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JR.

AUTERIVES MACIEL

í■ 1u,111
www.arquimedesedic.oes.com.br
Cada geração filosófica articula uma

Auterives Maciel Jr.


consciência de si que a define. A minha
geração tem em Auterives Maciel
Júnior uma figura emblemática pela
clareza na exposição dos conceitos,
pela erudição e pela potência de
pensamento.
Quanto ao livro O Todo-Aberto,
considero uma obra ímpar na sutileza
de construção conceituai e na sua
sistematização rigorosa. Este livro

O Todo-Aberto
,.
parte de uma questão contemporânea:
a ruptura de Bergson com a
compreensão dedutiva ou descritiva
do todo ou do absoluto como um dado.
A tese de Bergson, aqui explorada,
DURAÇÃO E SUBJETIVIDADE
equacionou a ideia de ser à ideia de
tempo: o todo temporal é aberto. EM HENRI BERGSON
O Todo-Aberto é, entre outras
coisas, um complexo estudo da
subjetividade. A partir de Bergson,
Auterives chega, através do
movimento evolutivo, ao momento em
que a vida humana perde o seu alento
criador, tornamo-nos autômatos
conscientes, submetidos à
regularidade dos hábitos
(sensório-motores). Somos impedidos
de agir livremente na medida em que
um sistema de sociedades fechadas se
opõe a toda forma de expressão. Ser
livre, antes de ser uma liberdade de
Rio de Janeiro
ação, é conquistar uma liberdade de 2017
expressão.e de criação.
© Copyright 2017 - Todos os direitos reservados ao autor
Sumário

Capa e projeto gráfico: Vlad Calado


Diagramação: Arquimedes Martins Celestino
Revisão: Luiza Miriam Ribeiro Martins

PARTE 1
Do Movimento ao Todo-Aberto . . 13
I - Da Matéria como Imagem Móvel ao Todo . . .14
II - Subjetividade e Duração . . . . . . . .33
CIP - Catalogação na fonte
III -Do Ser do Passado ao Todo-Aberto .. 50
M152t Maciel Junior, Auterives, 1965 -

O Todo-Aberto: Duração e Subjetividade em Henri Bergson / PARTE 2


Auterives Maciel Junior. Rio de Janeiro - RJ: Arquimedes Edições, 2017. Da Inteligência à Intuição . . .79
212p.; 14 x 21 cm.
I - A Função da Inteligência . . 82
Inclui bibliografia
II - A Intuição como Ato e as Ilusões na Inteligência . . .91
ISBN: 978-85-8966 7-55-5

1. Filosofia contemporânea. 2. Bergson, Henri 1859-1941. 3.


III - A Intuição como Método .101
Ontologia. 4. Tempo. 5. Subjetividade. 1. Título. II. Título: Duração e
Subjetividade em Henri Bergson PARTE 3
Dos Animais e dos Homens: Criação e Alienação da Vida na Natureza . . 121
CDD: 143
CDU: 1(44) I - A Evolução como Movimento de Diferenciação .124
II - Mundo-Próprio e Horizonte Relativo . . . . . .134
III - A Estagnação da Vida e a Condição Humana. .150

Editado por: PARTE 4


Arquimedes Martins Celestino Edições e Serviços Gráficos Ltda. Das Sociedades Fechadas às Sociedades Abertas .155
CNPJ: 05.334.622/0001-70
Av. Marechal Rondon 1263, 408, Rocha
I - Das Obrigações Sociais . . . . . .156
Rio de Janeiro, RJ, CEP 20950-005 II - A Função Social da Fabulação . .169
www.arquimedesedicoes.com.br
atendimeQto@arquimedesedicoes.com.br / (21) 2253-3879 III - A Moral Aberta . . . . . . . . .177
PARTE 5
A Alma Aberta: Emoção, Inteligência, Intuição e Liberdade. .185

I - A Emoção Criadora . . . . . . . .186


Introdução
II - Emoção, Inteligência e Intuição . 193
Ili - Emoção e Vontade: A Liberdade e a Alegria da Criação . . 198

A
Conclusão: A Experiência do Aberto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 203 s rupturas com certos sistemas metafísicos clássicos se verifi-
cam em filosofias que questionam a abordagem da totalidade
Referências Bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 210 sob o domínio da objetividade e da presença. Seja por via analó-
gica ou ordenativa 1, diversos sistemas antigos e modernos bus-
cavam - para a explicação do ser enquanto totalidade dada - um princípio
ou um fundamento estável que tornasse possível uma abordagem objetiva
e universal do real. Tal era a função do eídos (ideia) do Bem para Platão -
ser real e transcendente postulado por esta metafísica como princípio de
um mundo constit4ído por essências eternas -; das substâncias com os
seus atributos essenciais e acidentais - os sentidos do ser - para Aristó-
teles e das três substâncias cartesianas inventadas na filosofia da reflexão
como a versão moderna de uma metafísica specíalís. Todos esses sistemas
traziam um propósito semelhante: pensavam o absoluto como dado, or-
denando-o em uma compreensão contemplativa ou reflexiva, segundo o
duplo procedimento da descrição ou da dedução.
Ora, no cenário moderno e contemporâneo tal posição vai sendo
questionada. Isto porque a compreensão da totalidade passa a ser proble-
matizada dinamicamente, e o tempo deixa de ser apreciado como um apên-
dice que só afeta a realidade acidentalmente, para ser constituinte do pró-
prio real. Além disso, as equações ser e tempo, que abalam as convicções da
existência de um todo fechado, supõem pensamentos qu..e abordam o real
buscando nele seu coeficiente de novidade e criação.
Podemos dizer que a superação da ideia de uma totalidade dada se rea
-liza, na filosofia contemporânea, em duas direções: na primeira, a realidade
de um todo dado é negada, pois o real pré-estabelecido é uma noção válida

1 Sobre a noção de totalidade nas ontologias clássicas ver o excelente artigo de Paolo
Tincati e Enrico Rambaldi, "Totalidade", in: Enciclopédia, Dialética, vol. 10.
5
O Todo-Aberto Introdução

tão somente para o senso comum; na segunda, a totalidade é pensada histo- condição de um tempo uno e virtual. Ora, isto supõe dois problemas que
ricamente, já que o absoluto é configurado como dinâmico e aberto. devemos apresentar imediatamente nesta introdução: quais as caracte-
A primeira direção nos conduz a um pluralismo radical, onde nele o ser rísticas da duração como uma experiência heterogênea, isto é, como dado
se diz de um devir que é expressão de forças e de vontades que não se unifi- imediato de uma consciência que intui uma multiplicidade qualitativa ine-
cam. O retornar, o eterno retorno de todas as coisas faz do ilimitado devir a rente à vida? E como ocorre o salto ontológico promovido por Matéria e
expressão de uma pluralidade de vontades com múltiplas perspectivas que Memória que dá a Bergson as condições preliminares da execução da tese
não se totalizam, singularizando, assim, a filosofia de Nietzsche. Na segunda de uma totalidade aberta?
via, encontramos o pensamento de um todo dinâmico, absoluto processual Nos Ensaios Sobre os Dados Imediatos da Consciência 3, Bergson faz
que se desdobra em uma dimensão historicista do ser lançado. A ideia de ser uso da intuição com o propósito de pensar a duração como condição da ex-
e tempo, a diferença ontológica entre o ser e o ente, a dimensão processual periência subjetiva, isto é, como condição de um fluxo de emoções, de afe-
,.,..
de uma abertura onde a existência, na sua mais autêntica possibilidade, se
efetua ao se referir a possíveis e não a entes determinados no mundo conso-
tos, de sensações, que compõem uma sucessão sem exterioridade. Trata-a
como um tempo heterogêneo e contínuo, fluxo ininterrupto de vibrações
lidado dos fenômenos, caracteriza, no nosso entendimento, a ontologia fun- que constitui uma multiplicidade qualitativa que prolonga o passado no
damental de Heidegger. Cumpre dizer que em ambas as vias a objetividade presente, dando espessura ao intervalo de tempo que constitui o presente
reclamada pelos antigos vê-se abolida, pois tanto o perspectivismo nietzs- vivo. Tal intervalo é intuído na sua indeterminação pelo fato do presente
cheano quanto o historicismo de Heiddeger põem em cena uma ideia de tem- durável se.r pleno de antecipações e carregado de retenções, compondo
po para abordar o problema do ser. um fluxo vibracional que habita a hesitação existente em todo aquele que
O bergsonismo emerge nesse cenário. Sendo uma filosofia da duração, escolhe entre as percepções reais a resposta possível a ser executada pela
ela se constrói na abordagem dinâmica da realidade. Para Bergson, o Todo ação motriz.
apresenta-se a partir da duração do universo, não podendo ser compreen- Nesses termos, a duração é reportada, em princípio, ao tempo in-
dido à luz da pura presença. Desta forma, guardando um parentesco com terno do intervalo existente entre a percepção do mundo externo e a ação
uma noção que é também presente na filosofia de Heiddeger, Bergson diz motriz deflagrada pela atenção à vida organizada. Para compreendê-la é
que o todo não pode ser dado pelo fato dele ser Aberto 2• Assim, é enquanto preciso não medi-la, não tratá-la de forma homogênea, nem tampouco re-
totalidade aberta que o sistema de pensamento depreendido das démarches presentá-la abstratamente. Nos Ensaios Bergson denuncia a representa-
do bergsonismo é abordado pelo nosso texto. Da duração como experiência ção abstrata do tempo através da ênfase dada à noção de multiplicidade
psíquica à experiência ampliada do tempo pela intuição de uma pluralidade e propõe, assim, uma filosofia pautada nos dados imediatos de uma cons-
de durações, Bergson nos conduz, de uma maneira ímpar, à ideia de um todo ciência informada pela intuição. Sendo assim, o conceito de multiplicida-
durável consolidado por um monismo do tempo. de aplicado por ele na sua filosofia assume uma importância especial no
Desta forma, o Todo-Aberto é alcançado pela experiência intuitiva da nosso estudo uma vez que viabiliza a ultrapassagem de dualismos filosó-
duração, que se estende do âmbito psíquico - onde ela é pensada na sua ficos pautados na convicção de que o múltiplo se encontra enraizado em
pureza heterogênea - para o plano de uma experiência real que a eleva à unidades substanciais. É que o par Uno-Múltiplo sugere que a diversidade
seja posta como inerente a um sujeito ou a um objeto considerados como
2 Tanto em Heidegger como em Bergson a concepção de totalidade aberta substratos que existem em si mesmos.
se faz por intermédio da ideia de tempo, sendo, inclusive, esta a única tese
semelhante entre os dois autores. 3 H. Bergson, Essai sur les données immédiates de la conscience, in: Oeuvres, Paris, cap. 1.
6 7
-
O Todo-Aberto Introdução

Quando Bergson utiliza o conceito de multiplicidade, ele ultrapassa es- problemas centrais que ensejam a nossa pesquisa: como pensar a totalidade
ses dualismos metafísicos, propondo um entendimento das coisas físicas e aberta pela concepção de um Uno Todo virtual sustentado em uma teoria das
da duração como duas multiplicidades. Para ele, a suposta unidade numérica multiplicidades? E em que sentido as durações imanentes ao Todo-Aberto
das coisas não impede que a tratemos como multiplicidades de termos variá- podem ser compreendidas como fontes de novidade e criação? Daremos as
veis que entram nas suas composições. São multiplicidades quantitativas, respostas a tais questões ao longo de um percurso construído com cinco par-
objetivas, numéricas, extensivas, que podem ser medidas e compreendidas tes acrescidas de uma conclusão.
segundo critérios científicos de quantificação. São multiplicidades atuais que Na primeira parte, buscaremos a elucidação do conceito de "Todo-Aberto';
correspondem a um aspecto objetivo da matéria que pode ser analisado pela compreendendo a filosofia bergsoniana na sua especificidade, uma vez que
nossa inteligência. Tais multiplicidades são discretas e, por isto mesmo, elas ela afirma a existência de uma totalidade que não pode ser dada porque coin-
podem ser divididas e, até mesmo, subdivididas. Por outro lado, a duração cide com a duração. A totalidade durável e aberta conferirá, como veremos,
consiste em uma multiplicidade de fusão, virtual, q lifativa e heterogênea, ao bergsonismo um estatuto singular na história da metafísica que deve ser
onde os termos só se dividem mudando de natureza. As diferenças intrínse- precisado nos seguintes termos: ao invés de constatar o eterno como faziam
cas ao tempo são, portanto, diferenças de natureza, que conferem à subjetivi- as antigas metafísicas, Bergson se move interrogando o novo, isto é, procu-
dade a característica temporal da heterogeneidade e da continuidade. rando entender as condições reais da experiência da criação.
Além disso, a compreensão intuitiva da duração exige que tratemos Para o empreendimento dessa investigação colocaremos em análise
os afetos, as emoções, as sensações e os movimentos intrínsecos a tais da- outros conceitos. D_iremos, em primeiro lugar, que Bergson inovará a con-
dos subjetivos como multiplicidades heterogêneas, existindo entre os seus cepção de matéria ultrapassando os procedimentos que situavam as imagens
termos uma mudança de natureza consoante as suas diferenças qualitativas. qualitativas no espírito e reduziam a matéria a puros movimentos quantita-
Ora, a análise da duração e da multiplicidade qualitativa com movimentos tivos. Rompendo com tais filosofias, ele não só afirmará que a matéria é um
heterogêneos dá a Bergson as condições de fundar uma filosofia do tempo a conjunto de "imagens móveis", como dirá também que os seus movimentos
partir da experiência real das mudanças qualitativas. Entretanto, no primeiro reais são heterogêneos e que eles expressam - em conjunção com os movi-
livro a análise incidia prioritariamente sobre a condição da experiência sub- mentos qualitativos e evolutivos do espírito - uma mudança qualitativa em
jetiva. Restava interrogar sobre a existência da duração para além da subjeti- uma totalidade sempre aberta, Além disso, o conceito de Virtual - noção tem-
vidade. Existiria algo de durável na matéria? Participaria a matéria com todas poral por excelência - ganhará na filosofia bergsoniana um estatuto rigoroso,
as coisas de uma duração universal? servindo para precisar a natureza de um real coexistente com o estatuto atu-
O salto ontológico que viabiliza o conceito de totalidade aberta é inse- al da matéria. Disto se depreenderá um conceito insólito de memória cósmi-
parável de uma dupla afirmação: há uma realidade da matéria que suprime ca, já que um ser do passado será postulado na sua metafísica, possibilitando
a diferença idealista entre ser e perceber; há uma realidade do espírito que uma articulação da duração com a memória. Em terceiro lugar, mostraremos
prolonga a duração na coexistência virtual de um passado ontológico, isto que as experiências restritivas condicionadas pelo organismo e fundadas no
é, de um ser do passado posto como fundamento da experiência subjetiva. senso comum - experiências estas que reduzem o conhecimento aos interes-
Matéria e Memória, livro que estende as teses dos Ensaios, apresenta as con- ses práticos dos seres humanos - poderão ser ultrapassadas em proveito das
dições de uma multiplicidade de durações, afirmando, a um só tempo, a rea- condições da experiência real do tempo na sua dimensão virtual. Com isso, o
lidade da matéria - com uma duração que lhe é imanente - e a realidade do conceito de multiplicidade será abordado para elucidar as condições do mo-
espírito inseparável de uma coexistência virtual de várias durações. Ora, tal nismo que sustentará a nossa argumentação e um movimento de diferencia-
coexistência é o.caminho percorrido pelo nosso texto condicionado por dois ção será evocado para consolidar as condições da tese que finda a primeira

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O Todo-Aberto
- Introdução

parte do nosso estudo: sustentaremos no final que existe um tempo uno e passar a sua condição adaptativa - individual ou coletiva - que o mantém
virtual fundamentado na teoria das multiplicidades temporais. alienado da totalidade criadora.
Como a compreensão dessa totalidade aberta é inseparável de uma A condição humana será retomada na quarta parte do nosso traba-
metodologia construída com o propósito de criticar ilusões imanentes à nos- lho em função da complexidade social da sua existência. No decorrer dessa
sa inteligência, pesquisaremos, na segunda parte, o método criado como via análise, mostraremos as características de uma sociedade aberta através
de acesso à totalidade em questão. Nessa etapa, a noção de intuição ganhará de uma moral e de uma religião igualmente abertas postuladas como con-
relevo na filosofia bergsoniana, constituindo-se em um método rigoroso com dições de análise de uma alma aberta. Elucidaremos, enfim, a passagem das
regras formuladas para a apreensão do tempo real. Ou seja, a construção do sociedades fechadas para as sociedades abertas, mostrando como na via
método será a condição de elucidação de problemas teóricos e práticos que do homem um movimento de abertura se consolidará, tornando possível
ganharão importância cada vez maior na progressão do sistema filosófico. a ultrapassagem da sua condição de animal inteligente pela conversão da
Na nossa terceira parte retomaremos a teorià>""thrvida com a ideia de inteligência à intuição.
evolução que dela se depreenderá. Nessa etapa, nossa abordagem consistirá E assim, para findarmos a nossa investigação, trataremos da gênese
no aprofundamento e na elucidação dos dois aspectos da subjetividade hu- da intuição na inteligência e da conversão desta à primeira. Com isso, dois
mana - abordados na primeira parte - que poderão ser compreendidos em problemas finais consolidarão o nosso trabalho: é possível ter do todo uma
conexão com a esfera da vida dos animais: o aspecto prático - adaptativo e consciência integral? Como pensar a ultrapassagem dos mecanismos adapta-
orgânico por excelência - condicionado biologicamente pela atenção à vida tivos da inteligêncja, para ter do universo espiritual e material uma apreen-
e fundado nas necessidades do ser vivo movente; e o aspecto constituinte são imediata dos fluxos que eles são?
de uma subjetividade-tempo, condição da experiência real da criação pelo Na última parte, mostraremos que o reencontro com o impulso ori-
impulso vital e fundamento dos processos subjetivos inerentes aos se- ginário, que coincidirá com a tomada de consciência do "Todo-Aberto", se
res humanos. O desenvolvimento desses aspectos serão explicitados pela efetuará na via da emoção. E aqui a noção de afeto vai ganhar, na obra de
análise do longo movimento evolutivo da vida que consiste na criação de Bergson, um estatuto singular. É bem verdade que ela já encontrava um lugar
formas variadas de seres viventes geradas pela atualização do impulso específico desde os primórdios da obra, e foi ganhando, na sua evolução, uma
vital visto como um movimento criador. Mostraremos, no decorrer dessa importância cada vez maior. Mas é na condição de emoção especial que o afe-
parte, como a vida, no momento em que se deixa aprisionar por um ciclo to converterá a inteligência à intuição. Mas qual é a natureza dessa emoção
adaptativo, perde contato com o seu alento criador, de caráter temporal, especial? Como precisá-la no sistema bergsoniano? Isto é o que visaremos
fechando-se na via da adaptação. É que a estagnação na filosofia bergso- estabelecer no final, com o intuito de definirmos a condição empírica da gê-
niana encontrará subsídios em uma certa tendência fundada no plano da nese da intuição. Na nossa conclusão afirmaremos, enfim, que a experiência
natureza: a necessidade de extrair do mundo material a energia indis- do todo alia liberdade e criação; e é enquanto criação que a abertura deve ser
pensável para a sua perseverança, vai colocar o vivo em uma disposição pensada e concebida.
adaptativa. Quando esta triunfa, ocorrerá uma perda de contato do viven-
te com o seu impulso criador, resultando daí uma certa alienação. Nesse
caso, cabe perguntar quais serão as condições de ultrapassagens das vi-
cissitudes adaptativas? Como resgatar o impulso originário que colocará
a vida na imanência do seu movimento criador? Segundo Bergson, só na
via do homem .será possível esse movimento, cabendo ao humano ultra-
10 11
PARTl1

Do Movimento ao Todo-Aberto
Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto

possível explicar a passagem de movimentos puramente quantitativos para


imagens qualitativas e não extensas? Ou como explicar que imagens não ex-
tensas correspondam a movimentos extensos?
Na realidade, o que a crise expressa é o confronto que se torna inevitá-
vel entre o idealismo e o realismo mecanicista: o idealista querendo reconsti-

I tuir a ordem da matéria com imagens da consciência - o que reduz o mundo à


representação que temos dele-, o mecanicista querendo explicar o universo
consciente com movimentos mecânicos e materiais. Segundo Bergson, idea-
Da Matéria como Imagem Móvel ao Todo listas e mecanicistas pecam igualmente por excesso, pois

"é falso reduzir a matéria à representação que temos dela, e

D
é falso também fazer da matéria algo que produziria em nós
entre as novidades apresentadas em Matéria e Memória, duas, de representações, mas que seria de uma natureza diferente"4.
início, sobressaem: a ultrapassagem de um impasse estabelecido
pelo confronto entre idealismo e realismo - que conduz o autor a Ou seja, não é possível sustentar, como os idealistas o fazem, que
estabelecer uma superação da dualidade existente na história da os objetos diant.e de nós, que vemos e tocamos, só existem para os nos-
filosofia entre ser e perceber -; e a descoberta de uma duração coextensiva sos espíritos; ou sustentar, como fazem os mecanicistas, a existência de
à matéria, que passa a coexistir com a realidade do espírito para além do um real material oculto, diferente em natureza daquele que nós perce-
psicologismo. Assim, um tempo real, extrapsíquico, virtual, vai - ao longo do bemos. Para Bergson, ambas as posições são excessivas e resultam de
livro - se consolidando em coexistência com os movimentos da matéria, ele- um equívoco que foi construído ao longo dos séculos que precederam a
vando a duração a uma instância transcendental. As duas novidades condi- emergência dessas duas escolas: aquele que afirma uma dualidade en-
cionarão a ontologia de um absoluto durável, isto é, Aberto, concebido como tre a realidade percebida pelos sentidos e a realidade material inves-
expressão de movimentos que se propagam ao infinito. Como a consecução tigada pela ciência. Ora, é nessa dificuldade que as escolas defenderão
desta ontologia supõe uma conceituação preliminar do movimento da maté- suas respectivas posições. Nosso problema é saber se porventura esta
ria precedendo a determinação do virtual; seguiremos a ordem adotada pelo dualidade está bem formulada, ou se não seria ela justamente a razão
autor no livro supracitado, apresentando, em primeiro lugar, a sua teoria das das explicações excessivas que aqui questionamos? Ou seja, como pos-
"imagens móveis".
tular a existência de uma dualidade intransponível entre uma realidade
O impasse que Bergson procura ultrapassar diz respeito a uma crise
psíquica percebida pelos seres vivos e a realidade material? Matéria e
que ocorre na psicologia no fim do século XIX, quando, com ela, não é mais
Memória é um livro concebido com o propósito de compreendê-la, para
possível sustentar uma certa dualidade: a que consiste em colocar as imagens
poder ultrapassá-la.
- não extensas e qualitativas - na consciência, e os movimentos - quantitati-
vos e homogêneos - na matéria. A existência dessa dualidade fazia com que 4 H. Bergson, Matéria e Memória, in: Oeuvres, Paris, p. 161. Citamos os textos de Berg-
considerássemos as imagens percebidas pelos seres humanos como fatos ou son segundo a edição do Centenaire; mas quando estivermos citando textos encon-
realidades psíquicas, e que reduzíssemos a matéria a um movimento quan- tráveis na edição brasileira indicaremos entre parênteses a paginação correspon-
dente ao texto citado (p. 1).
titativo e homogêneo. A crise eclode quando é necessário perguntar: como é
" 15
O Todo-Aberto Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto

Para nós, essa dualidade emerge em filosofias causadas por uma ques- história da filosofia garantiu a explicação causal da origem das imagens, fez
6
tão oriunda do mecanicismo físico estabelecido por Newton no auge da re- com que estas fossem concebidas como acidentes que emanavam do mundo •
volução científica. Por isso, para entendermos, com contundência, a posição Todavia, com o advento da física moderna no séc. XVII, o mundo subs-
crítica de Bergson no livro supracitado, devemos estabelecer uma compreen- tancializado dos antigos foi desconstruído, e surgiu - em gradação sempre
são genealógica do equívoco que se consolidou ao longo dos dois séculos que crescente - uma teoria determinística da matéria construída com princípios
sucederam o mecanicismo científico da era moderna. Como procederemos mecanicistas, onde nela prevaleceram noções quantitativas, homogêneas,
nesta compreensão? Trabalhando a gênese do procedimento pela explicita- que poderiam ser apresentadas através de funções descritas com caracte-
ção da teoria da bifurcação da natureza. res matemáticos e geométricos. Além disso, a revolução científica elaborou
teorias da propagação da matéria que fez com que o conceito desta sofresse
Da bifurcação da natureza profundas modificações. Descobriu-se, pela introdução dos conceitos de luz
Em filosofia o conceito de imagem se estende a tudo o que apare- e som, que a matéria se transmitia 7, isto é, que o mundo material era trans-
ce, sendo sinônimo da noção de fenômeno. Assim, f làmos de imagens missível aos nossos sentidos por intermédio de ondas sonoras e luminosas.
acústicas, táteis, olfativas, sonoras, orgânicas e inorgânicas, quando tra- Com isso, a física clássica reduziu o movimento a quantidades homogêneas
tamos do regime das aparições através da experiência sensível. Entre- que se propagavam e propôs uma abordagem quantitativa do real. Ora, ao ter
tanto, é preciso desde já acrescentar que na compreensão comum da feito tal procedimento, a física de imediato produziu nas filosofias a seguinte
experiência sensorial, tudo o que aparece é referido, por um lado, a um questão: se no mundo só existiam movimentos e quantidades, de onde pro-
real pré-imagético, sendo, por outro lado, aparição para um sujeito do- cederia a percepção da qüalidade?
tado de consciência. Ou seja, as imagens são assimiladas a aparições de Segundo Whitehead, o resultado destas teorias da propagação da matéria,
uma realidade exterior para um determinado sujeito, estando situadas
entre os seres vivos e o mundo. Não tendo uma realidade em si, ou elas "aniquilou por completo a simplicidade da teoria da percepção
se explicam como acidentes de um substrato material; ou se justificam baseada no binômio substância e atributo. Aquilo que
como representações psíquicas de um sujeito. enxergamos depende da luz que penetra o olho. Ademais sequer
Porém, para a compreensão filosófica que partia dessa dupla refe- percebemos o que penetra o olho. As coisas transmitidas são
rência surgiu um problema quanto à origem das imagens, quando, no séc. ondas ou - como julgava Newton - partículas diminutas, as
XVII, já não foi mais possível sustentar que elas existiam como acidentes coisas percebidas são cores" 8•
das substâncias materiais. Ou seja, se as imagens não emanavam mais
Assim, a sistematização do mecanicismo operado pelas ciências físicas
das substâncias materiais onde elas de fato surgiriam? Seriam constru-
produziu um efeito imediato nas filosofias modernas. Dada a impossibilidade
ções psíquicas da consciência do ser humano? Ou efeitos do encontro
de continuar atribuindo as imagens qualitativas e heterogêneas ao mundo
dos movimentos homogêneos da matéria com os nossos sentidos?
material, não restou, aos teóricos filósofos dessa época, outra saída senão
Whitehead, no seu livro O Conceito de Natureza 5, analisa historicamen-
recorrer ao sujeito para explicar a sua gênese. Segundo Whitehead, Locke foi
te esse problema. Para ele, a objetividade invocada pelos antigos vê-se nega-
da quando não é mais possível pensá-las como ancoradas em um substrato
material. A ideia aristotélica de substância, que durante vários séculos da 6 Ibidem.
7 Idem, p. 34.
5 A. N. Whitehead, O Conceito de Natureza, caps. I e li. 8 Ibidem.
17
16
O Todo-Aberto
Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto

o primeiro a enfrentar essa dificuldade através de uma teoria de qualidades


poder de condicionar as coisas percebidas, derivamos daí a crença de que
primárias e secundárias. Nela, segundo ele, há atributos inerentes à matéria
existem em nós representações a priori. Ou seja, há um sujeito do conheci-
que não dependem da nossa percepção. Tais atributos são chamados de qua-
mento responsável pela determinação dos fenômenos, havendo nele repre-
lidades primárias.
sentações que são determinações das coisas conhecidas por nós. Com isso, a
metafísica das substâncias materiais é demolida pelo mecanicismo newto-
"enquanto outras há que percebemos, como as cores, que não
niano, surgindo, em contrapartida, a ideia de um sujeito constituinte elevado
são atributos da matéria, mas são por nós percebidas como
à condição de agente do conhecimento
sendo tais atributos, que são qualidades secundárias" 9 •
Segundo Whitehead, a teoria da bifurcação da natureza encontra em
Surgiu então uma teoria da qual diversos filósofos compartilharam: a Kant uma síntese bem sutil: ao dizer que só podemos conhecer objetos da
teoria das adições psíquicas. Whitehead diz que tal teorização - que repou- experiência sensível, isto é, fenômenos, Kant defende a tese de que tal conhe-
sa na crença de que a consciência é dotada do pod.érc:le engendrar repre- cimento só é possível porque suas condições são formas e conceitos a priori 12
sentações - produziu resultados desastrosos tanto para a ciência quanto de um sujeito transcendental. Em outros termos: o que conhecemos depende
para a filosofia. Segundo ele, o relato contemporâneo da natureza que de- da síntese que operamos em uma diversidade sensível que nos é dada na ex-
veria ser um mero relato daquilo que a mente conhece acerca desta, passou periência. Sendo este sensível fenomênico, e sendo o fenômeno uma aparição
a ser confundido "com um relato acerca da ação da natureza sobre a men- que se constitui quando as impressões sensíveis são apreendidas nas formas
t e "10. Des ta 1orma,
" "o gran d e tema das relaçoes
~ entre natureza e mente se puras da sensibilidade (o espaço e o tempo ) 13, é possível afirmar que só co-
transformou na forma amesquinhada da interação entre o corpo e a mente nhecemos apresentações que são condicionadas no âmbito da nossa sensi-
humanos" 11• bilidade. Assim, os fenômenos são apresentações para nós, podendo ser le-
O fato é que a partir dessa sistematização a realidade passou a ser con- gitimamente submetidos às representações a priori do nosso entendimento.
cebida como dupla, e a natureza viu-se duplicada em influente e efluente. Ora, Vemos aqui o mesmo problema assinalado por Whitehead: em Kant,
na falácia das teorias da bifurcação, Whitehead identifica a natureza influen- o conhecimento da natureza só é possível à luz de um condicionamento do
te - analisada pelos físicos mecanicistas - com os movimentos homogêneos sensível por representações a priori do entendimento. Kant impõe limites ao
das partículas materiais; sendo a natureza efluente identificada àquilo que conhecimento humano, estabelecendo na sua obra um problema de origem
é percebido pelos nossos sentidos. Na realidade, a natureza física influen- metafísica: se conhecemos fenômenos, pelo fato destes serem apresentações
te é posta como causal e reduzida a movimentos quantitativos que podem para nós, o que podemos dizer da existência do mundo em si? Podemos pen-
ser analisados por funções; estando a realidade percebida contaminada por sá-la como coisas nelas mesmas, mas não podemos conhecê-las. Neste caso, a
processos que se originam na sensibilidade, produzindo ilusões que devem
ser corrigidas pelo nosso intelecto. Como a percepção dos sentidos supõe a 12 A priori significa independente da experiência, servindo para designar a anteriori-
dade lógica de determinadas representações. No kantismo aparece corno um fato
intervenção da consciência, no momento em que cremos que ela possui o no entendimento humano, evidenciando o poder do sujeito cognoscente de operar
sínteses cognitivas independentes e condicionantes da experiência possível. Sobre
9 Ibidem. Sobre a distinção entre as qualidades primárias e secundárias ver também o a priori em Kant ver J. Hartnack, La teoria dei conocimento de Kant; e G. Deleuze,
F. Duchesneau, John Locke, in: História da filosofia, O iluminismo, organizada por Para Ler Kant.
François Chatelet. 13 O espaço e o tempo são também chamados de intuições a priori, sendo pensados
10 A. N. Whitehead, op. cit., p. 35. corno condição de possibilidade das intuições empíricas. Em Kant tais intuições são
formas puras da sensibilidade. A respeito disso, ver 1. Kant. Crítica da Razão Pura,
11 Ibidem. parte 1.
18 19
O Todo-Aberto Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto

existência de tais coisas permanece incondicionada, ultrapassando os limites Por outro lado, uma teoria mecanicista também se desenvolveu: o ma-
do conhecimento científico. Há um real incondicionado, não conhecido pelo terialismo realista. Nela, os fenômenos que emergiam no seio da consciência
entendimento, que faz com que o antigo realismo metafísico, pelo menos no recebiam uma explicação causal no âmbito dos movimentos homogêneos e
terreno especulativo, seja posto em questão por Kant14. Doravante, a diferen- quantitativos da matéria. No mecanicismo a compreensão dos fenômenos re-
ça entre conhecer e pensar duplica a diferença entre fenômeno e coisa em si; cebeu uma explicação diferente daquela que foi ofertada pelo idealismo:
sendo o fenômeno algo que só existe enquanto representação para um sujeito.
Enfim, aquilo que podemos conhecer restringe-se aos fenômenos de- "não é a consciência que condiciona as imagens percebidas, estas
terminados pelo entendimento nos limites fixados pela ciência, e estes fe- se produzem como efeitos do encontro do sujeito que percebe
nômenos são condicionados por representações a priori situadas no sujeito. com os movimentos materiais, estando estes na condição de
Quanto às coisas em si, Kant crê que seja possível determiná-las na esfera de produzir realidades aparentes; sendo, na verdade, de uma outra
uma metafísica dos costumes, situada no domínio de ·uma filosofia prática natureza: são movimentos quantitativos, extensos e numéricos."
construída pela ideia de um mundo puramente racional.
Agora, com a dualidade instaurada pelas duas teorias temos na cons-
Novamente, nos termos propostos pela consecução das duas críticas,
ciência imagens qualitativas e não extensas e, na matéria, movimentos quan-
Kant introduziu - de forma sutil - a distinção entre dois reinos: o reino dos
titativos e homogêneos. O problema é saber como passar de uma ordem à
fenômenos e o reino das coisas em si. Ou seja, o domínio da necessidade ver-
outra, ou, como interroga Deleuze:
sus o domínio da liberdade. Ora, não encontraríamos em síntese o mesmo
problema da bifurcação da natureza? A distinção entre natureza influente e
"como explicar que movimentos de repente produzam uma
efluente? A constituição de um sujeito constituinte que impõe à experiência
imagem, como na percepção, ou que a imagem produza um
as suas representações a priori e concebe um destino racional para o homem
movimento como na ação voluntária? ... E como impedir que
dentro de um horizonte metafísico determinado por uma razão prática?
o movimento já não seja imagem, pelo menos virtual, e que a
Percebemos, com relativa clareza, que o advento da ciência colocou
imagem já não seja movimento pelo menos possível?" 15 .
para a filosofia a tarefa de explicitar os limites do conhecimento. Assim, na
tentativa crescente de validar uma tarefa para a filosofia que se coadunasse E assim explicamos a gênese da dualidade e o problema que deflagra
com as operações da ciência, vimos o universo filosófico progredir na afirma- o impasse que Bergson quer ultrapassar. Entretanto, a ultrapassagem de
ção da existência de uma duplicação da natureza cujo paroxismo deflagrou a tal impasse condiciona toda a teoria inicial de Matéria e Memória, que cul-
crise que pretendemos narrar. minará na tese central que consiste em pensar a articulação entre o corpo
Com isso, as teorias da bifurcação da natureza fizeram com que o idea- e o espírito.
lismo moderno ganhasse forma. O mundo viu-se, para o idealista, reduzido Assim, Bergson se opõe, a um só tempo, tanto ao realismo das substân-
à representação consciente que temos dele, estando a matéria relegada ao cias individuadas dos antigos, quanto ao realismo mecanicista e ao idealismo
plano do inefável, da escuridão que necessitava de uma luz que emanasse da moderno. Por um lado, ele confere uma positividade ontológica à imagem -
consciência . que o idealista creditava à consciência - e nega, por outro lado, a crença em
substratos ou movimentos homogêneos materiais como pontos de ancoragem
14 Sobre a distinção entre fenômeno e coisa em si ver I. Kant, op. cit., Estética trans-
cendental; e sobre o caráter problemático da existência da coisa em si ver J. Lacroix,
15 Gilles Deleuze, Cinema - A imagem-movimento, p. 76.
Kant e o kantismo. Cap. 2.
21
20
O Todo-Aberto Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto

causais para as imagens - sustentadas tanto pelo realismo antigo, quanto pelo Em suma, Bergson critica, por um lado, as filosofias pautadas em re-
que concebem as imagens de-
realismo mecanicista. Afirma categoricamente que os movimentos são hete- presentações inatas ou a priori da realidade
certas concepções
rogêneos e que as imagens são reais. Propõe assim uma nova concepção da finidas como produtos da consciência, e critica também
imagem e do movimento, dizendo que a ideia de movimentos homogêneos re- mecanicistas derivadas de procedimentos que tornam espaciais o movimen-
17, concebendo as representações como meros efeitos de movi-
sulta de construções falaciosas elaboradas pela inteligência, o que favorece a to e O tempo
distinção entre representação qualitativa e mundo físico. Além disso, Bergson mentos fisiológicos.
propõe também um abandono da concepção de coisa em si que fundava a an- Na verdade, o que Bergson elucida, com contundência, é que a emer-
tiga metafísica, propondo, em contrapartida, uma nova concepção da matéria. gência desses procedimentos criticados pode ser - em sua gênese - creditada
Assim, ele recusa, tal como Whitehead, a dualidade originada nas teorias da a uma inteligência que constrói - nas duas esferas - teorias derivadas dos
propagação material entre imagem e movimento, construindo um conceito interesses práticos e funcionais; relatando como ela favorece a cisão especu-
adequado à realidade da matéria: a imagem-movimentó - lativa que acabamos de analisar. Mostremos como isso ocorre colocando, a
Para Bergson, entre a percepção imagética da matéria pelo ser huma- princípio, a maneira como a inteligência compreende o movimento.
no e a matéria nela mesma, a diferença existente é de grau e não de nature- Para Bergson, quando a inteligência reflete acerca do movimento, pen-
za: neste aspecto, é preciso reintegrar a imagem percebida ao plano material sa-o sempre em termos abstratos, como "uma medida comum, um denomi-
para enfim alcançar o complexo conceito de imagem dotada de movimento. nador comum que permite comparar entre si todos os movimentos reais" 18•
Mas na verdade, o que a inteligência compreende não é propriamente o mo-
O em si da imagem vimento, mas, antes, a trajetória deixada pelo móvel no momento em que este
Ao nos dizer, logo no prefácio de Matéria e Memória, ser a "matéria um encerra o seu percurso.
conjunto de imagens-móveis" 16, Bergson anuncia a sua primeira novidade: Para Bergson, entre o movimento e a trajetória deixada pelo móvel
propõe-nos uma identidade entre matéria e imagem, superando a dualidade existe uma diferença de natureza que a inteligência negligencia. Primeira-
existente nas teorias da bifurcação entre ser e perceber. É que para ele as mente, porque o movimento como ato de percorrer é sempre presente, ao
imagens são reais, a consciência não detém o poder de engendrar as imagens passo que a trajetória, enquanto espaço percorrido, é uma representação
percebidas da matéria. Nesse caso, é clara a ultrapassagem do idealismo que abstrata; em segundo lugar, porque o movimento é contínuo, e quando se
o início do livro desenvolve: as imagens não são engendradas pela consciên- divide o faz sempre mudando de natureza; enquanto que a trajetória é divisí-
cia, elas advêm do mundo. vel, e, até mesmo, infinitamente divisível; por último o movimento é sempre
Por outro lado, Bergson concebe a matéria em movimento. Elege, como heterogêneo, implicando em uma duração real, enquanto que as trajetórias
ponto de partida, uma matéria fluente onde o movimento se apresenta como podem ser remetidas para um único espaço homogêneo 19, resultando em
dado imediato. Mas censura, desde então, os materialistas que concebiam
o movimento em termos quantitativos e homogêneos; já que nessa teoria 17 E aqui avaliamos as operações que engendram a bifurcação da natureza, mostrando
existia uma espacialização do movimento pela redução deste a posições des- como elas se encontram condicionadas em Bergson pelas operações da inteligência.
A ideia de uma inteligência funcional que trata a realidade física com procedimentos
contínuas no espaço, inseparáveis de uma sucessão constituída por instantes
matemáticos e espaciais, tratando o conhecimento desta realidade com representa-
descontínuos. ções supostamente a priori, será amplamente analisada na segunda parte do nosso
trabalho.
18 Idem, p. 338 (p. 167).
19 Cf. Idem, cap. 4, e os comentários de Gilles Deleuze, op. cit., cap. 1.
16 H. Bergson, op. cit., p. 161 (p.l).

22 23
O Todo-Aberto Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto

uma concepção espacial do tempo. Ao analisar o movimento a partir da tra- engendradas pelos interesses práticos, encontrando as
passar tais operações . .
jetória, a inteligência crê que podemos compreender a mobilidade por inter- do mundo material.
condições reais da heterogeneidade
médio de pontos imóveis. Sem hesitar, Bergson propõe um retorno ao campo perceptivo como
Se na história do pensamento o movimento sempre foi posto em re- condição da apreensão do movimento como dado imediato. Só a percepção
lação com o tempo, e este foi concebido como uma representação indireta imediata do movimento poderá nos dissuadir da certeza de ser ele algo que
derivada dele; na medida em que o movimento passa a ser analisado como se divide infinitamente 20• Todavia, é igualmente preciso que a percepção se
espaço percorrido, dá-se inevitavelmente uma homogeneização do tempo. liberte dos interesses práticos aos quais se encontra submetida. Em outros
Ou seja, quando o movimento é confundido com o espaço percorrido não é termos, é preciso que a atenção se desloque do âmbito dos nossos interesses
mais possível evitar uma compreensão do tempo a partir de instantes des- práticos para investir no campo sensorial 21. Só assim o movimento tende a
contínuos, onde ele passa a receber um tratamento numérico. aparecer tal como é: indivisível, contínuo e heterogêneo.
Segundo Bergson, de nada adianta recompor o mpvimento com pontos Ora, na percepção imediata não apenas o movimento é indivisível, como
no espaço e instantes no tempo, pois ao procedermos d ;a forma deixamos também o tempo que ele implica não pode também ser concebido por instantes
escapar do movimento o essencial, a saber: a sua mobilidade. Por outro lado, geométricos. O que significa dizer que os movimentos reais supõem um tempo
deixamos escapar, igualmente, do tempo a sua continuidade heterogênea. heterogêneo, completamente distinto do tempo instantâneo. Bergson denuncia o
Ora, com tal procedimento de redução do mundo físico a movimen- instante matemático como uma ficção, do mesmo modo que havia denunciado a
tos homogêneos e quantitativos, não houve outro recurso para a com- ilusão da inteligência quanto à confusão engendrada entre movimento e espaço
preensão do mundo imagético apreendido pela percepção, senão o de percorrido. Para ele, os movimentos reais implicam em um tempo tão contínuo
buscar no interior da consciência as representações condicionantes uti- e heterogêneo quanto ele. E este, na filosofia bergsoniana, chamar-se-á Duração.
lizadas para o conhecimento da realidade. Ou seja, se a inteligência apli- Estamos agora em condições de compreender a tese desenvolvida no
cada ao conhecimento da matéria deu ao mecanicista a convicção de que primeiro capítulo de Matéria e Memória, ultrapassando, assim, o impasse por
o mundo material poderia ser analisado por proposições matemáticas nós analisado.
puramente quantitativas, isto fez com que a filosofia idealista se mobili- Para Bergson, matéria, imagem e movimento constituem uma complexa
zasse na tentativa de elucidar a gênese das imagens - qualitativas e não realidade cujos termos devem ser rigorosamente explicados. Como podemos
extensas - no seio da consciência. Dessa forma, antiga ou moderna, con- explicitar esta tripla identidade? Com efeito, estamos diante de um mundo
vicções surgidas no seio da inteligência se implantaram no pensamento onde a matéria é concebida como um conjunto de imagens móveis; mundo físi-
filosófico, dando margem a uma bifurcação da natureza incrementada
por um certo procedimento científico. 20 Esta percepção imediata se encontra a serviço de uma intuição filosófica que condi-
A inteligência condicionada pelos interesses práticos dos seres humanos, cionará todo o procedimento de elucidação do tempo uno e virtual. Aqui a intuição
possibilitou a cisão do mundo em dois: alocou as representações imagéticas será o meio de evitar as abstrações da realidade, conduzindo a teorização da dura-
na consciência, construindo uma imagem do pensamento com ideias inatas ou ção e da totalidade aberta. Na parte seguinte trataremos da intuição como método,
retomando na parte final a gênese da intuição na esfera prática. Para uma aborda-
representações a priori; e atribuiu o movimento homogêneo à matéria, subor- gem específica sobre a percepção da mudança ver o artigo 'A percepção da mudan-
dinando-o a operações matemáticas exercidas por um mecanicismo científico. ça" no livro O pensamento e o movente. São Paulo: Martins Fontes, pp. 149-182.
21 Sobre a inserção da vontade no campo sensorial ver H. Bergson, La Pensée et Le
Dito de outra forma, foram as operações exercidas pela inteligência
mouvant, in: Oeuvres, especialmente a conferência La perception Du changemant.
que ocasionaram as teorias - que no item anterior - engendraram a falácia Trabalharemos esta questão mais adiante, quando estivermos analisando a intuição
das bifurcações da natureza. O problema agora é saber como é possível ultra- bergsoniana.

24 25
Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto
O Todo-Aberto

ao ter afirma-
coem que a dimensão real da matéria é uma multiplicidade de imagens-moVi- Há, contudo, uma última equivalência a ser estabelecida:
possui uma positividade fenomênica, sendo o em si
mento; onde as imagens - relacionadas cada uma a si mesmas - influem umas do que a matéria fluente
luminosidade fora da consciência humana, Berg-
sobre as outras, das maneiras as mais variadas. Mundo que é pura mobilidade desta testemunho de uma
o lema da metafísica clássica que tendia a colocar
onde as imagens não se distinguem do movimento que executam ou que re son propõe que invertamos
a esta o caráter de luz natural -,
cebem; não havendo nenhum móvel por debaixo do que se movimenta, como a luz na consciência humana - creditando
pura luz se difundindo.
tampouco matéria oculta para além do que aparece. Há tão somente o que apa- para pensar, enfim, o plano da matéria movente como
como apa-
rece, ou seja, um conjunto de imagens que já é imediatamente movimento. Assim, segundo Deleuze, do conjunto das imagens-móveis, vistas
o fun-
Trata-se de um mundo onde as imagens "agem e reagem umas sobre rições, é preciso afirmar, que "a identidade da imagem e do moviment
como
as outras em todas as suas partes elementares" 22; mundo descentrado por da-se na identidade da matéria e da luz. A imagem é movimento assim
a matéria é luz ... No plano das imagens móveis ainda não existem corpos
25"
excelência, onde as influências recíprocas entre as imagens se fazem notar
na variação do universo; mundo - que uma vez repo.r,t,fl-do ao dinamismo da com as delimitações das linhas rígidas, com contornos precisados de acordo
própria matéria - relativiza a distinção entre interioridade e exterioridade , com as percepções humanas. Há, tão somente, linhas ou figuras de luz. "São
já que as imagens variam nelas mesmas, estando, igualmente, em relação imagens em si. Se elas não aparecem para alguém, isto é, para um olho, é por-
26
com todas as outras. que a luz ainda não se refletiu nem rebateu" •
Segundo Bergson, "neste mundo toda imagem é interior a certas ima-
gens e exterior a outras, mas do conjunto das imagens não é possível dizer A consciência de direito e o Todo-Aberto
Torna-se, enfim, possível perceber a inversão que Bergson opera na fi-
que ele nos seja interior ou que nos seja exterior" 23, pois interioridade e ex-
losofia em relação à tradição idealista: não é a consciência humana a respon-
terioridade não são outra coisa senão relações entre imagens, relações entre
sável pelo condicionamento das imagens. O mundo é imagem em si, "a repre-
movimentos imanentes ao complexo de imagens, "vibrações de toda espécie,
sentação está efetivamente aí, mas sempre virtual, neutralizada" 27• E quando
intensidades inerentes ao conjunto dos blocos de movimento que exprimem
uma mudança na duração" 24. Bergson for falar nesse contexto de consciência humana - como veremos mais
adiante -, reservará, a esta não só o papel de refletir seletivamente as ima-
Quando a imagem é postulada na sua identidade com a matéria - onde
gens oriundas do mundo (aspecto prático da subjetividade), como também de
os átomos em movimento são igualmente imagens -, deixa-se patente a pos-
analisar as contrações oriundas das vibrações da matéria de onde resultam
sibilidade dessa imagem ser sem ser percebida pelo olhar humano. Todas as
as qualidades percebidas (aspecto primário da subjetividade contração). Para
imagens são, assim, solidárias entre si, continuando umas nas outras segundo
Bergson, a consciência como superfície refletora - Écran - é responsável pelo
relações variáveis. Com tal tese Bergson atinge a realidade em seu estado fluen-
enquadramento das imagens. Nela, as qualidades das imagens percebidas são
te. O mundo passa a ser concebido como movimento autoimanente propagan-
do-se ao infinito e a variação pode, enfim, ser postulada no todo do universo. contrações dos movimentos da matéria, e não representações engendradas
pela consciência. Em outros termos: "a matéria é luminosa, a imagem é luz em
si, cabendo à consciência o papel de revelá-las por reflexão" 28•
22 H. Bergson, Matiere et Mémoire, in: Oeuvres, p. 169 (p. 9).
23 Idem, p. 176 (p. 16).
25 Gilles Deleuze op. cit., p. 81.
24 So re ideia de vibrações que constituem a matéria como um conjunto de imagens
-moveis podemos conferir o cap. 4 de Matéria e Memória, pp. 332-340 (220-230); 26 Ibidem.
sobre a duração do universo e a latitude da criação que nele pode existir Cf. Evolu- 27 H. Bergson, op. cit., p. 186 (p. 24).
ção Criadora p. 782 (p. 339). Aqui o leitor também poderá consultar os comentários 28 Na tradição idealista dava-se o contrário: era a consciência que detinha a luz, isto é,
de Gilles Deleuze sobre o assunto nos caps 1 e 4 de A imagem-movimento Cinema 1.
27
26
O Todo-Aberto Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto

Mas se as imagens estão no mundo, e a consciência humana encarre- preencherão a consciência de fato, conferindo a esta uma es-
e lembranças
e duração se implicam na reciprocida-
ga-se tão somente de contraí-las, refleti-las e enquadrá-las, não será legítimo essura durável. Ora, se consciência
não concluir - sabendo que
pensar que - graças à positividade fenomênica da matéria - esta já não supõe e dos dados imediatos dos seres vivos, como
- pela existência de uma
- ao menos de direito - uma consciência? Como podemos elaborar tal supo- os movimentos materiais participam da duração
esta inflexão, há,
sição? Através de duas razões extraídas da filosofia bergsoniana. consciência coextensiva ao todo material? De acordo com
interações
A primeira diz respeito ao próprio estatuto da consciência: como as ao menos de direito, uma consciência no todo: consciência das
imagens estão no mundo e nós tomamos consciência delas a partir da apre- existentes entre os movimentos heterogêneos da matéria, e que exprimem
ensão da matéria, há um aspecto onde consciência e imagem são coinciden- uma mudança qualitativa no todo ou na duração.
tes. Ou seja, a nossa consciência, com a opacidade indispensável para que a Mas aqui as distinções devem ser retidas rigorosamente: a diferença
imagem refletida se forme como um quadro, é condição de fato para a seleção entre o que é de direito e o que é de fato remete à distinção entre virtual e
das representações. Entretanto, sendo as imagens _reais, há de direito (quid atual. A consciência não existe de fato no Todo, mas sim de direito. E se pen-
juris) uma consciência exposta virtualmente no plan8 ;ateria!. É que as ima- sarmos que o Todo progride à maneira de uma consciência, é preciso a ele
gens móveis se interagem. Ações e reações são reflexões objetivas e totais; atribuirmos o mesmo estatuto que a consciência recebe quando é coestendida
sendo a consciência nesse estado difusa, virtual, confundindo-se com as ima- ao plano material: o todo é, como a consciência, uma virtualidade.
gens luminosas que se propagam ao infinito 29• Cabe observar também que a equação consciência, todo e virtual já é
A segunda razão resulta da abordagem temporal da consciência. Nesse suficiente para nos dissuadir da ideia de identificar o Todo ao conjunto da
caso a consciência analisa estímulos e escolhe dentre movimentos possíveis matéria. Se o todo, tal como a consciência, é virtual, a noção de conjunto ma-
o mais eficaz, deliberando acerca da ação que o ser humano deve adotar, ao terial torna-se pobre para a sua compreensão. Em Bergson o Todo não pode
utilizar as experiências passadas postas como condições das ações futuras. ser dado, não se confundindo com um conjunto fechado. Assim, o que o autor
Ora, a análise dos estímulos recebidos pelo ser humano e as escolhas que nos fornece são condições para pensarmos na impossibilidade de um universo
precedem as decisões motrizes, permitem-nos conceber a consciência na concebido como conjunto de elementos dados. Se é fato que no universo po-
duração imanente ao intervalo de movimento existente entre as imagens demos conceber conjuntos, e, até mesmo, conjuntos relativamente fechados;
percebidas pelos seres humanos e as ações que eles devem promover para é fato também que, com relação a cada conjunto, podemos supor um conjunto
reagirem às situações que o mundo impõe. Nesse intervalo, afetos, emoções maior com o qual o primeiro se encontre em interação. Neste caso, existe algo
colocando os conjuntos em interação, similar a um fio tênue que os abrem para
um todo nunca dado. Em suma, o Todo não pode ser dado porque é Duração;
era ela que, com as suas formas a priori, condicionava as representações perceptivas e esta é uma totalidade em processo sempre aberta, como condição da emer-
do mundo.
gência do novo que, com certeza, caracteriza o tempo no seu aspecto essencial.
29 Bergson chega mesmo a dizer que se apreciarmos a percepção consciente como
análoga a uma visão fotográfica não devemos evitar a conclusão que se impõe na A esse respeito Prigogine e Stengers dizem o essencial: "Bergson
analogia: a de que a fotografia, se "fotografia existe", já se encontra tirada no "pró- evoca a totalidade, porém se opõe a toda concepção de totalidade pre-
prio interior das coisas". Só que aí, na ausência da placa indispensável para que a
determinada que, como o mecanicismo, desembocaria na negação da
foto se revele, devemos pensá-Ia como translúcida, isto é, imagem luminosa que se
propaga sem nenhuma perda. Esta analogia é significativa se percebermos que nela criatividade" 30• Pois a totalidade para ele, dizem os autores, é uma "to-
se estabelece a inversão do idealismo: se as imagens, tais como fotografias, já estão
tiradas e expostas no mundo, já supõem, ao menos de direito uma consciência difu- 30 I. Progogine e I. Stengers, Naturaleza s Creatividad, in: Jllya Prigogine, Tan solo una
sa e virtual, à espera de uma consciência de fato capaz de enquadrá-las e revelá-Ias.
1/usión? P. 74.
H. Bergson, Matéria e Memória, in: Oeuvres, p. 188 (p. 26).
29
28
O Todo-Aberto Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto

talidade em processo, ... em evolução, sem objetivo predeterminado" 31• • exemplos fundamentados na tese bergsoniana:
Ora, é da identidade do Todo com a Duração que tiramos a concepção de respeito, e1e nos fornece dois . .
· ·ro lugar'., o movimento dos seres ammados devem ser imputados a
um Todo-Aberto, consolidada conceitualmente no livro A Evolução em pnme1 . . .. . .
seus modos de ex1stenc1a. Os amma1s se movem
Criadora. E é isto que leva Bergson a pensar o universo na sua totalida- necess1'dades imanentes aos
que "o movimento su-
para comer, migrar etc" Podemos até mesmo dizer
34

de como mutável, progredindo ininterruptam ente à semelhança de uma • Nesta iferença,


põe uma diferença de potencial e se propõe a preenchê-la"
35

consciência, fazendo surgir a cada passo algo de novo, sendo a mutabi- lugares abstratamente . Nao vamos
não devemos considerar as partes ou os
lidade a expressão da sua abertura. Como ele mesmo o diz: "a Duração os
à toa de um lugar a outro. Movemo-nos, isto sim, porque experimentam
do universo deve constituir uma unidade com a latitude de criação que
fome, ou somos premidos por algum interesse prático. Quando alcançamos
nele pode haver" 32 •
a meta que induz o movimento - como, por exemplo, comemos o alimento
Mas como ocorre a progressão da noção de totalidade? Na verdade, a
encontrado na suposta fonte - não é só o nosso estado que resulta alterado.
identidade do todo à duração só se torna possível qw_r:ido Bergson fornece a
Se por um lado já não estamos com fome, por outro, o alimento já não mais
esta última um estatuto real, ultrapassando o psicologismo dos Ensaios sobre
existe. Assim, há uma alteração no todo que compreende o animal, o alimen-
os dados imediatos da consciência. E eis aqui a segunda novidade de Matéria e
to, a fome saciada, a ingestão do alimento e toda uma mudança qualitativa
Memória: a admissão de um movimento imanente à matéria eleva a Duração compreendida entre os dois.
a uma instância real, desvinculando-a da condição de mera experiência psí- Além disso, devemos pensar a mesma coisa para os corpos: "a queda
quica. Neste aspecto, o primeiro encaminhamento da progressão interrogada de um corpo supõe um outro que o atrai e exprime uma mudança no todo que
se encontra nas teses estabelecidas nesse livro, e depois retomadas nas pági- os compreende a ambos" 36 • Quando descemos com o pensamento a um nível
nas iniciais de A Evolução Criadora, acerca da natureza dos movimentos re- molecular, isto é, quando pensamos em "átomos puros, seus movimentos tes-
ais. Voltemos então à análise do movimento, para compreendermos rigorosa- temunham uma ação recíproca de todas as partes da matéria, que exprimem
mente a noção de totalidade aberta admitida como coextensiva ao universo. necessariamente modificações, mudanças de energia no todo" 37
Como vimos, Bergson concebe o movimento como um dado heterogê- Com tais exemplos, podemos, enfim, ressaltar que o movimento he-
neo, afirmando que ele expressa uma mudança na duração. Ao pensá-lo desta terogêneo exprime uma mudança qualitativa no Todo ou na Duração. Este
maneira, ele propõe que o apreendamos como algo mais do que um mero estado primeiro de matéria fluente é um conjunto de imagens-móveis,
deslocamento de partes no espaço. É fato que os movimentos extensivos se onde das interações destas uma mudança qualitativa irá se expressar na
fazem por deslocamentos de partes, e não se trata de negar este aspecto de- duração. O todo é aqui pura expressão das interações, variação contínua
les. Porém, o que se pretende afirmar é que algo se passa em tais desloca- que a tudo reúne em um ponto de unidade sempre virtual, para em segui-
mentos, remetendo a uma mudança mais profunda de natureza temporal. A da restituir à matéria disposições diversas que testemunham uma mudan-
cada deslocamento é necessário fazer corresponder uma alteração. ça qualitativa no universo.
Nesse sentido, Deleuze tem razão quando diz que o movimento "ex- O plano material - a matéria do ser com seus movimentos extensivos
prime algo mais profundo que é a mudança na Duração ou no Todo"33, obser- propagando-se ao infinito - deve ser compreendido dinamicamente. Quando
vando, logo em seguida, que o Todo deve ser concebido como ''.Aberto". A este
34 Idem,p.19.
31 Ibidem. 35 Idem, p.17.
32 H. Bergson, l 'Évolution créatrice, in: Oeuvres, p. 782 (p. 293). 36 Idem, p.17.
33 Gilles Deleuze, op. cit., p. 17. 37 Idem, p.17.
30 31
O Todo-Aberto

dissemos que as interações materiais exprimem uma mudança qualitativa na


duração, afirmamos a sua participação no Todo, deixando claro que este não
pode ser dado, porque é aberto. Entretanto, podemos perguntar qual o nível
de participação da matéria nesse Todo? Haveria um grau preciso dessa parti-

