Com isso, o
lidade da matéria - com uma duração que lhe é imanente - e a realidade do conceito de multiplicidade será abordado para elucidar as condições do mo-
espírito inseparável de uma coexistência virtual de várias durações. Ora, tal nismo que sustentará a nossa argumentação e um movimento de diferencia-
coexistência é o.caminho percorrido pelo nosso texto condicionado por dois ção será evocado para consolidar as condições da tese que finda a primeira
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O Todo-Aberto
- Introdução
parte do nosso estudo: sustentaremos no final que existe um tempo uno e passar a sua condição adaptativa - individual ou coletiva - que o mantém
virtual fundamentado na teoria das multiplicidades temporais. alienado da totalidade criadora.
Como a compreensão dessa totalidade aberta é inseparável de uma A condição humana será retomada na quarta parte do nosso traba-
metodologia construída com o propósito de criticar ilusões imanentes à nos- lho em função da complexidade social da sua existência. No decorrer dessa
sa inteligência, pesquisaremos, na segunda parte, o método criado como via análise, mostraremos as características de uma sociedade aberta através
de acesso à totalidade em questão. Nessa etapa, a noção de intuição ganhará de uma moral e de uma religião igualmente abertas postuladas como con-
relevo na filosofia bergsoniana, constituindo-se em um método rigoroso com dições de análise de uma alma aberta. Elucidaremos, enfim, a passagem das
regras formuladas para a apreensão do tempo real. Ou seja, a construção do sociedades fechadas para as sociedades abertas, mostrando como na via
método será a condição de elucidação de problemas teóricos e práticos que do homem um movimento de abertura se consolidará, tornando possível
ganharão importância cada vez maior na progressão do sistema filosófico. a ultrapassagem da sua condição de animal inteligente pela conversão da
Na nossa terceira parte retomaremos a teorià>""thrvida com a ideia de inteligência à intuição.
evolução que dela se depreenderá. Nessa etapa, nossa abordagem consistirá E assim, para findarmos a nossa investigação, trataremos da gênese
no aprofundamento e na elucidação dos dois aspectos da subjetividade hu- da intuição na inteligência e da conversão desta à primeira. Com isso, dois
mana - abordados na primeira parte - que poderão ser compreendidos em problemas finais consolidarão o nosso trabalho: é possível ter do todo uma
conexão com a esfera da vida dos animais: o aspecto prático - adaptativo e consciência integral? Como pensar a ultrapassagem dos mecanismos adapta-
orgânico por excelência - condicionado biologicamente pela atenção à vida tivos da inteligêncja, para ter do universo espiritual e material uma apreen-
e fundado nas necessidades do ser vivo movente; e o aspecto constituinte são imediata dos fluxos que eles são?
de uma subjetividade-tempo, condição da experiência real da criação pelo Na última parte, mostraremos que o reencontro com o impulso ori-
impulso vital e fundamento dos processos subjetivos inerentes aos se- ginário, que coincidirá com a tomada de consciência do "Todo-Aberto", se
res humanos. O desenvolvimento desses aspectos serão explicitados pela efetuará na via da emoção. E aqui a noção de afeto vai ganhar, na obra de
análise do longo movimento evolutivo da vida que consiste na criação de Bergson, um estatuto singular. É bem verdade que ela já encontrava um lugar
formas variadas de seres viventes geradas pela atualização do impulso específico desde os primórdios da obra, e foi ganhando, na sua evolução, uma
vital visto como um movimento criador. Mostraremos, no decorrer dessa importância cada vez maior. Mas é na condição de emoção especial que o afe-
parte, como a vida, no momento em que se deixa aprisionar por um ciclo to converterá a inteligência à intuição. Mas qual é a natureza dessa emoção
adaptativo, perde contato com o seu alento criador, de caráter temporal, especial? Como precisá-la no sistema bergsoniano? Isto é o que visaremos
fechando-se na via da adaptação. É que a estagnação na filosofia bergso- estabelecer no final, com o intuito de definirmos a condição empírica da gê-
niana encontrará subsídios em uma certa tendência fundada no plano da nese da intuição. Na nossa conclusão afirmaremos, enfim, que a experiência
natureza: a necessidade de extrair do mundo material a energia indis- do todo alia liberdade e criação; e é enquanto criação que a abertura deve ser
pensável para a sua perseverança, vai colocar o vivo em uma disposição pensada e concebida.
adaptativa. Quando esta triunfa, ocorrerá uma perda de contato do viven-
te com o seu impulso criador, resultando daí uma certa alienação. Nesse
caso, cabe perguntar quais serão as condições de ultrapassagens das vi-
cissitudes adaptativas? Como resgatar o impulso originário que colocará
a vida na imanência do seu movimento criador? Segundo Bergson, só na
via do homem .será possível esse movimento, cabendo ao humano ultra-
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PARTl1
Do Movimento ao Todo-Aberto
Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto
D
é falso também fazer da matéria algo que produziria em nós
entre as novidades apresentadas em Matéria e Memória, duas, de representações, mas que seria de uma natureza diferente"4.
início, sobressaem: a ultrapassagem de um impasse estabelecido
pelo confronto entre idealismo e realismo - que conduz o autor a Ou seja, não é possível sustentar, como os idealistas o fazem, que
estabelecer uma superação da dualidade existente na história da os objetos diant.e de nós, que vemos e tocamos, só existem para os nos-
filosofia entre ser e perceber -; e a descoberta de uma duração coextensiva sos espíritos; ou sustentar, como fazem os mecanicistas, a existência de
à matéria, que passa a coexistir com a realidade do espírito para além do um real material oculto, diferente em natureza daquele que nós perce-
psicologismo. Assim, um tempo real, extrapsíquico, virtual, vai - ao longo do bemos. Para Bergson, ambas as posições são excessivas e resultam de
livro - se consolidando em coexistência com os movimentos da matéria, ele- um equívoco que foi construído ao longo dos séculos que precederam a
vando a duração a uma instância transcendental. As duas novidades condi- emergência dessas duas escolas: aquele que afirma uma dualidade en-
cionarão a ontologia de um absoluto durável, isto é, Aberto, concebido como tre a realidade percebida pelos sentidos e a realidade material inves-
expressão de movimentos que se propagam ao infinito. Como a consecução tigada pela ciência. Ora, é nessa dificuldade que as escolas defenderão
desta ontologia supõe uma conceituação preliminar do movimento da maté- suas respectivas posições. Nosso problema é saber se porventura esta
ria precedendo a determinação do virtual; seguiremos a ordem adotada pelo dualidade está bem formulada, ou se não seria ela justamente a razão
autor no livro supracitado, apresentando, em primeiro lugar, a sua teoria das das explicações excessivas que aqui questionamos? Ou seja, como pos-
"imagens móveis".
tular a existência de uma dualidade intransponível entre uma realidade
O impasse que Bergson procura ultrapassar diz respeito a uma crise
psíquica percebida pelos seres vivos e a realidade material? Matéria e
que ocorre na psicologia no fim do século XIX, quando, com ela, não é mais
Memória é um livro concebido com o propósito de compreendê-la, para
possível sustentar uma certa dualidade: a que consiste em colocar as imagens
poder ultrapassá-la.
- não extensas e qualitativas - na consciência, e os movimentos - quantitati-
vos e homogêneos - na matéria. A existência dessa dualidade fazia com que 4 H. Bergson, Matéria e Memória, in: Oeuvres, Paris, p. 161. Citamos os textos de Berg-
considerássemos as imagens percebidas pelos seres humanos como fatos ou son segundo a edição do Centenaire; mas quando estivermos citando textos encon-
realidades psíquicas, e que reduzíssemos a matéria a um movimento quan- tráveis na edição brasileira indicaremos entre parênteses a paginação correspon-
dente ao texto citado (p. 1).
titativo e homogêneo. A crise eclode quando é necessário perguntar: como é
" 15
O Todo-Aberto Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto
Para nós, essa dualidade emerge em filosofias causadas por uma ques- história da filosofia garantiu a explicação causal da origem das imagens, fez
6
tão oriunda do mecanicismo físico estabelecido por Newton no auge da re- com que estas fossem concebidas como acidentes que emanavam do mundo •
volução científica. Por isso, para entendermos, com contundência, a posição Todavia, com o advento da física moderna no séc. XVII, o mundo subs-
crítica de Bergson no livro supracitado, devemos estabelecer uma compreen- tancializado dos antigos foi desconstruído, e surgiu - em gradação sempre
são genealógica do equívoco que se consolidou ao longo dos dois séculos que crescente - uma teoria determinística da matéria construída com princípios
sucederam o mecanicismo científico da era moderna. Como procederemos mecanicistas, onde nela prevaleceram noções quantitativas, homogêneas,
nesta compreensão? Trabalhando a gênese do procedimento pela explicita- que poderiam ser apresentadas através de funções descritas com caracte-
ção da teoria da bifurcação da natureza. res matemáticos e geométricos. Além disso, a revolução científica elaborou
teorias da propagação da matéria que fez com que o conceito desta sofresse
Da bifurcação da natureza profundas modificações. Descobriu-se, pela introdução dos conceitos de luz
Em filosofia o conceito de imagem se estende a tudo o que apare- e som, que a matéria se transmitia 7, isto é, que o mundo material era trans-
ce, sendo sinônimo da noção de fenômeno. Assim, f làmos de imagens missível aos nossos sentidos por intermédio de ondas sonoras e luminosas.
acústicas, táteis, olfativas, sonoras, orgânicas e inorgânicas, quando tra- Com isso, a física clássica reduziu o movimento a quantidades homogêneas
tamos do regime das aparições através da experiência sensível. Entre- que se propagavam e propôs uma abordagem quantitativa do real. Ora, ao ter
tanto, é preciso desde já acrescentar que na compreensão comum da feito tal procedimento, a física de imediato produziu nas filosofias a seguinte
experiência sensorial, tudo o que aparece é referido, por um lado, a um questão: se no mundo só existiam movimentos e quantidades, de onde pro-
real pré-imagético, sendo, por outro lado, aparição para um sujeito do- cederia a percepção da qüalidade?
tado de consciência. Ou seja, as imagens são assimiladas a aparições de Segundo Whitehead, o resultado destas teorias da propagação da matéria,
uma realidade exterior para um determinado sujeito, estando situadas
entre os seres vivos e o mundo. Não tendo uma realidade em si, ou elas "aniquilou por completo a simplicidade da teoria da percepção
se explicam como acidentes de um substrato material; ou se justificam baseada no binômio substância e atributo. Aquilo que
como representações psíquicas de um sujeito. enxergamos depende da luz que penetra o olho. Ademais sequer
Porém, para a compreensão filosófica que partia dessa dupla refe- percebemos o que penetra o olho. As coisas transmitidas são
rência surgiu um problema quanto à origem das imagens, quando, no séc. ondas ou - como julgava Newton - partículas diminutas, as
XVII, já não foi mais possível sustentar que elas existiam como acidentes coisas percebidas são cores" 8•
das substâncias materiais. Ou seja, se as imagens não emanavam mais
Assim, a sistematização do mecanicismo operado pelas ciências físicas
das substâncias materiais onde elas de fato surgiriam? Seriam constru-
produziu um efeito imediato nas filosofias modernas. Dada a impossibilidade
ções psíquicas da consciência do ser humano? Ou efeitos do encontro
de continuar atribuindo as imagens qualitativas e heterogêneas ao mundo
dos movimentos homogêneos da matéria com os nossos sentidos?
material, não restou, aos teóricos filósofos dessa época, outra saída senão
Whitehead, no seu livro O Conceito de Natureza 5, analisa historicamen-
recorrer ao sujeito para explicar a sua gênese. Segundo Whitehead, Locke foi
te esse problema. Para ele, a objetividade invocada pelos antigos vê-se nega-
da quando não é mais possível pensá-las como ancoradas em um substrato
material. A ideia aristotélica de substância, que durante vários séculos da 6 Ibidem.
7 Idem, p. 34.
5 A. N. Whitehead, O Conceito de Natureza, caps. I e li. 8 Ibidem.
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16
O Todo-Aberto
Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto
existência de tais coisas permanece incondicionada, ultrapassando os limites Por outro lado, uma teoria mecanicista também se desenvolveu: o ma-
do conhecimento científico. Há um real incondicionado, não conhecido pelo terialismo realista. Nela, os fenômenos que emergiam no seio da consciência
entendimento, que faz com que o antigo realismo metafísico, pelo menos no recebiam uma explicação causal no âmbito dos movimentos homogêneos e
terreno especulativo, seja posto em questão por Kant14. Doravante, a diferen- quantitativos da matéria. No mecanicismo a compreensão dos fenômenos re-
ça entre conhecer e pensar duplica a diferença entre fenômeno e coisa em si; cebeu uma explicação diferente daquela que foi ofertada pelo idealismo:
sendo o fenômeno algo que só existe enquanto representação para um sujeito.
Enfim, aquilo que podemos conhecer restringe-se aos fenômenos de- "não é a consciência que condiciona as imagens percebidas, estas
terminados pelo entendimento nos limites fixados pela ciência, e estes fe- se produzem como efeitos do encontro do sujeito que percebe
nômenos são condicionados por representações a priori situadas no sujeito. com os movimentos materiais, estando estes na condição de
Quanto às coisas em si, Kant crê que seja possível determiná-las na esfera de produzir realidades aparentes; sendo, na verdade, de uma outra
uma metafísica dos costumes, situada no domínio de ·uma filosofia prática natureza: são movimentos quantitativos, extensos e numéricos."
construída pela ideia de um mundo puramente racional.
Agora, com a dualidade instaurada pelas duas teorias temos na cons-
Novamente, nos termos propostos pela consecução das duas críticas,
ciência imagens qualitativas e não extensas e, na matéria, movimentos quan-
Kant introduziu - de forma sutil - a distinção entre dois reinos: o reino dos
titativos e homogêneos. O problema é saber como passar de uma ordem à
fenômenos e o reino das coisas em si. Ou seja, o domínio da necessidade ver-
outra, ou, como interroga Deleuze:
sus o domínio da liberdade. Ora, não encontraríamos em síntese o mesmo
problema da bifurcação da natureza? A distinção entre natureza influente e
"como explicar que movimentos de repente produzam uma
efluente? A constituição de um sujeito constituinte que impõe à experiência
imagem, como na percepção, ou que a imagem produza um
as suas representações a priori e concebe um destino racional para o homem
movimento como na ação voluntária? ... E como impedir que
dentro de um horizonte metafísico determinado por uma razão prática?
o movimento já não seja imagem, pelo menos virtual, e que a
Percebemos, com relativa clareza, que o advento da ciência colocou
imagem já não seja movimento pelo menos possível?" 15 .
para a filosofia a tarefa de explicitar os limites do conhecimento. Assim, na
tentativa crescente de validar uma tarefa para a filosofia que se coadunasse E assim explicamos a gênese da dualidade e o problema que deflagra
com as operações da ciência, vimos o universo filosófico progredir na afirma- o impasse que Bergson quer ultrapassar. Entretanto, a ultrapassagem de
ção da existência de uma duplicação da natureza cujo paroxismo deflagrou a tal impasse condiciona toda a teoria inicial de Matéria e Memória, que cul-
crise que pretendemos narrar. minará na tese central que consiste em pensar a articulação entre o corpo
Com isso, as teorias da bifurcação da natureza fizeram com que o idea- e o espírito.
lismo moderno ganhasse forma. O mundo viu-se, para o idealista, reduzido Assim, Bergson se opõe, a um só tempo, tanto ao realismo das substân-
à representação consciente que temos dele, estando a matéria relegada ao cias individuadas dos antigos, quanto ao realismo mecanicista e ao idealismo
plano do inefável, da escuridão que necessitava de uma luz que emanasse da moderno. Por um lado, ele confere uma positividade ontológica à imagem -
consciência . que o idealista creditava à consciência - e nega, por outro lado, a crença em
substratos ou movimentos homogêneos materiais como pontos de ancoragem
14 Sobre a distinção entre fenômeno e coisa em si ver I. Kant, op. cit., Estética trans-
cendental; e sobre o caráter problemático da existência da coisa em si ver J. Lacroix,
15 Gilles Deleuze, Cinema - A imagem-movimento, p. 76.
Kant e o kantismo. Cap. 2.
21
20
O Todo-Aberto Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto
causais para as imagens - sustentadas tanto pelo realismo antigo, quanto pelo Em suma, Bergson critica, por um lado, as filosofias pautadas em re-
que concebem as imagens de-
realismo mecanicista. Afirma categoricamente que os movimentos são hete- presentações inatas ou a priori da realidade
certas concepções
rogêneos e que as imagens são reais. Propõe assim uma nova concepção da finidas como produtos da consciência, e critica também
imagem e do movimento, dizendo que a ideia de movimentos homogêneos re- mecanicistas derivadas de procedimentos que tornam espaciais o movimen-
17, concebendo as representações como meros efeitos de movi-
sulta de construções falaciosas elaboradas pela inteligência, o que favorece a to e O tempo
distinção entre representação qualitativa e mundo físico. Além disso, Bergson mentos fisiológicos.
propõe também um abandono da concepção de coisa em si que fundava a an- Na verdade, o que Bergson elucida, com contundência, é que a emer-
tiga metafísica, propondo, em contrapartida, uma nova concepção da matéria. gência desses procedimentos criticados pode ser - em sua gênese - creditada
Assim, ele recusa, tal como Whitehead, a dualidade originada nas teorias da a uma inteligência que constrói - nas duas esferas - teorias derivadas dos
propagação material entre imagem e movimento, construindo um conceito interesses práticos e funcionais; relatando como ela favorece a cisão especu-
adequado à realidade da matéria: a imagem-movimentó - lativa que acabamos de analisar. Mostremos como isso ocorre colocando, a
Para Bergson, entre a percepção imagética da matéria pelo ser huma- princípio, a maneira como a inteligência compreende o movimento.
no e a matéria nela mesma, a diferença existente é de grau e não de nature- Para Bergson, quando a inteligência reflete acerca do movimento, pen-
za: neste aspecto, é preciso reintegrar a imagem percebida ao plano material sa-o sempre em termos abstratos, como "uma medida comum, um denomi-
para enfim alcançar o complexo conceito de imagem dotada de movimento. nador comum que permite comparar entre si todos os movimentos reais" 18•
Mas na verdade, o que a inteligência compreende não é propriamente o mo-
O em si da imagem vimento, mas, antes, a trajetória deixada pelo móvel no momento em que este
Ao nos dizer, logo no prefácio de Matéria e Memória, ser a "matéria um encerra o seu percurso.
conjunto de imagens-móveis" 16, Bergson anuncia a sua primeira novidade: Para Bergson, entre o movimento e a trajetória deixada pelo móvel
propõe-nos uma identidade entre matéria e imagem, superando a dualidade existe uma diferença de natureza que a inteligência negligencia. Primeira-
existente nas teorias da bifurcação entre ser e perceber. É que para ele as mente, porque o movimento como ato de percorrer é sempre presente, ao
imagens são reais, a consciência não detém o poder de engendrar as imagens passo que a trajetória, enquanto espaço percorrido, é uma representação
percebidas da matéria. Nesse caso, é clara a ultrapassagem do idealismo que abstrata; em segundo lugar, porque o movimento é contínuo, e quando se
o início do livro desenvolve: as imagens não são engendradas pela consciên- divide o faz sempre mudando de natureza; enquanto que a trajetória é divisí-
cia, elas advêm do mundo. vel, e, até mesmo, infinitamente divisível; por último o movimento é sempre
Por outro lado, Bergson concebe a matéria em movimento. Elege, como heterogêneo, implicando em uma duração real, enquanto que as trajetórias
ponto de partida, uma matéria fluente onde o movimento se apresenta como podem ser remetidas para um único espaço homogêneo 19, resultando em
dado imediato. Mas censura, desde então, os materialistas que concebiam
o movimento em termos quantitativos e homogêneos; já que nessa teoria 17 E aqui avaliamos as operações que engendram a bifurcação da natureza, mostrando
existia uma espacialização do movimento pela redução deste a posições des- como elas se encontram condicionadas em Bergson pelas operações da inteligência.
A ideia de uma inteligência funcional que trata a realidade física com procedimentos
contínuas no espaço, inseparáveis de uma sucessão constituída por instantes
matemáticos e espaciais, tratando o conhecimento desta realidade com representa-
descontínuos. ções supostamente a priori, será amplamente analisada na segunda parte do nosso
trabalho.
18 Idem, p. 338 (p. 167).
19 Cf. Idem, cap. 4, e os comentários de Gilles Deleuze, op. cit., cap. 1.
16 H. Bergson, op. cit., p. 161 (p.l).
22 23
O Todo-Aberto Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto
uma concepção espacial do tempo. Ao analisar o movimento a partir da tra- engendradas pelos interesses práticos, encontrando as
passar tais operações . .
jetória, a inteligência crê que podemos compreender a mobilidade por inter- do mundo material.
condições reais da heterogeneidade
médio de pontos imóveis. Sem hesitar, Bergson propõe um retorno ao campo perceptivo como
Se na história do pensamento o movimento sempre foi posto em re- condição da apreensão do movimento como dado imediato. Só a percepção
lação com o tempo, e este foi concebido como uma representação indireta imediata do movimento poderá nos dissuadir da certeza de ser ele algo que
derivada dele; na medida em que o movimento passa a ser analisado como se divide infinitamente 20• Todavia, é igualmente preciso que a percepção se
espaço percorrido, dá-se inevitavelmente uma homogeneização do tempo. liberte dos interesses práticos aos quais se encontra submetida. Em outros
Ou seja, quando o movimento é confundido com o espaço percorrido não é termos, é preciso que a atenção se desloque do âmbito dos nossos interesses
mais possível evitar uma compreensão do tempo a partir de instantes des- práticos para investir no campo sensorial 21. Só assim o movimento tende a
contínuos, onde ele passa a receber um tratamento numérico. aparecer tal como é: indivisível, contínuo e heterogêneo.
Segundo Bergson, de nada adianta recompor o mpvimento com pontos Ora, na percepção imediata não apenas o movimento é indivisível, como
no espaço e instantes no tempo, pois ao procedermos d ;a forma deixamos também o tempo que ele implica não pode também ser concebido por instantes
escapar do movimento o essencial, a saber: a sua mobilidade. Por outro lado, geométricos. O que significa dizer que os movimentos reais supõem um tempo
deixamos escapar, igualmente, do tempo a sua continuidade heterogênea. heterogêneo, completamente distinto do tempo instantâneo. Bergson denuncia o
Ora, com tal procedimento de redução do mundo físico a movimen- instante matemático como uma ficção, do mesmo modo que havia denunciado a
tos homogêneos e quantitativos, não houve outro recurso para a com- ilusão da inteligência quanto à confusão engendrada entre movimento e espaço
preensão do mundo imagético apreendido pela percepção, senão o de percorrido. Para ele, os movimentos reais implicam em um tempo tão contínuo
buscar no interior da consciência as representações condicionantes uti- e heterogêneo quanto ele. E este, na filosofia bergsoniana, chamar-se-á Duração.
lizadas para o conhecimento da realidade. Ou seja, se a inteligência apli- Estamos agora em condições de compreender a tese desenvolvida no
cada ao conhecimento da matéria deu ao mecanicista a convicção de que primeiro capítulo de Matéria e Memória, ultrapassando, assim, o impasse por
o mundo material poderia ser analisado por proposições matemáticas nós analisado.
puramente quantitativas, isto fez com que a filosofia idealista se mobili- Para Bergson, matéria, imagem e movimento constituem uma complexa
zasse na tentativa de elucidar a gênese das imagens - qualitativas e não realidade cujos termos devem ser rigorosamente explicados. Como podemos
extensas - no seio da consciência. Dessa forma, antiga ou moderna, con- explicitar esta tripla identidade? Com efeito, estamos diante de um mundo
vicções surgidas no seio da inteligência se implantaram no pensamento onde a matéria é concebida como um conjunto de imagens móveis; mundo físi-
filosófico, dando margem a uma bifurcação da natureza incrementada
por um certo procedimento científico. 20 Esta percepção imediata se encontra a serviço de uma intuição filosófica que condi-
A inteligência condicionada pelos interesses práticos dos seres humanos, cionará todo o procedimento de elucidação do tempo uno e virtual. Aqui a intuição
possibilitou a cisão do mundo em dois: alocou as representações imagéticas será o meio de evitar as abstrações da realidade, conduzindo a teorização da dura-
na consciência, construindo uma imagem do pensamento com ideias inatas ou ção e da totalidade aberta. Na parte seguinte trataremos da intuição como método,
retomando na parte final a gênese da intuição na esfera prática. Para uma aborda-
representações a priori; e atribuiu o movimento homogêneo à matéria, subor- gem específica sobre a percepção da mudança ver o artigo 'A percepção da mudan-
dinando-o a operações matemáticas exercidas por um mecanicismo científico. ça" no livro O pensamento e o movente. São Paulo: Martins Fontes, pp. 149-182.
21 Sobre a inserção da vontade no campo sensorial ver H. Bergson, La Pensée et Le
Dito de outra forma, foram as operações exercidas pela inteligência
mouvant, in: Oeuvres, especialmente a conferência La perception Du changemant.
que ocasionaram as teorias - que no item anterior - engendraram a falácia Trabalharemos esta questão mais adiante, quando estivermos analisando a intuição
das bifurcações da natureza. O problema agora é saber como é possível ultra- bergsoniana.
24 25
Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto
O Todo-Aberto
ao ter afirma-
coem que a dimensão real da matéria é uma multiplicidade de imagens-moVi- Há, contudo, uma última equivalência a ser estabelecida:
possui uma positividade fenomênica, sendo o em si
mento; onde as imagens - relacionadas cada uma a si mesmas - influem umas do que a matéria fluente
luminosidade fora da consciência humana, Berg-
sobre as outras, das maneiras as mais variadas. Mundo que é pura mobilidade desta testemunho de uma
o lema da metafísica clássica que tendia a colocar
onde as imagens não se distinguem do movimento que executam ou que re son propõe que invertamos
a esta o caráter de luz natural -,
cebem; não havendo nenhum móvel por debaixo do que se movimenta, como a luz na consciência humana - creditando
pura luz se difundindo.
tampouco matéria oculta para além do que aparece. Há tão somente o que apa- para pensar, enfim, o plano da matéria movente como
como apa-
rece, ou seja, um conjunto de imagens que já é imediatamente movimento. Assim, segundo Deleuze, do conjunto das imagens-móveis, vistas
o fun-
Trata-se de um mundo onde as imagens "agem e reagem umas sobre rições, é preciso afirmar, que "a identidade da imagem e do moviment
como
as outras em todas as suas partes elementares" 22; mundo descentrado por da-se na identidade da matéria e da luz. A imagem é movimento assim
a matéria é luz ... No plano das imagens móveis ainda não existem corpos
25"
excelência, onde as influências recíprocas entre as imagens se fazem notar
na variação do universo; mundo - que uma vez repo.r,t,fl-do ao dinamismo da com as delimitações das linhas rígidas, com contornos precisados de acordo
própria matéria - relativiza a distinção entre interioridade e exterioridade , com as percepções humanas. Há, tão somente, linhas ou figuras de luz. "São
já que as imagens variam nelas mesmas, estando, igualmente, em relação imagens em si. Se elas não aparecem para alguém, isto é, para um olho, é por-
26
com todas as outras. que a luz ainda não se refletiu nem rebateu" •
Segundo Bergson, "neste mundo toda imagem é interior a certas ima-
gens e exterior a outras, mas do conjunto das imagens não é possível dizer A consciência de direito e o Todo-Aberto
Torna-se, enfim, possível perceber a inversão que Bergson opera na fi-
que ele nos seja interior ou que nos seja exterior" 23, pois interioridade e ex-
losofia em relação à tradição idealista: não é a consciência humana a respon-
terioridade não são outra coisa senão relações entre imagens, relações entre
sável pelo condicionamento das imagens. O mundo é imagem em si, "a repre-
movimentos imanentes ao complexo de imagens, "vibrações de toda espécie,
sentação está efetivamente aí, mas sempre virtual, neutralizada" 27• E quando
intensidades inerentes ao conjunto dos blocos de movimento que exprimem
uma mudança na duração" 24. Bergson for falar nesse contexto de consciência humana - como veremos mais
adiante -, reservará, a esta não só o papel de refletir seletivamente as ima-
Quando a imagem é postulada na sua identidade com a matéria - onde
gens oriundas do mundo (aspecto prático da subjetividade), como também de
os átomos em movimento são igualmente imagens -, deixa-se patente a pos-
analisar as contrações oriundas das vibrações da matéria de onde resultam
sibilidade dessa imagem ser sem ser percebida pelo olhar humano. Todas as
as qualidades percebidas (aspecto primário da subjetividade contração). Para
imagens são, assim, solidárias entre si, continuando umas nas outras segundo
Bergson, a consciência como superfície refletora - Écran - é responsável pelo
relações variáveis. Com tal tese Bergson atinge a realidade em seu estado fluen-
enquadramento das imagens. Nela, as qualidades das imagens percebidas são
te. O mundo passa a ser concebido como movimento autoimanente propagan-
do-se ao infinito e a variação pode, enfim, ser postulada no todo do universo. contrações dos movimentos da matéria, e não representações engendradas
pela consciência. Em outros termos: "a matéria é luminosa, a imagem é luz em
si, cabendo à consciência o papel de revelá-las por reflexão" 28•
22 H. Bergson, Matiere et Mémoire, in: Oeuvres, p. 169 (p. 9).
23 Idem, p. 176 (p. 16).
25 Gilles Deleuze op. cit., p. 81.
24 So re ideia de vibrações que constituem a matéria como um conjunto de imagens
-moveis podemos conferir o cap. 4 de Matéria e Memória, pp. 332-340 (220-230); 26 Ibidem.
sobre a duração do universo e a latitude da criação que nele pode existir Cf. Evolu- 27 H. Bergson, op. cit., p. 186 (p. 24).
ção Criadora p. 782 (p. 339). Aqui o leitor também poderá consultar os comentários 28 Na tradição idealista dava-se o contrário: era a consciência que detinha a luz, isto é,
de Gilles Deleuze sobre o assunto nos caps 1 e 4 de A imagem-movimento Cinema 1.
27
26
O Todo-Aberto Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto
Mas se as imagens estão no mundo, e a consciência humana encarre- preencherão a consciência de fato, conferindo a esta uma es-
e lembranças
e duração se implicam na reciprocida-
ga-se tão somente de contraí-las, refleti-las e enquadrá-las, não será legítimo essura durável. Ora, se consciência
não concluir - sabendo que
pensar que - graças à positividade fenomênica da matéria - esta já não supõe e dos dados imediatos dos seres vivos, como
- pela existência de uma
- ao menos de direito - uma consciência? Como podemos elaborar tal supo- os movimentos materiais participam da duração
esta inflexão, há,
sição? Através de duas razões extraídas da filosofia bergsoniana. consciência coextensiva ao todo material? De acordo com
interações
A primeira diz respeito ao próprio estatuto da consciência: como as ao menos de direito, uma consciência no todo: consciência das
imagens estão no mundo e nós tomamos consciência delas a partir da apre- existentes entre os movimentos heterogêneos da matéria, e que exprimem
ensão da matéria, há um aspecto onde consciência e imagem são coinciden- uma mudança qualitativa no todo ou na duração.
tes. Ou seja, a nossa consciência, com a opacidade indispensável para que a Mas aqui as distinções devem ser retidas rigorosamente: a diferença
imagem refletida se forme como um quadro, é condição de fato para a seleção entre o que é de direito e o que é de fato remete à distinção entre virtual e
das representações. Entretanto, sendo as imagens _reais, há de direito (quid atual. A consciência não existe de fato no Todo, mas sim de direito. E se pen-
juris) uma consciência exposta virtualmente no plan8 ;ateria!. É que as ima- sarmos que o Todo progride à maneira de uma consciência, é preciso a ele
gens móveis se interagem. Ações e reações são reflexões objetivas e totais; atribuirmos o mesmo estatuto que a consciência recebe quando é coestendida
sendo a consciência nesse estado difusa, virtual, confundindo-se com as ima- ao plano material: o todo é, como a consciência, uma virtualidade.
gens luminosas que se propagam ao infinito 29• Cabe observar também que a equação consciência, todo e virtual já é
A segunda razão resulta da abordagem temporal da consciência. Nesse suficiente para nos dissuadir da ideia de identificar o Todo ao conjunto da
caso a consciência analisa estímulos e escolhe dentre movimentos possíveis matéria. Se o todo, tal como a consciência, é virtual, a noção de conjunto ma-
o mais eficaz, deliberando acerca da ação que o ser humano deve adotar, ao terial torna-se pobre para a sua compreensão. Em Bergson o Todo não pode
utilizar as experiências passadas postas como condições das ações futuras. ser dado, não se confundindo com um conjunto fechado. Assim, o que o autor
Ora, a análise dos estímulos recebidos pelo ser humano e as escolhas que nos fornece são condições para pensarmos na impossibilidade de um universo
precedem as decisões motrizes, permitem-nos conceber a consciência na concebido como conjunto de elementos dados. Se é fato que no universo po-
duração imanente ao intervalo de movimento existente entre as imagens demos conceber conjuntos, e, até mesmo, conjuntos relativamente fechados;
percebidas pelos seres humanos e as ações que eles devem promover para é fato também que, com relação a cada conjunto, podemos supor um conjunto
reagirem às situações que o mundo impõe. Nesse intervalo, afetos, emoções maior com o qual o primeiro se encontre em interação. Neste caso, existe algo
colocando os conjuntos em interação, similar a um fio tênue que os abrem para
um todo nunca dado. Em suma, o Todo não pode ser dado porque é Duração;
era ela que, com as suas formas a priori, condicionava as representações perceptivas e esta é uma totalidade em processo sempre aberta, como condição da emer-
do mundo.
gência do novo que, com certeza, caracteriza o tempo no seu aspecto essencial.
29 Bergson chega mesmo a dizer que se apreciarmos a percepção consciente como
análoga a uma visão fotográfica não devemos evitar a conclusão que se impõe na A esse respeito Prigogine e Stengers dizem o essencial: "Bergson
analogia: a de que a fotografia, se "fotografia existe", já se encontra tirada no "pró- evoca a totalidade, porém se opõe a toda concepção de totalidade pre-
prio interior das coisas". Só que aí, na ausência da placa indispensável para que a
determinada que, como o mecanicismo, desembocaria na negação da
foto se revele, devemos pensá-Ia como translúcida, isto é, imagem luminosa que se
propaga sem nenhuma perda. Esta analogia é significativa se percebermos que nela criatividade" 30• Pois a totalidade para ele, dizem os autores, é uma "to-
se estabelece a inversão do idealismo: se as imagens, tais como fotografias, já estão
tiradas e expostas no mundo, já supõem, ao menos de direito uma consciência difu- 30 I. Progogine e I. Stengers, Naturaleza s Creatividad, in: Jllya Prigogine, Tan solo una
sa e virtual, à espera de uma consciência de fato capaz de enquadrá-las e revelá-Ias.
1/usión? P. 74.
H. Bergson, Matéria e Memória, in: Oeuvres, p. 188 (p. 26).
29
28
O Todo-Aberto Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto
talidade em processo, ... em evolução, sem objetivo predeterminado" 31• • exemplos fundamentados na tese bergsoniana:
Ora, é da identidade do Todo com a Duração que tiramos a concepção de respeito, e1e nos fornece dois . .
· ·ro lugar'., o movimento dos seres ammados devem ser imputados a
um Todo-Aberto, consolidada conceitualmente no livro A Evolução em pnme1 . . .. . .
seus modos de ex1stenc1a. Os amma1s se movem
Criadora. E é isto que leva Bergson a pensar o universo na sua totalida- necess1'dades imanentes aos
que "o movimento su-
para comer, migrar etc" Podemos até mesmo dizer
34
consciência, fazendo surgir a cada passo algo de novo, sendo a mutabi- lugares abstratamente . Nao vamos
não devemos considerar as partes ou os
lidade a expressão da sua abertura. Como ele mesmo o diz: "a Duração os
à toa de um lugar a outro. Movemo-nos, isto sim, porque experimentam
do universo deve constituir uma unidade com a latitude de criação que
fome, ou somos premidos por algum interesse prático. Quando alcançamos
nele pode haver" 32 •
a meta que induz o movimento - como, por exemplo, comemos o alimento
Mas como ocorre a progressão da noção de totalidade? Na verdade, a
encontrado na suposta fonte - não é só o nosso estado que resulta alterado.
identidade do todo à duração só se torna possível qw_r:ido Bergson fornece a
Se por um lado já não estamos com fome, por outro, o alimento já não mais
esta última um estatuto real, ultrapassando o psicologismo dos Ensaios sobre
existe. Assim, há uma alteração no todo que compreende o animal, o alimen-
os dados imediatos da consciência. E eis aqui a segunda novidade de Matéria e
to, a fome saciada, a ingestão do alimento e toda uma mudança qualitativa
Memória: a admissão de um movimento imanente à matéria eleva a Duração compreendida entre os dois.
a uma instância real, desvinculando-a da condição de mera experiência psí- Além disso, devemos pensar a mesma coisa para os corpos: "a queda
quica. Neste aspecto, o primeiro encaminhamento da progressão interrogada de um corpo supõe um outro que o atrai e exprime uma mudança no todo que
se encontra nas teses estabelecidas nesse livro, e depois retomadas nas pági- os compreende a ambos" 36 • Quando descemos com o pensamento a um nível
nas iniciais de A Evolução Criadora, acerca da natureza dos movimentos re- molecular, isto é, quando pensamos em "átomos puros, seus movimentos tes-
ais. Voltemos então à análise do movimento, para compreendermos rigorosa- temunham uma ação recíproca de todas as partes da matéria, que exprimem
mente a noção de totalidade aberta admitida como coextensiva ao universo. necessariamente modificações, mudanças de energia no todo" 37
Como vimos, Bergson concebe o movimento como um dado heterogê- Com tais exemplos, podemos, enfim, ressaltar que o movimento he-
neo, afirmando que ele expressa uma mudança na duração. Ao pensá-lo desta terogêneo exprime uma mudança qualitativa no Todo ou na Duração. Este
maneira, ele propõe que o apreendamos como algo mais do que um mero estado primeiro de matéria fluente é um conjunto de imagens-móveis,
deslocamento de partes no espaço. É fato que os movimentos extensivos se onde das interações destas uma mudança qualitativa irá se expressar na
fazem por deslocamentos de partes, e não se trata de negar este aspecto de- duração. O todo é aqui pura expressão das interações, variação contínua
les. Porém, o que se pretende afirmar é que algo se passa em tais desloca- que a tudo reúne em um ponto de unidade sempre virtual, para em segui-
mentos, remetendo a uma mudança mais profunda de natureza temporal. A da restituir à matéria disposições diversas que testemunham uma mudan-
cada deslocamento é necessário fazer corresponder uma alteração. ça qualitativa no universo.
