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SUMÁRIO

SOBRE AS NARRATIVAS
O CÃO E O OSSO (Esopo)
O HOMEM E A COBRA (Esopo)
O PASTOR E O LOBO (Esopo)
O AVARENTO E O OURO (Esopo)
O VENDEDOR DE LANÇAS E ESCUDOS (Han Fei)
O LOBO E A CABRA (Fedro)
A CEGONHA E A RAPOSA (Fedro)
A LÍNGUA E OS DENTES (Leonardo da Vinci)
MAOMÉ E O VINHO (Leonardo da Vinci)
O BÊBADO E SUA MULHER (Jean de La Fontaine)
O CARVALHO E O CANIÇO (Jean de La Fontaine)
O LOBO E A CEGONHA (Jean de la Fontaine)
O TESTEMUNHO DO CADÁVER – Lenda Polonesa (Augustin Calmet)
AS CRIANÇAS QUE BRINCAVAM DE AÇOUGUEIRO (Jacob & William Grimm)
SILÊNCIO: UMA FÁBULA (Edgar Allan Pöe)
A INGRATIDÃO (Charlotte Brontë)
CADA QUAL COM A SUA QUIMERA (Charles Baudelaire)
O CÃO MORTO (Liev Tolstói)
A VIÚVA INCONSOLÁVEL (Ambrose Bierce)
A CIMITARRA (Ambrose Bierce)
OS PRISIONEIROS (Friedrich Nietzsche)
O MESTRE (Oscar Wilde)
O PROPICIADOR DO BEM (Oscar Wilde)
O DISCÍPULO (Oscar Wilde)
A TRAPAÇA (Anton Tchekhov)
OS DOIS HOMENS SÁBIOS (Khalil Gibran)
AS TRÊS FORMIGAS (Khalil Gibran)
O OLHO (Khalil Gibran)
A PONTE (Franz Kafka)
O ABUTRE (Franz Kafka)
UMA PEQUENA FÁBULA (Franz Kafka)
O CORPO DE UMA MULHER (Ryūnosuke Akutagawa)
O PEQUENO PRÍNCIPE E O BEBERRÃO (Antoine de Saint-Exupéry)
A ORDEM DAS PÁGINAS (Anônimo Africano)
O JUIZ JULGADO (Anônimo Árabe)
OS DOIS AMIGOS (Anônimo Árabe)
A ÁGUIA E O CORVO (Anônimo Australiano)
A TERRA DOS SONHOS (Anônimo Chinês)
O ESPELHO (Anônimo Chinês)
O NOME SECRETO DE RÁ (Anônimo Egípcio)
A LENDA DA “CALLE DE LA CABEZA” (Lenda Espanhola)
A MULHER QUE ENGANOU O DIABO (Anônimo Europeu)
O REI DAS ÁRVORES (Anônimo Hebreu)
A PARÁBOLA DO SEMEADOR (Tradicionalmente atribuída a Marcos Evangelista,
citando Jesus de Nazaré)
A PARÁBOLA DO BOM SAMARITANO (Tradicionalmente atribuída a Lucas
Evangelista, citando Jesus de Nazaré)
O BARQUEIRO INCULTO (Anônimo Indiano)
A FÁBULA DOS DOIS POTES (Anônimo Indiano)
OLOFIN E A IMORTALIDADE (Anônimo Iorubá)
O BARRETE BRANCO (Anônimo Islandês)
OS RATINHOS (Anônimo Sioux)
CRÉDITOS
SOBRE AS NARRATIVAS