II
cipação? Tais respostas serão dadas no final desta parte quando alcançarmos
condições mais precisas para a elucidação do nosso propósito.
Agora, daremos prioridade às seguintes questões: se uma consciência
de direito coexiste com o todo, podemos saber como o humano pode ter par-
ticipação nesse todo, isto é, nessa abertura enquanto ser consciente? Se é fato Subjetividade e Duração
que o plano descrito pela construção bergsoniana faz valer a tese de uma to-
talidade em constante mutação, pode o homem ser fompreendido igualmen-

A
te como um todo? As respostas a tais questões fazem com que a análise do
Todo-Aberto se processe na consideração dinâmica dos seres vivos e na con- consciência de direito, coextensiva ao mundo material, é a respos-
secução das condições especiais de um ser vivo específico, a saber: o homem. ta postulada por Bergson na sua ultrapassagem do idealismo. Ao
Por isso, devemos conciliar esta apresentação inicial com uma outra, fazê-la coincidir com a imagem luminosa, com a propagação da luz
onde nela Bergson assimila o ser vivo a uma totalidade. Na consideração do no movimento extensivo da matéria - estando assim o seu estatuto
vivo como duração, a abertura ganhará uma inflexão nova, conduzindo a análise definido como algo difuso -, Bergson a concebe como uma pura virtualidade.
para o âmbito de uma compreensão temporal do ser vivo. Passemos então a ela. Agora, devemos analisar como uma consciência de fato surge atual-
mente com a subjetividade do vivo e, surgindo, quais são os seus aspectos
fundamentais. Haverá com ela algum tipo de fechamento em relação ao plano
da matéria? E não seria tal fechamento o resultado dos interesses práticos e
adaptativos inerentes à matéria viva? Além disso, essa seria a única forma
de abordagem da consciência, ou não haveria um aspecto mais profundo e
imediato dela a ser induzido na nossa análise?
Tais perguntas nos permitem colocar imediatamente em evidência
dois aspectos da subjetividade: um funcional, adaptativo, "interesseiro" e
fechado - que é condicionado organicamente pelas ações utilitárias que o
ser animado exerce no mundo para sobreviver; e o outro temporal, contí-
nuo e heterogêneo - constituinte do lado interno da experiência subjetiva.
O primeiro aspecto será abordado de forma sumária nesta parte do nosso
trabalho, uma vez que a
nossa meta aqui é explicitar a dimensão temporal da
subjetivid ade para - .
a consecuçao de uma ontologia.
Já no segundo aspecto - ali onde a subjetividade será avaliada como
- da apreensão
cond·içao
imediata do Todo-Aberto - a consciência será infor-
. . - fundamental do tempo, estando o humano possibili-
mada por um a mtmçao

33
32
a 1'11
O Todo-Aberto Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto

tado de intuir o passado extrapsíquic o, podendo, igualmente, simpatizar c0111


As imagens ou as matérias vivas - das quais as imagens humanas aparecem
os movimentos da matéria. Sendo assim, é pelo segundo aspecto que iremos
como exemplares - introduzem no mundo material u m intervalo de movi-
nos interessar prioritariam ente nesta parte.
mento que as constituem.
Contudo, diremos que do primeiro aspecto duas característic as vão Ora, a compreensão desse intervalo de indetermina ção exige a explici-
merecer u m certo destaque; pois é com elas que apreenderem os a consci-
tação de três operações práticas como condições da intuição do ser do passa-
ência imediata da duração, inferindo daí os paradoxos que demonstrarã o a
do que ocorrerá pela via do reconhecime nto. De acordo com a primeira, há na
existência de u m ser do passado: a) há um intervalo de indetermina ção no
evolução da vida que culmina com o surgimento do ser humano, u m trabalho
humano que pode ser apreendido por uma intuição dando margem a uma
de especializaçã o de faces que se encarregam da função de receber estímulos
compreensã o imediata da duração interna; e b) há u m reconhecime nto aten.
- as chamadas faces sensoriais-, ao mesmo tempo em que outras se especia-
to que viabiliza a construção de paradoxos do passado, dando a este um es-
lizam na tarefa de executar movimentos - faces motoras. E m outros termos,
tatuto ontológico. Analisemos então a primeira característic a do aspecto fun.
o humano, graças ao intervalo que impinge à matéria, não recebe e devolve
cional, colocando em destaque a existência do intervalo G'ei.ndeterminação.
movimentos pelas mesmas faces, trazendo consigo uma hesitação mais com-
Segundo Bergson, a imagem viva se apresenta como transmissora de
plexa que condiciona a sua atividade enquanto ser consciente.
movimento, estando e m interação com as demais imagens do plano material.
Em segundo lugar, o ser humano, graças ao trabalho de especializaçã o
Nesse sentido, o corpo, apreendido como uma imagem-mov imento, se encon• li

tra situado entre os movimentos recebidos do mundo externo e os movimen· das faces sensoriais, impõe à consciência atada aos interesses práticos uma ati-
tos executados pela face motora. Para Bergson - que toma como exemplo o seu vidade seletiva do mundo com o qual interage, fazendo com que esta retenha
próprio corpo - "as imagens exteriores influem sobre o meu corpo e recebem tão somente o que for do seu interesse, deixando-se atravessar por tudo aquilo
38
deste ações que introduzem nelas alguma modificação" • Bergson acrescenta: que não lhe for interessante. As faces receptivas isolam determinada s imagens
dentre "todas as que participam e co-agem no universo" 41• E essa seleção vai
"percebo bem de que maneira as imagens exteriores influem definir - como veremos nas partes posteriores - as representaçõ es imagéticas.
sobre a imagem que chamo meu corpo: elas lhes transmitem Enfim - consequênci a inevitável das característic as precedentes - , a
movimento. E vejo também de que maneira este corpo influi matéria viva delibera, dentre ações possíveis a serem àdotadas qual a mais
sobre as imagens exteriores; ele lhes restitui movimento" 39. eficaz para responder à situação dada. E nessa deliberação tor a-se funda-
mental reconhecer o objeto sobre o qual nós iremos agir; e isso apela para a
Contudo, uma diferença se faz patente: o corpo humano "parece esco· evocação do passado através de u m esforço intelectual da consciência.
lher, em certa medida, a maneira de devolver o que recebe" º; enquanto quf
4
Ora, com tais característic as já podemos adiantar que a representaçã o
as imagens não vivas agem e reagem automaticam ente. Assim, toda escolhi da realidade pe Io ser h umano nao .
- consiste em u m trabalho de adição psí-
- que supõe uma hesitação - se encontra implicada e m u m tempo que no! .
quica como quer·1am os d e1ensores .
• da b1furcaçao - da natureza. Para Bergson,
conduz à conclusão de que, na "imagem viva", ação e reação não mais se dâ' .
a seleção oc asiona . , .
d a pelos mteresses prat1cos consiste exatamente em uma
imediatamen te, pois se encontram separadas pela mediação de u m intervalo espécie de subt
- . perce b emos para ag1r, e necessitamo s enquadrar e re-
raçao.
conhecer o que . .
, . percebemos com o mtmto de alcançarmos pleno êxito no do-
38 H. Bergson, Matiere e Mémoire, in Oeuvres, p. 171 (p.11). minio da realid a d e. N este aspecto, a restrição perceptiva pode ser atribuída
39 Ibidem.
41 Gilles Deieuze, op. cit., p. 83.
40 Ibidem.

34 35
O Todo-Aberto Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto

à totalidade da matéria viva, estando o privilégio do humano situado e m urna então pergunta: "quais são os momentos e m que nossa
de e duração. Bergson
outra esfera que nós iremos brevemente analisar. De acordo com Bergson, maior vivacidade?" 44, Não há, por acaso, nesses momentos
consciência atinge
uma crise interior que nos faz hesitar entre duas ou várias opções, "quando
"há para as imagens uma simples diferença de grau, e não
sentimos que o nosso futuro será o que dele tivermos feito?" •
45

de natureza, entre ser e ser conscientemente percebidas. A E em seguida, responde:


realidade da matéria consiste na totalidade dos seus elementos
e de suas ações de todo tipo. Nossa representação da matéria "as variações de intensidade de nossa consciência parecem,
é a medida de nossas ações possíveis sobre corpos; ela resulta pois, corresponder à quantidade mais ou menos considerável de
da eliminação daquilo que não interessa nossas necessidades" 42. escolha ou de criação que distribuímos sobre nossa conduta" 46•

Além disso, levando em consideração que a matéria é u m conjunto de É claro que tais constatações só viabilizam um acesso à indetermina-
imagens luminosas, diremos que as imagens vivas fornecem as placas sensí- ção se extrairmos da nossa análise u m aspecto intuitivo que nos conduza à
veis opacas que - servindo de anteparo às luzes que se propagam ...::permitem apreensão de u m todo aberto. E isto só se consolida na ultrapassagem dos
que as imagens se revelem. Assim, sua função não é iluminar o mundo, como aspectos práticos e funcionais do ser humano.
na tradição idealista, mas antes obscurecer "certos lados dele, diminuí-lo da E aqui surge a questão que nos introduz nos dados imediatos da sub-
maior parte de si mesmo, de modo que o resíduo, em vez de permanecer in- jetividade: como a imagem percebida se engendra no intervalo de indetermi-
serido no ambiente ... se destaque como u m quadro" 43 • nação? É que a subtração pela via dos interesses é, igualmente, uma reflexão
Enfim, a consciência de fato é u m instrumento de análise, uma super- da imagem material, condicionada pela ação possível do nosso corpo sobre
fície refletora e u m instrumento de deliberação de escolhas que precedem ela. Nesses termos, a imagem percebida é a imagem real enquadrada pelos
as ações deflagradas pelos seres humanos. Desse modo, concluímos que o interesses práticos do ser vivo. Por outro lado, há na percepção u m fenôme-
aspecto prático da consciência se elucida pelas operações exercidas com o no de contração elementar das vibrações do ritmo da matéria pela
matéria
intuito de tirar proveito do mundo material; estando a consciência voltada ou imagem viva, o que constitui a qualidade. Neste aspecto,
existe a possi-
para atender aos interesses adaptativos dos seres vivos e m geral. bilidade de que as imagens-móveis sejam apreendidas
pelas imagens vivas
Por outro lado, a existência do pequeno intervalo de movimento pode como vibrações de toda espécie, movimentos vibratórios
que evidenciam a
no homem ser a base da intuição da sua realidade interna. Ou seja, há no maneira como a totalidade da matéria participa
da duração do universo. Sen-
humano u m privilégio que deriva da amplitude do intervalo que lhe é ima· do assim, a contração como gênese
da percepção supõe uma memória que
nente, dando a ele a possibilidade de explorar a sua própria indeterminaç ã o. condensa no presente uma
pluralidade de momentos apreendidos.
Isto torna plausível a introdução no plano da matéria de ações inovadoras E aqui, a análise do aspecto temporal da consciência
pode - pela via
proporcionadas pela consciência humana? Talvez. Mas esta não é a quest ã o da exper·rencra • .
· imediata - colocar-nos na apreensão da duração interna.
que iremos priorizar neste momento. Aqui, buscamos, tão somente, a ocasi ã o Apresentarem os, assim, •
· as teses estabelecidas . sobre os dados
. nos Ensaws
imediatos da consciência,
para explorarmos o intervalo de indeterminação entreaberto pela hesitaç ã o para fazermos o encadeamento necessário com as
da consciência, com o propósito de estabelecermos o nexo entre subjetivida·
44 Idem, p. 823 (p. 74).
45 Ibidem.
42 Henri Bergson, Matéria e Memória, in: Oeuvres, pp. 187-188 (p. 26).
46 Ibidem.
43 Idem, p. 186 (p. 25).

36 37
O Todo-Aberto Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto

novidades apresentadas no Matéria e Memória. Nosso propósito é traçar 0 que resulta da percepção uma espécie de incidência no futuro. Considerada
temporal, a função da consciência consiste em
procedimento que nos conduzirá à noção de totalidade aberta. no pormenor do seu aspecto
Se em um primeiro momento fomos incitados à admissão de uma duração "reter O que já não é, e antecipar o que ainda não é" • Ou seja, ligar o antes ao
48

do universo pelos movimentos da matéria - que exprimem intensidades, ritmos 1 depois na apreensão de uma multiplicidade qualitativa constituinte do pre-
vibrações e mudanças qualitativas no todo sempre aberto-; agora, é diante da vir- sente vivo. Com isso, entrevemos a possibilidade de conversão do movimento
tualidade pura, entrevista pelo viés do ser do passado, que deveremos nos situar, relativo sensório-motor a um aprofundamento intuitivo da vida espiritual.
Com isso, alcançaremos as condições de direito de uma primeira conceituação: uma contemplação pura das impressões materiais situada aquém dos inte-
o todo não pode ser dado pois ele é aberto. Na progressão que segue o vetor da resses práticos funcionais.
virtualidade, alcançaremos a análise de um passado puro. Há, portanto, uma apreensão imediata da consciência que se despren-
de dos aspectos sensório-motores quando a intuição do tempo é aprofunda-
Consciência e tempo da; colocando o homem em presença da pura duração. Nela, não só seremos
Mas, para tanto, é preciso analisar o intervalo de tempo d à cÕnsciência. simpáticos aos movimentos da matéria, como também teremos do todo a sua
Nossa intenção é ultrapassar a dimensão dos fatos para nos remetermos às compreensão virtual. Ora, nessa apreensão imediata toda uma multiplicida-
suas condições, isto é, para compreendermos as condições da experiência de qualitativa é intuída. Dela, depreendemos outros elementos que devem
imediata pela apreensão intuitiva da duração. ser analisados.
Vejamos, novamente, a percepção. Por mais breve que seja, a percep· Para Bergson, a consciência imediata da duração faz com que intuamos o
ção consciente - como uma reflexão da nossa ação possível sobre as coisas intervalo interno de indeterminação como um fluxo contínuo que consiste em um
- ocupa sempre uma certa duração, exigindo, consequentemente, um esforço prolongamento do passado no presente debruçado sobre o futuro. Segundo ele,
contraente que "prolonga uns nos outros uma pluralidade de momentos" 47•
Na percepção se encontra contraída uma pluralidade de impressões sensí· "sobre este passado nos apoiamos, sobre este futuro nos
veis. Tais impressões são contraídas no espírito na medida em que este vai debruçamos; apoiar-se e debruçar-se desta maneira é o que é
contemplando os fatos da matéria. Como contemplamos imagens, as impres· próprio de um ser consciente. Digamos, pois, que a consciência
sões contraídas são imagens de imagens, ou melhor, imagens presentes e já é o traço de união entre o que foi e o que será, uma ponte entre
passadas, ainda que o passado seja aqui considerado como dimensão intrín· o passado e o futuro" 49 •
seca ao presente do ser vivo, isto é, como uma memória inseparável do pre· Entretanto, tal traço de união é também animado por movimentos qua-
sente posta como condição da duração dos elementos percebidos. Trata-se .
litativos que se exprimem · no mterva .
• 1o existente entre o passado imediato e
de uma operação análoga a uma reflexão especular: a imagem percebida, tal 0 futuro iminente.
Ou seja, após a percepção imediata há algo que se absor-
como a imagem que se forma no fundo do espelho, é o duplo especular da ve das impresso~ es . .
const1tum
. d o no mtervalo um movimento de caráter local.
imagem material situada na frente do espelho. Sendo esta presente, aquela já Mas qual e,, precisamente,
a definição de tal movimento local? De acordo com
é imediatamente passada. Assim, a imagem percebida pelo ser vivo prolon· Bergson , e, O a i eto que ocupa o
mtervalo, ocorrendo como expressão de uma
ga-se, continuamente, no passado, tornando-nos convictos de que, na consci- tendência m 0 t , . sens1vel. . ,
n·z so b re uma superf1c1e , Ele e, const1tmdo
------
ência, o presente vivo é uma duração heterogênea que consiste na retenção por micro-
dos estímulos percebidos como dados de um passado imediato, sendo a ação
48 Ibidem.
49 Ibidem.
47 Idem, p. 184 (p. 23).

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O Todo-Aberto
Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto

movimentos intensos resultantes da absorção dos estímulos que sucedern à verificáveis pela consciência, raramente, pois esta des-
0 não obstante,
percepção, antes que a ação - resposta a tais estímulos - tenha sido executa. ao trabalho de atenção à vida utilitária - momentos significa-
-,: raças
da. O afeto, nesse sentido, ocorre no intervalo, sendo constituído por movi. em função dos interesses da vida prática. A consciência de
v o s r!cortados
mentas locais, tendências motrizes distintas das ações motoras. No afeto, 0
;:to presidida pela inteligência é sensório-motriz, "preside ações e ilumina
movimento se transmuta: deixa de ser extensivo para tornar-se qualitativo,
lhas,,so Tal como recorta, no fluxo contínuo da matéria, quadros, para
sendo a qualidade uma diferença animada por micromovimentos intensivos. esco
inseri-los no campo da nossa vida utilitária, a inteligência procede da mes-
Na duração os afetos são devires, variações intensivas, multiplicidades que
ma forma quando se debruça sobre a cena subjetiva motivada pelos mesmos
atestam para a vida espiritual uma heterogeneidade, possibilitando a intui-
interesses práticos. De onde surge a ilusão de u m fluxo temporal subjetivo
ção de uma duração heterogênea e plena de diferenças qualitativas.
composto de estados descontínuos.
Pela análise desenvolvida até aqui, é possível afirmar uma coincidên-
cia entre a consciência de fato e a duração da subjetividade. Est3: é inclusive a "Mas a descontinuidade dos seus aparecimentos destaca-se na
originalidade de Bergson: contraditando as teorias que desqualifici a cons- continuidade de u m fundo onde se desenham e ao qual devem os
ciência e m proveito da existência de pensamentos inconscientes, Bergson próprios intervalos que os separam: são os toques de tímpanos
propõe que a consciência seja levada a uma instância de direito, colocando que vez por outra soam na sinfonia. Nossa atenção fixa-se sobre
-a como uma virtualidade que é expressão dos movimentos da matéria. Por eles porque a interessam ... Cada u m deles é apenas u m ponto
outro lado, a consciência de fato emerge da atualização daquilo que vibra mais bem iluminado de uma zona móvel que abrange tudo o que
no intervalo de indeterminação da matéria viva dos animais e dos homens. sentimos, pensamos, queremos, tudo, enfim, o que somos em
Com isso, ela pode ser estendida à temporalidade concebida como totalidade dado momento" 51•
aberta - consciência virtual imanente aos seres vivos e ao plano da matéria -
sendo, por outro, submetida às exigências de u m espiritualidade pura que é, Mas e m relação a essa zona móvel, os dados imediatos da consciência
como veremos, o inconsciente puro de u m pensamento do tempo. estão variando a cada instante. "Se u m estado de alma deixasse de variar, sua
A duração que condiciona a consciência de fato, de direito abarca a duração deixaria de fluir" 52• O espírito é então concebido como variação: flu-
totalidade da vida e do universo, sendo, portanto, não uma experiência de xo contínuo de tempo, onde os momentos se penetram uns nos outros.
fato, mas a condição de toda e qualquer experiência. É a subjetividade como Ora, essa continuidade temporal nos conduz a u m aspecto mais profun-
u m todo que dura, estando esta duração inserida, como veremos, e m u m todo do da nossa subjetividade: se em u m primeiro momento fomos definidos como
aberto que comporta - como totalidade virtual - uma multiplicidade de dura· seres orientados para a ação, agora temos a intuição de sermos pura variação
interna. É que a subjetividade prática se funda sobre uma subjetividade origi-
ções todas elas coexistentes.
nária constituinte: subjetividade tempo que é condição do
aspecto prático.
Duração e multiplicidade Esse aspecto originário da subjetividade confere à duração identidade
A identidade subjetividade/tempo - concebida como uma duração com a realidade espiritual. Bergson concebe o espírito como u m movimento
to· de diferenciação que avança retendo os momentos presentes para conser-
dentre outras - leva Bergson à compreensão do ser humano como uma
talidade durável, isto é, como uma totalidade de direito aberta onde nele
se insere a experiência de u m fluxo contínuo e heterogêneo. Entretanto, a 50 Henri Bergson,
Matiere et Mémoire, in: Oeuvres, p. 283 (p. 116).
heterogeneidade, a multiplicidade qualitativa onde a mudança de natureza 51 Henri Bergson, L 'Évolution Créatrice, in:
Oeuvres, p. 496 (pp. 14-15).
se faz patente através de uma continuidade - traços indeléveis d a duração 52 Ibidem.
40 41
O Todo-Aberto Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto

ltiplo . A o afirmar que a duraçã o é multiplicidade, ele c o nfere


vá-l o s c o m o experiência passada; a o mesm o temp o em que imprime n o pre. do par un o - mú
estatut o substantiv o , ro m pend o c o m o par acima referid o ,
sente a sua marca, m o dificand o - o c o ntinuamente. Nesse sentid o , p o de m os a esta última um
apresentava de forma atributiva. Mas qual é, precisamen-
compreender o espírit o c o m o uma força c o ntraente e cumulativa de t o da s as onde O múltiplo se
excitações o riundas d o mund o material. Contrai as excitações que c o ntern. te, 0 estatut o das multiplicidades temp o rais? Sem dúvid a , nã o se trata de
pla, e, a o c o ntraí-las, funde-as e m uma qualidade distinta. Tais qualid a des 1 multiplicidades discretas e quantitativas, p o is estas remetem a o real mate-
p o r sua vez, entrarã o em pr o l o ngam ent o c o m um flux o interi o r de em o ç ões rial percebid o pela n o ssa c o nsciência. As multiplicidades temp o rais sã o qua-
pr o fundas que se pro lo ngam às vizinh a nças das experiências imediatamente litativas, virtuais; multiplicidade de fusão, o nde o s term o s, apesar de distin-
passad a s. O resultad o é um presente viv o espess o , c o mpost o de uma multi- tos, sã o inseparáveis.
plicidade qualitativa, o nde o s termos se interpenetram: temp o o nde passado As multiplicidades discretas e quantitativas - que remetem à maté-
e futur o implic a m -se na sua própri a espessura. ria - sã o divisíveis, o rganizand o -se em c o rp o s, o bjet o s, em c o isas passíveis
Além disso, c o m a duraçã o assistimos uma sucess o ininterrupt a , sem de serem submetidas à o rdem numérica; as multiplicidades qualitativas, ao
exteri o ridade; nã o saím o s d o presente, mas o bservam o s qÚe ele nã o para de contrári o , remetem à realidade espiritu a l. Nesta, o s elementos, com o pura
passar. E c o m o nã o passaria se nã o fosse n o exat o m o mento já passad o ime- vari a ção, interpenetram-se mudand o , de m o d o que é imp o ssível distinguir o
diato? A c o ntraçã o faz as excitações imediatamente passadas fundirem-se às moment o o nde acaba um estad o e o nde o outr o começa, p o is as qualidades
excitações presentes, a o mesm o temp o em que assistim o s o presente mar- distinguidas c o nscientemente nad a mais são do que paradas pro visórias em
char em direçã o a o futur o , ist o é, abrir-se para um camp o de expectativas, um flux o c o ntínuo, o nde a alteraçã o - mudança de natureza - apresenta-se
Ora, quando dizemos do nosso presente que ele passa, como evitar o para- com o aspect o fundamental. Bergson propõe um exemplo:
d o xo que tal p a ssagem n o s leva a formular: se o presente passa, nã o passaria
ele p o r ser já passad o e, simultane a mente p o rvir? De fat o , o presente vivo só "um sentiment o c o m plex o c o nterá um númer o bastante grande
passa na medida em que é passad o e futuro a um só temp o : passad o imediato de element o s mais simples; mas, enquanto tais elementos nã o
(contraçã o ) e futur o iminente (expectativa e abertura). A duraçã o é nesse as· se separarem c o m perfeita nitidez, nã o se p o derá dizer que
pecto inseparável de uma síntese intratemp o ral, m o strand o -n o s o quanto o estavam totalmente realizados e, quand o a c o nsciência tiver
instante matemátic o , quando relaci o nado à subjetividade, nã o passa de uma deles a distinta percepçã o , o estado psíquico que deriva da sua
ilusã o . Bergs o n dirá, referind o -se à subjetividade, que "a duraçã o é o pr o gres· síntese terá, p o r iss o mesm o , mudad o " 54 •
s o c o ntínu o d o p a ssad o que rói o futuro e infla a o avançar" 53•
Nesse cas o , sentiment o s, volições e ideias variam sem cess a r; eles nas-
É nesse pr o gress o que rói e avança, o nde as retenções múltiplas con· cem gradualmente de element o s imperceptíveis, p a ra desemb o carem - tam-
ferem à duraçã o seu estatuto de temp o c o ntínu o , que as noções de hetero· bém impe rcep t·1ve1mente - em outros
que c o m eçam a n a scer. Tud o se passa
geneidade e de multiplicidade ganham, enfim, t o tal nitidez: para Bergson, a c m o se, entre os
tons percebidos pela c o nsciência, pequen o s t o ns se fun-
c o ntinuidade heter o gênea da duraçã o se define pela multiplicidade d o s ter· dissem pr eenc h en d o o .
interval o e c o mp o nd o o m o viment o melódic o da du-
m o s que a constitui. Devemos, então, retomar ag o ra a n o çã o de multiplicida· ra a o . N esse preenchiment
o , encontraríamos uma multiplicidade qualitativa
de enunciada na n o ssa intr o duçã o . cuia fusão en t
re os seus elementos atestaria a presenç a de micr o m o vimen-

------
Bergson in o va, desde o iníci o da sua obra, em relaçã o à tradiçã o me·
tafísica, a o n o s apresentar a te o ria das multiplicid a des com o independente
54
e:ri Bergson, Essai sur les données immédiates de la conscience, in: Oeuvres, p. 57.
0 re este ponto
53 Idem, p. 498 (p. 16}. conferir a análise de A. Robinet, Bergson, pp. 28 e ss.

42 43
O Todo-Aberto Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto

adiante, a conservação do passado coexistindo com o


tos intensos animando de dentro os dados presentes e imediatos da nossa detalhadamente mais
consciência. A esse respeito, Bergson se encontra muito próximo de Leibniz e a concepção deste como passado o mais contraído, constituem
p resente, -
para quem as nossas percepções conscientes se formam como diferenciais - enquanto memoria:
d d uraçao , . a 1em b rança e a contraçao.
os dois aspectos a
de micro percepções que fazem com que o presente vivo esteja "repleto de A elucidação desses aspectos supõe, evidentemente, uma análise da última
futuro e carregado de passado" 55• atividade recenseada do caráter funcional e adaptativo do homem: o reco-
Eis então a duração com as suas características cruciais: contínua e nhecimento. Com ele, buscaremos a condição de acesso ao ser do passado.
heterogênea, ela é o tempo por excelência das diferenças de natureza; ela é Mas como ocorre o processo do reconhecimento?
também uma sucessão ininterrupta de um passado que se prolonga num pre- Se a inteligência na consciência de fato preside ações - estando situa-
sente, marchando em direção a um futuro; sendo, enfim, fluxo de novidade e da no intervalo de indeterminação existente entre as faces sensoriais e as
criação que torna cada momento do nosso ser inteiramente novo. motoras - , ela favorece a inserção do indivíduo no mundo de forma eficaz,
Ora, é pelo intervalo de indeterminação no presente vivo - com a dura- promovendo tal eficácia ao recorrer às suas experiências passadas. As ações
ção que o constitui - que uma novidade torna possível a aprecj.p.ção dos seres fazem-se mais eficazes na exata proporção em que o indivíduo torna-se capaz
humanos como totalidades abertas. Assim, tanto o universo na sua totalida- de reconhecer a situação que lhe é imposta. Desta forma, o reconhecimento
de, quanto os seres vivos - enquanto duráveis - coincidem na abertura que é um aspecto indispensável e complementar para a compreensão da subje-
os tornam seres que se diferenciam em si próprios. Todavia, duas questões tividade à luz da necessidade e dos interesses práticos, servindo de modelo
se impõem com mais urgência à nossa análise: quando apresentamos a dura- para a representação da realidade. Mas, para Bergson, existem dois tipos de
ção dos seres vivos não introduzimos uma diferença entre eles e a matéria? reconhecimento.
Sendo assim, não haveria contradição entre a afirmação dessa diferença e a
admissão da existência de um Todo-Aberto? É fato neste momento da nossa "Na operação prática a utilização da experiência passada para a
análise que tudo dura, sendo a duração concebida como instância ontológica ação presente ... - o reconhecimento - deve realizar-se de duas
da qual participam todos os seres vivos existentes, incluindo o universo ma· maneiras. Ora se fará na própria ação e pelo funcionamento
teria! na sua totalidade. Entretanto, ainda não elucidamos totalmente a tese do mecanismo apropriado às circunstâncias; ora implicará um
guia do nosso trabalho, a saber: há um todo aberto que se diz de um tempo trabalho do espírito, que irá buscar no passado para dirigi-las
uno e virtual. Cremos que tal esclarecimento só seja possível pelo esclareci· ao presente as representações mais capazes de se inserirem na
mento de alguns passos em nossa análise da diferença. situação atual" 56•
E para que tais passos sejam dados com rigor, torna-se indispensável
O reconhecimento feito por intermédio da ação será chamado de re-
extrair da nossa análise sobre a totalidade do ser vivo uma última tese: a conhecimento automático. Sensório-motor por excelência, ele se fará através
contração que funda o presente se fundamenta em um passado que preenche de movimentos que prolongam a nossa percepção. O outro, resultante de um
o intervalo de movimento. Nesses termos, o espírito é, como já insinuamos, s forço intelectual,
fundamentalmente memória. A sucessão sem exterioridade, a multiplicida· chamar-se-á reconhecimento atento, realizando-se por
1nterm'd·
e 10 de imagens-lembranças.
de qualitativa, a interpenetração de presentes sucessivos e a conservação
A distinção entre os dois tipos de reconhecimento se encontra implica-
do passado na medida em que os presentes se encontram passando, fazem da na d'IS t'mçao
entre duas maneiras do passado conservar-se: ora a conserva-
parte do movimento constituinte da subjetividade. Assim, como veremos

56
55 Leibnitz, Novos ensaios sobre o entendimento humano, in: Pensadores, p. 12. Henri Bergson, Matiere e Mémoire, in: Oeuvres, p. 224 (p. 60).

44 45
O Todo-Aberto Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto

ção se dá por intermédio de dispositivos motores; ora ele se conserva colllo stranhamento, o espírito se esforça para buscar no passado lem-
nos causa e
memória de lembranças. A primeira conservaria o passado por "uma série de à imagem percebida, facilitando assim as nossas reaçoes.
branças análogas , . , .
mecanismos montados, com reações cada vez mais numerosas e variadas às propno corpo e responsave1s
Enfim, ao lado dos hábitos institm'd os no
excitações exteriores" 57, enfim, "com réplicas prontas a um número incessan. êxitos passados, existe uma memória que se encarrega de
pela re P etição dos , .
temente maior de interpelações possíveis" 58• A segunda, de natureza completa. passados para oferece- 1os a consc1enc1a - na
A •

conserv ar os acontecimentos A

mente distinta, "registraria, sob forma de imagens-lembranças, todos os acon. - toda vez que as circunstâncias exigirem.
forma de l·magens-lembranças
tecimentos de nossa vida cotidiana à medida em que se desenrolam" 59• Sem ora, pondo de lado os hábitos - que se explicam pela repetições de
negligenciar nenhum detalhe, atribuindo a cada fato uma data singular. "Sem perguntarmos como deve-
fatos que fundam os dispositivos motores - cabe
segunda intenção de utilidade ou de aplicação prática, armazenaria o passado mos compreender a conservação das lembranças na memória? E qual seria a
movimentos
pelo mero efeito de uma necessidade natural" 60• sua natureza, já que o que ela nos oferece não são repetições de
Devemos então associar o reconhecimento sensório-mo or - isto é, au- condicionados por hábitos adquiridos mas, fundamentalmente, lembranças
tomático - ao hábito motor que se constitui pela contração e repetição das de acontecimentos vividos?
vibrações da matéria. Por exemplo: habituamo-nos, por uma série de repeti- Tocamos, desse modo, em um aspecto crucial da subjetividade-tempo
ções, a reagir automaticamente de modo repulsivo toda vez que uma chama que procuramos analisar: a duração como memória - seja na forma de lem-
se aproxima do nosso corpo. Neste caso, a percepção se prolonga em movi- brança, seja, comO'veremos, enquanto memória-contração. Acreditamos que
mento de costume, ao mesmo tempo em que os movimentos prolongam a uma análise pormenorizada do reconhecimento atento acerca da formação
percepção para dela extrair efeitos úteis. Assim, não saímos do circuito ob- da lembrança nos introduza na compreensão desse aspecto.
jetivo, permanecemos no presente e repetimos o passado de forma motriz,
assegurando às nossas ações êxito no cumprimento dos seus intentos. Do reconhecimento atento ao surgimento da lembrança
Já no caso da memória de lembranças o reconhecimento atento que ela
proporciona far-se-á de modo inteiramente diverso: ao invés da percepção "Em que consiste a atenção? De um lado a atenção tem por efeito
prolongar-se em movimentos de costume, produzindo uma resposta automá· essencial tornar a percepção mais intensa e destacar os seus
tica, ela entrará em circuito direto com lembranças. A necessidade de lembrar detalhes" 61. A atenção ocorre toda vez que um fenômeno de inibição
para a consciência se faz, normalmente, por exigência da nossa vida prática, vem impedir que a percepção se prolongue em ação motriz. Na
quando estamos em dificuldade para reagir a um objeto percebido, devido a impossibilidade de tal prolongamento, a consciência se torna
um estranhamento ou a uma longínqua sensação de similitude que ele nos pro· atenta; volta-se para o objeto percebido, buscando reconhecê-lo
voca. Quando encontro, por exemplo, um amigo que não vejo há anos e sinto, com maior nitidez ao "sublinhar os seus contornos" 62•
por isso mesmo, uma dificuldade em reconhecê-lo. Nesse caso, a memória é
Ao nos reconduzir ao objeto, a atenção nos introduz simultaneamente em
evocada pelas dificuldades suscitadas no estranhamento da coisa percebida e
regiões mais profundas da nossa subjetividade. Ou seja, quanto mais nos apro-
entra em circuito direto com a percepção. Dito de outra forma, diante do que
fundamos na percepção dos detalhes do mundo circundante, mais exploramos
regiões do passado. Se reconhecimento automático permanecíamos inseridos
no
57 Idem, p. 227 (p. 63).
58 Ibidem.
61 Idem, p. 245 (p. 79).
59 Ibidem.
62 Ibidem.
60 Ibidem.

46 47
O Todo-Aberto Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto

- isto é, tornam-se mais


no plano objetivo, agora atestamos uma mudança de plano: saltamos em regiõe À medida em que os circuitos aumentam
maior expansão da memória e
diversas do passado a cada esforço empreendido pela consciência Aqui, o reco _ atestamos, simultaneamente, uma
arnpios profunda da realidade. Inversamente, a análise do menor
nhecimento se faz por intermédio direto da memória de lembranças. Estas quan.
urna re flexão mais
a imagem percebida e o seu duplo ime-
do evocadas pela nossa consciência vêm em socorro da percepção que procura. . •to _ aquele que existe entre -
1 1

circu1 existente entre a percepçao


mos reconhecer. Claro está que no outro tipo de reconhecimento a lembrança já passado - torna visível a diferença
diatam ente
contemporanea deste, como o seu duplo 1med1ato. Questao:
A • • -

intervinha; entretanto ela o fazia de forma acessória, isto é, secundária. Agora, ao


e a lembrança
contrário, ela assume um papel preponderante. os pressupostos dos dois aspectos da memória que pre-
não existem aqui
Podemos dizer que quando a percepção exterior provoca em nós movj. a saber: a memória-lembrança e a memória-contração?
tendemos analisar,
último aspecto um pouco mais adiante. Aqui, no
mentos que a desenham em linhas gerais, nossa memória - evocada por um Sim, mas trataremos este
percebida e a imagem lembrança surgem
esforço intelectual - dirige à percepção lembranças que se assemelham a ela; reconhecimento atento, a imagem
atual e já virtual elas permitem
favorecendo o reconhecimento do presente. Nesse movimento, a atenção faz simultaneamente. Sendo ao mesmo tempo
Ali onde a imagem percebida
com que a percepção presente se duplique "ao lhe devolver, seja ua própria a intuição do que se passa no nível mínimo.
ali onde um du-
imagem, seja uma imagem-lembrança do mesmo tipo" 63 • Por outro lado, se se duplica imediatamente em imagem virtual, ou melhor,
lembrança.
a lembrança rememorada não for suficiente para recobrir todos os detalhes plo virtual da imagem percebida torna sensível o surgimento da
1 1

da imagem percebida, "um apelo é lançado às regiões mais profundas e afas- Ora, esta tese de Matéria e Memória não ressoa com a exposição do surgi-
tadas da memória, até que outros detalhes conhecidos venham a se projetar mento da lembrança exposta na conferência que trata da sensação de um
sobre aqueles que se ignoram " 64. dejá-vu, na estranha perturbação temporal descrita brilhantemente pela
Um novo circuito, enfim, se estabelece: não vamos mais da percepção experiência da paramnésia 66?
à ação por prolongamentos sensório-motores; vamos, agora, da percepção É que em Bergson, uma certa verdade do tempo é inseparável
à memória. Esta, uma vez evocada, leva a percepção a um grau de aprofun· dessa perturbação que faz com que sintamos a existência de u m passado
<lamento maior, recriando, com imagens-lembranças, o objeto percebido ou, puro coexistindo com os presentes que passam agora. Sendo assim, tal
simplesmente, sobrepondo aos contornos já existentes da imagem percebida perturbação viabiliza, na realidade, a construção teórica do ser do pas-
novos contornos. Tudo se passa como se a cada detalhe descoberto da rea· sado. Ou seja, é nesse ensaio sobre a lembrança do presente que o surgi-
!idade exterior correspondesse uma região do nosso passado. Quanto mais mento concomitante da lembrança ao lado da percepção vem confirmar,
nos aprofundamos nas camadas da realidade material, mais verificamos reforçando, os paradoxos desenvolvidos em Matéria e Memória. Vejamos,
um aprofundamento simultâneo em níveis da nossa realidade espiritual. Na então, tais paradoxos, para esclarecermos melhor a diferença entre o ser
verdade, o novo circuito estabelecido é composto por uma série de circuitos passado e o ser do passado. Dessa diferença obteremos a convicção de
que há um virtual puro apresentado como aspecto fundamental do tem-
crescentes, pois o "progresso da atenção tem por efeito criar de novo, não
po. Assim, é com este esclarecimento que nos colocaremos na direção do
apenas o objeto percebido, mas os sistemas cada vez mais vastos aos quais
Todo-Aberto. Passemos a esta análise.
ele pode se associar" 65.

63 Idem, p. 247 (p. 81). 66 Henri, Bergson O texto sobre o falso reconhecimento é uma conferência intitulada
Ibidem. "Lembrança do presente e o falso reconhecimento". Tal conferência se encontra em

1 .1
64
um livro intitulado A Energia Espiritual, pp. 109-151.
65 Idem, p. 250 (p. 84).
49
48
Parte 1 - Do Movimen t o ao Todo-Aberto

"ela continua presa ao passado por suas raízes profundas, e se,


uma vez realizada, não fosse, ao mesmo tempo que um estado
presente, algo que se destaca do presente, não a reconheceríamos
jamais como lembrança" 67•

III
Se a imagem-lembrança traz a marca do passado, isto indica sobretudo que
foi no passado que efetivamente fomos buscá-la. E isto é verificável toda vez que
a consciência passa a acompanhar o próprio movimento da memória que traba-
lha. Ao recuperarmos uma lembrança, ao evocarmos um período de nossa história;
Do Ser do Passado ao Todo-Aberto "t e mos consciência de um ato sui generis pelo qual deixamos o presente para nos
recolocar primeiramente no passado em geral, e depois, numa certa região do pas-
sado"68. Tal trabalho é, para Bergson, semelhante à busca do foco de uma máqui-

A
na fotográfica. Nesse salto primeiro, que deflagra o processo de reconhecimento,
memória de lembranças introduz uma distinção entre imagem a lembrança permanece todavia virtual e dispomo-nos simplesmente a recebê-la,
-percebida e imagem-lembrança que e m Bergson deve ser esta- adotando a atitude apropriada. O que faz com que a imagem-lembrança surja é, na
belecida com rigor. Com efeito, quando este censura a psicologia realidade, todo um processo de atualização dessa lembrança virtual, cuja condensa-
- embasada no associacionismo - por conceber que entre a per- ção é na realidade uma diferenciação. Como diz Bergson, descrevendo o processo,
cepção e a lembrança a diferença existente é, tão somente, de grau; ele o faz
para mostrar que a diferença entre elas é de natureza. Segundo Bergson, o "pouco a pouco, a imagem-lembrança aparece como uma
engano da psicologia se engendra no cerne da própria consciência: quan- nebulosidade que se condensasse; de virtual passa ao estado
atual; e à medida que seus contornos se desenham e sua
do uma rememoração se conclui, estando esta a serviço do reconhecimento
superfície se colore, ela tende a imitar a percepção" 69•
atento, as duas imagens ficam situadas no interior da consciência. Assim, ao
ocupar a consciência, a imagem-lembrança tende a se tornar indiscernível Esse ato sui generis, através do qual nos colocamos primeiramente no
seio do passado em geral, contraria a tendência comum de pensar a rememo-
com relação à imagem-percebida, pois ambas estão presentes. Ora, quando
ração através de uma retroação sucessiva 70• O salto no interior do passado
isto ocorre tendemos ou não a ver nelas uma simples diferença de grau? E
como é possível desfazer a confusão que emerge quando reduzimos a ima· 67 Henri Bergson, Matiere e Mémoire, in: Oeuvres, p. 277 (p. 110).
gem-lembrança a um presente que foi, para depreender a ideia de que entre 68 Ibidem.
ela e o presente atual há apenas diferença de vivacidade? 69 Ibidem.
Em Bergson, duas realidades podem ser distintas, ainda que indis· 70 Exi t em Bergson uma análise da linguagem inseparável deste paradoxo do salto on-
tologico. Para ele a compreensão daquilo que nos é dito ocorre da mesma maneira pela
cerníveis; basta cuidarmos da análise dos fatos, para deles depreendermos
qual evocamos uma lembrança. Em Bergson, existe uma sutil diferença entre o elemento
as suas tendências; para deles nos remontarmos às suas condições e corn· uro o sentido e a sua atualização através de sons ouvidos e de imagens associadas.
preendermos as suas diferenças de natureza. Desta forma, o que distingueª u seia, quando queremos
compreender alguma coisa nos instalamos imediatamente
no elemento puro
imagem-lembrança da imagem-percepção é a própria marca que aquela traz do sentido, para só depois fazermos, por associação, a atualização ne-
cessária para . .
o recoo h ec1mento da realidade. Queremos, com essa nota, mostrar como o
consigo: diremos que apesar da imagem-lembrança tender - quando presen· patradoxo do
salto ilustra uma abordagem ontológica da linguagem. Bergson, Ibidem. A
es e respeito
te na consciência - a imitar a percepção, ver também Deleuze, G. Bergson ismo, p. 44.

50 51
O Todo-Aberto Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto

dessa diferença? Devemos supor que as


deve ser compreendido como um paradoxo que descreve o processo de eva. O q ue devemos pensar ·-
uma reg1ao
cação da lembrança. Não vamos retroagindo sucessivamente de um presen p uras - extraconscientes - conservam-se em
lembranças .
a um passado recente, marchando na direção da lembrança procurada. Esse • . do nosso psiqmsmo? Ou devenamos pensar que, por serem , .
vetor tornaria inviável a rememoração no processo do reconhecimento. SaJ. recondita
. t es, elas se conservariam, de modo latente, em nossa matena
inconsc1en
tamos, isto sim, em u m passado em geral e buscamos - através de um esforço 7 de o cérebro conservar as lembranças puras e des-
cerebra 1. A hipótese
intelectual - as condições de atualização da lembrança. Assim, o passado elll Para ele, o cérebro é matéria, e portanto pertence
carta da por Bergson. .
geral nos fornece uma lembrança pura que se distingue da imagem-lembran.
plano ma teria!·, 0 cérebro pode , graças aos movimentos moleculares
ao . , .
ça que se atualiza graças ao esforço de rememoração. as lembranças quando os mteresses prat1cos as-
que o am·mam , atualizar , ..
Nesse caso, a imagem-lembrança é a atualização de uma virtua[i. . o ex1g , mas não detém o poder de armazena-las. Se admitirmos
sim · 1·rem
dade passada que guarda os traços dessa virtualidade original. Mas se a no estado de lembrança arma-
por um instante que o passado sobreviva
imagem-lembrança se distingue da imagem-percepção por trazer consi- para conservar a
zenada no cérebro, "será preciso então que o cérebro,
go a marca do passado - já que foi nele que a evocamos-, o que podemos
lembrança, conserve pe 1o menos a s1· mesmo 72". P ore' m o
dizer da lembrança nela mesma? Isto é, o que é a lembrança quando não
rememorada? O que é para Bergson uma virtualidade passada? Para nós, "cérebro, enquanto imagem estendida no espaço, nunca ocupa
a diferença entre imagem-percepção e imagem-lembrança desdobra-se, mais que o momento presente; ele constitui com o restante do
portanto, na diferença entre imagem-lembrança e lembrança pura: a pri· universo material, um corte incessantemente renovado do devir
meira, virtual em relação à imagem percebida, é, não obstante, atual na universaF 3".
consciência de fato; a segunda, ao contrário, é pura virtualidade. Não se
encontrando presente na consciência testemunha pela realidade de um Dessa forma, as lembranças puras não estão armazenadas na matéria
inconsciente do tempo puro. cerebral. E mais: insistir no problema da sua conservação psíquica significa
Assim, a imagem-lembrança é uma atualização da lembrança pura, ha· acreditar que elas se encontram em algum lugar. Mas as lembranças não es-
vendo nesse processo de atualização temporal uma diferenciação que introduz tão em lugar algum. Caso elas se conservem, conservam-se antes em si mes-
a convicção de que há uma diferença entre a pura virtualidade da lembrança e mas ou, para sermos mais precisos, no tempo passado.
a sua atualização como finalização do reconhecimento atento. Nesse sentido, a Ora, se as lembranças se conservam no passado, não é preciso supor
imagem-lembrança se difere da lembrança pura que lhe corresponde 71• que o passado em si mesmo se conserva? "Mas como o passado, que, por
hipótese, cessou de ser, poderia por si mesmo conservar-se? Não haveria aí
uma contradição verdadeira? 74". A resposta de Bergson consiste em saber se
71 Isto explica a ideia bergsoniana quando fala do processo de atualização como uma 0 passado "deixou de existir, ou se ele simplesmente deixou de ser útiF 5 ". Com
nebulosidade que se condensa. Explica também a razão da imagem-lembrança tor· isso, ele apresenta o
paradoxo do ser do passado, invertendo a lógica segun-
nar-se indiscernível, confundindo-se com a imagem percebida. É que a lembrança do a qual o senso
só se torna imagem quando atualizada na consciência. Esta contribui para a sua comum pensa o tempo.
atualização oferecendo-lhe os dinamismos indispensáveis para que o processo se
cumpra. Ou seja, a lembrança pura só ganha contorno imagético quando recebe 72 Idem, p. 290 (p. 122).
da consciência os elementos indispensáveis para a sua atualização: a sensação e_a 73 Ibidem.
imagem. Diremos que a vida psíquica correspondente à dimensão da consciên ª 74 Idem, p. 291 (p.123).
resume-se nestes dois elementos, uma vez que a consciência de fato pertence à ,. 75 Ibidem.
mensão atual do presente vivo. Cf. Idem, cap. 3.
53
52
O Todo-Aberto
Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto

O paradoxo do ser do passado . paradoxo do ser, condu-


A5s1m, o paradoxo do salto conjuga-se com o
Quando dizemos, segundo o senso comum, que só o presente existe · ólita teoria de u m ser do passado posto como fundamento on-
a, rns
Zl·ndo-nos . . , . , .
atestamos com isso a sua atualidade física ou material. Com efeito, a matéri'
, . da Duração. Eis aqm uma outra novidade de Matena e Memoria.. se a
é inseparável de u m tempo presente, segundo o qual o passado é identificad: tologico ·• .
duraçao , · _ nos Ensaios sobre os dados imediatos da consc1encw - conce b'd
- 101 I a
como aquilo que não existe mais, sendo o futuro o que ainda vai existir. Ou descobertas do tempo
como rea l'dI a de psíquica; agora, no duplo avanço das , .
seja, segundo o senso comum, o passado é uma dimensão do tempo que dei. da matéria e do ser do passado, ela e compreendida
xou de ser e o futuro - incerto e indeterminado - seria a dimensão apontada imanente a, totalidade
ganha u m estatuto virtual. Como diz Gilles Deleuze, "o que
como tem Po real e . ª . . , .
pelo vir a ser. Se o presente apresenta-se como aquilo que é, já que passado ps1colog1ca alguma. Por
Bergson denomina lembrança pura não tem ex1stenc1a
e futuro são dois não seres - u m pelo fato de já ter sido [presente que foi]; . d'1z q ue ela é virtual inativa e inconsciente 78". E bem verdade, como res-
1sso
outro pelo fato de ainda não ser [presente que será] - , todo o presente atual estamos -
salta Deleuze, que a conjunção de tais palavras são perigosas pois
estaria situado entre dois abismos de nada.
desde Freud - habituados a pensar o inconsciente como u m sistema psíquico.
Entretanto, o nada é uma forma de pensar puramente lógica que não
corresponde aos dados imediatos da realidade temporal. E m primeiro lugar, "Não obstante, é necessário compreender ( ... ) que Bergson não
porque a indeterminação do futuro para o ser vivo só será compreendida na emprega a palavra inconsciente para designar uma realidade
sua real dimensão se ela for entrevista como fruto da diferenciação que se psicológica fora da consciência, e sim para designar uma
instala no presente. O futuro será, como veremos, relacionado ao aberto - realidade não psicológica: o ser tal como é e m si 79".
reserva de novidade acrescentada na totalidade material. E m segundo lugar,
porque o presente - e esta é a tese de Bergson - "não é aquilo que é, mas Ou seja, o psicológico é o presente do ser vivo; o passado, pelo contrá-
simplesmente o que se faz 76". rio, é real. Com ele entramos no domínio da ontologia pura. Enfim, o ser e m
si do passado é uma virtualidade que se encarrega de conservar os presentes
"Nada é menos que o momento presente, se você entender na medida em que eles passam. Quando buscamos u m a lembrança para re-
conhecermos uma situação presente, é no seio do passado e m geral que nós
I por isso este limite indivisível que separa o passado do futuro.
Quando pensamos esse presente como devendo ser, ele ainda saltamos; é no interior do próprio ser que nós nos instalamos.
não é; e quando pensamos como existindo, ele já passou 77".
O paradoxo da coexistência virtual do passado
A noção que cabe adequadamente ao presente é a noção de passagem. O A dificuldade de pensarmos o passado como ser-em-si advém de uma ilu-
presente é o útil, nele devimos, lançamo-nos para o futuro por meio das ações são engendrada no seio do próprio psiquismo: por termos do passado represen-
utilitárias que promovemos a cada instante no universo material; quanto ao pas· tações de presentes que passaram, acreditamos que ele só se forma depois de o
sado, podemos dizer que ele é inútil e inativo, mas não que ele deixou de ser. Ao presente ter passado, entendendo-o como sinônimo dos presentes que foram.
contrário, aquilo que acaba de passar é exatamente o que se conserva como rea· Esta ilusão se produz no momento em que se dá a rememoração: quando a ima-
!idade temporal. O passado é na medida e m que conserva o presente que passa. gem-lembrança se atualiza nossa consciência, nós a distinguimos da imagem
na
presente, por acharmos
que entre as duas existe u m tempo passado. Desta for-

76 Ibidem. 78 Gilles Deleuze, Le Bergsonisme, p. 50.


77 Ibidem. 79 Ibidem.
54 55
Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto
O Todo-Aberto

e statuto ac e n-
. d e proc essos atuais - ganha no b e rgson ism o u. m
ma, o passado s e apres e nta como o e lem e nto q u e distingu e o pres e nt e qu e foi
do a ra've1s . .
d e reahdade d1stmto das
pre s e nt e qu e passa agora, conduzindo-nos a acreditar qu e e le s e forma depois
insep
. .
associado ao s e r do passado , d e signa u m tipo , .
tuado. . . b e rgso niana do tempo h a co e x1st e nc1a d e u m
h •

do pres e nt e t e r passado. Porém, numa análise mais ate nta, verificamos que mat e riai s. Na teoria . o
!idades
a a tu a
0 virtual _ com
O p r e s e nt e atual q u e agora passa, ou seja,
image m -le m brança não s e confund e com a imag e m pre s e nte porqu e , no ato de pa ssa do . -puro · h a' u m
d o assim,
e vocá-la, e la já se apr e s e nta como cont e m porân e a do passado e m g e ral, e quan. 1 e o virtua 1 - 0 os dois asp e ctos co e xist e ntes do r e al. S e n
sa
a tua . totalidad e co e xist e com O nosso p re s e nt e q u e passa; e e ste
do s e atualiza, como vimos, traz consigo a marca d e ss e passado. ss d o puro cuja . , .
pa a
a xistê ncia de uma gigant e sca memoria cos- ,
1t st m unh ando e
pa ssa do e, r e a ,
e
Surge aqui o paradoxo da cont e m poraneidad e do passado: o passado em e .
a totahdad e t e m pora 1.
g e ral não é aquilo que s e forma d e pois d e os p re s e ntes t e r e m passado, mas o ele- mica me m oria-, · mundo que , como puro virtual, subsume . .
no famoso e sq u e m a do con e m v e rt1do .
m e nto qu e confer e a tais p re s e nt e s a marca passada. Logo, ao invés d e s e r poste- ' É O qu e B e rg son nos apr e s e nta
rior a tais pre s e nt e s, o passado é s e u cont e m porân e o. D e sta cont e m poraneidade
d e pre e nd e -s e a difer e nça que Bergson e stab e l e c EWtre o e l e m ento puro dopas-
sado e os pre s e nte s passados e virtuais que e st e contém: o passado puro - contem-
porâneo do presente que foi - dele se distingue pelo fato de nunca ter sido presente. A B
Ora, a contemporan e idad e do passado com o pre s e nt e que "foi" s e desdo-
bra em u m outro paradoxo qu e B e rgson termina por d e m onstrar: além do passa-
do não advir depois do pre s e nt e te r passado - pois e l e lh e é cont e m porâneo -, é
o passado na sua totalidad e qu e d e ve s e r compr e endido como co e xistindo com
o pre s e nte qu e agora passa. É qu e o pre s e nte só passa e m função d e u m passado
que o faz passar. Caso o passado advi e ss e d e pois d e o p re s e nte t e r passado, não
t e ríam os como e vocar uma razão qu e justificass e a passag e m do próprio presen·
t e . D e ssa for m a, ou o passado co e xist e com o pre s e nt e qu e passa, ao invés de se
formar d e pois d e ele ter passado, ou o pre s e nte não t e m por que passar. Neste
s e ntido, a gên e s e da formação da l e mbrança elucida, segundo B e rgson, uma sutil
compre e nsão da natur e za do passado: Na bas e A B e ncontra m os a totalidad e d o passado, virtual, inativo e

neutro. No vértice S e ncontram os o nosso present e .