Nesse sentido, Deleuze tem razão quando diz que o movimento "ex- O plano material - a matéria do ser com seus movimentos extensivos
prime algo mais profundo que é a mudança na Duração ou no Todo"33, obser- propagando-se ao infinito - deve ser compreendido dinamicamente. Quando
vando, logo em seguida, que o Todo deve ser concebido como ''.Aberto". A este
34 Idem,p.19.
31 Ibidem. 35 Idem, p.17.
32 H. Bergson, l 'Évolution créatrice, in: Oeuvres, p. 782 (p. 293). 36 Idem, p.17.
33 Gilles Deleuze, op. cit., p. 17. 37 Idem, p.17.
30 31
O Todo-Aberto
II
cipação? Tais respostas serão dadas no final desta parte quando alcançarmos
condições mais precisas para a elucidação do nosso propósito.
Agora, daremos prioridade às seguintes questões: se uma consciência
de direito coexiste com o todo, podemos saber como o humano pode ter par-
ticipação nesse todo, isto é, nessa abertura enquanto ser consciente? Se é fato Subjetividade e Duração
que o plano descrito pela construção bergsoniana faz valer a tese de uma to-
talidade em constante mutação, pode o homem ser fompreendido igualmen-
A
te como um todo? As respostas a tais questões fazem com que a análise do
Todo-Aberto se processe na consideração dinâmica dos seres vivos e na con- consciência de direito, coextensiva ao mundo material, é a respos-
secução das condições especiais de um ser vivo específico, a saber: o homem. ta postulada por Bergson na sua ultrapassagem do idealismo. Ao
Por isso, devemos conciliar esta apresentação inicial com uma outra, fazê-la coincidir com a imagem luminosa, com a propagação da luz
onde nela Bergson assimila o ser vivo a uma totalidade. Na consideração do no movimento extensivo da matéria - estando assim o seu estatuto
vivo como duração, a abertura ganhará uma inflexão nova, conduzindo a análise definido como algo difuso -, Bergson a concebe como uma pura virtualidade.
para o âmbito de uma compreensão temporal do ser vivo. Passemos então a ela. Agora, devemos analisar como uma consciência de fato surge atual-
mente com a subjetividade do vivo e, surgindo, quais são os seus aspectos
fundamentais. Haverá com ela algum tipo de fechamento em relação ao plano
da matéria? E não seria tal fechamento o resultado dos interesses práticos e
adaptativos inerentes à matéria viva? Além disso, essa seria a única forma
de abordagem da consciência, ou não haveria um aspecto mais profundo e
imediato dela a ser induzido na nossa análise?
Tais perguntas nos permitem colocar imediatamente em evidência
dois aspectos da subjetividade: um funcional, adaptativo, "interesseiro" e
fechado - que é condicionado organicamente pelas ações utilitárias que o
ser animado exerce no mundo para sobreviver; e o outro temporal, contí-
nuo e heterogêneo - constituinte do lado interno da experiência subjetiva.
O primeiro aspecto será abordado de forma sumária nesta parte do nosso
trabalho, uma vez que a
nossa meta aqui é explicitar a dimensão temporal da
subjetivid ade para - .
a consecuçao de uma ontologia.
Já no segundo aspecto - ali onde a subjetividade será avaliada como
- da apreensão
cond·içao
imediata do Todo-Aberto - a consciência será infor-
. . - fundamental do tempo, estando o humano possibili-
mada por um a mtmçao
33
32
a 1'11
O Todo-Aberto Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto
tra situado entre os movimentos recebidos do mundo externo e os movimen· das faces sensoriais, impõe à consciência atada aos interesses práticos uma ati-
tos executados pela face motora. Para Bergson - que toma como exemplo o seu vidade seletiva do mundo com o qual interage, fazendo com que esta retenha
próprio corpo - "as imagens exteriores influem sobre o meu corpo e recebem tão somente o que for do seu interesse, deixando-se atravessar por tudo aquilo
38
deste ações que introduzem nelas alguma modificação" • Bergson acrescenta: que não lhe for interessante. As faces receptivas isolam determinada s imagens
dentre "todas as que participam e co-agem no universo" 41• E essa seleção vai
"percebo bem de que maneira as imagens exteriores influem definir - como veremos nas partes posteriores - as representaçõ es imagéticas.
sobre a imagem que chamo meu corpo: elas lhes transmitem Enfim - consequênci a inevitável das característic as precedentes - , a
movimento. E vejo também de que maneira este corpo influi matéria viva delibera, dentre ações possíveis a serem àdotadas qual a mais
sobre as imagens exteriores; ele lhes restitui movimento" 39. eficaz para responder à situação dada. E nessa deliberação tor a-se funda-
mental reconhecer o objeto sobre o qual nós iremos agir; e isso apela para a
Contudo, uma diferença se faz patente: o corpo humano "parece esco· evocação do passado através de u m esforço intelectual da consciência.
lher, em certa medida, a maneira de devolver o que recebe" º; enquanto quf
4
Ora, com tais característic as já podemos adiantar que a representaçã o
as imagens não vivas agem e reagem automaticam ente. Assim, toda escolhi da realidade pe Io ser h umano nao .
- consiste em u m trabalho de adição psí-
- que supõe uma hesitação - se encontra implicada e m u m tempo que no! .
quica como quer·1am os d e1ensores .
• da b1furcaçao - da natureza. Para Bergson,
conduz à conclusão de que, na "imagem viva", ação e reação não mais se dâ' .
a seleção oc asiona . , .
d a pelos mteresses prat1cos consiste exatamente em uma
imediatamen te, pois se encontram separadas pela mediação de u m intervalo espécie de subt
- . perce b emos para ag1r, e necessitamo s enquadrar e re-
raçao.
conhecer o que . .
, . percebemos com o mtmto de alcançarmos pleno êxito no do-
38 H. Bergson, Matiere e Mémoire, in Oeuvres, p. 171 (p.11). minio da realid a d e. N este aspecto, a restrição perceptiva pode ser atribuída
39 Ibidem.
41 Gilles Deieuze, op. cit., p. 83.
40 Ibidem.
34 35
O Todo-Aberto Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto
à totalidade da matéria viva, estando o privilégio do humano situado e m urna então pergunta: "quais são os momentos e m que nossa
de e duração. Bergson
outra esfera que nós iremos brevemente analisar. De acordo com Bergson, maior vivacidade?" 44, Não há, por acaso, nesses momentos
consciência atinge
uma crise interior que nos faz hesitar entre duas ou várias opções, "quando
"há para as imagens uma simples diferença de grau, e não
sentimos que o nosso futuro será o que dele tivermos feito?" •
45
Além disso, levando em consideração que a matéria é u m conjunto de É claro que tais constatações só viabilizam um acesso à indetermina-
imagens luminosas, diremos que as imagens vivas fornecem as placas sensí- ção se extrairmos da nossa análise u m aspecto intuitivo que nos conduza à
veis opacas que - servindo de anteparo às luzes que se propagam ...::permitem apreensão de u m todo aberto. E isto só se consolida na ultrapassagem dos
que as imagens se revelem. Assim, sua função não é iluminar o mundo, como aspectos práticos e funcionais do ser humano.
na tradição idealista, mas antes obscurecer "certos lados dele, diminuí-lo da E aqui surge a questão que nos introduz nos dados imediatos da sub-
maior parte de si mesmo, de modo que o resíduo, em vez de permanecer in- jetividade: como a imagem percebida se engendra no intervalo de indetermi-
serido no ambiente ... se destaque como u m quadro" 43 • nação? É que a subtração pela via dos interesses é, igualmente, uma reflexão
Enfim, a consciência de fato é u m instrumento de análise, uma super- da imagem material, condicionada pela ação possível do nosso corpo sobre
fície refletora e u m instrumento de deliberação de escolhas que precedem ela. Nesses termos, a imagem percebida é a imagem real enquadrada pelos
as ações deflagradas pelos seres humanos. Desse modo, concluímos que o interesses práticos do ser vivo. Por outro lado, há na percepção u m fenôme-
aspecto prático da consciência se elucida pelas operações exercidas com o no de contração elementar das vibrações do ritmo da matéria pela
matéria
intuito de tirar proveito do mundo material; estando a consciência voltada ou imagem viva, o que constitui a qualidade. Neste aspecto,
existe a possi-
para atender aos interesses adaptativos dos seres vivos e m geral. bilidade de que as imagens-móveis sejam apreendidas
pelas imagens vivas
Por outro lado, a existência do pequeno intervalo de movimento pode como vibrações de toda espécie, movimentos vibratórios
que evidenciam a
no homem ser a base da intuição da sua realidade interna. Ou seja, há no maneira como a totalidade da matéria participa
da duração do universo. Sen-
humano u m privilégio que deriva da amplitude do intervalo que lhe é ima· do assim, a contração como gênese
da percepção supõe uma memória que
nente, dando a ele a possibilidade de explorar a sua própria indeterminaç ã o. condensa no presente uma
pluralidade de momentos apreendidos.
Isto torna plausível a introdução no plano da matéria de ações inovadoras E aqui, a análise do aspecto temporal da consciência
pode - pela via
proporcionadas pela consciência humana? Talvez. Mas esta não é a quest ã o da exper·rencra • .
· imediata - colocar-nos na apreensão da duração interna.
que iremos priorizar neste momento. Aqui, buscamos, tão somente, a ocasi ã o Apresentarem os, assim, •
· as teses estabelecidas . sobre os dados
. nos Ensaws
imediatos da consciência,
para explorarmos o intervalo de indeterminação entreaberto pela hesitaç ã o para fazermos o encadeamento necessário com as
da consciência, com o propósito de estabelecermos o nexo entre subjetivida·
44 Idem, p. 823 (p. 74).
45 Ibidem.
42 Henri Bergson, Matéria e Memória, in: Oeuvres, pp. 187-188 (p. 26).
46 Ibidem.
43 Idem, p. 186 (p. 25).
36 37
O Todo-Aberto Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto
novidades apresentadas no Matéria e Memória. Nosso propósito é traçar 0 que resulta da percepção uma espécie de incidência no futuro. Considerada
temporal, a função da consciência consiste em
procedimento que nos conduzirá à noção de totalidade aberta. no pormenor do seu aspecto
Se em um primeiro momento fomos incitados à admissão de uma duração "reter O que já não é, e antecipar o que ainda não é" • Ou seja, ligar o antes ao
48
do universo pelos movimentos da matéria - que exprimem intensidades, ritmos 1 depois na apreensão de uma multiplicidade qualitativa constituinte do pre-
vibrações e mudanças qualitativas no todo sempre aberto-; agora, é diante da vir- sente vivo. Com isso, entrevemos a possibilidade de conversão do movimento
tualidade pura, entrevista pelo viés do ser do passado, que deveremos nos situar, relativo sensório-motor a um aprofundamento intuitivo da vida espiritual.
Com isso, alcançaremos as condições de direito de uma primeira conceituação: uma contemplação pura das impressões materiais situada aquém dos inte-
o todo não pode ser dado pois ele é aberto. Na progressão que segue o vetor da resses práticos funcionais.
virtualidade, alcançaremos a análise de um passado puro. Há, portanto, uma apreensão imediata da consciência que se despren-
de dos aspectos sensório-motores quando a intuição do tempo é aprofunda-
Consciência e tempo da; colocando o homem em presença da pura duração. Nela, não só seremos
Mas, para tanto, é preciso analisar o intervalo de tempo d à cÕnsciência. simpáticos aos movimentos da matéria, como também teremos do todo a sua
Nossa intenção é ultrapassar a dimensão dos fatos para nos remetermos às compreensão virtual. Ora, nessa apreensão imediata toda uma multiplicida-
suas condições, isto é, para compreendermos as condições da experiência de qualitativa é intuída. Dela, depreendemos outros elementos que devem
imediata pela apreensão intuitiva da duração. ser analisados.
Vejamos, novamente, a percepção. Por mais breve que seja, a percep· Para Bergson, a consciência imediata da duração faz com que intuamos o
ção consciente - como uma reflexão da nossa ação possível sobre as coisas intervalo interno de indeterminação como um fluxo contínuo que consiste em um
- ocupa sempre uma certa duração, exigindo, consequentemente, um esforço prolongamento do passado no presente debruçado sobre o futuro. Segundo ele,
contraente que "prolonga uns nos outros uma pluralidade de momentos" 47•
Na percepção se encontra contraída uma pluralidade de impressões sensí· "sobre este passado nos apoiamos, sobre este futuro nos
veis. Tais impressões são contraídas no espírito na medida em que este vai debruçamos; apoiar-se e debruçar-se desta maneira é o que é
contemplando os fatos da matéria. Como contemplamos imagens, as impres· próprio de um ser consciente. Digamos, pois, que a consciência
sões contraídas são imagens de imagens, ou melhor, imagens presentes e já é o traço de união entre o que foi e o que será, uma ponte entre
passadas, ainda que o passado seja aqui considerado como dimensão intrín· o passado e o futuro" 49 •
seca ao presente do ser vivo, isto é, como uma memória inseparável do pre· Entretanto, tal traço de união é também animado por movimentos qua-
sente posta como condição da duração dos elementos percebidos. Trata-se .
litativos que se exprimem · no mterva .
• 1o existente entre o passado imediato e
de uma operação análoga a uma reflexão especular: a imagem percebida, tal 0 futuro iminente.
Ou seja, após a percepção imediata há algo que se absor-
como a imagem que se forma no fundo do espelho, é o duplo especular da ve das impresso~ es . .
const1tum
. d o no mtervalo um movimento de caráter local.
imagem material situada na frente do espelho. Sendo esta presente, aquela já Mas qual e,, precisamente,
a definição de tal movimento local? De acordo com
é imediatamente passada. Assim, a imagem percebida pelo ser vivo prolon· Bergson , e, O a i eto que ocupa o
mtervalo, ocorrendo como expressão de uma
ga-se, continuamente, no passado, tornando-nos convictos de que, na consci- tendência m 0 t , . sens1vel. . ,
n·z so b re uma superf1c1e , Ele e, const1tmdo
------
ência, o presente vivo é uma duração heterogênea que consiste na retenção por micro-
dos estímulos percebidos como dados de um passado imediato, sendo a ação
48 Ibidem.
49 Ibidem.
47 Idem, p. 184 (p. 23).
38 39
O Todo-Aberto
Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto
movimentos intensos resultantes da absorção dos estímulos que sucedern à verificáveis pela consciência, raramente, pois esta des-
0 não obstante,
percepção, antes que a ação - resposta a tais estímulos - tenha sido executa. ao trabalho de atenção à vida utilitária - momentos significa-
-,: raças
da. O afeto, nesse sentido, ocorre no intervalo, sendo constituído por movi. em função dos interesses da vida prática. A consciência de
v o s r!cortados
mentas locais, tendências motrizes distintas das ações motoras. No afeto, 0
;:to presidida pela inteligência é sensório-motriz, "preside ações e ilumina
movimento se transmuta: deixa de ser extensivo para tornar-se qualitativo,
lhas,,so Tal como recorta, no fluxo contínuo da matéria, quadros, para
sendo a qualidade uma diferença animada por micromovimentos intensivos. esco
inseri-los no campo da nossa vida utilitária, a inteligência procede da mes-
Na duração os afetos são devires, variações intensivas, multiplicidades que
ma forma quando se debruça sobre a cena subjetiva motivada pelos mesmos
atestam para a vida espiritual uma heterogeneidade, possibilitando a intui-
interesses práticos. De onde surge a ilusão de u m fluxo temporal subjetivo
ção de uma duração heterogênea e plena de diferenças qualitativas.
composto de estados descontínuos.
Pela análise desenvolvida até aqui, é possível afirmar uma coincidên-
cia entre a consciência de fato e a duração da subjetividade. Est3: é inclusive a "Mas a descontinuidade dos seus aparecimentos destaca-se na
originalidade de Bergson: contraditando as teorias que desqualifici a cons- continuidade de u m fundo onde se desenham e ao qual devem os
ciência e m proveito da existência de pensamentos inconscientes, Bergson próprios intervalos que os separam: são os toques de tímpanos
propõe que a consciência seja levada a uma instância de direito, colocando que vez por outra soam na sinfonia. Nossa atenção fixa-se sobre
-a como uma virtualidade que é expressão dos movimentos da matéria. Por eles porque a interessam ... Cada u m deles é apenas u m ponto
outro lado, a consciência de fato emerge da atualização daquilo que vibra mais bem iluminado de uma zona móvel que abrange tudo o que
no intervalo de indeterminação da matéria viva dos animais e dos homens. sentimos, pensamos, queremos, tudo, enfim, o que somos em
Com isso, ela pode ser estendida à temporalidade concebida como totalidade dado momento" 51•
aberta - consciência virtual imanente aos seres vivos e ao plano da matéria -
sendo, por outro, submetida às exigências de u m espiritualidade pura que é, Mas e m relação a essa zona móvel, os dados imediatos da consciência
como veremos, o inconsciente puro de u m pensamento do tempo. estão variando a cada instante. "Se u m estado de alma deixasse de variar, sua
A duração que condiciona a consciência de fato, de direito abarca a duração deixaria de fluir" 52• O espírito é então concebido como variação: flu-
totalidade da vida e do universo, sendo, portanto, não uma experiência de xo contínuo de tempo, onde os momentos se penetram uns nos outros.
fato, mas a condição de toda e qualquer experiência. É a subjetividade como Ora, essa continuidade temporal nos conduz a u m aspecto mais profun-
u m todo que dura, estando esta duração inserida, como veremos, e m u m todo do da nossa subjetividade: se em u m primeiro momento fomos definidos como
aberto que comporta - como totalidade virtual - uma multiplicidade de dura· seres orientados para a ação, agora temos a intuição de sermos pura variação
interna. É que a subjetividade prática se funda sobre uma subjetividade origi-
ções todas elas coexistentes.
nária constituinte: subjetividade tempo que é condição do
aspecto prático.
Duração e multiplicidade Esse aspecto originário da subjetividade confere à duração identidade
A identidade subjetividade/tempo - concebida como uma duração com a realidade espiritual. Bergson concebe o espírito como u m movimento
to· de diferenciação que avança retendo os momentos presentes para conser-
dentre outras - leva Bergson à compreensão do ser humano como uma
talidade durável, isto é, como uma totalidade de direito aberta onde nele
se insere a experiência de u m fluxo contínuo e heterogêneo. Entretanto, a 50 Henri Bergson,
Matiere et Mémoire, in: Oeuvres, p. 283 (p. 116).
heterogeneidade, a multiplicidade qualitativa onde a mudança de natureza 51 Henri Bergson, L 'Évolution Créatrice, in:
Oeuvres, p. 496 (pp. 14-15).
se faz patente através de uma continuidade - traços indeléveis d a duração 52 Ibidem.
40 41
O Todo-Aberto Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto
------
Bergson in o va, desde o iníci o da sua obra, em relaçã o à tradiçã o me·
tafísica, a o n o s apresentar a te o ria das multiplicid a des com o independente
54
e:ri Bergson, Essai sur les données immédiates de la conscience, in: Oeuvres, p. 57.
0 re este ponto
53 Idem, p. 498 (p. 16}. conferir a análise de A. Robinet, Bergson, pp. 28 e ss.
42 43
O Todo-Aberto Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto
56
55 Leibnitz, Novos ensaios sobre o entendimento humano, in: Pensadores, p. 12. Henri Bergson, Matiere e Mémoire, in: Oeuvres, p. 224 (p. 60).
44 45
O Todo-Aberto Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto
ção se dá por intermédio de dispositivos motores; ora ele se conserva colllo stranhamento, o espírito se esforça para buscar no passado lem-
nos causa e
memória de lembranças. A primeira conservaria o passado por "uma série de à imagem percebida, facilitando assim as nossas reaçoes.
branças análogas , . , .
mecanismos montados, com reações cada vez mais numerosas e variadas às propno corpo e responsave1s
Enfim, ao lado dos hábitos institm'd os no
excitações exteriores" 57, enfim, "com réplicas prontas a um número incessan. êxitos passados, existe uma memória que se encarrega de
pela re P etição dos , .
temente maior de interpelações possíveis" 58• A segunda, de natureza completa. passados para oferece- 1os a consc1enc1a - na
A •
conserv ar os acontecimentos A
mente distinta, "registraria, sob forma de imagens-lembranças, todos os acon. - toda vez que as circunstâncias exigirem.
forma de l·magens-lembranças
tecimentos de nossa vida cotidiana à medida em que se desenrolam" 59• Sem ora, pondo de lado os hábitos - que se explicam pela repetições de
negligenciar nenhum detalhe, atribuindo a cada fato uma data singular. "Sem perguntarmos como deve-
fatos que fundam os dispositivos motores - cabe
segunda intenção de utilidade ou de aplicação prática, armazenaria o passado mos compreender a conservação das lembranças na memória? E qual seria a
movimentos
pelo mero efeito de uma necessidade natural" 60• sua natureza, já que o que ela nos oferece não são repetições de
Devemos então associar o reconhecimento sensório-mo or - isto é, au- condicionados por hábitos adquiridos mas, fundamentalmente, lembranças
tomático - ao hábito motor que se constitui pela contração e repetição das de acontecimentos vividos?
vibrações da matéria. Por exemplo: habituamo-nos, por uma série de repeti- Tocamos, desse modo, em um aspecto crucial da subjetividade-tempo
ções, a reagir automaticamente de modo repulsivo toda vez que uma chama que procuramos analisar: a duração como memória - seja na forma de lem-
se aproxima do nosso corpo. Neste caso, a percepção se prolonga em movi- brança, seja, comO'veremos, enquanto memória-contração. Acreditamos que
mento de costume, ao mesmo tempo em que os movimentos prolongam a uma análise pormenorizada do reconhecimento atento acerca da formação
percepção para dela extrair efeitos úteis. Assim, não saímos do circuito ob- da lembrança nos introduza na compreensão desse aspecto.
jetivo, permanecemos no presente e repetimos o passado de forma motriz,
assegurando às nossas ações êxito no cumprimento dos seus intentos. Do reconhecimento atento ao surgimento da lembrança
Já no caso da memória de lembranças o reconhecimento atento que ela
proporciona far-se-á de modo inteiramente diverso: ao invés da percepção "Em que consiste a atenção? De um lado a atenção tem por efeito
prolongar-se em movimentos de costume, produzindo uma resposta automá· essencial tornar a percepção mais intensa e destacar os seus
tica, ela entrará em circuito direto com lembranças. A necessidade de lembrar detalhes" 61. A atenção ocorre toda vez que um fenômeno de inibição
para a consciência se faz, normalmente, por exigência da nossa vida prática, vem impedir que a percepção se prolongue em ação motriz. Na
quando estamos em dificuldade para reagir a um objeto percebido, devido a impossibilidade de tal prolongamento, a consciência se torna
um estranhamento ou a uma longínqua sensação de similitude que ele nos pro· atenta; volta-se para o objeto percebido, buscando reconhecê-lo
voca. Quando encontro, por exemplo, um amigo que não vejo há anos e sinto, com maior nitidez ao "sublinhar os seus contornos" 62•
por isso mesmo, uma dificuldade em reconhecê-lo. Nesse caso, a memória é
Ao nos reconduzir ao objeto, a atenção nos introduz simultaneamente em
evocada pelas dificuldades suscitadas no estranhamento da coisa percebida e
regiões mais profundas da nossa subjetividade. Ou seja, quanto mais nos apro-
entra em circuito direto com a percepção. Dito de outra forma, diante do que
fundamos na percepção dos detalhes do mundo circundante, mais exploramos
regiões do passado. Se reconhecimento automático permanecíamos inseridos
no
57 Idem, p. 227 (p. 63).
58 Ibidem.
61 Idem, p. 245 (p. 79).
59 Ibidem.
62 Ibidem.
60 Ibidem.
46 47
O Todo-Aberto Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto
da imagem percebida, "um apelo é lançado às regiões mais profundas e afas- Ora, esta tese de Matéria e Memória não ressoa com a exposição do surgi-
tadas da memória, até que outros detalhes conhecidos venham a se projetar mento da lembrança exposta na conferência que trata da sensação de um
sobre aqueles que se ignoram " 64. dejá-vu, na estranha perturbação temporal descrita brilhantemente pela
Um novo circuito, enfim, se estabelece: não vamos mais da percepção experiência da paramnésia 66?
à ação por prolongamentos sensório-motores; vamos, agora, da percepção É que em Bergson, uma certa verdade do tempo é inseparável
à memória. Esta, uma vez evocada, leva a percepção a um grau de aprofun· dessa perturbação que faz com que sintamos a existência de u m passado
<lamento maior, recriando, com imagens-lembranças, o objeto percebido ou, puro coexistindo com os presentes que passam agora. Sendo assim, tal
simplesmente, sobrepondo aos contornos já existentes da imagem percebida perturbação viabiliza, na realidade, a construção teórica do ser do pas-
novos contornos. Tudo se passa como se a cada detalhe descoberto da rea· sado. Ou seja, é nesse ensaio sobre a lembrança do presente que o surgi-
!idade exterior correspondesse uma região do nosso passado. Quanto mais mento concomitante da lembrança ao lado da percepção vem confirmar,
nos aprofundamos nas camadas da realidade material, mais verificamos reforçando, os paradoxos desenvolvidos em Matéria e Memória. Vejamos,
um aprofundamento simultâneo em níveis da nossa realidade espiritual. Na então, tais paradoxos, para esclarecermos melhor a diferença entre o ser
verdade, o novo circuito estabelecido é composto por uma série de circuitos passado e o ser do passado. Dessa diferença obteremos a convicção de
que há um virtual puro apresentado como aspecto fundamental do tem-
crescentes, pois o "progresso da atenção tem por efeito criar de novo, não
po. Assim, é com este esclarecimento que nos colocaremos na direção do
apenas o objeto percebido, mas os sistemas cada vez mais vastos aos quais
Todo-Aberto. Passemos a esta análise.
ele pode se associar" 65.
63 Idem, p. 247 (p. 81). 66 Henri, Bergson O texto sobre o falso reconhecimento é uma conferência intitulada
Ibidem. "Lembrança do presente e o falso reconhecimento". Tal conferência se encontra em
1 .1
64
um livro intitulado A Energia Espiritual, pp. 109-151.
65 Idem, p. 250 (p. 84).
49
48
Parte 1 - Do Movimen t o ao Todo-Aberto
III
Se a imagem-lembrança traz a marca do passado, isto indica sobretudo que
foi no passado que efetivamente fomos buscá-la. E isto é verificável toda vez que
a consciência passa a acompanhar o próprio movimento da memória que traba-
lha. Ao recuperarmos uma lembrança, ao evocarmos um período de nossa história;
Do Ser do Passado ao Todo-Aberto "t e mos consciência de um ato sui generis pelo qual deixamos o presente para nos
recolocar primeiramente no passado em geral, e depois, numa certa região do pas-
sado"68. Tal trabalho é, para Bergson, semelhante à busca do foco de uma máqui-
A
na fotográfica. Nesse salto primeiro, que deflagra o processo de reconhecimento,
memória de lembranças introduz uma distinção entre imagem a lembrança permanece todavia virtual e dispomo-nos simplesmente a recebê-la,
-percebida e imagem-lembrança que e m Bergson deve ser esta- adotando a atitude apropriada. O que faz com que a imagem-lembrança surja é, na
belecida com rigor. Com efeito, quando este censura a psicologia realidade, todo um processo de atualização dessa lembrança virtual, cuja condensa-
- embasada no associacionismo - por conceber que entre a per- ção é na realidade uma diferenciação. Como diz Bergson, descrevendo o processo,
cepção e a lembrança a diferença existente é, tão somente, de grau; ele o faz
para mostrar que a diferença entre elas é de natureza. Segundo Bergson, o "pouco a pouco, a imagem-lembrança aparece como uma
engano da psicologia se engendra no cerne da própria consciência: quan- nebulosidade que se condensasse; de virtual passa ao estado
atual; e à medida que seus contornos se desenham e sua
do uma rememoração se conclui, estando esta a serviço do reconhecimento
superfície se colore, ela tende a imitar a percepção" 69•
atento, as duas imagens ficam situadas no interior da consciência. Assim, ao
ocupar a consciência, a imagem-lembrança tende a se tornar indiscernível Esse ato sui generis, através do qual nos colocamos primeiramente no
seio do passado em geral, contraria a tendência comum de pensar a rememo-
com relação à imagem-percebida, pois ambas estão presentes. Ora, quando
ração através de uma retroação sucessiva 70• O salto no interior do passado
isto ocorre tendemos ou não a ver nelas uma simples diferença de grau? E
como é possível desfazer a confusão que emerge quando reduzimos a ima· 67 Henri Bergson, Matiere e Mémoire, in: Oeuvres, p. 277 (p. 110).
gem-lembrança a um presente que foi, para depreender a ideia de que entre 68 Ibidem.
ela e o presente atual há apenas diferença de vivacidade? 69 Ibidem.
Em Bergson, duas realidades podem ser distintas, ainda que indis· 70 Exi t em Bergson uma análise da linguagem inseparável deste paradoxo do salto on-
tologico. Para ele a compreensão daquilo que nos é dito ocorre da mesma maneira pela
cerníveis; basta cuidarmos da análise dos fatos, para deles depreendermos
qual evocamos uma lembrança. Em Bergson, existe uma sutil diferença entre o elemento
as suas tendências; para deles nos remontarmos às suas condições e corn· uro o sentido e a sua atualização através de sons ouvidos e de imagens associadas.
preendermos as suas diferenças de natureza. Desta forma, o que distingueª u seia, quando queremos
compreender alguma coisa nos instalamos imediatamente
no elemento puro
imagem-lembrança da imagem-percepção é a própria marca que aquela traz do sentido, para só depois fazermos, por associação, a atualização ne-
cessária para . .
o recoo h ec1mento da realidade. Queremos, com essa nota, mostrar como o
consigo: diremos que apesar da imagem-lembrança tender - quando presen· patradoxo do
salto ilustra uma abordagem ontológica da linguagem. Bergson, Ibidem. A
es e respeito
te na consciência - a imitar a percepção, ver também Deleuze, G. Bergson ismo, p. 44.
50 51
O Todo-Aberto Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto
e statuto ac e n-
. d e proc essos atuais - ganha no b e rgson ism o u. m
ma, o passado s e apres e nta como o e lem e nto q u e distingu e o pres e nt e qu e foi
do a ra've1s . .
d e reahdade d1stmto das
pre s e nt e qu e passa agora, conduzindo-nos a acreditar qu e e le s e forma depois
insep
. .
associado ao s e r do passado , d e signa u m tipo , .
tuado. . . b e rgso niana do tempo h a co e x1st e nc1a d e u m
h •
do pres e nt e t e r passado. Porém, numa análise mais ate nta, verificamos que mat e riai s. Na teoria . o
!idades
a a tu a
0 virtual _ com
O p r e s e nt e atual q u e agora passa, ou seja,
image m -le m brança não s e confund e com a imag e m pre s e nte porqu e , no ato de pa ssa do . -puro · h a' u m
d o assim,
e vocá-la, e la já se apr e s e nta como cont e m porân e a do passado e m g e ral, e quan. 1 e o virtua 1 - 0 os dois asp e ctos co e xist e ntes do r e al. S e n
sa
a tua . totalidad e co e xist e com O nosso p re s e nt e q u e passa; e e ste
do s e atualiza, como vimos, traz consigo a marca d e ss e passado. ss d o puro cuja . , .
pa a
a xistê ncia de uma gigant e sca memoria cos- ,
1t st m unh ando e
pa ssa do e, r e a ,
e
Surge aqui o paradoxo da cont e m poraneidad e do passado: o passado em e .
a totahdad e t e m pora 1.
g e ral não é aquilo que s e forma d e pois d e os p re s e ntes t e r e m passado, mas o ele- mica me m oria-, · mundo que , como puro virtual, subsume . .
no famoso e sq u e m a do con e m v e rt1do .
m e nto qu e confer e a tais p re s e nt e s a marca passada. Logo, ao invés d e s e r poste- ' É O qu e B e rg son nos apr e s e nta
rior a tais pre s e nt e s, o passado é s e u cont e m porân e o. D e sta cont e m poraneidade
d e pre e nd e -s e a difer e nça que Bergson e stab e l e c EWtre o e l e m ento puro dopas-
sado e os pre s e nte s passados e virtuais que e st e contém: o passado puro - contem-
porâneo do presente que foi - dele se distingue pelo fato de nunca ter sido presente. A B
Ora, a contemporan e idad e do passado com o pre s e nt e que "foi" s e desdo-
bra em u m outro paradoxo qu e B e rgson termina por d e m onstrar: além do passa-
do não advir depois do pre s e nt e te r passado - pois e l e lh e é cont e m porâneo -, é
o passado na sua totalidad e qu e d e ve s e r compr e endido como co e xistindo com
o pre s e nte qu e agora passa. É qu e o pre s e nte só passa e m função d e u m passado
que o faz passar. Caso o passado advi e ss e d e pois d e o p re s e nte t e r passado, não
t e ríam os como e vocar uma razão qu e justificass e a passag e m do próprio presen·
t e . D e ssa for m a, ou o passado co e xist e com o pre s e nt e qu e passa, ao invés de se
formar d e pois d e ele ter passado, ou o pre s e nte não t e m por que passar. Neste
s e ntido, a gên e s e da formação da l e mbrança elucida, segundo B e rgson, uma sutil
compre e nsão da natur e za do passado: Na bas e A B e ncontra m os a totalidad e d o passado, virtual, inativo e
Assim, o fundamento da subjetividade é memória sob dois aspectos, h et erogêneos são reais - com isso a duração. é concebida. como
enquanto contrai uma pluralidade de momentos presentes tornando-os Pas: rnoVI·mentas coextensivo ao universo matenal. Em
como um tempo heterogêneo
sados, e enquanto contrai a totalidade do passado no presente avançando elll real ' logo - .
da memória 'ABergson propoe uma ontologia do passado
com a t e se
direção ao porvir. seguida, . . , . .
con d uz , a dmissão da existencia de diversos mve1s mais ou menos con-
a
que o . . .
Com a elucidação do esquema do cone, a compreensão do tempo ui. 1·ctade desse passado repetindo-se e coex1stmdo virtualmente, e
trapassa a ideia presente de sucessão. A coexistência virtual do passado, e os traídos da tota I
. b'l'iza, enfim a tese da existencia de graus diversos de duraçao.
A • • -
níveis de contração e de distensão de zonas ou regiões intermédias - onde que via I ' . . , . . .
Agora como resultado parcial daquilo que ate aqm f01 analisado -
nela todo o passado se repete - faz com que Bergson conceba uma teoria da - nossa passam a coexistir conosco. Somos, no nosso
repetição do passado pela via da coexistência virtual, introduzindo níveis ou duraçoes superiores à . .
present e, O grau mais contraído do passado; coex1stmdo
com graus de du-
graus de duração mais ou menos distensos, diferenciando -se por graus de rep:te1:1, por tonus
rações distintas, todas comunicantes , na medida em q e.
A
----
outro modo, é possível ignorar a experiência atual, mediante
ços consolidam a superação das teses dualistas pautadas no psicologismo do
livro anterior. Em primeiro lugar, Bergson conclui pela afirmação de que os l dem, p.
336 (p. 183).
60 61
O Todo-Aberto Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto
'I
presente vivo que é condição do surgimento das qualidades percebidas. Co!11 distintos.
Há, portanto, dois momentos da diferença, havendo, igualmente, um
rnoVirnento
de diferenciação. Tal movimento consiste precisamente na atuali-
91 Idem, p. 342 (p. 171). Zação de uma virtualidade.
i
11 11
64 65
.li·
O Todo-Ab e rto Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Ab e rto
É c o m tal movimento q u e Bergson enseja s u a teoria d a evolução da A matéria, colocando-se c o m o obstáculo a esse impulso vital, obri-
vida. C o m ele, c o m o veremos, o vivo passa a ser intuído c o m o u m todo dutá. divergentes para poder atravessá-la. T u d o s e passa,
a t o mar direções
vel; isto é, c o m o u m a totalidade aberta coexistindo c o m u m a multiplicidade g a-o se u m a i m e n s a força dissociadora "houvesse atravessado a
portan t o, como , . - .
d e durações. Entretanto, a ideia d e u m impulso vital, d e u m movimento
de , . para conduzi-la a orgamzaçao e para fazer dela ( ... ) u m mstrumen-
rnatena
diferenciação q u e procede d e u m virtual para a atualização por criação de •
to de Jiber d a d e "93 . . _ _ _
diferenças divergentes e complementares, são indispensáveis para a avalia. Mas é preciso observar, contudo, q u e a d1ferenc1açao n a o s e explica
ção final d a conclusão bergsoniana d e u m todo aberto pensado como um mo. tal inse:ção: sendo o movim nto d e diferenc_iação e m
apenas em razão d e
nismo temporal. Vejamos, então, algumas características desse movimento
si e por si, é preciso concebe-lo c o m o u m a força m t e r n a e explosiva capaz
A s considerações sobre a evolução d a vida e o processo d e ultrapassagetn
de criar as diferenças vivas nas circunstâncias proporcionadas pelos obs-
das "alienações" nas quais c a e m os seres vivos serão investigados na nossa
táculos materiais. Só assim, apreendida nesse movimento, é q u e a duração
terceira parte. Aqui, cabe entender o movime to evolutivo c o m o condição da 94
chamar-se-á vida .
afirmação que encerra a argumentação final difnósso capítulo. Ora, pensar o impulso c o m o duração permite u m encadeamento ri-
C o m efeito, é n a Evolução Criadora q u e Bergson tratará d o movimento goroso entre a tese exposta n a Evolução Criadora c o m a s teses d e Matéria
evolutivo como processo d e diferenciação q u e procede d e u m impulso vir- e Memória. Como vimos, a o término deste último livro, foi possível afirmar
tual. O s seres vivos existentes nas suas diversidade d e reinos, d e mundos e de a eióstência de u m passado puro coexistindo virtualmente c o m o presente,
meios, procedem d e u m único e m e s m o impulso vital postulado como prin· em graus de contração diversos. C o m tal coexistência foi possível, igualmen-
cípio d a evolução. O q u e equivale a dizer q u e o s seres vivos advieram por te, atribuir uma duração à matéria, relacionando-a c o m a totalidade d o uni-
dissociação e desdobramento d e u m a unidade, d e u m a totalidade simples. verso. Agora, com o impulso vital posto c o m o movimento d e diferenciação
A abordagem ontológica d e u m impulso vital, visto agora como um, em si e por si, é preciso dizer q u e o s seres vivos n a s u a existência concreta
força q u e cria - ao s e atualizar - u m a diversidade p o r dissociação, é, segun· resultam de u m processo d e atualização desses níveis o u desses graus q u e
d o Bergson, o princípio q u e explicita a diferenciação resultante d a divers1· no virtual coexistem (contração - atualização). A simplicidade d o impulso
dade d a vida. Assim, animais e vegetais, animais instintivos e inteligentes remonta a uma coexistência virtual, sendo a s diferenças
existentes entre o s
e m suma, reinos e espécies existentes são concebidos c o m o diferenciaçõei seres vivos correlatas às
atualizações desses graus virtuais. Entendamos: a
divergentes d e u m a força originária explosiva. unidade primária ( originária) d o
. impulso coincide c o m a totalidade simples
O impulso vital é u m a virtualidade ativa e m vias d e se diferir; e se d'.f do passado.