As 50 narrativas presentes neste livro surgem do limiar da


palavra escrita — do antigo Egito — e, atravessando os séculos e
continentes, aportam no século XX, nas águas de Saint-Exupéry.
Ao lado de grandes autores — da singela perspicácia de Esopo à
crítica mordaz e velada Friedrich Nietzsche ao cristianismo —,
perfilam-se breves histórias — da África, Ásia, Europa, América e
Oceania —, cuja autoria é desconhecida, pois suas origens
mergulham nas névoas do tempo. As fábulas são mais remotas do
que imaginamos: quem conhece a famosíssima “A Formiga e a
Cigarra”, coligida em versos por La Fontaine, há de se surpreender
ao ler “Os Ratinhos”, dos índios sioux.
Há, aqui, fábulas antigas, como as escritas por Fedro, e
outras modernas, elaboradas por Franz Kafka e Khalil Gibran. De
entremeio, surgem Leonardo da Vinci (para retirá-las do sono
sempiterno em que mergulhadas) e Jean de La Fontaine (para
desenvolvê-las e burilá-las até a plenitude).
Apólogos e parábolas gestados na Bíblia convivem
placidamente com a angústia de Allan Pöe, o lirismo de Liev
Tolstói e o sarcasmo de Ambrose Bierce. E aos breves contos
tradicionais, juntam-se historietas encantadoras de Charlotte
Brontë, Oscar Wilde, Anton Tchekhov, Ryūnosuke Akutagawa e
outros escritores.
O CÃO E O OSSO (Esopo)

Levando um osso na boca, um cão muito faminto


atravessava uma ponte.
Ao olhar para baixo, viu a própria imagem refletida nas
águas do rio.
Acreditando que via outro cão, que tinha entre os dentes um
osso melhor que o seu, encheu-se de gula e cobiça. E tentou
arrebatar o osso de seu rival com uma só mordida.
Contudo, mal abriu a boca, o osso caiu no rio e a corrente o
levou para sempre.
O HOMEM E A COBRA (Esopo)

Na época do frio e das terríveis nevascas do inverno, que


açoitavam um pequeno vilarejo, um homem de bom coração e muito
piedoso acolheu uma cobra em seu lar.
O homem cuidou da cobra durante todo o inverno,
alimentando-a e mantendo-a sempre aquecida em sua casa. Mas,
quando o inverno se foi, e chegou a primavera, a serpente começou
a reanimar-se com o calor e quis atacar o homem.
O homem disse à cobra que se fosse de sua casa, mas a
cobra não fez caso disto. E, em vez de obedecer à ordem de seu
benfeitor, deu-lhe um bote e o matou.
O PASTOR E O LOBO (Esopo)

Um jovem pastor, que cuidava de um rebanho de ovelhas


perto de uma aldeia, assustou os habitantes três ou quatro vezes:
— O lobo, o lobo!
Mas quando os vizinhos vieram ajudá-lo, ele riu-se ao vê-los
tão preocupados.
Certo dia, porém, o lobo realmente chegou. O jovem pastor,
agora alarmado, gritou de terror:
— Socorro! Por favor, ajudem-me! O lobo está matando as
ovelhas.
Mas, como não mais prestavam atenção em seus gritos,
ninguém pensou em acudir em seu auxílio. E o lobo, vendo que não
havia motivo para temer mal algum, feriu e destroçou, à vontade,
todo o rebanho.
O AVARENTO E O OURO (Esopo)

Um avarento vendeu tudo o que tinha em excesso e


comprou uma barra de ouro, que enterrou ao lado de um velho
muro. Todos os dias ia ele verificar o lugar.
Um de seus vizinhos observou suas frequentes visitas ao
local e decidiu descobrir o que estava acontecendo. Logo achou o
tesouro escondido e, cavando, pegou a barra de ouro, furtando-a.
O avarento, em sua próxima visita, encontrou o buraco vazio
e, puxando os cabelos, lamentou amargamente a sua perda.
Então, outro vizinho, inteirando-se do motivo de suas
queixas, confortou-o, dizendo:
— Agradece por não ser o assunto assim tão sério. Vai, traz
uma pedra e coloque-a no buraco. Imagina, então, que o ouro ainda
está lá. Para ti, dará no mesmo que seja ouro ou não. Com efeito,
jamais farias mesmo uso de teu tesouro.
O VENDEDOR DE LANÇAS E ESCUDOS (Han Fei)