"a formação da l e m b rança nunca é post e rior à p e rc e pção; é
sua cont e m porân e a. À m e dida e m q u e ;i. perc e pção s e cria, sua "A base AB, ass e ntada no passado, p e rm an e c e imóv e l, enquanto
I 80
o vértic e S, q u e figura a todo o momento m e u pr e s e nt e , avança
1

l e m b ra nça s e p e rfila ao lado, como a sombra ao lado do corpo


s e m c e ssar, e s e m c e ssar também toca o plano móvel P d a minha
Assim, é o passado e m g e ral qu e co e xiste com o nosso pre sent e , res· r e pr e sentação atual do univ e rso . E m S "conc e ntra- s e a imag e m
tando a nós int e rrogarm os ac e rca da natur e za d e tal co e x istência. Trata-se de do corpo; e , fazendo part e do plano P, e sta imagem limita-s e a
uma coexistência virtual que confer e ao passado puro u m e statuto ontológico, rec e b e r e a d e volv e r as açõ e s e m anadas d e todas as imag e ns qu e
O virtual, noção t e m poral por e xc e lência - já qu e franjas d e virtualidade sã0 s e compõ e com plano 81".
81 Henri Bergson, Matiere e Mémoire, in: Oeuvres, p. 293 (p. 125).
80 Henri Bergson, L' Énergie spirituelle, in: Oeuvres, p. 913.
57
56
O Todo-Aberto
Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto

Ha, portanto, u m passado puro, uma pura virtualidade onde nela


lembranças se conservam. Quando esse passado é posto no esquema as emória-contração
do A 111 Pelo esquema do cone, poderemos compreender a base como equiva-
cone invertido com graus de distensão e contração variáveis, encont
,a. l'dade virtual do passado, pensando-o e m um nível de dilatação,
mos uma variação do <:one onde podemos pensar uma repetição de níveis lente a, to t a I
passados - as lembranças evanescentes - se conser-
ou de regiões do passado, onde em cada uma dessas regiões é o todo onde os aco ntecimentos
maneira, o vértice - agora correspondendo ao
que
se repete, variando tão somente o grau de distensão - contração dessa vam em s1· mesmas. Da mesma .- . ,
pode ser concebido como a reg1ao mais contra1da do passado,
repetição. presente v l·vo _ - .
ao porvir.
ma rchando em direçao ·
Bergson oferece duas razões para pensarmos o presente d esta maneira.
A primeira evidencia-se no nosso próprio caráter. Segundo esta, a totalidade do
B
nosso passado, ainda que não rememorada, verifica-se no nosso modo de ser.
"De fato, que somos e que vem a ser nosso caráter, a não ser a condensação da
história que vivemos desde nosso nascimento? ". É bem verdade que só pensa-
82

mos habitualmente com uma pequena parcela do nosso passado;

"mas é com o nosso passado integral, inclusive nosso perfil de


alma original, que desejamos, queremos, agimos. Nosso passado
manifesta-se pois integralmente a nós por seu impulso e sob
sua forma de tendência, embora fraca parte apenas torne-se
representação dele 83".

Quanto à segunda razão, Bergson a retira do próprio movimento do


presente vivo, tal como intuído pela nossa consciência. Apoia a sua tese nas
considerações que fez acerca da emergência da percepção e, mais profunda-
Este segundo esquema do cone demonstra com exatidão a repeti· mente, das qualidades sensíveis. Diz que
ção do passado. Com efeito é em cada secção que o passado se repete por
inteiro, variando, tão somente, o nível dessa repetição. Assim, na região "que por mais breve que se suponha uma percepção (... ) ela
AB encontramos o passado no seu grau mais distenso; na AB' em um ocupa sempre uma certa duração, e exige, consequentemente,
grau menos distenso etc. Com tal compreensão das regiões do passado - um esforço de memória, que prolonga uns nos outros, uma
compreendendo o presente no esquema do cone no ponto S - , é possível pluralidade de momentos". "Mesmo a 'Subjetividade' das
dizer, que sob este aspecto, o ponto S pode ser concebido como a ponta qualidades sensíveis (... ) consiste sobretudo em uma espécie de
mais contraída do passado. E aqui ocorre u m aprofundamento na teoria contração do real, operada por nossa memória 84".
da memória: se e m uma primeira abordagem dávamos relevo à lembran·
ça procurando saber acerca da conservação do passado, agora a tônica
-----
82 Henri Bergson, L 'Évolution
créatrice, ín: Oeuvres, pp. 498-499 (p.16).
recai sobre u m segundo aspecto da memória que vem se sobrepor ao 83 Ibidem.
84
primeiro, destacando-o: trata-se da memória-contração. Henri Bergson,
Matiere e Mémoire, in: Oeuvres, p. 184 (p. 23).
58 59
O Todo-Aberto Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto

Assim, o fundamento da subjetividade é memória sob dois aspectos, h et erogêneos são reais - com isso a duração. é concebida. como
enquanto contrai uma pluralidade de momentos presentes tornando-os Pas: rnoVI·mentas coextensivo ao universo matenal. Em
como um tempo heterogêneo
sados, e enquanto contrai a totalidade do passado no presente avançando elll real ' logo - .
da memória 'ABergson propoe uma ontologia do passado
com a t e se
direção ao porvir. seguida, . . , . .
con d uz , a dmissão da existencia de diversos mve1s mais ou menos con-
a
que o . . .
Com a elucidação do esquema do cone, a compreensão do tempo ui. 1·ctade desse passado repetindo-se e coex1stmdo virtualmente, e
trapassa a ideia presente de sucessão. A coexistência virtual do passado, e os traídos da tota I
. b'l'iza, enfim a tese da existencia de graus diversos de duraçao.
A • • -

níveis de contração e de distensão de zonas ou regiões intermédias - onde que via I ' . . , . . .
Agora como resultado parcial daquilo que ate aqm f01 analisado -
nela todo o passado se repete - faz com que Bergson conceba uma teoria da - nossa passam a coexistir conosco. Somos, no nosso
repetição do passado pela via da coexistência virtual, introduzindo níveis ou duraçoes superiores à . .
present e, O grau mais contraído do passado; coex1stmdo
com graus de du-
graus de duração mais ou menos distensos, diferenciando -se por graus de rep:te1:1, por tonus
rações distintas, todas comunicantes , na medida em q e.
A

contrações diversos. Tudo s_e


diferentes, a distensão originária da gigantesca memona cosmica.
Ora, a partir desta ideia de níveis de pa;'s;do todos coexistentes, re- dos seres v1-
passa, po rtanto , como se entre o presente - duração constitutiva
petindo-se por graus de contrações diversos, não é possível afirmar que o
vos_ e O passado puro, diferenças rítmicas entre graus de duraçao pudessem
tempo admite também graus? Neste caso, a Duração como coexistência, isto
ser pensadas como inseparáveis da totalidade do universo.
é, memória, comportaria graus diversos de durações todas elas implicadas
Ora, nesses termos a matéria pode perfeitamente ser concebida como
no âmbito de um todo durável. Se é verdade que a sucessão continua a existir
0 grau mais distendido do passado. O que permite a Bergson dizer que
para os presentes que passam, no seu aspecto mais profundo a duração se
define por coexistências virtuais de graus diversos de níveis mais ou menos "a memória não intervém como uma função da qual a matéria
contraídos de um passado puro .
não tivesse algum pressentimen to e que já não imitasse à sua
maneira. Se a matéria não se lembra do passado é porque ela o
A unidade virtual do passado
repete sem cessar 85".
Ocorre aqui uma mudança considerável na obra bergsoniana. Como
vimos, nos Ensaios sobre os dados imediatos da consciência, Bergson conce· Por outro lado, os movimentos que ocorrem nas interações das ima-
bia a duração pela experiência imediata da consciência de fato. Assim, ela gens-móveis produzem uma mudança qualitativa no todo que deve, como vi-
aparecia como um tempo subjetivo, coincidindo com os processos psíqui· mos, ser concebido como O aberto. Vislumbra-se aqui a superação do dualis-
cos do ser humano. Esta era a razão pela qual ele colocava do lado subjetivo mo do livro anterior: a duração se encontra em toda parte, manifestando -se
as diferenças de natureza, negando ao espaço material as características no real em graus diversos de contração e distensão. Tais graus, como vimos,
temporais encontráveis no espírito - ou seja, na matéria só encontraríamos se comunicam, pois remetem unidade virtual do passado, concebido agora
à
diferenças de grau. Na famosa tese das duas multiplicidad es - as qualitati· como fundamento
real do tempo.
vas, virtuais, situadas no espírito; as quantitativas e discretas, na matéria Mas uma dificuldade subsiste: ultrapassand o o dualismo dos Ensaios
- a duração reduzida a uma experiência psíquica conferia ao bergsonisIT1° deveremos negar
a existência das diferenças de grau percebidas no mundo
uma característica dualista. material e das
diferenças de natureza correlatas ao nosso presente? Per-
Em Matéria e Memória, livro priorizado ao longo desta parte, dois avan· guntando de

----
outro modo, é possível ignorar a experiência atual, mediante
ços consolidam a superação das teses dualistas pautadas no psicologismo do
livro anterior. Em primeiro lugar, Bergson conclui pela afirmação de que os l dem, p.
336 (p. 183).

60 61
O Todo-Aberto Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto

. se dão t o d o s o s graus da diferença


a qual a matéria se n o s apresenta e, c o nsequentem ente, a experiência de si e para n o' s • Entre ambas _ _
Pela toda a natureza da diferença. A duraça o na o
qual o espírito se sente? Percebem o s multiplicidades discretas, quantida. o u, se P referirmos, , . , .
des materiais, e ist o é um fat o : o espírit o , no âmbito da percepçã o , depa. · a que O grau mais c o ntraído da matena e a matena
é o utra c o 1s
o da duraçã o . A diferença de grau e o grau
ra-se com diferenças de grau materiais. P o r o utr o lad o , a alteraçã o espiri. o g r au mais distendid
e a natureza
tua! advém c o m o u m fat o para a apreensã o imediata de si, o que nos leva mais baix o da diferença; a diferença de natureza
mais elevada da d'f 1 erença .
86 11
a dizer que as diferenças de natureza c o nstituem o n o ss o presente vivo
Ora, se assim o é, c o m o explicar a distinçã o de tais diferenças, uma vez que "que
relaci o nam o s a duraçã o c o m o t o d o ? C o m a unidade d o m o viment o posto . t o d o s os graus passam a c o existir numa mesma natureza,
E assim,
de natureza e, p o r o utr o , nas d"f1 e-
r u m lad o ' nas diferenças
c o m o heter o gêne o , a duraçã o foi estendida às relações existentes entre as se expressa, p o1101 ' tota 11·d a d e
Há nã o obstante, um p o nt o de unidade que e a
imagens-móveis: a matéria dura - à sua maneira - p o rque é fluente; e 0 renças de grau . , .
. .
d o à natureza em s1, o u, se qmserm o s - para
m o vime nt o expressa, enquant o dad o imediat o , uma mudança qualitativa virtua 1d o Passad o , corresp o nden . • . b ·
,..- . .
exphc1tarmos de uma maneira spin o zista o plan o de 1manenc1a ergs o man o
n o t o d o . O espírit o , p o r o utr o lad o , também dura, porque é igualmente mo-
_ ' à natura naturante .
ªª
viment o ; mas m o vim ent o qualitativ o e ev o lutiv o que expressa a duração • .
enquanto pura mudança. Se tud o dura, admitir a dualidade entre as duas Desfaz-se, p o rtan t o , a c o ntra diçã o entre a dualidade das tende oas
o d o t mp o e phca -
multiplicidades nã o implicaria em recair em uma contradiçã o ? Sim, se in- atuais e a unidade virtual d o t o d o . A c o ntraçã o -diste nsã
por exemplo - a passagem da extensã o à qualidade, P,º'.s aqm o m o v '.
ment
sistirm o s, tal c o m o n o s Ensaios, em ver nas diferenças de graus materiais quali-
muda de natureza: se na matéria ele é extens o , n o espmt o t o rnar-se-a
algo que exclui a duraçã o . Mas a verdade é que as diferenças de graus não
tativo_ send o a qualidade a diferença de micr o m o vim ent o s intens o s - ; se na
existem em si, e sim para nós; o que significa dizer que corresp o ndem, tão
matéria ele se faz p o r desl o cament o s de partes, para o espírit o se fará p o r in-
s o mente, à tendência atual mediante a qual a matéria se apresenta para o
terpenetrações de qualidades, estand o a diferença estabelecida pel o grau de
espírit o . A matéria fluente em si mesma - c o m o c o njunt o de imagens que
contração. Bergs o n diz que a "duraçã o vivida pela n o ssa consciência é uma
agem e reagem umas s o b re as o utras em t o das as suas faces e em todas as
duração de ritm o determinad o 8 9 " que se pr o duz na c o ntraç ã o de milhares de
suas direções - dura e expressa uma mudança qualitativa n o t o d o ou na
vibrações sucessivas que n o s chegam d o mund o exteri o r.
duraçã o . Só que o faz em um ritm o diferente d o viv o .
Para dissipar, portant o , a dificuldade, é precis o dizer que a diferença
"Assim, a sensaçã o de luz vermelha experimentada por nós durante
de natureza e a diferença de grau enquant o fat o s atuais c o rresp o ndem adi·
um segund o c o rresp o nde em si a uma sucessã o de fenômen o s que,
ferenças rítmicas de temp o que se impõem nos graus divers o s de c o ntra ção e
desenrolad o s em no ssa duraçã o co m a mai o r eco n o mia de temp o
possível, o cupariam mais de 250 séculos de n o ssa história ".
distensão. O temp o é diferença, já que é pura alteraçã o . Assim, se o pensamos 9º
c o m o c o existência de graus divers o s de c o ntraçã o -distensã o , ele se apresen·
ta c o m o multiplicidade de diferenças rítmicas, o ra distensas, o ra intensas.
Assim, as diferenças de grau na matéria corresp o ndem a o grau mais distenso 86 G. Deleuze, op. cit., p. 94.
da duração; e inversamente, a c o ntraçã o máxima d o espírito (presente vivo) 87 Ibidem.
c o rresp o nde às diferenças de natureza. Deleuze tem razã o quand o diz que 88 Para explicitarmos melhor o sentido da noção em Bergson ver Henri, Bergson, Les
Deuz Sources de /a Mora/e et de Ia Re/i9ion, in: Oeuvres, p. 1024.
89 Henri Bergson, op. cit., p. 340 (p. 169).
"a duraçã o , a memória o u o espírit o , é a diferença de natureza 90
Ibidem.
em si e para si, e o espaç o o u a matéria, a diferença de grau fora
63
62
O Todo-Aberto Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto

Todavia, convém esclarecer que entre a contração máxima correspo


qu a ntidade para a qualidade percebida dá-se, em Bergson,
dente à nossa duração e a distensão da duração material, graus diversos
n. pa s sa gem d a
isso , a . .
de ç _ e interpenetração de elementos fundidos em qualidades cons-
po r c o ntra
a o
diferenças rítmicas se interpõem. · 'd a d e t emp o,
' b'1et1V1
. . tes de uma multiplicidade qualitativa . imanente. a su
otuin -
n •ncípio , como intervalo de mdetermmaçao.
"Em realidade não há um único ritmo de duração; são possíveh entreVI·sta, em p , . - que este
(... ) muitos ritmos diferentes, os quais, mais lentos ou Sabem o s tam b e, m , com a consecução da memona-contraçao,
. ,
rna a Io Pode ser pensado como o grau mais contraido do passa-
rápidos mediriam o grau de tensão ou de relaxamento mesmo interv
das d Neste mve,
0• , I entrevemos uma multiplicidade de durações pensadas como
consciências, e deste modo fixariam seus respectivos lugares • 1·nseparáveis de graus de contração e distensao - d'1versos.
na _
série dos seres 91". va riaçoes n , tm 1cas . _
Ora, 0 f;ato d o tempo admitir graus nos conduz, em princípio, à adm1ssao de
Quando colocamos ritmos de duração e pensamos graus de plura lid ad e de durações.
dis- uma . _ , , . . _
tensão e contração inseparáveis de tais ritmos, não introduzimos Se, por Um lado , é preciso relacionar a duraçao a matena - pois os mo
um - .
pluralismo temporal na nossa análise? Nesse caso, como é possível, sem vimentos sa o em Bergson reais - por outro, é preciso_ dizer de cada ser vivo
,
contradição, sustentar a ideia até aqui defendida de uma totalidade aber- que ele é um todo durável e que, por isso mesmo, e tao aberto quanto a tota-
ta? Se o Todo se afirma da duração, porque e m certo sentido tudo dura, lidade do universo. _ .
haveria um monismo do tempo ou a duração se afirma de uma diversi• A diversidade da vida, o fato dela ser durável, a duraçao do universo,
dade? Ou seja, há uma ou várias durações? Tais questões nos remetem as relações entre as imagens-móveis que exprimem uma mudan a quali-
à compreensão da tese eleita por Bergson que irá sustentar o título do tativa no todo ou na duração, viabilizam, por um lado, uma pluraltdade de
nosso trabalho. Como veremos, Bergson propõe um monismo temporal, durações com ritmos diferentes, e, por outro, uma acepção de totalidade
com a afirmação de um tempo uno, virtual e impessoal. Nosso cuidado, temporal que permite a afirmação de um todo aberto, visto como tempo
contudo, consiste e m avaliar e dissipar possíveis contradições entrevis· único e impessoal, já que tudo dura. Um tempo uno com múltiplas diferen-
tas ao longo da análise. ças? Um fi o tênue que liga a diversidade conduzindo-nos a um monismo
Falta-nos, para elucidarmos essas questões, uma avaliação preliminar temporal? Como isso é possível?
de um último movimento imanente aos seres vivos: se as contrações-disten· A pluralidade de ritmos, os graus de durações em níveis variados de con-
tração e distensão são consequências finais nas quais desembocamos pela lei-
sões são igualmente diferenciações-atualizações de um todo virtual, resta sa·
tura de Matéria e Memória. Com efeito, a coexistência virtual do passado, com
ber como se processa esse movimento e qual será sua natureza. É tal diferen·
os seus graus de durações, seus
ciação que dará a Bergson, como veremos, a condição de desdobrar a teoria níveis de contração, seus ritmos resultantes de
graus diferenciados de tensão, dão a Bergson a condição de pensar o ser como
desse tempo único. Vejamos então este movimento.
diferença. Do
passado puro _ como diferença em si - às diferenciações em si e
Para si constituintes
Os seres vivos e o Todo-Aberto dos seres vivos, todo um movimento de diferenciação é
Pensado. No
virtual, as diferenças são evanescentes, correspondendo a uma to-
Já sabemos que os seres vivos - a matéria ou imagem viva - se distin· talidade
simples onde O múltiplo só existe em potência. Na matéria viva - que é
guem no plano material por comportarem um tempo mais contraído, isto é, u!11 contração
máxima desse passado virtual - as diferenças se atualizam em fluxos

'I
presente vivo que é condição do surgimento das qualidades percebidas. Co!11 distintos.
Há, portanto, dois momentos da diferença, havendo, igualmente, um
rnoVirnento
de diferenciação. Tal movimento consiste precisamente na atuali-
91 Idem, p. 342 (p. 171). Zação de uma virtualidade.

i
11 11

64 65
.li·
O Todo-Ab e rto Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Ab e rto

É c o m tal movimento q u e Bergson enseja s u a teoria d a evolução da A matéria, colocando-se c o m o obstáculo a esse impulso vital, obri-
vida. C o m ele, c o m o veremos, o vivo passa a ser intuído c o m o u m todo dutá. divergentes para poder atravessá-la. T u d o s e passa,
a t o mar direções
vel; isto é, c o m o u m a totalidade aberta coexistindo c o m u m a multiplicidade g a-o se u m a i m e n s a força dissociadora "houvesse atravessado a
portan t o, como , . - .
d e durações. Entretanto, a ideia d e u m impulso vital, d e u m movimento
de , . para conduzi-la a orgamzaçao e para fazer dela ( ... ) u m mstrumen-
rnatena
diferenciação q u e procede d e u m virtual para a atualização por criação de •
to de Jiber d a d e "93 . . _ _ _
diferenças divergentes e complementares, são indispensáveis para a avalia. Mas é preciso observar, contudo, q u e a d1ferenc1açao n a o s e explica
ção final d a conclusão bergsoniana d e u m todo aberto pensado como um mo. tal inse:ção: sendo o movim nto d e diferenc_iação e m
apenas em razão d e
nismo temporal. Vejamos, então, algumas características desse movimento
si e por si, é preciso concebe-lo c o m o u m a força m t e r n a e explosiva capaz
A s considerações sobre a evolução d a vida e o processo d e ultrapassagetn
de criar as diferenças vivas nas circunstâncias proporcionadas pelos obs-
das "alienações" nas quais c a e m os seres vivos serão investigados na nossa
táculos materiais. Só assim, apreendida nesse movimento, é q u e a duração
terceira parte. Aqui, cabe entender o movime to evolutivo c o m o condição da 94
chamar-se-á vida .
afirmação que encerra a argumentação final difnósso capítulo. Ora, pensar o impulso c o m o duração permite u m encadeamento ri-
C o m efeito, é n a Evolução Criadora q u e Bergson tratará d o movimento goroso entre a tese exposta n a Evolução Criadora c o m a s teses d e Matéria
evolutivo como processo d e diferenciação q u e procede d e u m impulso vir- e Memória. Como vimos, a o término deste último livro, foi possível afirmar
tual. O s seres vivos existentes nas suas diversidade d e reinos, d e mundos e de a eióstência de u m passado puro coexistindo virtualmente c o m o presente,
meios, procedem d e u m único e m e s m o impulso vital postulado como prin· em graus de contração diversos. C o m tal coexistência foi possível, igualmen-
cípio d a evolução. O q u e equivale a dizer q u e o s seres vivos advieram por te, atribuir uma duração à matéria, relacionando-a c o m a totalidade d o uni-
dissociação e desdobramento d e u m a unidade, d e u m a totalidade simples. verso. Agora, com o impulso vital posto c o m o movimento d e diferenciação
A abordagem ontológica d e u m impulso vital, visto agora como um, em si e por si, é preciso dizer q u e o s seres vivos n a s u a existência concreta
força q u e cria - ao s e atualizar - u m a diversidade p o r dissociação, é, segun· resultam de u m processo d e atualização desses níveis o u desses graus q u e
d o Bergson, o princípio q u e explicita a diferenciação resultante d a divers1· no virtual coexistem (contração - atualização). A simplicidade d o impulso
dade d a vida. Assim, animais e vegetais, animais instintivos e inteligentes remonta a uma coexistência virtual, sendo a s diferenças
existentes entre o s
e m suma, reinos e espécies existentes são concebidos c o m o diferenciaçõei seres vivos correlatas às
atualizações desses graus virtuais. Entendamos: a
divergentes d e u m a força originária explosiva. unidade primária ( originária) d o
. impulso coincide c o m a totalidade simples
O impulso vital é u m a virtualidade ativa e m vias d e se diferir; e se d'.f do passado.
Nela, a s diferenças s e evidenciam c o m o tendências, q u e se atua-
reatualizando-se p o r divergência e desdobramento.; o u seja, o impulso vita lizam segundo
direções divergentes. A esse respeito, Deleuze dirá que
não é outra coisa senão o movimento d e diferenciação e m si e por si, ap rt
sentado como duração q u e articula vida à memória. N o plano material. t,
"quando a virtualidade s e atualiza (... ) o faz segundo linhas
diferenciação se explica pela inserção d a duração n a matéria,
divergentes, p o r é m correspondentes a tal o u qual grau n a
totalidade virtual" ( ... ). Aqui já não se d á coexistência alguma;
"duração que se estira, e m que o passado se conservam• d.1V1S · ível!
, · que remven
cresce como u m a p l anta magica · ta n·a a ca d a momento
,
;----ldern, p. 829 (p. 78).
94
sua forma c o m o desenho d e suas folhas e d e suas fl ores 92" e s t e rnom
e nto o qu e nos
impor t a é pr e cisar a nature za do movim e nto e volutivo
rnomo movim e nto de dife re nciação. A teoria e volutiva da vida será abordada no por-
enor ai s
92 He nri Be rgson, L 'Énergie Spirituelle - Essais e Conferences, in: O e uvres, p. 8Z8 (Pet> m · ad.1ante . Cumpre diz e r, não obstant e , qu e e sta t e oria se e ncont ra e xpos-
ta na Evolução
sador e s, p. 77). Criadora ao longo dos três prim e iros capítulos.

66 67
O Todo-Aberto Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto

h á s o m e n te linhas d e atualização, u m a s sucessiva s , o u d e tais questões v e n h a a esclarecer a tese


tras e mo s que a dramatização
simultâneas, porém representando cada u m a dela s um. só? re longo deste trabalho. Cremos, igualmente, s e r
ta d a p o r n ó s a o
atualização d o todo n u m a determinada direção 95". m o nt. s ta susten
t r a r q u e n ã o haverá contradição entre a s hipóteses alcança-
p o s s iv, el demons - .
,1.ise s d e Matéria e Memória e A Evoluçao Criadora e a tese defen-
P o d e m o s p e n s a r q u e n a atualização d a d u r a ç ã o c o m o m o v i rn en das P elas ana - - .
.
em Duraçao e Simultaneidade. Temos, n a o obstante, a tarefa p r e h. m m a r
t o d e diferenciação, o s níveis d e c o n t r a ç ã o - q u e coexistiam enquanto •
d"da
todas a s hipóteses.
virtualidades - t o r n a m - s e atuais. A a t u a l i z a ç ã o é, portanto, a res o l ução de esc larecer
apresentadas e m Matéria e Memória,
E m p n. m e,·ro l u g a r, c o m as teses
diferenciada d e s s e s níveis n o p l a n o material. O m o v i m e n t o tran s m uta. ontológico. . a, m a t e, n .a e
C o m o t e m p o estendido
- u m estatuto
se: torna-se evolutivo. S ó q u e a evolução c o n c e b i d a d e s s e m o d o s e fazcte a duraçao rece b e . . - .
- afirmados
passado, ritmos d1ferenc1ados d e duraçao sao
u m virtual a u m atual, isto é, faz-se criadora, u m a v e z q u e o virtual, real com a on t o Io gia d o
e objetivo é ultrapassado n a direçao . - de
do rea.1 O dualismo entre subjetivo _ .
p o v o a d o d e singularidades, d e p o n t o s brilhantes, evanescentes, s e dife. afirmados
um plurali s m o : h á vários graus d e durações. Todavia, tais graus sao
rencia a o atualizar-se, c r i a n d o a f o r m a d ô v i v o q u e irá existir n o mundo
em uma concepção d e t e m p o o n d e a coexistência é u m a dado fundamental:
material. A s s i m , o m o v i m e n t o evolutivo é u m m o v i m e n t o d e diferen. 0 ser do passado confere a o tempo coexistência, fazendo-nos pensar a nossa
ciação-atualização d a d u r a ç ã o , q u e cria a diversidade d o s sere s atual• duração como coexistindo c o m durações superiores e inferiores - ainda q u e
m e n t e existentes. em cer o sentido interiores-, sendo o fundamento d e tal coexistência virtual.
Aqui, a n o ç ã o d e virtual g a n h a u m estatuto conceituai rigoroso: Em segundo lugar, c o m a introdução d o movimento d e diferenciação,
p a r a B e r g s o n o virtual é real e n ã o d e v e s e r c o n f u n d i d o c o m u m a pos· isto é, d o impulso vital, n a Evolução Criadora, a tese d o livro anterior d e q u e
sibilidade mental. O possível, c o m o categoria lógica s ó existe e m nossa tud o dura é sustentada, m a s o pluralismo s e torna restrito. O s seres vivos são
m e n t e , j á o virtual é t ã o real quanto o atual. S e o atual é matéria, o virtual durávei s , a duração s e afirma d a totalidade d o universo, m a s o s demais seres
é t e m p o . A l é m disso, entre o virtual e o a t u a l h á diferença d e natureza materiai s só duram n a medida e m q u e participam d a totalidade d a duração.
A s s i m , o virtual n ã o é, tal c o m o o possível, a i m a g e m semelhante que A s s im , pluralismo generalizado, pluralismo restrito e monismo cons-
p r e c e d e o real. N a atualização d e u m virtual ocorre u m a diferenciação tituem, e m conjunto, hipóteses q u e convergirão, c o m o veremos, e m u m m o -
q u e é v e r d a d e i r a m e n t e u m a criação. Isto n o s c o n d u z à compreensão daí ni s m o do tempo; sendo esta a hipótese considerada p o r Bergson a mais con-
atualidades individuais c o m o resultantes d a diferenciação d e elementoí vincent e . Devemos, contudo, avaliar q u e a afirmação d o monismo n ã o leva
singulares q u e s ã o p u r a s tendências n a instância d o virtual. S o b esse as· Be rg s o n a abandonar o fundamento das teses anteriores e que, c o m isso, a
pecto, o virtual é o q u e existe e m potência, a l g o n ã o dado, a o n ã o se con· ideia de totalidade
aberta j á apresentada p o r n ó s n o início d o capítulo pode,
fundir c o m a s atualizações verificáveis n o m u n d o físico. enfim, s er c o nfir m
ad a explicitamente pela análise d o autor.
Se o ser consiste e m durar, a s contrações-distensões e as diferencia-
O tempo único e impessoal como totalidade aberta o e s -c ri aç
õe s confirmam, e m u m certo aspecto, a unidade d e ser conferida
O q u e devemos concluir d o q u e foi analisado? C o m o extrairemos a con· ª realidade
d o virtual. o problema consiste precisamente e m saber s e a uni-
sequência final d a tese d a totalidade aberta q u e intitula esta parte? Havera dade do v· - compat1ve1s.
. irtua 1 e a multiplicidade qualitativa · sao - noçoes ' · Po d e
0 Virtual
.
contradição entre a afirmação d e q u e tudo dura e q u e existem m u, lt·1pJas ctu· c o nfe rir unidade à pluralidade d e durações, permitindo-nos con-
3 ceber tal · '
rações? E m q u e sentido existem múltiplas durações? E m q u e sentido há u[!l P l urahdade c o m o diferenciações intrínsecas n o ser, levan d o-nos a
adrni s s ã
O de u m
d e can e · tempo único q u e estabelece - ·
u m ltame ·
entre a s d1vers1 ·d a d e s
· . Bergson
s •encia?
s e de
95 Gilles Deleuze, op. cit., p. 104. dirá q u e sim, e c o m isso levantamos a h' 1pote
,
68 69
O Todo-Aberto Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto

a ideia de movimento da qual parte a teoria


u m tempo único e impessoal que recolhe todas as intensidades possíve·
. • . - is nc Na concepção de Bergson,
universo. E a mstauraçao de u m monismo que então se problematiza e . inclui uma contração. dos corpos, u m a dilatação do seu tempo,
. _ _ ..
tendendo que a unidade virtual desse tempo não exige o abandono da .
n de Einstein, sua simultaneidade e sua transformaçao e m sucessao 97 •
da
"urna q u e bra -
extensoes,
. -
as d1lataçoes de tempo, as rupturas de
tiplicidade dos graus de duração. Para além do uno e do múltiplo, convéut . s contrações de
ou seJ a , a . . a d m1-.
entender que a multiplicidade qualitativa - isto é contínua e heterogênea- se tornan d o exp 1·1c1tamente reciprocas.
, C o m isso,
e . 1tan eidade vão
s1rnu .
uma multiplicidade temporal. entre o repouso e o movimento, e entre o repouso e
te-s e u ma relatividade
O problema é entender como se faz tal conciliação? Como um tem existentes nos sistemas considerados e isolados se-
0 mov J·mento acelerado
,
. pode ser concebido
umco . sem o abandono de u m a teoria da multiplicidad 1 matematicamente estabelecidos. Conclui-se então
e. ndo eixos de referência
mostrando que aquilo que é simul-
Na realidade, trata-se de estabelecer a difícil tese de u m tempo único com r u m deslocamento da simultaneidade,
sistema móvel. O u seja,
uma multiplicidade virtual. E m Bergson, o monismo do tempo se garante na neo em u m sistema físico fixo pode não sê-lo e m u m
é levado à afirmação de
afirmação do impessoal, tempo que banha..J>-universo e tudo o que nele se em virt u d e da relatividade do movimento, Einstein
inclui. Façamos a sua análise para arrematarmos finalmente a questão prio- uma pluralidade de tempos e m diferentes velocidades de transcurso todos
ritária da nossa primeira parte. reais, sendo cada u m específico a u m sistema de referência.
Diremos que a ideia de u m tempo único e impessoal só se consolida Ora, Bergson discute essa tese mostrando como Einstein concebe o
no bergsonismo e m Duração e Simultaneidade. Resultado das polêmicas es- i:empo de uma forma singular. Se a multiplicidade de tempos se dizem, cada
tabelecidas com Einstein 96, este livro demonstra a existência do monismo um de le de sistemas de referência que lhes são próprios, tal multiplicidade
do tempo, apontando, simultaneamente, para a possibilidade de conciliação é pensada como quantitativa, estando os tempos, nessa instância, reduzidos
desse tempo com a pluralidade afirmada nos livros anteriores. Bergson pro· à condição de uma multiplicidade numérica. E é isto que Bergson contesta
põe na análise que faz da relatividade de Einstein que a pluralidade evocada quando alega a existência de uma multiplicidade qualitativa e virtual, funda-
pelo referido físico não contradiz a existência de u m uno todo virtual; mas mentando a sua argumentação sobre o tempo uno pautada na intuição ime-
pelo contrário, justifica plenamente tal argumentação. A polêmica com Eins· diata da duração.
tein corresponde à distinção entre os dois tipos de multiplicidade q u e ]eva Para ele, o tempo real, como tempo vivido, supõe u m a heterogeneida-
Bergson a afirmar a existência de uma simultaneidade de fluxos pertinente de de fl u xos que compete analisar pela via da apreensão imediata. Nisto, ele
procura argumentar sua tese, mostrando no pormenor como tal totalidade
à consecução de u m tempo único e impessoal, criticando, e m contraparti·
aberta será postulada.
da, a ideia de simultaneidade de instantes defendida pela relatividade geral
Na realidade, Bergson concebe que Einstein estabeleceu uma pluralid a d e de E Bergson dá início à sua demonstração e m u m ponto já conhecido por
,
nos: sugere a apreensão imediata da nossa duração como meio de evidenciar
tempos pensando e m sistemas métricos puramente quantitativos e e rn si·
seus componentes.
multaneidades de instantes correlatos a tais sistemas. A o passar e m revista a continuidade, a heterogeneidade e
prolongamento
do passado no presente, pergunta-se acerca da possibilidade
96 A po l êmica com Einstein corresponde à distinção entre os dois tipos de mu l tipl
ict Passarmos desta evidência para a duração exterior das coisas 98• E é pela
co
dade que l eva Bergson a fa l ar de uma simultaneidade de fluxos que viabiliza a : da Percepção imediata - pura contemplação - que ele nos indica o cami-
secução de um tempo único e impessoa l em seu livro Duração e Simultaneidade, P; o: esta nos -
58-59, criticando a ideia de simultaneidade de instantes defendida pe l a relativid3º 1 dara· , pe Ia expenenc1a 1me d.1ata d a sensaçao, a c e rt eza d e que as
• A · ·

gera l . É com esta distinção, como veremos, que Bergson diz que há um tempo un 1
impessoal que se pode comprovar pela intuição imediata das multip l icidades 1
u
;---
98
H. Bergs D
uração e Simultaneidade, p. 33.
litativas que caracterizam a duração. A este respeito, podemos consultar tarnbefll C f· Henn_on,
Bergsonismo de Gilles Deleuze, cap. 4, pp. 62-71. Bergson, Durée et Simu/tanéité, p. 42.

70 71
O Todo-Aberto Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto

coisas que nos circundam também duram 99. Bergson diz que pela evidên . mesmo ritmo de duração, o mesmo deve ser dito das duas
CI,
perceptiva da duração que nos envolve, experiências. Mas as duas experiências possuem u m a parte
comum. Por seu traço de união, então, elas se reencontram
"gradualmente nós podemos estender esta duração ao conjun numa experiência única, desdobrando-se e m u m a duração única
do mundo material, pelo fato de não percebermos nenhulll, que será, à vontade, pertencente às duas consciências 1º1" .
razão de limitá-la à vizinhança imediata do nosso corpo: 0
universo nos aparece formando u m só todo; e se a parte dele ou seja, a parte c o m u m existente entre as duas experiências - como
que existe e m torno de nós dura à nossa maneira, devemas um acontecimento que engloba duas durações - faz c o m que concebamos a
dizer o mesmo, pensamos nós, daquela que a envolve, e assirn existência de u m tempo comum, isto é, de u m traço d e união onde as experi-
indefinidamente". Assim nasce a ideia de u m a duração do ências similares irão reencontrar-se.
universo, quer dizer de u m a COEl&eiência impessoal que seria É dessa maneira que a simultaneidade dos fluxos supõe na esfera do
o traço d e união entre todas as consciências individuais, como vivido uma parte c o m u m que permite estender a diversidade dos fluxos à
entre estas consciências e o resto d a natureza 100" . totalidade de u m tempo único. Entretanto, uma dificuldade subsiste: como é
possível a demonstração pela simultaneidade dos fluxos de u m a experiência
A o falar desse traço de união, interrogando as teses dos livros anterio• que não se reduza à interação de consciências humanas e o todo do universo?
res, Bergson confirma a tese de uma duração do universo apresentada no A Podemos dizer que a matéria - com a duração que existe na sua pura disten-
Evolução Criadora, sustentando a existência de u m a consciência impessoal são - a duração de u m outro ser vivo distinto do humano e o próprio homem
Diz que a duração abrange a totalidade do universo material com os seres vi· podem ser apreendidos como partes integrantes de u m a experiência comum
vos que nele se incluem. Defende a sua ideia c o m o seguinte raciocínio: se to- da duração? Ora, é confirmando tal possibilidade que a tese de u m tempo
marmos como ponto d e referência os seres humanos, considerando-os como único e impessoal se consolida através do poder que a duração tem de englo-
possuindo o mesmo ritmo, poderemos dizer que bar a si mesma. Bergson, então, nos propõe o seguinte exemplo:

"todas as consciências humanas são da mesma natureza "quando estamos sentados à margem d e u m rio, o correr da água,
percebem da mesma maneira, marcham de algum modo no o deslizamento de u m barco ou vôo d e u m pássaro, o murmúrio
mesmo passo e vivem a mesma duração. Ora, nada nos impede ininterrupto d a nossa vida profunda, são para nós três coisas
de imaginar tantas outras consciências humanas, disseminada, diferentes ou u m a só, segundo queiramos" 1º2 •
ao longo da totalidade do universo, porém suficientemente
Sem dúvida para nós, que percebemos, os três movimentos - o volun-
próximas umas das outras para que as duas consecutlva1· tá .
o d o pássaro,
tomadas ao acaso, tenham e m c o m u m a porção extrema de tr o material e o movimento espiritual - se apresentam como
campo d e sua experiência exterior. Cada u m a destas dua! fluxos temporais, com ritmos inteiramente diversos. Mas a simultaneida-
d do evento
experiências exteriores participa d a duração de cada uma dt peercebem nos mostra e m princípio que a nossa duração, implicada no que
1 os, compreende a unidade dos dois movimentos, ao mesmo tempo
duas consciências. E u m a vez que as duas consciências têfll

ldern,p.44
99 Cf. Ibidem. 102
100 Ibidem.
ldern, p. 51.

72 73
O Todo-Aberto Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto

e m q u e - desdobrando-se - evidencia q u e o movimento distenso da tnaté. Nestes termos, vemos que o s fluxos, c o m as suas diferenças
ti, en°:wreza, fluxos vividos.
é simultâneo a o d a nossa duração e a d o pássaro. com as suas diferenças d e contração e distensão comunicam-se
de num
Há, n a realidade, três fluxos simultâneos. S e a nossa duração é Ull}
0 só e mesmo tempo q u e é a sua condição. S e admitíssemos dois tempos
co:ntitativamente
x o entre o s outros, é, n ã o obstante, o elemento q u e contém o s demais. Ne - distintos, c o m o no caso d a relatividade, seriamos forçados
triplicidade dois fluxos serão ditos simultâneos q u a n d o se encontrain c o : q ntr0duzir u m fator estranho à experiência d a intuição: teríamos q u e admitir
d o s e m u m m e s m o e terceiro fluxo. "A capacidade q u e a nossa duração telli d e u m s e r vivo só poderia ser captada p o r u m outro ser vivo
ª ue a experiência
d e revelar outras durações, d e englobar a s outras e englobar-se a si inesllla ; t r a v é s de u m fator simbólico completamente estranho à duração, q u e exclui
a o infinito" 103, confere à duração a característica particular d e u m a coexis. teríamos q u e nos contentar c o m o símbolo q u e u m ser faz d o
0 yjvido. o u seja,
tência virtual q u e torna o s fluxos simultâneos. Assim, dois fluxos serão ditoi n ã o poderia viver dessa forma.
outrO sabendo que o outro
simultâneos, q u a n d o são englobados p o r u m terceiro fluxo, a saber: o nosso. É aqui que a comparação c o m a teoria d a pluralidade d e tempos d a rela-
A simultaneidade d e fluxos e m Bergson faz c o m q u e dois tividade ganha total pertinência. Segundo Bergson, a teoria d a relatividade si-
·,,;q-
tua-se na seguinte hipótese: n ã o mais fluxos qualitativos, m a s sistemas e m es-
"fluxos exteriores, q u e o c u p a m a m e s m a duração, sejam tados de deslocamento recíproco e uniforme, o n d e o s observadores são inter-
simultâneos, porque u m e outro s e m a n t ê m n a duração de um cambiáveis, não havendo n e n h u m sistema que possa s e r privilegiado. Assim,
m e s m o terceiro, a nossa duração ... E é tal simultaneidade de Einstein diz q u e o tempo d e dois sistemas n ã o é o mesmo; que o siste-
1º4 quando
fluxos q u e n o s conduz à duração interna, à duração real ". ma S e e istema S' devem ser compreendidos e m tempos quantitativamente
distintos, e m qual base esta argumentação irá s e sustentar? C o m o dizer, tendo
Mas c o m o d e v e m o s entender a divisão atual entre o s fluxos e a unida· como
referência o sistema S, q u e o tempo d o sistema S' é outro? Qual seria esse
d e virtual q u e irá fundamentá-la? Bergson, a o apresentar o tempo real come outro
tempo? Sem dúvida ele não se diria d e Pedro e m S, n e m tampouco d e
u m a multiplicidade virtual o u contínua, sustenta, d e u m lado, q u e ela pode se Paulo em
S', por que tais tempos s ó difeririam e m quantidade e toda diferença
dividir e m elementos q u e diferem e m natureza, mais q u e tais elementos se de quantidade
se anula quando se toma u m dos sistemas c o m o referência. N a
existem c o m o partes quando a divisão é efetivamente atualizada. Por outrO realidade,
Pedro colaria sobre esse tempo u m a etiqueta d e n o m e Paulo m e s m o
lado, s e nos colocarmos e m u m momento o n d e a divisão ainda não foi reali· sabendo
que Paulo não poderia viver assim. Bergson pergunta: "mas o q u e são
zada, isto é, n o virtual, é evidente q u e nessa instância h á aí u m só tempo. Oi os tempos
múltiplos c o m velocidades desiguais q u e a relatividade descobre?"
seja, n a divisão empreendida atualmente, a s partes q u e se dividem são o!
fluxos atuais. É assim q u e nesta tese a multiplicidade d e fluxos não invaJidaa
c "Se considerarmos o tempo q u e o físico Pedro, postado e m S,
existência d e u m todo virtual, muito pelo contrário, supõe-na c o m o condiç ã
atribui a o sistema S', vemos q u e esse t e m p o é c o m efeito mais
necessária para a s u a simultaneidade. E aqui u m último e breve relato sobrt
r lento q u e o t e m p o contado p o r Pedro n o s e u próprio sistema.
a diferença entre a simultaneidade d e Bergson e a d e Einstein v e m esclarece
Portanto aquele t e m p o n ã o é vivido p o r Pedro. M a s sabemos
o ponto d e vista p o r n ó s defendido.
que tampouco o é p o r Paulo. Portanto, n ã o o é n e m por Pedro
N a teoria d e Bergson para q u e a divisão esteja submetida à lógica deu(.
A n e m p o r Paulo".
tempo u' m·c o e 1mpessoa
· 1 e' necessano
' · enten d e- 1a c o m o a 1g o que se e stabel&
bem verdade q u e ele t a m b é m não é vivido p o r outros. N a realidade
se O É
te tnpo atribuído
103 Gilles Deleuze, Bergsonismo, p. 64. nenh p o r Pedro a o sistema d e Paulo n ã o p o d e s e r vivido p o r
Utn dos dois, p o d e ele a o m e n o s ser concebido p o r Pedro c o m o vivido
104 Henri Bergson, Durée et Simultanéité, p. 68.

74 75
O Todo-Aberto Parte 1 - Do Movimento ao Todo-Aberto

o u podendo s e r vivido p o r Paulo? Pode d e u m a maneira mais geral ser vivi q u e c o m tais considerações a hipótese d a relatividade p o d e
Bergson estima . .
. , 1 e v1v1 d o.
p o r alguém? E m u m e x a m e detido, Bergson mostra q u e n ã o é b e m assi . d
in evidente a existência d e u m s o, tempo v1v1ve
tornar n a consideração d o vivido q u e Bergson, avaliando as
por outro lado, é
É certo que Pedro cola sobre esse tempo u m a etiqueta com O n relatividade geral, irá sustentar q u e a duração real é u n a e so-
0rne hipóteses da
d e P a u l o; m a s caso imaginasse
. . p a u l o consciente,
. vivendo s a ideia subjacente d e u m a multiplicidade d e fluxos
mente e 1a Pode justificar
própria duração e medindo-a, veria, por isso mesmo, Paulo toni: d e englobamento. Assim, ele consolida n a aprecia-
viVi d o s e m Possibilidade
seu próprio sistema por sistema d e referência, e se situar então nesse de Einstein a existência d e u m t e m p o u n o posto c o m o
ão da relatividade
Tempo único, interior a cada sistema, d e q u e acabamos de falar· p unidade virtual d a conjunção dos movimentos reais.
, or pç onto de
isso m e s m o também, aliás, Pedro abandonaria provisoriamen o que ele censura e m Einstein é ter ele reduzido a multiplicidade à
seu sistema d e referência e, por conseguinte, sua existência corno ignorando a existência das multiplicidades qualitativas e
instância numérica,
físico e, por conseguinte, também s u _ç.onsciência; Pedro não se virtuais. Os movimentos relativos concebidos n a reciprocidade d o s sistemas
veria a mais a si m e s m o senão como u m a visão d e Paulo 105". comparados, são, n a realidade, movimentos tratados c o m o puramente quan-
titativos, estando eles submetidos à lógica simbólica d o espaço.
Dessa maneira, o outro t e m p o d o qual fala Einstein é algo que não pode
Dito de u m a outra maneira: s e os movimentos reais - extensivos, qua-
s e r vivido n e m p o r Pedro e n e m p o r Paulo. Ele é posto c o m o u m puro símbolo
litativos e evolutivos - exprimem u m a mudança qualitativa n a duração; deve
q u e exclui o vivido, marcando c o m o u m sistema é t o m a d o c o m o referência haver u m ponto de unidade q u e é pura expressividade d e u m a experiência co-
Bergson dirá: mum. O Todo se diz aqui d a mudança qualitativa expressa pelos movimentos;
sendo, igualmente, n a simultaneidade dos fluxos, o ponto d e unidade d a expe-
"Quando Pedro atribui a o sistema d e Paulo u m t e m p o retardado, riência, isto é, u m a experiência u n a d e u m tempo único e virtual. Retomamos
n ã o v ê mais e m Paulo u m físico, n e m m e s m o u m ser consciente aqui o que dissemos a respeito d o movimento extensivo d a matéria, incluindo
n e m m e s m o u m ser; esvazia d o seu interior consciente e vivo a agora o movimento qualitativo e o evolutivo: todos implicam e m u m a duração
i m a g e m visual d e Paulo, conservando d o personagem apenas 0 concreta, todos interagem expressando u m a mudança; todos exprimem u m a
106'
s e u envoltório exterior (na verdade, s ó ele interessa à física) mudança qualitativa no Todo. Isso faz Bergson dizer que, nessa instância
O u seja, n a relatividade a pluralidade d e t e m p o s s e sustenta em uma
"poderemos então eliminar a s consciências q u e havíamos a
simultaneidade d e instantes e e m u m a multiplicidade numérica e atual. A
princípio disposto a o longo d o universo c o m o círculos para o
conclusão d e Einstein é, nestes termos, puramente matemática s e m levareill
movimento d o nosso pensamento: n ã o haverá m a i s q u e u m s ó
conta a s multiplicidades qualitativas q u e Bergson evoca. É p o r isso que Berg·
tempo impessoal o n d e s e escoarão todas a s coisas 1º7".
s o n sustenta q u e n a teoria d e Einstein não s e invalida a hipótese d a existêndª
d e u m tempo uno e virtual e que, a o contrário, s e m ela faltaria à demonstra· Podemos dizer q u e o s ritmos d e duração d e fato s e distinguem. O s flu-
ção o fundamento indispensável para a comprovação d e u m a única e mesmª xos simultaneos
O

atestam u m a triplicidade rítmica. M a s é possível igualmente


afi
duração: a intuição q u e possibilita o englobamento d a s durações. Com i55 llnar que tais fluxos se r e ú n e m n u m seio d e u m todo q u e o s fazem mudar;
s end0 os fluxos
simultâneos partes desse todo e - n o caso específico dos se-

105 H. Bergson, Durée et Simultanéité, p. 99 - Duração e Simultaneidade, p. 85.


106 Ibidem.
;--- Idem, p. 44.

76 77
O Todo-Aberto

res vivos - partes totais já que atestam u m coeficiente de novidade at


ra\l'es

PARTE2
dos movimentos voluntários.
Surge então u m último problema: se o u n o todo é virtual, havendo
no
atual u m a simultaneidade de fluxos com suas respectivas diferenças rítnf
tcas
a d uraçao
- - enquanto continua
, - d eve ser pensa d a como d 1v1s1ve
. . , 1ou indiv ,'
IS\.
vel? Embora tendamos a pensar na duração como indivisível, parece que adi.
visibilidade convém melhor à demonstração d a existência de u m tempo únj.
co e impessoal. Sendo a unidade virtual, a continuidade não contradiz urna
certa divisibilidade: Bergson afirma que a duração pode se dividir, mas que
ela só se divide mudando de natureza a cada divisão. Afinal, as multiplicidades
qualitativas ou virtuais, que variam no seio do Todo, conferem a este urna
heterogeneidade. Assim, as partes do todo - enquanto partes totais - não
são apenas divisões (contrações) diferenciadas n a atualização, mas também Da Inteligência à Intuição
variações qualitativas desse tempo único e impessoal.
Para concluir cabe dizer que o todo se exprime e m toda parte. O vivo
é u m todo, o universo é u m todo, tudo dura. Tudo escoa no seio de um tem-
po único e impessoal. A s contrações-distensões d e tal tempo são igualmente
atualizações-criações d e u m a diversidade de coisas existentes. Enfim, o Todo
não pode ser dado porque é aberto, ou melhor, é o Aberto; e se o vivo e o uni·
verso são igualmente u m todo o são pelo fato de serem abertos. A abertura do
todo garante a possibilidade d e pensarmos o real como aquilo que possibilita
o novo, isto é, a criação.
Nesta parte priorizamos a teoria do Aberto e m u m a perspectiva meta·
física, sustentando-a através de u m a intuição da duração. Mostramos, é bern
verdade, os esboços d a representação ocasionada pela tendência adaptativa e
funcional dos seres vivos, m a s não extraímos deles todas as suas consequên·
cias metodológicas. Resta agora entendermos o método que garante essa
intuição, para executarmos nas partes seguintes as consequências práticas
dessa metafísica do Todo-Aberto.

78
Parte 2 - Da Inteligência à Intuição

tal descriç_ão? Não necessitaria ela de ma ex-


Mas como é possível
. 1•nterna distinta da observaçao do mundo externo conhecido pela
e riênc1a
p . • •a7 Para respondermos tais questões necessitamos de uma rea-
. tehgenc1 .
in . . - .
. aprofundando a mtu1çao enunciada na nossa
ão do ato intuitivo,
PresentaÇ ,
rimeira parte; pois, com e a, mostraremos que os equ1voc s d m . e 1.1genc1,a
• ·
p concepções erroneas do tempo resultantes de 1lusoes msepara-
nascem de . . _ .
de suas funções naturais. Assim, com a consecuçao deste procedimento
eis
a crítica de que os sistemas filosóficos são imprecisos, e
remos fundamentar
surgem dos conceitos forjados pela inteligência.
que tais imprecisões
Além disso, a ultrapassagem desta forma de conhecimento supõe, igual-
.. - mente, a elaboração de um novo método pautado na experiência da intuição .

S
Em Bergson, o método da intuição é construído com o intuito de conferir à
egundo Bergson, "o que mais tem faltado à filosofia é a precisão. Os metafísica da Duração uma precisão análoga à observação científica. Enfim, a
sistemas filosóficos não se ajustam à realidade e m que vivemos. São construção do novo método - que é a mediação para uma nova forma de pen-
demasiadamente vastos 108". Procedem por u m conjunto de concep- sar a duração - leva Bergson a situar a filosofia ao lado da ciência, buscando
ções abstratas, "tão vastas que neles caberiam todos os possíveis, e na metodologia do Todo-Aberto as etapas que eliminem os resíduos de uma
mesmo o impossível, ao lado do real" 109• Com tais declarações, Bergson de- especulação derivada de procedimentos equivocados da inteligência.
nuncia os procedimentos filosóficos que operam com concepções universais, É por isso que achamos indispensável detalhar nesta parte - depois da
para propor uma filosofia com conceitos criados pela experiência imediata e apresentação do Todo-Aberto - a experiência intuitiva e o método da intui-
precisa da duração. ção. Nosso propósito é ampliar o rigor de uma filosofia explicitada até aqui
Contudo, esta filosofia só consolida o seu respectivo rigor com a cons· por uma intuição filosófica, construindo a sua respectiva metodologia.
trução de uma nova forma de pensar a realidade temporal, já que as impre· Entretanto, adotamos como estratégia de demonstração do procedi-
cisões denunciadas por Bergson encontram seus motivos nas especulações mento metodológico a compreensão preliminar das funções da inteligência a
da inteligência. Segundo ele, os equívocos das concepções metafísicas que partir dos interesses práticos dos seres humanos. Queremos com isso apro-
operam com noções abstratas extraídas das compreensões errôneas do tern· fundar certos aspectos adaptativos já esboçados na nossa parte anterior, para
po, que trabalham com a construção de universais fundados e m uma lógi c a d nunciar as ilusões subsequentes. Saibamos, então, de início, quais são as fun-
espacial da subjetividade e que deflagram ilusões inseparáveis das suas cons· çoes da inteligência e
porque elas serão submetidas a u m tratamento crítico.
truções quantitativas, resultam de uma inteligência que aloca no campo do
pensamento da duração operações fundadas no âmbito dos interesses práti·
cos. Ora, tal conhecimento se mostra impreciso e m vários aspectos, cabendº
a Bergson a tarefa de descrevê-los para ultrapassá-los.