Nela, a s diferenças s e evidenciam c o m o tendências, q u e se atua-
reatualizando-se p o r divergência e desdobramento.; o u seja, o impulso vita lizam segundo
direções divergentes. A esse respeito, Deleuze dirá que
não é outra coisa senão o movimento d e diferenciação e m si e por si, ap rt
sentado como duração q u e articula vida à memória. N o plano material. t,
"quando a virtualidade s e atualiza (... ) o faz segundo linhas
diferenciação se explica pela inserção d a duração n a matéria,
divergentes, p o r é m correspondentes a tal o u qual grau n a
totalidade virtual" ( ... ). Aqui já não se d á coexistência alguma;
"duração que se estira, e m que o passado se conservam• d.1V1S · ível!
, · que remven
cresce como u m a p l anta magica · ta n·a a ca d a momento
,
;----ldern, p. 829 (p. 78).
94
sua forma c o m o desenho d e suas folhas e d e suas fl ores 92" e s t e rnom
e nto o qu e nos
impor t a é pr e cisar a nature za do movim e nto e volutivo
rnomo movim e nto de dife re nciação. A teoria e volutiva da vida será abordada no por-
enor ai s
92 He nri Be rgson, L 'Énergie Spirituelle - Essais e Conferences, in: O e uvres, p. 8Z8 (Pet> m · ad.1ante . Cumpre diz e r, não obstant e , qu e e sta t e oria se e ncont ra e xpos-
ta na Evolução
sador e s, p. 77). Criadora ao longo dos três prim e iros capítulos.
66 67
O Todo-Aberto Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto
gera l . É com esta distinção, como veremos, que Bergson diz que há um tempo un 1
impessoal que se pode comprovar pela intuição imediata das multip l icidades 1
u
;---
98
H. Bergs D
uração e Simultaneidade, p. 33.
litativas que caracterizam a duração. A este respeito, podemos consultar tarnbefll C f· Henn_on,
Bergsonismo de Gilles Deleuze, cap. 4, pp. 62-71. Bergson, Durée et Simu/tanéité, p. 42.
70 71
O Todo-Aberto Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto
coisas que nos circundam também duram 99. Bergson diz que pela evidên . mesmo ritmo de duração, o mesmo deve ser dito das duas
CI,
perceptiva da duração que nos envolve, experiências. Mas as duas experiências possuem u m a parte
comum. Por seu traço de união, então, elas se reencontram
"gradualmente nós podemos estender esta duração ao conjun numa experiência única, desdobrando-se e m u m a duração única
do mundo material, pelo fato de não percebermos nenhulll, que será, à vontade, pertencente às duas consciências 1º1" .
razão de limitá-la à vizinhança imediata do nosso corpo: 0
universo nos aparece formando u m só todo; e se a parte dele ou seja, a parte c o m u m existente entre as duas experiências - como
que existe e m torno de nós dura à nossa maneira, devemas um acontecimento que engloba duas durações - faz c o m que concebamos a
dizer o mesmo, pensamos nós, daquela que a envolve, e assirn existência de u m tempo comum, isto é, de u m traço d e união onde as experi-
indefinidamente". Assim nasce a ideia de u m a duração do ências similares irão reencontrar-se.
universo, quer dizer de u m a COEl&eiência impessoal que seria É dessa maneira que a simultaneidade dos fluxos supõe na esfera do
o traço d e união entre todas as consciências individuais, como vivido uma parte c o m u m que permite estender a diversidade dos fluxos à
entre estas consciências e o resto d a natureza 100" . totalidade de u m tempo único. Entretanto, uma dificuldade subsiste: como é
possível a demonstração pela simultaneidade dos fluxos de u m a experiência
A o falar desse traço de união, interrogando as teses dos livros anterio• que não se reduza à interação de consciências humanas e o todo do universo?
res, Bergson confirma a tese de uma duração do universo apresentada no A Podemos dizer que a matéria - com a duração que existe na sua pura disten-
Evolução Criadora, sustentando a existência de u m a consciência impessoal são - a duração de u m outro ser vivo distinto do humano e o próprio homem
Diz que a duração abrange a totalidade do universo material com os seres vi· podem ser apreendidos como partes integrantes de u m a experiência comum
vos que nele se incluem. Defende a sua ideia c o m o seguinte raciocínio: se to- da duração? Ora, é confirmando tal possibilidade que a tese de u m tempo
marmos como ponto d e referência os seres humanos, considerando-os como único e impessoal se consolida através do poder que a duração tem de englo-
possuindo o mesmo ritmo, poderemos dizer que bar a si mesma. Bergson, então, nos propõe o seguinte exemplo:
"todas as consciências humanas são da mesma natureza "quando estamos sentados à margem d e u m rio, o correr da água,
percebem da mesma maneira, marcham de algum modo no o deslizamento de u m barco ou vôo d e u m pássaro, o murmúrio
mesmo passo e vivem a mesma duração. Ora, nada nos impede ininterrupto d a nossa vida profunda, são para nós três coisas
de imaginar tantas outras consciências humanas, disseminada, diferentes ou u m a só, segundo queiramos" 1º2 •
ao longo da totalidade do universo, porém suficientemente
Sem dúvida para nós, que percebemos, os três movimentos - o volun-
próximas umas das outras para que as duas consecutlva1· tá .
o d o pássaro,
tomadas ao acaso, tenham e m c o m u m a porção extrema de tr o material e o movimento espiritual - se apresentam como
campo d e sua experiência exterior. Cada u m a destas dua! fluxos temporais, com ritmos inteiramente diversos. Mas a simultaneida-
d do evento
experiências exteriores participa d a duração de cada uma dt peercebem nos mostra e m princípio que a nossa duração, implicada no que
1 os, compreende a unidade dos dois movimentos, ao mesmo tempo
duas consciências. E u m a vez que as duas consciências têfll
ldern,p.44
99 Cf. Ibidem. 102
100 Ibidem.
ldern, p. 51.
72 73
O Todo-Aberto Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto
e m q u e - desdobrando-se - evidencia q u e o movimento distenso da tnaté. Nestes termos, vemos que o s fluxos, c o m as suas diferenças
ti, en°:wreza, fluxos vividos.
é simultâneo a o d a nossa duração e a d o pássaro. com as suas diferenças d e contração e distensão comunicam-se
de num
Há, n a realidade, três fluxos simultâneos. S e a nossa duração é Ull}
0 só e mesmo tempo q u e é a sua condição. S e admitíssemos dois tempos
co:ntitativamente
x o entre o s outros, é, n ã o obstante, o elemento q u e contém o s demais. Ne - distintos, c o m o no caso d a relatividade, seriamos forçados
triplicidade dois fluxos serão ditos simultâneos q u a n d o se encontrain c o : q ntr0duzir u m fator estranho à experiência d a intuição: teríamos q u e admitir
d o s e m u m m e s m o e terceiro fluxo. "A capacidade q u e a nossa duração telli d e u m s e r vivo só poderia ser captada p o r u m outro ser vivo
ª ue a experiência
d e revelar outras durações, d e englobar a s outras e englobar-se a si inesllla ; t r a v é s de u m fator simbólico completamente estranho à duração, q u e exclui
a o infinito" 103, confere à duração a característica particular d e u m a coexis. teríamos q u e nos contentar c o m o símbolo q u e u m ser faz d o
0 yjvido. o u seja,
tência virtual q u e torna o s fluxos simultâneos. Assim, dois fluxos serão ditoi n ã o poderia viver dessa forma.
outrO sabendo que o outro
simultâneos, q u a n d o são englobados p o r u m terceiro fluxo, a saber: o nosso. É aqui que a comparação c o m a teoria d a pluralidade d e tempos d a rela-
A simultaneidade d e fluxos e m Bergson faz c o m q u e dois tividade ganha total pertinência. Segundo Bergson, a teoria d a relatividade si-
·,,;q-
tua-se na seguinte hipótese: n ã o mais fluxos qualitativos, m a s sistemas e m es-
"fluxos exteriores, q u e o c u p a m a m e s m a duração, sejam tados de deslocamento recíproco e uniforme, o n d e o s observadores são inter-
simultâneos, porque u m e outro s e m a n t ê m n a duração de um cambiáveis, não havendo n e n h u m sistema que possa s e r privilegiado. Assim,
m e s m o terceiro, a nossa duração ... E é tal simultaneidade de Einstein diz q u e o tempo d e dois sistemas n ã o é o mesmo; que o siste-
1º4 quando
fluxos q u e n o s conduz à duração interna, à duração real ". ma S e e istema S' devem ser compreendidos e m tempos quantitativamente
distintos, e m qual base esta argumentação irá s e sustentar? C o m o dizer, tendo
Mas c o m o d e v e m o s entender a divisão atual entre o s fluxos e a unida· como
referência o sistema S, q u e o tempo d o sistema S' é outro? Qual seria esse
d e virtual q u e irá fundamentá-la? Bergson, a o apresentar o tempo real come outro
tempo? Sem dúvida ele não se diria d e Pedro e m S, n e m tampouco d e
u m a multiplicidade virtual o u contínua, sustenta, d e u m lado, q u e ela pode se Paulo em
S', por que tais tempos s ó difeririam e m quantidade e toda diferença
dividir e m elementos q u e diferem e m natureza, mais q u e tais elementos se de quantidade
se anula quando se toma u m dos sistemas c o m o referência. N a
existem c o m o partes quando a divisão é efetivamente atualizada. Por outrO realidade,
Pedro colaria sobre esse tempo u m a etiqueta d e n o m e Paulo m e s m o
lado, s e nos colocarmos e m u m momento o n d e a divisão ainda não foi reali· sabendo
que Paulo não poderia viver assim. Bergson pergunta: "mas o q u e são
zada, isto é, n o virtual, é evidente q u e nessa instância h á aí u m só tempo. Oi os tempos
múltiplos c o m velocidades desiguais q u e a relatividade descobre?"
seja, n a divisão empreendida atualmente, a s partes q u e se dividem são o!
fluxos atuais. É assim q u e nesta tese a multiplicidade d e fluxos não invaJidaa
c "Se considerarmos o tempo q u e o físico Pedro, postado e m S,
existência d e u m todo virtual, muito pelo contrário, supõe-na c o m o condiç ã
atribui a o sistema S', vemos q u e esse t e m p o é c o m efeito mais
necessária para a s u a simultaneidade. E aqui u m último e breve relato sobrt
r lento q u e o t e m p o contado p o r Pedro n o s e u próprio sistema.
a diferença entre a simultaneidade d e Bergson e a d e Einstein v e m esclarece
Portanto aquele t e m p o n ã o é vivido p o r Pedro. M a s sabemos
o ponto d e vista p o r n ó s defendido.
que tampouco o é p o r Paulo. Portanto, n ã o o é n e m por Pedro
N a teoria d e Bergson para q u e a divisão esteja submetida à lógica deu(.
A n e m p o r Paulo".
tempo u' m·c o e 1mpessoa
· 1 e' necessano
' · enten d e- 1a c o m o a 1g o que se e stabel&
bem verdade q u e ele t a m b é m não é vivido p o r outros. N a realidade
se O É
te tnpo atribuído
103 Gilles Deleuze, Bergsonismo, p. 64. nenh p o r Pedro a o sistema d e Paulo n ã o p o d e s e r vivido p o r
Utn dos dois, p o d e ele a o m e n o s ser concebido p o r Pedro c o m o vivido
104 Henri Bergson, Durée et Simultanéité, p. 68.
74 75
O Todo-Aberto Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto
o u podendo s e r vivido p o r Paulo? Pode d e u m a maneira mais geral ser vivi q u e c o m tais considerações a hipótese d a relatividade p o d e
Bergson estima . .
. , 1 e v1v1 d o.
p o r alguém? E m u m e x a m e detido, Bergson mostra q u e n ã o é b e m assi . d
in evidente a existência d e u m s o, tempo v1v1ve
tornar n a consideração d o vivido q u e Bergson, avaliando as
por outro lado, é
É certo que Pedro cola sobre esse tempo u m a etiqueta com O n relatividade geral, irá sustentar q u e a duração real é u n a e so-
0rne hipóteses da
d e P a u l o; m a s caso imaginasse
. . p a u l o consciente,
. vivendo s a ideia subjacente d e u m a multiplicidade d e fluxos
mente e 1a Pode justificar
própria duração e medindo-a, veria, por isso mesmo, Paulo toni: d e englobamento. Assim, ele consolida n a aprecia-
viVi d o s e m Possibilidade
seu próprio sistema por sistema d e referência, e se situar então nesse de Einstein a existência d e u m t e m p o u n o posto c o m o
ão da relatividade
Tempo único, interior a cada sistema, d e q u e acabamos de falar· p unidade virtual d a conjunção dos movimentos reais.
, or pç onto de
isso m e s m o também, aliás, Pedro abandonaria provisoriamen o que ele censura e m Einstein é ter ele reduzido a multiplicidade à
seu sistema d e referência e, por conseguinte, sua existência corno ignorando a existência das multiplicidades qualitativas e
instância numérica,
físico e, por conseguinte, também s u _ç.onsciência; Pedro não se virtuais. Os movimentos relativos concebidos n a reciprocidade d o s sistemas
veria a mais a si m e s m o senão como u m a visão d e Paulo 105". comparados, são, n a realidade, movimentos tratados c o m o puramente quan-
titativos, estando eles submetidos à lógica simbólica d o espaço.
Dessa maneira, o outro t e m p o d o qual fala Einstein é algo que não pode
Dito de u m a outra maneira: s e os movimentos reais - extensivos, qua-
s e r vivido n e m p o r Pedro e n e m p o r Paulo. Ele é posto c o m o u m puro símbolo
litativos e evolutivos - exprimem u m a mudança qualitativa n a duração; deve
q u e exclui o vivido, marcando c o m o u m sistema é t o m a d o c o m o referência haver u m ponto de unidade q u e é pura expressividade d e u m a experiência co-
Bergson dirá: mum. O Todo se diz aqui d a mudança qualitativa expressa pelos movimentos;
sendo, igualmente, n a simultaneidade dos fluxos, o ponto d e unidade d a expe-
"Quando Pedro atribui a o sistema d e Paulo u m t e m p o retardado, riência, isto é, u m a experiência u n a d e u m tempo único e virtual. Retomamos
n ã o v ê mais e m Paulo u m físico, n e m m e s m o u m ser consciente aqui o que dissemos a respeito d o movimento extensivo d a matéria, incluindo
n e m m e s m o u m ser; esvazia d o seu interior consciente e vivo a agora o movimento qualitativo e o evolutivo: todos implicam e m u m a duração
i m a g e m visual d e Paulo, conservando d o personagem apenas 0 concreta, todos interagem expressando u m a mudança; todos exprimem u m a
106'
s e u envoltório exterior (na verdade, s ó ele interessa à física) mudança qualitativa no Todo. Isso faz Bergson dizer que, nessa instância
O u seja, n a relatividade a pluralidade d e t e m p o s s e sustenta em uma
"poderemos então eliminar a s consciências q u e havíamos a
simultaneidade d e instantes e e m u m a multiplicidade numérica e atual. A
princípio disposto a o longo d o universo c o m o círculos para o
conclusão d e Einstein é, nestes termos, puramente matemática s e m levareill
movimento d o nosso pensamento: n ã o haverá m a i s q u e u m s ó
conta a s multiplicidades qualitativas q u e Bergson evoca. É p o r isso que Berg·
tempo impessoal o n d e s e escoarão todas a s coisas 1º7".
s o n sustenta q u e n a teoria d e Einstein não s e invalida a hipótese d a existêndª
d e u m tempo uno e virtual e que, a o contrário, s e m ela faltaria à demonstra· Podemos dizer q u e o s ritmos d e duração d e fato s e distinguem. O s flu-
ção o fundamento indispensável para a comprovação d e u m a única e mesmª xos simultaneos
O
76 77
O Todo-Aberto
PARTE2
dos movimentos voluntários.
Surge então u m último problema: se o u n o todo é virtual, havendo
no
atual u m a simultaneidade de fluxos com suas respectivas diferenças rítnf
tcas
a d uraçao
- - enquanto continua
, - d eve ser pensa d a como d 1v1s1ve
. . , 1ou indiv ,'
IS\.
vel? Embora tendamos a pensar na duração como indivisível, parece que adi.
visibilidade convém melhor à demonstração d a existência de u m tempo únj.
co e impessoal. Sendo a unidade virtual, a continuidade não contradiz urna
certa divisibilidade: Bergson afirma que a duração pode se dividir, mas que
ela só se divide mudando de natureza a cada divisão. Afinal, as multiplicidades
qualitativas ou virtuais, que variam no seio do Todo, conferem a este urna
heterogeneidade. Assim, as partes do todo - enquanto partes totais - não
são apenas divisões (contrações) diferenciadas n a atualização, mas também Da Inteligência à Intuição
variações qualitativas desse tempo único e impessoal.
Para concluir cabe dizer que o todo se exprime e m toda parte. O vivo
é u m todo, o universo é u m todo, tudo dura. Tudo escoa no seio de um tem-
po único e impessoal. A s contrações-distensões d e tal tempo são igualmente
atualizações-criações d e u m a diversidade de coisas existentes. Enfim, o Todo
não pode ser dado porque é aberto, ou melhor, é o Aberto; e se o vivo e o uni·
verso são igualmente u m todo o são pelo fato de serem abertos. A abertura do
todo garante a possibilidade d e pensarmos o real como aquilo que possibilita
o novo, isto é, a criação.
Nesta parte priorizamos a teoria do Aberto e m u m a perspectiva meta·
física, sustentando-a através de u m a intuição da duração. Mostramos, é bern
verdade, os esboços d a representação ocasionada pela tendência adaptativa e
funcional dos seres vivos, m a s não extraímos deles todas as suas consequên·
cias metodológicas. Resta agora entendermos o método que garante essa
intuição, para executarmos nas partes seguintes as consequências práticas
dessa metafísica do Todo-Aberto.
78
Parte 2 - Da Inteligência à Intuição
S
Em Bergson, o método da intuição é construído com o intuito de conferir à
egundo Bergson, "o que mais tem faltado à filosofia é a precisão. Os metafísica da Duração uma precisão análoga à observação científica. Enfim, a
sistemas filosóficos não se ajustam à realidade e m que vivemos. São construção do novo método - que é a mediação para uma nova forma de pen-
demasiadamente vastos 108". Procedem por u m conjunto de concep- sar a duração - leva Bergson a situar a filosofia ao lado da ciência, buscando
ções abstratas, "tão vastas que neles caberiam todos os possíveis, e na metodologia do Todo-Aberto as etapas que eliminem os resíduos de uma
mesmo o impossível, ao lado do real" 109• Com tais declarações, Bergson de- especulação derivada de procedimentos equivocados da inteligência.
nuncia os procedimentos filosóficos que operam com concepções universais, É por isso que achamos indispensável detalhar nesta parte - depois da
para propor uma filosofia com conceitos criados pela experiência imediata e apresentação do Todo-Aberto - a experiência intuitiva e o método da intui-
precisa da duração. ção. Nosso propósito é ampliar o rigor de uma filosofia explicitada até aqui
Contudo, esta filosofia só consolida o seu respectivo rigor com a cons· por uma intuição filosófica, construindo a sua respectiva metodologia.
trução de uma nova forma de pensar a realidade temporal, já que as impre· Entretanto, adotamos como estratégia de demonstração do procedi-
cisões denunciadas por Bergson encontram seus motivos nas especulações mento metodológico a compreensão preliminar das funções da inteligência a
da inteligência. Segundo ele, os equívocos das concepções metafísicas que partir dos interesses práticos dos seres humanos. Queremos com isso apro-
operam com noções abstratas extraídas das compreensões errôneas do tern· fundar certos aspectos adaptativos já esboçados na nossa parte anterior, para
po, que trabalham com a construção de universais fundados e m uma lógi c a d nunciar as ilusões subsequentes. Saibamos, então, de início, quais são as fun-
espacial da subjetividade e que deflagram ilusões inseparáveis das suas cons· çoes da inteligência e
porque elas serão submetidas a u m tratamento crítico.
truções quantitativas, resultam de uma inteligência que aloca no campo do
pensamento da duração operações fundadas no âmbito dos interesses práti·
cos. Ora, tal conhecimento se mostra impreciso e m vários aspectos, cabendº
a Bergson a tarefa de descrevê-los para ultrapassá-los.
80 81
Parte 2 - Da Inteligência à Intuição
I
para a vida utilitária·' do passado puro, apenas representaçoes
. n ificantes
sig .
ara compreensão e interpretação do presente material; e m suma,
ª . ntínuo e heterogêneo, destacassemos
u,âliares P , _
estados e representaçoes
ro
' visando com isso a satisfação das nossas necessidades.
desc<>Dtínuas
A Função da Inteligência Podemos afirmar que tal limitação ocorre no momento e m que e pre-
. te r do mundo físico as representações adequadas para agirmos sobre
CISO
,., - e1e, e que quando tal operação se torna prioritária a duração interna aca-
ba se reduzindo a aspectos funcionais e adaptativos. Ora, tais operações se
uando o corpo é "orientado para a ação, ele tem por função ... limi- encontram em Bergson condicionadas por um processo conceituado como
tar, e m vista da ação, a vida do espírito" 110• Com esse enunciado atençao à vida utilitária, ou como diz David Lapoujade, por "uma faculdade
Bergson nos coloca no âmago da seguinte questão: como poderia de antecipação e adaptação às exigências do mundo externo" 111, isto é, uma
o espírito ter de si consciência integral, se vive - no âmbito dane- atenção que condiciona os dispositivos sensório-motores, garantindo u m
- presidindo as ações corpóreas? As funções espirituais não visam certo equilíbrio funcional na interação indivíduo-meio 112• Assim, é tal proces-
outra coisa nessa esfera senão a inserção corporal do ser vivo no mundo de so que fundamenta o fato de o homem ter de si uma compreensão limitada.
forma eficaz, pois, como vimos, há u m aspecto prático da subjetividade, cujo Além disso, ao restringir sua experiência pelas atividades que preten-
teor utilitário e adaptativo restringem e limitam a vida do espírito. de executar no mundo, ele se torna na natureza u m ser estagnado. Busca re-
Mas como podemos explicar com exatidão esta ideia de que o corpo cursos na inteligência para executar com eficácia suas atividades no mundo
com suas ações utilitárias venha a impor u m limite à vida espiritual? Já sa· externo, e acaba limitando-se ao tornar-se u m ser acomodado e repetitivo,
hemos que há para o espírito uma abordagem temporal distinta da concep· estando nessa esfera formalmente separado da sua potência.
ção funcional e adaptativa que reina na esfera dos interesses práticos. Além Ao acentuarmos que - para o homem atado à atenção à vida - as opera-
disso, ocorre a Bergson insistir, com frequência, no vínculo do espírito coma ções da inteligência são pautadas e m interesses fundados nas necessidades or-
duração. Resta precisar como a limitação de fato ocorre, e como ela se esta· 8ânicas que regulam o seu sucesso no mundo; podemos concluir dizendo que
belece na esfera do conhecimento. quando a inteligência
especula sobre a duração interna utilizando as mesmas
Podemos dizer que a limitação da vida espiritual pode ser precisada
e 111 No contexto enunciado nesta parte, a atenção à vida aparece como uma noção "de
de duas maneiras: e m primeiro lugar, pela restrição do fluir espiritual qu
ordem biológica, inerente à espécie ... que submete nossa relação com o mundo exte-
ocorre toda vez que a consciência volta sua atenção para o equilíbrio sensó· rior a um esquema
o do tipo questão e resposta". Para um detalhamento deste aspecto
rio-motor, fazendo com que os interesses práticos da inteligência - fundad s do conceito ver David Lapoujade. La Puissances du Temps Versions de Ber9son. Paris:
nos hábitos orgânicos e sociais - assumam a prioridade na vida; e, ern se· Les Éditions de Minuit, 2010, pp. 79-80.
112 8:rgson
or
gundo lugar, pelo conhecimento inadequado construído sobre o espírito p analisa o conceito de atenção à vida no primeiro capitulo de Matéria e Memó-
a, retomando a noção em um ensaio intitulado A percepção da mudança, i cluído no
IVro O pensamento e o movente. Neste ensaio, ele especula sobre uma atençao podero-
110 Henri Bergson, Matiere et Mémoire, in: Oeuvres, p. 316 (p. 147). sa à Vida capaz
de contrariar os aspectos utilitários e funcionais da inteligência.
82 83
O Todo-Aberto Parte 2 - Da Inteligência à Intuição
operaç ões com as quais ela lida com a matéri a, ela promo ve uma
certa e • t e mente signific a escolhe r, e a consci ência consist e antes
lização da subjeti vidade que distorc e a compr eensão do seu aspecto Pa . •..ercebe r consc1en 1 5 que favore ce a ação utilitár ia.
limitan do a vida do espírit o. Assim, tal espacia lização confirm a
t e ; º Cia r- 0 nesse d.1scerm•mento prático " 1 . _
a ideia d: tal. detud - 0 deste trabalh o de discern imento que a onenta çao da
as funçõe s da intelig ência promo vem um conhec imento restriti vo Ut ora, e, em funça . de faze-la .
, s eficaze s, tor-
no sentido
ritual 113, e que esta restriç ão é conseq uência das suas funçõe s
da vida e;
Pi- . si uica para as funçõe s corpór eas ,
Vida P - e m um acor-
naturais. As funçõe s da consci ência human a entram entao
E aqui precisa mos o essenc ial da nossa crítica: o que querem na-se eVldent.e. .
os é d _ ou e m u m a espéci e de acordo func10 nal - , que tem como
nuncia r a concep ção repres entativ a que a intelig ência faz do real, e- do eolabora uvo . . . - repro-
mostrando o re conhec imento do mundo extern o. Assim, a imagm açao
como desta concep ção é possív el constr uir u m pensam ento
metafísico
.
fi nalidade .
viabili zando u m trabalh o associa tivo no espmt o
, .
restrin ge a vida do espírit o pela espacia lização do tempo . Cabe que duz a imagem p ercebid a - . eficaz , .
acrescentar . ·t - da açao
auxilia r na deliber açao - mais . -, . a memor ia, por
que a intelig ência será critica da aqui no seu model o especu lativo comom tui o de .
construído
sua vez, con t r ibui
com as lembra nças dos aconte ciment os passad os - sen d o
com u m postul ado extraíd o do senso comum e do b o m senso: o . . . ,
reconheci, evoca da pa ra oferece r a sua
face útil à nossa vida consci ente - ; a mtehge n-
'" -
mento da realida de. . adotad as, qual a mais.
aa, en fim, deliber a, dentre as ações possíve is a serem , . , .
efi caz Para respon der ao apelo da situaçã o presen te. A l e m disso, e preciso
Os interesses práticos e as funções da inteligência que nesse acordo das faculda des haja uma preten são identif icar o o b.Jeto
sobre O qual iremos agir. E é esta preten são que cond1c 10na e fundam enta o
"Cham o de matéri a o conjun to das imagen s, e de percepção da reconh ecimen to da realida de.
matéri a essas mesma s imagen s relacio nadas à ação possível de Já sabemo s que Bergso n assina la a existên cia de dois tipos de reco-
uma certa imagem determ inada, meu corpo" 114. nhecimento: um que se faz por interm édio da atençã o; e u m outro que se
faz por interm édio de dispos itivos motore s, isto é, hábito s. C o m o primei ro,
Assim retoma mos a análise da percep ção consci ente expost a por Berg·
acionamos as nossas faculda des com o propós ito de reconh ecerm os o objeto
son no primei ro capítul o de Matéria e Memória. Se o mundo é imagem emsi,
percebido; com o segund o, reconh ecemo s o objeto agindo imedia tamen te so-
a imagem para nós, isto é, a imagem perceb ida, nada mais é do que a imagem
bre ele. No reconh ecimen to autom ático saber servir- se de u m objeto consist e
e m si relacio nada à ação possív el do nosso corpo sobre ela. em "esboça r os movim entos que se adapte m a ele", e isto implic a e m u m pro-
Disso decorr e a seguin te conseq uência : perceb er com interes se algu · cesso de automa tização , onde a repetiç ão que o condic iona "consis te precisa -
m a coisa signific a enquad rar - da contin uidade imagét ica do mundo materi mente no conjun to das conexõ estabe
es lecidas entre a impres são sensor ial e
- o que interes sa às nossas ações utilitár ias. Trata-s e, como vimos, de um 0 movime nto
que a utiliza ".
116
proces so subtra tivo, que implic a e m um trabalh o seletiv o da nossa cansei· Entreta nto, é no reconh ecimen to efetuad o pela atençã o que a reflexã o
e
ência com fins fundam entalm ente motore s. Bergso n pode afirma r então qu que se impõe à
percep ção_ atravé s de u m esforço intelec tual - vai mobili zar
todas as faculda des
do nosso espírit o. E aqui encont ramos na atençã o o acor-
113 Entretanto, devemos ressaltar que a inteligência para Bergson possa ter um relati : do co ncorda nte
valor, como condição de um conhecimento ampliado do mundo materia_l: Moldira- das nossas faculda des, isto é, o senso c o m u m que via 1 1za a
· b·1·
constru çao
- de
sobre o funcionamento da matéria, dando ao homem condições de fazer c1encta, uma imagem do pensam ento voltad a para a I'd ent1·f·icaçao
- d os
neste aspecto, a inteligência se encontra de fato em sua casa, já que se aprese:a13 ob·Jetos
externo s.
como condição do conhecimento científico. Além disso, convém não esquecer_ quen-
precisão da ciência advém de uma certa capacidade que a inteligência tem de inV
tar problemas e teorias consonantes com a observação parcial do mundo externº· 116 tem, p. 198 (p. 35).
l l 4 Idem, p. 173 (p. 13). dem, p. 240 (p. 74).
84 85
O Todo-Aberto Parte 2 - Da Inteligência à Intu i ção
Se já sabemos que na atenção o reconhecimento torna acentuact , •to _ podemos finalmente enunciar que a função geral da inte-
O espirI , .
intervalo de indeterminação existente entre o perceber e o agir, ago ra lltn çõeS do , er mundo externo, ajustando o ser humano , a reahdade
co e con h ec O . - , .
,
vem saber que quando as faculdades se encontram voltadas para gara . n. ugêneia q er atuar. E para que isto ocorra com prec1sao e necessano
u I ele
u
- ntira sobreª q fixa, que ela saiba distinguir as. coi-.
·
mserçao
.
ut1·1·1tana
' · d o h umano no mundo, a indeterminação vai estar b
. ela atn b ua às coisas uma identidade d1stn-
dmada ao acordo facultativo. Neste caso, o intervalo de indeterminaça~ O Será que ' também_, decidir sobre as_ suas. respectivas .
. . . - - sas ident11ca ·t· das e saiba .
mtervir
.
restrmg1do para fundamentar a orgamzaçao das funçoes espirituais corno paço com a intençao de calc u lar açoes eficazes para
es
bUl·ções no qual ação deve ser adotada
u m acordo de faculdades . a serviço dos interesses práticos. Se na parte ante. d a ·tu aç ão · O u sei·a, a inteligência prevê
s1 .
. . . _ n uma d a
garantindo ao homem u m
n o r a mdetermmaçao foi analisada como condição da intuição filosófica do - do conhecimento, .da coisa identificada,
emfunçao
dados imediatos da consciência, agora ela é referida aos interesses prático: sobre a matena.
ce rto domínio
das suas funções, chegando no âmago da
presididos por uma inteligência 117 que se atualiza nele. E assim, tocamos no essencial
seg u nda parte: afinal, selecionar, calcu-
Em suma, sensibilidade, imaginação, memória e inteligência contribuem ..;,; v 1·sada neste início da nossa
ques""o . .. . , . -
u e viabilizem respostas eficazes as s1tu
com as su as respectivas atividades para a realiza"'çao dos interesses fundados
ª
1E ntecipar e inventar problemas q
da inteligência? Não cabe.ª e l a ta efa de presi-
nos hábitos motores; estando a inteligência na tarefa de legislar essa contribui- ações dadas não são tarefas
ção, para garantir o reconhecimento do objeto. Com tais funções devidamente dir ações? Enfim, a inteligência
preside as funções da vida ps1qmca, operando
sociais 119• Orienta-se p_ara o
organizadas o senso comum se consolida: ele é o acordo das faculdades que poriexigência dos nossos hábitos individuais e
a representaçao e o
colaboram entre si para o reconhecimento do fenômeno externo, presidido pela mundo material, promovendo atividades que favoreçam
inteligência que tem como meta atribuir ao objeto uma identidade 118. domínio da realidade física.
por
Se dissemos que tal acordo supõe a legislação da inteligência - como Aqui Bergson apresenta sua crítica sing u lar à tradição filosófica:
faculdade encarregada da tarefa de presidir as colaborações das demais fun· desconhecer a função natural da inteligência, a tradição a concebe como
ins-
trumento de especulação pura, representando o real com conceitos q u e
abar-
quem o absoluto movida pela convicção de que o todo pode ser dado. Sendo
117 Convém lembrar que na primeira parte, o intervalo de indeterminação ofereceu o
hiato para a investigação dos aspectos temporais da subjetividade; e agora ele ére· assim, "contin u a-se ainda e m meio à nebulosidade ou no arbitrário desde
que se veja na inteligência u m a faculdade destinada à especulação p u ra" º.
12
tomado para a explicação detalhada do reconhecimento operado pela inteligência,
limitando a vida do espírito. Não existe contradição na nossa análise, mas há Colocando-a nesta condição, proc u ra-s e nela entrever atividades unificado-
rença de ênfase na abordagem. Tal diferença será explicitada para o leitor até odifinal
fe-
ras que possibilitem o conhecimento como fato inerente à natureza humana.
da nossa exposição.
118 Notamos aqui um certo parentesco com a definição kantiana do senso comum. Sen· E quando a inteligência é elevada à condição de princípio u nificad or trans-
do assim, qual conclusão pode ser extraída quando aqui reduzimos o senso comuIII cendental, corre-se O risco de ignorar as condições reais da experiência que
ao âmbito dos interesses práticos? Para Bergson, Kant pensou o senso comum co º determinam no fundo as suas operações.
condição do conhecimento do mundo físico, e extrapolou para a esfera da ciência
uma operação fundada em um conhecimento restrito pelos interesses práticos. ou Em Bergson, ao contrário, a inteligência é relativa às necessidades da
ação e não
seja, alimentou a ilusão de que o conhecimento da matéria ocorre por intermédiode da condição da experiência possível: "estabelecerei a ação e a pró-
representações a priori situadas em um sujeito transcendental e alocou tal sujeito0,
como uma função transcendental, situando-o fora do mundo empírico. Em Bergs o
tal operação será criticada como uma tentativa de espacialização da subjeti vi da de'.
onde o senso comum será objeto de uma denúncia que executa em proveito da dU -119: - - - - - _ ' · ' . .
S0bre a função pragmáti ca da intel i gênci a ver H. Bergson, L'Evolut1on Creatnce, m
ração. A concepção de senso comum, enquanto acordo facultativo, se evidenciaa:
obra de Kant na Crítica da faculdade do juízo, parágrafo 40. Para uma expJi c a ç Oeuvres, pp. 622-633 (pp 139-148).
120 I
detalhada desta concepção ler também Gilles Deleuze, Para ler Kant, p. 35. dem, P- 632 (p. 138).
87
86
Parte 2 - Da Inteligência à Intuição
O Todo-Aberto
u d e suas p a r t es r ea is
s dos c o rp o s r ea is desenham o
p r ia fo r m a d a inteligência d e l a s e deduz"121. Pe l a via d a a ç ã o , rep r es e n t ni os cont o rn o p o d e r s o b re a
a M a s q u a n d o r ep r e se n ta m o s n o s s o
m u n d o mate r ia l c o m c o n c e ito s m o l d a d o s s o b r e o funci o n a m e nt o da,.,... s o e \ementares. a dec o m p o r c o m o n o s a g r a d e,
I m p o m o s u m rec o r te n o sei o d o sensível e d a v a r ia çã o d a s imagens-inóv .