No reino Chu havia um homem que vendia lanças e


escudos.
— Meus escudos — gabava-se ele — são tão sólidos que
nada pode transpassá-los. Já as minhas lanças são tão pontiagudas
que nada há que não possam perfurar.
— Mas, o que aconteceria se as suas lanças se chocassem
com os seus escudos? — alguém perguntou.
O vendedor não soube o que responder.
O LOBO E A CABRA (Fedro)

Um lobo encontrou uma cabra que pastava à beira de um


precipício.
Não lhe sendo possível chegar aonde ela estava, disse-lhe:
— Olá, amiga! Seria melhor que viesses cá para baixo, pois,
onde estás, podes cair e morrer. Além disso, vê o prado onde eu
estou. Olha. Vê como está bem verde e a relva é crescida.
— Bem sei — respondeu-lhe a cabra — que não me
convidas para que eu coma. Chamas-me para comeres tu mesmo,
sendo eu o teu prato.
A CEGONHA E A RAPOSA (Fedro)

A raposa convidou a cegonha para jantar. A esta serviu uma


sopa num prato de mármore raso, o que tornava impossível à ave,
dado o longo seu bico, provar do alimento.
Noutra ocasião, a cegonha convidou a raposa para cear. A
esta serviu uma garrafa de barro cheia de comida picada. Inserindo
pelo longo gargalho o seu bico comprido, a cegonha se saciava, ao
mesmo tempo em que impingia uma tortura à convidada esfomeada.
A raposa resignou-se a lamber inutilmente o gargalo da garrafa.
A LÍNGUA E OS DENTES (Leonardo da Vinci)

Era uma vez um rapaz que tinha o hábito de falar mais do


que era necessário.
— Que língua! — suspiraram, certo dia, os dentes. — Ela
nunca fica quieta, ela nunca se cala!
— O que vocês estão a murmurar? — respondeu a língua
com arrogância. — Vocês são meros servos que mastigam apenas
o que eu escolho. Nada temos em comum, e não quero que se
intrometam nos meus assuntos.
Então o rapaz continuou a tagarelar, mesmo sem propósito
algum, enquanto a língua seguia feliz, aprendendo a cada dia novas
palavras.
Mas, certo dia, quando o rapaz, depois de ter feito uma má
ação, permitiu que a sua língua contasse uma grande mentira, os
dentes, obedecendo ao coração, partiram juntos e morderam-lhe a
língua.
A língua corou de sangue e o rapaz, arrependido, corou de
vergonha.
A partir daquele dia, a língua tornou-se temerosa e
cautelosa, e passou a pensar duas vezes antes de falar.
MAOMÉ E O VINHO (Leonardo da Vinci)

Certo dia, o vinho — esse divino néctar da uva — foi


derramado numa magnífica taça de ouro que estava sobre a mesa
de Maomé.
— Oh, que honra! — pensou o vinho. — Que glória é a minha
de estar sobre a mesa de Maomé!
Mas foi o vinho imediatamente assaltado por um pensamento
adverso. Então disse a si mesmo:
— Mas que honra? Que glória é essa? De que eu me alegro?
Não é verdade. O que estou fazendo aqui? Estou prestes a morrer.
Vou deixar a minha linda casa — este magnífico cálix de ouro —
para entrar nas horrendas e fétidas cavernas do ser humano. E
quando lá estiver, meu sumo doce e perfumado vai se transformar
em urina horrível e malcheirosa. E como se tanto mal não me
bastasse — continuou o vinho —, ainda terei que permanecer longo
tempo em imundos receptáculos, com a fétida e corrompida matéria
que as entranhas expelem.
Gritou, então, em desespero:
— Ó céus! Peço justiça, peço vingança por tanto malefício!
Não é justo que continue este desprezo à minha natureza! Júpiter,
pai Júpiter — suplicou —, ainda que esta terra produza as melhores
uvas do mundo, fazei com que não mais sejam elas transformadas
em vinho!
Júpiter ouviu-lhe a súplica e decidiu atender à sua prece.
De fato, quando Maomé bebeu da taça, Júpiter fez-lhe subir
ao cérebro os vapores do vinho, de pronto embriagando-o. Sob o
efeito do vinho, Maomé comportou-se como louco, cometendo uma
série de desvarios. Quando finalmente recobrou a sobriedade,
promulgou uma lei proibindo os seus súditos de beberem vinho.
Desde então, as videiras, com seus doces frutos,
permaneceram tranquilas e felizes.
O BÊBADO E SUA MULHER (Jean de La Fontaine)