108 Henri Bergson, La pensée et /e mouvant, in: Oeuvres, p. 1253 (p.101).


109 Ibidem.

80 81
Parte 2 - Da Inteligência à Intuição

. , ·a que quer descrevê-lo com conceitos forjados na esfera dos


IJJIIB intellgenc1
es comuns. , , , - .
jtlteress como se do nosso espirita so tomassemos consc1enc1a
Tu do se passa
nos interessasse, do presente vivo só retivéssemos momentos
daQ

I
para a vida utilitária·' do passado puro, apenas representaçoes
. n ificantes
sig .
ara compreensão e interpretação do presente material; e m suma,
ª . ntínuo e heterogêneo, destacassemos
u,âliares P , _
estados e representaçoes
ro
' visando com isso a satisfação das nossas necessidades.
desc<>Dtínuas
A Função da Inteligência Podemos afirmar que tal limitação ocorre no momento e m que e pre-
. te r do mundo físico as representações adequadas para agirmos sobre
CISO
,., - e1e, e que quando tal operação se torna prioritária a duração interna aca-
ba se reduzindo a aspectos funcionais e adaptativos. Ora, tais operações se
uando o corpo é "orientado para a ação, ele tem por função ... limi- encontram em Bergson condicionadas por um processo conceituado como
tar, e m vista da ação, a vida do espírito" 110• Com esse enunciado atençao à vida utilitária, ou como diz David Lapoujade, por "uma faculdade
Bergson nos coloca no âmago da seguinte questão: como poderia de antecipação e adaptação às exigências do mundo externo" 111, isto é, uma
o espírito ter de si consciência integral, se vive - no âmbito dane- atenção que condiciona os dispositivos sensório-motores, garantindo u m
- presidindo as ações corpóreas? As funções espirituais não visam certo equilíbrio funcional na interação indivíduo-meio 112• Assim, é tal proces-
outra coisa nessa esfera senão a inserção corporal do ser vivo no mundo de so que fundamenta o fato de o homem ter de si uma compreensão limitada.
forma eficaz, pois, como vimos, há u m aspecto prático da subjetividade, cujo Além disso, ao restringir sua experiência pelas atividades que preten-
teor utilitário e adaptativo restringem e limitam a vida do espírito. de executar no mundo, ele se torna na natureza u m ser estagnado. Busca re-
Mas como podemos explicar com exatidão esta ideia de que o corpo cursos na inteligência para executar com eficácia suas atividades no mundo
com suas ações utilitárias venha a impor u m limite à vida espiritual? Já sa· externo, e acaba limitando-se ao tornar-se u m ser acomodado e repetitivo,
hemos que há para o espírito uma abordagem temporal distinta da concep· estando nessa esfera formalmente separado da sua potência.
ção funcional e adaptativa que reina na esfera dos interesses práticos. Além Ao acentuarmos que - para o homem atado à atenção à vida - as opera-
disso, ocorre a Bergson insistir, com frequência, no vínculo do espírito coma ções da inteligência são pautadas e m interesses fundados nas necessidades or-
duração. Resta precisar como a limitação de fato ocorre, e como ela se esta· 8ânicas que regulam o seu sucesso no mundo; podemos concluir dizendo que
belece na esfera do conhecimento. quando a inteligência
especula sobre a duração interna utilizando as mesmas
Podemos dizer que a limitação da vida espiritual pode ser precisada
e 111 No contexto enunciado nesta parte, a atenção à vida aparece como uma noção "de
de duas maneiras: e m primeiro lugar, pela restrição do fluir espiritual qu
ordem biológica, inerente à espécie ... que submete nossa relação com o mundo exte-
ocorre toda vez que a consciência volta sua atenção para o equilíbrio sensó· rior a um esquema
o do tipo questão e resposta". Para um detalhamento deste aspecto
rio-motor, fazendo com que os interesses práticos da inteligência - fundad s do conceito ver David Lapoujade. La Puissances du Temps Versions de Ber9son. Paris:
nos hábitos orgânicos e sociais - assumam a prioridade na vida; e, ern se· Les Éditions de Minuit, 2010, pp. 79-80.
112 8:rgson
or
gundo lugar, pelo conhecimento inadequado construído sobre o espírito p analisa o conceito de atenção à vida no primeiro capitulo de Matéria e Memó-
a, retomando a noção em um ensaio intitulado A percepção da mudança, i cluído no
IVro O pensamento e o movente. Neste ensaio, ele especula sobre uma atençao podero-
110 Henri Bergson, Matiere et Mémoire, in: Oeuvres, p. 316 (p. 147). sa à Vida capaz
de contrariar os aspectos utilitários e funcionais da inteligência.
82 83
O Todo-Aberto Parte 2 - Da Inteligência à Intuição

operaç ões com as quais ela lida com a matéri a, ela promo ve uma
certa e • t e mente signific a escolhe r, e a consci ência consist e antes
lização da subjeti vidade que distorc e a compr eensão do seu aspecto Pa . •..ercebe r consc1en 1 5 que favore ce a ação utilitár ia.
limitan do a vida do espírit o. Assim, tal espacia lização confirm a
t e ; º Cia r- 0 nesse d.1scerm•mento prático " 1 . _
a ideia d: tal. detud - 0 deste trabalh o de discern imento que a onenta çao da
as funçõe s da intelig ência promo vem um conhec imento restriti vo Ut ora, e, em funça . de faze-la .
, s eficaze s, tor-
no sentido
ritual 113, e que esta restriç ão é conseq uência das suas funçõe s
da vida e;
Pi- . si uica para as funçõe s corpór eas ,
Vida P - e m um acor-
naturais. As funçõe s da consci ência human a entram entao
E aqui precisa mos o essenc ial da nossa crítica: o que querem na-se eVldent.e. .
os é d _ ou e m u m a espéci e de acordo func10 nal - , que tem como
nuncia r a concep ção repres entativ a que a intelig ência faz do real, e- do eolabora uvo . . . - repro-
mostrando o re conhec imento do mundo extern o. Assim, a imagm açao
como desta concep ção é possív el constr uir u m pensam ento
metafísico
.
fi nalidade .
viabili zando u m trabalh o associa tivo no espmt o
, .
restrin ge a vida do espírit o pela espacia lização do tempo . Cabe que duz a imagem p ercebid a - . eficaz , .
acrescentar . ·t - da açao
auxilia r na deliber açao - mais . -, . a memor ia, por
que a intelig ência será critica da aqui no seu model o especu lativo comom tui o de .
construído
sua vez, con t r ibui
com as lembra nças dos aconte ciment os passad os - sen d o
com u m postul ado extraíd o do senso comum e do b o m senso: o . . . ,
reconheci, evoca da pa ra oferece r a sua
face útil à nossa vida consci ente - ; a mtehge n-
'" -
mento da realida de. . adotad as, qual a mais.
aa, en fim, deliber a, dentre as ações possíve is a serem , . , .
efi caz Para respon der ao apelo da situaçã o presen te. A l e m disso, e preciso
Os interesses práticos e as funções da inteligência que nesse acordo das faculda des haja uma preten são identif icar o o b.Jeto
sobre O qual iremos agir. E é esta preten são que cond1c 10na e fundam enta o
"Cham o de matéri a o conjun to das imagen s, e de percepção da reconh ecimen to da realida de.
matéri a essas mesma s imagen s relacio nadas à ação possível de Já sabemo s que Bergso n assina la a existên cia de dois tipos de reco-
uma certa imagem determ inada, meu corpo" 114. nhecimento: um que se faz por interm édio da atençã o; e u m outro que se
faz por interm édio de dispos itivos motore s, isto é, hábito s. C o m o primei ro,
Assim retoma mos a análise da percep ção consci ente expost a por Berg·
acionamos as nossas faculda des com o propós ito de reconh ecerm os o objeto
son no primei ro capítul o de Matéria e Memória. Se o mundo é imagem emsi,
percebido; com o segund o, reconh ecemo s o objeto agindo imedia tamen te so-
a imagem para nós, isto é, a imagem perceb ida, nada mais é do que a imagem
bre ele. No reconh ecimen to autom ático saber servir- se de u m objeto consist e
e m si relacio nada à ação possív el do nosso corpo sobre ela. em "esboça r os movim entos que se adapte m a ele", e isto implic a e m u m pro-
Disso decorr e a seguin te conseq uência : perceb er com interes se algu · cesso de automa tização , onde a repetiç ão que o condic iona "consis te precisa -
m a coisa signific a enquad rar - da contin uidade imagét ica do mundo materi mente no conjun to das conexõ estabe
es lecidas entre a impres são sensor ial e
- o que interes sa às nossas ações utilitár ias. Trata-s e, como vimos, de um 0 movime nto
que a utiliza ".
116
proces so subtra tivo, que implic a e m um trabalh o seletiv o da nossa cansei· Entreta nto, é no reconh ecimen to efetuad o pela atençã o que a reflexã o
e
ência com fins fundam entalm ente motore s. Bergso n pode afirma r então qu que se impõe à
percep ção_ atravé s de u m esforço intelec tual - vai mobili zar
todas as faculda des
do nosso espírit o. E aqui encont ramos na atençã o o acor-
113 Entretanto, devemos ressaltar que a inteligência para Bergson possa ter um relati : do co ncorda nte
valor, como condição de um conhecimento ampliado do mundo materia_l: Moldira- das nossas faculda des, isto é, o senso c o m u m que via 1 1za a
· b·1·
constru çao
- de
sobre o funcionamento da matéria, dando ao homem condições de fazer c1encta, uma imagem do pensam ento voltad a para a I'd ent1·f·icaçao
- d os
neste aspecto, a inteligência se encontra de fato em sua casa, já que se aprese:a13 ob·Jetos
externo s.
como condição do conhecimento científico. Além disso, convém não esquecer_ quen-
precisão da ciência advém de uma certa capacidade que a inteligência tem de inV
tar problemas e teorias consonantes com a observação parcial do mundo externº· 116 tem, p. 198 (p. 35).
l l 4 Idem, p. 173 (p. 13). dem, p. 240 (p. 74).
84 85
O Todo-Aberto Parte 2 - Da Inteligência à Intu i ção

Se já sabemos que na atenção o reconhecimento torna acentuact , •to _ podemos finalmente enunciar que a função geral da inte-
O espirI , .
intervalo de indeterminação existente entre o perceber e o agir, ago ra lltn çõeS do , er mundo externo, ajustando o ser humano , a reahdade
co e con h ec O . - , .
,
vem saber que quando as faculdades se encontram voltadas para gara . n. ugêneia q er atuar. E para que isto ocorra com prec1sao e necessano
u I ele
u
- ntira sobreª q fixa, que ela saiba distinguir as. coi-.
·
mserçao
.
ut1·1·1tana
' · d o h umano no mundo, a indeterminação vai estar b
. ela atn b ua às coisas uma identidade d1stn-
dmada ao acordo facultativo. Neste caso, o intervalo de indeterminaça~ O Será que ' também_, decidir sobre as_ suas. respectivas .
. . . - - sas ident11ca ·t· das e saiba .
mtervir
.
restrmg1do para fundamentar a orgamzaçao das funçoes espirituais corno paço com a intençao de calc u lar açoes eficazes para
es
bUl·ções no qual ação deve ser adotada
u m acordo de faculdades . a serviço dos interesses práticos. Se na parte ante. d a ·tu aç ão · O u sei·a, a inteligência prevê
s1 .
. . . _ n uma d a
garantindo ao homem u m
n o r a mdetermmaçao foi analisada como condição da intuição filosófica do - do conhecimento, .da coisa identificada,
emfunçao
dados imediatos da consciência, agora ela é referida aos interesses prático: sobre a matena.
ce rto domínio
das suas funções, chegando no âmago da
presididos por uma inteligência 117 que se atualiza nele. E assim, tocamos no essencial
seg u nda parte: afinal, selecionar, calcu-
Em suma, sensibilidade, imaginação, memória e inteligência contribuem ..;,; v 1·sada neste início da nossa
ques""o . .. . , . -
u e viabilizem respostas eficazes as s1tu
com as su as respectivas atividades para a realiza"'çao dos interesses fundados
ª
1E ntecipar e inventar problemas q
da inteligência? Não cabe.ª e l a ta efa de presi-
nos hábitos motores; estando a inteligência na tarefa de legislar essa contribui- ações dadas não são tarefas
ção, para garantir o reconhecimento do objeto. Com tais funções devidamente dir ações? Enfim, a inteligência
preside as funções da vida ps1qmca, operando
sociais 119• Orienta-se p_ara o
organizadas o senso comum se consolida: ele é o acordo das faculdades que poriexigência dos nossos hábitos individuais e
a representaçao e o
colaboram entre si para o reconhecimento do fenômeno externo, presidido pela mundo material, promovendo atividades que favoreçam
inteligência que tem como meta atribuir ao objeto uma identidade 118. domínio da realidade física.
por
Se dissemos que tal acordo supõe a legislação da inteligência - como Aqui Bergson apresenta sua crítica sing u lar à tradição filosófica:
faculdade encarregada da tarefa de presidir as colaborações das demais fun· desconhecer a função natural da inteligência, a tradição a concebe como
ins-
trumento de especulação pura, representando o real com conceitos q u e
abar-
quem o absoluto movida pela convicção de que o todo pode ser dado. Sendo
117 Convém lembrar que na primeira parte, o intervalo de indeterminação ofereceu o
hiato para a investigação dos aspectos temporais da subjetividade; e agora ele ére· assim, "contin u a-se ainda e m meio à nebulosidade ou no arbitrário desde
que se veja na inteligência u m a faculdade destinada à especulação p u ra" º.
12
tomado para a explicação detalhada do reconhecimento operado pela inteligência,
limitando a vida do espírito. Não existe contradição na nossa análise, mas há Colocando-a nesta condição, proc u ra-s e nela entrever atividades unificado-
rença de ênfase na abordagem. Tal diferença será explicitada para o leitor até odifinal
fe-
ras que possibilitem o conhecimento como fato inerente à natureza humana.
da nossa exposição.
118 Notamos aqui um certo parentesco com a definição kantiana do senso comum. Sen· E quando a inteligência é elevada à condição de princípio u nificad or trans-
do assim, qual conclusão pode ser extraída quando aqui reduzimos o senso comuIII cendental, corre-se O risco de ignorar as condições reais da experiência que
ao âmbito dos interesses práticos? Para Bergson, Kant pensou o senso comum co º determinam no fundo as suas operações.
condição do conhecimento do mundo físico, e extrapolou para a esfera da ciência
uma operação fundada em um conhecimento restrito pelos interesses práticos. ou Em Bergson, ao contrário, a inteligência é relativa às necessidades da
ação e não
seja, alimentou a ilusão de que o conhecimento da matéria ocorre por intermédiode da condição da experiência possível: "estabelecerei a ação e a pró-
representações a priori situadas em um sujeito transcendental e alocou tal sujeito0,
como uma função transcendental, situando-o fora do mundo empírico. Em Bergs o
tal operação será criticada como uma tentativa de espacialização da subjeti vi da de'.
onde o senso comum será objeto de uma denúncia que executa em proveito da dU -119: - - - - - _ ' · ' . .
S0bre a função pragmáti ca da intel i gênci a ver H. Bergson, L'Evolut1on Creatnce, m
ração. A concepção de senso comum, enquanto acordo facultativo, se evidenciaa:
obra de Kant na Crítica da faculdade do juízo, parágrafo 40. Para uma expJi c a ç Oeuvres, pp. 622-633 (pp 139-148).
120 I
detalhada desta concepção ler também Gilles Deleuze, Para ler Kant, p. 35. dem, P- 632 (p. 138).
87
86
Parte 2 - Da Inteligência à Intuição
O Todo-Aberto

u d e suas p a r t es r ea is
s dos c o rp o s r ea is desenham o
p r ia fo r m a d a inteligência d e l a s e deduz"121. Pe l a via d a a ç ã o , rep r es e n t ni os cont o rn o p o d e r s o b re a
a M a s q u a n d o r ep r e se n ta m o s n o s s o
m u n d o mate r ia l c o m c o n c e ito s m o l d a d o s s o b r e o funci o n a m e nt o da,.,... s o e \ementares. a dec o m p o r c o m o n o s a g r a d e,
I m p o m o s u m rec o r te n o sei o d o sensível e d a v a r ia çã o d a s imagens-inóv .
.. ,atelia.
matena,, . ist o é ' n o s sa facu l d a d e d e . - , da
. m o s essas d e c o m p o siçõ e s e r e co m p o s1ç o e s p o r t r a s
ist o é, d a maté r ia , percebem o s c o r p o s, o bjet o s e c o is a s r e c o r ta d os segu:ls p r o ie ta
do - r ea 1' s o b forma d e u m espaço h o m o g e• n e o ( ... ) ' q u e a
a s exigências d e n o ssa vida uti l itá r ia . extensao
· 122"
O r a, se rec o n he ce r a r ea l id a d e a t r ib u in d o às c o isa s u m a identidade fi reduzisse
define aqui o senso c o m u m , quand o a inte l ig ên cia prevê, antecipa o porvirs stitu i c o m o " o esquema.
es Se espaço h o m o g ê n e o se c o n . .
p ara Bergson, r m 1-
guind o u m a b o a di r eçã o q u e d ê a e l a c o n d içã o d e gene r a l iz a çã o p e l a repetição - p o ss1,ve 1 s o b r e as c o isa s"123_ Tais esquemas espac1a1s nos p e 11124
dos fat o s devidamente ana l isa d o s d o passad o , ent r a m o s, assim, na esfera do de noss a aça o
desc o n tin , uo '
. • r ep re se nta c l a r am en te o
con cluir que a inte 1·1genc1·a "só s e . que
b o m sens o . Neste sentid o , o b o m sens o e o sens o c o m u m - c o nju gad os corno tern
rep r es en tação e m u m
aspect o d a matéria. O u sei a, s a b e m o s
mo!dando
tal . t es
fo r m a s e e l em ent o s p u r o s q u e i r ã o inspi r a r u m a man r;:t d e pensa r a realidade dos moviment o s imanen
objetos so b re o s quais agim o s s ã o inseparáveis .
os o v im en t o s c o o r de -
- c o n stit u e m aqui l o que e m fil o s o fia chamam o s d e o p in iã o . O r a, c o m tais opi- m a s a inte l ig ê n cia s ó retém desses m
ao plano d a m.a te'r1·a
niões a inteligência executa dive r sa s ope r a ções. C o m o é o seu p r o cedimento?
. ·mp
1 o rtan d o sabe r para o
n d e eles se dirigem, e m q u e pont o se
nadas espaciais,
P r im e ira m e nte, a o p r e s id ir o rec o n h ecim e nt o d o o b jet o , que é síntese suma, c o m o p o d e m o s deles
.
situam, "ro1al1- a trai· etória po r e l es p e r c o r r id a s, e m
d e u m trabalho d e ass o c ia çã o e m p r ee n d id o pela m e m ó r i a justap o ndo-se a o d o s noss o s inte r e sses .
nos servir pa r a garanti r m o s a satisfaçã
p e r ce p çã o , ela empreende u m a gene r a l iza çã o r e fletid a q u e lhe permite cal· - c o m p o n d o e dec o m p o n -
Em te r ceir o luga r , di r em o s q u e a inteligência _ n e o, u m_v e r s : l ,
cula r , prever, e estabelecer relações entre representações. E m segundo lugar,
n d - e m símb l s, a t r av é s d e u m uso h o m o g e
do o real ' t r aduzi o o o o
.
auxi l ia d a p e l a linguagem - q u e e m p r e sta n o sei o d a v i d a s o c ia l te r m os equi· artefat o s q u e t o r n a ª aça o
abstrato e extensiv o d a l ín g u a - inventa mei o s e
valentes à s suas noções - a inte l ig ê n cia c o m p õe u m unive r s o l ó g ic o simbóli· inte l ig ên cia fabrica - in-
do homem sob r e a matéria mais eficaz. Engenh o sa, a
b re
c o , d a n d o a o h o m e m condições d e c o m p r ee n d e r esquematicamente o real no venta e formula p r o b l em a s - garantin . d o a o ser h u m a n o u m a c o n q u ista s o
qual p r e te n d e agir. T u d o s e passa, p o r ta nt o , c o m o s e a inte l ig ê n cia dispuses· . • •
a matéria. Enfim, a intehgenc1a fo r n e ce a o h o rnem c o ndições d e
p o ssib i l id ad e
. • .
se d e u m espaç o auxilia r idea l , u m m e i o h o m o g ê n e o o n d e a s representações de transforma r o mei o e m que vive, adaptand o - o segundo as suas
exigencias
s e alinhassem, p e r m it in d o , c o m eficácia, o s seus cálcu l o s e a s suas previsões. O c a r áte r utili-
Ora, todas as atividades recenseadas acima evidenciam
cre-
C o m o diz o p r óp r i o B e r g s o n : tário da inte l igên cia . E é p r ecis o enfatizar que tais o p e r a ções funcionam
ditando a ela u m cert o m e r ecim en t o . Que a inteligência esteja m o ld a d a s o b r e
" o c o nju nt o d a m a t é r ia deve r á p o is aparecer ao nosso uma tendência d a matéria, que e l a funci o n e segund o u m aspect o desc ntínuo
pensament o c o m o u m imens o tecid o c o m o qual traba l h emos que a próp r ia ciência n ã o fez senão a m p l ia r p a r a c r ia r as suas funções, s a o fat o s
c o m o quise r m o s, p a r a o r e c o se r c o m o fo r d e n o s s o agrado (...). reconhecidos n a aná l ise de B e r g s o n e já devidamente c o n sid e r a d o s p o r nós.
Esse p o d e r é o q u e afirmamos quand o dizem o s q u e h á u m esp a ç ,
o
Entretant o , p a r a esse a u t o r , "fals o s" problemas e m e r g e m quandº-
ª
e .
ist o é, u m mei o h o m o g ê n e o (... ), infinitamente indivisível, q u e inteligência, especulaça o
amparada n a o p in iã o , se v o l ta p a r a o te r r e n o d a
1
p r esta ( ... ) a seja d e q u e m o d o fo r d e d e c o m p o s içã o . U m rn :
e
desse gêne r o ( ... ) s ó p o d e s e r c o n ceb id o . O q u e é percebido 22 Henri
ue Bergson, L' Évo/ution Crêatrice, in: Oeuvres, PP· 627-628 (p. 142)-
extensão matizada, resistente, dividida c o n fo r m e a s linhas q 123 Ibidem.
124 Idem,
p. 626 (p. 140).
121 Idem, p. 624 (p. 139). 89
88
O Todo-Aberto

.
d o tempo, isto é, da duração pura que é o
u m a imagem do pensamento derivada d e
domínio d a metafísica C . . ºªt
postulados extraídos da . %
-
· - a' t·1I oso t·1a noçoes ºP 1
1mpoe
-
·
equivocadas acerca d o tempo real. O u se· niào,,
operaçoes comprometem a compreensão Ja, as .
d a duração n o seu fluir h s11, "'l
neo, ac rretando sucessivamente a espacialização eter0
d o tempo, a representa e.

II
d a reahdade como u m todo dado p o r conceitos
universais e a efetuaçãtº
problemas sustentados p o r "interesses" ilusórios
. _ q u e lhe são iman entes.d,
aqui a compreensao , ,
adequada d o esp1rito e comprometida pelas E
. op eraçoes
neghgentes de u m a inteligência q u e assume a
tarefa d e especular sobr e
A Intuição como Ato e as Ilusões na Inteligência
.
c o m o u m todo espacial, . ore
desfigurando a natureza d a duração.
E m outros termos, o q u e queremos enfatizar é
.
eia especula s e entrega a ilusões internas que - q u e quando a inte]·
pertencem à sua própria
tureza. Tais ilusões não são dissipáveis, mas na-
devem s e r inibidas. E a inibição
delas supõe u m a investigação das suas especificidades, A ideia do método
cujo esclarecimento É sabido que a noção de intuição sempre esteve presente e m sistemas
é feito através d a experiência imediata d a
intuição. O u seja, é a intuição como filosóftces. Desde a antiguidade até a filosofia contemporânea, ela era apresen-
ato q u e esclarece a s ilusões n a inteligência,
fundamentando a denúncia ea tada com uma série de sentidos: apreensão imediata do eterno, visão d e Deus,
consequente inibição destas. Sendo assim, para
denunciarmos as ilusões na certeza imediata de si enquanto ser pensante e apresentação d o sensível. E
inteligência teremos que apresentar primeiramente
a intuição como ato do todos esses sentidos se encontravam vinculados a u m sentido fundamental
espírito, pois é c o m ele q u e faremos a fundamentação
d a crítica que condicio· imanente à etimologia da palavra latina intueri, cuja tradução geral é ver.
nará a criação d o método. Mas, o q u e é finalmente
u m ato d e intuição? Entretanto, quando Bergson a evoca quer c o m ela p e n s a r u m m o d o
de pensamento imediato d a realidade, inovando e m relação à s acepções
tradicionais a o lhe dar c o m o objeto o espírito apreendido imediatamente
como duração real.

"A intuição d e que falamos refere-se sobretudo à duração


interior. Ela apreende u m a sucessão que não é justaposição,
u m crescimento p o r dentro, o prolongamento ininterrupto d o
passado n u m presente que penetra n o futuro "125

Pensar intuitivamente é - e m princípio - apreender imediatamente o


espírito.
Com a intuição o espírito s e v ê o u tem u m a visão direta d e si por si,
encontra . . . . ,
. n d o as condições d e ultrapassar a via hm1ta d a p e 1o s mteresses pra-
ticos devidamente
presididos pela inteligência. O ato intuitivo promove u m a

li. Bergson,
La pensée et /e mouvant, in: Oeuvres, pp. 1272-1273 (Pensadores, P· 114).
90
91
O Todo-Aberto Parte 2 - Da Inteligência à Intuição

u m instantâneo tomado por nosso espírito


apreensão imediata da experiência espiritual. Temos com ele , a experiê
. ~ ' . movimento abstrato,
d e uma " consc1enc1a 1med1ata, v1sao que quase não se distingu e dO n 11 a d e "134
na mo b·1·d
A • • • •

· h · , ob·Je
visto, con ec1mento que e contato e mesmo coincidência"IZG_
, intuir é apreender o movimento do espírito como algo que
Além disso, a intuição é também "consciência alargada"1z7 " Afem disso, . . , a d"1-
. ' Percepri é, como algo macaba d o por exce IAenc1a que contem
· d·1ata "128, "sentimento
1me , l<I(
imediato"129 e "experiência ampliada"Bo · LeonH está se fazen do , isto
acepções acima notadas.
ª
_
son tem razao quando nos diz que a intuição - enquanto ato simpl es Us- rs1 de das
'd . ·~
, . , does. na duração real como a Igo que t1· m, perce b emos a mtu1çao
p m t o - recobre uma serie de acepções 131• Ideia, aliás, defendida por Ber As SI•m, imersos
gsot direções, indo aos poucos desdobrar-se nessa "experiên-
quando nos fala da impossibilid ade de defini-la: osd)ar entre diversas
intuitivamen te, abre-se, na sua
arnp 1.
ia da" . o tempo real , tal como apreendido
eia ,
para uma diversidade de fluxos simultâneos que desembocam
"que não nos seja pedida, pois, uma definição simples hetef'Ogeneidade, ~ . .
de graus d e d uraçao d.1stmtos; e, por outro, na m tu·1-
geométrica da intuição. Seria fácil mostrar que tomamos: rUJll lado, na constatação
Todo-Aberto , isto é, à totalidade virtual.
palavra e m acepções que não se dedtrzem matematicamente do fio tênue que nos conduz ao
direções indicadas, criamos as condições de
uma da outra" 132• çao Ao explorarmos as suas
m a compreensã o adequada da realidade
um método filosófico que nos dê u
obscuro - já que a intuição é
Contudo, há um sentido que configura uma acepção fundamental: a fluente. Sendo assim, o que a princípio se revela
intuição, como ato simples do espírito, é apreensão imediata da duração. A um fluir contínuo-, vai se mostrando, com o rigor
do conhecimen to, cada vez
e funda-
multiplicida de qualitativa que é característic a desta é acessada por um ato mais claro e preciso, ganhando destaque na compreensã o filosófica,
que a apreende imediatamen te e que ocupa intuitivamen te o intervalo de in- mentando o método que queremos explicitar. Como diz Léon Husson:
determinaçã o. Assim, "pensar intuitivamen te é pensar na duração" 133, com·
preendendo o seu movimento como heterogêneo . "a intuição é a princípio este conhecimen to imediato, mas
confuso, que a doutrina descobriu na base da percepção e da
"A inteligência parte ordinariame nte do imóvel e reconstrói consciência corrente; sendo, em seguida u m conhecimen to
bem ou mal o movimento com imobilidade s justapostas. A distinto que ela propõe extrair; sendo, enfim, u m método de
intuição parte do movimento, coloca, ou melhor, percebe-o conheciment o distinto desenvolvid o. Toda a teoria ... bergsoniana
como a realidade mesma, e não vê na imobilidade mais que um encontra pois sua chave no reconhecime nto desta função, e toda
a sua metodologia consiste e m pô-la em andamento" 135•

126 Ibidem. Ou seja, o método se faz no desdobrame nto da experiência da intuição,


127 Ibidem. º stra nd
o como a inteligência se ilude. Com ele, Bergson encontra as condi-
128 Ibidem. Çoes de reprimir
tais ilusões que resultam da extrapolação para a esfera do
129 Ibidem.
tempo de operações efetuadas na análise da matéria. Mas podemos elucidar
130 Ibidem. démarches do método sem um esclarecimen to preliminar das ilusões na
131 Sobre as diversas acepções da noção de intuição no bergsonismo ver Léon H0550 intelig · .
L 'intel/ectualisme de Bergson, conclusion. Ver também O trabalho de Maurici0 T,
l,
sse caso, quais são estas ilusões? E o que devemos responder
Penido, La méthode intuitive de Bergson. 134 Ibidem
132 H. Bergson, op. cit., p. 1274 (p. 115). 135
Léon Husson, op. cit., p. 221.
133 Ibidem.
93
92
O Todo-Aberto Parte 2 - Da Inteligência à Intuição

neste momento, para colocarmos e m análise os motivos críti·c os que de espacialização é, segundo Bergson, u m pressu-
draram os problemas do método da intuição 1J 6_
enger
!ª 1 rocedimento
. . , , d O JIIIP
iícito e m diversas filosofias que pretendem ofertar u m a lista de re-
d' . d os fenomenos apresenta-
que garantam u m con 1c10namento
A

ta ões
As ilusões na inteligência I"'"' n que difere essas filosofias
prese etfera do sensível. Sem tocar no pormenor
dOS na entre elas - , podemos dizer
Aqui, quatro ilusões serão denunciadas pela experiência i mc1al
· • do é certo afirmar a existência de diferenças
. . . . . . _ constituída por u m a ope-
ª - P : u um certo ponto elas derivam d e u m a ilusão
o
mtmt1vo. a espac1ahzaçao do tempo, a ilusão dos universais metafí sicos.
..
Probl emas que sao - mventados
· . '"'
com os termos universais da met a fís1ca q
u
que consolida - ao longo da história - u m a certa forma
ea da inteligência
engendra u m a outra que se
- d a negatividade.
1· usao ra nsar O todo como dado, e que essa ilusão . a espac1a-
depe , . d . Ou seia,
atraves d e categorias que evemos anunciar. .
formalizará que podemos conhecer a realidade com
a ilusão de
) A espacialização do tempo: Fala-se de u m a primeira ilusão na inteli li7,aÇâo do tempo cria
_gen.
eia a o constatar na experiência intuitiva que a duração,.. _é u m tempo continuo conceitos universais da inteligência.
h eterogeneo
, e povoado de multiplicidades. É que a inteligência ao re presen-
. metafísicos: A o pensarmos na capacidade de
tar o tempo mtroduz nele u m a descontinuidade, compreendendo-o analiti- B) A Uusão dos universais
generalização da inteligência,
entenderemos que esta tende a formar con-
came te como uma sucessão de instantes pontuais. C o m isso, a duração e
conhecer. C o m tais conceitos, a
reduzida a u m a sucessão de estados justapostos que desfilam alinhadamente ceitos gerai para toda realidade que ela visa
inteligência se alça - no terreno especulativo - à
pretensão de compreender
ao longo d e u m tempo uniforme. E não poderia ser diferente: habituadaa
que aparecem
representar o descontínuo, a inteligência destaca do movimento interno mo- a realidade como u m todo e, com isso, forja noções universais
Os
mentos significativos, transpondo-os para u m espaço ideal auxiliar. Preocu· como categorias que se predicam de toda e qualquer realidade possível.
chamados predicamentos do ser ou os nomes gerais de todas as coisas.
pando-se e m analisá-los geometricamente, ela não só ignora o processo em
Segundo Bergson, essa operação pode ser denunciada como u m a ilu-
que eles se fazem, como crê que é possível recompor o movimento real com
são produzida pela crença de que o múltiplo é atribuível a u m ser Uno dado, e
instantes pontuais alinhados sucessivamente, similares a pontos espaciai
que é possível- pela representação d a u n i d a d e - compreender a diversidade
O u seja, ao abstrair do tempo real u m a sucessão de instantes alocados em um com universais categóricos. É a ilusão dos universais, cuja operação consti-
espaço ideal, a inteligência obtém da análise u m tempo abstrato, puramente tuinte consiste no desafio de encontrar u m conceito "único que os resume a
matemático, fazendo deste a condição do conhecimento filosófico. todos e que é, consequentemente, sempre o mesmo, seja qual for o n o m e que
Segundo Bergson, essa é a mais flagrante de todas as ilusões que con· lhe dermos: substância, o eu, a ideia e a vontade"138.

:rn
diciona u m conhecimento filosófico: os procedimentos pautados na análise Bergson dirá que os universais não explicam coisa alguma. Antes pre-
da inteligência acabam criando a convicção de que "podemos pensar no in5· .
ser explicados 139. A o pretendermos construir com eles a ordem da rea-
tável por meio do estável, o movente por meio do imóvel"1 J 1_ A o estenderrn°1 de, teremos sempre u m real abstrato, esvaziado de sua heterogeneidade,
tal ilusão às analises ontológicas do bergsonismo - tanto no âmbito da dura· da
da sua mobilidade. Entretanto, se a unidade pretendida pela
~ a in:a u a ça,
çao, quanto no ambito do movimento concreto-, percebemos que existe u(ll que
. igencia e "abstrata e vazia, derivada de u m a generalização suprema,
A

incapacidade de compreensão do fluir universal na inteligência quando e5!a serta a Unidade de qualquer mundo possível" 14º, isto ocorre porque a inte-
busca submeter a duração a u m tratamento espacial.
138 H p. 113).
139 · Bergson, l a pensée et /e mouvant, in: Oeuvres, p. 1272 (Pensadores,
Ide m, PP- 1271-1275
136 H. Bergson, l 'Évolution Créatrice, in: Oeuvres, p. 726 (p. 239). (pp, 113-117).
140 Ibidem.
137 Ibidem.
95
94
O Todo-Aberto Parte 2 - Da Inteligência à Intuição

ligência - habituada a p e n s a r espacialmente - q u a n d o generaliza sub presumimos a existência d e diversas ideias gerais:
por tal motivo,
t o d a a realidade à identidade d e u m conceito universal d e ser, fazendo dellle traduzem u m a o r d e m d e semelhança objetiva entre a s
ste, aq u elas q u e . .
condição d e possibilidade para a compreensão e a determinação dos d ellla eiu-'-
_..;ctelD
, e m certa m e d 'Id a, ' "a c o m o d 'Id a d e d o m d'1v1'd u o e d a socie-
- se rvi·ndo
conceitos d a realidade. coi53;142 • existem t a m b é m aquelas q u e r e m e t e m a semelhanças objetivas en-
Convém assinalar, q u e a ilusão é configurada p o r Bergson no dades u m a classificação d a vida s e g u n d o gêneros e
terre. e s vivos, viabilizando
º s r
n o especulativo, e q u e ele pretende denunciar u m a certa metafísica que . 143,, e , além dessas, existem a s ideias gerais d a metafísica, resultantes
irepécies
1 es
d o s universais o s instrumentos d a s u a especulação. S e n d o assim ' é pr _ai dos universais, q u e aqui criticamos. Nesse caso, a inteligência forja
ec1s_ d:ailusão
b u s c a r a razão d a generalização n o âmbito d a vida prática para denunci· ilusão d e totalidade.
ara ideia geral das ideias gerais, conduzindo-nos a u m a
ilusão inseparável d o s processos d e generalização q u e resultam da extrapo. q u e s ó é ilusória p o r q u e s e assenta n a convicção d e q u e t u d o
otalidad e esta
lação para a esfera metafísica d o s universais engendrados pela inteligência • dado , isto é ' q u e exista u m t o d o dado. Bergson escreve:
seJa
S e g u n d o Bergson, a s ideias gerais foram
,..,- "pouco importa q u e s e diga "tudo é mecanismo" o u "tudo é
"forjadas pela inteligência d e acordo c o m s u a s necessidades. vontade": n o s dois casos confunde-se tudo. N o s dois casos
Correspondem a u m recorte d a realidade s e g u n d o as linhas mecanismo e vontade tornam-se sinônimos d e s e r e, p o r
q u e é preciso seguir para agir c o m o d a m e n t e sobre ela. O mais consequência, sinônimos u m d o outro. A í está o vício inicial d o s
das vezes elas distribuem o s objetos e o s fatos d e acordo com sistemas filosóficos. Eles c r e e m n o s informar acerca d o absoluto
a vantagem q u e p o s s a m o s tirar deles, jogando arbitrariamente dando-lhes u m n o m e " 144 •
n u m s ó compartimento intelectual t u d o o q u e atende à mesma
necessidade. Q u a n d o reagimos d e m o d o idêntico a percepções
diferentes, d i z e m o s q u e estamos diante d e objetos de m e smc q Os problemas metafísicos da inteligência e D) A ilusão da negativi-
dade: A espacialização d o tempo, a generalização corroborada p o r tal espa-
gênero. Q u a n d o reagimos e m sentido contrário, repartimos os
dalização e a universalização pretendida e m proveito dos conceitos últimos
objetos e m dois gêneros opostos 141".
edetermináv e i s d o conhecimento (categorias) 145 c o n d u z e m a inteligência à
O u seja, a gênese d a s ideias gerais decorre d a s necessidades da inte- Produção de duas outras ilusões, s e n d o a primeira condição d e c o m p r e e n s ã o
nos ha· da segunda. A
ligência, estando esta subordinada a o s interesses práticos fundados inteligência formula p r o b l e m a s ilusórios e engendra, c o m eles,
noções negativas.
bitos d o s e r h u m a n o . H á u m a generalidade sentida q u e s ó depois é refletida Vejamos, a princípio, c o m o o s problemas ilusórios s ã o en-
gendrados.
Nesse nível a s ideias gerais s e f o r m a m graças à s contribuições das faculdades
s
d o n o s s o espírito, consolidando a inteligência na tarefa d e ligar as dive rsa
funções espirituais, subsumindo-as a o s conceitos forjados n a esfera do
en· :----_
142 H B
· ergson, La pensée et /e mouvant, in: Oeuvres, p. 1298 (p. 130).
tendimento. P o r extensão e ampliação dessa gênese utilitária somos ir:tJ'O' 143 Ibidem
e
duzidos n o domínio d a representação e forjamos, a partir daí, ideias g '. 144 ld ern, p.
1291 (p. 126).
c o m conceitos universais, b u s c a n d o a fundamentação d e u m a compreensat 145
! íti a aos universais metafísicos como condição de possibilidade do conhecimen-
metafísica d a realidade. feita por Bergson em uma alusão explícita a Kant e às categorias aristotélicas.
lá tocarnos
te no essencial dessa critica em um outro momento do nosso estudo. Aqui
semetemos o leitor à leitura da Critica da Razão Pura de Kant, principalmente na sua
gunda Parte,
141 Idem, p.1277 (p.117). analítica transcendental.

96 97
O Todo-Aberto Parte 2 - Da Inteligência à Intuição

os problemas aparecem apenas c o m o u m m e i o d e


E m Metafísica, a construção d e problemas - q u e faz avançar 0 0 0 -
• .. 1llle . ntes. C o m isso,
d e termos q u e representam a realidade j á
t o - e u m a at1V1dade d o pensamento q u e t e m n a inteligência a sua ,
. .
P respeito d a veracidade
cogmt1va. Segundo Bergson, a inteligência é a faculdade d e inven tar gen dirá q u e a inteligência
Proh1 : : : U rd a . Bergson
m a s e m gera 1146, e produz problemas metafísicos q u a n d o , e m f i'lo so f"ia i
b
compreender a totalidade d o real. É b e m verdade q u e a noção de ' llS(. "se condena antecipadamente a receber u m a solução pré-
Problen:
e• v a I o n·z a d a por Bergson n o âmbito d a evolução d a vida. Para el e, a evo1 fabricada, o u melhor, a escolher simplesmente entre duas o u
- de Pro.
ç a o e n a d ora, c o m o veremos n a parte posterior, s e faz p o r resolu çao
N •
três soluções, as únicas possíveis, que são coextensivas a esta
. . posição d e problema. Seria o m e s m o dizer que toda verdade é
blemas q u e a v i d a soube inventar. Assim, a inteligência a o retomar o
Pode·
d e c n·a r pro bl emas q u e e· d a vida, garante a o ser h u m a n o u m coef·1c1ente
· já virtualmente conhecida, q u e o modelo está já depositado nos
. . . . cartões administrativos d a cidade, e q u e a filosofia é u m quebra-
hberdade ma10r, confermdo a este u m a i m p rev isib ilid a d e mais a m P Ia em re-
laça o a o s d e m a i s animais. Assim, a inteligência fabrica inventa probl emas,
N • •
cabeças, e m que se trata d e reconstituir, c o m a s peças q u e a

.
sociedade nos fornece, o desenho q u e ela não nos quer mostrar 147".
. . . . - '

constro1 c o m tais mvençoes a s condições d o conhecimento d a realidad 0


• • • • N

e esta característica q u e a faz - n o âmbito d a filosofia - colocar problemru


É preciso vencer essa ilusão, dizendo q u e e m Filosofia - e m e s m o alhu-
metafísicos a partir d e ilusões q u e lhes são imanentes. O u seja, existe a idei,
res- o importante é criar o problema, a o invés d e delineá-lo a partir d e so-
n a filosofia bergsoniana d e q u e certos problemas metafísicos são engendra-
luções pré-existentes. Estas pertencem a o domínio das descobertas, sendo
d o s p o r ilusões mal analisadas pela inteligência.
portanto dadas, ainda q u e se encontrem veladas socialmente. Quanto a o pro-
Seriam tais ilusões a fonte d e problemas inexistentes? De problem
blema, é necessário produzi-lo e n ã o decalcá-lo. Pois a o invés dele pertencer
m a l colocados? Entendemos enfaticamente q u e a ambição d e Bergson é pri
ao domínio das descobertas, pertence antes a o domínio das invenções 148•
ritariamente crítica: embora a s ilusões sejam imanentes à inteligência, el
Quando a inteligência s e rende a o s preconceitos sociais e à s noções
s e desdobram quando esta assenta suas convicções e m posições derivad
oriundas da opinião, termina p o r engendrar problemas ilusórios. Q u e r
d a opinião. A inteligência especula c o m preconceitos tanto sociais quantc agrupar afetos diferentes submetendo-os a rubrica d e u m m e s m o nome;
individuais, buscando neles o s termos a partir d o s quais desenvolverá O! qu r compreender a totalidade d o real traçando oposições entre noções
seus problemas. C o m tais termos, ela constrói no universo metafísico noçôel universais ex t remamente abstratas; introduz . . . -
. n o s i ste m a opos1çoes, analo-
q u e revelam u m a incapacidade d e compreensão d o t e m p o real, pois neW gias e semelhanças
entre tais noções; produz u m vetor d e generalização
genciam as nuances, as diferenças d e natureza, a heterogeneidade existenti tende para conceitos últimos e determináveis d a razão e introduz,
entre as durações, para s ó reterem delas seus aspectos quantitativos e un :e
ta alrnente, noções negativas, tais c o m o desordem, não s e r e nada, resul-
versais. O u seja, a o retirar d a opinião noções forjadas p o r interesses prátiCC' ntes da opo . - 1 . - quantitativa d a realidade
s1çao og1ca · der i. v a d a d a gradaçao
hábitos e convenções sociais; e a o transportá-las para o terreno da filosoi rePresentad . . .
- d a negat1v1dade s e encontra 1mphcada . .
a. A q m , a 1lusao . nos
querendo crer q u e elas sejam adequadas para a compreensão d a totalidade faisos problemas ' · · '
d a i· n t e 1·1genc1a. ·
EI a consiste precisamente n a tendencia
inteligência acaba criando problemas pautados nessas noções, ou seja, acat de qUerer
q u a n f 1f '1car a realidade b u s c a n d o termos contraditórios p a r a cir-
elaborando problemas q u e são enunciados interrogativos construídos co CUnscrever
entre ele s o rea I . O u s e i. a, a inte . 1· , . . - n e g a t i.v a s
- · contenta-se e m elaborar condições q u e as torne [Tllef 1genc1a projeta noçoes
essas noçoes. A ss1m,
O<
timas, construindo problemas a partir d e perguntas decalcadas de soM
li. Bergs on, La pensée
148 lb'd et /e mouvant, in: Oeuvres, p. 1293 (p. 1270).
1 ern.
146 Idem, 1292 (p. 127).
99
98
O Todo-Aberto

sobre a realidade e supõe, nessa projeção, que é possível const ruir


'co
elas, problemas de natureza metafísica.
E com isso terminamos o inventário das ilusões que se formam na
10
1.1genc1a. y,eremos d aqui. para f rente como da consecução desta crítica O
A •

lov
método é construído. Com ele, a metafísica do Todo-Aberto pode enfi

III
rn se'.
estabelecida em termos metodológicos.

A Intuição como Método

.. -

A
constr ução do método da intuição é feita gradativamente através
das críticas endereçadas às ilusões fundadas na inteligência. As-
sim, o método visa precisar as teses sobre a duração real, mos-
trando como esta permaneceria imprecisa e vaga se pautássemos
o conhecimento da realidade temporal nas especulações arbitrárias e nos
conceitos a priori da nossa inteligência.
O trabalho habitual da inteligência "consiste ordinariamente, e m ir dos
conceitos às coisas, e não das coisas aos conceitos 149"; entendendo que aqui
os conceitos são definidos como ideias gerais, noções pré-fabricadas e abstra-
tas. Em Bergson, tais noções são, na realidade, extraídas arbitrariamente da
esfera da opinião e transferidas para u m espaço ideal, posto como condição da
especulação. Já sabemos
que tais conceitos são forjados por operações funda-
mentalmente práticas,
isto é, operações pautadas em interesses práticos que
fornecem ao ser
humano meios eficazes de inserção no mundo: "pesquisamos
que ponto o objeto a conhecer é isto ou aquilo, em qual dos gêneros conhe-
os
ci ele entra, que espécie de ação ou de atitude ele deveria nos sugerir 150".
caso da intuição, torna-se necessário que o espírito inverta "o sen-
tid No
operação pelo qual pensa habitualmente" 151: ao invés d e partirmos de
co:ceitos
Pré-fabricados, devemos antes partir da experiência imediata do

li,Bergson, l a pensée
lSo (b· et /e mouvant, in: Oeuvres, p. 1409 (Pensadores, p. 24).
•dern.
1S1
ld
em, 1422 (p. 32).

100 101
O Todo-Aberto Parte 2 - Da Inteligência à Intuição

espírito, e, para tanto, é fundamental a inversão da tendência habitual nesse caso, que a crítica às ilusões do conhecimento
dernos dizer,
da no aspecto prático da subjetividade. Pois só nessa inversão _ que Ilda. à inteligência, onde
e Par, p:o é conduzida por uma transmissão da intuição
nós uma espécie de esforço - que a intuição pode ganhar vivacidade segunda, obrigando-a a recalcar os seus precon-
. , Proven _,,1,5essarirneira converte a
d o a f·11 oso f'1a d e prec1sao.
- B ergson d'1z que "f'l1 oso,ar
& consiste em in aeJa ª transmissão, a intuição condiciona?te se amplia, ao mesmo
Verte
marcha habitual do pensamento 152". Assim, a intuição é a via de retomact t , a inteligência ganha profundidade. E aí que o método se elabo-
p . em que
d uraçao- como d a d o 1me · d.,ato, sen d o, por consequenc,a, a condição da ªda
A •

- a u m só tempo - uma compreensão mais exata da realidade


ex e nnitindo
te!DP°
riência real que reprime as ilusões na inteligência, dando à filosofia as Pe- ra,p retificação da inteligência, através de uma crítica onde esta é forçada a
- . _ condi-
çoes reais para a consecuçao de u m novo sistema metafísico. ecer as suas ilusões. Para Bergson, a inteligência por si mesma é inca-
Só assim os conceitos filosóficos podem ser revalidados, ganhandor com contundência, uma crítica das suas ilusões, e isto se deve
pa z de efetuar, . ,.
destaque e o rigor oriundos da experiência imediata. S e a filosofia se defin; serem imanentes. N esse caso, uma cnt1ca so' se e,e • t ua
ao rato destas lhes
pela criação conceituai, que esta seja feita a par !,r" _de questões surgidas de problemas, as
quando a inteligência for forçada pela intuição a rever os seus
u m a intuição filosófica. Tais conceitos ganharão u m novo contorno pois serão suas ilusões e a sua incapacidade de compreender com conceitos universais
talhados nos movimentos imanentes à experiência real. E m outros termos,os a heterogeneidade do real. Sendo assim, devemos lutar contra as ilusões na
conceitos nascidos de uma intuição são "conceitos fluidos, capazes de seguir intlligéncia, combatê-las no íntimo do nosso ser pensante, para que a precisão
a realidade em todas as suas sinuosidades e adotar o próprio movimento da setxJme possível. E só uma intuição é capaz de estabelecer - pela via da apre-
vida interior das coisas" 153• ensão imediata do espírito - u m combate efetivo a tais ilusões.
Mas como u m conceito pode nascer de u m a intuição se a sua criação É desse combate que surgem os problemas que ensejarão o método. Se
explícita é obra da inteligência? Não haveria contradição na asserção crítica éverdade que e m toda tentativa metodológica as formulações de problemas
de u m a oposição radical entre inteligência e intuição? Bergson diz que uma definem as regras do conhecimento, e m Bergson tais formulações perfilam
intuição, para se transmitir, necessita da inteligência. Diz, igualmente, que as condições preliminares do procedimento intuitivo. Assim, as criações de
a inversão da marcha habitual do espírito deve, primeiramente, significar problemas são pressupostos indispensáveis para a consecução das regras da
u m a conversão da inteligência à intuição. Diz, finalmente que se a inteli· intuição. Com isso, inferimos a ideia de que é possível construirmos proble-
gência problematiza e cria conceitos, quando convertida à intuição ela deve mas para definirmos o caminho adotado pelo método Bergsoniano.
proceder da experiência real, segundo condições precisadas por esta. Só
Problema 1: A
assim, a inteligência se generalização que uniformiza o real, tratando-o de uma for-
ma puramente
homogênea, não ocorre na inteligência pela tendência desta de
compreender
"liberta de conceitos rígidos e pré-fabricados para criar conceitos implicitamente o tempo com noções espaciais?
bem diferentes daqueles que manejamos habitualmente, i5loe_ Assim, a primeira ilusão a ser combatida diz respeito à espacialização do
p o n ta
ternpo, generalização
representações flexíveis, móveis, quase fluidas, sempre r A que nos conduz à ideia de que o todo possa ser dado é
a se moldarem sobre as formas fugitivas da intuição 154"· ::nsequência de uma espacialização primeira. Como a intuição consiste e m
to .ªPreensão imediata da duração, a partir dela é possível mostrar o quan-
152 Idem, p. 1422 (p. 32).
lantes
a inteligenc1a se equivoca quando concebe o tempo como sucessao de ms-
A • - •

ho descontínuos. Em Bergson, uma sucessão de instantes descontínuos e


153 Ibidem. es: gêneos resulta
, p em um conceito de tempo que é produto de uma lógica
154 H. Bergson, La pensee et /e mouvant, in: Oeuvres, pp. 1401-1402 (Pensa dores, p ai. Com esta,
18-19). criam-se as condições de possibilidade de submeter o real
102 103
O Todo-Aberto Parte 2 - Da Inteligência à Intuição

às categorias universais do entendimento. Quando a inteligência procede


imagem d o pensamento erigida c o m conceitos universais. O u
essa convicção, ela forja a forma d e u m pensamento que busca a compr
co . ·n t a da
eenSà te_ 0 há no interior d a duração nada q u e autorize a representação que a
d o múltiplo por conceitos universais que subsumam a totalidade do real, 0 d o real c o m gêneros universais e homogêneos, movida pela
- n c i a fará
A l é m disso, quando a inteligência trata o espírito c o m o uma sue d e ter d o todo u m conhecimento acabado.
essao íllteHg_a o dogmática .
iDtenç
de estados justapostos, ela s e move c o m a convicção d e q u e é possível en , .
· ~ mos t ramos c o m o os es t ad os ps1qmcos ,
qua. Enfim, com a mtu1çao por nos
dra-lo
' nos m o ld es estanques d e representaçoes
~ umversa1s.
· · sendo assi"'.. não são outra coisa senão momentos destacados por u m a in-
,,a rese n t a do s
compreensão d a vida espiritual c o m existenciais extraídos dos hábitos indi- torna espacial o fluxo real. Para Bergson, a ideia de u m estado
n c i a que
viduais e morais, deixa de lado a heterogeneidade e as diferenças qualitativas
o isolável do estado anterior consiste e m u m processo d e cristalização
q u ic
das durações reais como fluxos. como propósito representar espacialmente a vida subjeti-
superfic i a l, que tem
Para Bergson, é somente c o m a apreensão imediata d o espírito por si
va, deixando de lado os aspectos qualitativos e heterogêneos d a duração real.
m e s m o q u e é possível repreendermos - retornando à.,€o-nte d a experiência
Mas como o próprio Bergson assinala, a duração enquanto energia espiritual é
real - o equívoco d a inteligência: a duração real é um fluxo ininterrupto e
heterogêneo que se faz no prolongamento do passado no presente marchando "por sob estes cristais b e m recortados e este congelamento
em direção ao futuro. superficial, u m a continuidade q u e se escoa diferente d e tudo
Para pensarmos esse tempo real é preciso intuí-lo e m nós, e quando qu já vi escoar-se. É u m a sucessão d e estados e m que cada u m
assim procedemos - inventando condições experimentais para a sua esp anuncia aquele que o segue e contém o que o precedeu. A b e m
culação - desfazemos a compreensão espacial implícita que tínhamos does- dizer, eles só constituem estados múltiplos quando, u m a vez
pírito quando especulávamos sobre a realidade com categorias universais. tendo-os ultrapassado, m e volto para observar-lhes o s traços.
A l é m disso, ao simpatizarmos 155 c o m os movimentos d a matéria, criamos as Enquanto os experimentava, eles estavam tão solidamente
condições para pensarmos o todo c o m o aberto. organizados, tão profundamente animados c o m u m a vida
C o m o a intuição do tempo t e m início c o m a duração interior, é dela comum, que eu não teria podido dizer onde qualquer u m deles
que partimos para alcançarmos o s desdobramentos metodológicos que ir ão termina, onde começa o outro. N a realidade, n e n h u m deles
conjurar a compreensão coloquial q u e normalmente a inteligência elabo acaba o u começa, mas todos s e prolongam uns nos outros 156".
d a "cena psíquica". Assim, quando nos instalamos de u m golpe n o seio dapr o -
pria duração - estofo movente d o nosso ser - percebemos s u a multiplicidade CUJos . Na realidade, tais estados pertencem a u m a multiplicidade temporal,
da termos constituintes estão sempre
isto é seu fluxo heterogêneo e imprevisível. N a verdade, segundo O flui·r como Vimos,
diferindo e m natureza. Trata-se,
' pletamen· d a multiplicidade qualitativa virtual, multiplicidade d e fusão,
nossa atençao, - compreendemos a duraçao - d e u m a maneira· com onde os
element os sao~ vanaçoes
· ~ que exprimem a 1teraçoes
ce · ~ temporais. · N o seu
to cor. a me,ª duração é u m fluxo contínuo d e novidade, onde a multiplicidade q u e
155 A simpatia é o procedimento afetivo que faz com que entremos em conta tuir'
-
outros movimentos, ou com outras duraçoes que amp 1·1am a capac1'd a de da inJlliteí b llstitui, enquanto pura variação, nos permite pensar as diferenças d e na-
como experiência integral. Trata-se de uma analogia de movimento que per iJlle -.. 1:'1.il ex·Istentes nos seres temporais.
ampliação da experiência intuitiva através do processo de apreensão d : rno;313d
tos distintos do movimento interno da intuição da duração. A apreciaçao e tuiÇ) 0 tempo Percebemos, então, o rigor metodológico d a intuição: ao apreendermos
. da i
n r ea,l torna-se fundamental encontrarmos as diferenças de natureza
afeto e da forma como ele se integra no procedimento meto do 1,og1co . desPff
. . po i ·twn .
podem ser lidos no texto: H. Bergson. Introduct1on 2 Part1e - De la . dicafll
blémes, - La pensée et /e mouvant, in Oeuvres, p. 1304. A este respeito _75.
também Lapoujade, D. Intuition et Sympathie in Puissances du Temps, PP· li. Bergson, La
pensée et /e mouvant, in: Oeuvres, p. 1397 (Pensadores, pp. 15-16).
104 105
O Todo-Aberto Parte 2 - Da lnte.igência à Intuição

para denunciarmos, na fonte da experiência, as ilusões engendradas problema é ilusório, pois pressupõe a possibilida-
- Pe1as9e gundo Bergson tal
.
nera l 1zaçoes opera d as pe lo nosso entendimento. S e o s universais qu rep se pamento entre esses dois sentimentos. N a opinião, o manejo destas
e
sentam u m a totalidade d a d a s u p õ e m u m a ignorância d a s diferenças de n re. d l , t e ; : r a s engendra a onvicção d e q u e p demos tratar um_a delas c o m o
reza - e d o caráter aberto e imprevisível d a d u r a ç ã o - , isto deve significar atu. - roda outra, negligenciando a heterogeneidade q u e o s sentimentos refe-
e m u m a distinção puramente verbal,
é d e tal ignorância q u e muitos problemas falsos v e n h a m a ser constitu'9ue
g#JP!a essas noções encerram. Cai-se
n a inteligência, Assim, é verossímil dizer q u e q u a n d o esta especula co dos : : a n t e das convenções e d o s hábitos sociais. Quando a inteligência preten-
dados extraídos d a subjetividade - negligenciando o s seus elementos te os tal problema algo q u e concerne à natureza d e tais sentimentos ela
. de razer de
pois ignora a diferença d e natureza existente entre eles.
,
ra1s - acaba formulando falsos problemas metaftsicos,
se equivoca,
Já os problemas inexistentes s ã o engendrados p o r operações lógicas
Problema 2 - É possível aplicar uma prova do verdadeiro e do falso aos proble- d e generalização e d e totali-
resu}tantes d e noções obtidas p o r u m processo
mas, pautados na convicção de que eles surgem da confusão que a inte/igênc
... - /Q
ação da realidade, que faz a inteligência estabelecer oposições inexistentes
produz quando confunde diferença de natureza' com diferença de grau? entte as noções, motivada p o r u m a decepção fundamental q u e a indispõe
D a análise deste problema u m a regra básica d o m é t o d o pode ser enun- frente à experiência real.
ciada: quando aplicamos a prova do verdadeiro e do falso aos proble- Vejamos, primeiramente, o s falsos-problemas d o "não ser" e d a "de-
mas, partimos da premissa que tais problemas surgem de ilusões filo- soNem". Neles reina u m a operação lógica d e negação generalizada, onde a
sóficas metafísicas. inteligência acaba formulando problemas c o m termos negativos. Quando
A o analisamos tais ilusões por esse novo viés, chegamos à conclusão que perguntamos: porque h á antes o s e r e n ã o o nada?, formulamos u m falso pro-
elas s e fundam na tendência q u e a inteligência tem d e construir e colocar proble- blema. Procedemos c o m o s e o n ã o s e r precedesse o s e r e a aparição deste
m a s e m função d o espaço. O u seja, os problemas que a inteligência formula a par· tivesse que ser imputada a a l g u m acontecimento miraculoso. E m Bergson,
tir das suas operações práticas não condizem com os dados d a experiência real da o não ser é construído a partir d e u m a ideia geral d e ser q u e é fruto d a abs-
duração. Nesse caso, o u eles não existem - e são chamados d e falsos problemas tração da inteligência. P o r isso, há sempre mais e não menos na ideia de não
porque não atendem ao apelo d e nenhum dado r e a l - o u são mal formulados-já ser do que na ideia de ser. A inteligência forma u m a ideia universal d e ser
q u e resultam do equívoco q u e a inteligência comete quando trata coisas que dife- e Por intermédio d e u m a operação d e negação generalizada - q u e procede
t>Oroposição da noção universal determinada - conclui pela existência d e u m
rem e m natureza como se elas s e diferissem tão somente e m grau.
não ser, onde a negação funciona c o m o u m acréscimo intelectual. O u seja, n o
O s problemas mal formulados resultam d e mistos n ã o analisados. Se
o IICJoser há u m ser total mais a s u a negação e, além disso, o motivo psíquico
a experiência d e fato nos oferta mistos d e espaço e d e tempo, de percepçã
e lembrança; a elaboração precipitada d e problemas fundados nesses mist01 qual nós negamos. O m e s m o ocorre n a formação d a ideia d e desordem:
:o
for· neta uma ordem
p o d e m resultar n a invenção d e u m falso-problema, Vejamos u m exemplo universal q u e s e opõe a u m a desordem universal obtida
através da negação d a
necido p o r Bergson: primeira noção.
P r outro lado, podemos compreender q u e tais ilusões e m e r g e m d e
·rol l'aCi
"Tomemos u m tratado elementar d e filosofia. U m dos primei : a OCf_ni s estabelecidos a partir d a relação d e causa e efeito. É q u e quando
uJll• in tehgencia
capítulos trata d o prazer e d a dor, Coloca-se ao aluno generaliza - buscando o fundamento estável d a realidade - ,
7
Procde, estabelecendo
c:a
questão c o m o essa: o prazer é o u n ã o é a felicidade? 15 ". entre o s conceitos universais q u e ela forja, u m nexo
COn que faz c o m q u e o conceito d e m e n o r extensão seja explicado pelo
Ce1to d e maior .
157 H. Bergson, La pensée et /e mouvant, in: Oeuvres, p. 1293 (p. 1270). extensão s o m a d o c o m a sua diferença especifica. Inversa-