.. ,atelia.
matena,, . ist o é ' n o s sa facu l d a d e d e . - , da
. m o s essas d e c o m p o siçõ e s e r e co m p o s1ç o e s p o r t r a s
ist o é, d a maté r ia , percebem o s c o r p o s, o bjet o s e c o is a s r e c o r ta d os segu:ls p r o ie ta
do - r ea 1' s o b forma d e u m espaço h o m o g e• n e o ( ... ) ' q u e a
a s exigências d e n o ssa vida uti l itá r ia . extensao
· 122"
O r a, se rec o n he ce r a r ea l id a d e a t r ib u in d o às c o isa s u m a identidade fi reduzisse
define aqui o senso c o m u m , quand o a inte l ig ên cia prevê, antecipa o porvirs stitu i c o m o " o esquema.
es Se espaço h o m o g ê n e o se c o n . .
p ara Bergson, r m 1-
guind o u m a b o a di r eçã o q u e d ê a e l a c o n d içã o d e gene r a l iz a çã o p e l a repetição - p o ss1,ve 1 s o b r e as c o isa s"123_ Tais esquemas espac1a1s nos p e 11124
dos fat o s devidamente ana l isa d o s d o passad o , ent r a m o s, assim, na esfera do de noss a aça o
desc o n tin , uo '
. • r ep re se nta c l a r am en te o
con cluir que a inte 1·1genc1·a "só s e . que
b o m sens o . Neste sentid o , o b o m sens o e o sens o c o m u m - c o nju gad os corno tern
rep r es en tação e m u m
aspect o d a matéria. O u sei a, s a b e m o s
mo!dando
tal . t es
fo r m a s e e l em ent o s p u r o s q u e i r ã o inspi r a r u m a man r;:t d e pensa r a realidade dos moviment o s imanen
objetos so b re o s quais agim o s s ã o inseparáveis .
os o v im en t o s c o o r de -
- c o n stit u e m aqui l o que e m fil o s o fia chamam o s d e o p in iã o . O r a, c o m tais opi- m a s a inte l ig ê n cia s ó retém desses m
ao plano d a m.a te'r1·a
niões a inteligência executa dive r sa s ope r a ções. C o m o é o seu p r o cedimento?
. ·mp
1 o rtan d o sabe r para o
n d e eles se dirigem, e m q u e pont o se
nadas espaciais,
P r im e ira m e nte, a o p r e s id ir o rec o n h ecim e nt o d o o b jet o , que é síntese suma, c o m o p o d e m o s deles
.
situam, "ro1al1- a trai· etória po r e l es p e r c o r r id a s, e m
d e u m trabalho d e ass o c ia çã o e m p r ee n d id o pela m e m ó r i a justap o ndo-se a o d o s noss o s inte r e sses .
nos servir pa r a garanti r m o s a satisfaçã
p e r ce p çã o , ela empreende u m a gene r a l iza çã o r e fletid a q u e lhe permite cal· - c o m p o n d o e dec o m p o n -
Em te r ceir o luga r , di r em o s q u e a inteligência _ n e o, u m_v e r s : l ,
cula r , prever, e estabelecer relações entre representações. E m segundo lugar,
n d - e m símb l s, a t r av é s d e u m uso h o m o g e
do o real ' t r aduzi o o o o
.
auxi l ia d a p e l a linguagem - q u e e m p r e sta n o sei o d a v i d a s o c ia l te r m os equi· artefat o s q u e t o r n a ª aça o
abstrato e extensiv o d a l ín g u a - inventa mei o s e
valentes à s suas noções - a inte l ig ê n cia c o m p õe u m unive r s o l ó g ic o simbóli· inte l ig ên cia fabrica - in-
do homem sob r e a matéria mais eficaz. Engenh o sa, a
b re
c o , d a n d o a o h o m e m condições d e c o m p r ee n d e r esquematicamente o real no venta e formula p r o b l em a s - garantin . d o a o ser h u m a n o u m a c o n q u ista s o
qual p r e te n d e agir. T u d o s e passa, p o r ta nt o , c o m o s e a inte l ig ê n cia dispuses· . • •
a matéria. Enfim, a intehgenc1a fo r n e ce a o h o rnem c o ndições d e
p o ssib i l id ad e
. • .
se d e u m espaç o auxilia r idea l , u m m e i o h o m o g ê n e o o n d e a s representações de transforma r o mei o e m que vive, adaptand o - o segundo as suas
exigencias
s e alinhassem, p e r m it in d o , c o m eficácia, o s seus cálcu l o s e a s suas previsões. O c a r áte r utili-
Ora, todas as atividades recenseadas acima evidenciam
cre-
C o m o diz o p r óp r i o B e r g s o n : tário da inte l igên cia . E é p r ecis o enfatizar que tais o p e r a ções funcionam
ditando a ela u m cert o m e r ecim en t o . Que a inteligência esteja m o ld a d a s o b r e
" o c o nju nt o d a m a t é r ia deve r á p o is aparecer ao nosso uma tendência d a matéria, que e l a funci o n e segund o u m aspect o desc ntínuo
pensament o c o m o u m imens o tecid o c o m o qual traba l h emos que a próp r ia ciência n ã o fez senão a m p l ia r p a r a c r ia r as suas funções, s a o fat o s
c o m o quise r m o s, p a r a o r e c o se r c o m o fo r d e n o s s o agrado (...). reconhecidos n a aná l ise de B e r g s o n e já devidamente c o n sid e r a d o s p o r nós.
Esse p o d e r é o q u e afirmamos quand o dizem o s q u e h á u m esp a ç ,
o
Entretant o , p a r a esse a u t o r , "fals o s" problemas e m e r g e m quandº-
ª
e .
ist o é, u m mei o h o m o g ê n e o (... ), infinitamente indivisível, q u e inteligência, especulaça o
amparada n a o p in iã o , se v o l ta p a r a o te r r e n o d a
1
p r esta ( ... ) a seja d e q u e m o d o fo r d e d e c o m p o s içã o . U m rn :
e
desse gêne r o ( ... ) s ó p o d e s e r c o n ceb id o . O q u e é percebido 22 Henri
ue Bergson, L' Évo/ution Crêatrice, in: Oeuvres, PP· 627-628 (p. 142)-
extensão matizada, resistente, dividida c o n fo r m e a s linhas q 123 Ibidem.
124 Idem,
p. 626 (p. 140).
121 Idem, p. 624 (p. 139). 89
88
O Todo-Aberto
.
d o tempo, isto é, da duração pura que é o
u m a imagem do pensamento derivada d e
domínio d a metafísica C . . ºªt
postulados extraídos da . %
-
· - a' t·1I oso t·1a noçoes ºP 1
1mpoe
-
·
equivocadas acerca d o tempo real. O u se· niào,,
operaçoes comprometem a compreensão Ja, as .
d a duração n o seu fluir h s11, "'l
neo, ac rretando sucessivamente a espacialização eter0
d o tempo, a representa e.
II
d a reahdade como u m todo dado p o r conceitos
universais e a efetuaçãtº
problemas sustentados p o r "interesses" ilusórios
. _ q u e lhe são iman entes.d,
aqui a compreensao , ,
adequada d o esp1rito e comprometida pelas E
. op eraçoes
neghgentes de u m a inteligência q u e assume a
tarefa d e especular sobr e
A Intuição como Ato e as Ilusões na Inteligência
.
c o m o u m todo espacial, . ore
desfigurando a natureza d a duração.
E m outros termos, o q u e queremos enfatizar é
.
eia especula s e entrega a ilusões internas que - q u e quando a inte]·
pertencem à sua própria
tureza. Tais ilusões não são dissipáveis, mas na-
devem s e r inibidas. E a inibição
delas supõe u m a investigação das suas especificidades, A ideia do método
cujo esclarecimento É sabido que a noção de intuição sempre esteve presente e m sistemas
é feito através d a experiência imediata d a
intuição. O u seja, é a intuição como filosóftces. Desde a antiguidade até a filosofia contemporânea, ela era apresen-
ato q u e esclarece a s ilusões n a inteligência,
fundamentando a denúncia ea tada com uma série de sentidos: apreensão imediata do eterno, visão d e Deus,
consequente inibição destas. Sendo assim, para
denunciarmos as ilusões na certeza imediata de si enquanto ser pensante e apresentação d o sensível. E
inteligência teremos que apresentar primeiramente
a intuição como ato do todos esses sentidos se encontravam vinculados a u m sentido fundamental
espírito, pois é c o m ele q u e faremos a fundamentação
d a crítica que condicio· imanente à etimologia da palavra latina intueri, cuja tradução geral é ver.
nará a criação d o método. Mas, o q u e é finalmente
u m ato d e intuição? Entretanto, quando Bergson a evoca quer c o m ela p e n s a r u m m o d o
de pensamento imediato d a realidade, inovando e m relação à s acepções
tradicionais a o lhe dar c o m o objeto o espírito apreendido imediatamente
como duração real.
li. Bergson,
La pensée et /e mouvant, in: Oeuvres, pp. 1272-1273 (Pensadores, P· 114).
90
91
O Todo-Aberto Parte 2 - Da Inteligência à Intuição
· h · , ob·Je
visto, con ec1mento que e contato e mesmo coincidência"IZG_
, intuir é apreender o movimento do espírito como algo que
Além disso, a intuição é também "consciência alargada"1z7 " Afem disso, . . , a d"1-
. ' Percepri é, como algo macaba d o por exce IAenc1a que contem
· d·1ata "128, "sentimento
1me , l<I(
imediato"129 e "experiência ampliada"Bo · LeonH está se fazen do , isto
acepções acima notadas.
ª
_
son tem razao quando nos diz que a intuição - enquanto ato simpl es Us- rs1 de das
'd . ·~
, . , does. na duração real como a Igo que t1· m, perce b emos a mtu1çao
p m t o - recobre uma serie de acepções 131• Ideia, aliás, defendida por Ber As SI•m, imersos
gsot direções, indo aos poucos desdobrar-se nessa "experiên-
quando nos fala da impossibilid ade de defini-la: osd)ar entre diversas
intuitivamen te, abre-se, na sua
arnp 1.
ia da" . o tempo real , tal como apreendido
eia ,
para uma diversidade de fluxos simultâneos que desembocam
"que não nos seja pedida, pois, uma definição simples hetef'Ogeneidade, ~ . .
de graus d e d uraçao d.1stmtos; e, por outro, na m tu·1-
geométrica da intuição. Seria fácil mostrar que tomamos: rUJll lado, na constatação
Todo-Aberto , isto é, à totalidade virtual.
palavra e m acepções que não se dedtrzem matematicamente do fio tênue que nos conduz ao
direções indicadas, criamos as condições de
uma da outra" 132• çao Ao explorarmos as suas
m a compreensã o adequada da realidade
um método filosófico que nos dê u
obscuro - já que a intuição é
Contudo, há um sentido que configura uma acepção fundamental: a fluente. Sendo assim, o que a princípio se revela
intuição, como ato simples do espírito, é apreensão imediata da duração. A um fluir contínuo-, vai se mostrando, com o rigor
do conhecimen to, cada vez
e funda-
multiplicida de qualitativa que é característic a desta é acessada por um ato mais claro e preciso, ganhando destaque na compreensã o filosófica,
que a apreende imediatamen te e que ocupa intuitivamen te o intervalo de in- mentando o método que queremos explicitar. Como diz Léon Husson:
determinaçã o. Assim, "pensar intuitivamen te é pensar na duração" 133, com·
preendendo o seu movimento como heterogêneo . "a intuição é a princípio este conhecimen to imediato, mas
confuso, que a doutrina descobriu na base da percepção e da
"A inteligência parte ordinariame nte do imóvel e reconstrói consciência corrente; sendo, em seguida u m conhecimen to
bem ou mal o movimento com imobilidade s justapostas. A distinto que ela propõe extrair; sendo, enfim, u m método de
intuição parte do movimento, coloca, ou melhor, percebe-o conheciment o distinto desenvolvid o. Toda a teoria ... bergsoniana
como a realidade mesma, e não vê na imobilidade mais que um encontra pois sua chave no reconhecime nto desta função, e toda
a sua metodologia consiste e m pô-la em andamento" 135•
neste momento, para colocarmos e m análise os motivos críti·c os que de espacialização é, segundo Bergson, u m pressu-
draram os problemas do método da intuição 1J 6_
enger
!ª 1 rocedimento
. . , , d O JIIIP
iícito e m diversas filosofias que pretendem ofertar u m a lista de re-
d' . d os fenomenos apresenta-
que garantam u m con 1c10namento
A
ta ões
As ilusões na inteligência I"'"' n que difere essas filosofias
prese etfera do sensível. Sem tocar no pormenor
dOS na entre elas - , podemos dizer
Aqui, quatro ilusões serão denunciadas pela experiência i mc1al
· • do é certo afirmar a existência de diferenças
. . . . . . _ constituída por u m a ope-
ª - P : u um certo ponto elas derivam d e u m a ilusão
o
mtmt1vo. a espac1ahzaçao do tempo, a ilusão dos universais metafí sicos.
..
Probl emas que sao - mventados
· . '"'
com os termos universais da met a fís1ca q
u
que consolida - ao longo da história - u m a certa forma
ea da inteligência
engendra u m a outra que se
- d a negatividade.
1· usao ra nsar O todo como dado, e que essa ilusão . a espac1a-
depe , . d . Ou seia,
atraves d e categorias que evemos anunciar. .
formalizará que podemos conhecer a realidade com
a ilusão de
) A espacialização do tempo: Fala-se de u m a primeira ilusão na inteli li7,aÇâo do tempo cria
_gen.
eia a o constatar na experiência intuitiva que a duração,.. _é u m tempo continuo conceitos universais da inteligência.
h eterogeneo
, e povoado de multiplicidades. É que a inteligência ao re presen-
. metafísicos: A o pensarmos na capacidade de
tar o tempo mtroduz nele u m a descontinuidade, compreendendo-o analiti- B) A Uusão dos universais
generalização da inteligência,
entenderemos que esta tende a formar con-
came te como uma sucessão de instantes pontuais. C o m isso, a duração e
conhecer. C o m tais conceitos, a
reduzida a u m a sucessão de estados justapostos que desfilam alinhadamente ceitos gerai para toda realidade que ela visa
inteligência se alça - no terreno especulativo - à
pretensão de compreender
ao longo d e u m tempo uniforme. E não poderia ser diferente: habituadaa
que aparecem
representar o descontínuo, a inteligência destaca do movimento interno mo- a realidade como u m todo e, com isso, forja noções universais
Os
mentos significativos, transpondo-os para u m espaço ideal auxiliar. Preocu· como categorias que se predicam de toda e qualquer realidade possível.
chamados predicamentos do ser ou os nomes gerais de todas as coisas.
pando-se e m analisá-los geometricamente, ela não só ignora o processo em
Segundo Bergson, essa operação pode ser denunciada como u m a ilu-
que eles se fazem, como crê que é possível recompor o movimento real com
são produzida pela crença de que o múltiplo é atribuível a u m ser Uno dado, e
instantes pontuais alinhados sucessivamente, similares a pontos espaciai
que é possível- pela representação d a u n i d a d e - compreender a diversidade
O u seja, ao abstrair do tempo real u m a sucessão de instantes alocados em um com universais categóricos. É a ilusão dos universais, cuja operação consti-
espaço ideal, a inteligência obtém da análise u m tempo abstrato, puramente tuinte consiste no desafio de encontrar u m conceito "único que os resume a
matemático, fazendo deste a condição do conhecimento filosófico. todos e que é, consequentemente, sempre o mesmo, seja qual for o n o m e que
Segundo Bergson, essa é a mais flagrante de todas as ilusões que con· lhe dermos: substância, o eu, a ideia e a vontade"138.
:rn
diciona u m conhecimento filosófico: os procedimentos pautados na análise Bergson dirá que os universais não explicam coisa alguma. Antes pre-
da inteligência acabam criando a convicção de que "podemos pensar no in5· .
ser explicados 139. A o pretendermos construir com eles a ordem da rea-
tável por meio do estável, o movente por meio do imóvel"1 J 1_ A o estenderrn°1 de, teremos sempre u m real abstrato, esvaziado de sua heterogeneidade,
tal ilusão às analises ontológicas do bergsonismo - tanto no âmbito da dura· da
da sua mobilidade. Entretanto, se a unidade pretendida pela
~ a in:a u a ça,
çao, quanto no ambito do movimento concreto-, percebemos que existe u(ll que
. igencia e "abstrata e vazia, derivada de u m a generalização suprema,
A
incapacidade de compreensão do fluir universal na inteligência quando e5!a serta a Unidade de qualquer mundo possível" 14º, isto ocorre porque a inte-
busca submeter a duração a u m tratamento espacial.
138 H p. 113).
139 · Bergson, l a pensée et /e mouvant, in: Oeuvres, p. 1272 (Pensadores,
Ide m, PP- 1271-1275
136 H. Bergson, l 'Évolution Créatrice, in: Oeuvres, p. 726 (p. 239). (pp, 113-117).
140 Ibidem.
137 Ibidem.
95
94
O Todo-Aberto Parte 2 - Da Inteligência à Intuição
ligência - habituada a p e n s a r espacialmente - q u a n d o generaliza sub presumimos a existência d e diversas ideias gerais:
por tal motivo,
t o d a a realidade à identidade d e u m conceito universal d e ser, fazendo dellle traduzem u m a o r d e m d e semelhança objetiva entre a s
ste, aq u elas q u e . .
condição d e possibilidade para a compreensão e a determinação dos d ellla eiu-'-
_..;ctelD
, e m certa m e d 'Id a, ' "a c o m o d 'Id a d e d o m d'1v1'd u o e d a socie-
- se rvi·ndo
conceitos d a realidade. coi53;142 • existem t a m b é m aquelas q u e r e m e t e m a semelhanças objetivas en-
Convém assinalar, q u e a ilusão é configurada p o r Bergson no dades u m a classificação d a vida s e g u n d o gêneros e
terre. e s vivos, viabilizando
º s r
n o especulativo, e q u e ele pretende denunciar u m a certa metafísica que . 143,, e , além dessas, existem a s ideias gerais d a metafísica, resultantes
irepécies
1 es
d o s universais o s instrumentos d a s u a especulação. S e n d o assim ' é pr _ai dos universais, q u e aqui criticamos. Nesse caso, a inteligência forja
ec1s_ d:ailusão
b u s c a r a razão d a generalização n o âmbito d a vida prática para denunci· ilusão d e totalidade.
ara ideia geral das ideias gerais, conduzindo-nos a u m a
ilusão inseparável d o s processos d e generalização q u e resultam da extrapo. q u e s ó é ilusória p o r q u e s e assenta n a convicção d e q u e t u d o
otalidad e esta
lação para a esfera metafísica d o s universais engendrados pela inteligência • dado , isto é ' q u e exista u m t o d o dado. Bergson escreve:
seJa
S e g u n d o Bergson, a s ideias gerais foram
,..,- "pouco importa q u e s e diga "tudo é mecanismo" o u "tudo é
"forjadas pela inteligência d e acordo c o m s u a s necessidades. vontade": n o s dois casos confunde-se tudo. N o s dois casos
Correspondem a u m recorte d a realidade s e g u n d o as linhas mecanismo e vontade tornam-se sinônimos d e s e r e, p o r
q u e é preciso seguir para agir c o m o d a m e n t e sobre ela. O mais consequência, sinônimos u m d o outro. A í está o vício inicial d o s
das vezes elas distribuem o s objetos e o s fatos d e acordo com sistemas filosóficos. Eles c r e e m n o s informar acerca d o absoluto
a vantagem q u e p o s s a m o s tirar deles, jogando arbitrariamente dando-lhes u m n o m e " 144 •
n u m s ó compartimento intelectual t u d o o q u e atende à mesma
necessidade. Q u a n d o reagimos d e m o d o idêntico a percepções
diferentes, d i z e m o s q u e estamos diante d e objetos de m e smc q Os problemas metafísicos da inteligência e D) A ilusão da negativi-
dade: A espacialização d o tempo, a generalização corroborada p o r tal espa-
gênero. Q u a n d o reagimos e m sentido contrário, repartimos os
dalização e a universalização pretendida e m proveito dos conceitos últimos
objetos e m dois gêneros opostos 141".
edetermináv e i s d o conhecimento (categorias) 145 c o n d u z e m a inteligência à
O u seja, a gênese d a s ideias gerais decorre d a s necessidades da inte- Produção de duas outras ilusões, s e n d o a primeira condição d e c o m p r e e n s ã o
nos ha· da segunda. A
ligência, estando esta subordinada a o s interesses práticos fundados inteligência formula p r o b l e m a s ilusórios e engendra, c o m eles,
noções negativas.
bitos d o s e r h u m a n o . H á u m a generalidade sentida q u e s ó depois é refletida Vejamos, a princípio, c o m o o s problemas ilusórios s ã o en-
gendrados.
Nesse nível a s ideias gerais s e f o r m a m graças à s contribuições das faculdades
s
d o n o s s o espírito, consolidando a inteligência na tarefa d e ligar as dive rsa
funções espirituais, subsumindo-as a o s conceitos forjados n a esfera do
en· :----_
142 H B
· ergson, La pensée et /e mouvant, in: Oeuvres, p. 1298 (p. 130).
tendimento. P o r extensão e ampliação dessa gênese utilitária somos ir:tJ'O' 143 Ibidem
e
duzidos n o domínio d a representação e forjamos, a partir daí, ideias g '. 144 ld ern, p.
1291 (p. 126).
c o m conceitos universais, b u s c a n d o a fundamentação d e u m a compreensat 145
! íti a aos universais metafísicos como condição de possibilidade do conhecimen-
metafísica d a realidade. feita por Bergson em uma alusão explícita a Kant e às categorias aristotélicas.
lá tocarnos
te no essencial dessa critica em um outro momento do nosso estudo. Aqui
semetemos o leitor à leitura da Critica da Razão Pura de Kant, principalmente na sua
gunda Parte,
141 Idem, p.1277 (p.117). analítica transcendental.
96 97
O Todo-Aberto Parte 2 - Da Inteligência à Intuição
.
sociedade nos fornece, o desenho q u e ela não nos quer mostrar 147".
. . . . - '
lov
método é construído. Com ele, a metafísica do Todo-Aberto pode enfi
III
rn se'.
estabelecida em termos metodológicos.
.. -
A
constr ução do método da intuição é feita gradativamente através
das críticas endereçadas às ilusões fundadas na inteligência. As-
sim, o método visa precisar as teses sobre a duração real, mos-
trando como esta permaneceria imprecisa e vaga se pautássemos
o conhecimento da realidade temporal nas especulações arbitrárias e nos
conceitos a priori da nossa inteligência.
O trabalho habitual da inteligência "consiste ordinariamente, e m ir dos
conceitos às coisas, e não das coisas aos conceitos 149"; entendendo que aqui
os conceitos são definidos como ideias gerais, noções pré-fabricadas e abstra-
tas. Em Bergson, tais noções são, na realidade, extraídas arbitrariamente da
esfera da opinião e transferidas para u m espaço ideal, posto como condição da
especulação. Já sabemos
que tais conceitos são forjados por operações funda-
mentalmente práticas,
isto é, operações pautadas em interesses práticos que
fornecem ao ser
humano meios eficazes de inserção no mundo: "pesquisamos
que ponto o objeto a conhecer é isto ou aquilo, em qual dos gêneros conhe-
os
ci ele entra, que espécie de ação ou de atitude ele deveria nos sugerir 150".
caso da intuição, torna-se necessário que o espírito inverta "o sen-
tid No
operação pelo qual pensa habitualmente" 151: ao invés d e partirmos de
co:ceitos
Pré-fabricados, devemos antes partir da experiência imediata do
li,Bergson, l a pensée
lSo (b· et /e mouvant, in: Oeuvres, p. 1409 (Pensadores, p. 24).
•dern.
1S1
ld
em, 1422 (p. 32).
100 101
O Todo-Aberto Parte 2 - Da Inteligência à Intuição
espírito, e, para tanto, é fundamental a inversão da tendência habitual nesse caso, que a crítica às ilusões do conhecimento
dernos dizer,
da no aspecto prático da subjetividade. Pois só nessa inversão _ que Ilda. à inteligência, onde
e Par, p:o é conduzida por uma transmissão da intuição
nós uma espécie de esforço - que a intuição pode ganhar vivacidade segunda, obrigando-a a recalcar os seus precon-
. , Proven _,,1,5essarirneira converte a
d o a f·11 oso f'1a d e prec1sao.
- B ergson d'1z que "f'l1 oso,ar
& consiste em in aeJa ª transmissão, a intuição condiciona?te se amplia, ao mesmo
Verte
marcha habitual do pensamento 152". Assim, a intuição é a via de retomact t , a inteligência ganha profundidade. E aí que o método se elabo-
p . em que
d uraçao- como d a d o 1me · d.,ato, sen d o, por consequenc,a, a condição da ªda
A •
para denunciarmos, na fonte da experiência, as ilusões engendradas problema é ilusório, pois pressupõe a possibilida-
- Pe1as9e gundo Bergson tal
.
nera l 1zaçoes opera d as pe lo nosso entendimento. S e o s universais qu rep se pamento entre esses dois sentimentos. N a opinião, o manejo destas
e
sentam u m a totalidade d a d a s u p õ e m u m a ignorância d a s diferenças de n re. d l , t e ; : r a s engendra a onvicção d e q u e p demos tratar um_a delas c o m o
reza - e d o caráter aberto e imprevisível d a d u r a ç ã o - , isto deve significar atu. - roda outra, negligenciando a heterogeneidade q u e o s sentimentos refe-
e m u m a distinção puramente verbal,
é d e tal ignorância q u e muitos problemas falsos v e n h a m a ser constitu'9ue
g#JP!a essas noções encerram. Cai-se
n a inteligência, Assim, é verossímil dizer q u e q u a n d o esta especula co dos : : a n t e das convenções e d o s hábitos sociais. Quando a inteligência preten-
dados extraídos d a subjetividade - negligenciando o s seus elementos te os tal problema algo q u e concerne à natureza d e tais sentimentos ela
. de razer de
pois ignora a diferença d e natureza existente entre eles.
,
ra1s - acaba formulando falsos problemas metaftsicos,
se equivoca,
Já os problemas inexistentes s ã o engendrados p o r operações lógicas
Problema 2 - É possível aplicar uma prova do verdadeiro e do falso aos proble- d e generalização e d e totali-
resu}tantes d e noções obtidas p o r u m processo
mas, pautados na convicção de que eles surgem da confusão que a inte/igênc
... - /Q
ação da realidade, que faz a inteligência estabelecer oposições inexistentes
produz quando confunde diferença de natureza' com diferença de grau? entte as noções, motivada p o r u m a decepção fundamental q u e a indispõe
D a análise deste problema u m a regra básica d o m é t o d o pode ser enun- frente à experiência real.
ciada: quando aplicamos a prova do verdadeiro e do falso aos proble- Vejamos, primeiramente, o s falsos-problemas d o "não ser" e d a "de-
mas, partimos da premissa que tais problemas surgem de ilusões filo- soNem". Neles reina u m a operação lógica d e negação generalizada, onde a
sóficas metafísicas. inteligência acaba formulando problemas c o m termos negativos. Quando
A o analisamos tais ilusões por esse novo viés, chegamos à conclusão que perguntamos: porque h á antes o s e r e n ã o o nada?, formulamos u m falso pro-
elas s e fundam na tendência q u e a inteligência tem d e construir e colocar proble- blema. Procedemos c o m o s e o n ã o s e r precedesse o s e r e a aparição deste
m a s e m função d o espaço. O u seja, os problemas que a inteligência formula a par· tivesse que ser imputada a a l g u m acontecimento miraculoso. E m Bergson,
tir das suas operações práticas não condizem com os dados d a experiência real da o não ser é construído a partir d e u m a ideia geral d e ser q u e é fruto d a abs-
duração. Nesse caso, o u eles não existem - e são chamados d e falsos problemas tração da inteligência. P o r isso, há sempre mais e não menos na ideia de não
porque não atendem ao apelo d e nenhum dado r e a l - o u são mal formulados-já ser do que na ideia de ser. A inteligência forma u m a ideia universal d e ser
q u e resultam do equívoco q u e a inteligência comete quando trata coisas que dife- e Por intermédio d e u m a operação d e negação generalizada - q u e procede
t>Oroposição da noção universal determinada - conclui pela existência d e u m
rem e m natureza como se elas s e diferissem tão somente e m grau.
não ser, onde a negação funciona c o m o u m acréscimo intelectual. O u seja, n o
O s problemas mal formulados resultam d e mistos n ã o analisados. Se
o IICJoser há u m ser total mais a s u a negação e, além disso, o motivo psíquico
a experiência d e fato nos oferta mistos d e espaço e d e tempo, de percepçã
e lembrança; a elaboração precipitada d e problemas fundados nesses mist01 qual nós negamos. O m e s m o ocorre n a formação d a ideia d e desordem:
:o
for· neta uma ordem
p o d e m resultar n a invenção d e u m falso-problema, Vejamos u m exemplo universal q u e s e opõe a u m a desordem universal obtida
através da negação d a
necido p o r Bergson: primeira noção.
P r outro lado, podemos compreender q u e tais ilusões e m e r g e m d e
·rol l'aCi
"Tomemos u m tratado elementar d e filosofia. U m dos primei : a OCf_ni s estabelecidos a partir d a relação d e causa e efeito. É q u e quando
uJll• in tehgencia
capítulos trata d o prazer e d a dor, Coloca-se ao aluno generaliza - buscando o fundamento estável d a realidade - ,
7
Procde, estabelecendo
c:a
questão c o m o essa: o prazer é o u n ã o é a felicidade? 15 ". entre o s conceitos universais q u e ela forja, u m nexo
COn que faz c o m q u e o conceito d e m e n o r extensão seja explicado pelo
Ce1to d e maior .
157 H. Bergson, La pensée et /e mouvant, in: Oeuvres, p. 1293 (p. 1270). extensão s o m a d o c o m a sua diferença especifica. Inversa-
106 107
O Todo-Aberto Parte 2 - Da Inteligência à Intuição
mente, podemos construir u m a árvore procedendo das espécies aos . Bergson, só a intuição da duração pode evidenciar que a
· , . d estes aos generos supremos - concebidos como genero, IIA'lc10. Se g undo
mterme d•1anos, e o nada não possuem f un d amento na expenenc1a rea 1.
A
cone . , , - e m absoluta
• A •
últimos e determináveis da razão - , chegando, enfim, ao conceito univ:1loi· . funda os dois problemas inexistentes. N o
AQ U I , a ilusão do negativo ,'
d e ser cuja determinação irá induzir a inteligência a u m a operação ders
do '
bergsonismo isto con f.1gura u m a cnt1ca a to d as as mane1ras de
conJun to
gação generalizada. C o m isso, afirmamos que o processo d e generaliza _ne: se insurge contra os ra iocínios
. Çao e que procedem pela negação. Bergson
concomitante com a ten d enc1a d e 01ertar
• aos h omens u m a explicação pi do negativo o motor d o pensamento. Para ele, a negaçao posta
aus1.
A •
dade, os dados reais; contrapon do-os a noções universais que irao · experiênci a vivida - u m a multiplicid ade distinta reunida na
Pr . _ _ . - e n Q uanto ' · o mesmo se ap 1·1can d o a' "ie 1·1c1ºd a d e. E'
a s condições de u m ser dado, embora amputado das suas variações . ecisar pia•-
de um único
nome genenco,
láveis surgidas desse coeficiente de imprevisib ilidade que é a dura _ incal cu. para diferenciá -los, e, até mesmo, problemat izá-los
Çao rea experimen tá-los
·
A I e' m d'isso, a o mvocarmo s o semi querer c o m o o motivo psí . l · diferenças de natureza.
- da m • t e 1.1genc1a, mostrando o quanto ela se ilude 9Uic0,,_ o n as suas
genera 1.1zaçao A
•
quando s segu Distinguir o que difere e m natureza é u m a tarefa da intuição metódica.
. -
m d'1spoe contra a realidade movente, devemos estabelece r a razão do e definimos a intuição
como u m método de divisão. Segundo Bergson,
1.1ªllle a s suas articulaçõe s naturais, isto
entre os problemas inexistent es e os problemas mal formulado s ,
mostran. !,SSifD, rtante é dividir a realidade segundo
. oblliJO mtu1t1vo; para encon-
as tendenc1as que se apresenta m no campo
' ' '
d o c o m o os pnme1ros .
•
de -- - .
. . r o real resulta d a confusão estabeleci da n o seio da própria
quant1f1ca irara tendência das dº• 11erenças d e natureza que sao, com certeza, t empora1s.
e
metodológ icos: o espaço e o tempo, a matéria e a
riência; ali onde a espacializ ação d o tempo induziu o entendime nto a espe- Xpe. Daf 05 célebres dualismos
cular os dados da realidade c o m o s e eles portassem entre si , tão som ente, memória, a percepção
e a lembrança , as duas fontes da moral e da religião
. ..- buscando as diferenças de natu-
diferenças de grau. etc. Por não dividir as articulaçõe s do real,
s de mistos
Por isso, lutar contra os falsos problemas , contra a s ilusões conso l ida- reza, a inteligência acaba operando c o m fatos impuros, resultante
das e m u m a tendência que a inteligênci a tem de reduzir a realidade às suas mal ana l isado s.
análises espaciais e quantitativ as, d e fazer de tais dados a fundação de um
processo de generaliza ção pautado, tão somente, na semelhanç a entre fatos Problema 3: Analisar na fonte os mistos mal formulados é a condição genética
percebido s; é a tarefa rigorosa d o método da intuição. dadenúnciae da crítica dos falsos problemas que surgem quando as diferenças
Dela depreendemos a regra metodológica de que é necessário en· de naturezasão ignoradas?
contrar as diferenças de natureza para inibir um movimento quantita· Com tal questão a intuição passa a ser u m método d e diferencia ção.
tivo posto a serviço de uma totalidade abstrata. No método, torna-se important e compreen der quando a diferença é de natu-
A s intensidad es, as quantidad es, as diferenças de qualidade, serão reza e quando ela é de fato u m a diferença d e grau. Entre as duas, h á mistos
que comportam graus de diferença. O problema da diferença, insinuado no
reincorpor adas pelo método n a filosofia da duração. O fundament al é que
método, só será devidamen te elucidado quando a tendência da diferença de
a análise promova u m a rigorosa separação entre duas tendências - a que
natureza for posta na sua diferencia ção e m relação à diferença d e grau. As-
difere e m natureza e a que difere e m grau - evitando assim a confusão e n·
sbn, ao extrapolar para a esfera do tempo operações feitas c o m o propósito
gendrada por mistos que estão presentes na própria experiênci a de fato. Dito
de analisar a
d e outro modo: ao apreender mos o tempo real encontram os as diferenças de matéria, a inteligênci a recai na ilusão de tomar o tempo pelo
l!Sl)aço, ignorando a multiplicid ade temporal. É b e m verdade, e convém redi-
natureza, denuncian do na fonte d a experiênci a as ilusões engendrad as p
e lo
conjunção com a matéria, nos dará a razão do misto que engendr a o . "contato com toda u m a continuida de de durações que devemos
, d1na .
m o temporal do Todo-Aber to. Porem, metodolog icamente, tal intento . lllis. tentar seguir, seja para baixo, seja para o alto: nos dois casos
uma necessidad e de divisão, que consiste e m desarticula r O real ltllpÕe podemos nos dilatar indefinidam ente por u m esforço cada
Para coilJ.
preender as suas tendências . vez mais violento, nos dois casos nós nos transcende mos a
Assim, Deleuze tem razão quando diz que o método de divisão b nós mesmos. No primeiro vamos e m direção a u m a duração
niano é, e m u m certo aspecto, u m método de divisão de inspiração plate.rg.so. cada vez mais distendida , cujas palpitaçõe s mais rápidas do
. d. 'd· . on1ca que as nossas, dividindo nossa sensação simples, diluem a
que visa 1v1 1r um misto segundo as suas articulaçõe s naturaist 6o A f1
. " .a s o, n o s 01erece ' rrnan.
d o que a expenenc1 e:
mistos, Deleuze observa que a desartj qualidade e m quantidade : no limite seria o puro homogêne o,
lação da experiência só é possível se a entenderm os como desarticula Çao - CU- a pura repetição pela qual definimos a materialid ade. Na
" . de
tendenc1as : outra direção, encontram os uma duração que se contrai,
se concentra, se intensifica cada vez mais: no limite seria a
"Só o que difere e m natureza podemos 'ctizer que é puro, porém só eternidade . Não mais u m a eternidade conceituai, que é uma
as tendências diferem e m natureza. Trata-se, portanto, de dividir eternidade de morte, mas uma eternidade de vida. Eternidade
o misto segundo tendências qualitativas e qualificada s, quer dizer, viva e consequen temente movente e m que nossa duração
segundo sua forma de combinar a duração e a extensão definidas se reencontra ria e m nós como as vibrações na luz, e que
como movimento s (assim a duração contração e a matéria seria a concretiza ção de toda duração, como a materialid ade
distensão). A intuição como método de divisão não carece de representa a distensão dela 162".
semelhança inclusive com uma análise transcende ntal: se o
Foi isso que verificamo s na análise que fizemos do último capítulo de
misto representa o fato, é preciso dividi-lo e m tendências ou em
Matéria e Memória. Com efeito, Bergson, nesse livro - ao pensar a relação
presenças puras que não existam mais que de direito 161".
entre o corpo e o espírito-, propôs que partíssemo s intuitivame nte da explo-
Ora, nessa desarticula ção de tendências convém relembrar que na in· ração de duas tendências .
tuição é o espírito que se apreende como pura duração. Além disso, sendo Na primeira, conduziu-n os de maneira ímpar à presença da matéria
a duração uma multiplicid ade contínua - onde nela os elementos se enco n· em si. Explorou, e m tal intento, a linha da percepção consciente e obteve -
tram e m pura variação, se interpenet ram ou, preferencia lmente, se fundem como resultado da exploração - a certeza da existência de uma diferença de
uns aos outros - , a sua intuição permite-no s a apreensão do processo em &rau entre a percepção consciente e o e m si da imagem ou da matéria. Infe-
·
direções esboçadas, isto é, tendências configurad as como linhas que se ap re riu daí uma percepção pura - u m puro percepto diremos nós - que atesta
sentam pouco desdobrad as nos fatos empíricos. No âmbito intuitivo é impo
r· ªPresença de uma matéria signalética coexistindo com uma consciênci a de
tante explorar tais linhas, dissociand o-as e depreende ndo delas a sua pureza• direito, isto é, virtual. A ideia da matéria como u m conjunto de imagens mó-
Yels em constante
E m uma passagem de Introdução à Metafísica, Bergson resume de rna· interação fez Bergson afirmar uma identidade da matéria e
po r movimento , mostrando , como consequên cia, como o conjunto da matéria,
neira brilhante esse aspecto do seu método: diz que se nos instalarmos ,
eJll corno uma comunidad e de movimento s, participa igualmente da totali-
esforço de intuição, no escoament o concreto da duração, nos colocaremo s
dade aberta ou
da duração.