Um confrade de Baco, de tanto beber, afetou sua saúde, seu


espírito e sua bolsa.
Certo dia, quando, empanturrado de vinho, deixou os sentidos
no fundo de uma garrafa, a sua mulher o depositou em uma tumba.
Dissipados os vapores do álcool, o homem, já acordado, viu a
parafernália da morte em torno de seu corpo: estava rodeado por
velas e coberto por uma mortalha.
Então disse:
— Minha mulher ficou viúva!
Apareceu, então, a esposa. Usando máscara, vinha disfarçada
de Alecton[1], e imitava a voz de uma fúria. Assim desfigurada,
aproximou-se do suposto morto, trazendo-lhe uma sopa quente.
Sem duvidar que aquela aparição era um habitante do Inferno,
perguntou o marido ao fantasma:
— Quem é você?
— Eu sou a cozinheira do reino de Satanás. E trago comida
para aqueles que jazem nas covas escuras.
Tendo ouvido isto, perguntou-lhe o marido, sem pensar:
— E para beber, não sendo água, você não traz nada?
O CARVALHO E O CANIÇO (Jean de La Fontaine)

Dizia o carvalho ao caniço:


—Tu tens justos motivos para lamentar-se com a Natureza.
Um leve passarinho, para ti, é um pesado fardo. A mais suave brisa
faz-te curvar a cabeça. Caso tivesses nascido sobre o abrigo de
minha soberba folhagem, estarias livre de tais sofrimento, porque
terias a minha proteção contra os ventos e as intempéries. Mas,
infeliz, nasceste em pleno charco. O tratamento que lhe dá a
Natureza parece-me, pois, muito injusto.
— És bem compassivo — respondeu o caniço —, mas deves
deixar de lado essa preocupação. Os ventos não são tão
assustadores para mim quanto são para ti. Eu me curvo, mas não
me quebro. Até agora, os teus flancos têm enfrentado, com firmeza,
o açoite dos ventos tempestuosos. Mas nunca se sabe o que há de
vir.
De repente, assomou uma tempestade e, com ela, vieram os
ventos furiosos. Os caniços curvaram-se; a árvore segurou-se firme
em seus alicerces. Então, o vento redobrou os seus esforços. Os
caniços, flexíveis, resistiram. Mas o carvalho, cujos cimos tocavam
orgulhosamente os céus, desgarrado pelo vento furioso de suas
velhas raízes, desmoronou sobre a terra e mergulhou, indefeso, no
reino dos mortos.
O LOBO E A CEGONHA (Jean de la Fontaine)

Em sua voracidade e avidez, engasgou-se o lobo com um


osso. Sem poder gritar por socorro, e quase agonizante, viu a morte
certa.
Como ali passava uma cegonha, o lobo, aos gestos,
implorou por ajuda.
Habilmente, a cegonha, com a ajuda do longo bico, inclinou
a cabeça sobre a boca do engasgado e procedeu à operação. Sem
dificuldade, extraiu o osso trespassado na goela do lobo.
Tendo, assim, salvado o quase morto, a cegonha requereu o
pagamento pelo serviço que lhe prestara.
— O pagamento? — respondeu-lhe o lobo. — Decerto, estás
de brincadeira. O que te custou socorrer-me? Afinal, não estás viva?
A tua cabeça não saiu intacta por dentre os meus dentes? Que mais
queres? Já tens nisso a tua paga. E cuida de fugir, ingrata!
O TESTEMUNHO DO CADÁVER – Lenda Polonesa
(Augustin Calmet)