106 107
O Todo-Aberto Parte 2 - Da Inteligência à Intuição

mente, podemos construir u m a árvore procedendo das espécies aos . Bergson, só a intuição da duração pode evidenciar que a
· , . d estes aos generos supremos - concebidos como genero, IIA'lc10. Se g undo
mterme d•1anos, e o nada não possuem f un d amento na expenenc1a rea 1.
A

cone . , , - e m absoluta
• A •

últimos e determináveis da razão - , chegando, enfim, ao conceito univ:1loi· . funda os dois problemas inexistentes. N o
AQ U I , a ilusão do negativo ,'
d e ser cuja determinação irá induzir a inteligência a u m a operação ders
do '
bergsonismo isto con f.1gura u m a cnt1ca a to d as as mane1ras de
conJun to
gação generalizada. C o m isso, afirmamos que o processo d e generaliza _ne: se insurge contra os ra iocínios
. Çao e que procedem pela negação. Bergson
concomitante com a ten d enc1a d e 01ertar
• aos h omens u m a explicação pi do negativo o motor d o pensamento. Para ele, a negaçao posta
aus1.
A •

vel da origem causal do universo. Segundo Bergson, qu z e m


amparados e m u m a compre-
CIJlllO CO ndição do devir engendra problemas
do real. Quando a realidade é abstratamente construída
nsão equivocada
"tal é o problema da origem do ser:" c o m o é possível que qualquer e do ser e d o nada temos, na verdade, construções lógicas de
como uma síntese
coisa exista - matéria, espírito, ou Deus ? Foi preciso uma causa ullll Inteligência motivada por u m semi querer apresentado c o m o o motivo
e u m a causa de causa, e assim indefinidamente. Remontamo; psíquico da operação, mas cuja natureza devemos mais tarde explicar.
então de causa e m causa; e se nos 'âetemos e m qualquer parte, Agora, no grupo dos problemas inexistentes é preciso acrescentar u m a
não é porque nossa inteligência nada mais busca para além, é úldma ideia: o "possível". Tal c o m o o não ser e a desordem, o possível resulta
que nossa imaginação acaba por fechar os olhos, como sobre um deum raciocínio análogo: ao representar a realidade como dada, a inteligên-
abismo para escapar à vertigem 158" . cia, per retroação, aloja a imagem do existente no passado, supondo-a como
um possível, isto é, como u m a forma lógica - feita à imagem e semelhança do
Assim, por retroação a inteligência se contenta c o m u m princípio abs·
seu duplo existente - , funcionando como a razão formal da existência con-
trato, postulando-o como u m a causa primeira e transitiva da realidade. Na
siderada. Cai-se então e m u m a espécie de pré-formismo onde o real saiu do
ilusão d e u m a origem, postula-se a possibilidade de gênese da realidade: seo
possível segundo o lema da realização por semelhança e limitação. E m Ber-
ser é dado, de onde adveio? N ã o haveria antes dele u m nada? E como do nada
gson há aqui uma confusão: ao pensarmos o possível como categoria lógica,
poderíamos pensar o preenchimento da realidade?
cuja existência é puramente mental, imaginamos que podemos realizar no
momento certo aquilo que antes só existia e m nossa mente. Nesses termos,
"Com efeito, jamais nos espantaríamos c o m o fato de existir a realização do possível não é outra coisa senão a efetuação pela via do que-
alguma coisa - matéria, espírito, Deus - s e não admitíssemos rer de uma vontade.
Mas quando dizemos, por retroação, que o real adveio
implicitamente que nada poderia existir. Figuramo-nos, ou do possível, cometemos o erro de extrapolarmos para o campo do real u m a
melhor, acreditamos figurar-nos, que o ser veio preencher um OOÇão que de fato
só existe na nossa mente. Confundimos, portanto, a lógica
vazio e que o nada preexistiria logicamente ao ser: a realidade do possível com
u m a ontologia pré-formista. Atribuímos a o ser u m a forma
primordial viria por acréscimo 159" . antecipada
por retroação, criando assim a ilusão retrógrada d o verdadeiro.
Enfim, os problemas inexistentes resultam de tarefas quantitativas
A hipótese de u m todo dado conduz a inteligência à especulaç ã o !ª queainte11· genc1a • · aplica no seu esforço de compreen d e r o rea 1 pe 1a ten dAenc1a
·
sua origem. Daí a suposição d e vê-lo sair do nada. E o raciocínio se aplica, CO • .
forma análoga, à ideia de desordem: ao concebermos uma ordem uniVersa. se l'l'iqueira e habitual adquirida no labor c o m a matéria. A s noções de não-
de desordem,
não nos resta senão o recurso de contradizê-la com uma desordem universo de u m possível que precede formalmente o real, são forja-
qUa: te dência que a inteligência t e m de pensar a realidade c o m termos
titativos.
158 H. Bergson, l a pensée et /e mouvant, in: Oeuvres, pp. 1303-1304 (p. 134). ela Pensa A o vislumbrar, tão somente, diferenças de graus entre os seres,
159 Ibidem. a realidade sempre como " u m a mais ou u m a menos". Julga, na ver-
108 109
O Todo-Aberto Parte 2 - Da Inteligência à Intuição

dade, os dados reais; contrapon do-os a noções universais que irao · experiênci a vivida - u m a multiplicid ade distinta reunida na
Pr . _ _ . - e n Q uanto ' · o mesmo se ap 1·1can d o a' "ie 1·1c1ºd a d e. E'
a s condições de u m ser dado, embora amputado das suas variações . ecisar pia•-
de um único
nome genenco,
láveis surgidas desse coeficiente de imprevisib ilidade que é a dura _ incal cu. para diferenciá -los, e, até mesmo, problemat izá-los
Çao rea experimen tá-los
·
A I e' m d'isso, a o mvocarmo s o semi querer c o m o o motivo psí . l · diferenças de natureza.
- da m • t e 1.1genc1a, mostrando o quanto ela se ilude 9Uic0,,_ o n as suas
genera 1.1zaçao A

quando s segu Distinguir o que difere e m natureza é u m a tarefa da intuição metódica.
. -
m d'1spoe contra a realidade movente, devemos estabelece r a razão do e definimos a intuição
como u m método de divisão. Segundo Bergson,
1.1ªllle a s suas articulaçõe s naturais, isto
entre os problemas inexistent es e os problemas mal formulado s ,
mostran. !,SSifD, rtante é dividir a realidade segundo
. oblliJO mtu1t1vo; para encon-
as tendenc1as que se apresenta m no campo
' ' '

d o c o m o os pnme1ros .

s e assentam nos segundos. A s s i m , a tend,enc1a.


é ,.-.ando
A

de -- - .
. . r o real resulta d a confusão estabeleci da n o seio da própria
quant1f1ca irara tendência das dº• 11erenças d e natureza que sao, com certeza, t empora1s.
e
metodológ icos: o espaço e o tempo, a matéria e a
riência; ali onde a espacializ ação d o tempo induziu o entendime nto a espe- Xpe. Daf 05 célebres dualismos
cular os dados da realidade c o m o s e eles portassem entre si , tão som ente, memória, a percepção
e a lembrança , as duas fontes da moral e da religião
. ..- buscando as diferenças de natu-
diferenças de grau. etc. Por não dividir as articulaçõe s do real,
s de mistos
Por isso, lutar contra os falsos problemas , contra a s ilusões conso l ida- reza, a inteligência acaba operando c o m fatos impuros, resultante
das e m u m a tendência que a inteligênci a tem de reduzir a realidade às suas mal ana l isado s.
análises espaciais e quantitativ as, d e fazer de tais dados a fundação de um
processo de generaliza ção pautado, tão somente, na semelhanç a entre fatos Problema 3: Analisar na fonte os mistos mal formulados é a condição genética
percebido s; é a tarefa rigorosa d o método da intuição. dadenúnciae da crítica dos falsos problemas que surgem quando as diferenças
Dela depreendemos a regra metodológica de que é necessário en· de naturezasão ignoradas?

contrar as diferenças de natureza para inibir um movimento quantita· Com tal questão a intuição passa a ser u m método d e diferencia ção.
tivo posto a serviço de uma totalidade abstrata. No método, torna-se important e compreen der quando a diferença é de natu-
A s intensidad es, as quantidad es, as diferenças de qualidade, serão reza e quando ela é de fato u m a diferença d e grau. Entre as duas, h á mistos
que comportam graus de diferença. O problema da diferença, insinuado no
reincorpor adas pelo método n a filosofia da duração. O fundament al é que
método, só será devidamen te elucidado quando a tendência da diferença de
a análise promova u m a rigorosa separação entre duas tendências - a que
natureza for posta na sua diferencia ção e m relação à diferença d e grau. As-
difere e m natureza e a que difere e m grau - evitando assim a confusão e n·
sbn, ao extrapolar para a esfera do tempo operações feitas c o m o propósito
gendrada por mistos que estão presentes na própria experiênci a de fato. Dito
de analisar a
d e outro modo: ao apreender mos o tempo real encontram os as diferenças de matéria, a inteligênci a recai na ilusão de tomar o tempo pelo
l!Sl)aço, ignorando a multiplicid ade temporal. É b e m verdade, e convém redi-
natureza, denuncian do na fonte d a experiênci a as ilusões engendrad as p
e lo

d, 7.er, que os esquemas espaciais da inteligênci a são moldados nas operações


entendime nto. O u seja, pensar é aqui contrariar as tendências habituais
e ic rais exercidas
inteligênci a; revendo pela intuição a experiênci a real, para separar no s t e l ig ê
sobre u m aspecto da matéria. E esta se apresenta para a
, . que a constituem . Quando a inteligênci a, como vim
d esta as ten d enc1as . os se n cia como divisível, podendo ser quantifica da já que comporta dife-
nÇas de grau.
pergunta s e o prazer é ou não é a felicidade, se encontra produzind o um fa]
. . ben• se Corno as diferenças de grau são efeitos da distensão da matéria, torna-
problema, ao tratar estes d01s sentiment os como generalida des, conce
el e, necess,a n o encontrar
-os e m u m a re Iaçao - d e contmente · '
e conteudo, onde as diferenças e ntre .I as diferenças d e natureza que nos darão do tempo
llnta compreens ão
. tuitJ te adequada, permitind o-nos pensar a realidade e m termos
passam a ser apenas de grau. Segundo Bergson, bastaria u m esforço !D 0. n i Porais.
Podemos dizer que a diferença d e natureza é a tendência que, e m
para q u e a ilusão se evidencias se, pois o que classificam os como prazer e
111
110
O Todo-Aberto Parte 2 - Da Inteligência à Intuição

conjunção com a matéria, nos dará a razão do misto que engendr a o . "contato com toda u m a continuida de de durações que devemos
, d1na .
m o temporal do Todo-Aber to. Porem, metodolog icamente, tal intento . lllis. tentar seguir, seja para baixo, seja para o alto: nos dois casos
uma necessidad e de divisão, que consiste e m desarticula r O real ltllpÕe podemos nos dilatar indefinidam ente por u m esforço cada
Para coilJ.
preender as suas tendências . vez mais violento, nos dois casos nós nos transcende mos a
Assim, Deleuze tem razão quando diz que o método de divisão b nós mesmos. No primeiro vamos e m direção a u m a duração
niano é, e m u m certo aspecto, u m método de divisão de inspiração plate.rg.so. cada vez mais distendida , cujas palpitaçõe s mais rápidas do
. d. 'd· . on1ca que as nossas, dividindo nossa sensação simples, diluem a
que visa 1v1 1r um misto segundo as suas articulaçõe s naturaist 6o A f1
. " .a s o, n o s 01erece ' rrnan.
d o que a expenenc1 e:
mistos, Deleuze observa que a desartj qualidade e m quantidade : no limite seria o puro homogêne o,
lação da experiência só é possível se a entenderm os como desarticula Çao - CU- a pura repetição pela qual definimos a materialid ade. Na
" . de
tendenc1as : outra direção, encontram os uma duração que se contrai,
se concentra, se intensifica cada vez mais: no limite seria a
"Só o que difere e m natureza podemos 'ctizer que é puro, porém só eternidade . Não mais u m a eternidade conceituai, que é uma
as tendências diferem e m natureza. Trata-se, portanto, de dividir eternidade de morte, mas uma eternidade de vida. Eternidade
o misto segundo tendências qualitativas e qualificada s, quer dizer, viva e consequen temente movente e m que nossa duração
segundo sua forma de combinar a duração e a extensão definidas se reencontra ria e m nós como as vibrações na luz, e que
como movimento s (assim a duração contração e a matéria seria a concretiza ção de toda duração, como a materialid ade
distensão). A intuição como método de divisão não carece de representa a distensão dela 162".
semelhança inclusive com uma análise transcende ntal: se o
Foi isso que verificamo s na análise que fizemos do último capítulo de
misto representa o fato, é preciso dividi-lo e m tendências ou em
Matéria e Memória. Com efeito, Bergson, nesse livro - ao pensar a relação
presenças puras que não existam mais que de direito 161".
entre o corpo e o espírito-, propôs que partíssemo s intuitivame nte da explo-
Ora, nessa desarticula ção de tendências convém relembrar que na in· ração de duas tendências .
tuição é o espírito que se apreende como pura duração. Além disso, sendo Na primeira, conduziu-n os de maneira ímpar à presença da matéria
a duração uma multiplicid ade contínua - onde nela os elementos se enco n· em si. Explorou, e m tal intento, a linha da percepção consciente e obteve -
tram e m pura variação, se interpenet ram ou, preferencia lmente, se fundem como resultado da exploração - a certeza da existência de uma diferença de
uns aos outros - , a sua intuição permite-no s a apreensão do processo em &rau entre a percepção consciente e o e m si da imagem ou da matéria. Infe-
·
direções esboçadas, isto é, tendências configurad as como linhas que se ap re riu daí uma percepção pura - u m puro percepto diremos nós - que atesta
sentam pouco desdobrad as nos fatos empíricos. No âmbito intuitivo é impo
r· ªPresença de uma matéria signalética coexistindo com uma consciênci a de
tante explorar tais linhas, dissociand o-as e depreende ndo delas a sua pureza• direito, isto é, virtual. A ideia da matéria como u m conjunto de imagens mó-
Yels em constante
E m uma passagem de Introdução à Metafísica, Bergson resume de rna· interação fez Bergson afirmar uma identidade da matéria e
po r movimento , mostrando , como consequên cia, como o conjunto da matéria,
neira brilhante esse aspecto do seu método: diz que se nos instalarmos ,
eJll corno uma comunidad e de movimento s, participa igualmente da totali-
esforço de intuição, no escoament o concreto da duração, nos colocaremo s
dade aberta ou
da duração.
160 G. Deleuze, Le bergsonisme, p. 11. 162
161 Idem, p. 12. H. Bergson, op. cit., p. 1419 (p. 30).
113
112
O Todo-Aberto Parte 2 - Da Inteligência à Intuição

N a segunda linha - tratando d e estabelecer u m a diferença de a diferença de natureza não é outra


na tu a Se e m Bergson tudo é diferença,
entre a imagem percebida e a imagem lembrança, Bergson nos cond e z.i , e n ç : 0 a natureza da diferença que se consolida como pura alteração. N a
......,sena . - . .
instância d e u m passado puro, extra psíquico e virtual. C o m O ser emllz'.u à a duração concreta se mo tra_c mo vana ao mtens va d e
1111"""'" _ 0 do
espírito
passado - e os respectivos paradoxos extraídos da análise - deu-se entã: do
1
d e fusão. Por outro a mtu1çao nos nsma a co s1derar
--:ultiplicidade _lado:
ponto d e virada: pelas suas teses foi possível demonstrar que o passado Ulll _,
pDltlsmo o mundo
exterior - o e m s1 d a imagem como figuras o u hnhas d e
. . .
coex1st1a c o m o presente vivo, sen d o este o seu grau mais. contraído (o es o
Pu r , . . .
por intermed10 d e movimentos que exprimem u m a mu-
9Ue. - s e Pagando . .
m a d o cone mvert1
· ·d o ) . 1nversamente, a m a t e, n.a passou a ser concebida todo - "como ele é não somente e m superfície,
mas e m profund1da-
corno d8DÇ8 no . . .
o grau mais distenso d o presente q u e repete reiteradamente o passado imediato que o 1mpress10na . e Ih e 1mpnme o seu e 1a- 1 6 3 " . E m
elll m O passado
de, C O , . dura t"10ms · "164
u m ritmo distinto d o presente vivo. A subjetividade das qualidades sensi'
veis nos ensina a considerar todas as coisas su b spec1e
$111118, d a 1teraçao - v e n.f.1cave
' 1
foi explicada pela emergência destas a partir das contrações das vibrações As próprias coisas participam, à sua maneira, a
materiais; mostrando que a qualidade percebida não é outra coisa senão natureza, e o universo c o m o u m todo pode ser apreciado
na diferença d e
quantidades contraídas. ·" " -
bém como heterogêneo. Se o grau d e heterogeneidade p o
de ser v e nT1-
Sendo assim,
C o m a virada, podemos enfim dizer que a intuição - enquanto expe- : em toda a parte, o todo deve ser pensado como alteração.
deixa entrever
riência ampliada - nos possibilita a compreensão d e durações distintas da ele não é dado - pois tudo o que se altera d e v é m - , e se devém
presente,
nossa, concebidas como níveis d e contração e distensão diversos, onde o ser uma abertura que introduz o novo n a configuração existencial d o
vivo e o conjunto d a matéria aparecem c o m ó casos de u m a duração universal. impedindo que este seja concebido c o m o u m sistema fechado. Assim, o Todo
Desse modo, é seguindo as tendências esboçadas n a nossa duração se exprime e m grau diversos d e distensão e contração d a vida e d o conjunto
que atingimos, por esforço intuitivo, as duas faces d a realidade: as dife renças du imagens-móveis que constitui a matéria fluente; exprimindo, n o limite,
d e grau são a resultante de u m a duração distensa; sendo as diferenças de uma mudança qualitativa no universo.
natureza a tendência imanente às contrações espirituais. Pela intuição uma Somos u m todo como o universo; mas não enquanto dados; m a s antes
novidade torna-se evidente: sendo o todo durável, as diferenças devem ser porque somos abertos u m a vez que duramos. O universo, por sua vez, dura;
apreciadas c o m o modos de duração, sendo possível evocar u m ponto de con· expressa igualmente o aberto, e embora se apresente atualmente c o m o dife-
vergência, o n d e as duas tendências exploradas podem ser temporalmente rença de grau, exprime, d e alguma maneira, u m a mudança n o todo através
explicadas: o Uno-Todo Virtual. Assim, é possível afirmar que a meta do méto· de um fio tênue que liga os sistemas supostamente fechados a u m sistema
do intuitivo é chegar ao absoluto; mas u m absoluto que dura; convindo dizer sempre mais vasto. Das interações existentes entre os seres vivos e a matéria
que o método s ó o alcança à força d e escolher, n a desarticulação dos mistº5 é plausível dizer q u e tudo dura, sendo a variação das nossas inflexões meto-
das experiência d e fato, o lado d o misto q u e se presta à alteração. dológicas não u m a contradição como limitação d o pensamento; m a s a conse-
O u seja, considerar a realidade pela apreciação das diferenças de natu· qllência de u m pensamento que não hesita m u d a r d e inflexão para apreender
reza é o propósito d a intuição. Lutando contra a lógica que erige problernas lllnnovo aspecto d a alteração. O u seja, a intuição visa explicitar as condições
deurn pensamento
e m função d o espaço - coisa que habitualmente a inteligência semp r e fa:: q u e faz d a alteração o seu motor.
ª
cabe à intuição nos ensinar a colocar problemas e resolvê-los em funÇ A intuição, enfim, nos converte a u m a nova metafísica; de confusa tor-
lla-se metódica,
do tempo, sendo esta a regra fundamental do método. dando-nos condições d e apreendermos durações "superiores
se
Aqui, u m a observação suplementar acerca da divisão deve ser Pei•ta·; a'
163 H
dissemos que a diferença de natureza é resultante de uma duração contraid ª • Bergson, La pensée et /e mouvant, in: Oeuvres, p. 1365 (Pensadores, p. 68).
164
d evemos t orna-' 1a como uma ten d enc1a , · q u e reflete
' · que se v e n·f·1ca no espmto Ibidem.

114 115
Parte 2 - Da Inteligência à Intuição
O Todo-Aberto

e inferiores à nossa, ainda que, de certa forma , interiores 16s "• c o m a co 0 esforço que engendra as coisas, esses terríveis problemas recuam,
_ , nsolida. diminuem, desaparecem. Porque sentimos que uma vontade ou
çao dessa metafisica, os falsos problemas da inteligência de caem; as
. - . . genera. um pensamento divinamente criador é demasiadamente pleno
hzaçoes que mduzem uma concepção de u m real dado são desi e1tas e
. . . os de si mesmo, em sua imensa realidade, para que uma ideia de
versais o b tidos por tais generalizações são denunciados. Assi m, as preten %-
. . . , . -
meta f,1s1cas da mtehgenc1a sao denunciadas com a imagem d o pensam soes uma falta de ordem ou de uma deficiência de ser possa apenas
.
que e 1a enge, por uma intuição metódica que viabiliza a exper·,1enc1a . ento roçá-lo. Representar-se a possibilidade da desordem absoluta,
. de Ull]
Todo-Aberto. Resta, agora, exphcar o motivo psíquico - 0 sem·1 querer - ou mais ainda, do nada, seria para esse pensamento dizer-se
- . . dª que ele poderia não ser integralmente, e isto seria u m a fraqueza
1·1usao da negatividade que a inteligência engendra . Com ele ' f md amos,
, . , . , co
contundenc1a, a nossa anahse metodologica do aspecto temporal d a Intu1çao
• . _llJ incompatível com a sua natureza que é força 166 ".
, . . -
Segundo Bergson, so a mtmçao desvela completamente O mecanismo . ·
as durações nas suas diferenças
-
d essa I·1usao: se d1z1amos,
.
, a princípio, que esta se formava através d e u ma ope- A intuição que nos faz simpatizar com
- , · vontade aumentando a nossa potência de agir. Para
- .
raçao Jog1ca d e negaçao generahzada de universais tofàTizantes , acre sei·da de de fluxos dilata a nossa
. . , . , pela simpatia há a intuição de uma multiplicidade
u m motivo ps1colog1co; agora e preciso elucidar ' no pormenor ' como O moti'vo um intelecto convertido
, . de fluxos que se comunicam de
dentro c o m u m a totalidade sempre aberta.
ps1qu1co s rve de testemunho para a constatação de u m semi querer imanen-
que o real adveio de ideias
te a toda diferença obtida pela via da oposição, e da contradição como forma Com isso, desfazemos também a suposição de
possíveis. Tal suposição fazia valer a convicção de
que o todo fosse dado. A
extremada de oposição. Se no terreno especulativo nos iludimos, isto ocorre concreta fosse
inteligência por retroação construía a ideia de que a realidade
porque transferimos para a ordem metafísica a falência da nossa vontade no virtual e
a realização de u m possível através dos critérios da imaginação do
âmbito psíquico. Tudo se passa como se diante de ordens e seres múltiplos
da semelhança que advinha dessa imaginação. O u seja, caia e m u m a pré-for-
não condizentes com a ordem e o ser desejado, fossemos levados a projetar
mação ao negligenciar as diferenciações sutis que procediam da atualização
a nossa insatisfação no âmbito da natureza. Dito de outro modo: ao virmos
do virtual. Toda a multiplicidade qualitativa era traída quando negligenciáva-
entre as coisas diferenças por contradição somos forçados a conduzir a nossa
mos a diferença existente entre o virtual e o possível.
análise e m u m terreno que predomina entre a noção abstrata de ser e o seu
Além disso, toda uma concepção hilemórfica do real advinha quando
oposto o nada. Quantificamos porque ignoramos as diferenças de natureza: e só tinha
Projetávamos sobre o virtual a imagem lógica de u m possível que
ignoramos tais diferenças não só pela escolha de u m método que quantific a o existência mental. C o m isso, éramos fadados a enxergar o indivíduo - en-
tempo real ao tratá-lo de forma espacial, como também pela vontade de nega r
l!Uanto composto de matéria e forma - como a substância real e existente; e
as sutilezas do real, e que introduzem a convicção que O espírito se move po
r

o,
vamos a sua gênese pelo par que ele supostamente trazia consigo.
u m desejo de reconhecimento que é e m si u m a atividade negadora. Por iss
Em Bergson - e mais tarde, e m Gilbert Simondon 167 - o hilemorfismo é
para Bergson, a desordem e o não ser nada mais são do que negações de urna
as cado pelo fato de explicar a individuação com o pressuposto que o indiví-
realidade motivadas por uma vontade de negar que só apreende as diferenç : , s e j a uma
substância composta de u m a matéria e de formas; construindo,
entre os seres através de graus quantitativos e abstratos. Por outro lado, ª
1111• convicção
que nos conduz à pré-formação do real e que viabiliza
a
os a
I a e m que dilatamos a nossa vontade, que tende!TI
"'a m e d'd
-
rea b sorver nosso pensamento e que simpatizamos mais e rnais
p. 134).
16? - Bergson, La pensée et /e mouvant, in: Oeuvres, p. 1304 (Pensadores,
f. Gi!bert Simondon, physico-biologique, cap. 1.
165 Idem, p. 1416 (p. 28). L'individu et sa genese
117
116
O Todo-Aberto Pa rte 2 - Da Inteligênci a à Intuição

const r ução de u m "possível" que é ilusão r et r óg r a d a d e u m pen sarnent . a s encruzilh a d a s étic a s e


cruci a is d a existênci a - ; ele é
m P 1. m n ent o que vis a est a b elece r dife . r enç a s sutis. ent r e as
r a m ente ment a l.
0
Pu. ,,_se r oc edi m
..-..1111ente um p - - . . , . . ·1 -
O r a , não só o re a l não a dv eio do possível, como o indivíduo não . as dife r enc ia ço es s a o md1spensave1s pa r a d'1ss1p a r m_ os 1 usoes -
Podeser ..,..- -pois
conside r a do como u m a m a t r iz ontológic a . N a individu a ção sempre aberta "'1i'5 e u m método que vis a u m a comp r een s a o a dequ a da
j fundame nta lm ent
h 1·1emo r f'ismo e' com b atido pelo seu p r essuposto teleológico, pois q ua ,o ele ' -0. pois, em Be r gso n, este tempo é c r i a ção.
. .
· d·1v1'd uo como a met a , pens a m os a s su a s condições em .ndº, co· dUf'3Ǫ ' novo, Bergson 1ust1 f'1c a su a
1oc a m os o m u- Ao substitui r o ete r no pelo p r ob lem a do
.L,

. , . , Principio p r ecis a r as
que o antecedem. Assim, o poss1vel aparece como p r m c1pio fo r m al q ue condi-s de forj a r problem a s
e m função do tempo, p r ocu r a ndo
, .
. . . . d' 'd jJllliçãO d c i ção. Nesse c a so, to r n a -se necess a n o d'1ze r
c10n a a ex1s tAenc1 a e m a to d o m 1v1 uo. M a s onde s e encont r a o possí ve1na sua d a expe r iên ci a a r a
. .
cond1çoes , . . . filosof1 a .. for-
a condiz com o p r oJeto ge r a l d a su a
• #

a ntecedenc1a e m r el a ç a o a o existente md1v1du a do? N a o se r i a porventura


• - • • • -

metodolog1c
A

,

l.d
1a de . _
. .
n a s uma I'd ei a no mte 1ecto de u m Deus t r a nscendente? Nesse c a so, a concep.
ape. quea fi na de u m a tot a lid a de a b e r t a , onde a c n a ç a o e u m d a do
pecer-nos as condições
_ . , . a do
to r n a nd o viável, igu a lm en,te, a toma a de consoenc1
• A •

ç a o h1lemo r f1c a ent r a e m conjunção com ilusões teológic a s construi'd as


·" ' por unanente a o todo, o de u m qua r to p r o-
a ção. E isto nos conduz a fo r m ulaça
el a b o r a ções de u m a inteligênci a imbuída po r convicções r elig ios a s. Mas para ser humano ness a c r i
Be r gson o possível não explic a a constituição do r e a l. O que implica em dizer blema metodológico.
que não é o r e a l que a dvém do possível, a ntes o possív e l que advém do real.
Pel a forç a d a intuição simp a tiz a m os com u m r e a l que não está feito, Problema 4: A consciência do todo como experiência "ética'1168 permite ao hu-
onde as cois a s e os se r es vivos são exp r essões de u m dur a ção cuja essência mano ultrapassar a sua condição atual histórica?
consiste e m dife r encia r -se e m múltiplos fluxos atu a is. Nest a dife r enciação, O desdob r a m ento desse problem a , não obst a nte, nos forç a a pens a r
nest a i r r eve r sib ilid a de c r iado r a , o novo se impõe no regist r o existencial. Ao na credibilid a de p r átic a da intuição. Se a inteligênci a se conve r te à intuição,

escolhe r m os o l a do bom do misto intuímos tudo como u m p r ocesso; pensa· se esta se p r op a g a e m su a gênese po r int e r m édio de u m a expe r iência r e a l,
mos o p r ocesso de individu a çã o fazendo-se pel a dife r encia ção c r iadora de cabe saber como isto se p r ocede. Q u a l a expe r iên ci a que pe r m ite a o h u m a no
u m movimento que evolui de u m vi r tu a l pu r o a u m a tu a l p r esente, onde o ultrapassar a su a condição pel a tom a d a de consciênci a do a b e r to? Não seri a
necessár io a qui p r ob lem a tiz a r m os no po r m en o r os obstáculos que a condi-
te r m o a tu a l - como p r oduto p r ov isó r io dest a dife r enci a ção - e m n a da se as·
ção human a constitui p a r a a a b e r tu r a que conduz à comp r eensão do abe r to?
semelh a à vi r tu a lid a de de onde s a iu.
E tal comp r een são não supõe u m a disposição p a ra o novo a t r a vés de a tos
C o m ess a a m pli a ção, a intuição consolid a -se como expe r iên cia inte·
generosos que são igu a lm ente criado r e s?
g r a l. Servindo-se da inteligênci a como meio de a nálise, el a se to r n a filosófica,
vi a b iliz a ndo a construção de u m a m e t a físic a p r ecis a . Percebemos u m a a b undânci a de p r ob lem a s result a ntes de u m a filoso-
6aque clam a pel
P a r a Be r g son, t a l p r ecisã o confe r e à filosofi a u m a tr a nsm is sibilidade a a leg r i a d a c r i a çã o. Segundo Be r gson, u m a filosofi a que não
SUscite aleg r ia
ende r eçáv el a os não filósofos. S u a importânci a se encont r a no teor de aber· a t r avés de emoções e de c r iações, em nada cont r ib ui p a r a a
el(pansão d a vid a .
tu r a e inquiet a ção que a su a leitu r a pode c a usa r , pois filosofa r p a r a não li· Assim, Be r gson e spe r a que u m a filosofi a p r om ov a semp r e
Problemas
lósofos não é out r a cois a senão expe r im ent a r n a dimensão dos conceitos_ª e conceitos c a p a zes de suscit a r e m na a lm a dos seres h u m a nos
lllna abertu r
• º tênC13 a intuitiv a . Só a ssim a compreensão d a du r a ção pode consisti r
e1etuaç a- o d e u m a a b ertu r a p r om ov id a pel a potênci a de pens a r. Uma P
·
d o mconsc1ente · pu r o d e u m pensamento do tempo que consiste em reativar 168
Aqui cham a mos por étic a o que pre c isa remos na noss a quart a parte com o título
a abertur a que de di r eito const r ói os se r es vivos. f ch a da ,
eo- :.e mora l aberta . Sabemos que Bergson contr a põe esta mor a l a berta a um a ..
Assim, a ssin a l a m os no método d a intuição t r ês a spect os fundaJJl e· •tuando aquel a no âmbito d e um a a lm a a berta . Aqui, tra ta mos d e um a eti c a da
· e Je e,, a prmc1p10, , , probl
t ais: · , · u m metodo const r m do com p r oblem a s - e os abertura" por r
a zões metodológi c a s que justifi c a remo
s no final do nosso tr a b a lh o.
119
118
O Todo-Aberto

em um jorro contínuo de novidade, contribuindo, igualmente, para a


tuição de novos problemas que ensejem novas possibilidades de vida_cºnsti·
Resta entendermos como a intuição, enquanto experiência itn ect
· PARTE3
do espírito, pode nascer e ganhar pleno curso de desenvolvimento por f :ta
da conversão que ela opera na inteligência. Assim, a gênese da intui· - Ça
Çao
conversão da inteligência à intuição supõem uma experiência emotiva e /
análise requer uma apreciação "ética" da condição humana. Entretanto , esteJa
entendimento só será feito quando desenvolvermos nas análises seguintes os
problemas da estagnação da vida e da condição humana na sociedade .

.... -

Dos Animais e dos Homens:


Criação e Alienação
da Vida na Natureza

120
parte 3 - Dos Animais e dos Homens: Criação e Alienação da Vida na Natureza

criando. Assim o monismo temporal se prolongava em u m monis-


já que a diversidade rítmica dos seres vivos resultava de u m único e
iJllpulso originário. . , . ,
Já na via metodológica, mostramos que u m duahsmo genet1co pode ser
cido no seio do Todo entre a vida vista como movimento de diferen-
em si e por si e a matéria inanimada posta como o nível mais distenso
o. Na consecução desta distinção, a diversidade dos seres vivos foi
a a partir do impulso vital, e a diferença existente entre a matéria
fluxo contínuo da matéria inanimada foi, enfim, compreendida.
Nossa tarefa agora é explicar detalhadamente o movimento de dife-
.. - 0 que caracteriza a vida, para compreendermos na escala evolutiva

O
'ç ões vitais da criação dos viventes. Ao longo da análise mostraremos
método da
'.ntuição_ é construído c o o intuito de ofertar à filosofia a evolução dos seres vivos se constitui pela criação do impulso vital, e
u m conhecimento mtegral. Ele consiste em uma experiência uma organização se consolida nesse processo evolutivo, fazendo com
ime-
diata da duração orientada por uma simpatia que confere ao ser viventes individuados se fechem nos seus respectivos mundos, per-
humano condições de apreensão de outras durações coexistentes o contato com o seu princípio criador. Além disso, trabalharemos a
com a sua. A diversidade de durações postas como superiores e inferiores à o criadora para pensarmos a individuação dos seres vivos a partir
duração humana, acrescenta-se da certeza - não menos insólita - de que tais
organismo-meio, inferindo daí uma articulação possível com a noção
durações sejam, de certa maneira, interiores. Ou seja, há uma solidarieda· do-próprio, utilizada como recurso complementar para a análise da
de exercida por ressonâncias intuitivas que tornam os seres humanos - no
ção adaptativa. Nossa meta é mostrar como a condição humana se
âmago dessa experiência integral - seres simpáticos, isto é, seres capazes lida nessa perspectiva evolutiva, para sabermos se existe nela alguma
de terem a ideia de que todas as durações participam de uma duração una, o que garanta a ultrapassagem do fechamento organizacional.
isto é, que elas são partes partícipes de u m tempo uno, simples, heterogêneo Sendo assim, nossa pesquisa será norteada aqui por três problemas
e aberto. Com tais ideias pudemos consolidar nas partes anteriores as condi· entais: não seria a adaptação do organismo ao meio uma condição
ções metafísicas e metodológicas de u m monismo temporal. ria da criação do impulso vital visto como u m movimento de diferen-
Na esfera da metafísica, mostramos - na nossa primeira parte - qu e ? E comprovando tal condição como u m "sucesso relativo" não estaría-
não havia contradição entre os ritmos atuais de durações e a existência de
bém especulando sobre uma possibilidade de estagnação da vida
uma duração impessoal concebida como totalidade aberta. Vimos comoª Via da adaptação? Como explicar a condição humana na perspectiva evo-
tese de Bergson não só confirmava a coexistência de níveis de contraçao - e Criando as condições de elucidação da adaptação e a coerência da sua
distensão virtuais de um passado puro, como garantia também que tais coe- sagem? É para explicar tais questões que retomaremos nesta parte o
. ' ·
x1stenc1as pu d essem ser relacionadas a u m monismo do tempo. Ao ap resen· ento de diferenciação.
·
tarmos esta tese, fizemos
' · · ·
um encadeamento rigoroso entre a coexiste · ·ncia
mve1s v1rtua1s se
d o ser do passado e u m movimento de diferenciaçao - que
e1az1a
. por um 1mpu
. lso posto como um virtual em vias de atualizar-s e Era a
.
vida que se apresentava nesse movimento através de um virtual auvo quese
.
122 123
Animais e dos Homens: Criação e Alienação da Vida na Natureza
parte 3 _ Dos

no contrassenso de que tais elementos


ad o s , e que ela tenha se dado
realizando no plano material com os critérios da semelhança e da
tJfJllll o mecanicismo, ele propõe que evitemos pensar' a evolução
_ . . - i o . Contra
: rn sucedâneo
de causas atuais encadeadas por nexos causais mecâni-

I
ele critica também u m certo finalismo fundamentado e m uma
i:dliOA lé rn disso,
(,OS, pção evolutiva
de causalidades finais, antecipadas por princípios prees-
d o s . Diz, por u m
lado, que a vida n o evolui nem como u sucedâneo
11ecausas atuais, nem como elementos pre-formados que se realizam - como
A Evolução como Movimento de Diferenciação de(endern os mecanicistas e os pré-formistas - ; nem evolui, por outro lado,
como propósito de realizar um projeto, segundo as teses do finalismo .
-

S
..
"A vida é tendência e a essência de uma tendência é desenvolver-
egundo Bergson, a evolução da vida - que é obra
• de um únic 0 impulso se em forma de feixe, criando, tão só pelo fato de seu crescimento,
"v1rtua l" - ocorre no vetor de u m "desdobramento
- e de uma d"1ssoc1a- direções divergentes entre as quais se distribuirá seu impulso 17º ".
ç o q e se faz por diferenciação de tendências
que se atualizam em
vias d1vergentes 169". Nessas direções, a diversidade é explicada como criação do impulso origi-
Ao observarmos com atenção esta tese, já é nário, podendo a espécie individuada ser rigorosamente pensada como u m su-
possível depreendermos
dela sua novidade: se o pensamento bergsoniano emo de criação da vida. E aqui a crítica ao finalismo ganha um sentido rigoroso:
se elabora em torno da con·
c pçao de tendência; ao pensar a evolução criadora,
Bergson torna a noção de
virtual prioritária na sua ana'l·1se, uma vez que a ''A evolução da vida não é a concretização de um plano. U m plano
natureza de uma tendência na
sua te ri: consist sempre em uma atualização é dado de antemão. É representado, ou pelo menos representável,
de uma virtualidade que se faz
por cnaçao. Esta e a perspectiva que torna a antes do pormenor de sua realização. Pelo contrário, se a evolução é
explicação das vias divergentes
um pouco complexa. Afinal, ela supõe a compreensão uma criação incessantemente renovada, ela criou, paulatinamente
detalhada do processo
de atualização, segundo o duplo procedimento as formas da vida e isto equivale a dizer que seu futuro transborda
do desdobramento e da disso·
ci,ação_ das tais tendências. Mas antes de enveredarmos seu presente e não poderia esboçar-se nele numa ideia 171
por este caminho, con·
11•

v e dizermos que o entendimento desse processo


exige uma pequena contex· O erro deste finalismo consiste na adoção do possível como categoria do
tuahzação histórica da concepção evolutiva de
Bergson, para que a explicitação !lensamento. Com ela, ele desenvolve uma compreensão implícita de uma evo-
da sua posição singular possa então se definir.
A sim, diremos inicialmente que a postulação mção planejada, onde nela o futuro da espécie pode ser compreendido como o
. • da evolução pela tese da
ex1stenc1a de um impulso vital criador conduz Bergson : t a d o de condições já esboçadas no passado. Sendo assim, ao achar que o
a um questionamento 0 evolutivo se faz na realização de possí eis, a teoria finalista desenvolve
veemente concepções pré-formistas, mecanicistas e, igualmente, daque·
_das concepção evolutiva teleológica onde a existência futura é concebida como
la d:fend1das por um certo finalismo. Contra 0 resultado
o pré-formismo, ele defende a condicionado por causas preexistentes que confluem para a sua
cnaçao contestando a ideia de que a evolução
seja a realização de eJernentoS
170 ldern, p.
579 (p. 94).
169 H. Bergson, L 'Évolution créatrice, in: 171
Oeuvres, p. 571. ldern, p. 582 (p. 97).
124
125
Natu reza
O To do -Aberto An imais e do s Ho men s: Criação e Alienação d a Vida na
parte 3 - Dos
u m a forç a q u e pr o c e
d e , n a s s u a s fo r -
individ u a çã o . Cria- s e a s sim a il u s ã o d e q u e a e v o lu çã o o c o r r e c o m o va n ç a p o r in s in u a çã o d e
vida a e fenôm e n o s fí s i-
reaJizaÇà and o z o n a s d e vizinh a nç a e ntr
d e u p l a n o , e q u e e s t e p o d e s e r v e rific a d o n a div e r s id a d e d o s s r e s i rnais el e m e nt a r e s, g e r
existent
o s o rg a ni s m o s e l e m e
nt a r e s traz e m a h e sit a çã o
a t a 1s . D a m e s m a m a n e ir a , c ri a - s e a c o n c e pçã o d e qu e o s s e r vivos existent:o jcos e vitai
s . O u s e j a ,
pri m e ir o
h o J e r e s lt r m d a individ u a çã o d e u m pl a n o pre e s t a b e le c i: : d e s dobr rc d a vid a , a ind a q u e
" a s for m a s a ni m a d a s q u e
que é m a a
a qu e
ad o na pli c id a d e ". B e r g s o n e s ti m
"'
o d e e xtr e m a d a s i m
e s c a l a h1 s t o n c a d a vid a . Par a B e rgs o n a n o çã o d e p o s s ív e l c o m o e xp
licação d t e nh a m s id
,-eram
u m a c o n c e pçã o fin a list a da e v o l u çã o d a vid a e' , a n t e s d e t u d o , u m a .1 ~
I usao lóai.e
. . ~ . a p e qu e na s m a s s
a s d e pr o t o p l a s m a s
c a , p o is a vid a na o e v o lu i s e g u nd o a r e a liz a çã o d e p o s s1'v e is c o ndi c IOnados
· "' " e la s e r a m s e m dúvid
. e l o a s p e c t o e xt e rn o
u m a c a u s a fm a l. A e v o l u çã o da vid a - di r á B e rg s o n - i"a z- s e ant e s p o r .
Por
criação· e s c a s s a m e nt e
dife r e n c i a d o s , c o m p a r a d o s p
. . . . o s, m a s t e nd o , a
d e m a is , o
on d e n e 1a o md1v1du , o c ria d o re s u lt a d a d1'"1,e r e n c 1aça~o d o i m p u l c n. d or. Etn à a m e b a s q u e h o j e o b s e rv a m
a s for m a s
s
ri o r qu e d e v i a a lçá -la s a té
o u t o s t e r m o s : a e v o l u çã o s e dá n o v e t o r d e u m a virt u alidad e q u se os e diferencia
for m id áv e l im p u l s o int e
e o i m pu l s o vit a l é e s t a virt u a lid a d e q u e c ria for m a s d'" lie r e nt e s a o atu aI'izar-se. sup e r i o r e s d e vid a ".
174

· h a, d 11
A s s 1m, ' "e re ncia çã o e ntre o virt u a l - d e o n d e pro c e u"'e- a e v o lu çã o - e a atu-
o s iv a - q u e t r a -
. . . vit a l , e s t a forç a int e rn a e e xp l
a ]'izaç a~o c n a d a q u e é o o rg a ni s m o . Entr e o v1rt u a 1p u r o - d e o nd e o mov1mento Assim, a vid a , o i m p u l s o s ta
m e lh o r , forj a n d o n e
nd o a e s t a u m a o r g a niz a çã o , o u
pr o c e d e - e a atu a lizaçã o d e s t e virt u al, a dife r e n ça e, d e n a t u re z a · 0 ir· tu a1, balha a matéri a i m p o cia-
. e
l u i dife r e n ci a nd o -s e
p o r d e sd o br a m e nt o e di s s o
c o m o t d e dife r e nç a s , sing u la rid a d e s d e t o d o s o s tip o s , c o e xis tê c i: de uma
uma individu a çã o - e v o e s e c o m p l e m e n-
. . . . ct· liz a m p o r vi a s q u e div e rg e m
m u lt1ph c 1d a d e pré-individ u a l·, 1·á o a t u a 1 e, o q u e s e md1v1du a - m o s t r a -
ção de tendên c i a s q u e s e atu a a div e rsid a d e .
. . o ntr a d o s " n o pl a n o a t u a l d
u a d o , : 1tn ; m b o r a a individ u a lid a d e nun c a e s t e j a t o t a l m e nt e c o ns: : ; d:
17 5

;1dt tam segund o o s " o b s tá c u l o s e n c ch a m a -


mais complicada p o r q u e o q u e
re o s 1 s ,_d - s e o m o v im e nt o d e dife r e ncia çã o q u e , e m B e rg s o n, e x lica Na re a l id a d e , a t e s e é u m p o u co
s s a for m a , - é, n a
s s a m u it a s v e z e s d e
es o u o c o m o prod u t o d a c ri a çã o d o imp u l s o . Ta l c ri a ção s e iaz por mos de ob s tá c u l o - e B e r g s o n s e e xpr e
: . . . s m o e d e u m m e io c o
n s t r u íd o s p e l o
e p r o c e s s o s , o nd e o i m p u 1s o c o n s t1tu1m e 10 s d e u ltr a pa s s agem dos
a s e n e dmd1v1d
verdade, o e fe it o d a inv e nçã o d e u m o r g a ni ci a ",
p o r "di s s o c ia çã o e dive r gên
" o b s t a' c u 1o s d a m t e' 1·a " m

· a m·m ad a p a ra e fe t u ar a s s u a s t e ndên c ia s . impulso cr ia d o r. C o m o t a l im p u l s o pr o c e d e
. r o bl e m a s b e m fo r m
ul a d o s a o
E m u m p n m e 1r o m o m e nt o , d'Ir e m o s q u e o i m p u ls o vital v a i s e desdo· vê-se a dive r s id a d e s u rgir c o m o r e s o l u çã o d e p
. u to s
I e r e n c 1a ç a~o a o d e p a r a r- s e c o m o s o bstáculos s e s pé c i e s s ã o p r o d
b r a n d o c o m o m o v i m e nt o d e d'f longo do pro c e dim e nt o . O u s e j a , s e a s div e r s id a d e s d a
, . . , . a , a s di s s o c i a çõ e s e
d a m a ten a m o rgani c a. E m B e rg s o n, e, a f o rç a d o i m p uls o cri a d o r que - in·
as

· de "pro ble m a s " b e m r e s o lvid o s p e l a s t e ndênc ia s d a vid


.
s m u a nd o - s e n a m a téria - f o q a o s mews · d e o rg a m. z a çã o q u e c o n s titu em as divergência s - q u e e x p l i c a m t a is div e r s id a d e s - d e v e m s e r a pr e
c iad a s t a m bé m
. o a o l o ng o do p r o c
esso
d'1ve r s 1d a d e s d o s s e r e s viv o s . B e rg s o n e s c r e v e : t'Onto in s e p a ráv e is d o s p r o ble m a s c r ia d o s p e l o im p u l s
s , nã o tiv e s s e
de criação . T u d o s e p a s s a c o m o s e a vid a , c o m a s s u a s t e nd ên c ia
. , . l iz a nd o - s e ,
"A r e 1s t e n c 1a d a m até ri a b r u t a é O o b s tá c u l o q u e foi primeiro sido cap a z d e d e sd o brá -la s d e u m a s ó v e z, nu m a únic a dir e çã o , a t u a
de
p r e c i s o s u p e r a r. A vid a p a r e c e h a v ê-l o c o n s e g u id o à forç a l t a r a m n o s div e r s o
s
· PClrtanto, p e la vi a d a div e rgê n c ia e d a di s s o c iaçã o q u e r e s u
h u m ildad e ' faz e n d o - s e m m t o p e q u e n a e m u it o insinuante, reinos pr od u zid o s n o d e c u r s o d a s u a e v o l u çã o c ri a d o ra .
· do
dis s i m u l a n d o c o m a s f o rç a s f'1s 1c· a s e q m, m i c a s c o ns entin
0
m e s o e m f az e r c o m e l a s u m a p a r t e d o c a m in h o , corno

d : s v 1 d a vi a férr e a q u a n d o a d o ta p o r a lg u ns instantes a 173 Ibid em


.
d1r e ç a o d o trilh o , d o q u a l q u e r s e d e s t a c a r m ". 174 Ibid em.
ndo e
175 Sobre e diferenciaçã o ver o segu
a evol u ção d a vida em term o s de divergê n cia
0 quarto capítulos de A evolução criadora.
172 H. Bergso n , L 'Évolution créatrice, in: Oe u vres, p. S 79 (p. 94). 127
126
Alienação da Vida na Natureza
O Todo-Aberto Dos Animais e dos Homens: Criação e
parte 3 _

Ora, ao pensarmos ass i m percebemos que a noção de i da como criação do i m pulso


virtual e que n a tendência
· ProbJe e ser Conceb
f 1l oso f.1a b ergsomana recebe uma i m portância capital: qua n d o na sema na h á sempre uma aura das que permaneceram
v i rtua is.
atll aliza seres vivos e m duas tendências primord i a i s, Berg-
parte do nosso trabalho apresentávamos a noção alocando-a no , gunda dist i n gu in do os
· · ' · ·' ' ª111bitO da ora, · e m d 01s · gran-
m t e 11genc1a, Jª d·1Z1amos ah· que era necessário relacioná-la també õe uma p r i m eir
a b i furc ação. Ne 1a, a v1·d a se d'"11erenoa
com
aspecto da v i da i nd i spensável para a sua evolução. Agora _ n e s t ; um Na d i vergê nc i a existente entre eles, três caracte-
Parte· é s: vegetal e animal.
prec i so enfat i zar que a evolução é problemát i ca , e que O probl ema cons i de ra das por nós
as mais importantes - def i ne m as diferenças
. ganha no -- -
pr i m eiro lugar, o que dist i ngue a tendência
bergsomsmo u m estatuto vital. •ficam a b i fu rcaçã o. E m
Posto i sto, podemos f i nalm e nte confirmar que o i ndiv ídu o Organ1zado a mane i ra de produção d e al i m ento:
, - aaiJll3lda vegetal é
e a resoluçao de u m problema const i tuído por uma tendência da vid a, e este
. . . . água e à terra os
se const1tm no desdobramento de uma virtual i dade e m v i as de at ua 1·1zar-se "sabe-se que o vegetal toma diretamente ao ar, à
i da, sobretudo o
Nesse caso, o conceito de problema e m Bergson recebe ... _ u m primado em rela- elementos necessár i os para a manutenção da v
_ , _ . mineral. O a n i m al
ça o a noçao negativa de necessidade. Na explicação das metamorfoses VI·tai.s carbono e o h i drogên io; ele os toma sob sua forma
eles est i vere m já
o problema condiciona a necessidade. Enfim, problematizar é criar as vias de só pode apoderar-se desses mesmos elementos se
ou pelos
a ualização d e uma virtualidade, e a evolução é criadora pelo fato do impulso fixados para ele nas substânc i as orgânicas pelas plantas
de modo
virtual ter posto e resolvido problemas ao longo das atualizações divergentes anima i s que, d i reta ou i nd i retam ente, os devem a plantas,
177 ".
encontráveis no reino biológico. Como a vida, ao longo do seu trajeto, se explica que em últ i m a análise é o vegetal que al i m enta o animal
pela inserção da duração na matéria, ao s e diferenciar segundo os obstáculos i reinos
materiais com os quais ela s e entretém, ela cria os meios cuja resolução definirá Com essa d i ferenç a temos uma defin i ção processual dos do s
resul-
a linha d o reino ou da espécie que aparece, neste aspecto, como o sucesso de um que não só constata a direção divergente e m que vegetais e animais
problema bem formulado e p o r nós aqui delimitado na noção de adaptação. taram do impulso, como também evidenc i a no plano atual como essas duas
tendências se edificaram como complementares.
Aqu i , a v i da é uma força que trabalha a matéria ao diferenciar-se; e
De imediato, uma segunda diferença pode ser notada: a produção de
nesta diferenciação, uma tendência se atualiza de fato, fazendo com que a s
alimento pelos vegetais só é alcançada por uma renúnc i a ao movimento; en-
dema i s permaneçam latentes, isto é, adormec i das como virtualidades con·
quanto que os anima i s, necessitando apoderar-se dos al i m entos produz i dos
tidas n a manifestação que se atualiza. Pela tese das coexistências virt uais,
pelos vegeta i s, tornam-se, necessariamente, seres móve i s. Nesse nível, a r e -
cada ser v i v o coex i ste com a totalidade das man i festaç õ es da vida qu e, na
núncia ao movimento pelo sucesso da produção local do alimento conf i gura
sua linhagem diferenciada, não puderam atual i zar-se. Segundo Bergson, "não
nte, IIOuniverso vegetal a ex i stência do torpor.
há manifestação da vida que não contenha e m estado rud i m enta r,o u lat e
se afigura para nós como a
176
. Em terceiro lugar, surge a diferença que
11

ou v i rtual, as característ i cas essenc i a is da m a i or i a das man i festa çõ es · por


il11portante: e m função da fixidez, os vegetais renunc i aram à consc i ên -
exemplo, u m vegetal pode trazer consigo consc i ênc i a latente, caracterí5tica Cla-pois
a d a- em Bergson a consc i ência atual é inseparável da mobilidade-, en-
do an i m al; já que o torpor é u m fato resultante da imobil i dade conq u i s t
: n t o os anima i s a conquistaram. Já sabemos que a consc i ênc i a se encontra
Por outro lado, há no reino animal lampejos de v i da vegetativa, muito e[Jlbo· coexten i va à
ra, ne 1e, a consc1enc1a·' · , · oca d a
ten h a se tornado u m fato. Ass i m , a latenc1a ev te nos vegeta i s, sabendo, igualmente, que ela é e ire i to
·e - ·d Mas de fato - cons i deran do tão somente a tendenc1a que se atuahza na
nessas mamiestaçoes conso 1·ida a tese bergsoniana de que a d i ve rs 1 a ded05