160 G. Deleuze, Le bergsonisme, p. 11. 162
161 Idem, p. 12. H. Bergson, op. cit., p. 1419 (p. 30).
113
112
O Todo-Aberto Parte 2 - Da Inteligência à Intuição
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Parte 2 - Da Inteligência à Intuição
O Todo-Aberto
e inferiores à nossa, ainda que, de certa forma , interiores 16s "• c o m a co 0 esforço que engendra as coisas, esses terríveis problemas recuam,
_ , nsolida. diminuem, desaparecem. Porque sentimos que uma vontade ou
çao dessa metafisica, os falsos problemas da inteligência de caem; as
. - . . genera. um pensamento divinamente criador é demasiadamente pleno
hzaçoes que mduzem uma concepção de u m real dado são desi e1tas e
. . . os de si mesmo, em sua imensa realidade, para que uma ideia de
versais o b tidos por tais generalizações são denunciados. Assi m, as preten %-
. . . , . -
meta f,1s1cas da mtehgenc1a sao denunciadas com a imagem d o pensam soes uma falta de ordem ou de uma deficiência de ser possa apenas
.
que e 1a enge, por uma intuição metódica que viabiliza a exper·,1enc1a . ento roçá-lo. Representar-se a possibilidade da desordem absoluta,
. de Ull]
Todo-Aberto. Resta, agora, exphcar o motivo psíquico - 0 sem·1 querer - ou mais ainda, do nada, seria para esse pensamento dizer-se
- . . dª que ele poderia não ser integralmente, e isto seria u m a fraqueza
1·1usao da negatividade que a inteligência engendra . Com ele ' f md amos,
, . , . , co
contundenc1a, a nossa anahse metodologica do aspecto temporal d a Intu1çao
• . _llJ incompatível com a sua natureza que é força 166 ".
, . . -
Segundo Bergson, so a mtmçao desvela completamente O mecanismo . ·
as durações nas suas diferenças
-
d essa I·1usao: se d1z1amos,
.
, a princípio, que esta se formava através d e u ma ope- A intuição que nos faz simpatizar com
- , · vontade aumentando a nossa potência de agir. Para
- .
raçao Jog1ca d e negaçao generahzada de universais tofàTizantes , acre sei·da de de fluxos dilata a nossa
. . , . , pela simpatia há a intuição de uma multiplicidade
u m motivo ps1colog1co; agora e preciso elucidar ' no pormenor ' como O moti'vo um intelecto convertido
, . de fluxos que se comunicam de
dentro c o m u m a totalidade sempre aberta.
ps1qu1co s rve de testemunho para a constatação de u m semi querer imanen-
que o real adveio de ideias
te a toda diferença obtida pela via da oposição, e da contradição como forma Com isso, desfazemos também a suposição de
possíveis. Tal suposição fazia valer a convicção de
que o todo fosse dado. A
extremada de oposição. Se no terreno especulativo nos iludimos, isto ocorre concreta fosse
inteligência por retroação construía a ideia de que a realidade
porque transferimos para a ordem metafísica a falência da nossa vontade no virtual e
a realização de u m possível através dos critérios da imaginação do
âmbito psíquico. Tudo se passa como se diante de ordens e seres múltiplos
da semelhança que advinha dessa imaginação. O u seja, caia e m u m a pré-for-
não condizentes com a ordem e o ser desejado, fossemos levados a projetar
mação ao negligenciar as diferenciações sutis que procediam da atualização
a nossa insatisfação no âmbito da natureza. Dito de outro modo: ao virmos
do virtual. Toda a multiplicidade qualitativa era traída quando negligenciáva-
entre as coisas diferenças por contradição somos forçados a conduzir a nossa
mos a diferença existente entre o virtual e o possível.
análise e m u m terreno que predomina entre a noção abstrata de ser e o seu
Além disso, toda uma concepção hilemórfica do real advinha quando
oposto o nada. Quantificamos porque ignoramos as diferenças de natureza: e só tinha
Projetávamos sobre o virtual a imagem lógica de u m possível que
ignoramos tais diferenças não só pela escolha de u m método que quantific a o existência mental. C o m isso, éramos fadados a enxergar o indivíduo - en-
tempo real ao tratá-lo de forma espacial, como também pela vontade de nega r
l!Uanto composto de matéria e forma - como a substância real e existente; e
as sutilezas do real, e que introduzem a convicção que O espírito se move po
r
o,
vamos a sua gênese pelo par que ele supostamente trazia consigo.
u m desejo de reconhecimento que é e m si u m a atividade negadora. Por iss
Em Bergson - e mais tarde, e m Gilbert Simondon 167 - o hilemorfismo é
para Bergson, a desordem e o não ser nada mais são do que negações de urna
as cado pelo fato de explicar a individuação com o pressuposto que o indiví-
realidade motivadas por uma vontade de negar que só apreende as diferenç : , s e j a uma
substância composta de u m a matéria e de formas; construindo,
entre os seres através de graus quantitativos e abstratos. Por outro lado, ª
1111• convicção
que nos conduz à pré-formação do real e que viabiliza
a
os a
I a e m que dilatamos a nossa vontade, que tende!TI
"'a m e d'd
-
rea b sorver nosso pensamento e que simpatizamos mais e rnais
p. 134).
16? - Bergson, La pensée et /e mouvant, in: Oeuvres, p. 1304 (Pensadores,
f. Gi!bert Simondon, physico-biologique, cap. 1.
165 Idem, p. 1416 (p. 28). L'individu et sa genese
117
116
O Todo-Aberto Pa rte 2 - Da Inteligênci a à Intuição
. , . , Principio p r ecis a r as
que o antecedem. Assim, o poss1vel aparece como p r m c1pio fo r m al q ue condi-s de forj a r problem a s
e m função do tempo, p r ocu r a ndo
, .
. . . . d' 'd jJllliçãO d c i ção. Nesse c a so, to r n a -se necess a n o d'1ze r
c10n a a ex1s tAenc1 a e m a to d o m 1v1 uo. M a s onde s e encont r a o possí ve1na sua d a expe r iên ci a a r a
. .
cond1çoes , . . . filosof1 a .. for-
a condiz com o p r oJeto ge r a l d a su a
• #
metodolog1c
A
,
•
l.d
1a de . _
. .
n a s uma I'd ei a no mte 1ecto de u m Deus t r a nscendente? Nesse c a so, a concep.
ape. quea fi na de u m a tot a lid a de a b e r t a , onde a c n a ç a o e u m d a do
pecer-nos as condições
_ . , . a do
to r n a nd o viável, igu a lm en,te, a toma a de consoenc1
• A •
escolhe r m os o l a do bom do misto intuímos tudo como u m p r ocesso; pensa· se esta se p r op a g a e m su a gênese po r int e r m édio de u m a expe r iência r e a l,
mos o p r ocesso de individu a çã o fazendo-se pel a dife r encia ção c r iadora de cabe saber como isto se p r ocede. Q u a l a expe r iên ci a que pe r m ite a o h u m a no
u m movimento que evolui de u m vi r tu a l pu r o a u m a tu a l p r esente, onde o ultrapassar a su a condição pel a tom a d a de consciênci a do a b e r to? Não seri a
necessár io a qui p r ob lem a tiz a r m os no po r m en o r os obstáculos que a condi-
te r m o a tu a l - como p r oduto p r ov isó r io dest a dife r enci a ção - e m n a da se as·
ção human a constitui p a r a a a b e r tu r a que conduz à comp r eensão do abe r to?
semelh a à vi r tu a lid a de de onde s a iu.
E tal comp r een são não supõe u m a disposição p a ra o novo a t r a vés de a tos
C o m ess a a m pli a ção, a intuição consolid a -se como expe r iên cia inte·
generosos que são igu a lm ente criado r e s?
g r a l. Servindo-se da inteligênci a como meio de a nálise, el a se to r n a filosófica,
vi a b iliz a ndo a construção de u m a m e t a físic a p r ecis a . Percebemos u m a a b undânci a de p r ob lem a s result a ntes de u m a filoso-
6aque clam a pel
P a r a Be r g son, t a l p r ecisã o confe r e à filosofi a u m a tr a nsm is sibilidade a a leg r i a d a c r i a çã o. Segundo Be r gson, u m a filosofi a que não
SUscite aleg r ia
ende r eçáv el a os não filósofos. S u a importânci a se encont r a no teor de aber· a t r avés de emoções e de c r iações, em nada cont r ib ui p a r a a
el(pansão d a vid a .
tu r a e inquiet a ção que a su a leitu r a pode c a usa r , pois filosofa r p a r a não li· Assim, Be r gson e spe r a que u m a filosofi a p r om ov a semp r e
Problemas
lósofos não é out r a cois a senão expe r im ent a r n a dimensão dos conceitos_ª e conceitos c a p a zes de suscit a r e m na a lm a dos seres h u m a nos
lllna abertu r
• º tênC13 a intuitiv a . Só a ssim a compreensão d a du r a ção pode consisti r
e1etuaç a- o d e u m a a b ertu r a p r om ov id a pel a potênci a de pens a r. Uma P
·
d o mconsc1ente · pu r o d e u m pensamento do tempo que consiste em reativar 168
Aqui cham a mos por étic a o que pre c isa remos na noss a quart a parte com o título
a abertur a que de di r eito const r ói os se r es vivos. f ch a da ,
eo- :.e mora l aberta . Sabemos que Bergson contr a põe esta mor a l a berta a um a ..
Assim, a ssin a l a m os no método d a intuição t r ês a spect os fundaJJl e· •tuando aquel a no âmbito d e um a a lm a a berta . Aqui, tra ta mos d e um a eti c a da
· e Je e,, a prmc1p10, , , probl
t ais: · , · u m metodo const r m do com p r oblem a s - e os abertura" por r
a zões metodológi c a s que justifi c a remo
s no final do nosso tr a b a lh o.
119
118
O Todo-Aberto
.... -
120
parte 3 - Dos Animais e dos Homens: Criação e Alienação da Vida na Natureza
O
'ç ões vitais da criação dos viventes. Ao longo da análise mostraremos
método da
'.ntuição_ é construído c o o intuito de ofertar à filosofia a evolução dos seres vivos se constitui pela criação do impulso vital, e
u m conhecimento mtegral. Ele consiste em uma experiência uma organização se consolida nesse processo evolutivo, fazendo com
ime-
diata da duração orientada por uma simpatia que confere ao ser viventes individuados se fechem nos seus respectivos mundos, per-
humano condições de apreensão de outras durações coexistentes o contato com o seu princípio criador. Além disso, trabalharemos a
com a sua. A diversidade de durações postas como superiores e inferiores à o criadora para pensarmos a individuação dos seres vivos a partir
duração humana, acrescenta-se da certeza - não menos insólita - de que tais
organismo-meio, inferindo daí uma articulação possível com a noção
durações sejam, de certa maneira, interiores. Ou seja, há uma solidarieda· do-próprio, utilizada como recurso complementar para a análise da
de exercida por ressonâncias intuitivas que tornam os seres humanos - no
ção adaptativa. Nossa meta é mostrar como a condição humana se
âmago dessa experiência integral - seres simpáticos, isto é, seres capazes lida nessa perspectiva evolutiva, para sabermos se existe nela alguma
de terem a ideia de que todas as durações participam de uma duração una, o que garanta a ultrapassagem do fechamento organizacional.
isto é, que elas são partes partícipes de u m tempo uno, simples, heterogêneo Sendo assim, nossa pesquisa será norteada aqui por três problemas
e aberto. Com tais ideias pudemos consolidar nas partes anteriores as condi· entais: não seria a adaptação do organismo ao meio uma condição
ções metafísicas e metodológicas de u m monismo temporal. ria da criação do impulso vital visto como u m movimento de diferen-
Na esfera da metafísica, mostramos - na nossa primeira parte - qu e ? E comprovando tal condição como u m "sucesso relativo" não estaría-
não havia contradição entre os ritmos atuais de durações e a existência de
bém especulando sobre uma possibilidade de estagnação da vida
uma duração impessoal concebida como totalidade aberta. Vimos comoª Via da adaptação? Como explicar a condição humana na perspectiva evo-
tese de Bergson não só confirmava a coexistência de níveis de contraçao - e Criando as condições de elucidação da adaptação e a coerência da sua
distensão virtuais de um passado puro, como garantia também que tais coe- sagem? É para explicar tais questões que retomaremos nesta parte o
. ' ·
x1stenc1as pu d essem ser relacionadas a u m monismo do tempo. Ao ap resen· ento de diferenciação.
·
tarmos esta tese, fizemos
' · · ·
um encadeamento rigoroso entre a coexiste · ·ncia
mve1s v1rtua1s se
d o ser do passado e u m movimento de diferenciaçao - que
e1az1a
. por um 1mpu
. lso posto como um virtual em vias de atualizar-s e Era a
.
vida que se apresentava nesse movimento através de um virtual auvo quese
.
122 123
Animais e dos Homens: Criação e Alienação da Vida na Natureza
parte 3 _ Dos
I
ele critica também u m certo finalismo fundamentado e m uma
i:dliOA lé rn disso,
(,OS, pção evolutiva
de causalidades finais, antecipadas por princípios prees-
d o s . Diz, por u m
lado, que a vida n o evolui nem como u sucedâneo
11ecausas atuais, nem como elementos pre-formados que se realizam - como
A Evolução como Movimento de Diferenciação de(endern os mecanicistas e os pré-formistas - ; nem evolui, por outro lado,
como propósito de realizar um projeto, segundo as teses do finalismo .
-
S
..
"A vida é tendência e a essência de uma tendência é desenvolver-
egundo Bergson, a evolução da vida - que é obra
• de um únic 0 impulso se em forma de feixe, criando, tão só pelo fato de seu crescimento,
"v1rtua l" - ocorre no vetor de u m "desdobramento
- e de uma d"1ssoc1a- direções divergentes entre as quais se distribuirá seu impulso 17º ".
ç o q e se faz por diferenciação de tendências
que se atualizam em
vias d1vergentes 169". Nessas direções, a diversidade é explicada como criação do impulso origi-
Ao observarmos com atenção esta tese, já é nário, podendo a espécie individuada ser rigorosamente pensada como u m su-
possível depreendermos
dela sua novidade: se o pensamento bergsoniano emo de criação da vida. E aqui a crítica ao finalismo ganha um sentido rigoroso:
se elabora em torno da con·
c pçao de tendência; ao pensar a evolução criadora,
Bergson torna a noção de
virtual prioritária na sua ana'l·1se, uma vez que a ''A evolução da vida não é a concretização de um plano. U m plano
natureza de uma tendência na
sua te ri: consist sempre em uma atualização é dado de antemão. É representado, ou pelo menos representável,
de uma virtualidade que se faz
por cnaçao. Esta e a perspectiva que torna a antes do pormenor de sua realização. Pelo contrário, se a evolução é
explicação das vias divergentes
um pouco complexa. Afinal, ela supõe a compreensão uma criação incessantemente renovada, ela criou, paulatinamente
detalhada do processo
de atualização, segundo o duplo procedimento as formas da vida e isto equivale a dizer que seu futuro transborda
do desdobramento e da disso·
ci,ação_ das tais tendências. Mas antes de enveredarmos seu presente e não poderia esboçar-se nele numa ideia 171
por este caminho, con·
11•
· h a, d 11
A s s 1m, ' "e re ncia çã o e ntre o virt u a l - d e o n d e pro c e u"'e- a e v o lu çã o - e a atu-
o s iv a - q u e t r a -
. . . vit a l , e s t a forç a int e rn a e e xp l
a ]'izaç a~o c n a d a q u e é o o rg a ni s m o . Entr e o v1rt u a 1p u r o - d e o nd e o mov1mento Assim, a vid a , o i m p u l s o s ta
m e lh o r , forj a n d o n e
nd o a e s t a u m a o r g a niz a çã o , o u
pr o c e d e - e a atu a lizaçã o d e s t e virt u al, a dife r e n ça e, d e n a t u re z a · 0 ir· tu a1, balha a matéri a i m p o cia-
. e
l u i dife r e n ci a nd o -s e
p o r d e sd o br a m e nt o e di s s o
c o m o t d e dife r e nç a s , sing u la rid a d e s d e t o d o s o s tip o s , c o e xis tê c i: de uma
uma individu a çã o - e v o e s e c o m p l e m e n-
. . . . ct· liz a m p o r vi a s q u e div e rg e m
m u lt1ph c 1d a d e pré-individ u a l·, 1·á o a t u a 1 e, o q u e s e md1v1du a - m o s t r a -
ção de tendên c i a s q u e s e atu a a div e rsid a d e .
. . o ntr a d o s " n o pl a n o a t u a l d
u a d o , : 1tn ; m b o r a a individ u a lid a d e nun c a e s t e j a t o t a l m e nt e c o ns: : ; d:
17 5
matéria - o vegetal sacrifica a liberdade de se movimentar, " c o n d e pelas respectivas cadeias d e elementos nervosos situadas d e
na ndo.se' 178"
a o torpor entrevisto c o m o u m estado de inconsciência. ponta a pon t a
M a s s e a essência d a v i d a é m o v i m e n t o d e diferenciação . 1é portanto , u m ser q u e age e reage, comportando
. .
este u m fl uxo exp 1os1vo d e c n a ç a~o - 1mpu . . ,
1s o q u e m s e r e n a mater· sendo o anima ,
u m interva-
ia 1.Ida. mi.nação variável consoante o desenvolvimento dos elementos
d e indeterminação e l i b e r d a d e - percebe-se q u e n a v i.a vegetal de indeter
a tnob·1
5 o s . Na
escala ascendente, tais elementos se desenvolvem a o ponto de
!idade s ó s e manifesta c o m o exceção. O trabalho d a v i d a - e a realiza . • nervoso sensório-motor, consolidando o intervalo
d a essência d o s e u i m p u 1s o - t e n ·a s e restrmg1 · 'd o p e 1a s o 1ução encont
Çao t u írem u m sistema
-1'11!" .
ra. eterminação que é característico d o s seres animados. Ora, tal mtervalo
d a n a atualização d o vegetal. M a s q u e isto n ã o n o s i n d u z a a pensar momento. Agora é preciso desdobrar a
em s t o e m questão n o seu devido
u m fracasso absoluto d o i m p u l s o n e s s a via; c o m o s e a vida no vegetal
djvefgência evolutiva. . . .
n ã o tivesse encontrado m e i o s p a r a efetuação d a s u a essência. Acredita.
Sendo assim, a o acompanhar o desenvolvimento evolutivo n a via am-
m o s n o contrário: o i m p u l s o c r i a d o r s e manMesta n o g r a u de perfeição
mal, Bergson conclui pela existência d e u m a outra dissociação q u e tem sua
a d e q u a d o à tendência evidenciada. E isto s e justifica pelo fato de que é
culminância na divisão existente entre o s artrópodes e os vertebrados. Os
d e e x t r e m a d a importância, p a r a o processo evolutivo, a função execu-
moluscos e os equinodermes, analisados t a m b é m por ele, parecem atestar
t a d a pelos vegetais; pois s e m a contribuição energética fornecida pelo
um fracasso do impulso, como se nessas duas vias a realização d a imprevisi-
t r a b a l h o d e produção d e a l i m e n t o , a tendência a n i m a l - q u e na natureza bilidade do movimento de diferenciação não tivesse alcançado n e n h u m êxito.
s e m o s t r a c o m p l e m e n t a r - n ã o p o d e r i a s e desenvolver. Eédeslindando as tendências dos artrópodes e dos vertebrados q u e alcan-
Todavia, s e a p r o p o s t a é a l ç a r a evolução à s u a instância criadora, çamos, enfim, na extremidade das duas linhas o s insetos e os seres humanos.
p e n s a n d o a s u a g ê n e s e c o m o m o v i m e n t o d e diferenciação, é na conquis· Mas como a análise bergsoniana consiste e m a c o m p a n h a r o p o n t o
t a d a mobilidade q u e d e v e m o s b u s c a r a liberdade d e criar imanente ao comum que precede a dissociação, a o n o s situarmos n a via d o m o v i m e n -
i m p u l s o . E Bergson p r o c e d e b u s c a n d o a mobilidade, a princípio, na via tode diferenciação é possível d i z e r m o s q u e o ponto d o qual a divergência
animal. D i z q u e e n q u a n t o s e r e s orientados para o m o v i m e n t o - uma vez leria saído consiste n a presença d e u m sistema nervoso sensório-motor.
q u e p r e c i s a m extrair e n e r g i a d e u m m e i o exterior - o s animais desen· Bergson diz:
volvem, a o longo d o p r o c e s s o evolutivo, m e c a n i s m o s apropriados pa ra
a realização dessa tarefa. S e g u n d o Bergson, o q u e d e f i·n e orgam·camente "nas duas linhas e m que evoluíram distintamente os vertebrados
o animal e os artrópodes, o desenvolvimento consistiu sobretudo de
u m progresso d o sistema nervoso sensório-motor. Procura-
"o que constitui a animalidade ... é a faculda d e d e utilizar se a mobilidade, procura-se a maleabilidade, procura-se a
•5
aço_e
u m mecanismo desencadeador para Converter em variedade de movimentos. M a s essa procura é feita e m sentidos
"explosivas" a m a i o r s o m a possível d e energia P º tenc1aJ divergentes 179".
se!ll
acumulada. N o início, a explosão s e faz a o acaso,
. , e!ll Nos artrópodes, encontramos u m sistema nervoso descentralizado,
poder esco Ih e r s u a d .ireçao:
~ assim e q u e a a meba lançantoS
todos os sentidos a o m e s m o tempo seus pro 1on gamesérie llllefaz com que a atividade motriz s e divida entre u m número variável d e
pseudopódicos. M a s à medida q u e n o s elevamos 0ª,!llef!l li. Bergson,
animal v e m o s a própria forma d o corpo esboçar certo_n ]adai L 'Évolution créatrice, in: Oeuvres, p. 597 (p. 111).
ldern, p.
607 (p. 122).
d e direções b e m determinadas ... Essas direções são assin
131
130
O Todo-Aberto
parte 3 - Dos Animais e dos Homens: Criação e Alienação da Vida na Natureza
atividades capazes d e assegurar a sua sobrevivência. Nos outros h ' ahZar A e v ol u çã o n a extremidade das duas linhas exploradas d á a Bergson
, a um s1s-
.
tema nervoso centralizado, .que faz c o m q u e a atividade motriz se loc e s de avaliar
o s seres humanos e o s insetos nos seus respectivos
a1.1zeeto
faces que executam diversas funções, a o m e s m o tempo e m que faces s. ora, quando Bergson consolida a s u a análise ele profere a tese d e
riais se especializam n o trabalho d e recepção d e estímulos. N a extrerns:dnso. suc e s s o adaptativo venha a ser u m a espécie d e fechamento e m relação
1 ade
dessa linha encontramos o homem. C o m o vertebrado superior ' e poss u lso criador. Defende a ideia d e que o vivo b e m sucedido se aliena d o
u1ndo
u m sistema nervoso centralizado, o h o m e m torna evidente o trabalho 0 ao ficar fascinado pelo meio devidamente conquistado. Diz, sobre-
. . . t e 1·1gencia. que
nessa via o 1mpu 1s o executou: trata-se d a genese d a m •q u e cada espécie s e comporta c o m o s e o movimento geral d a vida s e
A
A
C o m ela, o conhecimento alça-se n a esfera d a representação orgânica, e nela e m v e z d e atravessá-la. S ó pensa e m si m e s m a , s ó vive para si
estando a inteligência n a função d e presidir ações - por intermédio de cálculos
e invenções - c o m o propósito d e dotar o ser humano d e u m rnaiQr poder sobre Como na nossa análise visamos a ultrapassagem desse fechamento
a natureza. A l é m disso, é preciso relembrar q u e graças à inteligência vimos no evol u ção criadora, e tal evolução s ó é possível pela tomada d e consciên-
h o m e m u m coeficiente d e indeterminação maior: a o contrário do instinto, a impulso feita pelo h o m e m , é n a tendência q u e culmina n o humano q u e
inteligência fabrica o s instrumentos c o m o s quais ela irá dominar a matéria. emos a tese capital d o nosso estudo. Para tanto, é preciso entender
N a realidade, a s coisas são mais complicadas: o que falávamos antes rmenor o fechamento significado pela adaptação a o meio nos seres vi-
acerca d o animal e d o vegetal vale agora para esta nova dissociação: o pro- 111Ma possibilidade d e q u e isto ocorra c o m o s homens.
gresso s e fez gradativamente, pois essas duas potências se encontravam con- Além disso, a consecução desta análise supõe u m procedimento repar-
fundidas. E c o m o toda dissociação s e faz p o r predominância de tendências, lilferem etapas: e m Bergson a avaliação dos seres h u m a n o s vai ser desdobra-
é possível, t a m b é m , afirmar que algo d o instinto se encontra n a via da inteli- daem uma avaliação d o s impasses encontráveis nas sociedades humanas; o
gência, e vice-versa, m a s s ó que d e forma latente o u virtual. queirános remeter a u m a comparação inevitável c o m a vida dos insetos. M a s
itonós faremos n a parte posterior.
" O fato é q u e inteligência e instinto, tendo começado por Agora, nossa m e t a consiste e m u m a avaliação preliminar dos m u n d o s
interpenetrar-se, conservam algo d e sua origem comum. Ne • s e fecham quando o s viventes se adaptam, e d o s impasses d a inteligência
u m a n e m outro jamais se encontram e m estado puro ... Não ha ttlassuas prováveis estagnações. Pois c o m ela é possível avaliar - pela con-
inteligência onde não s e descubra vestígios d e instintos, nem diçlohumana - o fechamento e a condição d e ruptura.
·a de
instinto, sobretudo, q u e n ã o esteja envolto e m uma franJ
inteligência 180 ".
132 133
parte 3 _ Dos Animais e dos Homens: Criação e Alienação da Vida na Natureza
II
· " d a v1'd a que ma is
te,no reino animal - consolida um aspecto " reativo
sera por nós confirmado como um tipo de "alienação".
procederemos mostrando como ela se fundamenta e como sua fun-
tação faz diminuir o horizonte, restringindo a vida a u m honzont r_e-
Mundo-Próprio e Horizonte Relativo e estreito, onde nele, a labuta com a matéria assinala uma restnçao
nte ao vivente que ocorre igualmente no ser humano. Assim, propomos
H
ente uma distinção entre a intuição do absoluto e u m horizonte rela-
á em Bergson uma crítica feita à inteligência que a partir de uma série de características.
corre o risco de . _ .
passar-se por superficial se não avaliarmos no pormenor Em primeiro lugar, o absoluto coexiste com a cnaçao do impulso como
da sua ento de diferenciação pleno de virtualidade. Ele consiste quando
obra onde ela se sustenta. Com efeito, os mecanismos
adaptativos ·mento é elevac!o ao infinito, dando testemunho de uma consciência
acrescidos do egoísmo "interesseiro" da inteligência
se assentam que é, de direito, coextensiva à totalidade. No horizonte relativo há
em um certo aspecto da vida que em Bergson se
traduz por uma forma de
"estagnação". Como é possível compreendê-la? ira. O que se eleva depende de um observador parcial posto como u m
Fizemos, na parte anterior uma descrição do movimento de ação. Aí, o movimento tende a configurar-se como algo que se faz
de diferen· ·r de um móvel, reportando-se a u m ponto de ancoragem que lhe dá
dação, buscando justificativas para a tese da criação
e argumentando, em
contrapartida, u m fechamento parcial consequente ções de normalidade.
da adaptação da espécie. Em segundo lugar, no absoluto o universo é descentrado, ele é sem
Entretanto, com a descrição dos sucessos parciais
da vida a adaptação foi en·
tão justificada, mas não totalmente explicada, por excelência, sendo a sua intuição uma integral dos movimentos
segundo os ditames da evolu· ivos, qualitativos e evolutivos, expressões de uma variação universal
ção criadora. Onde reside isto? Haveria
um processo inevitável de alienação a
da vida resultante de u m certo apego do vivente ao mudança pode ser captada por uma intuição. Já no horizonte relativo,
seu mundo consolidado? se relaciona com o ponto de vista do observador que representa o todo
E como ele se consolida?
função de um centro que, mesmo sendo pensável como móvel, produz
Nesta parte, analisaremos o par indivíduo-meio
nos seres viventes curvatura no universo.
para esclarecermos aspectos da condição humana.
Procuraremos colocarem Enfim, o absoluto não pode ser dado, mas se exprime como mudança
evidência as condições orgânicas da inteligência,
colocando em análise a con· IJtalitativa
figuração do mundo-próprio onde os seres vivos se de tudo que se move, sendo em essência aquilo que a intuição
alocam. Começaremos, quando simpatizamos com o aspecto temporal da realidade. Assim, do
portanto, com distinções, e m princípio, válidas para
todos os animais. ""'Junto das imagens-móveis que exprimem uma mudança qualitativa no
Sendo o animal u m ser voltado para a ação, ele deve
. . ser compreen
d'
1dO
Ilidoou na duração, às imagens-vivas - que são, sem dúvida, criação de um
nos mews em que vive. E aqui,. para procedermos com ngor,
.
devemos reto· 'rnento de diferenciação a partir de monismo temporal - paira a convie-
mar as características do ser animado à luz do seu do
caráter orgânico. sen de
assim, os aspectos utilitários, as bases daquilo que ue tudo dura, isto é, de que existe no universo uma abertura onde 0
no humano engendra a Po inscreve a sua novidade.
134
135
O Todo-Aberto parte 3 - Dos Animais e dos Homens: Criação e Alienação da Vida na Natureza
N o horizonte relativo, temos o mundo-próprio material ins p "a reação se simplifica o suficiente para parecer quase mecânica;
d e u m a determinada matéria o u i m a g e m móvel que se edif'ica n a c oarave1
e
entretanto ela hesita e tateia ainda, como se permanecesse
-
daçao atual d e u m organismo. A passagem d o absoluto para 0 h _nsolj. voluntária ... N a presença de u m a substância que lhe pode servir
. . 0rizo
· e m Bergson, comc1de
re 1ativo, .
c o m o processo d e atualização do virtual nte de alimento, ela lança para fora filamentos capazes d e apreender
. . , O
h o n z o n t e re 1ativo e o mundo próprio consolidado c o m o orga nismo
· e agarrar corpos estranhos. Estes pseudópodos são verdadeiros
, , . , . adap.
tado a m a t e n a . U m a espec1e d e natura naturada? Sim, e além dis órgãos e, consequentemente, mecanismos; mas são órgãos
so, Ullla
possibilidade d e alienação q u e a d v é m dos sucessos adquirido s na temporários, criados pelas circunstâncias, e que já manifestam,
. ." . . orde111
d a vida dos seres dotados d e consc1enc1a. Assim, o horizonte rei ativo parece, u m rudimento de escolha 183".
. e111
Bergson p o d e s e r devidamente descrito c o m o inseparável da consolida
Çao Sendo assim, u m a diferença da vida pelo intervalo de indeterminação
dos interesses práticos que justificam e certificam a adaptação · Ne ss e caso
u m a breve recapitulação desta teoria v e m esclarecer u m novo aspect o acer- CO,lllprova em Bergson a ideia de que o organismo - mesmo o mais rudimen-
. - iar-traz a marca d o impulso criador; muito embora, n a esfera da adaptação,
ca d a gênese d a inteligência no ser humano.
ela.tenda a ser coligida pela representação d a realidade e m função dos inte-
O horizonte relativo no mundo-próprio resses práticos.
S e a matéria-viva comporta u m intervalo de movimento, é neste que No produto dos organismos b e m adaptados assistimos a restrição d o
entrevimos u m a separação entre movimentos recebidos (percepção) e movi- mteivalo às especificações das funções que s e encarregam de reproduzir as
mentos executados (ação). O vivo - e c o m mais forte razão - o ser humano é ações indispensáveis para o sustento d o ser vivo. É b e m verdade que n a esca-
u m ser d e ação retardada: ao receber estímulos hesita; escolhendo a maneira laascendente da evolução a especificação das funções aumenta inegavelmen-
d e reagir à situação material. lllocoeficiente d e indeterminação. Mas isto não deve nos fazer prescrever d a
Ora, é certo que o intervalo d e indeterminação possibilita a intuição aúlise a ideia d e q u e a adaptação - c o m o tendência atual do acoplamento
de u m coeficiente d e ação imprevisível d o h o m e m sobre a natureza. Oco rre vida-matéria - faz c o m que a representação encontre suas bases n u m a certa
organicidade que fecha o vivente para o impulso d e onde ele procedeu.
que, no progresso contínuo das respostas, a hesitação tende a ser diminuí d a
pelos relativos sucessos adquiridos nas respostas acumuladas. Além disso, Enfim, há u m trabalho de especificação das funções orgânicas - e este
há u m triunfo d a assertividade que volta a consciência para os sucessos ad· trabalho é inseparável d a constituição d e u m meio morfogenético - a o longo
do qual vemos surgir, c o m descrições mais detalhadas, u m mundo associado
quiridos no domínio da matéria. O u seja, a indeterminação lograda pela vida aoprocesso
inclina-se para a assertividade n a exata proporção e m q u e o ser vivo vai s
e de organização. Ora, é e m função dessa organização que o contí-
lllo mat e rial vai ser enquadrado e moldado à s exigências d a representação;
adaptando ao meio. Configura-se então u m a tendência cuja explanação p
o de
queª necessidade
ser estendida à totalidade do reino animal, sendo a sua consequência o fecha· permite a compreensão d e que as imagens percebidas
: : condicionadas pelas ações possíveis d o nosso corpo sobre elas. A utili-
mento social no qual cairá o ser humano.
Por isso, definimos o horizonte relativo, a princípio, segundo as neces· fundada no aparelho sensório-motor é, segundo Bergson, u m fenômeno
hiiane nt e
1ª 0 0 ao reino animal e u m a possível condição de fechamento para o ser
sidades orgânicas, colocando-o presente n a sua forma rudimentar no P
do· no. Fechamento relativo, diga-se d e passagem, j á que existem relações
elementar dos organismos mais simples. Sua base é sensório-motora, seu, ·a feinPl e m . .
, . , tilitafl e n t ares quando pensamos tais seres vivos n o plano da natureza. O
mm10 e a necess1'd a d e engendrada pelos hábitos. A atenção à v1·d a u . nfo
trtU
constrange a liberdade ao reduzir o espírito ao orgulho exclusivo de
H. Bergson, L'Énergie
sobre a matéria. É o caso da ameba por exemplo: nesta, spiritue/le, in: Oeuvres, p. 821 (Pensadores, p. 73).
136 137
O Todo-Aberto e dos Homens: Criação e Alienação da Vida na Natureza
parte 3 _ Dos Animais
fato é que há um processo gradual de organização que constitui 0 o teor da indeterminação. Assim, os horizontes re-
' corpo e a é va n·a'vel, segundo . . , . , .
·
ma t e' n·a CJrcun d an t e on d e a v1·d a se d es d o b rara' em vanos· meios1a4 das espec1es encontrave1s na natu-
. . ....,5 deve m se dizer da vanab1hdade .
. . .
tumtes d a orgamzaçao. - M e10s. internos,
. externos, associados e inte consti .,..- variedade dos mundos - aqm defm1dos como
rrnecti' . - ; apa r e cendo através da -
rios que sustentam a compreensão detalhada dos aspectos propostos a- ._.
ci·ados aos organismos - com u m grau d e m .
. d etermmaçao re 1a t·1vo
nossa mvest1gaçao,
. . - f un d amentan d o o mun d o propno , .
onde os sere s
Pela fiJiOSasso
V)Vos s empre
crescente.
rea 1.1zarao - s·1gamos na d escnçao
- as suas f unçoes. . - d e tais
. mundos. - Por exemplo, no horizonte relativo a restrição perceptiva é factual. E
No que tange ao aspecto imagético da percepção, isto é, ao seu aspect escala evoluti-
ra ela possa variar segundo o teor de indeterminação da
luminoso, o vivo fornece a placa sensível opaca para que a imagem se reflj à instância do humano, há, indubitavelmente um ciclo percep-
flQ e se eleva ,
circunscrevendo o mundo-proprio. Bergson dº1ra' que " uma 1e1. .ngorosa
Como a matéria é em si vibração luminosa difundindo-se através de linhas
de
luz, a imagem percebida pelo vivente é a própria imagem refletida no espe- de ação de que o
: U 1a a extensão da percepção consciente à intensidade
lho da necessidade, sendo, portanto, subtraída de tudo, '{uilo que não serve retardo da resposta maior será
servivo dispõe ". Assim, quanto maior for o
186
aos interesses do ser vivo. Tudo se passa como se em relação a esse aspecto
aextensão perceptiva. Na ameba supracitada o organismo é rudimentar e,
da matéria luminosa o vivo retivesse, refletindo, tudo o que lhe interessasse, porisso, o campo perceptivo é restrito, uma vez que nele o estímulo percebi-
deixando-se atravessar por tudo o que não fosse do seu interesse. É a cons- do é tátil e a resposta é quase imediata.
ciência - restrita ao intervalo - que agora está sendo descrita: seletiva por
excelência, recolhe do mundo sinais característicos em função das ações uti- "Mas à medida. que a reação se torna mais incerta, que dá mais
litárias que o vivo promove para garantir a sua perseverança 185. lugar à hesitação, aumenta também a distância na qual se faz sentir
Ora, a operação que preside os mecanismos adaptativos da vida pode sobre o animal a ação do objeto que o interessa. Através da visão,
ser novamente confirmada como uma subtração da totalidade do universo. através da audição, ele se relaciona c o m um número cada vez maior
Esta subtração - como já vimos na parte anterior - é inseparável de uma de coisas, ele sofre influências cada vez mais longínquas. A parte
restrição temporal, onde o interesse impõe à consciência uma alienação de de independência de que um ser vivo dispõe, ou, como diremos, a
si. E é nesta subtração que situamos a nossa análise do horizonte relativo. zona de indeterminação que cerca sua atividade, permite portanto
Assim, diremos, com os aspectos precedentes, que tal horizonte se constitui avaliar a priori a quantidade e a distância das coisas com as quais
consonante às consolidações das necessidades vitais. ele está e m relação. Qualquer que seja esta relação, qualquer que
Notamos aqui a complexidade d a análise bergsoniana: se por um lado seja portanto a natureza íntima da percepção, pode-se afirmar que
há um limite perceptivo fixado pelos interesses práticos, por outro lado, eSte a amplitude da percepção mede exatamente a indeterminação
da ação consecutiva, e consequentemente enunciar esta lei: a
184 Evocamos tais meios com o propósito d e exemplificar a ideia de que a con5títui: percepção dispõe do espaço na exata proporção em que a ação
do organismo pelo impulso vital é inseparável da proliferação dos meios 1nd15:adt dispõe do tempo 187".
sáveis para que este organismo se adapte. Sabemos que a descrição desta van da na
pode ser inferida da filosofia bergsoniana, não estando, é bem verdade, defini rsos
obra dele segundo a nossa alusão. Para uma compreensão detalhada dos,,divelivro
is o horizonte relativo: com a necessid de ele se_ atu:liza e m fun ão
do carater
meios aqui aludidos recomendamos a leitura do platô "A geologia da moral n to na seletivo do ser vivo; com o grau de mdetermmaçao ele se defme
intitulado Mil Platôs de Deleuze e Guattari. Aqui proporemos um detalhame
ideia de mundo próprio. , 0e 186
- · · Materi
185 o b re a d e f.m1çao
S · - d o vivo
· como centro d e açao ver o primeiro cap1'tulo de 18? H. Bergson, Matiére e Mémoire, p. 182 (p. 21).