O bispo Santo Estanislau[2] comprou a um gentil-homem,


chamado Pedro, uma propriedade situada às margens do rio
Vístula, no território de Lublin, em proveito de sua igreja em
Cracóvia. Pagou o preço ao vendedor, solenemente, na presença de
testemunhas, como era o costume naquele país, mas sem reduzir a
termo a compra e venda, pois, naquela época, não se escrituravam
tais negócios, senão muito raramente, na Polônia. Estanislau tomou
posse dessa propriedade pela autoridade do rei, e sua igreja dela
desfrutou pacificamente por cerca de três anos.
Nesse meio tempo, Pedro, que havia vendido a propriedade,
faleceu. O rei da Polônia, Boleslau[3], que havia concebido um ódio
implacável contra o santo bispo, porque ele o repreendeu livremente
por seus excessos, procurando uma ocasião para causar prejudicá-
lo, instou três filhos de Pedro, seus herdeiros, a reivindicar a
propriedade que seu pai havia vendido, sob o pretexto de não ter
sido paga. Prometeu-lhes apoiá-los no litígio, e fazer com que
recobrassem a terra. Assim, os três fidalgos citaram o bispo a
comparecer perante o rei, que estava então em Solec, ocupado em
distribuir justiça em sua tenda de campanha, conforme o antigo
costume do país, na assembleia-geral da nação.
O bispo, citado perante o rei, sustentou que havia comprado
e pago pela propriedade em questão. O dia estava começando se
pôr, e o bispo corria grande risco de ser condenado pelo rei e seus
conselheiros. De repente, como se inspirado pelo Espírito Divino,
prometeu ao rei trazer, em três dias, Pedro, de quem havia adquirido
a terra, à sua presença, e a promessa foi aceita com zombaria,
como algo impossível de ser realizado.
O santo bispo se dirigiu a Pictravin, onde permaneceu em
oração e jejum, com os seus familiares, por três dias. No terceiro
dia, ostentando as vestes pontifícias, acompanhado por seu clero e
uma multidão de pessoas, seguiu ao sepulcro de Pedro e ordenou
que a pedra tumular fosse levantada. Escavando o lugar,
encontraram o cadáver descarnado e corrompido. O santo ordenou
ao cadáver que comparecesse perante o tribunal do rei e prestasse
testemunho da verdade. O defunto se levantou e foi coberto com
uma capa. O santo o segurou pela mão e o levou redivivo aos pés
do rei. Ninguém teve a ousadia de interrogá-lo. Mas ele tomou a
palavra e declarou que, de boa-fé, havia vendido a propriedade ao
prelado, e que havia recebido o pagamento por ela. Após o quê, ele
repreendeu severamente seus filhos, que haviam acusado tão
maliciosamente o santo bispo.
Estanislau perguntou a Pedro se desejaria permanecer vivo
para fazer penitência. Ele agradeceu e disse que não se exporia
novamente ao perigo de pecar. Estanislau reconduziu-o ao seu
túmulo e, lá chegando, Pedro novamente adormeceu no Senhor.
Pode-se supor que tal cena tenha um número infinito de
testemunhas e que toda a Polônia tenha sido rapidamente
informada do sucedido. Mas o rei ainda mais se irritou contra o
santo. Algum tempo depois, matou-o com as próprias mãos, quando
o santo saía do altar. O bispo teve o corpo cortado em setenta e
duas partes, a fim de que nunca mais fosse reunido para dar-lhe o
culto que lhe era devido, bem assim ao corpo de mártir da verdade e
da liberdade pastoral.
AS CRIANÇAS QUE BRINCAVAM DE AÇOUGUEIRO
(Jacob & William Grimm)

Certa feita, um pai matou um porco na presença dos filhos.