176 H. Bergson, L 'Évolution créatrice, in: Oeuvres, p. 585 (p. 100).


129
128
Animais e dos Homens: Criação e Alienação da Vida na Natureza
O Todo-Aberto parte 3 _ Dos

matéria - o vegetal sacrifica a liberdade de se movimentar, " c o n d e pelas respectivas cadeias d e elementos nervosos situadas d e
na ndo.se' 178"
a o torpor entrevisto c o m o u m estado de inconsciência. ponta a pon t a
M a s s e a essência d a v i d a é m o v i m e n t o d e diferenciação . 1é portanto , u m ser q u e age e reage, comportando
. .
este u m fl uxo exp 1os1vo d e c n a ç a~o - 1mpu . . ,
1s o q u e m s e r e n a mater· sendo o anima ,
u m interva-
ia 1.Ida. mi.nação variável consoante o desenvolvimento dos elementos
d e indeterminação e l i b e r d a d e - percebe-se q u e n a v i.a vegetal de indeter
a tnob·1
5 o s . Na
escala ascendente, tais elementos se desenvolvem a o ponto de
!idade s ó s e manifesta c o m o exceção. O trabalho d a v i d a - e a realiza . • nervoso sensório-motor, consolidando o intervalo
d a essência d o s e u i m p u 1s o - t e n ·a s e restrmg1 · 'd o p e 1a s o 1ução encont
Çao t u írem u m sistema
-1'11!" .
ra. eterminação que é característico d o s seres animados. Ora, tal mtervalo
d a n a atualização d o vegetal. M a s q u e isto n ã o n o s i n d u z a a pensar momento. Agora é preciso desdobrar a
em s t o e m questão n o seu devido
u m fracasso absoluto d o i m p u l s o n e s s a via; c o m o s e a vida no vegetal
djvefgência evolutiva. . . .
n ã o tivesse encontrado m e i o s p a r a efetuação d a s u a essência. Acredita.
Sendo assim, a o acompanhar o desenvolvimento evolutivo n a via am-
m o s n o contrário: o i m p u l s o c r i a d o r s e manMesta n o g r a u de perfeição
mal, Bergson conclui pela existência d e u m a outra dissociação q u e tem sua
a d e q u a d o à tendência evidenciada. E isto s e justifica pelo fato de que é
culminância na divisão existente entre o s artrópodes e os vertebrados. Os
d e e x t r e m a d a importância, p a r a o processo evolutivo, a função execu-
moluscos e os equinodermes, analisados t a m b é m por ele, parecem atestar
t a d a pelos vegetais; pois s e m a contribuição energética fornecida pelo
um fracasso do impulso, como se nessas duas vias a realização d a imprevisi-
t r a b a l h o d e produção d e a l i m e n t o , a tendência a n i m a l - q u e na natureza bilidade do movimento de diferenciação não tivesse alcançado n e n h u m êxito.
s e m o s t r a c o m p l e m e n t a r - n ã o p o d e r i a s e desenvolver. Eédeslindando as tendências dos artrópodes e dos vertebrados q u e alcan-
Todavia, s e a p r o p o s t a é a l ç a r a evolução à s u a instância criadora, çamos, enfim, na extremidade das duas linhas o s insetos e os seres humanos.
p e n s a n d o a s u a g ê n e s e c o m o m o v i m e n t o d e diferenciação, é na conquis· Mas como a análise bergsoniana consiste e m a c o m p a n h a r o p o n t o
t a d a mobilidade q u e d e v e m o s b u s c a r a liberdade d e criar imanente ao comum que precede a dissociação, a o n o s situarmos n a via d o m o v i m e n -
i m p u l s o . E Bergson p r o c e d e b u s c a n d o a mobilidade, a princípio, na via tode diferenciação é possível d i z e r m o s q u e o ponto d o qual a divergência
animal. D i z q u e e n q u a n t o s e r e s orientados para o m o v i m e n t o - uma vez leria saído consiste n a presença d e u m sistema nervoso sensório-motor.
q u e p r e c i s a m extrair e n e r g i a d e u m m e i o exterior - o s animais desen· Bergson diz:
volvem, a o longo d o p r o c e s s o evolutivo, m e c a n i s m o s apropriados pa ra
a realização dessa tarefa. S e g u n d o Bergson, o q u e d e f i·n e orgam·camente "nas duas linhas e m que evoluíram distintamente os vertebrados
o animal e os artrópodes, o desenvolvimento consistiu sobretudo de
u m progresso d o sistema nervoso sensório-motor. Procura-
"o que constitui a animalidade ... é a faculda d e d e utilizar se a mobilidade, procura-se a maleabilidade, procura-se a
•5
aço_e
u m mecanismo desencadeador para Converter em variedade de movimentos. M a s essa procura é feita e m sentidos
"explosivas" a m a i o r s o m a possível d e energia P º tenc1aJ divergentes 179".
se!ll
acumulada. N o início, a explosão s e faz a o acaso,
. , e!ll Nos artrópodes, encontramos u m sistema nervoso descentralizado,
poder esco Ih e r s u a d .ireçao:
~ assim e q u e a a meba lançantoS
todos os sentidos a o m e s m o tempo seus pro 1on gamesérie llllefaz com que a atividade motriz s e divida entre u m número variável d e
pseudopódicos. M a s à medida q u e n o s elevamos 0ª,!llef!l li. Bergson,
animal v e m o s a própria forma d o corpo esboçar certo_n ]adai L 'Évolution créatrice, in: Oeuvres, p. 597 (p. 111).
ldern, p.
607 (p. 122).
d e direções b e m determinadas ... Essas direções são assin
131
130
O Todo-Aberto
parte 3 - Dos Animais e dos Homens: Criação e Alienação da Vida na Natureza

apêndices, cada u m dos quais c o m a s u a especialidade. É a via do insti


dor da matéria, deslindando - nas circunstâncias as mais adversas
nhecimento desempenhado e não reflexivo, q u e possibilita ao anitnal to,_co. de vencer dificuldades .
18 1

atividades capazes d e assegurar a sua sobrevivência. Nos outros h ' ahZar A e v ol u çã o n a extremidade das duas linhas exploradas d á a Bergson
, a um s1s-
.
tema nervoso centralizado, .que faz c o m q u e a atividade motriz se loc e s de avaliar
o s seres humanos e o s insetos nos seus respectivos
a1.1zeeto
faces que executam diversas funções, a o m e s m o tempo e m que faces s. ora, quando Bergson consolida a s u a análise ele profere a tese d e
riais se especializam n o trabalho d e recepção d e estímulos. N a extrerns:dnso. suc e s s o adaptativo venha a ser u m a espécie d e fechamento e m relação
1 ade
dessa linha encontramos o homem. C o m o vertebrado superior ' e poss u lso criador. Defende a ideia d e que o vivo b e m sucedido se aliena d o
u1ndo
u m sistema nervoso centralizado, o h o m e m torna evidente o trabalho 0 ao ficar fascinado pelo meio devidamente conquistado. Diz, sobre-
. . . t e 1·1gencia. que
nessa via o 1mpu 1s o executou: trata-se d a genese d a m •q u e cada espécie s e comporta c o m o s e o movimento geral d a vida s e
A
A

C o m ela, o conhecimento alça-se n a esfera d a representação orgânica, e nela e m v e z d e atravessá-la. S ó pensa e m si m e s m a , s ó vive para si
estando a inteligência n a função d e presidir ações - por intermédio de cálculos
e invenções - c o m o propósito d e dotar o ser humano d e u m rnaiQr poder sobre Como na nossa análise visamos a ultrapassagem desse fechamento
a natureza. A l é m disso, é preciso relembrar q u e graças à inteligência vimos no evol u ção criadora, e tal evolução s ó é possível pela tomada d e consciên-
h o m e m u m coeficiente d e indeterminação maior: a o contrário do instinto, a impulso feita pelo h o m e m , é n a tendência q u e culmina n o humano q u e
inteligência fabrica o s instrumentos c o m o s quais ela irá dominar a matéria. emos a tese capital d o nosso estudo. Para tanto, é preciso entender
N a realidade, a s coisas são mais complicadas: o que falávamos antes rmenor o fechamento significado pela adaptação a o meio nos seres vi-
acerca d o animal e d o vegetal vale agora para esta nova dissociação: o pro- 111Ma possibilidade d e q u e isto ocorra c o m o s homens.
gresso s e fez gradativamente, pois essas duas potências se encontravam con- Além disso, a consecução desta análise supõe u m procedimento repar-
fundidas. E c o m o toda dissociação s e faz p o r predominância de tendências, lilferem etapas: e m Bergson a avaliação dos seres h u m a n o s vai ser desdobra-
é possível, t a m b é m , afirmar que algo d o instinto se encontra n a via da inteli- daem uma avaliação d o s impasses encontráveis nas sociedades humanas; o
gência, e vice-versa, m a s s ó que d e forma latente o u virtual. queirános remeter a u m a comparação inevitável c o m a vida dos insetos. M a s
itonós faremos n a parte posterior.
" O fato é q u e inteligência e instinto, tendo começado por Agora, nossa m e t a consiste e m u m a avaliação preliminar dos m u n d o s
interpenetrar-se, conservam algo d e sua origem comum. Ne • s e fecham quando o s viventes se adaptam, e d o s impasses d a inteligência
u m a n e m outro jamais se encontram e m estado puro ... Não ha ttlassuas prováveis estagnações. Pois c o m ela é possível avaliar - pela con-
inteligência onde não s e descubra vestígios d e instintos, nem diçlohumana - o fechamento e a condição d e ruptura.
·a de
instinto, sobretudo, q u e n ã o esteja envolto e m uma franJ
inteligência 180 ".

M a s é n a dissociação q u e a inteligência e o instinto se mostram co


tendências distintas: o instinto é u m tipo d e conhecimento inato q u e sens·
· a1
mita a utilizar instrumentos naturais organizados; a inteligência fabnc
0111
trumentos não organizados, isto é, artifícios q u e fazem d o ser humano
pbre a diferença entre instinto e inteligência ver H. Bergson, op. cit., pp. 609-622
l8'l , 124-138).
li. Bergson, Evolução
180 H. Bergson, L 'Évolution créatrice, in: Oeuvres, p. 610 (p. 124). Criadora, p. 276.

132 133
parte 3 _ Dos Animais e dos Homens: Criação e Alienação da Vida na Natureza

- ânica , devem ser colocados imediatamente em evidência.


ntaçao org
• o, a 0 tomar como verdadeira a ideia de que essa representaçao de-
.
1nteres ses práticos imanentes à vida do homem, e, poss1ve
, 1 1gua
· 1men-
. .,
ar que aquilo que a precede - como estando de uma certa maneira Ja

II
· " d a v1'd a que ma is
te,no reino animal - consolida um aspecto " reativo
sera por nós confirmado como um tipo de "alienação".
procederemos mostrando como ela se fundamenta e como sua fun-
tação faz diminuir o horizonte, restringindo a vida a u m honzont r_e-
Mundo-Próprio e Horizonte Relativo e estreito, onde nele, a labuta com a matéria assinala uma restnçao
nte ao vivente que ocorre igualmente no ser humano. Assim, propomos

H
ente uma distinção entre a intuição do absoluto e u m horizonte rela-
á em Bergson uma crítica feita à inteligência que a partir de uma série de características.
corre o risco de . _ .
passar-se por superficial se não avaliarmos no pormenor Em primeiro lugar, o absoluto coexiste com a cnaçao do impulso como
da sua ento de diferenciação pleno de virtualidade. Ele consiste quando
obra onde ela se sustenta. Com efeito, os mecanismos
adaptativos ·mento é elevac!o ao infinito, dando testemunho de uma consciência
acrescidos do egoísmo "interesseiro" da inteligência
se assentam que é, de direito, coextensiva à totalidade. No horizonte relativo há
em um certo aspecto da vida que em Bergson se
traduz por uma forma de
"estagnação". Como é possível compreendê-la? ira. O que se eleva depende de um observador parcial posto como u m
Fizemos, na parte anterior uma descrição do movimento de ação. Aí, o movimento tende a configurar-se como algo que se faz
de diferen· ·r de um móvel, reportando-se a u m ponto de ancoragem que lhe dá
dação, buscando justificativas para a tese da criação
e argumentando, em
contrapartida, u m fechamento parcial consequente ções de normalidade.
da adaptação da espécie. Em segundo lugar, no absoluto o universo é descentrado, ele é sem
Entretanto, com a descrição dos sucessos parciais
da vida a adaptação foi en·
tão justificada, mas não totalmente explicada, por excelência, sendo a sua intuição uma integral dos movimentos
segundo os ditames da evolu· ivos, qualitativos e evolutivos, expressões de uma variação universal
ção criadora. Onde reside isto? Haveria
um processo inevitável de alienação a
da vida resultante de u m certo apego do vivente ao mudança pode ser captada por uma intuição. Já no horizonte relativo,
seu mundo consolidado? se relaciona com o ponto de vista do observador que representa o todo
E como ele se consolida?
função de um centro que, mesmo sendo pensável como móvel, produz
Nesta parte, analisaremos o par indivíduo-meio
nos seres viventes curvatura no universo.
para esclarecermos aspectos da condição humana.
Procuraremos colocarem Enfim, o absoluto não pode ser dado, mas se exprime como mudança
evidência as condições orgânicas da inteligência,
colocando em análise a con· IJtalitativa
figuração do mundo-próprio onde os seres vivos se de tudo que se move, sendo em essência aquilo que a intuição
alocam. Começaremos, quando simpatizamos com o aspecto temporal da realidade. Assim, do
portanto, com distinções, e m princípio, válidas para
todos os animais. ""'Junto das imagens-móveis que exprimem uma mudança qualitativa no
Sendo o animal u m ser voltado para a ação, ele deve
. . ser compreen
d'
1dO
Ilidoou na duração, às imagens-vivas - que são, sem dúvida, criação de um
nos mews em que vive. E aqui,. para procedermos com ngor,
.
devemos reto· 'rnento de diferenciação a partir de monismo temporal - paira a convie-
mar as características do ser animado à luz do seu do
caráter orgânico. sen de
assim, os aspectos utilitários, as bases daquilo que ue tudo dura, isto é, de que existe no universo uma abertura onde 0
no humano engendra a Po inscreve a sua novidade.
134
135
O Todo-Aberto parte 3 - Dos Animais e dos Homens: Criação e Alienação da Vida na Natureza

N o horizonte relativo, temos o mundo-próprio material ins p "a reação se simplifica o suficiente para parecer quase mecânica;
d e u m a determinada matéria o u i m a g e m móvel que se edif'ica n a c oarave1
e
entretanto ela hesita e tateia ainda, como se permanecesse
-
daçao atual d e u m organismo. A passagem d o absoluto para 0 h _nsolj. voluntária ... N a presença de u m a substância que lhe pode servir
. . 0rizo
· e m Bergson, comc1de
re 1ativo, .
c o m o processo d e atualização do virtual nte de alimento, ela lança para fora filamentos capazes d e apreender
. . , O
h o n z o n t e re 1ativo e o mundo próprio consolidado c o m o orga nismo
· e agarrar corpos estranhos. Estes pseudópodos são verdadeiros
, , . , . adap.
tado a m a t e n a . U m a espec1e d e natura naturada? Sim, e além dis órgãos e, consequentemente, mecanismos; mas são órgãos
so, Ullla
possibilidade d e alienação q u e a d v é m dos sucessos adquirido s na temporários, criados pelas circunstâncias, e que já manifestam,
. ." . . orde111
d a vida dos seres dotados d e consc1enc1a. Assim, o horizonte rei ativo parece, u m rudimento de escolha 183".
. e111
Bergson p o d e s e r devidamente descrito c o m o inseparável da consolida
Çao Sendo assim, u m a diferença da vida pelo intervalo de indeterminação
dos interesses práticos que justificam e certificam a adaptação · Ne ss e caso
u m a breve recapitulação desta teoria v e m esclarecer u m novo aspect o acer- CO,lllprova em Bergson a ideia de que o organismo - mesmo o mais rudimen-
. - iar-traz a marca d o impulso criador; muito embora, n a esfera da adaptação,
ca d a gênese d a inteligência no ser humano.
ela.tenda a ser coligida pela representação d a realidade e m função dos inte-
O horizonte relativo no mundo-próprio resses práticos.
S e a matéria-viva comporta u m intervalo de movimento, é neste que No produto dos organismos b e m adaptados assistimos a restrição d o
entrevimos u m a separação entre movimentos recebidos (percepção) e movi- mteivalo às especificações das funções que s e encarregam de reproduzir as
mentos executados (ação). O vivo - e c o m mais forte razão - o ser humano é ações indispensáveis para o sustento d o ser vivo. É b e m verdade que n a esca-
u m ser d e ação retardada: ao receber estímulos hesita; escolhendo a maneira laascendente da evolução a especificação das funções aumenta inegavelmen-
d e reagir à situação material. lllocoeficiente d e indeterminação. Mas isto não deve nos fazer prescrever d a
Ora, é certo que o intervalo d e indeterminação possibilita a intuição aúlise a ideia d e q u e a adaptação - c o m o tendência atual do acoplamento

de u m coeficiente d e ação imprevisível d o h o m e m sobre a natureza. Oco rre vida-matéria - faz c o m que a representação encontre suas bases n u m a certa
organicidade que fecha o vivente para o impulso d e onde ele procedeu.
que, no progresso contínuo das respostas, a hesitação tende a ser diminuí d a
pelos relativos sucessos adquiridos nas respostas acumuladas. Além disso, Enfim, há u m trabalho de especificação das funções orgânicas - e este
há u m triunfo d a assertividade que volta a consciência para os sucessos ad· trabalho é inseparável d a constituição d e u m meio morfogenético - a o longo
do qual vemos surgir, c o m descrições mais detalhadas, u m mundo associado
quiridos no domínio da matéria. O u seja, a indeterminação lograda pela vida aoprocesso
inclina-se para a assertividade n a exata proporção e m q u e o ser vivo vai s
e de organização. Ora, é e m função dessa organização que o contí-
lllo mat e rial vai ser enquadrado e moldado à s exigências d a representação;
adaptando ao meio. Configura-se então u m a tendência cuja explanação p
o de
queª necessidade
ser estendida à totalidade do reino animal, sendo a sua consequência o fecha· permite a compreensão d e que as imagens percebidas
: : condicionadas pelas ações possíveis d o nosso corpo sobre elas. A utili-
mento social no qual cairá o ser humano.
Por isso, definimos o horizonte relativo, a princípio, segundo as neces· fundada no aparelho sensório-motor é, segundo Bergson, u m fenômeno
hiiane nt e
1ª 0 0 ao reino animal e u m a possível condição de fechamento para o ser
sidades orgânicas, colocando-o presente n a sua forma rudimentar no P
do· no. Fechamento relativo, diga-se d e passagem, j á que existem relações
elementar dos organismos mais simples. Sua base é sensório-motora, seu, ·a feinPl e m . .
, . , tilitafl e n t ares quando pensamos tais seres vivos n o plano da natureza. O
mm10 e a necess1'd a d e engendrada pelos hábitos. A atenção à v1·d a u . nfo
trtU
constrange a liberdade ao reduzir o espírito ao orgulho exclusivo de
H. Bergson, L'Énergie
sobre a matéria. É o caso da ameba por exemplo: nesta, spiritue/le, in: Oeuvres, p. 821 (Pensadores, p. 73).

136 137
O Todo-Aberto e dos Homens: Criação e Alienação da Vida na Natureza
parte 3 _ Dos Animais

fato é que há um processo gradual de organização que constitui 0 o teor da indeterminação. Assim, os horizontes re-
' corpo e a é va n·a'vel, segundo . . , . , .
·
ma t e' n·a CJrcun d an t e on d e a v1·d a se d es d o b rara' em vanos· meios1a4 das espec1es encontrave1s na natu-
. . ....,5 deve m se dizer da vanab1hdade .
. . .
tumtes d a orgamzaçao. - M e10s. internos,
. externos, associados e inte consti .,..- variedade dos mundos - aqm defm1dos como
rrnecti' . - ; apa r e cendo através da -
rios que sustentam a compreensão detalhada dos aspectos propostos a- ._.
ci·ados aos organismos - com u m grau d e m .
. d etermmaçao re 1a t·1vo
nossa mvest1gaçao,
. . - f un d amentan d o o mun d o propno , .
onde os sere s
Pela fiJiOSasso
V)Vos s empre
crescente.
rea 1.1zarao - s·1gamos na d escnçao
- as suas f unçoes. . - d e tais
. mundos. - Por exemplo, no horizonte relativo a restrição perceptiva é factual. E
No que tange ao aspecto imagético da percepção, isto é, ao seu aspect escala evoluti-
ra ela possa variar segundo o teor de indeterminação da
luminoso, o vivo fornece a placa sensível opaca para que a imagem se reflj à instância do humano, há, indubitavelmente um ciclo percep-
flQ e se eleva ,
circunscrevendo o mundo-proprio. Bergson dº1ra' que " uma 1e1. .ngorosa
Como a matéria é em si vibração luminosa difundindo-se através de linhas
de
luz, a imagem percebida pelo vivente é a própria imagem refletida no espe- de ação de que o
: U 1a a extensão da percepção consciente à intensidade
lho da necessidade, sendo, portanto, subtraída de tudo, '{uilo que não serve retardo da resposta maior será
servivo dispõe ". Assim, quanto maior for o
186

aos interesses do ser vivo. Tudo se passa como se em relação a esse aspecto
aextensão perceptiva. Na ameba supracitada o organismo é rudimentar e,
da matéria luminosa o vivo retivesse, refletindo, tudo o que lhe interessasse, porisso, o campo perceptivo é restrito, uma vez que nele o estímulo percebi-
deixando-se atravessar por tudo o que não fosse do seu interesse. É a cons- do é tátil e a resposta é quase imediata.
ciência - restrita ao intervalo - que agora está sendo descrita: seletiva por
excelência, recolhe do mundo sinais característicos em função das ações uti- "Mas à medida. que a reação se torna mais incerta, que dá mais
litárias que o vivo promove para garantir a sua perseverança 185. lugar à hesitação, aumenta também a distância na qual se faz sentir
Ora, a operação que preside os mecanismos adaptativos da vida pode sobre o animal a ação do objeto que o interessa. Através da visão,
ser novamente confirmada como uma subtração da totalidade do universo. através da audição, ele se relaciona c o m um número cada vez maior
Esta subtração - como já vimos na parte anterior - é inseparável de uma de coisas, ele sofre influências cada vez mais longínquas. A parte
restrição temporal, onde o interesse impõe à consciência uma alienação de de independência de que um ser vivo dispõe, ou, como diremos, a
si. E é nesta subtração que situamos a nossa análise do horizonte relativo. zona de indeterminação que cerca sua atividade, permite portanto
Assim, diremos, com os aspectos precedentes, que tal horizonte se constitui avaliar a priori a quantidade e a distância das coisas com as quais
consonante às consolidações das necessidades vitais. ele está e m relação. Qualquer que seja esta relação, qualquer que
Notamos aqui a complexidade d a análise bergsoniana: se por um lado seja portanto a natureza íntima da percepção, pode-se afirmar que
há um limite perceptivo fixado pelos interesses práticos, por outro lado, eSte a amplitude da percepção mede exatamente a indeterminação
da ação consecutiva, e consequentemente enunciar esta lei: a
184 Evocamos tais meios com o propósito d e exemplificar a ideia de que a con5títui: percepção dispõe do espaço na exata proporção em que a ação
do organismo pelo impulso vital é inseparável da proliferação dos meios 1nd15:adt dispõe do tempo 187".
sáveis para que este organismo se adapte. Sabemos que a descrição desta van da na
pode ser inferida da filosofia bergsoniana, não estando, é bem verdade, defini rsos
obra dele segundo a nossa alusão. Para uma compreensão detalhada dos,,divelivro
is o horizonte relativo: com a necessid de ele se_ atu:liza e m fun ão
do carater
meios aqui aludidos recomendamos a leitura do platô "A geologia da moral n to na seletivo do ser vivo; com o grau de mdetermmaçao ele se defme
intitulado Mil Platôs de Deleuze e Guattari. Aqui proporemos um detalhame
ideia de mundo próprio. , 0e 186
- · · Materi
185 o b re a d e f.m1çao
S · - d o vivo
· como centro d e açao ver o primeiro cap1'tulo de 18? H. Bergson, Matiére e Mémoire, p. 182 (p. 21).
Memória. Ibidem.

138 139
da Vida na Natureza
Animais e dos Homens: Criação e Alienação
O Todo-Aberto parte 3 - Dos

é o paladar, e sim a
pela amplitude do campo ·mal sugando líquido quente (pois o sinal não .
, perceptivo. Mas em ambos os aspecto s ele se ct·1Zte- 0an1
. . · assim a satisfação de suas necessidades.
1a t.1vo aos interesses prat1cos, constituindo-se
, . como um h onzonte cu rvo tura,) cumprindo .
. pelos mteres-
se atualiza
.
. nos mundos mseparave1s das diversas espécies d os que o carrapato percebe, é afetado e age movido
, seres vivos.
. 8 verdade, um rela-
.
N este aspecto, ha diversos horizontes relativos, tão diversos quantos da espécie. Neste vetor adaptativo um certo apego traduz
·cos lado,
sao os forma de vida adaptada à matéria. Por outro
membros das espécies animais. sso do impulso na
necessidade, faz com que vejamos o mundo
E aqui justificamos com Uexküll a noção que conceitua com Prec". 0 do espírito à esfera da
. . de horizonte isao mínima e coerente marcada pela repetição
nossa 1de1a . relativo: mundo-próprio 1s s _ Convém notarmos ato com uma diversidade
. que mundo fechado pelos seus interesses,
as suas análises coincidem com - alguns aspectos das análises bergsonianas que O prendem e o atam a um
. . . .. também pela esfera do seu interesse.
S e ms1st1mos na sua ut1hzaçao o fazemos para ensejar uma ênfase a mais. nas ndo-o a um outro ser vivo
ser estendido à totalidade do reino animal.
a 1.1enaçoes
_ nas quais a vida recai por força das estagnações. E isto em Bergson pode
se encontram vinculados pela
Assim, para Uexküll, cada animal existente na naturezaJe .-, encontra 1.1ga. forma, os animais bem sucedidos
, . animais através do instinto que se
d o a u':1 mun o-propno, de modo que admiti-lo como estando conscientemen- ção ao mundo físico e aos outros
Da mesma maneira, os animais
te em mteraçao com a totalidade do meio ambiente significa ignorá-lo como produzindo fechamento orgânico.
sinais perceptivos indispen-
c_entro de ação rea , nde ele figura não como objeto do nosso campo percep- alimentam de vegetais têm nestes os
Sendo assim, é legítimo per-
tivo, mas como su1e1to do campo perceptivo imanente às suas necessidades. à manutenção das suas necessidades.
teremos que analisar uma
Ue ll afirma que devemos levar em conta que "cada ser vivo é um sujeito, : é idêntica a condição humana? Ou nela
é possível inserir o hu-
que vive num mundo que lhe é particular, de que ele constitui o centro 189". complexidade? Veremos; por um lado, como
fechamento deste sobre
Vejamos o famoso exemplo do carrapato: da diversidade das imagens nessa análise; colocando os perigos de u m
inteligência. Por isso,
móveis que é a matéria, podemos dizer que o carrapato só distingue três; pois undo-próprio presidido por interesses da sua
desenvolve as suas
o seu mundo-próprio é constituído de três sinais perceptivos e afetivos qu e ma princípio observar que o meio onde o humano
matéria que pode ai-
compõem, no conjunto, o seu horizonte relativo. Sendo cego, surdo e mudo, entações - tendo em vista um conhecimento da
ambiente definido
ele distingue na diversidade da natureza tão somente luz ácido butírico e à esfera da inteligência - não é nada além do que o
práticos
rior de um mundo-próprio condicionado pelos interesses
1

sangue quente. Segundo Uexküll, quando afetado pela luz solar, o carrapato inteligên-
se move em direção aos galhos mais altos de uma árvore, com o propósito efinem a ambição de conquistar as funções da matéria. A
da matéria
de ficar próximo à luz; ao passar embaixo da árvore um animal de sangu e nesse aspecto, fundada sobre uma determinada tendência
um
quente, exalando suor, o carrapato se vê afetado pelo segundo sinal, pondo-s
e a ela se molda, inventando vantagens que outorguem ao homem

então em movimento ao deixar-se cair no pelo do animal; em seguida, pr Ço na conquista do mundo físico.
o hori-
cura entrar em contato com a região onde o terceiro sinal perceptivo se dará: Por outro lado, se a indeterminação é de fato maior - já que
relativo do humano tem uma maior amplitude, pois o seu coeficiente
que
previsibilidade é incerto - é igualmente factual a constatação de
cujo
i determinação sofra pelas vicissitudes da adaptação uma restrição
188 J. V. Uexküll, D s animais e dos om_ens, cap. 1. Seguindo a tese deste et Iogista, u:
zaremos a noçao de mundo-propno para tecermos nossas consideraçoes acercmas , no espírito, será, na verdade, uma alienação de si pela delimitação dos
teona . b ergsoniana. E, sabido que Bergson não utilizou esta palavra,
. do ser vivo sses práticos e sociais. Este é, no nosso entendimento, um obstáculo
rele
se en t rar os no pormenor do conceito cunhado pelo etologista, veremos se nte à condição humana. Nele preside a exigência dos interesses práticos
adequado a tese aqui desenvolvida.
189 Idem, p. 31.
ºduais e também das obrigações sociais.
141
140
O Todo-Aberto parte 3 - Dos Animais e dos Homens: Criação e Alienação da Vida na Natureza

o interv alo de movim ento; ocupa s e m preenc hê-lo; ates-


Por isso, n o mund o própri o dos human os existe m com 1exidact afeto ocupa
P
· das vicissi tudes morai s e religio sas que es %e de indete rmina ção que o vivo dispõe . Se, por u m lado, ele
e m ergem d a v1·d a social, nele O teor
li a possib ilidade de uma explor ação intuiti va de todo
nam no convív io existe nte entre os seres falante s · Nessa es tiera, a Ptectoll . · ara O human o
d escr1Çào ser sentid o graças à experi ência am-
d os mundo s-prop
.
, nos
human os ainda deve ser lida como parcia .l yjment o qualit ativo - poden do
- ' po·is ão - , na linha objetiv a ele se aprese nta como o
.
mos que mostr ar - n o devido mome nto - como u m eu social impoe aoh tere,. no campo da intuiç
. rias dos seres vivos, que no homem são
no o b ngaço- es para c o m a socied ade. Ullla. dor das opera ções utilitá
Como as obriga ções sociais serão o objeto da nossa próxim a Parte endidas pela intelig ência.
' s·1t u e. os a compr eensão do mundo própri o
mos o pro bl ema agora no plano da nature za, detalh ando a disti nçao - Com a descri ção dos afetos, tornam
dos n, rmos na ideia de que a capaci dade afetiva
, . . .
d os-pro pnos com o mtmto de descre vermo s no porme nor a cond·içao - h un. detalhada e compl exa: se insisti
u111ana de ação útil que ele poderá
ser organi zado define -se na probab ilidade
nessa tendên cia ao útil uma
O afeto e a memória restritos aos mundos-próprios olver sobre a matéri a, podem os aprese ntar
a restriç ão da vida afetiva im-
Em Bergso n não podem os detalh ar os eleme ntos constih 'ç ão de fato do univer so afetivo . Além disso,
.,,,..,.•int es de urn de remem oração . Bus-
, .
m u n d o-prop no sem repeti rmos as "restri ções" da vida esplrit ual imposta · a seleção da memó ria ocasio nada pelo proces so
ecimen to daquil o que
.
pe 1a t en d encia a, a d aptaçã o já analis adas na nossa segun da parte • Isto e ne- no passad o as lembr anças que auxilie m o reconh
condiç ão de uma
, .
cessan o p rque a evidên cia da nossa tese se reforç a pela análise que obte- útil, com a certez a de que tal reconh ecimen to nos dará
u m limite no
mos tambe m da nossa duraçã o quand o invest imos no mundo interno com mais eficaz. Corp isso, a exigên cia da atençã o ao útil vai fixar
ção dos
- lo, dando ao reconh ecimen to do presen te a condiç ão de efetua
operaç oes puram ente intelec tuais. Ou seja, quand o invest imos com a inteli- da vida.
ses prático s definid os pela afecçã o consol idada na organi zação
gência visand o recort ar a vida intern a para melho r adaptá -la às circunstân- s, buscan do no
cias extern as. utro lado, evocam os do passad o lembra nças de fatos vivido
• n t e a repetiç ão dos sucess os já consol idados .
Assim , do presen te vivo limita mos a gama e a variaç ão afetiva do in- s-
Assim, se explic ita a consti tuição dos mundo s-próp rios pela manife
tervalo de movim ento, ao vincul armos os afetos c o m as repres entaçõ es ten- os o virtua l
atual da vida analis ada na via da adapta ção. Se consid erarm
do em vista a ação utilitá ria. Isto ocorre quand o o prima do da ação torna-
e o movim ento de difere nciaçã o que caract eriza a criaçã o do impuls o, já
se impera tivo nas decisõ es do ser human o. O u seja, na exata proporção em
mos susten tar que a unifor midad e do organi smo b e m adapta do seja e m
que perceb emos menos por estarm os mais voltad os para a esfera das ações
IIQson um proces so de estagn ação.
utilitá rias, dimin uímos també m o interv alo de indete rmina ção, reduzindo 0
Devem os portan to confir mar que a organi zação do vivo no plano da
coefici ente afetivo ao vincul á-lo às repres entaçõ es mais próxim as da reali·
ria impõe uma restriç ão ao univer so espirit ual por exigên cia do equilí-
dade extern a. Como é possív el a elucid ação desta hipóte se? Apresentando 0
sensór io-mot or. E q u e tal equilíb rio - condic ionado na esfera da adap-
aspect o impur o da experi ência afetiva , uma vez que ela se encont ra situada
'lll':io do vivo ao meio mater ial - consis te e m u m certo tipo de fecham ento.
no entrec ruzam ento das duas linhas que analis amos na parte anterior.
lllelhor, o equilíb rio q u e estabi liza o mundo -própr io dos seres anima dos
Quand o situam os o afeto entre a percep ção e a ação motor a, defini· os vivent es
mo-lo em função da linha adapta tiva. Assim , podem os agora dizer que
ele ! que se consol ida pela exigên cia da atençã o à vida q u e volta
a conqu ista do m u n d o físico - produ z o fecham ento que aqui chama -
assina la para todas as espéci es anima is, "os perigo s gerais que a ameaça1Jll;
90 s de aliena ção.
e incum be os indiví duos das precau ções a serem tomad as para evitá-Jos . entaçã o na
Construçã E aqui a operaç ão da intelig ência encon tra a sua fundam
o a,
do mundo -própr io: molda da sobre os mecan ismos da matéri
190 H. Bergson, op. cit., p. 170 (p. 10).
143
142
Vida na Natureza
O Todo-Aberto Animais e dos Homens: Criação e Alienação da
parte 3 _ Dos

o r através
c o m e la c o n h e c e m os o funci o na m e nt o d o s fenôm e nos físic o s, te u m a ali e naçã o n o human o ist o s e justifica m e lh
. . , . . , . , c enctOª Mas se eXist e e nta c o m o u m a p o s-
n a para m e lh o r d o m ina-l o s. A int e hg e n c 1a c o n str o i - c o m as Operaçõ teo . da consciência t e m p o ral do t o d o q u e se apr e s
es Ptáti. 11se 1enaça~o a1· d a d e
c a s q u e lhe sã o naturais - as c o n d içõ e s d e r e c o n h e cim e nt o da r e a . a m e nto. Nest e caso, p o d em o s reler esta a 1·
h d a cte de do p e ns ra
, e x 1g
subm e t e, -la as
. , . Para rep e tir a intuiçã o d o T o d o -Ab e rto, para c o n s o lid a
e nc 1as d a n o ssa r e p r e s e n taçã o .
0 mod o . Basta
impõ e m a o humano
Ou seja, p e rc e pçã o , m e m o rizaçã o e r e c o n h e cim e nt o são ativid ades outrde que o s inter e sses funci o nais d a int e lig ên cia
. , . que
n o h orn e m t e, m na int e 1.1ge nc1a sua f unça_ o l e g isla d o ra . E e sta l e g is la vi d a e spir itual.
Para for. - : e n a ç ã o da
nec e r a e l e c o n d içõ e s mais e ficaz e s de funci o na m e nt o . Com o a b ase
deste
. mundo-próprio
jovimento de diferenciação e
.
c o nh e c im e nt o c o n sist e e m u m c e rt o us o d a m e m ór ia , as imag e n s-! e m b re.
. , . . . . rança a d e na c o n sciê n cia
o d a m e m ó ria e d a afetivi d
e v o ca d as p e l o s inter e ss e s prat1c o s o u p e la s v1c1ss1tu d e s d o ser hu _s Se d e dir e it o a int e graçã
,. ~ a o virtual d e u m passad o pur o ; por o utr o lad o ,
s e m duvi d a, e x tra ço e s r e p r e s e ntaci o na is que faz e m d o passado um a coletâ. p115con duz , P e la intuiçã o: ., , . . , . ,
n e a d e fat o s que foram pr e s e ntes, anulan d o a p o ssib ili d a d e da e xp enenc ., . da p e rc e p çã o a luz d 1afana d e u m a
matena v1bratil - at_rav_e s d a
. 1a aextensão patent e a i d e ia o n -
o v im ent o qu e lh e é imanent e - t o rna
int e g ral d e u m passa d o pur o . apreensão d e u m m
que, por isso m e s m o , o t o d o nã o p o d e s e r d a d o .
Ora, d ito desta m a n e ira é p o ssív e l e st e n d er a t ; ; b e rg son ia na da i6 ·ca de que tu d o dura e
b)gI ,.
o faz sup o r a e x 1st e n c1a
• A •

funçã o a d a ptativa d a int e lig ên cia à vi d a d o s animais e m g e ral. N e sse caso Nest e asp e ct o , a intuiçã o im e d iata d o e s p m t
d o s int e r e ss e s prátic o s e xist e m asp e
c-
a c o ns o li d açã o d o s m u n d o s-p róp ri o s d o s animais sã o c o ns e quê ncias e deum todo d u ráv e l. A q u é m o u além
, igualm e nt e , u m a participaçã o
B e rg s o n d e u m triunfo adaptativ o . A manutençã o d e ste triunfo ocasiona 1 tos subjetivos puram e n te t e m p o rais, hav e n d o
com o v i m o s, u m fecham e nt o e u m a s e d im e nta çã o d a vi d a o n d e nele o ani- inegável da matéria n a duraçã o d o univ e rs o .
s c o l o ca e m
mal s e fecha fascina d o p e l o mundo qu e ele p ô d e c o n qu istar, p e rd e ndo con- Na e sf e ra d o viv o a condiçã o t e m p o ral d a p e rc e pção n o
o n , d iz
tat o c o m o r e sta n t e d o impulso o rig in a l. S e n d o assim qual é a situação da uma outra c o m pr e e n são d o s s e r e s vibrát e is que nós s o m o s. B e rgs
c o n d içã o humana?
e s de
Dir e m o s q u e n o h o m e m a c o isa é mais c o m plicada : há n e le uma possi· "qu e p e rc e b er c o nsist e ( ... ) e m c o n d e n sar perí o d o s e n o rm
mais
bili d a d e d e c o nv ersã o d a int e ligên cia à intuiçã o - e e sta é a aposta c e ntral do u m a existência infinitam e nt e d ilu íd a e m alguns m o m e nt o s
n o sso trabalho - , m a s há, igualmente, a p o ssib ilida d e de u m p r e domínio da d iferen ciad os de u m a vi d a mais int e n sa,
e e m r e su m ir assim
int e lig ência c o m a sua c o n s e qu e nte submissã o a o s int e r e sses da vida social. u m a história muit o l o nga 191".
Quan d o e sta última p o ssib ili d a d e passa a p r e d o m ina r, fixan d o os interesses
Além d iss o , c o m a intuiçã o d e qu e a m e m ória c o e x ist e c o m o p r e s e nt e
d a e spéci e n o d o m ín i o d o s int e ress e s prátic o s, o c o rr e , c o m o já vimos, uma
ese cond e nsa na m e d i d a e m qu e s e c o ntra i nesta p o nta por nós chama d a d e
c e rta ali e na ção d o human o qu e s e rá d e nu n cia d a através d e uma intuiç ã o Presente viv o ; a p e rc e p ção passa a s e r apr e cia d a c o m o u m f e n ôm e n o q u e
oriunda da e xp e riên cia ime d iata. O fato é que a int e lig ên cia aí op e ra te0dº dura, isto é, c o m o u m a multiplici d ad e d e excitaçõ e s c o ntraí d as e fun d i d as
e m vista u m a t e n d ên c ia a c o m p r e e nd e r o espírit o c o m noçõ e s e spa ci ais, m ·
o
numa impr e ssã o qualitativa int e rn a.
vida p e l o intuito d e ad e qu á-l o a o m u n d o físic o . R e d uz, pl e na m e nte o univer·
p r te . E isto val e igualm e nt e para as quali d a d es s e n sív e is. B e rgs o n nã o acr e -
s o t e m p o ral d a d uraçã o, m o l d a nd o -a s o b r e as açõ e s utilitárias. Ora, na a dita, como já m o e b i-
stram os - que as quali d a d e s s e nsív e is d as imagens p e rc
ant e rio r, d enu n c ia m o s essa o p e raçã o c o m o u m a ilusã o . Mas ag o ra dizemos das sejam acréscim ta,
e s r e p r e s e ntacio n ais d e u m a c o n sciê n cia. A t e s e i d e aliS
que a ilusã o é inseparável d e u m a t e ntativa d e normalida d e qu e result a ,
o

fl0
última instância, e m u m fecham e nto d o human o qu e busca u m e qu il íb
191 H
c o n s e rva d o r n a a d apta çã o à reali d a d e . · Bergson, op. cit., p. 342 (p. 171).
145
144
O Todo-Aberto
Animais e dos Homens: Criação e Alienação da Vida na Natureza
parte 3 - Dos
que consiste e m colocar as qualidades no cerne d a consciência particular, conso-
, r eserv v1·t a I, m a s q u e se a c o m o d a m e m ,u m ritmo .
para o mundo material quantidades e extensões concretas, parece-lhe ando iJIIP ulso sobre as coisas. E p o r isso
, .
que e no mtenor
convincente. Afinal, se n a consciência só encontramos qualidades Pouco pela aça- 0 d o ser vivo .
s e u sucesso adaptativo e se
sas e heterogêneas, e n o m u n d o quantidades extensas e homogênea
n-ªº ext
en. rnun do-próprio q u e a vida garante o . - 't .
s, coni seu coeficiente d e novidade. Por outro lado, a v a n a ç a o n m i c a
explicar a passagem d e u m a ordem à outra? Equacionar através de llled· 0 do .
. assinalar para c a d a espécie u m a duração irre d ut1ve , l - pois
1enomenos ps1qu1cos ancoran d o-os e m u m su b strato puramente fisi Idas Permite . . .
• h , •

o 1,ogico
. e ntre as maneiras d e sentir, d e perceber e d e agir diferem a s
não parece ser, para Bergson, u m a boa solução. E m contrapartida
ele mundos-próprios distintos - faz c o m q u e ss1s-
-la encontrado no aspecto contraente d a subjetividade. A qualidade
• cre tê ·es alocando-as e m
em ideia d e q u e existem muitos m u n d o s n a atualidade
c o m o contração d e u m a multiplicidade d e momentos d a duração ma scom co nvl· cção a .
testemunham pela existencia d e
h

plan o d a natureza ·. Ora ' tais mundos


t e: ::
Ora, nessa tese h á algo d e extensivo n a qualidade, o que nos leva a compre-
ender u m a heterogeneidade menos tensa n a matéria. "A matéria converte-se 5 fluxos temporais.
dos
Nesse caso, u m pluralismo temporal se estabelece n o nível atual
assim e m inumeráveis estímulos, todos ligados e m u m a continl:l:it¼ade inin- rítmica pode_ser sus-
dl,el'SOS mundos-próprios. E é aí que u m a dive sida e
terrupta, todos solidários entre si, e que se propagam e m todos os sen t idos d duraçoes - d e
lllltlda. Além disso, convém dizer que essa diversidade e
c o m o tremores" 192, sendo as qualidades sensíveis o resultado destes t remo- mo-
rdo com a tese das coexistências virtuais - se produz n o resultado d o
res contraídos pelo espírito n u m momento único d a sua duração 193.
: e n t o de diferenc\f}ção q u e procede dos graus d e contração variáveis d o
No plano temporal os afetos são devires. Eles se encontram no intervalo
tDdo temporal. Como se a diferença entre os fluxos d e tempo atuais remetes-
de movimento entre o passado imediato dos fenômenos percebidos e o futuro
sem intuitivamente às tensões variáveis d e u m todo q u e não para de se divi-
iminente das ações que serão desencadeadas. Para u m espírito conscien t e de
dir em tais ritmos. Ora, 0 q u e se insinua como movimento d e diferenciação
si, votado à apreensão d a afetividade na via d o intervalo, o afeto nos abre a pos-
no plano material é, c o m o vimos, a vida. Concebida c o m o impulso originá-
sibilidade de análise d e u m a outra linha cujo prolongamento irá nos conduzir
rio,ela se desdobra e m u m a multiplicidade d e durações q u e se atualizam,
ao abismo de u m ser d o passado equivalente à totalidade d o tempo. constituindo a diversidade dos mundos-próprios. Ora, c o m essa releitura, o
E aqui chegamos novamente à ideia d e duração como multiplicidade mundo-próprio é a resolução dos problemas inventados pelo próprio impul-
qualitativa e de fusão, multiplicidade esta onde o s termos se diferem em na- so ao longo de sua aventura evolutiva. Enquanto produto d a sua adaptação,
tureza, e onde eles s ó se dividem mudando. A repetição agora dos aspectos o mundo-próprio pode ser visto como u m meio anexado que faz parte d a
já ensaiados na nossa primeira parte, deve-se ao fato d e termos aqui escla- estrutura morfogenética d o ser vivo organizado. Ele se constitui ao m e s m o
recido aspectos fundamentais n a evolução d o h o m e m e d a vida. Ou seja, há tempo em que as funções orgânicas entram e m u m trabalho de organização,
d e direito u m conhecimento d o todo que a intuição pode evidenciar quandº CUlo propósito é O d e assegurar a realização d e todas a s necessidades ener-
nos desinteressamos provisoriamente dos aspectos utilitários da vida. Nesse &éticas do animal. Sendo assim, o mundo-próprio se produz conjuntamente
conhecimento ampliado advém a certeza de que o todo não pode ser d a do. COrn a instituição d o organismo.
Ocorre que d e fato a restrição d a via utilitária faz c o m que o vivente Na medida e m q u e as funções orgânicas s e subordinam ao plano d e or-
se feche para o impulso virtual movido pela necessidade d e se adap t a r ª0 llanização, resultante d o triunfo d o organismo, a s funções espirituais também
me10.
· S urgem entao- n·t m o s part1cu - con dicionado5
- q u e sao
· 1ares d e d uraçao se organizam, fornecendo a o indivíduo as representações indispensáveis ao
prático. o q u e implica e m dizer agora q u e a relativização d o
discernimento
horizonte
192 Ibidem. para u m determinado indivíduo supostamente b e m adaptado é
193 Ibidem. Concomitante à limitação d a vida espiritual.
146 147
e dos Homens· Criação e Alienação da Vida na Natureza
O Todo-Aberto parte 3 - Dos Animais

Ora, não foi p o r essa via que nós dissemos que o impu l so s e ahen • ·untando
AqUI,]
os aspectos da análise empreendida nesta parte dire-
.
ver-se fascmado pe l a forma de vida que ele engendrou? Ou sei·a, nao
_
- h' ª ªº ª 'da - na nossa primeira versão - perde .'
contato consigo quando
adaptaçao u m a perda de consciência d o aberto quando nos voltarnos a na
q pelas formas que ele havia criado; e que nesse fascm10
ul so se fascina
nível dos interesses utilitários? Assim, reencontramos aqui uma outra r a 0
r
se torna uma mera virtualidade quando o vivo se
aceda da versão - o aberto
adaptação narrada n a primeira metade desta parte. no qual ele se adaptou. A adaptação como invenç o
,41111:o mundo-próprio como u m a alie-
Se o espírito e m Bergson é sinônimo d e duração - movimento d jdlB a é a contrapartida de u m a certa estagnação defendida
e d1-
•1erenc1açao
. ~ d e u m 1mpu
. . sua própria natureza. Tudo se passa como se o
1so v1ta 1 - quan d o ao criar o indivíduo, dando
a le do vivente e m relação a
separado da sua potência criativa.
condições favoráveis de adaptabilidade, e l e perde contato consigo mes
0'. estive sse aí
fechamento é inseparável de u m la-
aliena-se da criação d e direito que lhe é imanente, para viver na esfera ada No homem, já que nele o risco do
problema se cons-
tativa u m a certa estagnação. Tudo se passa como se o espírito abandon assepa nte utilitário cuja raiz é o interesse prático, u m
llllf Pu rame . .
recursos d : u m a mte_1·1ge c:a
sua empresa criativa, tornando-se limitado p o r forças dos condicionamentos vencer a estagnação através dos
p : é possível
da mtmçao
estabelecidos no interior dos mundos-próprios. Nessa linha, àe raciocínio rtida à intuição? Sim, mas precisamos assegurar a genese
compreender as razões do fechamento do
Bergson estima que no mundo animal a invenção enquanto obra do espírit Int e l igê ncia. Para tanto, cabe
obrigações.
consciente não passa de u m a exceção. Isto porque ela é latente e não há nada 1111111emno campo dos seus interesses e das suas
que inviabilize a ideia de que mesmo nas espécies b e m adaptadas não possa
ocorrer algum tipo d e mutação.
Porém, é no homem que o espírito encontra condições de retomar a sua
empresa criadora ao adquirir de si a consciência de ser uma tota l idade aberta.
O problema é que o homem pode se fechar nas amarras dos interesses práticos
da inteligência, quando se volta para as necessidades da atenção à vida, pren-
dendo-se aos limites do horizonte relativo. É aqui que a crítica à intelig ê ncia, e
com mais forte razão, a u m uso inte l ectu al e especulativo da inte l igênc ia - que
se debruça sobre o espírito para torná-lo adequado ao aquário do seu mundo
-próprio - ganha total contundência: a inteligência lida com a matéria ofe rtan-
do as vantagens das suas invenções à espécie humana. Com isso, e l a assegur a
u m teor de adaptabilidade progressivo que faz o esforço tender para a b u sca da
sobrevivência. Quando esta tendência se consolida tudo se passa como se urna
es.
certa alienação pudesse ser notada no cerne das suas próprias especu l açõ
0
A o tratar o espírito tendo e m vista a sua melhor adaptação, a inte!ig ê n d ª
nos
reduz segundo os m o l d es dos interesses utilitários. Seu egoísmo consiSt e
sen·
seus interesses e sua atividade e m uma redução da cena espiritua l às re pr e
dis so,
tações que fundam a organização de reconhecimento da rea l ida de. Além
o
o fechamento humano também se explicará pe l o fechamento socia l se g
u o <l
é uJ1l
as descrições de u m a moral e de uma religião fechadas. No entanto, eSte
aspecto já assina l ad o que analisaremos depois.
149
148
parte 3 - Dos Animais e dos Homens: Criação e Alienação da Vida na Natureza

constantemente se atrasam em relação a ela. A vida vai sempre


em frente, mas suas manifestações particulares de bom grado
ficariam marcando passo no mesmo lugar 195".

Há uma desacelerada, um ponto de apoio que cria referência para o

III ento, curvando o universo e engendrando - nos limites estabelecidos


interesses utilitários - o mundo no qual o vivente irá se fechar. Assim, o
e um trabalho bem sucedido fez com que a vida se desviasse de si mes-

e
A Estagnação da Vida e a Condição Humana e deixasse hipnotizar pela forma que ela acabava de produzir. É assim
rgson define a adaptação: o vivo, uma vez criado, alcança êxito quando
pta às circunstâncias que o permitem não só perseverar, como também
roduzir. Ele passa a repetir os sucessos adquiridos ao longo da evolução,
om as teses apresentadas ao longo dessa parte do-se conduzir por um movimento automático. Bergson dirá que
foi possível , por um
lado, apresentar a evolução criadora ' mostrando
, . . , como os se res VIVOS
~ durave1s,
sao isto e, exprimem uma mudança qualitativa "as formas vivas são, pela própria definição, formas viáveis. Seja
no todo ou
~ Por outro lado, vimos
na d uraçao. como for que se explique a adaptação do organismo às suas
igualmente que a consciência do
od -Aberto permanece latente e refratada na maioria das espécies pelas vi• condições de existência, essa adaptação é, necessariamente,
ine:entes ao desejo de perseverança. Ora, em Bergson, suficiente a partir do momento que a espécie subsista. Nesse
:1ss1tudes,a aptativas
predom1 10 dessa tendencia permite-nos afirmar sentido, cada uma das espécies que se sucederam na história da
. que uma estagnação se
mstala no vivente, quando nele a vida perde contato vida, foi um êxito feliz alcançado por ela. Mas as coisas assumem
com o resto de si mesma.
Assim, 0 ser vivo passa a girar sobre si, fechando-se aspecto totalmente diverso quando comparamos cada espécie
no seu mundo-próprio.
Deleuze tem razão quando diz que ao movimento que a colocou em seu caminho; e não mais às
condições em que ela se inseriu. Não raro esse movimento
"não pode ser de outro modo, pois o Todo é só virtual, se divide desviou-se, e não raro também ele estancou; o que deveria ser tão
ao passar ao ato, não parecendo com suas partes atuais, as quais somente um lugar de passagem converteu-se no ponto final 196''.
permanecem exteriores uma às outras: o Todo nunca está dado
e no atual reina um pluralismo irredutível tanto de mundos Mas como inferirmos dessa estagnação a condição de ultrapassagem
como de seres vivos, todos eles fechados sobre si mesmos 19 Via da criação? Se a finalidade da vida consiste em produzir condições
"''.
a permitam levar adiante a sua empresa criadora, e se isto só é possível
Como detalhar essa estagnação? Segundo Bergson,
. na evolução da 'ante um salto para fora das repetições cíclicas - o que coloca o espírito
vida, a desproporção entre o trabalho e o resultado
é manifesta. condições reais de apreensão do aberto - é legitimo pensar que tais con-
es - ainda que não definitivas - tenham ao menos logrado algum êxito
"A vida em geral é a própria mobilidade; as manifestações urna extremidade da evolução.
particulares da vida só aceitam essa mobilidade com pesar, e
H. Bergson, L 'Évolution créatrice, in: Oeuvres, p. 603 (p. 118).
194 G. Deleuze, Le bergsonisme, p. 108.
Idem, p. 604 (p. 119).
150
151
O Todo-Aberto parte 3 _ Dos Animais e dos Homens: Criação e Alienação da Vida na Natureza

na via animal com o humano vem a se atualiza r


E aqui o problem a da condiçã o h u m a n a deve ser rig orosa
lllente ssava Como exceção
abordad o. Para Bergson , o impulso vital consegu e no ser hu mano is frequênc ia. . .
_ u1tra.
inação, a capacid ade maior de ser afe-
passar as condiçõ es adaptat ivas. Nesse aspecto , há uma su p er
. - , açao
_ d coeficien te maior de indeterm
repet1ço es c1c 1·1cas q u e atam o h o m e m n a naturez a pelas Op er as percebe r um m_aior número de_ coisas não onfe-
. açoes por consequ ência, de
· E sta u I trapass agem v e m a signific ar uma supera Çao da idade de fazer vanar - problem atizando - a vida do
mte 11genc1a.
A •
- do bumano a possibil
prio humano tal c o m o o conhece mos no plano atual dos intere sses pr·0• reais de conscien tização do aberto? Nesse
- Ptár ndo ao impulso condiçõ es
cos? Nao podemo s respond er ainda a esta questão sem antes e ntender1· o da vida materia l no humano é mais pro-
, a capacida de de alteraçã
Ou seja, a possibil idade do novo pode
m o s o problem a central da condiçã o humana . Pois o homem é tarnb·
_ em 0 que nos demais seres vivos.
.
e m con d.1çoes atuais, u m ser a d aptativo . Busca - por intermé dio da.
1nte- r para além das condiçõ es fatuais.
igualme nte, o risco de fechame nto.
1.1genc1a - cuidar dos interess es práticos q u e visam o prazer e O b em-es- Por outro lado, o homem corre,
A • •

obrigaçõ es sociais - na
tar, e se deixa condici onar por imperat ivos d e apego consolid ados 0 -se - quando regido pela inteligên cia e pelas
sociedad e fechada . Ora,
hábitos sociais. Sendo assim, o seu privilég io é relativo , uma vez queph eia adaptati va, que o estabiliz a no seio de u m a
na esfera hu-
o risco dele se fechar n o seu mundo- próprio , repetin do às características ida em que assinala mos tais interess es predom inando
, ~ 7 N es-
estagna çao.
dos demais seres vivos. não mostram os também um caminho que o con d uz a
ado meios de
Mas é fato que Bergson acredita nesta possibil idade do homem ir além o, como podemo s afirmar que o impulso aí tenha encontr
efetiva-
das condiçõ es represe ntativas e adaptati vas garantid as pela inteligência e levar a t rmo sua empresa de criação? Além disso, é só quando
teremos
pelos hábitos. Segundo ele, pesquisa rmos as condiçõ es humana s na esfera do social, que
duplican do-se pela
ndições reais de avaliaçã o da estagna ção humana
na
"no animal, a invenção jamais passa de variação sobre tema de rotina. ncia de obrigaçõ es morais e de funções fabulado ras que consolid am
a
Encerra do nos hábitos da espécie, ele chega sem dúvida a ampliá-los o fechame nto sobre si. Ou seja, colocan do finalmen te e m relevo que
por sua iniciativa individual; mas só escapa ao automatismo por um "ção humana implica uma compree nsão social do seu ser, não devemo s
moment o, precisam ente o tempo de criar um automatismo novo. nder ao movime nto da sociedad e as condiçõ es de fato da adaptaç ão e do
No homem, e apenas no homem, ela se liberta 197".
Com isso, desdobr aremos o problem a levando em conta o terreno
A liberdad e, a abertur a e a alegria da alma aberta são aspectos insepa· ai; pois é no domínio d a socieda de que devemo s situar c o m adequa-
ráveis da superaç ão da condiçã o humana pelo espírito . Assim, é no humano a via da ultrapa ssagem da condiçã o humana . Bergson propõe q u e
que devemo s lograr as condiçõ es de sua superaç ão. Por isso, torna-se urgen· ndamos a ultrapa ssagem da condiçã o h u m a n a no seio de u m a so-
te uma compre ensão mais detalhad a da sua condiçã o. ade aberta, provend o-nos das condiçõ es fatuais da consciê ncia d o
O teor de indecisã o da condiçã o humana se coloca no espírito por urna rto pela consolid ação de uma alma aberta através de u m evento q u e
dupla constata ção: por um lado, o ser humano contém um teor de indeter· surgir a intuição .
minação maior do que as demais espécies vivas. Por ter um sistema nervoso Só assim é possíve l estimar que no h o m e m o impulso seja capaz de
centrali zado, sendo igualme nte dotado de inteligên cia e linguage m, o homern mar o seu movime nto de diferenc iação no moment o e m que se volta
o
é capaz de produzi r ações mais insólitas do que os outros animais . AsSI·rn re si, ou melhor, no moment o e m que toma consciên cia de si. E a apre-
ão de si por si é a retomad a no espírito do próprio movime nto que con-
197 Idem, p. 718 (p. 231).
'ona a criação.
153
152
O Todo-Aberto

Ora, tal movimento se fará com a gênese da intuição no se·


' 10 deu"'
soc1e · E' somente e 1a que e capaz d e d ar ao impulso um ·••a
· d a d e d'mam1ca.
cimento integral; sendo também capaz de atingir uma consciência d conhe.
O aberto imanente à vida, assim como os graus de durações superior:stodo.
feri ores - ainda que interiores ao homem - só são alcançados na tendêe 1-
intuitiva. Entretanto, a intuição deve nascer na inteligência, convert en
dncia
0•
A ultrapassagem de uma inteligência técnica - puramente interessada_
- d esta a' mtmçao
. . - - rea 1 d a e,etuação peª·la
conversao vem a ser a con d'1çao • de urn
alma aberta. E isto exige do homem a potência de ir além da sua condição d:
fato, para levar a termo tal movimento de conversão.
Enfim, Bergson espera encontrar no seio da sociedade condições de

Das Sociedades Fechadas


abertura - tanto para uma alma aberta, quanto para up;1a vida social _ que
possibilitem ao impulso retomar conscientemente o movimento de criação.
Essas condições de abertura irão possibilitar-nos uma visão imediata do todo
aberto, conduzindo-nos à integração total do nosso ser. Sendo assim, para às Sociedades Abertas
compreendermos com exatidão essa abertura, será necessário este passo a
mais: entender a condição humana no seio da sociedade.