Memória. Ibidem.
138 139
da Vida na Natureza
Animais e dos Homens: Criação e Alienação
O Todo-Aberto parte 3 - Dos
é o paladar, e sim a
pela amplitude do campo ·mal sugando líquido quente (pois o sinal não .
, perceptivo. Mas em ambos os aspecto s ele se ct·1Zte- 0an1
. . · assim a satisfação de suas necessidades.
1a t.1vo aos interesses prat1cos, constituindo-se
, . como um h onzonte cu rvo tura,) cumprindo .
. pelos mteres-
se atualiza
.
. nos mundos mseparave1s das diversas espécies d os que o carrapato percebe, é afetado e age movido
, seres vivos.
. 8 verdade, um rela-
.
N este aspecto, ha diversos horizontes relativos, tão diversos quantos da espécie. Neste vetor adaptativo um certo apego traduz
·cos lado,
sao os forma de vida adaptada à matéria. Por outro
membros das espécies animais. sso do impulso na
necessidade, faz com que vejamos o mundo
E aqui justificamos com Uexküll a noção que conceitua com Prec". 0 do espírito à esfera da
. . de horizonte isao mínima e coerente marcada pela repetição
nossa 1de1a . relativo: mundo-próprio 1s s _ Convém notarmos ato com uma diversidade
. que mundo fechado pelos seus interesses,
as suas análises coincidem com - alguns aspectos das análises bergsonianas que O prendem e o atam a um
. . . .. também pela esfera do seu interesse.
S e ms1st1mos na sua ut1hzaçao o fazemos para ensejar uma ênfase a mais. nas ndo-o a um outro ser vivo
ser estendido à totalidade do reino animal.
a 1.1enaçoes
_ nas quais a vida recai por força das estagnações. E isto em Bergson pode
se encontram vinculados pela
Assim, para Uexküll, cada animal existente na naturezaJe .-, encontra 1.1ga. forma, os animais bem sucedidos
, . animais através do instinto que se
d o a u':1 mun o-propno, de modo que admiti-lo como estando conscientemen- ção ao mundo físico e aos outros
Da mesma maneira, os animais
te em mteraçao com a totalidade do meio ambiente significa ignorá-lo como produzindo fechamento orgânico.
sinais perceptivos indispen-
c_entro de ação rea , nde ele figura não como objeto do nosso campo percep- alimentam de vegetais têm nestes os
Sendo assim, é legítimo per-
tivo, mas como su1e1to do campo perceptivo imanente às suas necessidades. à manutenção das suas necessidades.
teremos que analisar uma
Ue ll afirma que devemos levar em conta que "cada ser vivo é um sujeito, : é idêntica a condição humana? Ou nela
é possível inserir o hu-
que vive num mundo que lhe é particular, de que ele constitui o centro 189". complexidade? Veremos; por um lado, como
fechamento deste sobre
Vejamos o famoso exemplo do carrapato: da diversidade das imagens nessa análise; colocando os perigos de u m
inteligência. Por isso,
móveis que é a matéria, podemos dizer que o carrapato só distingue três; pois undo-próprio presidido por interesses da sua
desenvolve as suas
o seu mundo-próprio é constituído de três sinais perceptivos e afetivos qu e ma princípio observar que o meio onde o humano
matéria que pode ai-
compõem, no conjunto, o seu horizonte relativo. Sendo cego, surdo e mudo, entações - tendo em vista um conhecimento da
ambiente definido
ele distingue na diversidade da natureza tão somente luz ácido butírico e à esfera da inteligência - não é nada além do que o
práticos
rior de um mundo-próprio condicionado pelos interesses
1
sangue quente. Segundo Uexküll, quando afetado pela luz solar, o carrapato inteligên-
se move em direção aos galhos mais altos de uma árvore, com o propósito efinem a ambição de conquistar as funções da matéria. A
da matéria
de ficar próximo à luz; ao passar embaixo da árvore um animal de sangu e nesse aspecto, fundada sobre uma determinada tendência
um
quente, exalando suor, o carrapato se vê afetado pelo segundo sinal, pondo-s
e a ela se molda, inventando vantagens que outorguem ao homem
o·
então em movimento ao deixar-se cair no pelo do animal; em seguida, pr Ço na conquista do mundo físico.
o hori-
cura entrar em contato com a região onde o terceiro sinal perceptivo se dará: Por outro lado, se a indeterminação é de fato maior - já que
relativo do humano tem uma maior amplitude, pois o seu coeficiente
que
previsibilidade é incerto - é igualmente factual a constatação de
cujo
i determinação sofra pelas vicissitudes da adaptação uma restrição
188 J. V. Uexküll, D s animais e dos om_ens, cap. 1. Seguindo a tese deste et Iogista, u:
zaremos a noçao de mundo-propno para tecermos nossas consideraçoes acercmas , no espírito, será, na verdade, uma alienação de si pela delimitação dos
teona . b ergsoniana. E, sabido que Bergson não utilizou esta palavra,
. do ser vivo sses práticos e sociais. Este é, no nosso entendimento, um obstáculo
rele
se en t rar os no pormenor do conceito cunhado pelo etologista, veremos se nte à condição humana. Nele preside a exigência dos interesses práticos
adequado a tese aqui desenvolvida.
189 Idem, p. 31.
ºduais e também das obrigações sociais.
141
140
O Todo-Aberto parte 3 - Dos Animais e dos Homens: Criação e Alienação da Vida na Natureza
o r através
c o m e la c o n h e c e m os o funci o na m e nt o d o s fenôm e nos físic o s, te u m a ali e naçã o n o human o ist o s e justifica m e lh
. . , . . , . , c enctOª Mas se eXist e e nta c o m o u m a p o s-
n a para m e lh o r d o m ina-l o s. A int e hg e n c 1a c o n str o i - c o m as Operaçõ teo . da consciência t e m p o ral do t o d o q u e se apr e s
es Ptáti. 11se 1enaça~o a1· d a d e
c a s q u e lhe sã o naturais - as c o n d içõ e s d e r e c o n h e cim e nt o da r e a . a m e nto. Nest e caso, p o d em o s reler esta a 1·
h d a cte de do p e ns ra
, e x 1g
subm e t e, -la as
. , . Para rep e tir a intuiçã o d o T o d o -Ab e rto, para c o n s o lid a
e nc 1as d a n o ssa r e p r e s e n taçã o .
0 mod o . Basta
impõ e m a o humano
Ou seja, p e rc e pçã o , m e m o rizaçã o e r e c o n h e cim e nt o são ativid ades outrde que o s inter e sses funci o nais d a int e lig ên cia
. , . que
n o h orn e m t e, m na int e 1.1ge nc1a sua f unça_ o l e g isla d o ra . E e sta l e g is la vi d a e spir itual.
Para for. - : e n a ç ã o da
nec e r a e l e c o n d içõ e s mais e ficaz e s de funci o na m e nt o . Com o a b ase
deste
. mundo-próprio
jovimento de diferenciação e
.
c o nh e c im e nt o c o n sist e e m u m c e rt o us o d a m e m ór ia , as imag e n s-! e m b re.
. , . . . . rança a d e na c o n sciê n cia
o d a m e m ó ria e d a afetivi d
e v o ca d as p e l o s inter e ss e s prat1c o s o u p e la s v1c1ss1tu d e s d o ser hu _s Se d e dir e it o a int e graçã
,. ~ a o virtual d e u m passad o pur o ; por o utr o lad o ,
s e m duvi d a, e x tra ço e s r e p r e s e ntaci o na is que faz e m d o passado um a coletâ. p115con duz , P e la intuiçã o: ., , . . , . ,
n e a d e fat o s que foram pr e s e ntes, anulan d o a p o ssib ili d a d e da e xp enenc ., . da p e rc e p çã o a luz d 1afana d e u m a
matena v1bratil - at_rav_e s d a
. 1a aextensão patent e a i d e ia o n -
o v im ent o qu e lh e é imanent e - t o rna
int e g ral d e u m passa d o pur o . apreensão d e u m m
que, por isso m e s m o , o t o d o nã o p o d e s e r d a d o .
Ora, d ito desta m a n e ira é p o ssív e l e st e n d er a t ; ; b e rg son ia na da i6 ·ca de que tu d o dura e
b)gI ,.
o faz sup o r a e x 1st e n c1a
• A •
funçã o a d a ptativa d a int e lig ên cia à vi d a d o s animais e m g e ral. N e sse caso Nest e asp e ct o , a intuiçã o im e d iata d o e s p m t
d o s int e r e ss e s prátic o s e xist e m asp e
c-
a c o ns o li d açã o d o s m u n d o s-p róp ri o s d o s animais sã o c o ns e quê ncias e deum todo d u ráv e l. A q u é m o u além
, igualm e nt e , u m a participaçã o
B e rg s o n d e u m triunfo adaptativ o . A manutençã o d e ste triunfo ocasiona 1 tos subjetivos puram e n te t e m p o rais, hav e n d o
com o v i m o s, u m fecham e nt o e u m a s e d im e nta çã o d a vi d a o n d e nele o ani- inegável da matéria n a duraçã o d o univ e rs o .
s c o l o ca e m
mal s e fecha fascina d o p e l o mundo qu e ele p ô d e c o n qu istar, p e rd e ndo con- Na e sf e ra d o viv o a condiçã o t e m p o ral d a p e rc e pção n o
o n , d iz
tat o c o m o r e sta n t e d o impulso o rig in a l. S e n d o assim qual é a situação da uma outra c o m pr e e n são d o s s e r e s vibrát e is que nós s o m o s. B e rgs
c o n d içã o humana?
e s de
Dir e m o s q u e n o h o m e m a c o isa é mais c o m plicada : há n e le uma possi· "qu e p e rc e b er c o nsist e ( ... ) e m c o n d e n sar perí o d o s e n o rm
mais
bili d a d e d e c o nv ersã o d a int e ligên cia à intuiçã o - e e sta é a aposta c e ntral do u m a existência infinitam e nt e d ilu íd a e m alguns m o m e nt o s
n o sso trabalho - , m a s há, igualmente, a p o ssib ilida d e de u m p r e domínio da d iferen ciad os de u m a vi d a mais int e n sa,
e e m r e su m ir assim
int e lig ência c o m a sua c o n s e qu e nte submissã o a o s int e r e sses da vida social. u m a história muit o l o nga 191".
Quan d o e sta última p o ssib ili d a d e passa a p r e d o m ina r, fixan d o os interesses
Além d iss o , c o m a intuiçã o d e qu e a m e m ória c o e x ist e c o m o p r e s e nt e
d a e spéci e n o d o m ín i o d o s int e ress e s prátic o s, o c o rr e , c o m o já vimos, uma
ese cond e nsa na m e d i d a e m qu e s e c o ntra i nesta p o nta por nós chama d a d e
c e rta ali e na ção d o human o qu e s e rá d e nu n cia d a através d e uma intuiç ã o Presente viv o ; a p e rc e p ção passa a s e r apr e cia d a c o m o u m f e n ôm e n o q u e
oriunda da e xp e riên cia ime d iata. O fato é que a int e lig ên cia aí op e ra te0dº dura, isto é, c o m o u m a multiplici d ad e d e excitaçõ e s c o ntraí d as e fun d i d as
e m vista u m a t e n d ên c ia a c o m p r e e nd e r o espírit o c o m noçõ e s e spa ci ais, m ·
o
numa impr e ssã o qualitativa int e rn a.
vida p e l o intuito d e ad e qu á-l o a o m u n d o físic o . R e d uz, pl e na m e nte o univer·
p r te . E isto val e igualm e nt e para as quali d a d es s e n sív e is. B e rgs o n nã o acr e -
s o t e m p o ral d a d uraçã o, m o l d a nd o -a s o b r e as açõ e s utilitárias. Ora, na a dita, como já m o e b i-
stram os - que as quali d a d e s s e nsív e is d as imagens p e rc
ant e rio r, d enu n c ia m o s essa o p e raçã o c o m o u m a ilusã o . Mas ag o ra dizemos das sejam acréscim ta,
e s r e p r e s e ntacio n ais d e u m a c o n sciê n cia. A t e s e i d e aliS
que a ilusã o é inseparável d e u m a t e ntativa d e normalida d e qu e result a ,
o
fl0
última instância, e m u m fecham e nto d o human o qu e busca u m e qu il íb
191 H
c o n s e rva d o r n a a d apta çã o à reali d a d e . · Bergson, op. cit., p. 342 (p. 171).
145
144
O Todo-Aberto
Animais e dos Homens: Criação e Alienação da Vida na Natureza
parte 3 - Dos
que consiste e m colocar as qualidades no cerne d a consciência particular, conso-
, r eserv v1·t a I, m a s q u e se a c o m o d a m e m ,u m ritmo .
para o mundo material quantidades e extensões concretas, parece-lhe ando iJIIP ulso sobre as coisas. E p o r isso
, .
que e no mtenor
convincente. Afinal, se n a consciência só encontramos qualidades Pouco pela aça- 0 d o ser vivo .
s e u sucesso adaptativo e se
sas e heterogêneas, e n o m u n d o quantidades extensas e homogênea
n-ªº ext
en. rnun do-próprio q u e a vida garante o . - 't .
s, coni seu coeficiente d e novidade. Por outro lado, a v a n a ç a o n m i c a
explicar a passagem d e u m a ordem à outra? Equacionar através de llled· 0 do .
. assinalar para c a d a espécie u m a duração irre d ut1ve , l - pois
1enomenos ps1qu1cos ancoran d o-os e m u m su b strato puramente fisi Idas Permite . . .
• h , •
o 1,ogico
. e ntre as maneiras d e sentir, d e perceber e d e agir diferem a s
não parece ser, para Bergson, u m a boa solução. E m contrapartida
ele mundos-próprios distintos - faz c o m q u e ss1s-
-la encontrado no aspecto contraente d a subjetividade. A qualidade
• cre tê ·es alocando-as e m
em ideia d e q u e existem muitos m u n d o s n a atualidade
c o m o contração d e u m a multiplicidade d e momentos d a duração ma scom co nvl· cção a .
testemunham pela existencia d e
h
t e: ::
Ora, nessa tese h á algo d e extensivo n a qualidade, o que nos leva a compre-
ender u m a heterogeneidade menos tensa n a matéria. "A matéria converte-se 5 fluxos temporais.
dos
Nesse caso, u m pluralismo temporal se estabelece n o nível atual
assim e m inumeráveis estímulos, todos ligados e m u m a continl:l:it¼ade inin- rítmica pode_ser sus-
dl,el'SOS mundos-próprios. E é aí que u m a dive sida e
terrupta, todos solidários entre si, e que se propagam e m todos os sen t idos d duraçoes - d e
lllltlda. Além disso, convém dizer que essa diversidade e
c o m o tremores" 192, sendo as qualidades sensíveis o resultado destes t remo- mo-
rdo com a tese das coexistências virtuais - se produz n o resultado d o
res contraídos pelo espírito n u m momento único d a sua duração 193.
: e n t o de diferenc\f}ção q u e procede dos graus d e contração variáveis d o
No plano temporal os afetos são devires. Eles se encontram no intervalo
tDdo temporal. Como se a diferença entre os fluxos d e tempo atuais remetes-
de movimento entre o passado imediato dos fenômenos percebidos e o futuro
sem intuitivamente às tensões variáveis d e u m todo q u e não para de se divi-
iminente das ações que serão desencadeadas. Para u m espírito conscien t e de
dir em tais ritmos. Ora, 0 q u e se insinua como movimento d e diferenciação
si, votado à apreensão d a afetividade na via d o intervalo, o afeto nos abre a pos-
no plano material é, c o m o vimos, a vida. Concebida c o m o impulso originá-
sibilidade de análise d e u m a outra linha cujo prolongamento irá nos conduzir
rio,ela se desdobra e m u m a multiplicidade d e durações q u e se atualizam,
ao abismo de u m ser d o passado equivalente à totalidade d o tempo. constituindo a diversidade dos mundos-próprios. Ora, c o m essa releitura, o
E aqui chegamos novamente à ideia d e duração como multiplicidade mundo-próprio é a resolução dos problemas inventados pelo próprio impul-
qualitativa e de fusão, multiplicidade esta onde o s termos se diferem em na- so ao longo de sua aventura evolutiva. Enquanto produto d a sua adaptação,
tureza, e onde eles s ó se dividem mudando. A repetição agora dos aspectos o mundo-próprio pode ser visto como u m meio anexado que faz parte d a
já ensaiados na nossa primeira parte, deve-se ao fato d e termos aqui escla- estrutura morfogenética d o ser vivo organizado. Ele se constitui ao m e s m o
recido aspectos fundamentais n a evolução d o h o m e m e d a vida. Ou seja, há tempo em que as funções orgânicas entram e m u m trabalho de organização,
d e direito u m conhecimento d o todo que a intuição pode evidenciar quandº CUlo propósito é O d e assegurar a realização d e todas a s necessidades ener-
nos desinteressamos provisoriamente dos aspectos utilitários da vida. Nesse &éticas do animal. Sendo assim, o mundo-próprio se produz conjuntamente
conhecimento ampliado advém a certeza de que o todo não pode ser d a do. COrn a instituição d o organismo.
Ocorre que d e fato a restrição d a via utilitária faz c o m que o vivente Na medida e m q u e as funções orgânicas s e subordinam ao plano d e or-
se feche para o impulso virtual movido pela necessidade d e se adap t a r ª0 llanização, resultante d o triunfo d o organismo, a s funções espirituais também
me10.
· S urgem entao- n·t m o s part1cu - con dicionado5
- q u e sao
· 1ares d e d uraçao se organizam, fornecendo a o indivíduo as representações indispensáveis ao
prático. o q u e implica e m dizer agora q u e a relativização d o
discernimento
horizonte
192 Ibidem. para u m determinado indivíduo supostamente b e m adaptado é
193 Ibidem. Concomitante à limitação d a vida espiritual.
146 147
e dos Homens· Criação e Alienação da Vida na Natureza
O Todo-Aberto parte 3 - Dos Animais
Ora, não foi p o r essa via que nós dissemos que o impu l so s e ahen • ·untando
AqUI,]
os aspectos da análise empreendida nesta parte dire-
.
ver-se fascmado pe l a forma de vida que ele engendrou? Ou sei·a, nao
_
- h' ª ªº ª 'da - na nossa primeira versão - perde .'
contato consigo quando
adaptaçao u m a perda de consciência d o aberto quando nos voltarnos a na
q pelas formas que ele havia criado; e que nesse fascm10
ul so se fascina
nível dos interesses utilitários? Assim, reencontramos aqui uma outra r a 0
r
se torna uma mera virtualidade quando o vivo se
aceda da versão - o aberto
adaptação narrada n a primeira metade desta parte. no qual ele se adaptou. A adaptação como invenç o
,41111:o mundo-próprio como u m a alie-
Se o espírito e m Bergson é sinônimo d e duração - movimento d jdlB a é a contrapartida de u m a certa estagnação defendida
e d1-
•1erenc1açao
. ~ d e u m 1mpu
. . sua própria natureza. Tudo se passa como se o
1so v1ta 1 - quan d o ao criar o indivíduo, dando
a le do vivente e m relação a
separado da sua potência criativa.
condições favoráveis de adaptabilidade, e l e perde contato consigo mes
0'. estive sse aí
fechamento é inseparável de u m la-
aliena-se da criação d e direito que lhe é imanente, para viver na esfera ada No homem, já que nele o risco do
problema se cons-
tativa u m a certa estagnação. Tudo se passa como se o espírito abandon assepa nte utilitário cuja raiz é o interesse prático, u m
llllf Pu rame . .
recursos d : u m a mte_1·1ge c:a
sua empresa criativa, tornando-se limitado p o r forças dos condicionamentos vencer a estagnação através dos
p : é possível
da mtmçao
estabelecidos no interior dos mundos-próprios. Nessa linha, àe raciocínio rtida à intuição? Sim, mas precisamos assegurar a genese
compreender as razões do fechamento do
Bergson estima que no mundo animal a invenção enquanto obra do espírit Int e l igê ncia. Para tanto, cabe
obrigações.
consciente não passa de u m a exceção. Isto porque ela é latente e não há nada 1111111emno campo dos seus interesses e das suas
que inviabilize a ideia de que mesmo nas espécies b e m adaptadas não possa
ocorrer algum tipo d e mutação.
Porém, é no homem que o espírito encontra condições de retomar a sua
empresa criadora ao adquirir de si a consciência de ser uma tota l idade aberta.
O problema é que o homem pode se fechar nas amarras dos interesses práticos
da inteligência, quando se volta para as necessidades da atenção à vida, pren-
dendo-se aos limites do horizonte relativo. É aqui que a crítica à intelig ê ncia, e
com mais forte razão, a u m uso inte l ectu al e especulativo da inte l igênc ia - que
se debruça sobre o espírito para torná-lo adequado ao aquário do seu mundo
-próprio - ganha total contundência: a inteligência lida com a matéria ofe rtan-
do as vantagens das suas invenções à espécie humana. Com isso, e l a assegur a
u m teor de adaptabilidade progressivo que faz o esforço tender para a b u sca da
sobrevivência. Quando esta tendência se consolida tudo se passa como se urna
es.
certa alienação pudesse ser notada no cerne das suas próprias especu l açõ
0
A o tratar o espírito tendo e m vista a sua melhor adaptação, a inte!ig ê n d ª
nos
reduz segundo os m o l d es dos interesses utilitários. Seu egoísmo consiSt e
sen·
seus interesses e sua atividade e m uma redução da cena espiritua l às re pr e
dis so,
tações que fundam a organização de reconhecimento da rea l ida de. Além
o
o fechamento humano também se explicará pe l o fechamento socia l se g
u o <l
é uJ1l
as descrições de u m a moral e de uma religião fechadas. No entanto, eSte
aspecto já assina l ad o que analisaremos depois.
149
148
parte 3 - Dos Animais e dos Homens: Criação e Alienação da Vida na Natureza
e
A Estagnação da Vida e a Condição Humana e deixasse hipnotizar pela forma que ela acabava de produzir. É assim
rgson define a adaptação: o vivo, uma vez criado, alcança êxito quando
pta às circunstâncias que o permitem não só perseverar, como também
roduzir. Ele passa a repetir os sucessos adquiridos ao longo da evolução,
om as teses apresentadas ao longo dessa parte do-se conduzir por um movimento automático. Bergson dirá que
foi possível , por um
lado, apresentar a evolução criadora ' mostrando
, . . , como os se res VIVOS
~ durave1s,
sao isto e, exprimem uma mudança qualitativa "as formas vivas são, pela própria definição, formas viáveis. Seja
no todo ou
~ Por outro lado, vimos
na d uraçao. como for que se explique a adaptação do organismo às suas
igualmente que a consciência do
od -Aberto permanece latente e refratada na maioria das espécies pelas vi• condições de existência, essa adaptação é, necessariamente,
ine:entes ao desejo de perseverança. Ora, em Bergson, suficiente a partir do momento que a espécie subsista. Nesse
:1ss1tudes,a aptativas
predom1 10 dessa tendencia permite-nos afirmar sentido, cada uma das espécies que se sucederam na história da
. que uma estagnação se
mstala no vivente, quando nele a vida perde contato vida, foi um êxito feliz alcançado por ela. Mas as coisas assumem
com o resto de si mesma.
Assim, 0 ser vivo passa a girar sobre si, fechando-se aspecto totalmente diverso quando comparamos cada espécie
no seu mundo-próprio.
Deleuze tem razão quando diz que ao movimento que a colocou em seu caminho; e não mais às
condições em que ela se inseriu. Não raro esse movimento
"não pode ser de outro modo, pois o Todo é só virtual, se divide desviou-se, e não raro também ele estancou; o que deveria ser tão
ao passar ao ato, não parecendo com suas partes atuais, as quais somente um lugar de passagem converteu-se no ponto final 196''.
permanecem exteriores uma às outras: o Todo nunca está dado
e no atual reina um pluralismo irredutível tanto de mundos Mas como inferirmos dessa estagnação a condição de ultrapassagem
como de seres vivos, todos eles fechados sobre si mesmos 19 Via da criação? Se a finalidade da vida consiste em produzir condições
"''.
a permitam levar adiante a sua empresa criadora, e se isto só é possível
Como detalhar essa estagnação? Segundo Bergson,
. na evolução da 'ante um salto para fora das repetições cíclicas - o que coloca o espírito
vida, a desproporção entre o trabalho e o resultado
é manifesta. condições reais de apreensão do aberto - é legitimo pensar que tais con-
es - ainda que não definitivas - tenham ao menos logrado algum êxito
"A vida em geral é a própria mobilidade; as manifestações urna extremidade da evolução.
particulares da vida só aceitam essa mobilidade com pesar, e
H. Bergson, L 'Évolution créatrice, in: Oeuvres, p. 603 (p. 118).
194 G. Deleuze, Le bergsonisme, p. 108.
Idem, p. 604 (p. 119).
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151
O Todo-Aberto parte 3 _ Dos Animais e dos Homens: Criação e Alienação da Vida na Natureza
obrigaçõ es sociais - na
tar, e se deixa condici onar por imperat ivos d e apego consolid ados 0 -se - quando regido pela inteligên cia e pelas
sociedad e fechada . Ora,
hábitos sociais. Sendo assim, o seu privilég io é relativo , uma vez queph eia adaptati va, que o estabiliz a no seio de u m a
na esfera hu-
o risco dele se fechar n o seu mundo- próprio , repetin do às características ida em que assinala mos tais interess es predom inando
, ~ 7 N es-
estagna çao.
dos demais seres vivos. não mostram os também um caminho que o con d uz a
ado meios de
Mas é fato que Bergson acredita nesta possibil idade do homem ir além o, como podemo s afirmar que o impulso aí tenha encontr
efetiva-
das condiçõ es represe ntativas e adaptati vas garantid as pela inteligência e levar a t rmo sua empresa de criação? Além disso, é só quando
teremos
pelos hábitos. Segundo ele, pesquisa rmos as condiçõ es humana s na esfera do social, que
duplican do-se pela
ndições reais de avaliaçã o da estagna ção humana
na
"no animal, a invenção jamais passa de variação sobre tema de rotina. ncia de obrigaçõ es morais e de funções fabulado ras que consolid am
a
Encerra do nos hábitos da espécie, ele chega sem dúvida a ampliá-los o fechame nto sobre si. Ou seja, colocan do finalmen te e m relevo que
por sua iniciativa individual; mas só escapa ao automatismo por um "ção humana implica uma compree nsão social do seu ser, não devemo s
moment o, precisam ente o tempo de criar um automatismo novo. nder ao movime nto da sociedad e as condiçõ es de fato da adaptaç ão e do
No homem, e apenas no homem, ela se liberta 197".
Com isso, desdobr aremos o problem a levando em conta o terreno
A liberdad e, a abertur a e a alegria da alma aberta são aspectos insepa· ai; pois é no domínio d a socieda de que devemo s situar c o m adequa-
ráveis da superaç ão da condiçã o humana pelo espírito . Assim, é no humano a via da ultrapa ssagem da condiçã o humana . Bergson propõe q u e
que devemo s lograr as condiçõ es de sua superaç ão. Por isso, torna-se urgen· ndamos a ultrapa ssagem da condiçã o h u m a n a no seio de u m a so-
te uma compre ensão mais detalhad a da sua condiçã o. ade aberta, provend o-nos das condiçõ es fatuais da consciê ncia d o
O teor de indecisã o da condiçã o humana se coloca no espírito por urna rto pela consolid ação de uma alma aberta através de u m evento q u e
dupla constata ção: por um lado, o ser humano contém um teor de indeter· surgir a intuição .
minação maior do que as demais espécies vivas. Por ter um sistema nervoso Só assim é possíve l estimar que no h o m e m o impulso seja capaz de
centrali zado, sendo igualme nte dotado de inteligên cia e linguage m, o homern mar o seu movime nto de diferenc iação no moment o e m que se volta
o
é capaz de produzi r ações mais insólitas do que os outros animais . AsSI·rn re si, ou melhor, no moment o e m que toma consciên cia de si. E a apre-
ão de si por si é a retomad a no espírito do próprio movime nto que con-
197 Idem, p. 718 (p. 231).
'ona a criação.
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152
O Todo-Aberto
154
Parte 4 - Das Sociedades Fechadas às Sociedades Abertas
urn "inte rv a lo" e xist e n t e e ntre o "e goísmo" d a inte ligência - qu e faz
revalênci a d e vo n t a d e s in dividu a is - e a subordi n a ção a o todo d a
ªa ! e pela vi a da mor a l fechad a e da fabul a ção re ligiosa; e m s e guida é,
e nt e , n e
c e ssário fris a r qu e t a l di n a mismo supõ e um a "oc a sião" esp e -
N
as du a s gra n d e s rota s qu e o impulso "a s socied a d e s d e formig a s e de a b e lh a s são a dmira velm e n t e
vita l e nco n trà·a-bertas discipli n a d a s e u n id a s, m a s fix a d a s num a roti n a imutáv e l. S e o
d e s1· - a s e, n·e d os a rtro, pod e s e a d'1ante
. _ dos v e rt e bra dos - de sen indivíduo s e e squ e ce d e si m e smo, a soci e d a d e t a mbém esqu e c e
.
s e e m d1re çoe s difer e nt e s o insti volv em-
n to e a i n t e lig ê n cia 1
9a N
• o ponto sua d e sti n a ção; um e outra , e m e st a do de so n a mbulismo, fazem
cu Jmm · a nt e d a prim e ira s e e nco n tr
a m os i n s e tos himeno'pte
e x t r e mi·d a d e d s e gu ros, na e r e fq,z e m i n d e fi n id a m e n t e a volt a do m e smo círculo, e m lug a r
n d a e stã o os s e r e s
_ hum a n os. Em a mb a s, a pesa r das d e m a rch a r diret a m e n t e par a fr e nt e , p a ra um a m a ior e ficácia
fer e n ça ra d1ca 1s das formas ati di-
n gida s pelo impulso,
sep a ra ça ca a v e z m a ior dos ca
como ta mbém de uma soci a l e um a lib e rd a d e in dividu a l m a is compl e t a "201.
_ min hos p e rco rrido s - a a tua lização
a d1ver e n 1a -, a vid pela via
a se desdobr a e m soci
, e d a d e . É a vid a soci a l que chega Ma s qu a l a oc a sião evoc a d a p a ra justific a r o di n a mismo d a s soci e d a -
a e volu ç a o, como s e
algum a a spira ção origi n a l e e ss e n ci qes human a s? O qu e ocorre n o in t e rv a lo qu e tor n a possível tal co n dição?
a l d e la somente pu-
dess e e n co n tra r n a soci e d a d e su a
pl e n a s a tisfação "199_ Tais perguntas só se co n figura m como v e rd a d e iros probl e mas do p e n s a -
Segu n do Bergso n , a soc1·eda d e t or
n a comu n s a s e n e rgi. a s md1v1dua1s
. . . . ento se e nt e n dermos como a int e ligência fu n cio n a fr e n t e à vida soci a l;
be n e ficia n do-s e dos e sforço s d e . , el c .. '
to d os, a o torn a r v1av a d a e sforço ind1v1- o a in d e t e rmi n a ção do s e r hum a n o é supl a n t a da p e los hábitos mor a is e
du a l. A vid a soci a l é, port a n t o, · . . , . as superstiçõ e s re ligios a s e como e ntre os dois - i n t e ligência e obrig a ção
im a n e n t e a os md1v1duos que a compõem, v1·
ve n do ª um só tempo d a subordi
n a ção d e ss e s i n diví duos
à sua totalidade e IOdais - v a i e xistir um conflito qu e e mbora a test e um duplo fech a m e n to
do progr e sso re sulta nt e da in serç do indivíduo e d a soci e d a d e , faz v a l e r um " n ovo int e rv a lo d e i n d e t e rmin a -
ão d a s e n ergia s in dividu a is no seu seio2
E aqui com e ç a m os a n oss a anális ºº·
, . e . Dir e mos que a suposta "benevo· • que é, como v e r e m os n o final, condição d e a b e rtura p a ra o n ovo. São
l e n c1a" d a a pre c1·a ça~o d a vid a estes os probl e m a s qu e a gora a bord a re mos, por acr e dit a rmos que o seu
soci a l é, n a v e rd a d e , um problema da sociedade
hum a n a· s e a princí P10, · um d'm a m1·smo soci a l tor n a -s e a tua l, r sultando d esclarecime
. _ · e ª nto n os d a rá co n dições d e compre e n d e rm os o êxito do impulso
mserç a o do n ovo oc a sion a d a p e la Cl'iador na vi a hum a n a .
a bert ura qu e a co n t e c situa·
e qua n do nos
Porém, a nt e s d e desdobrá-los, co n vém prim e iro pre cis a r um a condi-
198 H._ Bergson, L 'énergie
spirituel/e, in: Oeuvres, p. 834 (Pensadores,
p. 81). \'ão da vid a soci a l orga niz a d a , isto é, d a org a n iz a ção mor a l da soci e d a de hu-
199 Ibidem.
200 Ibidem.
2º1
Ibidem.
156
157
O Todo-Aberto
Será tal obrigação obra da inteligência? do indivíduos uma abertura para o Todo. Assim, das sociedades fe-
É fato que as sociedades
manas nascem com a inteligência; ,
é indubitável sua presença hu. asso ciedades abertas - segundo o título que inaugura o problema
· d o pe 1as · no .
ocas10na nossas mvençoes,~
como tam b em , na organização progresso Ides ta Parte - destacaremos duas espécies de moral: a pnme1ra • iec h a-
a t.1v1"d a d es. En t re tanto, apesar d · ev1·d·enc1as,
· das nossas da aberta Como em Bergson a pesquisa , , . d as
~ e tais B ergson busca urna a segun se da no d omm10
caçao para compreen d e r a s . ~ morais exPh-. . ões do social, a emergência das duas morais deve ser postulada segun-
o b ngaçoes . - que d~ao ensejo
ção social - em elementos à org
exteriores à inteligência. Diz, em nçd'en cias que envolvem o próprio impulso vital, pois é no desdobramen-
a sobrevivência da vida social princípi:niza.
supõe uma subordinação das vontades na atualização deste que - na via humana-, lograremos as con d"içoes - de
individuais a um todo que se apresenta l;v : alienação social e de uma abertura para o todo.
como elemento imperativo; ~
elemento se exerce em cada um e que tal .
dos indivíduos de forma, igualrnente, Mas, voltando agora à nossa análise da obrigaçao; o que d1s em s aCI-
rativa. Tudo se passa como se a impe-
subjetivação da obrigação fosse torna necessário, em primeiro lugar, o entendimento da or_gamzaçao so-
inteligência, vindo de fora desta e estranha à
atuando nela por convencime to. como um procedimento de moralização dos costumes. Assim, uma orga-
Todo da obrigação apresenta-se Assim, 0
como elemento subordinador das ão se faz por uma série de preceitos morais que se impõem como man-
individuais, justificando-se em uma vontades
tendência natural de ordem extrínseca ntos; garantindo pela coesão de uma moral da obrigação, o fechamento
razão 202• Ora, não estaria aqui a condição à sociedade e das almas dos seus respectivos indivíduos. Entendamos, com
de uma moral fechada se explicando
pela via dessa obrigação? Como ela 'são, esta pri&eira tendência.
se condiciona? Não seria necessário
-la, com precisão, frente a uma outra situá
moral? Mas como precisar tal distinção?
Através de uma pequena digressão:
é preciso dizer que a tese bergso- obrigações morais
niana, quando evoca tais elementos Bergson aqui parece encontrar-se com alguns aspectos das
íntegra as condições morais da formação
extrarracionais, pretende estabelecer na :nális s d_e
social. Nesse sentido, ele principia, tzsche. Para este, a formação de uma sociedade supõe a obrigaçao do md1-
por um lado, sua análise no âmbito uo no cumprimento das leis sociais. Só que as leis não são, para Nietzsc_h ,
de uma fonte moral, pois entende que cer-
tas relações estabelecidas pelos dutos de uma racionalidade primeira, mas antes expressão de uma at1v1-
semelhantes no seio da sociedade são funda-
das em regras e costumes determinados e vital genérica, que tem como tarefa produzir costumes, moralizar ações,
como mandamentos que asseguram
a coesão da vida social. Por outro solidar hábitos, colocando o indivíduo numa situação de dívida para com
lado, ele busca a explicação do dinamismo
social em uma outra experiência moral,
procurando entender o motivo que
dará ao impulso condições de levar
sua empresa de criação a fins mais eleva-
dos, fornecendo, igualmente, condições
de abertura para os indivíduos que
se relacionam socialmente. Desta
abertura, não só falaremos em uma socie- A inscrição do individuo na sociedade supõe em Nietzsche toda uma atividade d_e
dade aberta, como também analisaremos adestramento que visa uma moralização dos costumes, sendo o
as condições da liberdade em urna produto desta ati-
alma aberta pela gênese da intuição vidade um homem capaz de fazer promessas, isto é, um homem
na inteligência. capaz de honrar
sua palavra, tornando-se confiável no campo social. É bem
Por isso, podemos dizer que o universo verdad q tal tese e
moral em Bergson se distingue Nietzsche aparece com a denúncia de que a cultura ao longo da h1stona - se,
em duas tendências: uma que trou como um projeto falhado, já que o seu produto resultou em os
assegura a coesão social por intermédio das um ser pa 1fic e
domesticado · Aqui ' no nosso texto, frisamos a ideia de adestramento com intuito
o
de estabelecermos um paralelo entre a tese capital da Genea og,a a
202 Cf., H. Bergson, Les deux / · d Mora I com o
sources de la mora/e et de la re/igion, in: Oeuvres, cap. 1. fechamento constituído pelo hábitos analisados por
Bergson nas Duas Fontes da Mo-
ra/ e da Religião.