À tarde, quando as crianças estavam a brincar, uma disse à
outra:
— Agora você é o porquinho e eu sou o açougueiro.
Então, ele pegou uma faca e a mergulhou na garganta do
irmãozinho.
A mãe estava no andar de cima, a dar banho noutra criança,
quando ouviu o grito de seu filho. Imediatamente, ela desceu as
escadas. Ao ver o que acontecera, tirou a faca da garganta da
criança e, tomada de fúria, apunhalou o outro menino, que se fazia
de açougueiro, no coração.
Depois, ela correu para o quarto para cuidar do bebê que
deixara na banheira; mas, ao chegar, viu que a criança se afogara.
A mulher ficou tão assustada e desesperada que não permitiu que
os criados a confortassem e, finalmente, se enforcou.
Quando o marido voltou dos campos, e viu o que se
passara, ficou tão entristecido que morreu pouco depois.
SILÊNCIO: UMA FÁBULA (Edgar Allan Pöe)

Os pináculos das montanhas dormitam; os vales, penhascos


e cavernas estão silenciosos
Álcman[4]

— Ouve-me! — disse o Demônio, enquanto pousava a mão


sobre a minha cabeça. — Há um lugar nesta terra maldita que não
viste ainda. E, se, por algum motivo, a viste, deve ter sido num
daqueles sonhos vigorosos que vêm como o Simum[5] sobre o
cérebro do adormecido, entre os raios de sol proibidos — entre os
raios de sol, eu digo, que deslizam das colunas solenes dos templos
melancólicos no deserto. A região da qual falo é uma lúgubre região
na Líbia[6], às margens do rio Zaire. E não há ali quietude, nem
silêncio.
"As águas do rio têm uma mórbida tonalidade de açafrão, e
fluem não para o mar, mas palpitam, para todo o sempre, sob o olho
purpúreo do Sol, com um movimento tumultuoso e convulsivo. Por
muitas milhas, em ambos os lados do leito limoso do rio, estende-se
um pálido deserto de gigantescos nenúfares, que suspiram um para
o outro naquela solidão, esticam para o céu seus pescoços longos e
espectrais, e acenam para a frente e para trás com suas cabeças
eternas. E eleva-se, dentre eles, um murmúrio indistinto, como o de
uma correnteza d’água subterrânea. E suspiram um para o outro.
"Mas há um linde em seu reino: o linde da floresta escura,
horrenda e elevada. Lá, como as ondas sobre as Hébridas[7], a
vegetação rasteira está em perene agitação. Todavia, não há vento
no céu. E as altas e primevas árvores balançam-se eternamente de
um lado para o outro, produzindo um estrépito estridente e
poderoso. E dos seus altos cumes, um por um, gotejam orvalhos
eternos. E, por sobre suas estranhas raízes, jazem flores
venenosas, que se contorcem num sono perturbado. E, no alto, com
um ruído alto e farfalhante, as nuvens cinzentas correm,
eternamente, em direção ao poente, até rolarem em cascata sobre
as ígneas paredes do horizonte. Mas não há vento no céu. E às
margens do rio Zaire não há quietude nem silêncio.
"Era noite e chovia. E, caindo, era chuva; mas, tendo já
caído, era sangue. E eu permanecia no pântano entre os altos
nenúfares, e a chuva caía sobre minha cabeça — e os nenúfares
suspiravam um para o outro na solenidade de sua desolação.
"E, de súbito, a Lua surgiu através da névoa tênue e
espectral, e sua cor era carmesim. E meus olhos caíram sobre uma
rocha, imensa e cinza, que se elevava na margem do rio, iluminada
pelo clarão da Lua. E a rocha era cinzenta, espectral e alta — e a
rocha era cinzenta. Em sua face, havia caracteres gravados na
pedra; e eu andei pelo pântano de nenúfares, até aproximar-me da
margem para ler os caracteres na pedra. Mas não consegui decifrá-
los. E ia retornar ao pântano quando a Lua brilhou com um vermelho
mais intenso. Voltei-me e olhei novamente para a rocha e para os