154
Parte 4 - Das Sociedades Fechadas às Sociedades Abertas

urn "inte rv a lo" e xist e n t e e ntre o "e goísmo" d a inte ligência - qu e faz
revalênci a d e vo n t a d e s in dividu a is - e a subordi n a ção a o todo d a
ªa ! e pela vi a da mor a l fechad a e da fabul a ção re ligiosa; e m s e guida é,
e nt e , n e
c e ssário fris a r qu e t a l di n a mismo supõ e um a "oc a sião" esp e -

I e abertura , já qu e a e st a gn a ção t a mbém s e co n solid a no âmbito a tu a l


ciedad e s hum a n a s. Ou s e j a , a a b e rtura d a a lma a co n te ce n a a propria -
o intervalo de in d e t e rminação qu e s e in sinu a n o co n flito e xiste n te e ntre
ress e s d a in t e ligência e a s obrig a çõ e s soci a is.
Das Obrigações Sociais ora, ta l problem a não se coloc a p a ra os ins e tos, pois n e l e s a vid a soci a l
e,egária. Be rgson diz qu e

N
as du a s gra n d e s rota s qu e o impulso "a s socied a d e s d e formig a s e de a b e lh a s são a dmira velm e n t e
vita l e nco n trà·a-bertas discipli n a d a s e u n id a s, m a s fix a d a s num a roti n a imutáv e l. S e o
d e s1· - a s e, n·e d os a rtro, pod e s e a d'1ante
. _ dos v e rt e bra dos - de sen indivíduo s e e squ e ce d e si m e smo, a soci e d a d e t a mbém esqu e c e
.
s e e m d1re çoe s difer e nt e s o insti volv em-
n to e a i n t e lig ê n cia 1
9a N
• o ponto sua d e sti n a ção; um e outra , e m e st a do de so n a mbulismo, fazem
cu Jmm · a nt e d a prim e ira s e e nco n tr
a m os i n s e tos himeno'pte
e x t r e mi·d a d e d s e gu ros, na e r e fq,z e m i n d e fi n id a m e n t e a volt a do m e smo círculo, e m lug a r
n d a e stã o os s e r e s
_ hum a n os. Em a mb a s, a pesa r das d e m a rch a r diret a m e n t e par a fr e nt e , p a ra um a m a ior e ficácia
fer e n ça ra d1ca 1s das formas ati di-
n gida s pelo impulso,
sep a ra ça ca a v e z m a ior dos ca
como ta mbém de uma soci a l e um a lib e rd a d e in dividu a l m a is compl e t a "201.
_ min hos p e rco rrido s - a a tua lização
a d1ver e n 1a -, a vid pela via
a se desdobr a e m soci
, e d a d e . É a vid a soci a l que chega Ma s qu a l a oc a sião evoc a d a p a ra justific a r o di n a mismo d a s soci e d a -
a e volu ç a o, como s e
algum a a spira ção origi n a l e e ss e n ci qes human a s? O qu e ocorre n o in t e rv a lo qu e tor n a possível tal co n dição?
a l d e la somente pu-
dess e e n co n tra r n a soci e d a d e su a
pl e n a s a tisfação "199_ Tais perguntas só se co n figura m como v e rd a d e iros probl e mas do p e n s a -
Segu n do Bergso n , a soc1·eda d e t or
n a comu n s a s e n e rgi. a s md1v1dua1s
. . . . ento se e nt e n dermos como a int e ligência fu n cio n a fr e n t e à vida soci a l;
be n e ficia n do-s e dos e sforço s d e . , el c .. '
to d os, a o torn a r v1av a d a e sforço ind1v1- o a in d e t e rmi n a ção do s e r hum a n o é supl a n t a da p e los hábitos mor a is e
du a l. A vid a soci a l é, port a n t o, · . . , . as superstiçõ e s re ligios a s e como e ntre os dois - i n t e ligência e obrig a ção
im a n e n t e a os md1v1duos que a compõem, v1·
ve n do ª um só tempo d a subordi
n a ção d e ss e s i n diví duos
à sua totalidade e IOdais - v a i e xistir um conflito qu e e mbora a test e um duplo fech a m e n to
do progr e sso re sulta nt e da in serç do indivíduo e d a soci e d a d e , faz v a l e r um " n ovo int e rv a lo d e i n d e t e rmin a -
ão d a s e n ergia s in dividu a is no seu seio2
E aqui com e ç a m os a n oss a anális ºº·
, . e . Dir e mos que a suposta "benevo· • que é, como v e r e m os n o final, condição d e a b e rtura p a ra o n ovo. São
l e n c1a" d a a pre c1·a ça~o d a vid a estes os probl e m a s qu e a gora a bord a re mos, por acr e dit a rmos que o seu
soci a l é, n a v e rd a d e , um problema da sociedade
hum a n a· s e a princí P10, · um d'm a m1·smo soci a l tor n a -s e a tua l, r sultando d esclarecime
. _ · e ª nto n os d a rá co n dições d e compre e n d e rm os o êxito do impulso
mserç a o do n ovo oc a sion a d a p e la Cl'iador na vi a hum a n a .
a bert ura qu e a co n t e c situa·
e qua n do nos
Porém, a nt e s d e desdobrá-los, co n vém prim e iro pre cis a r um a condi-
198 H._ Bergson, L 'énergie
spirituel/e, in: Oeuvres, p. 834 (Pensadores,
p. 81). \'ão da vid a soci a l orga niz a d a , isto é, d a org a n iz a ção mor a l da soci e d a de hu-
199 Ibidem.
200 Ibidem.
2º1
Ibidem.
156
157
O Todo-Aberto

Parte 4 - Das Sociedades Fechadas às Sociedades Abertas


mana. A função fabuladora na condição
de religião fechada será
próxima metade desta parte. ab or dad outra que promove o dinamismo social, incitando, igualmente,
ª na º es·
#

Será tal obrigação obra da inteligência? do indivíduos uma abertura para o Todo. Assim, das sociedades fe-
É fato que as sociedades
manas nascem com a inteligência; ,
é indubitável sua presença hu. asso ciedades abertas - segundo o título que inaugura o problema
· d o pe 1as · no .
ocas10na nossas mvençoes,~
como tam b em , na organização progresso Ides ta Parte - destacaremos duas espécies de moral: a pnme1ra • iec h a-
a t.1v1"d a d es. En t re tanto, apesar d · ev1·d·enc1as,
· das nossas da aberta Como em Bergson a pesquisa , , . d as
~ e tais B ergson busca urna a segun se da no d omm10
caçao para compreen d e r a s . ~ morais exPh-. . ões do social, a emergência das duas morais deve ser postulada segun-
o b ngaçoes . - que d~ao ensejo
ção social - em elementos à org
exteriores à inteligência. Diz, em nçd'en cias que envolvem o próprio impulso vital, pois é no desdobramen-
a sobrevivência da vida social princípi:niza.
supõe uma subordinação das vontades na atualização deste que - na via humana-, lograremos as con d"içoes - de
individuais a um todo que se apresenta l;v : alienação social e de uma abertura para o todo.
como elemento imperativo; ~
elemento se exerce em cada um e que tal .
dos indivíduos de forma, igualrnente, Mas, voltando agora à nossa análise da obrigaçao; o que d1s em s aCI-
rativa. Tudo se passa como se a impe-
subjetivação da obrigação fosse torna necessário, em primeiro lugar, o entendimento da or_gamzaçao so-
inteligência, vindo de fora desta e estranha à
atuando nela por convencime to. como um procedimento de moralização dos costumes. Assim, uma orga-
Todo da obrigação apresenta-se Assim, 0
como elemento subordinador das ão se faz por uma série de preceitos morais que se impõem como man-
individuais, justificando-se em uma vontades
tendência natural de ordem extrínseca ntos; garantindo pela coesão de uma moral da obrigação, o fechamento
razão 202• Ora, não estaria aqui a condição à sociedade e das almas dos seus respectivos indivíduos. Entendamos, com
de uma moral fechada se explicando
pela via dessa obrigação? Como ela 'são, esta pri&eira tendência.
se condiciona? Não seria necessário
-la, com precisão, frente a uma outra situá
moral? Mas como precisar tal distinção?
Através de uma pequena digressão:
é preciso dizer que a tese bergso- obrigações morais
niana, quando evoca tais elementos Bergson aqui parece encontrar-se com alguns aspectos das
íntegra as condições morais da formação
extrarracionais, pretende estabelecer na :nális s d_e
social. Nesse sentido, ele principia, tzsche. Para este, a formação de uma sociedade supõe a obrigaçao do md1-
por um lado, sua análise no âmbito uo no cumprimento das leis sociais. Só que as leis não são, para Nietzsc_h ,
de uma fonte moral, pois entende que cer-
tas relações estabelecidas pelos dutos de uma racionalidade primeira, mas antes expressão de uma at1v1-
semelhantes no seio da sociedade são funda-
das em regras e costumes determinados e vital genérica, que tem como tarefa produzir costumes, moralizar ações,
como mandamentos que asseguram
a coesão da vida social. Por outro solidar hábitos, colocando o indivíduo numa situação de dívida para com
lado, ele busca a explicação do dinamismo
social em uma outra experiência moral,
procurando entender o motivo que
dará ao impulso condições de levar
sua empresa de criação a fins mais eleva-
dos, fornecendo, igualmente, condições
de abertura para os indivíduos que
se relacionam socialmente. Desta
abertura, não só falaremos em uma socie- A inscrição do individuo na sociedade supõe em Nietzsche toda uma atividade d_e
dade aberta, como também analisaremos adestramento que visa uma moralização dos costumes, sendo o
as condições da liberdade em urna produto desta ati-
alma aberta pela gênese da intuição vidade um homem capaz de fazer promessas, isto é, um homem
na inteligência. capaz de honrar
sua palavra, tornando-se confiável no campo social. É bem
Por isso, podemos dizer que o universo verdad q tal tese e
moral em Bergson se distingue Nietzsche aparece com a denúncia de que a cultura ao longo da h1stona - se,
em duas tendências: uma que trou como um projeto falhado, já que o seu produto resultou em os
assegura a coesão social por intermédio das um ser pa 1fic e
domesticado · Aqui ' no nosso texto, frisamos a ideia de adestramento com intuito
o
de estabelecermos um paralelo entre a tese capital da Genea og,a a
202 Cf., H. Bergson, Les deux / · d Mora I com o
sources de la mora/e et de la re/igion, in: Oeuvres, cap. 1. fechamento constituído pelo hábitos analisados por
Bergson nas Duas Fontes da Mo-
ra/ e da Religião.
158

159
Parte 4 - Das Sociedades Fechadas às Sociedades Aberta s
O Todo-Aberto

itarm os sua su-


Segui ndo a anális e bergs onian a podem os afirm ar um ª m a tese bergs onian a com o propó sito de explic
. ndarmos

,,,,.
ança como ela se desen volve.
sua tese com a tese metzs chean a, pois ao atribu ir a organ iza çao - soc1aJ. da Vejamos então
. . .
men t os Irrac10na1s, Bergs on não faz outra coisa senão apost a r e m um ... ª
ele.
. ,, . . . instin.
to virtua l da vida que em nada condi z com os intere sses rac·iona1s Be rgson ern social
. - sua anális e servin do-se de uma analo gia: comp a-
tal como Nietzs che, sao taxati vos: para eles O princí pio cond·1c1ona
. Bergson empr eende
.
rahda de dos costu mes - princí pio asseg urado r da coesã o s oc1a
nte d
ª
• 1 - na_ mo.
,
social a u m organ ismo
0 e ,..sna organ ização
de
origem racion al.
"cujas célula s, unida s por víncu los invisí veis, subor dinam -se
Com Nietzs che podem os dizer que na obedi ência à Je·I, o pnnc1 • ,pio
. se umas às outra s numa hierar quia sábia, e se dobra m natur almen te
a f 1gura indep enden te do seu conte údo. Indep enden te do que a 1e1. prescrev
• e, a certa discip lina que poder á exigir o sacrif ício da parte para o
h a, o ato d e obede ce-la pelo simpl es fato de ela ser a Jei 204. Or a, o bedecer à
. bem maior do todo 206".
1e1 por ser ela a lei agride , no nosso enten der' todas as exigên ci as ego1stas
• . , . . . • .
d a nossa mtehg enc1a . A mtehg encia, a rigor' traba lha semp re ,,a.ia vor dos in-
, . E é claro que, em se tratan do de uma analo gia, uma difere nça deve logo
teress es prat1cos de u m indiví duo. Nesse caso , uma obediênci·a cega a um
. _ sel'assinalada: o organ ismo se produ z subm etido a leis neces sárias , enqua n-
mand amen to soC1al, que nao raro se manif esta como contrá rio aos no ssos m-
1Dasociedade é const ituída por vonta des "indiv iduais livres". Porém , dada a
teress es_in i idu is, não pode, sem contr adição , ser atribu ída à inteligência
siDgularidade da analo gia bergs onian a um aspec to funda menta l da sua tese
co,mo pnnc1p10. Nietzs che conclu i então que tal princí pio - que funda O socius
logo se eviden cia: no mome nto em que as vonta des passa m a se organ izar
-. e de natur eza irraci onal, isto é, incon scient e. Supõe ser uma ativid ade gené-
socialmente, imitam , de algum a mane ira u m organ ismo; "e nesse organ ismo
n c a de coma ndo cujo propó sito é produ zir costu mes morai s, assegurando à
mais ou meno s artific ial o hábito desem penha o mesm o papel que a neces si-
socied ade estab ilidad e. Assim , obede cer a lei porqu e é a lei afigur a-se como dade nas obras da nature za"2 º 7• A vida social é, nesse sentid o, um sistem a de
um princí pio que trans cende todo e qualq uer conte údo norma tivo, fundan- hábitos que, exerc endo certa press ão sobre nossa vonta de, corre spond e às
do, por conse quênc ia, a sua própr ia organ ização social .
exigências da comu nidad e.
Bergs on, à sua mane ira, dirá algo simila r: se os hábito s sociais são
arbitr ários, pois se tratam de conve nções norm ativas ; o hábito de adquirir "Alguns deles são hábito s de mand ar; os dema is, em maior ia são
tais hábito s afigur a-se como princí pio, já que trans cende os povos , as raças hábito s de obede cer, e obede cemos ou à pesso a que mand a em
e as classe s, funda menta ndo, no plano da natur eza, a própr ia organização vista de uma deleg ação social , ou à própr ia socied ade, da qual
social 2º5• Neste aspec to, a vida social depen de de press ões sociai s, isto é, de eman a certa ordem social confu samen te perce bida ou sentida"2 º 8•
ativid ades genér icas que adest rem as funçõ es huma nas com O propósito de
fazê-l as cump rir ativid ades úteis à manu tençã o da socied ade. Os hábito s sociai s se evide nciam como obrig ações morai s para com
Entre tanto, a semel hança de aspec tos entre as duas anális es não deve ºtodo da vida social . Apres entam -se, porta nto, como hábito s poder osos, na
nos dispe nsar do traba lho do conce ito. Sendo assim , torna -se necessário llledida em
que trazem consi go a autor idade geral do conju nto. Sentim o-

286 H.
Bergson, Les deux sources de la mora/e et de la religion in: Oeuvres, p. 981 (As duas
204 Sobre ª atividade genéri ca enquanto moralização dos costumes na obra de NietzS• fontes da moral e da religião, p. 7).
che ver F. Nietzsche, A genealogia da moral, segund a dissertação. 20?
Idem, p. 982 (p. 8).
205 S bre ª semelhança da tese nietzscheana com a tese bergsoniana ver G. Deleuze, 2oa Ibidem.
Nietzsche e a filosofia, pp. 203-206.
161
160
O Todo-Aberto Parte 4 - Das Sociedades Fechadas às Sociedades Abertas

nos obrigados toda vez que as circunstâncias sociais exigirem à apresenta como elemento puni-
, execuçã cumprimento do dever, e a angústia se
- mantenedoras da ordem social. E como se o peso das obriga _ 0 de
açoes nos desviamos do dever
Çoes Para is as angústias morais emergem toda vez que
com a sociedade se verificasse em cada um dos seus indivíduos int analisa esse conflito
egrant es. tisfazer os nossos interesses particulares. Bergson
Nesses termos, podemos afirmar que a sociedade como um todo , . do que ele se funda no fato de as sociedades humanas se constituírem
nente a cada u m dos seus indivíduos. Sua sobrevivência não seria morais.
' a-
P0ess1ve1 tades individuais supostamente livres em relação às obrigações
se as o b ngaçoes,
· - que nos mantem • ata d os a ela, não se verificassem culpa no indivíduo toda vez
em cada le, a possibilidade de transgressão introduz
' A ss1m,
u m d e nos. . o t o d o d a o b ngaçao
· - se e1etua
, na sujeição de cada
u ao se insurgir contra os imperativos sociais sente emergir dentro dele
si mesmo, na exata medida e m que o indivíduo demonstra estar sujeita;ª da obrigação. Tudo se passa como se o eu social o acusasse, punindo a
. . oa
u m e 1emento coerc1t1vo que garante a coesão e o fechamento da org
aniza- ssão ousada pela inteligência, ocasionando, com isso, um conflito que
ção social. Ou seja, ele crê obedecer a si mesmo, obedecendo aos imperativos a se manifestar internamente. Ou seja, é a intenção de transgressão como
que emanam das obrigações sociais. Desse ponto de vista, não é totalmente ncia do eu individual às obrigações sociais que engendra o conflito; con-
legítimo afirmar que a obrigação venha rigorosamente de fora. É claro que
0 que só se arrefece quando a força das obrigações sociais passa a pre-
todo da sociedade supõe u m elemento coercitivo exterior, p o r é m ; exercício r sobre as resistências dos nossos interesses individuais.
dessa coerção nos conduz à conclusão inevitável de que é no "homem e pelo Em terceiro lugar, as obrigações morais impõem à inteligência o esfor-
homem" que tal coerção se institui. encontrar uma explicação para elas. Curiosamente, notamos que pela
Com tal constatação lemos nesta descrição da obrigação social um fe. daquelas passarpos a resistir às resistências individuais, contrariando
nômeno subjetivo que faz valer uma diferença entre duas instâncias que co- s paixões, os nossos interesses práticos e nossos desejos individuais,
existem na subjetividade. Por isso, Bergson vai afirmar que ao lado do nosso cumprirmos inconscientemente com o dever. Padecemos de neurose ao
eu individual, existe e m nós um eu social, que expressa o essencial de nossa os a inteligência para adestrar o fechamento, isto é, a escravidão. Ou
obrigação para com a sociedade 2º9• como tal ato parece afigurar-se para nós com uma agressão aos nossos
Daqui, uma série de consequências podem ser descritas: em primeiro sses individuais, usamos da inteligência para encontrarmos "razões"
lugar, a imanência do todo social em cada um dos indivíduos faz valer uma os convençam da necessidade dessa resistência. E aqui surge a ilusão,
espécie de sentimento imperioso que nos leva à execução de atividades sem 1muitos filósofos compartilharam, de que as obrigações sociais se fun-
u m a explicação racional logicamente explicitada. É o dever - que se evidencia iem interesses da inteligência.
nessa instância - que nos coloca na situação de agirmos mesmo sem termos Segundo Bergson, é o contrário que se verifica como verdadeiro: a in-
uma razão plausível que justifique nossa ação. Assim, quando a inteligência ncia, na maioria das vezes, é crítica, pois trabalha e m função dos inte-
se vê cobrada a encontrar uma razão que legitime a coerção ao todo, esbarra egoístas do indivíduo. Quando se mostra laboriosa na justificativa das
- na maioria das vezes - com a ideia tautológica que se exprime com exatidão ções morais o faz persuadida de que as ratificações dessas obrigações
no enunciado: "é preciso porque é preciso 210". do seu interesse. Ao se render à força da pressão social, a inteligência
Em segundo lugar, não é raro encontrarmos um conflito interno no i - ra com o curso da servidão e do fechamento. Este é o efeito imediato
divíduo ocasionado pelo confronto dos dois egos. Quando os interesses in<liv;· nflito subjetivo explicitado por Bergson.
duais não condizem com os interesses sociais, a vontade é arrefecida pelo ha· Por intermédio desta tese, Bergson ensaia uma nova interpretação do
rativo categórico. Discordando de Kant, para quem o imperativo se faz
209 Cf., Idem, pp. 986-987 (p. 13).
interesses da razão, Bergson demonstra ser o mandamento obra do pró-
210 Idem, p. 995 (p. 21). hábito social, uma vez que, para ele, o sentimento de obrigação só se ma-

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O Todo-Aberto Parte 4 - Das Sociedades Fechadas às Sociedades Abertas

nifesta como despra zer no momen to em que o conflit o entre Os d ois .


e sendo o hábito de contra ir hábito s algo de natura l, resta entend ermos
. . . pois na medid a em que o situam os como elemen to extrar-
torna eviden te. A dor que o 1mperat1vo faz nascer deriva da resistên . gos se fundamento,
cia do
· d'1v1'd ua 1a' pressa- o d o eu coletivo. Ao acharm os que estamo s aoi
m eu I, 0 assent amos, por conseq uência , no âmbito de uma tendên cia da
. . i,•Il d o Co
os nossos mteres ses, ou simple smente , deixan do de agir a favor dei ntra
es, sen vida. Sendo assim, é preciso prosse guir no porme nor dessa tendên -
.
t.imos, nessa res1stenc1a, o d espraz er predom inar como produt o d tocar no essenc ial da tese bergso niana. Passem os então a ela.
COnflit0·
A •

. . . O
Quand o enfim cedem os ao 1mperat1vo moral, agindo de acordo com a
. . . . . Pressã0
soCia!, agimo s por dever e sentim os, 1mpen osa, a necess idade de res .
. . , Peitar a tinto virtual
1e1, como se a1, nossa vonta d e tivesse se curvad o a uma razão imper·iosa.
Na A compr eensão do hábito como tendên cia imanen te à própri a vida so-
verdad e a nossa vontad e se curva, mas não a uma razão imperiosa·, cu
rva-se do humano leva Bergso n a estabe lecer uma compa ração entre as duas
, . . . .
antes a hab1tos soc1a1s, ou seia, a elemen tos adapta tivos que corrobora"' •11 pela
divergentes que culmin aram no aparec imento da socied ade. Nessa
_
_ •
coesao e sed1m entaça o da socied ade 211• Tudo se passa como se Bergson pu- ração, o tipo de socied ade que se afigura como o mais natura l é evi-
desse - ao notar o caráte r egoísta da intelig ência - mostra r çomo esta se cur- mente o tipo instint ivo:
va aos interes ses sociais ; acentu ando, assim, um aspect o social cuja condição
é extrarr aciona l mas se institu i com a colabo ração da intelig ência. "o víncul o que une as abelha s da colmei a entre si assem elha-
Como podem os explica r isto? Estam os tratan do de uma análise de fa. se muito mais àquele que conser va juntas as células de um
tos? Ou nos alçamo s na busca das condiç ões de possib ilidade de tais fatos? organi smo, coorde nadas e subord inadas umas às outras 213".
Sendo assim, como entend er o hábito como constit uinte da organização so-
Ou seja, há vida coletiv a nos insetos , mas não socied ade no sentid o
cial? E como é possív el atribui r a ele a tarefa de fundar o todo da obrigação?
llllano da palavra . Entret anto, a compa ração rende a Bergso n os termos ex-
Além disso, não seriam os hábito s adquir idos produt os de convenções so-
tivos do surgim ento do social em bases analóg icas fundad as em algum a
ciais? E se o forem não seriam , por conseq uência , arbitrá rios, pois variariam
Wfrtualidade instint iva.
de socied ade para socied ade?
Convém dizer, e m princí pio, que na linha do human o é precis o su-
Segund o Bergso n, todo hábito é arbitrá rio, e a variaçã o dos costumes
PJr «que a nature za tenha preten dido obter socied ades em que fosse
encont rados nas socied ades o demon stra com relativ a clareza . Mas o hábito
deixada uma certa marge m à escolh a individ ual 2 14" . Em função disso, nas
de contra ir hábito s é, como vimos, ao contrá rio do conteú do dos hábitos ad· SOCiedades human as u m a regula ridade de obriga ções terá se impos to
quirido s, natura l. Repou sa portan to em uma tendên cia adapta tiva da vida,
COlno indisp ensáve l para a manut enção do todo social. Sendo assim, tor-
que faz da vida social um fator imanen te à nature za human a. Eis o essencial:
Se plausív el a tese de que a nature za proble matize resulta dos "com-
é o hábito de contra ir hábito s que se encont ra na base da socieda de condi·
Veis aos do instint o na outra extrem idade 215" . Para obter a regula -
cionan do a sua existên cia coesa, isto é, fechad a. Logo, "o todo da obrigação'
lillade análog a à unifor midad e das abelha s e das formig as, a "natur eza
verific ável em cada um de nós, nada mais é que "o extrato concen trado, quin·
e lerá recorri do ao hábito 216" .
tessên cia dos mil hábito s especia is que contra íramos de obedec er às rnil
uma exigên cias da vida social2 12" .
2t3 H. Bergson, Les deux sources de la mora/e et de la reli9ion, in: Oeuvres, p. 996 (p. 22).
lt4 Ibidem.
211 Sobre a interpretação do imperativo categórico kantiano Cf., Idem, pp. 995-997 (pP· lts
21-22). Ibidem.
46 Ibidem:
212 Idem, p. 993 (p. 19).
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O Todo-Aberto Parte 4 - Das Sociedades Fechadas às Sociedades Abertas

atribuir ao instinto uma


"Cada um desses hábitos, a que se poderá chamar
rnorais. Entre tanto , é preciso evitar o contrassenso de
.
.
contmgente. .
M as seu coniunto, quero d.1zer, o hábito d ' se 1'.á ão particular de um indivíduo humano. O que se afigura como neces-
econtra1·
' · b ase d as soc1e que "teria sido do instinto caso as sociedades
h a' b 'It os, sen d o a propna · d ades e condicio t ef O todo da obrigação,
. . nancto lastreadas em variabilidade e em inteli-
sua ex1s t enc1a,
' "
tera, uma 1orça comparave, 1 à do instinto nas na~o fossem de algum modo 23
tanto
em intensidade como em regularidade. Isso precisam ' ·a222". Para Bergson, "trata-se de um instinto virtua/2 ", isto é, de um on-
ente é
racional para compensar a parc1ahda-
que chamamos "o todo da obrigação 217". rtida que a natureza suscita no ser
0
.
- h a,
seja, na divergência das linhas de di ferenc1açao '
da sua inteligência. Ou
Objetar-se-á dizendo que esta análise só se aplica às sociedades alca ç das m cada
_,,iém da exclusão, uma certa conservação das vantagens
mitivas, cujo caráter disciplinador se faz por apelos a elementos irraci·o P -
i
substancia, nao se es-
na1s· . o instinto e a inteligência, embora divergentes em
mas Bergson observa que, embora seja possível analisar diferenças existen'.
em especificações absolutas. De modo que há uma aura de inteligência
tes entre as nossas sociedades e as primitivas, o pressuposto gregário de presididos pelo instinto e uma névoa de instinto nos animais inte-
coe· imais
são social continua vigorando, pois nas circunstâncias morai as ações pro- fpntes. Bergson fornece um exemplo comparando a moral a u_m certo hábito
cedem em essência da mesma maneira. ''A vida social é deste modo imanente,
falar; ou seja, comparando as obrigações a um certo uso da lmgua:
como vago ideal ao instinto e à inteligência 218". O que significa dizer que
"a moral de uma sociedade humana é, com efeito, comparável à
"humana ou animal, a sociedade é uma organização; ela sua fíngua. Cumpre observar que se as formigas trocam sinais
implica coordenação e em geral também subordinação de entre si, o sinal lhes é fornecido pelo próprio instinto que as
elementos uns aos outros; ela oferece pois, simplesmente faz comunicar juntas. Pelo contrário, a língua é produto do uso.
vivido ou, além, representado, u m conjunto de normas e leis. Nada, nem no léxico nem mesmo na sintaxe vem da natureza.
Mas na colmeia ou no formigueiro o indivíduo está cravado a Mas é natural falar, e os sinais invariáveis que servem numa
seu emprego por sua estrutura, ao passo que a comunidade sociedade de insetos, representam o que teria sido nossa língua
humana é de forma variável, aberta a todo progresso. Resulta se a natureza, ao nos outorgar a faculdade de falar, não tivesse
disso que, nas primeiras cada regra é imposta pela natureza; juntado essa função fabricadora e utilizadora do instrumento
ela é necessária; ao passo que nas demais uma coisa apenas é que é a inteligência 224".
natural: a necessidade de uma regra 219".
O condicional da expressão Teria Sido, recorrente nos exemplos da-
É por isso que Bergson vai afirmar que quanto mais escavarmos atéª dos, explica o conflito que nas sociedades humanas se verifica entre as
raiz das obrigações diversas para chegarmos à obrigação em geral, "maisª lontades individuais e o todo da obrigação. Se agíssemos por instinto, as
obrigação tenderá a tornar-se necessidade 22º", aproximando-se do "inSrinto obrigações seriam de resto pura necessidade. Óbvio que no fundo de cada
naquilo que ele tem de mais imperioso 221". llh!a delas uma necessidade virtual pode ser evocada, dando testemunho
da obrigação moral. Mas u m ser só se sente obrigado porque resiste, isto é,
217 Ibidem.
z3)-
218 H. Bergson, Les deux sources de la mora/e et de la religion, in: Oeuvres, p. 997 (P·
222 Idem, p.
219 Ibidem. 998 (p. 23).
223 Ibidem.
220 Ibidem.
224 Ibidem.
221 Ibidem.

166 167
O Todo-Aberto

porqu e nele a obrig ação, tomad a à parte , impli ca porta nto em uma
libercta_
de relati va da vonta de.
Todav ia, quand o essa tendê ncia social passa r a predo min
' ar num
· d a d e, v e n·t·1car-se-a, como conse quênc ia, o seu fecha ment E a
soCJe
. .
pengo que explic a o fecha mento das socied ades huma nas: no p re
º·este ·
0

II
_e
d oin1n·
da tendenc1a impos ta pelo mstm to social , os huma nos tende m a se
A • • • •
10
fech
. ar
como se fecha ram os dema is anima is. Bergs on diz que "o instinto soc1aJ
qu e
apree ndem os no fundo da obrig ação social visa semp re - sendo O in st·into re-
. . ,
lativa mente 1mutavel - a uma socied ade fecha da ' por mais ampla que se1a22s. A Função Social da Fabulação
Se esper armo s de uma mora l a prom oção da abert ura que nos e
dui··
za à criaçã o e à retom ada do impul so consc ientem ente ' devem os buon_ sca- a
em uma outra fonte. Porém , antes de analis á-la, convé m extrai rmos todas
da huma -
as conse quênc ias dessa ideia de instin to virtua l, pois, ségun do Bergson, ela m dos fatos mais notáv eis e const antes na histór ia
a curva r-
se manif estará no âmbit o, não só moral , como tamb ém religio so, configu- nidad e é a super stição . Com ela vemo s a inteli gênci
pávei s, às
rando , igualm ente, uma religi ão fecha da. É o que ele apont a quand o nos fala se às crenç as mais absur das, aos delíri os mais impal
stição o
da funçã o fabula dora. p9ixõ es mais arreb atado ras. O curio so é que na super
força impe -
em - de natur eza inteli gente - mostr a-se rendi do à uma
intere sse ra-
a onde, apesa r das resist ência s a ela opost as pelo seu
e ao bom senso
al, vê-se execu tando ativid ades estra nhas à reflex ão
ente indiv i-
seu caráte r utilitá rio. Se atent armo s para o aspec to puram
ida-
1do ser huma no, com certez a admit iremo s de bom grado a nociv
ário ao
da super stição , pois ela parec e traba lhar num sentid o contr
s in-
seus intere sses. Mesm o se acent uarm os o carát er egoís ta desse
tais
sses, direm os ser a super stição uma manif estaç ão atenu ante de
o
ísmos. O espír ito coleti vo - e isto é u m fato - asseg ura sua coesã
super stiçõe s que prom ove para o arref ecime nto dos indiv idual ismos .
se
ntos home ns não cedem dos seus intere sses indiv iduais quan do
stram diant e de u m Deus que lhes orden a impo ndo mand amen tos?
quantos movid os pela força dessa s ficçõe s não se mostr am obedi entes
imper ativos que surge m de uma socie dade que seque r lhes dá expli-
ões? Segun do Bergs on, as super stiçõe s, enqua nto fatos, mostr am-se
nsequ entes no proje to de coesã o social , servi ndo, nesse sentid o, para
ltlanutenção cega da organ izaçã o social , ao atenu ar as resist ência s que
intelig ência ocasi ona. Direm os que as ficçõe s persu adem a inteli gên-
nte e
225 Idem, p. 1001 (p. 27). ' Pois se aprov eitam do seu labor, para insin uar com mais requi
169
168
Parte 4 - Das Sociedades Fechadas às Sociedades Abertas
O Todo-Aberto

sofisticação os seus propósitos ' que são o de manter g regario 0 apressadamente ao dizerem que as ficções fabuladoras são engendradas
espírito •nação e atribuídas à inteligência. Contrariando a tendência de certas
humano no tecido sociaJ226.
Com tais considerações, Bergson indaga-se acerca d a origem . giaS utilitaristas, Bergson procura isolar a fabulação para poder então
dessas -la. Diz que a fabulação realiza, no plano da natureza, uma tendência
superstições. Quer o fundamento dessa operação e crê qu e e, poss1veJ ,
, - . . , i \Tida desdobrou na linha evolut i va que culminou nas sociedades huma-
ta-lo a uma funçao s1m1lar aquela que condiciona a obrigaç~ao. Essa fulllpu. -
. ,. . ~ nçao Jllºstrando que a sua compreensão exata supõe uma anál i se dos seus efei-
- considerada espec1f1ca da cond1çao humana - será cham a d a por Bergson
como uma "função fabuladora"221_ 1110 intuito de irmos precisando a sua diferença. Bergson dirá que
Com isso, ele passa a dizer que a criação de deuses , por vez es absurdo
. ~ . , "dessa função decorrem a novela, o drama, a mitolog i a com
a cnaçao de mitos, de fabulas e até mesmo de novelas , se devem a, umafunçãs,
0 tudo o que a procedeu. Mas nem sempre houve romancistas e
f iab ul adora presente entre os humanos e coerente com O fortaleci mento da
~ soCia ,
· 122s. Ao apresenta-la, dramaturgos, ao passo que a humanidade jamais se privou da
coesao Bergson ensaia uma explicação de ordem
. ,
· 1que o leva a situa-la religião. É pois provável que poemas e fantasias de todo gênero
v1ta como a função singular que fortalece O 1'çe ehamento
. tenham v i ndo por acréscimo, aproveitando-se de que o espírito
da sociedade. Como podemos entender sua natureza?
sabia fazer fábulas, mas que a religião era a razão de ser da
função fabuladora 23º ".
A natureza da função fabuladora
Pode os dizer que "as representações que engendram superstições Ou seja, a tes da aparição dos novel i stas e dramaturgos, a fabulação já
tem por carater comum o serem fantasmáticas 229"; e por isso, elas desafiam
A

valer os seus efeitos na composição do universo religioso. Nesse senti-


todo esforço empírico para sua comprovação. Nenhuma reflexão encontrará é plausível dizer que a fabulação se vincula, de forma necessária, às fun-
razão plausível que as justifiquem, e ainda assim, elas insistem fazendo valer gue animam uma religião na vida social. Se levarmos em conta a tese
sua força de comoção. que a sociedade como desdobramento evolutivo da via humana lhe é, de
Para Bergson, a gênese dessas representações se encontra no ato espe- ata forma, imanente, diremos ser a fabulação - pelo menos no que tange à
cífico da fabulação, que deve ser rigorosamente precisado, para não ser con- 'ão que ela produz - uma função articulada com interesses da vida so-
fundido com outras funções da subjetividade. Assim, ele conduz sua crítica às Mas quais seriam estes interesses?
psicologias que insistem em atribuir essas ficções a faculdades que na vida Vimos anteriormente que a coesão da vida social se fazia por inter-
espiritual executam atividades distintas. Por não atentarem às diferenças de lllédio de um todo de obrigações fundado na própria natureza humana. Atri-
natureza existentes entre as diversas funções espirituais, as psicologias con· 1-fmos esse todo a uma franja de instinto que no homem se man i festava
o hábito, ou melhor, como hábito de contrair hábitos, sendo tal tendência
lo llrificável no seio das sociedades humanas.
226 A aná l ise bergsoniana da superstição é encontrada no início do segundo cap ít u
ex· Po i s bem, parece que Bergson agora faz uso de um argumento seme-
de As duas fontes da moral e da religião. Juntamos a esta análise consideraç õ e s
desenvo l ve 00 liante ao primeiro para explicar a emergência da fabulação. Tal como a obriga-
traídas da compreensão da função social da superstição que Bergson
ra ª
decorrer do capitulo. Nesse sentido, indicamos a leitura do cap í tulo inteiro pa . essa também se justifica no plano da natureza humana; sendo, até onde sa-
compreensão adequada da síntese que aqui propusemos.
(p- benios, exclusiva dos seres intel i gentes. Pois é plausível dizer que o animal não
227 H. Bergson, Les deux sources de la mora/e et de la reli9ion , in: Qeuvres • p. 1067
89).
228 Cf: Idem, pp. 1066-1069 (pp. 89-91). 2ao Idem, p. 1067 (p. 90).
229 Idem, p. 1066 (p. 89).
171
170
O Todo-Aberto Parte 4 - Das Sociedades Fechadas às Sociedades Abertas

demonstra nenhuma evidenc i a de um ato fabulador. Entretanto o que . o movimento analít i co que leva Bergson à defesa delas.
. ng orosamente
. se detl(a à primeira.
,

passar por ev1denoa, mostra-se a Bergson como um problema pois emas então
• A •

_ . _ . . ,, , a fab
. . Ula. insetos o progresso só se manifesta
çao - na realidade uma ficçao s1m1lar a uma alucinação nascent e23v , Sabemos que na vida social dos
- contra. sociedades fechadas, isto é, estagnadas, onde cada "indiví-
ria o juízo e o raciocínio, tomados como faculdades i ntelectua is empenhadas 0 exceção. São
interesse da comunidade ". Para Bergson, na vida
233
- d os m· t eresses m
· d'1v1·d ua1s.
· Sen d o assim apesar
na execuçao .
de evi d enctada serve cegamente ao
. . . _ . . : trabalho é disposto em funções hierarquizadas
\ 1 dos seres instintivos o
o
se10 de um ser mtehgente, e l a nao nasce da mtehgenc i a, mas antes da
. . , , funçao coletivo das células que compõem um organismo.
que se mos t ra - na ma10na d as vezes - ate contraria aos interesses daquela elhantes ao trabalho
, .d . ,,. . . de fatos
Berg son en t-ao recorre novamente a I eia d e mstmto virtual", compre en d i m, a
estagnação se impõe como tendência observável através
encto como se o instinto, respon-
a fabulaçao - como ato do instinto virtual que decorre da atualização
d'1ieren- jmentados na vida organizada. Tudo se passa
. . sociedade, se encontrasse em
oada do impulso criador. Para não termos de reproduzir novamente essa tese, 1pelo aspecto gregário dos indivíduos na
. ., . . da natureza. Bergson nos dirá
pms Jª a explicamos no item anterior, lembraremos tão somente - com O In- . xim i dad e com um trabalho organizador
plano de organização da natureza, pro-
tuito de fortalecermos a nossa análise - que a vida no desdobramento
_ de suas e a vida social dos insetos imita o
, no trabalho coletivo
tendencias carrega, graças à unicidade do seu movimento criador, a ma·wna gando naturalmente a sociedade orgânica implicada
das manifestações das dema i s tendências naquela que se atualizou. Aqui Berg- s elementos constituintes.
individual
son pode dizer "que resta uma franja de instinto em torno da inteligência, e que Ora, seguindo essa tese diremos que o próprio organismo
um certo aspecto da
lampejos de inteligência subsistem no fundo do inst i nto"232. Só que o insti nto tinciona am um plano que anuncia antecipadamente
como coorde-
que se apresenta no ser humano é virtual. vida social; e sendo assim, a vida, nesse nível, apresenta-se
se divide. Neste
Ora, é a função fabuladora a manifestação dessa franja v i rtual de i ns- nação e hierarquia de elementos entre os quais o traba l ho
da vida.
tinto, onde a inteligência aparece como núcleo. A função fabuladora persuade ecto, há pressuposição entre o social e uma tendência orgânica
a imi-
a inteligência, levando-a a defender as suas fantas i as, ao mesmo tempo em Quando analisamos as sociedades dos insetos percebemos que nelas
que as
que a ela se opõe, fazendo-a curvar-se às suas superstições. tação do organismo se encontra em um grau de proximidade maior
Mas por que voltar ao instinto virtual para explicar a condição da fun- sociedade humanas. Bergson diz:
ção fabuladora? Acaso não teríamos na imaginação uma explicação ma is
plausível dessa função? Em defesa de sua tese, Bergson nos ofertará dua s "se nessas sociedades que são já os organismos individuais,
razões: uma resultante das considerações extraídas da natureza do próp r i o o elemento deve estar pronto a sacrificar-se pelo todo, se
instinto; a outra, pela análise do caráter irracional da fabulação que - nã o o mesmo é assim nessas sociedades de sociedades que
obstante o seu irracionalismo - produz um movimento de coesão - às vezes constituem, no extremo de uma das duas grandes linhas de
até fanático - que condiciona a estabilização da sociedade. Ambas se articu· evolução, a colmeia e o formigueiro, se enfim esse resultado se

Iam fundamentando a tese bergsoniana que vê no instinto virtual a condiç ã


o obtém pelo instinto, que é apenas o prolongamento do trabalho
da fabulação como instrumento a serviço da vida social. organizador da natureza, é que a natureza se preocupa mais
Consideremos, portanto, essas duas razões levando-as ao pormen o r com a sociedade do que com o indivíduo 234".
da explicação. Sentimos que não convenceremos ninguém se não exp l i c a r ·

233
231 Ibidem. H. Bergson, Les deux sources de la mora/e et de la religion, in: Oeuvres, p. 1075 (p. 98).
234 Ibidem.
232 Idem, p. 1075 (p. 98).
173
172
O Todo-Aberto Parte 4 - Das Sociedades Fechadas às Sociedades Abertas

Porém, o mesmo não acontece com as sociedades humanas quan por meio da própria inteligência contrapor-se ao trabalho
analisadas pelo viés da sua especificidade. Nestas, a vida encontrou urn o intelectual. Assim se explicaria a função fabuladora 236" .
tne10
de fazer atravessar o seu alento criativo, ao apresentar a possibilidade dena.
vidade e invenção de instrumentos não organizados por intermédio da i
nte- Chegamos portanto à segunda razão: a função fabuladora, criadora de
ligência. No instinto, convém lembrar, a vida social, no seu aspecto coesivo Ses, de
mitos, enfim, de superstições, visa, no seio da sua irracionalidade,
, se
desdobra naturalmente de cada indivíduo por força do instinto. Se o tnesrno , u a r O caráter dissolvente da inteligência e m relação à coesão social, per-
não ocorre no homem l'dindo-a a desviar-se do seu egoísmo, para ratificar os interesses do todo
sociedade. Tal persuasão ocorre pelo fato de que o homem - por ser dota-
"é que o esforço de invenção que se manifesta em todo domínio 4ode inteligência e desperto para a reflexão - pode voltar-se para si mesmo
da vida pela criação de espécies novas encontrou na humanidade segundo os ditames de uma inteligência que o aconselha a consagrar-se ao
apenas o meio de se continuar por indivíduos aos quais é ísmo utilitário. Se essa atitude predominar, a coesão se dissolve, e a so-
outorgada então, com a inteligência, a faculdade de iniciativa, a : a d e como u m todo tende à desaparição. Ou seja, mesmo que o indivíduo
·"" -
independência e a liberdade 235" . esteja visando a sua expansão utilitária, há o risco de - nessa via - haver
precipitação de desagregação do tecido social. Aqui é preciso fazer intervir a
Mas a faculdade da iniciativa deve, a princípio, nos dizer com precisão função fabuladora como fundamento de uma fonte religiosa: segundo Berg-
que há - no cerne das sociedade humanas - u m conflito não existente nas son, a religião tem, enquanto função social, a tarefa de sustentar e reforçar as
sociedades dos insetos. Ou seja, enquanto nas sociedades dos insetos o traba- exigências da sociedade.
lho individual se prolonga naturalmente no plano social - pois pelo instinto De imediato u m perigo é observado: havendo predomínio da obri-
o animal se sacrifica cegamente pelo bem maior do todo - , nas sociedades gação e da religião - que prolonga aquela por intermédio de imperativos
humanas dá-se o contrário: nelas verificamos que a inteligência trabalha em i'anscendentes - , a sociedade tenderá a u m fechamento. Melhor, na predo-
função dos interesses práticos dos indivíduos. Há u m egoísmo na inteligência minância do instinto social a sociedade se fecha, consequentemente, a alma
que fundamenta a iniciativa individual dada pela vida ao homem, e que pode se fecha, e a estagnação, observável nos demais seres vivos, consolida-se no
ameaçar a coesão social. Sendo assim, a sociedade como todo - na sua coesão seio da sociedade humana. Como ultrapassar esse perigo? Acaso a possibi-
sedimentar - faz valer u m movimento de contrapeso aos interesses egoístas lidade do impulso de fazer passar o seu movimento criativo não depende
da inteligência, e este movimento é a fabulação. de tal ultrapassagem? Por outro lado, a inteligência - por vocação utilitária
e"interesseira" - evidencia o seu egoísmo orientando o indivíduo na busca
"Se esse contrapeso não pode ser o próprio instinto, dado que 0 do prazer e do bem-estar.
seu lugar está precisamente tomado pela inteligência, impõe-se Que temos portanto? Egoísmos inteligentes que tendem a predomi-
que u m a virtualidade de instinto ou, se preferirmos, o resíduo nar quando a coesão social se arrefece; e a obrigação moral cujo predomí-
de instinto que subsiste em torno da inteligência produza 0 nio supõe uma inibição dos interesses da inteligência regidos pela busca
mesmo efeito: ele não pode atuar diretamente, mas, dado queª individual
do prazer. Ou seja, temos u m conflito, onde nele observamos a
inteligência opera sobre representações, suscitará imaginários eJcistência
de u m intervalo de indeterminação que coloca o homem na os-
que resistirão à representação do real e que conseguirão, Cilação entre
o seu eu individual - egoísta - e o seu eu coletivo - gregário e

. .
235 H. Bergson, Les deux sources de la mora/e et de la rehg10n, ln: Oeuvres, p. 107 6 (P· 99)- 236 lb"d
1 em.

174 175
O Todo-Aberto

sedimentado. Deste conflito um duplo fechamento· a


. , . fa
· intel·1genc1a
mem fechar-se em torno dos seus mteresses; zO
, e ha em ho.
a sociedade o iec
d os seus arca1smos. E em ambos os casos, 0 que se torn
. persegu e e, sempre 0
a d aptat1va. Mas haveria a possibilidade de ocupar este
. - .
inte rva 1o de Ind ªVia
mmaçao dando expressão a um eu fundamental imanente , . eter.

III
. . ao espirita e
movimento de diferenciação? 0 t no
Sim, e esta abertura alcançada .
· ·
d e m d etermmação deve ser pensada em um plano ético ' qu e e,
no Interv
conce1tu . ª
10
por Bergson como uma moral aberta. ado

A Moral Aberta

ssim a obrigação e a fabulação se fundam na condição humana.


São produtos de um instinto virtual que assegura, na sociedade
de seres inteligentes, a coesão da vida social. O todo da obrigação
- que se funda no hábito de contrair hábitos - atua sobre as von-
s individuais, pressionando-as e levando-as à execução de ações que se
ifestam na vida social como deveres - o que coloca o indivíduo em dívida
com a sociedade; a função fabuladora, por sua vez, persuade a inteligên-
com os seus fantasmas de representações, a ratificar obrigações, como se
fossem condizentes com os seus interesses.
Assim, a obrigação moral e a religião fundada nas superstições se en-
çam na constituição de um universo social onde a pressão social impõe
indivíduos a exigência de um pacto, produzindo como efeito imediato dos
s sucessos uma sociedade fechada.
Ora, nessa tendência social a obrigação moral deve ser imputada,
almente, a uma moralidade fechada cujo predomínio condicionará tanto
anutenção do tecido social, quanto a repetição dos costumes que asse-
ama coesão de tal tecido. Trata-se de uma moral impessoal, cuja impes-
lidade verifica-se através dos mandamentos que impõem aos indivíduos
a situação de fechamento. Ou seja, uma moral cujo efeito imediato do
ndamento é a estagnação. Isso é verificável nas leis sociais, nos costu-
s, nos imperativos morais atuantes na nossa consciência, em suma, em
0 que se verifica habitualmente na existência humana, traçando o perfil

176 177
Abertas
O Todo-Aberto Parte 4 - Das Sociedades Fechadas às Sociedades

Mas encerrar a moralidade nesse ciclo adaptativo é, segundo pormenorizada de tais diferenças no seio da própria
8 ergson, 0 se pa Ssar 7· A análise ..
contentar-se em compreendê-la pelo viés de um única fonte. Reduzi-l o quadro comparativo de forma mais preCisa.
gações sociais implica em vê-la tão somente como um mecanisrn o restrir ªª obri- ta de explicita
por isso - em segundo lugar-, na
moral fechada a vontade se curva d.1an-
o querer
de defesa contra os interesses egoístas da inteligência. Se fosse assirn _ tvo morais, configurados como costumes que impulsionam 1· ' ·
·' ·
conflito supra-assinalado - a sociedade humana não teria saída ' p OIS. . Pelo
ª
de h 'bitos ·
impõem obrigações. Nela, a res1stenc1a d a m t e
1genc1a
em torno de uma oposição, onde de um lado teríamos a pressão social
gira(1 ª mo imperativos que
intrínseco ao indivíduo. Já na moral aberta,
garan- duz, como vimos, um conflito
- d a soCiedade,
· d o a coesao . mais por força de hábitos morais, mas por
tm e de outro os interesses egoístas da intel·igenc1a
, ntade é determinada à ação não
sensibilidade, por produtos resultantes
que driblaria tal pressão para favorecer ao homem bem-estar e prazer. Aí de emoções causadas, na nossa
personalidade singular. Ora, a moral dessa persa-
0
fechamento seria inevitável, pois tanto em uma via quanto na outra teri'amos-
um ato de criação de uma • d a e oçoes-
na avaliação de Bergson - o triunfo relativo da adaptação e da funcionalid d atos que introduzem na obra ena
, a e !idade singular - o criador de
- é definida pela presença mc n-
E justamente com tal constatação que Bergson engendra a necessida: <lamentais para a determinação do querer
o surgimento de uma forte emoçao:
de de pensar em uma outra moral, como se a moralida e_pudesse se desdo- te de um aspecto indispensável para
existe atuação direta da sensibilida-
brar em duas fontes. É por intermédio dessa outra moral - que se insinua no sse caso, "fora do instinto e do hábito só
intervalo de indeterminação aberto pelo conflito existente entre o egoísmo 237". E mesmo que a propulsão exercida pelo sentimento pos-
s obre O querer
que as obrigações produ-
da inteligência e a pressão social - que a sociedade encontra sua condição de se assemelhar à obrigação - pois é legítimo supor
se verifica de diferent é que,
abertura; assegurando - por consequência - o dinamismo indispensável para ,em na nossa sensibilidade sentimentos-, o que
nasceu de um movimento
a propagação do impulso vital. nesse caso, 0 sentimento que engendrou a propulsão
notável. Nesse âmbito,
Perguntamos: Quais são as suas principais características ? E é possí- de atração inspirado pela criação de uma personalidade
implicamo-noss sem esco-
vel entendê-la ao compará-la com a outra moralidade? Ao respondermo s a Inclinamo-nos com decisão, agimos sem hesitação,
quando somos tocados
tais perguntas elucidaremos os tópicos de uma moral aberta - que para nó s lha. ou seja, ao atendermos ao apelo de um chamado -
pela força de uma
é uma ética da abertura - como condição da experiência efetiva da liberdade. pela criação dessa personalidade moral - ficamos comovidos
diversa da atitude
emoção que tem a propriedade de colocar-nos numa atitude
A moral aberta definidos como
de uma alma fechada. Assim, os iniciadores dessa moral são
transmitir-
Em primeiro lugar, a moral aberta se distingue da moral fechada, pe lo homens notáveis, capazes de, por intermédio da abertura expressa,
fato desta ser uma moral impessoal - que se exerce por intermédio de impe - nos pelas suas obras os fins mais elevados do impulso vital. Para eles, é neces-
tudo que foi
rativos - , enquanto aquela é uma moral que se transmite por intermédi o d e sário criar, sendo a criação inseparável de um alegria nascida por
uma personalidade notável. Tal diferença comporta, não obstante, uma po s - mas no
criado, a alegria da própria criação, não simplesmente da humanidade,
sível objeção: não é sempre plausível supor a existência - na moral fechada - limite da própria natureza. Esposando o comentário de Jankélévitch é possível
de moralistas agentes da lei, transmitindo, através da suas palavras de o rde m, dizer que este é um ponto onde a filosofia do
n
os mandamentos exigidos pelo próprio universo cultural? Ocorre a Bergs o
a generositas
acrescentar que a moral aberta não se transmite por imperativos de obediê - "impulso vital encontra paradoxalmente
por dar, nem
cia, mas antes por intermédio de um chamado. Aqui, a diferença torna-se mai spinozista. O homem alegre, não por possuir, mais
s

mas por
clara: não se trata mais de executar uma ação por dever para com a socieda- por acumular, mas por gastar, nem por poupar-se,
ss a
de, mas executá-la por força irresistível de um apelo, que atua sobre a no
vontade como uma propulsão, à qual não mais oporemos objeção. O que p
ode de la religion, ln: Oeuvres, P· 1008 (p. 33)-
237 H. Bergson, Les deux sources de Ia mora/e et
179
178
O Todo-Aberto Parte 4 - Das Sociedades Fechadas às Sociedades Abertas

em nós; antes
sacr i f i car-se, este homem está literalmente louco de 1 Na verdade, ela não i ntrod uz esses sentimentos
· sua a 1egna
p01s
, •
· e' uma 1oucura, uma sabia loucura ' cert
ª egria
ela nos introduz neles, como transeuntes que
se compel i ssem
. ,. em moral. A vida
bem mais s e n a que a louca sabedoria racional do pr i n c1p10
, . de a uma dança. Assim procedem os iniciadores
. como
economia e de conservação. A satisfação de "satis", ela so' aspira .e tem para eles ressonâncias de sentimento insuspeitadas,
entrar com
a conservar o mesmo, enquanto a alegria, semelhante n· as que produziria uma sinfonia nova; eles nos fazem ·
. . º¾
amor, diz: "Nunca demais! Sempre demais!". A alegria é po rtanto
,
movimento 239".
eles nessa música, para que nos a traduzamos em
.
o sintoma de um Mais: a alegria é literalmente estado de graça,
impessoal, é uma moral so-
. , _
isto e, a con d'1çao puramente criativa sem contragolpe , nem Enfim, a moral fechada, enquanto moral
a estagnação e a coesão do tec i do social; ao
segundas intenções, nem torneios de reflexão 238". , q ue visa a estabilização,
' 1que e 1eva
de uma personalidade notave
50 que a moral aberta depende
um dinamismo criativo, ao retomar o impul-
Essa alegria nos é transmitida como afeto oriundo do ato cr i ador. Ela é oc i edade a uma abertura e a
um estremecimento afetivo ocasionado pela retomada do impulso, cujo lim i ar pelo ato de criação.
conceito de mo-
de intensidade faz com que ela se difira em natureza das alegrias -pass i vas, isto Ora, a singularidade da moral aberta - e o próprio
- exige de nós uma compre-
é, dos sentimentos banais associados às representações triviais utilitárias. apresentado aqui pelo viés da criação
como um tipo
Na realidade - e esta é a nossa terceira distinção - é preciso diferir, pa ra ão pormenorizada da personalidade moral avaliada
através da criação. Su-
a compreensão da moral aberta, dois tipos de emoções. Pois ao lado das emo- tável capaz de-imprimir na sociedade abertura
termos exatamente
ções que conhecemos em demasia - já que sentimentos diversos se ligam igua l- nhemos então os seus traços característicos para
estiver detalhando as
mente a representações sociais - existem outras que nascem da contemplação novidade da filosofia bergsoniana, quando esta
de algo novo, que se transmitem por uma obra criada, revelando a capacid a de
de acrescentar aos sentimentos vividos novas tonalidades inventadas, coloca n-
do-nos, enfim, num movimento de abertura. Nesse caso já não nos sentimos criador e a natureza da emoção que ele engendra
em contato
obrigados, mas atraídos. Buscamos a imitação não do que está dito, mas antes Podemos dizer que o tipo especial capaz de nos colocar
movimento
do movimento que originou o dito. Em suma, instalamo-nos na emoção que é mo impulso vital é aquele que atingiu, por força da intuição, o
criadas o
condição para a propulsão do nosso querer. Bergson escreve: âmico do impulso original e que agora nos transmite nas ideias
dinamismo da vida. Na condição de moralista, ele retoma o movimento vital
"é o que acontece na emoção musical, por exemplo. Parece-nos, tara com ele fazer nascer ideias, conceitos e obras capazes de, não só de ex-
enquanto ouvimos, que não poderíamos querer outra coisa 'r n i r o movimento vital, como também de transmiti-lo àqueles a quem faz
senão o que a música nos sugere, e que precisamente assim lo. Nesse sentido, tal moralista é indubitavelmente um
agiríamos naturalmente, se não parássemos de ag i r ao escutar.
capaz de
Somos a cada instante o que a música exprime, seja a aleg r i a , "criador por excelência ... cuja ação, ela própria intensa, é
a tristeza, a piedade, a simpatia. Não apenas nós, mas também intensificar também a ação de outros homens, e generosamente
de bem,
muitos outros, mas todos os outros também. Quando a mús i ca iluminar núcleos de generosidade. Os grandes homens
inventivo e
chora, é a humanidade, é toda a natureza que chora com ela, e mais particularmente aqueles cujo heroísmo

p.1008 (p. 33).