158
159
Parte 4 - Das Sociedades Fechadas às Sociedades Aberta s
O Todo-Aberto
,,,,.
ança como ela se desen volve.
sua tese com a tese metzs chean a, pois ao atribu ir a organ iza çao - soc1aJ. da Vejamos então
. . .
men t os Irrac10na1s, Bergs on não faz outra coisa senão apost a r e m um ... ª
ele.
. ,, . . . instin.
to virtua l da vida que em nada condi z com os intere sses rac·iona1s Be rgson ern social
. - sua anális e servin do-se de uma analo gia: comp a-
tal como Nietzs che, sao taxati vos: para eles O princí pio cond·1c1ona
. Bergson empr eende
.
rahda de dos costu mes - princí pio asseg urado r da coesã o s oc1a
nte d
ª
• 1 - na_ mo.
,
social a u m organ ismo
0 e ,..sna organ ização
de
origem racion al.
"cujas célula s, unida s por víncu los invisí veis, subor dinam -se
Com Nietzs che podem os dizer que na obedi ência à Je·I, o pnnc1 • ,pio
. se umas às outra s numa hierar quia sábia, e se dobra m natur almen te
a f 1gura indep enden te do seu conte údo. Indep enden te do que a 1e1. prescrev
• e, a certa discip lina que poder á exigir o sacrif ício da parte para o
h a, o ato d e obede ce-la pelo simpl es fato de ela ser a Jei 204. Or a, o bedecer à
. bem maior do todo 206".
1e1 por ser ela a lei agride , no nosso enten der' todas as exigên ci as ego1stas
• . , . . . • .
d a nossa mtehg enc1a . A mtehg encia, a rigor' traba lha semp re ,,a.ia vor dos in-
, . E é claro que, em se tratan do de uma analo gia, uma difere nça deve logo
teress es prat1cos de u m indiví duo. Nesse caso , uma obediênci·a cega a um
. _ sel'assinalada: o organ ismo se produ z subm etido a leis neces sárias , enqua n-
mand amen to soC1al, que nao raro se manif esta como contrá rio aos no ssos m-
1Dasociedade é const ituída por vonta des "indiv iduais livres". Porém , dada a
teress es_in i idu is, não pode, sem contr adição , ser atribu ída à inteligência
siDgularidade da analo gia bergs onian a um aspec to funda menta l da sua tese
co,mo pnnc1p10. Nietzs che conclu i então que tal princí pio - que funda O socius
logo se eviden cia: no mome nto em que as vonta des passa m a se organ izar
-. e de natur eza irraci onal, isto é, incon scient e. Supõe ser uma ativid ade gené-
socialmente, imitam , de algum a mane ira u m organ ismo; "e nesse organ ismo
n c a de coma ndo cujo propó sito é produ zir costu mes morai s, assegurando à
mais ou meno s artific ial o hábito desem penha o mesm o papel que a neces si-
socied ade estab ilidad e. Assim , obede cer a lei porqu e é a lei afigur a-se como dade nas obras da nature za"2 º 7• A vida social é, nesse sentid o, um sistem a de
um princí pio que trans cende todo e qualq uer conte údo norma tivo, fundan- hábitos que, exerc endo certa press ão sobre nossa vonta de, corre spond e às
do, por conse quênc ia, a sua própr ia organ ização social .
exigências da comu nidad e.
Bergs on, à sua mane ira, dirá algo simila r: se os hábito s sociais são
arbitr ários, pois se tratam de conve nções norm ativas ; o hábito de adquirir "Alguns deles são hábito s de mand ar; os dema is, em maior ia são
tais hábito s afigur a-se como princí pio, já que trans cende os povos , as raças hábito s de obede cer, e obede cemos ou à pesso a que mand a em
e as classe s, funda menta ndo, no plano da natur eza, a própr ia organização vista de uma deleg ação social , ou à própr ia socied ade, da qual
social 2º5• Neste aspec to, a vida social depen de de press ões sociai s, isto é, de eman a certa ordem social confu samen te perce bida ou sentida"2 º 8•
ativid ades genér icas que adest rem as funçõ es huma nas com O propósito de
fazê-l as cump rir ativid ades úteis à manu tençã o da socied ade. Os hábito s sociai s se evide nciam como obrig ações morai s para com
Entre tanto, a semel hança de aspec tos entre as duas anális es não deve ºtodo da vida social . Apres entam -se, porta nto, como hábito s poder osos, na
nos dispe nsar do traba lho do conce ito. Sendo assim , torna -se necessário llledida em
que trazem consi go a autor idade geral do conju nto. Sentim o-
286 H.
Bergson, Les deux sources de la mora/e et de la religion in: Oeuvres, p. 981 (As duas
204 Sobre ª atividade genéri ca enquanto moralização dos costumes na obra de NietzS• fontes da moral e da religião, p. 7).
che ver F. Nietzsche, A genealogia da moral, segund a dissertação. 20?
Idem, p. 982 (p. 8).
205 S bre ª semelhança da tese nietzscheana com a tese bergsoniana ver G. Deleuze, 2oa Ibidem.
Nietzsche e a filosofia, pp. 203-206.
161
160
O Todo-Aberto Parte 4 - Das Sociedades Fechadas às Sociedades Abertas
nos obrigados toda vez que as circunstâncias sociais exigirem à apresenta como elemento puni-
, execuçã cumprimento do dever, e a angústia se
- mantenedoras da ordem social. E como se o peso das obriga _ 0 de
açoes nos desviamos do dever
Çoes Para is as angústias morais emergem toda vez que
com a sociedade se verificasse em cada um dos seus indivíduos int analisa esse conflito
egrant es. tisfazer os nossos interesses particulares. Bergson
Nesses termos, podemos afirmar que a sociedade como um todo , . do que ele se funda no fato de as sociedades humanas se constituírem
nente a cada u m dos seus indivíduos. Sua sobrevivência não seria morais.
' a-
P0ess1ve1 tades individuais supostamente livres em relação às obrigações
se as o b ngaçoes,
· - que nos mantem • ata d os a ela, não se verificassem culpa no indivíduo toda vez
em cada le, a possibilidade de transgressão introduz
' A ss1m,
u m d e nos. . o t o d o d a o b ngaçao
· - se e1etua
, na sujeição de cada
u ao se insurgir contra os imperativos sociais sente emergir dentro dele
si mesmo, na exata medida e m que o indivíduo demonstra estar sujeita;ª da obrigação. Tudo se passa como se o eu social o acusasse, punindo a
. . oa
u m e 1emento coerc1t1vo que garante a coesão e o fechamento da org
aniza- ssão ousada pela inteligência, ocasionando, com isso, um conflito que
ção social. Ou seja, ele crê obedecer a si mesmo, obedecendo aos imperativos a se manifestar internamente. Ou seja, é a intenção de transgressão como
que emanam das obrigações sociais. Desse ponto de vista, não é totalmente ncia do eu individual às obrigações sociais que engendra o conflito; con-
legítimo afirmar que a obrigação venha rigorosamente de fora. É claro que
0 que só se arrefece quando a força das obrigações sociais passa a pre-
todo da sociedade supõe u m elemento coercitivo exterior, p o r é m ; exercício r sobre as resistências dos nossos interesses individuais.
dessa coerção nos conduz à conclusão inevitável de que é no "homem e pelo Em terceiro lugar, as obrigações morais impõem à inteligência o esfor-
homem" que tal coerção se institui. encontrar uma explicação para elas. Curiosamente, notamos que pela
Com tal constatação lemos nesta descrição da obrigação social um fe. daquelas passarpos a resistir às resistências individuais, contrariando
nômeno subjetivo que faz valer uma diferença entre duas instâncias que co- s paixões, os nossos interesses práticos e nossos desejos individuais,
existem na subjetividade. Por isso, Bergson vai afirmar que ao lado do nosso cumprirmos inconscientemente com o dever. Padecemos de neurose ao
eu individual, existe e m nós um eu social, que expressa o essencial de nossa os a inteligência para adestrar o fechamento, isto é, a escravidão. Ou
obrigação para com a sociedade 2º9• como tal ato parece afigurar-se para nós com uma agressão aos nossos
Daqui, uma série de consequências podem ser descritas: em primeiro sses individuais, usamos da inteligência para encontrarmos "razões"
lugar, a imanência do todo social em cada um dos indivíduos faz valer uma os convençam da necessidade dessa resistência. E aqui surge a ilusão,
espécie de sentimento imperioso que nos leva à execução de atividades sem 1muitos filósofos compartilharam, de que as obrigações sociais se fun-
u m a explicação racional logicamente explicitada. É o dever - que se evidencia iem interesses da inteligência.
nessa instância - que nos coloca na situação de agirmos mesmo sem termos Segundo Bergson, é o contrário que se verifica como verdadeiro: a in-
uma razão plausível que justifique nossa ação. Assim, quando a inteligência ncia, na maioria das vezes, é crítica, pois trabalha e m função dos inte-
se vê cobrada a encontrar uma razão que legitime a coerção ao todo, esbarra egoístas do indivíduo. Quando se mostra laboriosa na justificativa das
- na maioria das vezes - com a ideia tautológica que se exprime com exatidão ções morais o faz persuadida de que as ratificações dessas obrigações
no enunciado: "é preciso porque é preciso 210". do seu interesse. Ao se render à força da pressão social, a inteligência
Em segundo lugar, não é raro encontrarmos um conflito interno no i - ra com o curso da servidão e do fechamento. Este é o efeito imediato
divíduo ocasionado pelo confronto dos dois egos. Quando os interesses in<liv;· nflito subjetivo explicitado por Bergson.
duais não condizem com os interesses sociais, a vontade é arrefecida pelo ha· Por intermédio desta tese, Bergson ensaia uma nova interpretação do
rativo categórico. Discordando de Kant, para quem o imperativo se faz
209 Cf., Idem, pp. 986-987 (p. 13).
interesses da razão, Bergson demonstra ser o mandamento obra do pró-
210 Idem, p. 995 (p. 21). hábito social, uma vez que, para ele, o sentimento de obrigação só se ma-
162 163
O Todo-Aberto Parte 4 - Das Sociedades Fechadas às Sociedades Abertas
. . . O
Quand o enfim cedem os ao 1mperat1vo moral, agindo de acordo com a
. . . . . Pressã0
soCia!, agimo s por dever e sentim os, 1mpen osa, a necess idade de res .
. . , Peitar a tinto virtual
1e1, como se a1, nossa vonta d e tivesse se curvad o a uma razão imper·iosa.
Na A compr eensão do hábito como tendên cia imanen te à própri a vida so-
verdad e a nossa vontad e se curva, mas não a uma razão imperiosa·, cu
rva-se do humano leva Bergso n a estabe lecer uma compa ração entre as duas
, . . . .
antes a hab1tos soc1a1s, ou seia, a elemen tos adapta tivos que corrobora"' •11 pela
divergentes que culmin aram no aparec imento da socied ade. Nessa
_
_ •
coesao e sed1m entaça o da socied ade 211• Tudo se passa como se Bergson pu- ração, o tipo de socied ade que se afigura como o mais natura l é evi-
desse - ao notar o caráte r egoísta da intelig ência - mostra r çomo esta se cur- mente o tipo instint ivo:
va aos interes ses sociais ; acentu ando, assim, um aspect o social cuja condição
é extrarr aciona l mas se institu i com a colabo ração da intelig ência. "o víncul o que une as abelha s da colmei a entre si assem elha-
Como podem os explica r isto? Estam os tratan do de uma análise de fa. se muito mais àquele que conser va juntas as células de um
tos? Ou nos alçamo s na busca das condiç ões de possib ilidade de tais fatos? organi smo, coorde nadas e subord inadas umas às outras 213".
Sendo assim, como entend er o hábito como constit uinte da organização so-
Ou seja, há vida coletiv a nos insetos , mas não socied ade no sentid o
cial? E como é possív el atribui r a ele a tarefa de fundar o todo da obrigação?
llllano da palavra . Entret anto, a compa ração rende a Bergso n os termos ex-
Além disso, não seriam os hábito s adquir idos produt os de convenções so-
tivos do surgim ento do social em bases analóg icas fundad as em algum a
ciais? E se o forem não seriam , por conseq uência , arbitrá rios, pois variariam
Wfrtualidade instint iva.
de socied ade para socied ade?
Convém dizer, e m princí pio, que na linha do human o é precis o su-
Segund o Bergso n, todo hábito é arbitrá rio, e a variaçã o dos costumes
PJr «que a nature za tenha preten dido obter socied ades em que fosse
encont rados nas socied ades o demon stra com relativ a clareza . Mas o hábito
deixada uma certa marge m à escolh a individ ual 2 14" . Em função disso, nas
de contra ir hábito s é, como vimos, ao contrá rio do conteú do dos hábitos ad· SOCiedades human as u m a regula ridade de obriga ções terá se impos to
quirido s, natura l. Repou sa portan to em uma tendên cia adapta tiva da vida,
COlno indisp ensáve l para a manut enção do todo social. Sendo assim, tor-
que faz da vida social um fator imanen te à nature za human a. Eis o essencial:
Se plausív el a tese de que a nature za proble matize resulta dos "com-
é o hábito de contra ir hábito s que se encont ra na base da socieda de condi·
Veis aos do instint o na outra extrem idade 215" . Para obter a regula -
cionan do a sua existên cia coesa, isto é, fechad a. Logo, "o todo da obrigação'
lillade análog a à unifor midad e das abelha s e das formig as, a "natur eza
verific ável em cada um de nós, nada mais é que "o extrato concen trado, quin·
e lerá recorri do ao hábito 216" .
tessên cia dos mil hábito s especia is que contra íramos de obedec er às rnil
uma exigên cias da vida social2 12" .
2t3 H. Bergson, Les deux sources de la mora/e et de la reli9ion, in: Oeuvres, p. 996 (p. 22).
lt4 Ibidem.
211 Sobre a interpretação do imperativo categórico kantiano Cf., Idem, pp. 995-997 (pP· lts
21-22). Ibidem.
46 Ibidem:
212 Idem, p. 993 (p. 19).
164 165
O Todo-Aberto Parte 4 - Das Sociedades Fechadas às Sociedades Abertas
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O Todo-Aberto
porqu e nele a obrig ação, tomad a à parte , impli ca porta nto em uma
libercta_
de relati va da vonta de.
Todav ia, quand o essa tendê ncia social passa r a predo min
' ar num
· d a d e, v e n·t·1car-se-a, como conse quênc ia, o seu fecha ment E a
soCJe
. .
pengo que explic a o fecha mento das socied ades huma nas: no p re
º·este ·
0
II
_e
d oin1n·
da tendenc1a impos ta pelo mstm to social , os huma nos tende m a se
A • • • •
10
fech
. ar
como se fecha ram os dema is anima is. Bergs on diz que "o instinto soc1aJ
qu e
apree ndem os no fundo da obrig ação social visa semp re - sendo O in st·into re-
. . ,
lativa mente 1mutavel - a uma socied ade fecha da ' por mais ampla que se1a22s. A Função Social da Fabulação
Se esper armo s de uma mora l a prom oção da abert ura que nos e
dui··
za à criaçã o e à retom ada do impul so consc ientem ente ' devem os buon_ sca- a
em uma outra fonte. Porém , antes de analis á-la, convé m extrai rmos todas
da huma -
as conse quênc ias dessa ideia de instin to virtua l, pois, ségun do Bergson, ela m dos fatos mais notáv eis e const antes na histór ia
a curva r-
se manif estará no âmbit o, não só moral , como tamb ém religio so, configu- nidad e é a super stição . Com ela vemo s a inteli gênci
pávei s, às
rando , igualm ente, uma religi ão fecha da. É o que ele apont a quand o nos fala se às crenç as mais absur das, aos delíri os mais impal
stição o
da funçã o fabula dora. p9ixõ es mais arreb atado ras. O curio so é que na super
força impe -
em - de natur eza inteli gente - mostr a-se rendi do à uma
intere sse ra-
a onde, apesa r das resist ência s a ela opost as pelo seu
e ao bom senso
al, vê-se execu tando ativid ades estra nhas à reflex ão
ente indiv i-
seu caráte r utilitá rio. Se atent armo s para o aspec to puram
ida-
1do ser huma no, com certez a admit iremo s de bom grado a nociv
ário ao
da super stição , pois ela parec e traba lhar num sentid o contr
s in-
seus intere sses. Mesm o se acent uarm os o carát er egoís ta desse
tais
sses, direm os ser a super stição uma manif estaç ão atenu ante de
o
ísmos. O espír ito coleti vo - e isto é u m fato - asseg ura sua coesã
super stiçõe s que prom ove para o arref ecime nto dos indiv idual ismos .
se
ntos home ns não cedem dos seus intere sses indiv iduais quan do
stram diant e de u m Deus que lhes orden a impo ndo mand amen tos?
quantos movid os pela força dessa s ficçõe s não se mostr am obedi entes
imper ativos que surge m de uma socie dade que seque r lhes dá expli-
ões? Segun do Bergs on, as super stiçõe s, enqua nto fatos, mostr am-se
nsequ entes no proje to de coesã o social , servi ndo, nesse sentid o, para
ltlanutenção cega da organ izaçã o social , ao atenu ar as resist ência s que
intelig ência ocasi ona. Direm os que as ficçõe s persu adem a inteli gên-
nte e
225 Idem, p. 1001 (p. 27). ' Pois se aprov eitam do seu labor, para insin uar com mais requi
169
168
Parte 4 - Das Sociedades Fechadas às Sociedades Abertas
O Todo-Aberto
sofisticação os seus propósitos ' que são o de manter g regario 0 apressadamente ao dizerem que as ficções fabuladoras são engendradas
espírito •nação e atribuídas à inteligência. Contrariando a tendência de certas
humano no tecido sociaJ226.
Com tais considerações, Bergson indaga-se acerca d a origem . giaS utilitaristas, Bergson procura isolar a fabulação para poder então
dessas -la. Diz que a fabulação realiza, no plano da natureza, uma tendência
superstições. Quer o fundamento dessa operação e crê qu e e, poss1veJ ,
, - . . , i \Tida desdobrou na linha evolut i va que culminou nas sociedades huma-
ta-lo a uma funçao s1m1lar aquela que condiciona a obrigaç~ao. Essa fulllpu. -
. ,. . ~ nçao Jllºstrando que a sua compreensão exata supõe uma anál i se dos seus efei-
- considerada espec1f1ca da cond1çao humana - será cham a d a por Bergson
como uma "função fabuladora"221_ 1110 intuito de irmos precisando a sua diferença. Bergson dirá que
Com isso, ele passa a dizer que a criação de deuses , por vez es absurdo
. ~ . , "dessa função decorrem a novela, o drama, a mitolog i a com
a cnaçao de mitos, de fabulas e até mesmo de novelas , se devem a, umafunçãs,
0 tudo o que a procedeu. Mas nem sempre houve romancistas e
f iab ul adora presente entre os humanos e coerente com O fortaleci mento da
~ soCia ,
· 122s. Ao apresenta-la, dramaturgos, ao passo que a humanidade jamais se privou da
coesao Bergson ensaia uma explicação de ordem
. ,
· 1que o leva a situa-la religião. É pois provável que poemas e fantasias de todo gênero
v1ta como a função singular que fortalece O 1'çe ehamento
. tenham v i ndo por acréscimo, aproveitando-se de que o espírito
da sociedade. Como podemos entender sua natureza?
sabia fazer fábulas, mas que a religião era a razão de ser da
função fabuladora 23º ".
A natureza da função fabuladora
Pode os dizer que "as representações que engendram superstições Ou seja, a tes da aparição dos novel i stas e dramaturgos, a fabulação já
tem por carater comum o serem fantasmáticas 229"; e por isso, elas desafiam
A
demonstra nenhuma evidenc i a de um ato fabulador. Entretanto o que . o movimento analít i co que leva Bergson à defesa delas.
. ng orosamente
. se detl(a à primeira.
,
passar por ev1denoa, mostra-se a Bergson como um problema pois emas então
• A •
_ . _ . . ,, , a fab
. . Ula. insetos o progresso só se manifesta
çao - na realidade uma ficçao s1m1lar a uma alucinação nascent e23v , Sabemos que na vida social dos
- contra. sociedades fechadas, isto é, estagnadas, onde cada "indiví-
ria o juízo e o raciocínio, tomados como faculdades i ntelectua is empenhadas 0 exceção. São
interesse da comunidade ". Para Bergson, na vida
233
- d os m· t eresses m
· d'1v1·d ua1s.
· Sen d o assim apesar
na execuçao .
de evi d enctada serve cegamente ao
. . . _ . . : trabalho é disposto em funções hierarquizadas
\ 1 dos seres instintivos o
o
se10 de um ser mtehgente, e l a nao nasce da mtehgenc i a, mas antes da
. . , , funçao coletivo das células que compõem um organismo.
que se mos t ra - na ma10na d as vezes - ate contraria aos interesses daquela elhantes ao trabalho
, .d . ,,. . . de fatos
Berg son en t-ao recorre novamente a I eia d e mstmto virtual", compre en d i m, a
estagnação se impõe como tendência observável através
encto como se o instinto, respon-
a fabulaçao - como ato do instinto virtual que decorre da atualização
d'1ieren- jmentados na vida organizada. Tudo se passa
. . sociedade, se encontrasse em
oada do impulso criador. Para não termos de reproduzir novamente essa tese, 1pelo aspecto gregário dos indivíduos na
. ., . . da natureza. Bergson nos dirá
pms Jª a explicamos no item anterior, lembraremos tão somente - com O In- . xim i dad e com um trabalho organizador
plano de organização da natureza, pro-
tuito de fortalecermos a nossa análise - que a vida no desdobramento
_ de suas e a vida social dos insetos imita o
, no trabalho coletivo
tendencias carrega, graças à unicidade do seu movimento criador, a ma·wna gando naturalmente a sociedade orgânica implicada
das manifestações das dema i s tendências naquela que se atualizou. Aqui Berg- s elementos constituintes.
individual
son pode dizer "que resta uma franja de instinto em torno da inteligência, e que Ora, seguindo essa tese diremos que o próprio organismo
um certo aspecto da
lampejos de inteligência subsistem no fundo do inst i nto"232. Só que o insti nto tinciona am um plano que anuncia antecipadamente
como coorde-
que se apresenta no ser humano é virtual. vida social; e sendo assim, a vida, nesse nível, apresenta-se
se divide. Neste
Ora, é a função fabuladora a manifestação dessa franja v i rtual de i ns- nação e hierarquia de elementos entre os quais o traba l ho
da vida.
tinto, onde a inteligência aparece como núcleo. A função fabuladora persuade ecto, há pressuposição entre o social e uma tendência orgânica
a imi-
a inteligência, levando-a a defender as suas fantas i as, ao mesmo tempo em Quando analisamos as sociedades dos insetos percebemos que nelas
que as
que a ela se opõe, fazendo-a curvar-se às suas superstições. tação do organismo se encontra em um grau de proximidade maior
Mas por que voltar ao instinto virtual para explicar a condição da fun- sociedade humanas. Bergson diz:
ção fabuladora? Acaso não teríamos na imaginação uma explicação ma is
plausível dessa função? Em defesa de sua tese, Bergson nos ofertará dua s "se nessas sociedades que são já os organismos individuais,
razões: uma resultante das considerações extraídas da natureza do próp r i o o elemento deve estar pronto a sacrificar-se pelo todo, se
instinto; a outra, pela análise do caráter irracional da fabulação que - nã o o mesmo é assim nessas sociedades de sociedades que
obstante o seu irracionalismo - produz um movimento de coesão - às vezes constituem, no extremo de uma das duas grandes linhas de
até fanático - que condiciona a estabilização da sociedade. Ambas se articu· evolução, a colmeia e o formigueiro, se enfim esse resultado se
233
231 Ibidem. H. Bergson, Les deux sources de la mora/e et de la religion, in: Oeuvres, p. 1075 (p. 98).
234 Ibidem.
232 Idem, p. 1075 (p. 98).
173
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O Todo-Aberto Parte 4 - Das Sociedades Fechadas às Sociedades Abertas
Porém, o mesmo não acontece com as sociedades humanas quan por meio da própria inteligência contrapor-se ao trabalho
analisadas pelo viés da sua especificidade. Nestas, a vida encontrou urn o intelectual. Assim se explicaria a função fabuladora 236" .
tne10
de fazer atravessar o seu alento criativo, ao apresentar a possibilidade dena.
vidade e invenção de instrumentos não organizados por intermédio da i
nte- Chegamos portanto à segunda razão: a função fabuladora, criadora de
ligência. No instinto, convém lembrar, a vida social, no seu aspecto coesivo Ses, de
mitos, enfim, de superstições, visa, no seio da sua irracionalidade,
, se
desdobra naturalmente de cada indivíduo por força do instinto. Se o tnesrno , u a r O caráter dissolvente da inteligência e m relação à coesão social, per-
não ocorre no homem l'dindo-a a desviar-se do seu egoísmo, para ratificar os interesses do todo
sociedade. Tal persuasão ocorre pelo fato de que o homem - por ser dota-
"é que o esforço de invenção que se manifesta em todo domínio 4ode inteligência e desperto para a reflexão - pode voltar-se para si mesmo
da vida pela criação de espécies novas encontrou na humanidade segundo os ditames de uma inteligência que o aconselha a consagrar-se ao
apenas o meio de se continuar por indivíduos aos quais é ísmo utilitário. Se essa atitude predominar, a coesão se dissolve, e a so-
outorgada então, com a inteligência, a faculdade de iniciativa, a : a d e como u m todo tende à desaparição. Ou seja, mesmo que o indivíduo
·"" -
independência e a liberdade 235" . esteja visando a sua expansão utilitária, há o risco de - nessa via - haver
precipitação de desagregação do tecido social. Aqui é preciso fazer intervir a
Mas a faculdade da iniciativa deve, a princípio, nos dizer com precisão função fabuladora como fundamento de uma fonte religiosa: segundo Berg-
que há - no cerne das sociedade humanas - u m conflito não existente nas son, a religião tem, enquanto função social, a tarefa de sustentar e reforçar as
sociedades dos insetos. Ou seja, enquanto nas sociedades dos insetos o traba- exigências da sociedade.
lho individual se prolonga naturalmente no plano social - pois pelo instinto De imediato u m perigo é observado: havendo predomínio da obri-
o animal se sacrifica cegamente pelo bem maior do todo - , nas sociedades gação e da religião - que prolonga aquela por intermédio de imperativos
humanas dá-se o contrário: nelas verificamos que a inteligência trabalha em i'anscendentes - , a sociedade tenderá a u m fechamento. Melhor, na predo-
função dos interesses práticos dos indivíduos. Há u m egoísmo na inteligência minância do instinto social a sociedade se fecha, consequentemente, a alma
que fundamenta a iniciativa individual dada pela vida ao homem, e que pode se fecha, e a estagnação, observável nos demais seres vivos, consolida-se no
ameaçar a coesão social. Sendo assim, a sociedade como todo - na sua coesão seio da sociedade humana. Como ultrapassar esse perigo? Acaso a possibi-
sedimentar - faz valer u m movimento de contrapeso aos interesses egoístas lidade do impulso de fazer passar o seu movimento criativo não depende
da inteligência, e este movimento é a fabulação. de tal ultrapassagem? Por outro lado, a inteligência - por vocação utilitária
e"interesseira" - evidencia o seu egoísmo orientando o indivíduo na busca
"Se esse contrapeso não pode ser o próprio instinto, dado que 0 do prazer e do bem-estar.
seu lugar está precisamente tomado pela inteligência, impõe-se Que temos portanto? Egoísmos inteligentes que tendem a predomi-
que u m a virtualidade de instinto ou, se preferirmos, o resíduo nar quando a coesão social se arrefece; e a obrigação moral cujo predomí-
de instinto que subsiste em torno da inteligência produza 0 nio supõe uma inibição dos interesses da inteligência regidos pela busca
mesmo efeito: ele não pode atuar diretamente, mas, dado queª individual
do prazer. Ou seja, temos u m conflito, onde nele observamos a
inteligência opera sobre representações, suscitará imaginários eJcistência
de u m intervalo de indeterminação que coloca o homem na os-
que resistirão à representação do real e que conseguirão, Cilação entre
o seu eu individual - egoísta - e o seu eu coletivo - gregário e
. .
235 H. Bergson, Les deux sources de la mora/e et de la rehg10n, ln: Oeuvres, p. 107 6 (P· 99)- 236 lb"d
1 em.
174 175
O Todo-Aberto
III
. . ao espirita e
movimento de diferenciação? 0 t no
Sim, e esta abertura alcançada .
· ·
d e m d etermmação deve ser pensada em um plano ético ' qu e e,
no Interv
conce1tu . ª
10
por Bergson como uma moral aberta. ado
A Moral Aberta
176 177
Abertas
O Todo-Aberto Parte 4 - Das Sociedades Fechadas às Sociedades
Mas encerrar a moralidade nesse ciclo adaptativo é, segundo pormenorizada de tais diferenças no seio da própria
8 ergson, 0 se pa Ssar 7· A análise ..
contentar-se em compreendê-la pelo viés de um única fonte. Reduzi-l o quadro comparativo de forma mais preCisa.
gações sociais implica em vê-la tão somente como um mecanisrn o restrir ªª obri- ta de explicita
por isso - em segundo lugar-, na
moral fechada a vontade se curva d.1an-
o querer
de defesa contra os interesses egoístas da inteligência. Se fosse assirn _ tvo morais, configurados como costumes que impulsionam 1· ' ·
·' ·
conflito supra-assinalado - a sociedade humana não teria saída ' p OIS. . Pelo
ª
de h 'bitos ·
impõem obrigações. Nela, a res1stenc1a d a m t e
1genc1a
em torno de uma oposição, onde de um lado teríamos a pressão social
gira(1 ª mo imperativos que
intrínseco ao indivíduo. Já na moral aberta,
garan- duz, como vimos, um conflito
- d a soCiedade,
· d o a coesao . mais por força de hábitos morais, mas por
tm e de outro os interesses egoístas da intel·igenc1a
, ntade é determinada à ação não
sensibilidade, por produtos resultantes
que driblaria tal pressão para favorecer ao homem bem-estar e prazer. Aí de emoções causadas, na nossa
personalidade singular. Ora, a moral dessa persa-
0
fechamento seria inevitável, pois tanto em uma via quanto na outra teri'amos-
um ato de criação de uma • d a e oçoes-
na avaliação de Bergson - o triunfo relativo da adaptação e da funcionalid d atos que introduzem na obra ena
, a e !idade singular - o criador de
- é definida pela presença mc n-
E justamente com tal constatação que Bergson engendra a necessida: <lamentais para a determinação do querer
o surgimento de uma forte emoçao:
de de pensar em uma outra moral, como se a moralida e_pudesse se desdo- te de um aspecto indispensável para
existe atuação direta da sensibilida-
brar em duas fontes. É por intermédio dessa outra moral - que se insinua no sse caso, "fora do instinto e do hábito só
intervalo de indeterminação aberto pelo conflito existente entre o egoísmo 237". E mesmo que a propulsão exercida pelo sentimento pos-
s obre O querer
que as obrigações produ-
da inteligência e a pressão social - que a sociedade encontra sua condição de se assemelhar à obrigação - pois é legítimo supor
se verifica de diferent é que,
abertura; assegurando - por consequência - o dinamismo indispensável para ,em na nossa sensibilidade sentimentos-, o que
nasceu de um movimento
a propagação do impulso vital. nesse caso, 0 sentimento que engendrou a propulsão
notável. Nesse âmbito,
Perguntamos: Quais são as suas principais características ? E é possí- de atração inspirado pela criação de uma personalidade
implicamo-noss sem esco-
vel entendê-la ao compará-la com a outra moralidade? Ao respondermo s a Inclinamo-nos com decisão, agimos sem hesitação,
quando somos tocados
tais perguntas elucidaremos os tópicos de uma moral aberta - que para nó s lha. ou seja, ao atendermos ao apelo de um chamado -
pela força de uma
é uma ética da abertura - como condição da experiência efetiva da liberdade. pela criação dessa personalidade moral - ficamos comovidos
diversa da atitude
emoção que tem a propriedade de colocar-nos numa atitude
A moral aberta definidos como
de uma alma fechada. Assim, os iniciadores dessa moral são
transmitir-
Em primeiro lugar, a moral aberta se distingue da moral fechada, pe lo homens notáveis, capazes de, por intermédio da abertura expressa,
fato desta ser uma moral impessoal - que se exerce por intermédio de impe - nos pelas suas obras os fins mais elevados do impulso vital. Para eles, é neces-
tudo que foi
rativos - , enquanto aquela é uma moral que se transmite por intermédi o d e sário criar, sendo a criação inseparável de um alegria nascida por
uma personalidade notável. Tal diferença comporta, não obstante, uma po s - mas no
criado, a alegria da própria criação, não simplesmente da humanidade,
sível objeção: não é sempre plausível supor a existência - na moral fechada - limite da própria natureza. Esposando o comentário de Jankélévitch é possível
de moralistas agentes da lei, transmitindo, através da suas palavras de o rde m, dizer que este é um ponto onde a filosofia do
n
os mandamentos exigidos pelo próprio universo cultural? Ocorre a Bergs o
a generositas
acrescentar que a moral aberta não se transmite por imperativos de obediê - "impulso vital encontra paradoxalmente
por dar, nem
cia, mas antes por intermédio de um chamado. Aqui, a diferença torna-se mai spinozista. O homem alegre, não por possuir, mais
s
mas por
clara: não se trata mais de executar uma ação por dever para com a socieda- por acumular, mas por gastar, nem por poupar-se,
ss a
de, mas executá-la por força irresistível de um apelo, que atua sobre a no
vontade como uma propulsão, à qual não mais oporemos objeção. O que p
ode de la religion, ln: Oeuvres, P· 1008 (p. 33)-
237 H. Bergson, Les deux sources de Ia mora/e et
179
178
O Todo-Aberto Parte 4 - Das Sociedades Fechadas às Sociedades Abertas
em nós; antes
sacr i f i car-se, este homem está literalmente louco de 1 Na verdade, ela não i ntrod uz esses sentimentos
· sua a 1egna
p01s
, •
· e' uma 1oucura, uma sabia loucura ' cert
ª egria
ela nos introduz neles, como transeuntes que
se compel i ssem
. ,. em moral. A vida
bem mais s e n a que a louca sabedoria racional do pr i n c1p10
, . de a uma dança. Assim procedem os iniciadores
. como
economia e de conservação. A satisfação de "satis", ela so' aspira .e tem para eles ressonâncias de sentimento insuspeitadas,
entrar com
a conservar o mesmo, enquanto a alegria, semelhante n· as que produziria uma sinfonia nova; eles nos fazem ·
. . º¾
amor, diz: "Nunca demais! Sempre demais!". A alegria é po rtanto
,
movimento 239".
eles nessa música, para que nos a traduzamos em
.
o sintoma de um Mais: a alegria é literalmente estado de graça,
impessoal, é uma moral so-
. , _
isto e, a con d'1çao puramente criativa sem contragolpe , nem Enfim, a moral fechada, enquanto moral
a estagnação e a coesão do tec i do social; ao
segundas intenções, nem torneios de reflexão 238". , q ue visa a estabilização,
' 1que e 1eva
de uma personalidade notave
50 que a moral aberta depende
um dinamismo criativo, ao retomar o impul-
Essa alegria nos é transmitida como afeto oriundo do ato cr i ador. Ela é oc i edade a uma abertura e a
um estremecimento afetivo ocasionado pela retomada do impulso, cujo lim i ar pelo ato de criação.
conceito de mo-
de intensidade faz com que ela se difira em natureza das alegrias -pass i vas, isto Ora, a singularidade da moral aberta - e o próprio
- exige de nós uma compre-
é, dos sentimentos banais associados às representações triviais utilitárias. apresentado aqui pelo viés da criação
como um tipo
Na realidade - e esta é a nossa terceira distinção - é preciso diferir, pa ra ão pormenorizada da personalidade moral avaliada
através da criação. Su-
a compreensão da moral aberta, dois tipos de emoções. Pois ao lado das emo- tável capaz de-imprimir na sociedade abertura
termos exatamente
ções que conhecemos em demasia - já que sentimentos diversos se ligam igua l- nhemos então os seus traços característicos para
estiver detalhando as
mente a representações sociais - existem outras que nascem da contemplação novidade da filosofia bergsoniana, quando esta
de algo novo, que se transmitem por uma obra criada, revelando a capacid a de
de acrescentar aos sentimentos vividos novas tonalidades inventadas, coloca n-
do-nos, enfim, num movimento de abertura. Nesse caso já não nos sentimos criador e a natureza da emoção que ele engendra
em contato
obrigados, mas atraídos. Buscamos a imitação não do que está dito, mas antes Podemos dizer que o tipo especial capaz de nos colocar
movimento
do movimento que originou o dito. Em suma, instalamo-nos na emoção que é mo impulso vital é aquele que atingiu, por força da intuição, o
criadas o
condição para a propulsão do nosso querer. Bergson escreve: âmico do impulso original e que agora nos transmite nas ideias
dinamismo da vida. Na condição de moralista, ele retoma o movimento vital
"é o que acontece na emoção musical, por exemplo. Parece-nos, tara com ele fazer nascer ideias, conceitos e obras capazes de, não só de ex-
enquanto ouvimos, que não poderíamos querer outra coisa 'r n i r o movimento vital, como também de transmiti-lo àqueles a quem faz
senão o que a música nos sugere, e que precisamente assim lo. Nesse sentido, tal moralista é indubitavelmente um
agiríamos naturalmente, se não parássemos de ag i r ao escutar.
capaz de
Somos a cada instante o que a música exprime, seja a aleg r i a , "criador por excelência ... cuja ação, ela própria intensa, é
a tristeza, a piedade, a simpatia. Não apenas nós, mas também intensificar também a ação de outros homens, e generosamente
de bem,
muitos outros, mas todos os outros também. Quando a mús i ca iluminar núcleos de generosidade. Os grandes homens
inventivo e
chora, é a humanidade, é toda a natureza que chora com ela, e mais particularmente aqueles cujo heroísmo
simples abriu novos caminhos para a virtude , são reve 1 atividade superabundante, isto é, de uma ação conseguida pela apreen-
ado tes
de todos os níveis da duração •
243
de verdade metafísica. Eles podem estar no ponto cul r n inante
·
-
·
nem por isto e 1es estao menos perto das origens , e torn Com a intuição mística ensaiamos a consequência da abertura que
arn
sensível para nós o impulso que vem do fundo. Cons·d 1 erelllo- •fica o nosso trabalho, colocando em esboço o problema da ocasião que
.
los atentamente, tratemos de experimentar simpatic a r n e
nte o ra iremos detalhar. Como dissemos que no movimento de transmissão ge-
.
que eles expenmentam, se queremos penetrar por u r n ato 0 por tais tipos singulares a emoção desempenha um papel capital, para
. . _ , , , de
mtmçao ate o proprio principio da vida 24º ". cluirmos a compreensão da moral aberta, torna-se indispensável nomeá-
Se falamos de alegria, devemos distinguir aquelas nascidas da criação, da-
Para Bergson, ele pode ser filósofo, se a filosofia mostrar-se por m
· teira
.