238 V. Jankélevitch, Primeiras e últimas páginas, p. 93. H. Bergson, Les deux sources de la mora/e etde la religion, in: Oeuvres,
181
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O Todo-Aberto Parte 4 - Das Sociedades Fechadas às Sociedades Abertas

simples abriu novos caminhos para a virtude , são reve 1 atividade superabundante, isto é, de uma ação conseguida pela apreen-
ado tes
de todos os níveis da duração •
243
de verdade metafísica. Eles podem estar no ponto cul r n inante
·
-
·
nem por isto e 1es estao menos perto das origens , e torn Com a intuição mística ensaiamos a consequência da abertura que
arn
sensível para nós o impulso que vem do fundo. Cons·d 1 erelllo- •fica o nosso trabalho, colocando em esboço o problema da ocasião que
.
los atentamente, tratemos de experimentar simpatic a r n e
nte o ra iremos detalhar. Como dissemos que no movimento de transmissão ge-
.
que eles expenmentam, se queremos penetrar por u r n ato 0 por tais tipos singulares a emoção desempenha um papel capital, para
. . _ , , , de
mtmçao ate o proprio principio da vida 24º ". cluirmos a compreensão da moral aberta, torna-se indispensável nomeá-
Se falamos de alegria, devemos distinguir aquelas nascidas da criação, da-
Para Bergson, ele pode ser filósofo, se a filosofia mostrar-se por m
· teira
.
. . . . _ . . elas oriundas das representações sociais. Na verdade, distinguimos dois
como d1sc1plma de cocnaçao ativadora do impulso · Afinal ' o que e' poss1vel
. . s de emoções: as superficiais e as profundas. Estas, postas ao longo da
dizer de uma filosofia que não movimente ninguém? Que não nos transmita
Use como emoções que nos introduzem num movimento de cocriação
pelos conceitos criados o impulso da criação? Que não nos comova a ponto de
a própria vida, serão nomeadas como emoções criadoras. A designação
nos colocar em atitude de criação? Que não nos emocione ; o m ideias vitais, · emoção criadora como gênese da abertura da alma e da intuição do todo,
colocando-nos em um contato mais íntimo com a própria vida? Porém, 0 que
Bergson situá-la como a condição da criação e da liberdade. Cumpre en-
afirmamos do filósofo vale sobretudo para o artista e para o místico. De acordo
analisá-la, para dela extrairmos todas as consequências indispensáveis à
com Bergson, é a intuição mística, que se manifesta também na arte, que deve
clusão do nosso trabalho. A questão procurada, convém lembrar, é a da
orientar não só a filosofia, mas a humanidade como um todo, nessa empresa
nese da intuição na inteligência. Com ela, opera-se a conversão desta àque-
de produção de movimento. Nesse sentido, Deleuze tem razão quando diz que
e, consequentemente, a retomada do movimento vital por nós próprios. Ali
de o homem ultrapassa sua condição pela consciência do aberto e do coe-
"as grandes almas, em maior profundidade que a dos filósofos, são
·ente de criação que ele traz consigo. Este é o movimento que nos coloca a
as almas dos artistas e dos místicos ... No limite, é o místico quem
goza de toda a criação, e que inventa uma expressão da mesma só tempo na imanência da vida e no sentido da liberdade entrevisto aqui
tanto mais adequada, quanto mais dinâmica. A alma mística,
servidora de um Deus aberto e finito (características do impulso
vital), goza ativamente de todo o universo e reproduz a abertura
de um Todo em que não há nada que ver ou contemplar 24 1".

Na verdade, a alma mística rompe o ciclo adaptativo pela intuição do


Aberto, através de uma religião dinâmica que se traduz imediatamente corno
um amor pela humanidade inteira, ou melhor, como um amor pelo todo qu
e

é, igualmente, amor de Deus. Ou seja, o místico é "justamente aquele que sal-


ta fora do plano da natureza, isto é, fora dos ciclos repetitivos" 242, através d
e
%43 A função fabuladora é analisada por Bergson no âmbito da sociedade fechada no
campo da religião estática. Entretanto, há um uso da fabulação posto a serviço do di-
namismo entreaberto pela emoção criadora. É que no intervalo de indeterminação
240 H. Bergson, L 'Énergie spirituel/e, in: Oeuvres, p. 834 (Pensadores, p. 81). existente entre a inteligência e a pressão social existe a possibilidade de abertura
241 G. Deleuze, Le bergsonisme, p. 118. que impõe um uso livre da fabulação. Ou seja, "a religião dinâmica só se propaga por
242 Lapoujade, D. Puissances du temps - Versions de Bergson. Paris: Les Éditions de rni· imagens e símbolos que a função fabuladora fornece". Bergson, H. Les deux sources
nuit, 2010. de la mora/e et de la religion, remarques /inales in Oeuvres, p. 1203 (p. 223).

183
182
PARTE S

A Alma Aberta:
Emoção, Inteligência,
Intuição e Liberdade
Parte 5 - A Alma Aberta: Emoção, Inteligência, Intuição e Liberdade

tuição do espírito, a singularidade da emoção criadora é, com certeza, o afe-


to que consolida a gênese da abertura da alma. Das emoções superficiais às
emoções as mais profundas sentimo-nos compelidos a uma retomada do im-
pulso quando somos arrastados pela força da emoção que brota da criação.
Eis O essencial: a compreensão da natureza e da potência da emoção criadora
I conduz-nos à gênese da abertura da alma.

A natureza da emoção criadora


A Emoção Criadora Em As Duas Fontes da Moral e da Religião, Bergson define a emoção
como "um estremecimento afetivo da alma 245" . Propondo-nos, logo em segui-
da, uma distinção no seio das emoções, com a finalidade de encontrar apure-

P
za da emoção criadora. Escreve:
elo que foi visto a abertura da alma é ocasionada pela emoção cria-
dora. É ela que se insere no intervalo existente entre os interesses "Impõe-se distinguir duas espécies de emoção, duas
sociais e o egoísmo da inteligência, tornando possível uma ruptura manifestações de sensibilidade, que só têm em comum entre si
do espírito com as pressões sociais, ao convertê-lo à apreensão de õ serem estados afetivos ... Na primeira a emoção é consecutiva
si pelo puro fluxo emotivo. Na alma aberta, só existe ação direta da sensi- a uma ideia ou imagem representada; o estado sensível resulta
bilidade sobre o querer. Por isso, por mais que a propulsão exercida possa precisamente de um estado intelectual que nada lhe deve, que
avizinhar-se à obrigação, dela difere no fato de não encontrar nenhum tipo se basta a si mesmo e que, se lhe sofrer o efeito por ressonância,
de objeção por parte dos nossos interesses individuais. Sentimo-nos agir, perde dele mais do que recebe. É a agitação da sensibilidade pela
ou ao menos agimos, como se a força da emoção nos arrastasse, impelindo- representação que nele desemboca. Mas a outra emoção não é
nos a uma ação criadora. determinada pela representação da qual assuma a sequência e
Na verdade, a emoção só nos arrasta porque nos inclui nela; introduz- da qual permaneça distinta. Muito pelo contrário, seria causa
nos nela como "transeuntes que se compelissem a uma dança 244". Trata-se e não mais efeito, em relação aos estados intelectuais que
de uma emoção nascida de um ato criador que deve ser considerada no seu sobrevenham ... 246".
aspecto singular; já que existe o risco de assimilá-la ao âmbito das emoções
vividas devidamente subsumidas ao universo das representações. Ou seja, há Ou seja, as primeiras são inseparáveis de ideias condicionadas pelo
campo representativo. Assim, mostram-se como agitações que determinam
sentimentos que quando assimilados às representações subordinam a von·
0 nosso querer a cumprir uma ação - seja motivado por um interesse da in-
tade aos interesses práticos da inteligência. Nesse contexto, a alma se fecha
teligência ou por uma obrigação social. São as emoções proporcionadas pelo
segundo os preceitos determinados na parte anterior.
egoísmo e pela obrigação. De acordo com Bergson, são as emoções super-
Ora, se entre os afetos existem diferenças de natureza, pois eles sãoª
ficiais, cujo efeito se mostra dispersivo, na medida em que mobiliza tão so-
expressão de micromovimentos intensivos mais ou menos propensos à in·

244 H. Bergson, Les deux sources de la mora/e et de la religion, in: Oeuvres, p. 1008 (Pen· 245 Jd em, p. 1011 (p. 36).
sadores, p. 33). 246 Ibidem.

186 187
O Todo-Aberto Parte 5 - A Alma Aberta: Emoção, Inteligência, Intuição e Liberdade

mente partes do nosso ser (o conflito e a divisão se encontram present es


fa_ mente, todo um interesse e m tratar os afetos segundo as suas diferenças de
zendo com que a ação seja sempre precedida da impressão de que é pos
S!Vel natureza e, com mais insistência, distinguir no âmbito destes as emoções su-
_ . . .
uma outra açao d1stmta da que foi escolhida). Nesse nível, nossas ações sã perficiais das emoções profundas. A ideia de duração e a esplêndida teoria
sempre compreendidas como contingentes, e a ideia de escolha se associa; da multiplicidade qualitativa e virtual forneciam as condições para apresen-
certeza de que poderíamos agir de uma outra maneira. tação de um presente vivo ocupado por variações afetivas que atestavam u m
Já na emoção criadora - que antecede a representação sendo alocada (Jldice de indeterminação maior ou menor segundo a amplitude da vida es-
como uma emoção originária nascida de uma criação - há um revolver das piritual. Daí, toda uma preocupação preliminar acerca dos afetos se impunha
profundezas do nosso ser, que impulsiona o espírito sempre para frente247 corno marca distintiva dos dados imediatos da consciência.
Nela somos compelidos à ação como se não tivéssemos mais escolha. Por ela: Já em Matéria e Memória, a diferença qualitativa do afeto passa a supor
sentimos um estremecimento afetivo tão intenso que torna a nossa ação ne- uma diferença intensiva na gênese do mesmo. Bergson já admite um movi-
cessária, fazendo o espírito pender por inteiro na direção do seu apelo. Como mento intensivo ou vibratório e concebe o afeto como algo distinto das repre-
devemos extrair dessa distinção o fundamental da abertu q.de alma? Na di- sentações objetais. Nesta nova explicação, o aparelho sensório-motor dava
ferença de natureza da emoção criadora não devemos ressaltar o papel que 0 ao autor condições de situar o afeto no intervalo existente entre a percepção
afeto vem a desempenhar na obra grandiosa de Bergson? e a ação, assinalando a sua impureza, na medida e m que participava dos dois
Talvez o prosseguimento rigoroso dessa distinção exija uma explica- aspectos da subjetividade. O afeto inseria-se no intervalo sem preenchê-lo,
ção pormenorizada do afeto deduzida da filosofia bergsoniana. Podemos di- sendo a um -só tempo movimento qualitativo que media as complexidades
zer, independente da distinção acima estabelecida, que a vontade humana entre a percepção e a ação - assinalando à espécie ameaças e promessas e m
é sempre compelida à ação por um determinado estado afetivo. Ou melhor, relação ao mundo exterior - , e estremecimento, enquanto agitação da pró-
é sempre a força do afeto que determina o movimento do nosso querer. Po- pria alma (coincidência entre o ser afetado e o objeto afetante no exemplo
rém, na instância dos interesses práticos, o afeto é sempre associado a uma extremo da dor). Nessa circunstância, tendo já estabelecido movimentos vi-
representação objetal. Como se a representação investida por uma tonalida- bratórios na esfera da matéria - com a ideia singular de que tais movimentos
de afetiva condicionasse a atividade do nosso querer. Ora, podemos afirmar poderiam ser sentidos colocando-nos em contato imediato com os movimen-
que na vida cotidiana é assim que o processo se deflagra, assinalando que a tos do mundo físico - , Bergson propôs o afeto de simpatia como a condição
análise de tal processo já supõe condicionamentos tanto individuais, quanto de abertura para o ser humano.
sociais. Assim, a ligação do afeto com as representações ocorre pela via de Assim, é na análise dos estremecimentos que a intensidade dos afetos
uma conjunção constante proporcionada por hábitos contraídos na esfera Passa a ter valor. Tudo se passa como se pudéssemos na avaliação do teor da
cotidiana. Os afetos apresentam-se - nesse âmbito - como sentimentos vivi- emoção, na profundidade da mesma, no grau de estremecimento que ela pro-
dos. Orientam-se sempre e m função dos interesses práticos, marcando para duz, encontrar a gênese da intuição que nos torna simpáticos ao todo, dando
os indivíduos as promessas e os perigos que o mundo exterior lhes impõe. \'alidade a uma abertura temporal.
Entretanto, seguindo as démarches da obra bergsoniana, percebemos Ora, é em As Duas Fontes da Moral e da Religião que Bergson encontra,
corn justa propriedade, a importância do afeto na sua filosofia da liberdade:
que desde os Ensaios sobre os Dados Imediatos da Consciência, Bergson já
se empenhava no empreendimento de singularizar os afetos. Havia, nítida- trata-se de uma potência criadora primeira e m relação às representações ha-
bituais. Como os afetos na experiência se apresentam como mistos impuros
inseparáveis de representações objetais, faz-se necessário um esforço para
ver
247 Sobre a distinção dos dois tipos de emoções e da natureza da emoção criadora
Pensarmos a pura potência afetiva como geradora de criação: é aí que o dis-
H. Bergson, op. cit., pp. 1006-1018 (pp. 32-44).

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O Todo-Aberto Parte 5 - A Alma Aberta: Emoção, Inteligência, Intuição e Liberdade

tinguimos como emoção criadora. Só então é que podemos conferir a ela ginal gerador dessa emoção. A valorização do criador reside precisamen-
0
primado de gênese da intuição. Trata-se, exatamente, de uma emoção te no teor de indeterminação que se insere na obra como componente
. . que
ativa o 1mpu 1so v1ta
. 1, d e fl agra um movimento espiritual ao se inserir no in- afetivo. Quando Bergson, por exemplo, fala dos artistas, diz que o mais
tervalo de indeterminação existente entre os interesses da inteligência e notável nas suas atividades consiste na introdução de emoções por eles
as
obrigações morais. criadas, que se apresentam como expressão de um arrebatamento. Claro
Diremos então que as emoções superficiais tais como amor à famíli que no trabalho de composição de uma obra de arte, sensações elemen-
a,
amor à pátria, amor aos amigos, são emoções suaves inseparáveis de hábitos tares se encontram presentes, porém a novidade apresentada pelo artista
e obrigações. Porém, a emoção pura, experimentada como arrebatamento do reside no fato dele ser capaz de juntar à essas sensações uma emoção in-
espírito, coloca a alma em uma disposição de movimento, cujo efeito não é teiramente nova. Seus trabalhos consistem, sobretudo, e m criar harmoni-
mais a resolução de um interesse, mas antes, a execução de uma atividade zações com sensações elementares num timbre "cuja nota fundamental"
criadora. Bergson então pode dizer: "criação significa antes de tudo emo- nos é dada mediante verdadeira criação. Bergson ilustra sua demonstra-
ção 248". Nessa instância, o processo descrito anteriormente se inverte: não ção ao falar sobre o drama teatral:
partimos mais de representações dadas às emoções q u ê a elas se atrelam;
partimos sim de uma emoção do espírito originária que condiciona a abertu- "O drama teatral que não passa de peça literária poderá abalar
ra do todo possibilitando a criação no furo das representações. nossos nervos e suscitar uma emoção do primeiro gênero,
Objetar-se-á dizendo que evocar uma emoção que não se apegue a intensa, sem dúvida, mas banal, colhida entre as que sentimos
nenhum objeto do mundo sensível é supô-la como originária de uma nada. comumente na vida. Mas a emoção provocada em nós por uma
Mas além disso ser um falso problema - pois o nada como vimos é insepará- grande obra dramática é de natureza inteiramente diferente:
vel da ilusão da negatividade - , o raciocínio só ganha validade se o primado única em seu gênero, ela saiu da alma do poeta, e apenas lá,
for dado ao âmbito representativo. No arrebatamento proporcionado pela antes de estremecer a nossa; dela é que saiu a obra, porque a
emoção aqui descrita, a prioridade recai para a comoção pelo todo que se ela é que o autor se referia durante a composição da obra. Era
expressa emotivamente na obra criada. Aqui, emoção e criação se identificam apenas uma exigência de criação, mas exigência determinada,
como expressão do puro impulso criador da vida. O que Bergson, na verdade, que foi satisfeita pela obra logo que realizada 249".
demonstra é que a emoção criadora antes de ser um estado afetivo associado
a representações objetais, é um estremecimento afetivo do todo que mobiliza Enfim, podemos dizer que a emoção que se encontra na gênese da
abertura da alma difere-se das demais em natureza e em intensidade: en-
o ser humano numa tarefa criadora. Uma embriaguez da vontade deflagrada
por uma autoafetação do espírito, do impulso vital expressando-se em uma quanto estas pertencem à esfera do vivido, aquela nos introduz no domínio
da criação. Sendo extraída do espírito, é puro afeto pelo todo, pura expressão
emoção adequada à totalidade aberta. Sendo amor, o é pela vida, sendo ale-
gria, o é pelo todo. Trata-se de um amor pela humanidade como um todo do todo que se evidencia na gênese do ato de criação. Essa é a razão pela qual
condizente com a abertura que comove a alma, colocando-a em movimento Bergson vai sustentar que a emoção criadora não se encontra vinculada a
de pura alegria. Em suma, é amor e alegria do impulso liberto. nenhuma espécie de representação objetal. Ela é a emoção do divino em nós,
se entendermos por divindade esse impulso criador que é a própria vida; é
Esse é o motivo pelo qual Bergson evoca - quando nos fala da moral
a emoção da totalidade em nós, se entendermos por totalidade a vida como
aberta - a presença de homens notáveis, capazes de atingir o impulso ori-

248 H. Bergson, Les deux sources de la mora/e et de la religion, in: Oeuvres, p. 1013 (P· 37)· 249 H. Bergson, op. cit., p. 1014 (p. 39).

190 191
O Todo-Aberto

um movimento de diferenciação temporal; é, em suma, a emoção da criaçã_0


enquanto expressão da vida como movimento gerador da diversidade.
Por outro lado, a emoção é também criadora porque expressa a cente.
lha de criação na obra criada; dando aos espectadores, condições de abertura
para que, enfim, ela possa se propagar. Se o criador ganha importância

II
na
produção do dinamismo das nossas sociedades, se ele é, por excelência, 0
que
encarna com perfeição a moralidade aberta, isto se deve ao fato de ele poder
com a sua obra nos introduzir no fluxo emotivo da criação. Enfim, podemos
esperar que uma sociedade aberta se desenhe, assegurando o indispensável
para que o movimento de diferenciação do impulso alcance êxito no propósi-
Emoção, Inteligência e Intuição
to de continuidade de criação.

ma vez estabelecida a diferença de natureza da emoção


criadora, torna-se possível compreender a gênese da intuição
no pensamento e a maneira como a inteligência se converte à
.:- intuição.
Vimos, no correr da análise, que no âmbito da atenção à vida, ali onde
o espírito se esquece de si, o vivente, adaptado ao cotidiano, tendia a uma
limitação. A vida espiritual via-se limitada graças às exigências utilitárias do
organismo; e que em tal situação a inteligência assumia a função de geren-
ciar as ações utilitárias. Assim, a inteligência quando laborava, o fazia sem-
pre com o intuito de prover aos nossos interesses um grau de satisfação am-
pliado. Mobilizava-se no sentido de proporcionar à nossa vida bem-estar e
prazer. Para tanto, discernia, generalizava, antecipava e até mesmo fabricava
artefatos, oferecendo garantias de um maior poder do vivo sobre os obstácu-
los materiais. Ou seja, as atividades da inteligência atendiam as exigências de
segurança e conforto perseguidos como lema da vida utilitária.
Ora, se assinalávamos na ocasião a incapacidade da inteligência de
compreender a natureza do espírito, assim como, por extensão, a natureza
do tempo, pautávamos nossa tese na descrição da sua função utilitária. Vin-
culando-a aos interesses práticos, mostrávamos que todas as suas funções
Pautavam-se no esforço de compreensão do universo material. Dessa forma,
seu labor, enquanto instrumento de cálculo, consistia em dominar esque-
lllaticamente a matéria onde o vivo necessitava agir, submetendo-a a repre-
sentações obtidas pelas suas associações de ideias. Como tais operações de-
192 193
O Todo-Aberto Parte 5 - A Alma Aberta: Emoção, Inteligência, Intuição e Liberdade

preendiam-se do fato de que a inteligência não foi inventada pela vida para não acontece assim com toda a obra, por mais imperfeita que
e pecular; tal constatação fez Bergson colocar-se na via da intuição. Alé ni seja, em que entre uma parte de criação? Quem se empenhe
disso, ao ter descoberto que com a intuição era possível corrigir as ilusões d na composição literária terá verificado a diferença entre
inteligência e converter esta àquela, Bergson foi instado à tarefa de construi: a inteligência entregue a si mesma e aquela que consome
seu método, lançando para agora o problema que faltava explicitar com duas com o seu fogo a emoção original e única, nascida de uma
questões interligadas: como nasce a experiência da intuição? E como a inte(i. coincidência entre o autor e o seu assunto, isto é, de uma
gência pode de fato a ela se converter? intuição. No primeiro caso o espírito labora a frio, combinando
Sendo assim, nosso problema atual consiste em entendermos a gênese ideias entre si, há muito vazadas em palavras, que a sociedade
da intuição como experiência ampliada, tornando-se necessário pensarmos a lhe entrega em estado sólido. No segundo, parece que os
ocasião que permita a conversão da inteligência ao campo intuitivo. E é esta materiais fornecidos pela inteligência entram previamente em
ocasião que nos remete novamente à experiência da emoção. fusão, e que se solidificam em seguida de novo em ideias agora
.. - nutridas pelo próprio espírito 251"•
A inteligência e a emoção
Aqui o esforço da inteligência consiste em desdobrar por intermédio
Quando a inteligência se vê mobilizada pela emoção criadora, parece
de ideias e palavras o assunto nascido da emoção criadora. É pela emoção que
que o curso natural de sua atividade se mostra contrariado. Não mais calcula
a intuição adx.ém ao pensamento. É por ela que o espírito apreende imedia-
sobre o já dado, como tampouco busca encontrar soluções para as dificulda-
tamente a si mesmo. Com ela, reavemos o impulso vital e imergimos na vir-
des prementes da vida cotidiana. Ela adentra no domínio da criação. Se agora
tualidade da vida que a inteligência, por exigência prática, mantinha fechada
ela coloca problemas, o faz movida pela forca expressiva da emoção. Lança-se
e inconsciente. É desse processo que emergem ideias novas, isto é, ideias nas-
em um movimento de labor que resulta em criações igualmente expressi-
cidas dessa própria virtualidade vital e ativa, pois é daí que o impulso alcança
vas da emoção originária que a impulsionou. Bergson diz que é sempre pela
condições de ultrapassar as barreiras impostas pela vida utilitária, fazendo
emoção que a inteligência se torna veículo da criação. É a emoção
valer o seu alento criador. Tornamo-nos um com o impulso, tornamo-nos, a
um só tempo, seres intuitivos, na medida em que acessamos o impulso gera-
"que impele a inteligência para frente, apesar dos obstáculos.
dor da criação, e criadores, na medida em que, como transeuntes da emoção
Ela sobretudo é que vivifica, ou antes, que vitaliza os elementos
que nos arrasta, colocamo-nos na exigência de expressá-la criativamente por
intelectuais com os quais fará corpo: junta a todo momento o que
intermédio de uma obra. Dá-se então a conversão: pela emoção, a intuição se
se poderá organizar com eles, e obtém finalmente do enunciado
torna experiência ampliada, ao mesmo tempo em que a inteligência se con-
do problema que ele desabroche em solução 25º ".
verte a ela. Nessa conversão, o egoísmo da inteligência é atenuado pelo im-
E em seguida acrescenta: pulso da vida que se torna premente.

"Que não seria isso na literatura e na arte! A obra de gênio no A conversão da inteligência à intuição
mais das vezes origina-se de uma emoção única em seu gênero, Bergson, desde o momento em que apresenta a intuição como modo
de apreensão imediata do espírito, faz questão de assinalar um esforço indis-
que se acreditaria inexprimível e que quis exprimir-se. Mas

250 Idem, p. 1014 (p. 38). 251 Ibidem.

194 195
O Todo-Aberto Parte 5 - A Alma Aberta: Emoção, Inteligência, Intuição e Liberdade

pensável para que esta venha a se tornar experiência ampliada, capaz de n Assim, podemos afirmar que na gênese de todo e qualquer esforço de
os
colocar no âmbito da precisão. Tal exigência faz-se premente na medida em criação há sempre emoção; podendo concluir que é pela força da emoção
que detecta, no seio da inteligência, ilusões que esta engendra quando decide que a intuição toma a dianteira em relação à inteligência. É da intuição que
especular. Seu propósito, como vimos, é reprimir tais ilusões, dando à inteli- advêm as ideias novas, mas estas, por sua vez, só encontram condição favorá-
gência condições de colocar problemas em função da duração. vel na experiência da emoção. Bergson afirma que as ideias novas, nascidas
Ocorre, no entanto, ser esse esforço inseparável de um movimento que de uma intuição, surgem no espírito por força de um arrebatamento, como
contraria toda a tendência imposta à inteligência por nossa vida utilitária. Ta] se a emoção as fizesse surgir obscuras, coincidentes com o autor que as intui,
movimento coincide com uma violência intensiva que em nada se confunde imediatas na unicidade de um acontecimento, para só depois irem se desdo-
com as violências sensório-motrizes geradas no âmbito dos nossos interes- brando em clareza e distinção. A inteligência é que se responsabilizará por
ses práticos. São, na realidade, estremecimentos afetivos ocasionados por tal desdobramento. Bergson escreve, aludindo à expressão dessas ideias no
micromovimentos intensos gerados no âmbito de uma experiência singular. âmbito literário, que
É que nossa atenção - por sermos habitualmente séres orientados
"se essas ... acham palavras preexistentes para as exprimir, isto
para ações utilitárias - volta-se ordinariamente para o mundo físico, ocasio-
constitui para cada uma o efeito da boa sorte inesperada; e, na
nando uma espécie de alienação do espírito. Isso porque a inteligência tra-
verdade, sempre foi preciso ajudar o acaso, e forçar o sentido da
balha nesse vetor no comando das necessidades vitais. Com o predomínio
lpalavra para que se modelasse ao pensamento. O esforço agora
dos interesses orgânicos e a assertividade puramente igualmente orgânica
é doloroso, e o resultado aleatório. Mas é então somente que
da inteligência, a intuição vê-se relegada à esfera da experiência confusa do
o espírito se sente ou se crê criador. Ele já não parte de uma
vivido. Sendo assim, cremos que a intenção bergsoniana de elaboração meto-
multiplicidade de elementos existentes para culminar em uma
dológica da intuição só encontre a condição efetiva da sua efetuação na oca-
unidade compósita em que haja novo arranjo do antigo. Ele foi
sião proporcionada pela emoção. Condição genética, convém frisar; ocasião
arrebatado de repente a algo que parece ao mesmo tempo único
empírica que faz nascer a intuição na inteligência e que converte esta àque-
e peculiar, que procurará em seguida exibir-se bem ou mal em
la. É a violência engendrada pela emoção criadora que fornece à intuição a noções múltiplas e vulgares, dadas de antemão em palavras 252".
condição de converter-se em certeza imediata. Ou seja, a emoção criadora
é a condição da afecção do espírito por si, ou melhor, a afecção do espírito
pelo todo. Ela produz, naquele que a experimenta, uma coincidência entre
o experimentado e o experimentador; como se nós, nessa experimentação,
reencontrássemos internamente o todo do movimento diferenciador.
Ora, é aí que a intuição ganha força; de embrionária, torna-se domi-
nante; de confusa, torna-se precisa; de vivida, expressiva. A força intuitiva
evidencia-se com tamanha intensidade que é capaz de impregnar a inteli-
gência, penetrando-a de tal maneira a ponto de forçá-la a uma conversão. É
a emoção que viabiliza o esforço, dando margem a um trabalho criador da
própria inteligência, agora consumida no labor de expressar materialmente
as ideias nascidas da intuição. 252 H. Bergson, op. cit., p. 1014 (p. 39).

196 197
Parte 5 - A Alma Aberta: Emoção, Inteligência, Intuição e Liberdade

Como não reconhecer nessa instância a teoria da liberdade elabora-


da por Bergson? Desde os Ensaios ele defende a ideia de que um ato livre é
aquele que supõe a totalidade do nosso ser. "Com efeito, é da alma int:ira que
emana a decisão livre" 254, e que se mostra tão mais livre quanto ma10r for o

III
seu teor afirmativo. Só que Bergson conclui que atos assim compreendidos
são, por excelência, raros. Pois no senso comum dos nossos atos, a vontade
nunca se encontra impregnada da totalidade da nossa natureza. E já sabe-
mos a razão: quando determinados por forças do todo da obrigação, não raro
Emoção e Vontade: hesitamos, isto é, opomos resistências que nos colocam na situação de achar
que poderíamos, ou mesmo deveríamos, agir diferentemente. Acresce te-se
A Liberdade e a Alegria da Criação a isto o fato da vontade, nessa instância, encontrar-se sempre subordmada
a interesses individuais ou sociais, e nesse caso, ser sempre impelida à ação
por exigência de pressões oriundas da esfera das necessidades. Aí ela encon-

A
tra sempre obstáculos, uma vez que a vida espiritual se deixa limitar. Fica cla-
o dizermos que a alma preenchida de emoção é - a um só tempo -
ra a impossibilidade do ato produzir-se em conformidade com a totalidade
intuitiva e criadora, não tocamos no essencial da sua natureza aber-
do nosso er fundamental. Ou seja, na regência da via adaptativa, as decisões
ta? Resta, enfim, enunciá-la livre.
do espírito se limitariam a extrair do mundo material o indispensável para
Sabemos da distinção que Bergson estabelece em torno da vontade
a obtenção do prazer e do bem-estar. Aliás, prazer e bem-estar - ambos de
quando a circunscreve no âmbito das duas morais. Na fechada, ela é sempre
natureza adaptativa - balizam a nossa vida cotidiana, regendo, de certa ma-
impelida ao ato por forças de emoções resultantes das obrigações sociais - é
neira, a nossa vida biopsíquica. É por isto que Bergson diz que aquele que
verdade que interesses egoístas se apresentam estabelecendo no indivíduo
pratica a moral da comunidade, isto é, a moral fechada "experimenta esse
conflitos, mas no que tange ao essencial são sempre interesses de ordem social,
sentimento de bem-estar comum ao indivíduo e à sociedade, que manifesta
isto é, hábitos sociais que prevalecem-; porém, na aberta, a vontade é impelida
as interferências das resistências materiais umas com as outras" 255, e que co-
ao ato por virtude de uma inclinação da qual o ser desejante não opõe mais re-
loca o indivíduo, no seio da comunidade, girando em círculo, pois "prazer e
sistência. É como se o nosso desejo se visse arrebatado na instância emotiva, a .
bem-estar são com efeito parada e marca-passo 256".
ponto de não mais hesitar, melhor, de não querer mais hesitar. Pois dado o teor
Ora, sendo assim o ato verdadeiramente livre, isto é, aquele que
da emoção que tinge com a sua tonalidade a alma aberta, o querer faz-se um
dimana da totalidade do nosso ser, difere em natureza dos atos ordinários
com ela, mostrando-se inteiro no ato que deflagra. Bergson escreve:
encontráveis na banalidade cotidiana. Só somos livres
"se a atmosfera da emoção estiver presente, se eu a tiver
"quando os nossos atos emanam de toda a nossa
respirado, se a emoção me penetrar, agirei de acordo com ela,
personalidade, quando a exprimem, quando com ela têm a
sacudido por ela. Não coagido ou obrigado, mas em virtude de
uma inclinação à qual eu não quereria resistir" 253.
254 H. Bergson, Essai sur /es données immédiates de la conscience, in: Oeuvres, p. 110.
255 H. Bergson, Les deux sources de la mora/e et de la religion, in: Oeuvres, p. 1024 (p.48).
253 Idem, p. 1015 (p. 40). 256 Ibidem.
198 199
O Todo-Aberto Parte 5 - A Alma Aberta: Emoção, Inteligência, Intuição e Liberdade

indefinível semelhança que por vezes se encontra entre a indispensável para a consolidação de um modo de vida. Modo de vida
obra e o artista 257". este inaugurado por uma alegria de pleno gozo.

Ou, como diz Jankélevitch


O gozo enquanto alegria da criação
Seguindo as considerações anteriores sobre as duas morais, po-
"a liberdade se desprende do passado total, ela expressa uma demos enfim dizer que na moralidade aberta a inteligência impregnada
espécie de necessidade superior - a determinação do eu pelo de emoção dilata-se, assumindo um desenvolvimento inesperado, uma
eu. Nela, estou todo inteiro no meu ato, e todo inteiro ainda nos vez convertida à intuição. Assim expressando-se nos feitos de homens
motivos que o causa. O ato livre, que emana da personalidade especiais, cria condições de abertura para a totalidade da humanidade.
total, é a obra não mais de uma alma dividida, mais de uma É por intermédio do exemplo que eles nos proporcionam, assim como
alma inteira 258". da obra criada que expressa igualmente a emoção originária, que se
torna possível para a vontade expressar o impulso da vida que atra-
Sendo assim, devemos supor que a liberdade só ucontre ocasião
vessa a matéria, obtendo desta, para o futuro da espécie, "promessas
de se expressar quando o movimento adaptativo da moralidade fecha- das quais não podia sequer duvidar quando a espécie se constituía 259".
da seja contrariado. É a abertura da alma que se encontra em questão, Ao reencontrarmos o impulso reencontramos a natura naturante como
pois a totalidade do nosso ser aqui evocada não é outra coisa senão o condição da natura naturada. Nessa instância, não é mais o prazer e o
reencontro com o impulso vital proporcionado pela emoção. Assim, a bem-estar que balizam a nossa vida. Prazer e bem-estar, como vimos,
raridade do ato se deve à ocasião em que a emoção criadora faz-se pre- dizem respeito à alma fechada. É esta que experimenta esse sentimento
sente no nosso espírito. de bem-estar quando cumpre adequadamente com as exigências adap-
É como se uma mudança de Tônus vital se verificasse em nosso ser. tativas da vida comunitária.
O ato livre difere-se dos demais por se mostrar não mais utilitário, porém
expressivo. Entramos no domínio da criação: o ato torna-se expressivo "Mas goza plenamente a alma que se abre, e aos olhos da
por força da emoção criadora; e nesse devir expressa a totalidade aberta qual os obstáculos materiais ruem. Prazer e bem-estar são
em nós. E a emoção criadora, por sua vez, faz-se entusiasmo: entusiasmo alguma coisa; o gozo é muito mais, porque não estavam
gerador de um marchar para frente; de um abrir-se para o todo, que evi- contidos neles, ao passo que eles se encontram virtualmente
dencia a irreversibilidade e a novidade da própria criação. no gozo. Prazer e bem-estar são com efeito parada e marca-
Resta dizer que a abertura de alma ocasionada pela emoção intro- passo, enquanto que o gozo é marcha pra frente 26º".
duz no sujeito uma mudança qualitativa no modo de viver. A alma aberta
Esse gozo é plena alegria e, enquanto tal, só é vivenciado quando
define assim um modo de vida expressivo, onde nele as ações livres tor-
nos voltamos para a natura naturante. É que a alegria de pleno gozo é
nam-se necessárias. Trata-se de um modo de vida aberto, configurado
sempre gozo do Todo. Quando Bergson diz que o gozo contém virtual-
no vetor da experiência do todo exercida pela emoção criadora. Nesse
mente o prazer e o bem-estar, não afirma outra coisa senão a anteriori-
aspecto, a raridade do ato - aqui exposto na comparação preliminar com
dade do impulso em relação à coisa criada. Entretanto, quando a coisa
os atos cotidianos do senso comum - pode se configurar como a ocasião

257 H. Bergson, Essai sur /es données immédiates de la conscience, in: Oeuvres, p. 113- 259 H. Bergson, Les deux sources de la mora/e et de la religion, in: Oeuvres, p. 1024 (p. 48).
258 V. Jankélevitch, Henri Bergson, p. 78. 260 Ibidem.

200 201
O Todo-Aberto

criada reencontra-se com o impulso então ela se alegra, pois goza ex-
pressando a latitude de criação que atravessa o universo. É aí que expe-
rimentamos o todo; é aí que nos tornamos um todo. Cidadãos da vida
cidadãos do tempo; imanentes ao Todo-Aberto, que não é outra cois
senão novidade e criação.

Conclusão:
A Experiência do Aberto

.. - ideia de uma totalidade aberta, coextensiva ao devir do universo,


apareceu, no bergsonismo, no início da Evolução Criadora. Essa
ideia surgiu conjugada, no nosso entendimento, com uma outra
que perpassou todo o livro, assim como toda a obra bergsoniana,
que foi a ideia de criação. É que Bergson quando pensou a totalidade, o fez por
intermédio da ideia de duração, dizendo que o tempo não era a condição da
degradação, como pregavam os defensores da eternidade, mas sim a condição
do novo. "Ou o tempo é criação ou ele nada é absolutamente". Ora, com tal
hipótese confirmada o todo foi intuído como aberto, garantindo na verdade
de um universo durável a condição de uma abertura para a inscrição do novo.
Com tal procedimento Bergson estimou colocar a metafísica ao lado da
ciência, mostrando a sua possibilidade através de um pensamento filosófico
ajustado pelo rigor metodológico da intuição, Ou seja, ele visou dar à filosofia
uma metafísica correlata à demanda da ciência, criando assim a via espiritual
de apreensão do absoluto. Ao lado da totalidade visada pela ciência - com
o rigor metodológico que a investigação do mundo físico indubitavelmente
alcançou - Bergson postulou uma via de especulação da duração, buscando o
pensamento rigoroso do espírito e da relação deste com o Todo.
Ao descrevermos ao longo do nosso estudo tal procedimento fizemos
um inventário geral das condições do aberto explicitando os caracteres dessa
forma de pensar a duração. Partimos de uma certa insuficiência da inteligência
e mostramos como, com ela, toda uma filosofia metafísica foi erigida colocan-
do à margem a experiência do tempo real. Sendo assim, a insuficiência posta
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O Todo-Aberto Conclusão: A Experiência do Aberto

em análise resultou na crítica dos sistemas filosóficos que erigiam a ideia de uma forma de pensar, uma maneira de viver, para valorizar, através de uma
uma totalidade dada e que advogavam o conhecimento desse todo com repre- ocasião social, a constituição de uma nova forma de vida instaurada pelo dis-
sentações universais concebidas como predicamentos do ser (categorias). Em positivo de abertura da alma. Nesse contexto, a conversão da inteligência à
Bergson, tal procedimento foi criticado e denunciado por uma intuição que intuição ocorreu na determinação prática de uma maneira ativa e aberta de
mostrou, a partir da experiência imediata, como tais sistemas excluíam a dura- viver. Sendo assim, além da maneira adaptativa, estagnada e fechada que nós
ção real das suas respectivas considerações. Eles partiam da premissa de que denunciamos, postulamos a existência de um modo de vida aberto produzin-
o todo pudesse ser representado e acabavam concebendo o real segundo uma do-se com uma sociedade aberta e dinâmica.
lógica representativa espacial. Além disso, Bergson tornou também evidente Ora, não encontramos aqui uma nova maneira de abordar o proble-
os preconceitos que sustentaram tal concepção metafísica, mostrando como ma do pensamento na metafísica bergsoniana? Podemos ou não entrelaçá-lo
eles se originavam na esfera de uma inteligência que operava com postulados com a consecução teorizada do Todo-Aberto? Não estaria ele implicado na
extraídos dos interesses práticos condizentes com o senso comum. Com tal de- consecução da nossa análise? Nesse caso como seria possível analisar o seu
núncia, a possibilidade de conversão da inteligência à intuição foi problema- desdobramento? Através da relação ontológica dos seres vivos com o abso-
tizada, e, aos poucos, os meios para a fundamentação de uma nova teoria do luto e da intuição do absoluto pela ocasião de um estremecimento afetivo.
absoluto foi se edificando. Com isso, não só uma nova metafísica foi construída, A relação estabelecida entre os seres vivos e o Aberto foi o vetor tra-
como foi elaborada também a metodologia que daria ao novo procedimento çado pelo pensamento bergsoniano. É que, apesar de inicialmente ter pen-
filosófico o seu devido rigor. Sendo verdadeira a ideia de que a inteligência é sado a D.uração como idêntica à consciência, em um estudo mais aprofun-
a forma de pensar da condição humana, a conversão da inteligência à intuição dado Bergson foi levado a afirmar que essa Duração só existia abrindo-se
foi assimilada como uma ultrapassagem desta condição em proveito de uma para um Todo, coincidindo com a abertura de um Todo-Aberto. Assim, foi
afirmação maior da vida, onde nela pusemos a ênfase em uma experiência do possível de direito relacionar a duração dos seres vivos com a duração da
aberto inseparável de uma outra maneira de pensar. Desta forma, mostramos totalidade do universo. Se o vivente é um todo, só o é na medida em que é
como a construção dessa filosofia se fez na aventura de um pensamento plas- tão aberto quanto o universo.
mado na contramão da tendência habitual regida pelos interesses práticos. Um monismo temporal se impôs. Sendo o seu desdobramento execu-
Assim, da metafísica do Todo-Aberto à consolidação do método, deste à tado na análise empreendida da subjetividade humana pelo autor. Desde as
hipótese de uma alienação dos viventes como constatação do fechamento resul- teses de Matéria e Memória, Bergson havia dado à duração um estatuto real.
tante de um apego deles aos seus meios; desta à ultrapassagem do fechamento Primeiro por tê-la estendida à dimensão material; segundo, por tê-la conce-
pela possibilidade de uma tomada de consciência do Todo-Aberto, fomos en- bida como coextensiva à memória, que, no decorrer da análise, foi apresenta-
saiando - ao longo das cinco partes - os aspectos de uma outra forma de pensar da na sua dimensão ontológica. O ser do passado, o passado puro, forçou-nos
construída na conversão da inteligência à experiência imediata da intuição. na direção de uma memória ontológica apresentada como coexistência vir-
Curiosamente, o empreendimento crítico que fizemos a um certo pen- tual; e com tais análises desembocamos na tese de diversos graus de dura-
samento foi igualmente atribuído a um modo de vida estagnado e reduzido ções coexistindo virtualmente no universo.
às circunstâncias adaptativas e funcionais. Assim, inscrevemos nesse modo Ora, foi da coexistência virtual do passado, da compreensão do ser do
de vida a forma de pensar constituída no âmbito dos interesses práticos e passado, que Bergson alcançou a possibilidade de superação de seus pró-
propusemos, com ela, os alicerces orgânicos das suas operações. Além disso, prios dualismos, fundando essa superação na ideia de um tempo único e
consolidamos essa forma de viver no âmbito de uma sociedade fechada por impessoal constituído por graus de coexistências virtuais de durações. Uma
uma moral e por uma religião, igualmente, fechadas. Ou seja, denunciamos totalidade foi pensada de uma gigantesca memória cósmica concebida com
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O Todo-Aberto Conclusão: A Experiência do Aberto

graus de diferenças coexistentes constituídos por uma multiplicidade quali- em geral era vista como um movimento de criação, porém as manifestações
tativa e virtual. particulares da vida só aceitavam essa mobilidade com pesar, pois no plano
Na consecução desse monismo a matéria foi posta como o grau mais atual dos seres vivos, a adaptação, pensada como êxito do impulso criador,
distenso da duração, enquanto o ser vivo foi concebido como o grau mais criava uma espécie de fechamento, e encerrava o vivente em uma repetição
intenso, isto é, o grau mais contraído dela. Assim, uma passagem das coexis- cíclica. Como se a vida se deixasse fascinar pelas formas que havia produzido.
tências virtuais para o plano atual dos seres vivos e a sua respectiva diferença Ao termos visto que a retomada do movimento de diferenciação do
em relação à matéria inanimada se deu através de uma atualização divergen- impulso só teve condições efetivas na via humana, impusemos na nossa aná-
te, onde contração e distensão passaram a corresponder à primeira dualida- lise a configuração de uma outra maneira de pensar que desse consistência
de encontrável no plano atual. Desta confirmamos a ideia de que a duração a uma nova maneira de viver consolidada por uma alma aberta. Enfim, a fi-
se afirmava de todos os seres, que todos eles participavam da vida de um losofia prática pôde emergir com o problema ético que ensejou o final da
todo, de um tempo Uno e virtual; sendo a consciência de fato deste todo um pesquisa: como na ultrapassagem da condição humana o espírito pôde alcan-
problema central para o pensamento do ser humano. ..,- çar a consciência do todo através da criação de uma nova forma de pensar?
Ao estabelecer a fórmula monismo=pluralismo, Bergson fez do conceito Confirmando que essa nova forma só poderia ser postulada na conversão da
de multiplicidade a chave desta equação e instaurou as condições metafísicas inteligência à intuição, restaria entender qual a condição da gênese da intui-
do Todo-Aberto. Para ele, O Uno Todo virtual - a gigantesca memória cósmica ção na inteligência na esfera prática.
posta como função do futuro - não excluía nem contradizia a teoria das mul- Percebémos que o nosso problema se configurou na progressão existen-
tiplicidades. O tempo real, uno, virtual era constituído por uma multiplicidade te entre os conceitos de duração, memória e elã vital. Com ela problematizamos
qualitativa e virtual, onde o múltiplo só existia em potência, não tendo a deter- a relação tempo e subjetividade em dois aspectos: um metodológico e o outro
minação extrínseca da matéria. Como todo o sistema se pautava na asserção de ético. O primeiro visando a compreensão adequada da realidade enquanto de-
que tudo durava, podíamos afirmar que a multiplicidade se configurava como vir universal; o segundo mostrando que tal compreensão implicava em uma
o estofo da realidade movente, evidenciando-se em ritmos diversos consoante conversão da via adaptativa - onde a vida se via alienada - ao movimento de
o grau de diferenciação e atualização desse virtual mnemônico. diferenciação, que permitia ao impulso tomar consciência do todo. E as duas,
Além disso, vimos no desdobramento das atualizações-diferenciações agora, combinando-se para o traçado de uma nova imagem do pensamento.
uma filosofia da vida ganhar terreno na obra bergsoniana. Em A Evolução Repudiando os cânones de uma velha metafísica que assegurava ao
Criadora, ao ter concebido o impulso vital como movimento de diferenciação sujeito uma suposta identidade - dando ao tempo o estatuto de um mero
em si e por si, Bergson propôs que concebêssemos o movimento evolutivo acidente - Bergson foi levado a inaugurar uma nova metafísica, cuja consecu-
da vida como um processo que ocorria em função da atualização do elã vital ção o levou também à retomada da questão o que significa pensar? Ou seja, o
- que é uno e virtual - no plano material. Com isso, prolongou a tese das coe- que advém como pensar quando estamos submetidos à ação direta da nossa
xistências virtuais do livro anterior ao ter concebido a vida como atualização sensibilidade sobre o nosso querer?
contraente dessas durações coexistentes no virtual. Assim, é coerente concluir dizendo que ao introduzir a novidade e a
Ao ter verificado pela diversidade dos seres vivos atualidades diver- criação como temas de seu pensamento metafísico, Bergson rompeu com
gentes e complementares que no virtual coexistiam, Bergson foi levado à uma velha imagem de um pensamento que se ancorava no ideal de um conhe-
ideia de que, na atualização de uma via específica ou genérica da vida, o vi- cimento fundado na crença em uma totalidade fechada, que podia ser repre-
vente perdia contato com a totalidade virtual. Evidenciou-se assim a despro- sentada e desdobrada por um esforço voluntário e espontâneo de um sujeito.
porção existente entre o trabalho do impulso e o resultado manifesto. A vida Ao denunciar a inteligência, mostrando que a sua incapacidade de compreen-
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O Todo-Aberto Conclusão: A Experiência do Aberto

der adequadamente o devir era inseparável de uma maneira equivocada de Se vimos, no início do nosso trabalho, que pela coexistência virtual de
especular que nascia de ilusões engendradas no seu seio, Bergson propôs cri- níveis mais ou menos contraídos do passado integral, a nossa duração passou
térios intuitivos não só para reprimir tais ilusões, como também para inibir a coexistir com durações superiores e inferiores, ainda que interiores à nos-
suas operações, contrariando o curso habitual do pensamento exercido por sa, pudemos postular no final que a passagem de um nível a outro implicou
ela. Ou seja, para inibir e converter a inteligência foi preciso relacioná-la a um não só numa atualização de todos os níveis, assim como numa experiência de
estremecimento afetivo equivalente a uma violência exercida sobre o curso abertura que nos colocou em contato simpático com a totalidade aberta de
habitual dos seus pensamentos coloquiais. E foi isso que evocamos através todos os seres vivos.
do esforço que contrariou a tendência adaptativa da subjetividade. Sendo assim, a emoção criadora não seria outra coisa senão a presença
Mas sendo assim, convém retomar a questão perguntando: o que quer da memória cósmica atualizando-se em todos os níveis, para liberar o ho-
dizer pensar quando enfim se ultrapassa o universo representativo, funcio- mem do plano ou do nível que lhe era próprio, e para fazer dele um criador
nal e responsivo da inteligência? Não seria nessa nova inflexão a atividade do adequado a todo movimento da criação. A emoção criadora desencadeou
pensar um ato problemático? Poderíamos dizer que pens tse tornou ago- a criação, pois permitiu ao homem ultrapassar a sua condição adaptativa,
ra sinônimo de problematizar? Ao termos visto que a invenção do problema abrindo-o para a intuição simultânea dos fluxos que asseguraram a apreen-
inaugurou um campo novo, impôs uma abertura que escavou no presente são imediata do todo. Com ela, fizemos a experimentação do aberto como
novas possibilidades de pensamento, mostramos, com ele, a condição do pro- novidade que se expressou na criação e através da coisa criada.
cesso que desencadeou no ser pensante uma conexão com o aberto. Enfim, a consciência do todo se adquiriu criando, estando a gênese
Entretanto, não bastou tão somente denunciar as ilusões que uma da intuição vinculada a esse movimento de criação que nos foi proporcio-
determinada operação da inteligência nos impôs. Quando o pensamento en- nado pela emoção criadora. Nesse sentido, podemos finalmente responder
quanto criação de problemas ultrapassou as representações habituais do in- que pensar é um acontecimento que só advém ao pensamento enquanto
telecto, foi preciso mesmo indagar quando ele se tornou viável. Bergson nun- ato de criação, quando este for incitado pelo estremecimento da emoção.
ca concebeu nessa inflexão o pensamento como um exercício natural. A intui- Nesse contexto, foi possível inferir com Bergson a ideia da não existência
ção - segundo as suas palavras - foi uma conquista que converteu a inteligên- de pensamentos inatos, como tampouco de pensamentos que se reduzem
cia a partir de uma ocasião. Além disso, o pensamento que se postulou nessa à esfera dos conhecimentos adquiridos. A consciência do Todo-Aberto que
conversão se produziu pela tomada de consciência do todo. Nesse sentido, é condição do novo - e que fez advir o pensamento no vetor da criação - ,
poderíamos perguntar que tal consciência só se atualizou na experiência da nasceu da intensidade suscitada pela emoção. Assim, do corpo ao espírito,
criação? Mas como se deu a condição de fato de tal experiência? Na efetuação violentado pela intensidade da emoção criadora, os problemas advieram
da tendência desencadeada por um afeto que ultrapassou a estagnação da via ao pensamento. Foi a emoção, portanto, que nos abriu para o tempo, foi a
adaptativa e conduziu o humano a uma retomada do impulso no seu movi- emoção que potencializou o tempo, foi a emoção, enfim, que selou a aliança
mento criador. Assim, quando falávamos de uma ocasião indispensável para entre o tempo e o pensamento.
que tal efetuação se desse, era da gênese da intuição que tratávamos. Pois
bem, esta ocasião Bergson encontrou no terreno ético, derivando-a para o
plano da moralidade aberta, onde o criador apareceu como tipo singular que
nos exortou ao movimento. Mas o que nessa moralidade se evidenciou como
condição de abertura da alma e do pensamento concebidos como criadores?
A emoção criadora.
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210 211
O ponto de partida de Bergson é
como a evolução criadora se produz
em nós em cada momento da duração.
E, junto com Deleuze, Maciel Júnior
pretende passar da observação da
evolução criadora em nós para uma
evolução criadora fora de nós.
Para Auterives, tendo o afeto como
condicionante, o grande problema é
chegar a uma vivência do todo
enquanto duração. Neste livro, as

.. - noções bergsonianas de afeto e de


emoção temporal permitem uma
instigante teoria da liberdade.

Mário Bruno
Professor da UERJ e da UFF, Doutor em
teoria psicanalítica pela UFRJ. Pós-Doutor
em filosofia pela UFRJ

Auterives Maciel]r.
Professor do departamento de
Impresso em 2017 psicologia da PUC-RIO e do programa
Gráfica da Editora Vozes, Petrópolis, RJ de pós-graduação em Psicanálise,
Papel Pólem Soft 80g/m 2 Saúde e Sociedade - mestrado e
Tipologia Cambria 10,5 / 14,5
doutorado - da Universidade Veiga de
Almeida - UVA-RIO.

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