. . . . _ . . elas oriundas das representações sociais. Na verdade, distinguimos dois
como d1sc1plma de cocnaçao ativadora do impulso · Afinal ' o que e' poss1vel
. . s de emoções: as superficiais e as profundas. Estas, postas ao longo da
dizer de uma filosofia que não movimente ninguém? Que não nos transmita
Use como emoções que nos introduzem num movimento de cocriação
pelos conceitos criados o impulso da criação? Que não nos comova a ponto de
a própria vida, serão nomeadas como emoções criadoras. A designação
nos colocar em atitude de criação? Que não nos emocione ; o m ideias vitais, · emoção criadora como gênese da abertura da alma e da intuição do todo,
colocando-nos em um contato mais íntimo com a própria vida? Porém, 0 que
Bergson situá-la como a condição da criação e da liberdade. Cumpre en-
afirmamos do filósofo vale sobretudo para o artista e para o místico. De acordo
analisá-la, para dela extrairmos todas as consequências indispensáveis à
com Bergson, é a intuição mística, que se manifesta também na arte, que deve
clusão do nosso trabalho. A questão procurada, convém lembrar, é a da
orientar não só a filosofia, mas a humanidade como um todo, nessa empresa
nese da intuição na inteligência. Com ela, opera-se a conversão desta àque-
de produção de movimento. Nesse sentido, Deleuze tem razão quando diz que
e, consequentemente, a retomada do movimento vital por nós próprios. Ali
de o homem ultrapassa sua condição pela consciência do aberto e do coe-
"as grandes almas, em maior profundidade que a dos filósofos, são
·ente de criação que ele traz consigo. Este é o movimento que nos coloca a
as almas dos artistas e dos místicos ... No limite, é o místico quem
goza de toda a criação, e que inventa uma expressão da mesma só tempo na imanência da vida e no sentido da liberdade entrevisto aqui
tanto mais adequada, quanto mais dinâmica. A alma mística,
servidora de um Deus aberto e finito (características do impulso
vital), goza ativamente de todo o universo e reproduz a abertura
de um Todo em que não há nada que ver ou contemplar 24 1".
183
182
PARTE S
A Alma Aberta:
Emoção, Inteligência,
Intuição e Liberdade
Parte 5 - A Alma Aberta: Emoção, Inteligência, Intuição e Liberdade
P
za da emoção criadora. Escreve:
elo que foi visto a abertura da alma é ocasionada pela emoção cria-
dora. É ela que se insere no intervalo existente entre os interesses "Impõe-se distinguir duas espécies de emoção, duas
sociais e o egoísmo da inteligência, tornando possível uma ruptura manifestações de sensibilidade, que só têm em comum entre si
do espírito com as pressões sociais, ao convertê-lo à apreensão de õ serem estados afetivos ... Na primeira a emoção é consecutiva
si pelo puro fluxo emotivo. Na alma aberta, só existe ação direta da sensi- a uma ideia ou imagem representada; o estado sensível resulta
bilidade sobre o querer. Por isso, por mais que a propulsão exercida possa precisamente de um estado intelectual que nada lhe deve, que
avizinhar-se à obrigação, dela difere no fato de não encontrar nenhum tipo se basta a si mesmo e que, se lhe sofrer o efeito por ressonância,
de objeção por parte dos nossos interesses individuais. Sentimo-nos agir, perde dele mais do que recebe. É a agitação da sensibilidade pela
ou ao menos agimos, como se a força da emoção nos arrastasse, impelindo- representação que nele desemboca. Mas a outra emoção não é
nos a uma ação criadora. determinada pela representação da qual assuma a sequência e
Na verdade, a emoção só nos arrasta porque nos inclui nela; introduz- da qual permaneça distinta. Muito pelo contrário, seria causa
nos nela como "transeuntes que se compelissem a uma dança 244". Trata-se e não mais efeito, em relação aos estados intelectuais que
de uma emoção nascida de um ato criador que deve ser considerada no seu sobrevenham ... 246".
aspecto singular; já que existe o risco de assimilá-la ao âmbito das emoções
vividas devidamente subsumidas ao universo das representações. Ou seja, há Ou seja, as primeiras são inseparáveis de ideias condicionadas pelo
campo representativo. Assim, mostram-se como agitações que determinam
sentimentos que quando assimilados às representações subordinam a von·
0 nosso querer a cumprir uma ação - seja motivado por um interesse da in-
tade aos interesses práticos da inteligência. Nesse contexto, a alma se fecha
teligência ou por uma obrigação social. São as emoções proporcionadas pelo
segundo os preceitos determinados na parte anterior.
egoísmo e pela obrigação. De acordo com Bergson, são as emoções super-
Ora, se entre os afetos existem diferenças de natureza, pois eles sãoª
ficiais, cujo efeito se mostra dispersivo, na medida em que mobiliza tão so-
expressão de micromovimentos intensivos mais ou menos propensos à in·
244 H. Bergson, Les deux sources de la mora/e et de la religion, in: Oeuvres, p. 1008 (Pen· 245 Jd em, p. 1011 (p. 36).
sadores, p. 33). 246 Ibidem.
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O Todo-Aberto Parte 5 - A Alma Aberta: Emoção, Inteligência, Intuição e Liberdade
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O Todo-Aberto Parte 5 - A Alma Aberta: Emoção, Inteligência, Intuição e Liberdade
tinguimos como emoção criadora. Só então é que podemos conferir a ela ginal gerador dessa emoção. A valorização do criador reside precisamen-
0
primado de gênese da intuição. Trata-se, exatamente, de uma emoção te no teor de indeterminação que se insere na obra como componente
. . que
ativa o 1mpu 1so v1ta
. 1, d e fl agra um movimento espiritual ao se inserir no in- afetivo. Quando Bergson, por exemplo, fala dos artistas, diz que o mais
tervalo de indeterminação existente entre os interesses da inteligência e notável nas suas atividades consiste na introdução de emoções por eles
as
obrigações morais. criadas, que se apresentam como expressão de um arrebatamento. Claro
Diremos então que as emoções superficiais tais como amor à famíli que no trabalho de composição de uma obra de arte, sensações elemen-
a,
amor à pátria, amor aos amigos, são emoções suaves inseparáveis de hábitos tares se encontram presentes, porém a novidade apresentada pelo artista
e obrigações. Porém, a emoção pura, experimentada como arrebatamento do reside no fato dele ser capaz de juntar à essas sensações uma emoção in-
espírito, coloca a alma em uma disposição de movimento, cujo efeito não é teiramente nova. Seus trabalhos consistem, sobretudo, e m criar harmoni-
mais a resolução de um interesse, mas antes, a execução de uma atividade zações com sensações elementares num timbre "cuja nota fundamental"
criadora. Bergson então pode dizer: "criação significa antes de tudo emo- nos é dada mediante verdadeira criação. Bergson ilustra sua demonstra-
ção 248". Nessa instância, o processo descrito anteriormente se inverte: não ção ao falar sobre o drama teatral:
partimos mais de representações dadas às emoções q u ê a elas se atrelam;
partimos sim de uma emoção do espírito originária que condiciona a abertu- "O drama teatral que não passa de peça literária poderá abalar
ra do todo possibilitando a criação no furo das representações. nossos nervos e suscitar uma emoção do primeiro gênero,
Objetar-se-á dizendo que evocar uma emoção que não se apegue a intensa, sem dúvida, mas banal, colhida entre as que sentimos
nenhum objeto do mundo sensível é supô-la como originária de uma nada. comumente na vida. Mas a emoção provocada em nós por uma
Mas além disso ser um falso problema - pois o nada como vimos é insepará- grande obra dramática é de natureza inteiramente diferente:
vel da ilusão da negatividade - , o raciocínio só ganha validade se o primado única em seu gênero, ela saiu da alma do poeta, e apenas lá,
for dado ao âmbito representativo. No arrebatamento proporcionado pela antes de estremecer a nossa; dela é que saiu a obra, porque a
emoção aqui descrita, a prioridade recai para a comoção pelo todo que se ela é que o autor se referia durante a composição da obra. Era
expressa emotivamente na obra criada. Aqui, emoção e criação se identificam apenas uma exigência de criação, mas exigência determinada,
como expressão do puro impulso criador da vida. O que Bergson, na verdade, que foi satisfeita pela obra logo que realizada 249".
demonstra é que a emoção criadora antes de ser um estado afetivo associado
a representações objetais, é um estremecimento afetivo do todo que mobiliza Enfim, podemos dizer que a emoção que se encontra na gênese da
abertura da alma difere-se das demais em natureza e em intensidade: en-
o ser humano numa tarefa criadora. Uma embriaguez da vontade deflagrada
por uma autoafetação do espírito, do impulso vital expressando-se em uma quanto estas pertencem à esfera do vivido, aquela nos introduz no domínio
da criação. Sendo extraída do espírito, é puro afeto pelo todo, pura expressão
emoção adequada à totalidade aberta. Sendo amor, o é pela vida, sendo ale-
gria, o é pelo todo. Trata-se de um amor pela humanidade como um todo do todo que se evidencia na gênese do ato de criação. Essa é a razão pela qual
condizente com a abertura que comove a alma, colocando-a em movimento Bergson vai sustentar que a emoção criadora não se encontra vinculada a
de pura alegria. Em suma, é amor e alegria do impulso liberto. nenhuma espécie de representação objetal. Ela é a emoção do divino em nós,
se entendermos por divindade esse impulso criador que é a própria vida; é
Esse é o motivo pelo qual Bergson evoca - quando nos fala da moral
a emoção da totalidade em nós, se entendermos por totalidade a vida como
aberta - a presença de homens notáveis, capazes de atingir o impulso ori-
248 H. Bergson, Les deux sources de la mora/e et de la religion, in: Oeuvres, p. 1013 (P· 37)· 249 H. Bergson, op. cit., p. 1014 (p. 39).
190 191
O Todo-Aberto
II
na
produção do dinamismo das nossas sociedades, se ele é, por excelência, 0
que
encarna com perfeição a moralidade aberta, isto se deve ao fato de ele poder
com a sua obra nos introduzir no fluxo emotivo da criação. Enfim, podemos
esperar que uma sociedade aberta se desenhe, assegurando o indispensável
para que o movimento de diferenciação do impulso alcance êxito no propósi-
Emoção, Inteligência e Intuição
to de continuidade de criação.
preendiam-se do fato de que a inteligência não foi inventada pela vida para não acontece assim com toda a obra, por mais imperfeita que
e pecular; tal constatação fez Bergson colocar-se na via da intuição. Alé ni seja, em que entre uma parte de criação? Quem se empenhe
disso, ao ter descoberto que com a intuição era possível corrigir as ilusões d na composição literária terá verificado a diferença entre
inteligência e converter esta àquela, Bergson foi instado à tarefa de construi: a inteligência entregue a si mesma e aquela que consome
seu método, lançando para agora o problema que faltava explicitar com duas com o seu fogo a emoção original e única, nascida de uma
questões interligadas: como nasce a experiência da intuição? E como a inte(i. coincidência entre o autor e o seu assunto, isto é, de uma
gência pode de fato a ela se converter? intuição. No primeiro caso o espírito labora a frio, combinando
Sendo assim, nosso problema atual consiste em entendermos a gênese ideias entre si, há muito vazadas em palavras, que a sociedade
da intuição como experiência ampliada, tornando-se necessário pensarmos a lhe entrega em estado sólido. No segundo, parece que os
ocasião que permita a conversão da inteligência ao campo intuitivo. E é esta materiais fornecidos pela inteligência entram previamente em
ocasião que nos remete novamente à experiência da emoção. fusão, e que se solidificam em seguida de novo em ideias agora
.. - nutridas pelo próprio espírito 251"•
A inteligência e a emoção
Aqui o esforço da inteligência consiste em desdobrar por intermédio
Quando a inteligência se vê mobilizada pela emoção criadora, parece
de ideias e palavras o assunto nascido da emoção criadora. É pela emoção que
que o curso natural de sua atividade se mostra contrariado. Não mais calcula
a intuição adx.ém ao pensamento. É por ela que o espírito apreende imedia-
sobre o já dado, como tampouco busca encontrar soluções para as dificulda-
tamente a si mesmo. Com ela, reavemos o impulso vital e imergimos na vir-
des prementes da vida cotidiana. Ela adentra no domínio da criação. Se agora
tualidade da vida que a inteligência, por exigência prática, mantinha fechada
ela coloca problemas, o faz movida pela forca expressiva da emoção. Lança-se
e inconsciente. É desse processo que emergem ideias novas, isto é, ideias nas-
em um movimento de labor que resulta em criações igualmente expressi-
cidas dessa própria virtualidade vital e ativa, pois é daí que o impulso alcança
vas da emoção originária que a impulsionou. Bergson diz que é sempre pela
condições de ultrapassar as barreiras impostas pela vida utilitária, fazendo
emoção que a inteligência se torna veículo da criação. É a emoção
valer o seu alento criador. Tornamo-nos um com o impulso, tornamo-nos, a
um só tempo, seres intuitivos, na medida em que acessamos o impulso gera-
"que impele a inteligência para frente, apesar dos obstáculos.
dor da criação, e criadores, na medida em que, como transeuntes da emoção
Ela sobretudo é que vivifica, ou antes, que vitaliza os elementos
que nos arrasta, colocamo-nos na exigência de expressá-la criativamente por
intelectuais com os quais fará corpo: junta a todo momento o que
intermédio de uma obra. Dá-se então a conversão: pela emoção, a intuição se
se poderá organizar com eles, e obtém finalmente do enunciado
torna experiência ampliada, ao mesmo tempo em que a inteligência se con-
do problema que ele desabroche em solução 25º ".
verte a ela. Nessa conversão, o egoísmo da inteligência é atenuado pelo im-
E em seguida acrescenta: pulso da vida que se torna premente.
"Que não seria isso na literatura e na arte! A obra de gênio no A conversão da inteligência à intuição
mais das vezes origina-se de uma emoção única em seu gênero, Bergson, desde o momento em que apresenta a intuição como modo
de apreensão imediata do espírito, faz questão de assinalar um esforço indis-
que se acreditaria inexprimível e que quis exprimir-se. Mas
194 195
O Todo-Aberto Parte 5 - A Alma Aberta: Emoção, Inteligência, Intuição e Liberdade
pensável para que esta venha a se tornar experiência ampliada, capaz de n Assim, podemos afirmar que na gênese de todo e qualquer esforço de
os
colocar no âmbito da precisão. Tal exigência faz-se premente na medida em criação há sempre emoção; podendo concluir que é pela força da emoção
que detecta, no seio da inteligência, ilusões que esta engendra quando decide que a intuição toma a dianteira em relação à inteligência. É da intuição que
especular. Seu propósito, como vimos, é reprimir tais ilusões, dando à inteli- advêm as ideias novas, mas estas, por sua vez, só encontram condição favorá-
gência condições de colocar problemas em função da duração. vel na experiência da emoção. Bergson afirma que as ideias novas, nascidas
Ocorre, no entanto, ser esse esforço inseparável de um movimento que de uma intuição, surgem no espírito por força de um arrebatamento, como
contraria toda a tendência imposta à inteligência por nossa vida utilitária. Ta] se a emoção as fizesse surgir obscuras, coincidentes com o autor que as intui,
movimento coincide com uma violência intensiva que em nada se confunde imediatas na unicidade de um acontecimento, para só depois irem se desdo-
com as violências sensório-motrizes geradas no âmbito dos nossos interes- brando em clareza e distinção. A inteligência é que se responsabilizará por
ses práticos. São, na realidade, estremecimentos afetivos ocasionados por tal desdobramento. Bergson escreve, aludindo à expressão dessas ideias no
micromovimentos intensos gerados no âmbito de uma experiência singular. âmbito literário, que
É que nossa atenção - por sermos habitualmente séres orientados
"se essas ... acham palavras preexistentes para as exprimir, isto
para ações utilitárias - volta-se ordinariamente para o mundo físico, ocasio-
constitui para cada uma o efeito da boa sorte inesperada; e, na
nando uma espécie de alienação do espírito. Isso porque a inteligência tra-
verdade, sempre foi preciso ajudar o acaso, e forçar o sentido da
balha nesse vetor no comando das necessidades vitais. Com o predomínio
lpalavra para que se modelasse ao pensamento. O esforço agora
dos interesses orgânicos e a assertividade puramente igualmente orgânica
é doloroso, e o resultado aleatório. Mas é então somente que
da inteligência, a intuição vê-se relegada à esfera da experiência confusa do
o espírito se sente ou se crê criador. Ele já não parte de uma
vivido. Sendo assim, cremos que a intenção bergsoniana de elaboração meto-
multiplicidade de elementos existentes para culminar em uma
dológica da intuição só encontre a condição efetiva da sua efetuação na oca-
unidade compósita em que haja novo arranjo do antigo. Ele foi
sião proporcionada pela emoção. Condição genética, convém frisar; ocasião
arrebatado de repente a algo que parece ao mesmo tempo único
empírica que faz nascer a intuição na inteligência e que converte esta àque-
e peculiar, que procurará em seguida exibir-se bem ou mal em
la. É a violência engendrada pela emoção criadora que fornece à intuição a noções múltiplas e vulgares, dadas de antemão em palavras 252".
condição de converter-se em certeza imediata. Ou seja, a emoção criadora
é a condição da afecção do espírito por si, ou melhor, a afecção do espírito
pelo todo. Ela produz, naquele que a experimenta, uma coincidência entre
o experimentado e o experimentador; como se nós, nessa experimentação,
reencontrássemos internamente o todo do movimento diferenciador.
Ora, é aí que a intuição ganha força; de embrionária, torna-se domi-
nante; de confusa, torna-se precisa; de vivida, expressiva. A força intuitiva
evidencia-se com tamanha intensidade que é capaz de impregnar a inteli-
gência, penetrando-a de tal maneira a ponto de forçá-la a uma conversão. É
a emoção que viabiliza o esforço, dando margem a um trabalho criador da
própria inteligência, agora consumida no labor de expressar materialmente
as ideias nascidas da intuição. 252 H. Bergson, op. cit., p. 1014 (p. 39).
196 197
Parte 5 - A Alma Aberta: Emoção, Inteligência, Intuição e Liberdade
III
seu teor afirmativo. Só que Bergson conclui que atos assim compreendidos
são, por excelência, raros. Pois no senso comum dos nossos atos, a vontade
nunca se encontra impregnada da totalidade da nossa natureza. E já sabe-
mos a razão: quando determinados por forças do todo da obrigação, não raro
Emoção e Vontade: hesitamos, isto é, opomos resistências que nos colocam na situação de achar
que poderíamos, ou mesmo deveríamos, agir diferentemente. Acresce te-se
A Liberdade e a Alegria da Criação a isto o fato da vontade, nessa instância, encontrar-se sempre subordmada
a interesses individuais ou sociais, e nesse caso, ser sempre impelida à ação
por exigência de pressões oriundas da esfera das necessidades. Aí ela encon-
A
tra sempre obstáculos, uma vez que a vida espiritual se deixa limitar. Fica cla-
o dizermos que a alma preenchida de emoção é - a um só tempo -
ra a impossibilidade do ato produzir-se em conformidade com a totalidade
intuitiva e criadora, não tocamos no essencial da sua natureza aber-
do nosso er fundamental. Ou seja, na regência da via adaptativa, as decisões
ta? Resta, enfim, enunciá-la livre.
do espírito se limitariam a extrair do mundo material o indispensável para
Sabemos da distinção que Bergson estabelece em torno da vontade
a obtenção do prazer e do bem-estar. Aliás, prazer e bem-estar - ambos de
quando a circunscreve no âmbito das duas morais. Na fechada, ela é sempre
natureza adaptativa - balizam a nossa vida cotidiana, regendo, de certa ma-
impelida ao ato por forças de emoções resultantes das obrigações sociais - é
neira, a nossa vida biopsíquica. É por isto que Bergson diz que aquele que
verdade que interesses egoístas se apresentam estabelecendo no indivíduo
pratica a moral da comunidade, isto é, a moral fechada "experimenta esse
conflitos, mas no que tange ao essencial são sempre interesses de ordem social,
sentimento de bem-estar comum ao indivíduo e à sociedade, que manifesta
isto é, hábitos sociais que prevalecem-; porém, na aberta, a vontade é impelida
as interferências das resistências materiais umas com as outras" 255, e que co-
ao ato por virtude de uma inclinação da qual o ser desejante não opõe mais re-
loca o indivíduo, no seio da comunidade, girando em círculo, pois "prazer e
sistência. É como se o nosso desejo se visse arrebatado na instância emotiva, a .
bem-estar são com efeito parada e marca-passo 256".
ponto de não mais hesitar, melhor, de não querer mais hesitar. Pois dado o teor
Ora, sendo assim o ato verdadeiramente livre, isto é, aquele que
da emoção que tinge com a sua tonalidade a alma aberta, o querer faz-se um
dimana da totalidade do nosso ser, difere em natureza dos atos ordinários
com ela, mostrando-se inteiro no ato que deflagra. Bergson escreve:
encontráveis na banalidade cotidiana. Só somos livres
"se a atmosfera da emoção estiver presente, se eu a tiver
"quando os nossos atos emanam de toda a nossa
respirado, se a emoção me penetrar, agirei de acordo com ela,
personalidade, quando a exprimem, quando com ela têm a
sacudido por ela. Não coagido ou obrigado, mas em virtude de
uma inclinação à qual eu não quereria resistir" 253.
254 H. Bergson, Essai sur /es données immédiates de la conscience, in: Oeuvres, p. 110.
255 H. Bergson, Les deux sources de la mora/e et de la religion, in: Oeuvres, p. 1024 (p.48).
253 Idem, p. 1015 (p. 40). 256 Ibidem.
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O Todo-Aberto Parte 5 - A Alma Aberta: Emoção, Inteligência, Intuição e Liberdade
indefinível semelhança que por vezes se encontra entre a indispensável para a consolidação de um modo de vida. Modo de vida
obra e o artista 257". este inaugurado por uma alegria de pleno gozo.
257 H. Bergson, Essai sur /es données immédiates de la conscience, in: Oeuvres, p. 113- 259 H. Bergson, Les deux sources de la mora/e et de la religion, in: Oeuvres, p. 1024 (p. 48).
258 V. Jankélevitch, Henri Bergson, p. 78. 260 Ibidem.
200 201
O Todo-Aberto
criada reencontra-se com o impulso então ela se alegra, pois goza ex-
pressando a latitude de criação que atravessa o universo. É aí que expe-
rimentamos o todo; é aí que nos tornamos um todo. Cidadãos da vida
cidadãos do tempo; imanentes ao Todo-Aberto, que não é outra cois
senão novidade e criação.
Conclusão:
A Experiência do Aberto
em análise resultou na crítica dos sistemas filosóficos que erigiam a ideia de uma forma de pensar, uma maneira de viver, para valorizar, através de uma
uma totalidade dada e que advogavam o conhecimento desse todo com repre- ocasião social, a constituição de uma nova forma de vida instaurada pelo dis-
sentações universais concebidas como predicamentos do ser (categorias). Em positivo de abertura da alma. Nesse contexto, a conversão da inteligência à
Bergson, tal procedimento foi criticado e denunciado por uma intuição que intuição ocorreu na determinação prática de uma maneira ativa e aberta de
mostrou, a partir da experiência imediata, como tais sistemas excluíam a dura- viver. Sendo assim, além da maneira adaptativa, estagnada e fechada que nós
ção real das suas respectivas considerações. Eles partiam da premissa de que denunciamos, postulamos a existência de um modo de vida aberto produzin-
o todo pudesse ser representado e acabavam concebendo o real segundo uma do-se com uma sociedade aberta e dinâmica.
lógica representativa espacial. Além disso, Bergson tornou também evidente Ora, não encontramos aqui uma nova maneira de abordar o proble-
os preconceitos que sustentaram tal concepção metafísica, mostrando como ma do pensamento na metafísica bergsoniana? Podemos ou não entrelaçá-lo
eles se originavam na esfera de uma inteligência que operava com postulados com a consecução teorizada do Todo-Aberto? Não estaria ele implicado na
extraídos dos interesses práticos condizentes com o senso comum. Com tal de- consecução da nossa análise? Nesse caso como seria possível analisar o seu
núncia, a possibilidade de conversão da inteligência à intuição foi problema- desdobramento? Através da relação ontológica dos seres vivos com o abso-
tizada, e, aos poucos, os meios para a fundamentação de uma nova teoria do luto e da intuição do absoluto pela ocasião de um estremecimento afetivo.
absoluto foi se edificando. Com isso, não só uma nova metafísica foi construída, A relação estabelecida entre os seres vivos e o Aberto foi o vetor tra-
como foi elaborada também a metodologia que daria ao novo procedimento çado pelo pensamento bergsoniano. É que, apesar de inicialmente ter pen-
filosófico o seu devido rigor. Sendo verdadeira a ideia de que a inteligência é sado a D.uração como idêntica à consciência, em um estudo mais aprofun-
a forma de pensar da condição humana, a conversão da inteligência à intuição dado Bergson foi levado a afirmar que essa Duração só existia abrindo-se
foi assimilada como uma ultrapassagem desta condição em proveito de uma para um Todo, coincidindo com a abertura de um Todo-Aberto. Assim, foi
afirmação maior da vida, onde nela pusemos a ênfase em uma experiência do possível de direito relacionar a duração dos seres vivos com a duração da
aberto inseparável de uma outra maneira de pensar. Desta forma, mostramos totalidade do universo. Se o vivente é um todo, só o é na medida em que é
como a construção dessa filosofia se fez na aventura de um pensamento plas- tão aberto quanto o universo.
mado na contramão da tendência habitual regida pelos interesses práticos. Um monismo temporal se impôs. Sendo o seu desdobramento execu-
Assim, da metafísica do Todo-Aberto à consolidação do método, deste à tado na análise empreendida da subjetividade humana pelo autor. Desde as
hipótese de uma alienação dos viventes como constatação do fechamento resul- teses de Matéria e Memória, Bergson havia dado à duração um estatuto real.
tante de um apego deles aos seus meios; desta à ultrapassagem do fechamento Primeiro por tê-la estendida à dimensão material; segundo, por tê-la conce-
pela possibilidade de uma tomada de consciência do Todo-Aberto, fomos en- bida como coextensiva à memória, que, no decorrer da análise, foi apresenta-
saiando - ao longo das cinco partes - os aspectos de uma outra forma de pensar da na sua dimensão ontológica. O ser do passado, o passado puro, forçou-nos
construída na conversão da inteligência à experiência imediata da intuição. na direção de uma memória ontológica apresentada como coexistência vir-
Curiosamente, o empreendimento crítico que fizemos a um certo pen- tual; e com tais análises desembocamos na tese de diversos graus de dura-
samento foi igualmente atribuído a um modo de vida estagnado e reduzido ções coexistindo virtualmente no universo.
às circunstâncias adaptativas e funcionais. Assim, inscrevemos nesse modo Ora, foi da coexistência virtual do passado, da compreensão do ser do
de vida a forma de pensar constituída no âmbito dos interesses práticos e passado, que Bergson alcançou a possibilidade de superação de seus pró-
propusemos, com ela, os alicerces orgânicos das suas operações. Além disso, prios dualismos, fundando essa superação na ideia de um tempo único e
consolidamos essa forma de viver no âmbito de uma sociedade fechada por impessoal constituído por graus de coexistências virtuais de durações. Uma
uma moral e por uma religião, igualmente, fechadas. Ou seja, denunciamos totalidade foi pensada de uma gigantesca memória cósmica concebida com
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O Todo-Aberto Conclusão: A Experiência do Aberto
graus de diferenças coexistentes constituídos por uma multiplicidade quali- em geral era vista como um movimento de criação, porém as manifestações
tativa e virtual. particulares da vida só aceitavam essa mobilidade com pesar, pois no plano
Na consecução desse monismo a matéria foi posta como o grau mais atual dos seres vivos, a adaptação, pensada como êxito do impulso criador,
distenso da duração, enquanto o ser vivo foi concebido como o grau mais criava uma espécie de fechamento, e encerrava o vivente em uma repetição
intenso, isto é, o grau mais contraído dela. Assim, uma passagem das coexis- cíclica. Como se a vida se deixasse fascinar pelas formas que havia produzido.
tências virtuais para o plano atual dos seres vivos e a sua respectiva diferença Ao termos visto que a retomada do movimento de diferenciação do
em relação à matéria inanimada se deu através de uma atualização divergen- impulso só teve condições efetivas na via humana, impusemos na nossa aná-
te, onde contração e distensão passaram a corresponder à primeira dualida- lise a configuração de uma outra maneira de pensar que desse consistência
de encontrável no plano atual. Desta confirmamos a ideia de que a duração a uma nova maneira de viver consolidada por uma alma aberta. Enfim, a fi-
se afirmava de todos os seres, que todos eles participavam da vida de um losofia prática pôde emergir com o problema ético que ensejou o final da
todo, de um tempo Uno e virtual; sendo a consciência de fato deste todo um pesquisa: como na ultrapassagem da condição humana o espírito pôde alcan-
problema central para o pensamento do ser humano. ..,- çar a consciência do todo através da criação de uma nova forma de pensar?
Ao estabelecer a fórmula monismo=pluralismo, Bergson fez do conceito Confirmando que essa nova forma só poderia ser postulada na conversão da
de multiplicidade a chave desta equação e instaurou as condições metafísicas inteligência à intuição, restaria entender qual a condição da gênese da intui-
do Todo-Aberto. Para ele, O Uno Todo virtual - a gigantesca memória cósmica ção na inteligência na esfera prática.
posta como função do futuro - não excluía nem contradizia a teoria das mul- Percebémos que o nosso problema se configurou na progressão existen-
tiplicidades. O tempo real, uno, virtual era constituído por uma multiplicidade te entre os conceitos de duração, memória e elã vital. Com ela problematizamos
qualitativa e virtual, onde o múltiplo só existia em potência, não tendo a deter- a relação tempo e subjetividade em dois aspectos: um metodológico e o outro
minação extrínseca da matéria. Como todo o sistema se pautava na asserção de ético. O primeiro visando a compreensão adequada da realidade enquanto de-
que tudo durava, podíamos afirmar que a multiplicidade se configurava como vir universal; o segundo mostrando que tal compreensão implicava em uma
o estofo da realidade movente, evidenciando-se em ritmos diversos consoante conversão da via adaptativa - onde a vida se via alienada - ao movimento de
o grau de diferenciação e atualização desse virtual mnemônico. diferenciação, que permitia ao impulso tomar consciência do todo. E as duas,
Além disso, vimos no desdobramento das atualizações-diferenciações agora, combinando-se para o traçado de uma nova imagem do pensamento.
uma filosofia da vida ganhar terreno na obra bergsoniana. Em A Evolução Repudiando os cânones de uma velha metafísica que assegurava ao
Criadora, ao ter concebido o impulso vital como movimento de diferenciação sujeito uma suposta identidade - dando ao tempo o estatuto de um mero
em si e por si, Bergson propôs que concebêssemos o movimento evolutivo acidente - Bergson foi levado a inaugurar uma nova metafísica, cuja consecu-
da vida como um processo que ocorria em função da atualização do elã vital ção o levou também à retomada da questão o que significa pensar? Ou seja, o
- que é uno e virtual - no plano material. Com isso, prolongou a tese das coe- que advém como pensar quando estamos submetidos à ação direta da nossa
xistências virtuais do livro anterior ao ter concebido a vida como atualização sensibilidade sobre o nosso querer?
contraente dessas durações coexistentes no virtual. Assim, é coerente concluir dizendo que ao introduzir a novidade e a
Ao ter verificado pela diversidade dos seres vivos atualidades diver- criação como temas de seu pensamento metafísico, Bergson rompeu com
gentes e complementares que no virtual coexistiam, Bergson foi levado à uma velha imagem de um pensamento que se ancorava no ideal de um conhe-
ideia de que, na atualização de uma via específica ou genérica da vida, o vi- cimento fundado na crença em uma totalidade fechada, que podia ser repre-
vente perdia contato com a totalidade virtual. Evidenciou-se assim a despro- sentada e desdobrada por um esforço voluntário e espontâneo de um sujeito.
porção existente entre o trabalho do impulso e o resultado manifesto. A vida Ao denunciar a inteligência, mostrando que a sua incapacidade de compreen-
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O Todo-Aberto Conclusão: A Experiência do Aberto
der adequadamente o devir era inseparável de uma maneira equivocada de Se vimos, no início do nosso trabalho, que pela coexistência virtual de
especular que nascia de ilusões engendradas no seu seio, Bergson propôs cri- níveis mais ou menos contraídos do passado integral, a nossa duração passou
térios intuitivos não só para reprimir tais ilusões, como também para inibir a coexistir com durações superiores e inferiores, ainda que interiores à nos-
suas operações, contrariando o curso habitual do pensamento exercido por sa, pudemos postular no final que a passagem de um nível a outro implicou
ela. Ou seja, para inibir e converter a inteligência foi preciso relacioná-la a um não só numa atualização de todos os níveis, assim como numa experiência de
estremecimento afetivo equivalente a uma violência exercida sobre o curso abertura que nos colocou em contato simpático com a totalidade aberta de
habitual dos seus pensamentos coloquiais. E foi isso que evocamos através todos os seres vivos.
do esforço que contrariou a tendência adaptativa da subjetividade. Sendo assim, a emoção criadora não seria outra coisa senão a presença
Mas sendo assim, convém retomar a questão perguntando: o que quer da memória cósmica atualizando-se em todos os níveis, para liberar o ho-
dizer pensar quando enfim se ultrapassa o universo representativo, funcio- mem do plano ou do nível que lhe era próprio, e para fazer dele um criador
nal e responsivo da inteligência? Não seria nessa nova inflexão a atividade do adequado a todo movimento da criação. A emoção criadora desencadeou
pensar um ato problemático? Poderíamos dizer que pens tse tornou ago- a criação, pois permitiu ao homem ultrapassar a sua condição adaptativa,
ra sinônimo de problematizar? Ao termos visto que a invenção do problema abrindo-o para a intuição simultânea dos fluxos que asseguraram a apreen-
inaugurou um campo novo, impôs uma abertura que escavou no presente são imediata do todo. Com ela, fizemos a experimentação do aberto como
novas possibilidades de pensamento, mostramos, com ele, a condição do pro- novidade que se expressou na criação e através da coisa criada.
cesso que desencadeou no ser pensante uma conexão com o aberto. Enfim, a consciência do todo se adquiriu criando, estando a gênese
Entretanto, não bastou tão somente denunciar as ilusões que uma da intuição vinculada a esse movimento de criação que nos foi proporcio-
determinada operação da inteligência nos impôs. Quando o pensamento en- nado pela emoção criadora. Nesse sentido, podemos finalmente responder
quanto criação de problemas ultrapassou as representações habituais do in- que pensar é um acontecimento que só advém ao pensamento enquanto
telecto, foi preciso mesmo indagar quando ele se tornou viável. Bergson nun- ato de criação, quando este for incitado pelo estremecimento da emoção.
ca concebeu nessa inflexão o pensamento como um exercício natural. A intui- Nesse contexto, foi possível inferir com Bergson a ideia da não existência
ção - segundo as suas palavras - foi uma conquista que converteu a inteligên- de pensamentos inatos, como tampouco de pensamentos que se reduzem
cia a partir de uma ocasião. Além disso, o pensamento que se postulou nessa à esfera dos conhecimentos adquiridos. A consciência do Todo-Aberto que
conversão se produziu pela tomada de consciência do todo. Nesse sentido, é condição do novo - e que fez advir o pensamento no vetor da criação - ,
poderíamos perguntar que tal consciência só se atualizou na experiência da nasceu da intensidade suscitada pela emoção. Assim, do corpo ao espírito,
criação? Mas como se deu a condição de fato de tal experiência? Na efetuação violentado pela intensidade da emoção criadora, os problemas advieram
da tendência desencadeada por um afeto que ultrapassou a estagnação da via ao pensamento. Foi a emoção, portanto, que nos abriu para o tempo, foi a
adaptativa e conduziu o humano a uma retomada do impulso no seu movi- emoção que potencializou o tempo, foi a emoção, enfim, que selou a aliança
mento criador. Assim, quando falávamos de uma ocasião indispensável para entre o tempo e o pensamento.
que tal efetuação se desse, era da gênese da intuição que tratávamos. Pois
bem, esta ocasião Bergson encontrou no terreno ético, derivando-a para o
plano da moralidade aberta, onde o criador apareceu como tipo singular que
nos exortou ao movimento. Mas o que nessa moralidade se evidenciou como
condição de abertura da alma e do pensamento concebidos como criadores?
A emoção criadora.
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Referências Bibliográficas
Mário Bruno
Professor da UERJ e da UFF, Doutor em
teoria psicanalítica pela UFRJ. Pós-Doutor
em filosofia pela UFRJ
Auterives Maciel]r.
Professor do departamento de
Impresso em 2017 psicologia da PUC-RIO e do programa
Gráfica da Editora Vozes, Petrópolis, RJ de pós-graduação em Psicanálise,
Papel Pólem Soft 80g/m 2 Saúde e Sociedade - mestrado e
Tipologia Cambria 10,5 / 14,5
doutorado - da Universidade Veiga de
Almeida - UVA-RIO.