caracteres — e os caracteres diziam DESOLAÇÃO.
"E olhei para cima, e havia um homem no cume da rocha, e
me escondi entre os nenúfares para ver o que aquele homem fazia.
E o homem era alto majestoso, e cobria-o, dos ombros aos pés,
uma toga da antiga Roma. E a sua silhueta era indistinta, mas os
seus traços eram os de uma Deidade, pois o manto da noite, a
névoa, a lua e o orvalho haviam deixado a descoberto as suas
feições. E a sua fronte impregnava-se de pensamentos e os seus
olhos eram selvagens e cautelosos. Nas poucas rugas de sua face,
li as fábulas da tristeza, do cansaço e do desgosto com a
humanidade, além do desejo de solidão. E a Lua brilhou em seu
rosto, iluminando as suas feições e — oh! — eram mais belas do
que os sonhos frescos que pairavam sobre as almas das filhas de
Delos!
"E o homem sentou-se na rocha, apoiou a cabeça na mão e
contemplou a desolação. Olhou para os arbustos rasteiros e
agitados, para as altas árvores primevas, para o céu farfalhante,
para a lua carmesim. E eu me abriguei sob os nenúfares, e observei
as ações do homem. E o homem estremecia na solidão — mas a
noite avançava e ele permanecia sentado na rocha.
E o homem desviou a sua atenção do céu, e olhou para o
melancólico rio Zaire, para as suas sinistras águas amarelas e para
as pálidas legiões dos nenúfares. E o homem ouviu os suspiros dos
nenúfares e o murmúrio que deles emergia. E eu me mantinha
oculto em meu esconderijo, observando as ações do homem. E o
homem estremecia na solidão — mas a noite avançava e ele
permanecia sentado na rocha.
"Então desci às profundezas do pântano, perambulei no
deserto de nenúfares, e chamei os hipopótamos que habitavam no
âmago dos pântanos. E os hipopótamos ouviram o meu chamado e
vieram com o beemote[8] ao pé da rocha, e rugiram sonora e
terrivelmente sob a Lua. E eu me mantinha oculto em meu
esconderijo, observando as ações do homem. E o homem
estremecia na solidão — mas a noite avançava e ele permanecia
sentado na rocha.
"Então amaldiçoei os elementos com a praga do tumulto; e
uma tempestade terrível se reuniu no céu, onde antes não havia
vento. E o céu se tornou lívido pela a violência da tempestade. E a
chuva açoitou cabeça do homem. E as águas do rio transbordaram.
E o rio, atormentado, cobriu-se de espuma. E os nenúfares
elevaram os seus gritos. E a floresta derruiu diante do vento. E os
trovões estrondearam. E os raios caíram. E a rocha vacilou nos
alicerces. E eu me mantinha oculto em meu esconderijo,
observando as ações do homem. E o homem estremecia na solidão
— mas a noite avançava e ele permanecia sentado na rocha.
"Então encolerizei-me e amaldiçoei, com a praga do
silêncio, o rio, e os nenúfares, e o vento, e a floresta, e o céu, e o
trovão, e os suspiros dos nenúfares. E foram todos amaldiçoados e
se calaram. E a Lua deixou de cambalear em seu caminho celeste.
E os trovões emudeceram. E os raios não mais refulgiram. E as
nuvens imobilizaram-se. E as águas baixaram a seu nível e assim
permaneceram. E as árvores contiveram o seu balanço. E os
nenúfares não mais suspiraram, e nem mais se elevaram, entre
eles, os murmúrios. E nem uma nesga de som percorria aquele
vasto e ilimitado deserto. E eu olhei para os caracteres da rocha, e
eles tinham mudado — os caracteres diziam SILÊNCIO.
"E meus olhos caíram sobre o semblante do homem, e o
seu semblante estava lívido de terror. E, apressadamente, ele
ergueu a cabeça, que apoiava na mão, e, pondo-se de pé sobre a
rocha, intentou escutar. Mas não havia voz no vasto e ilimitado
deserto, e os caracteres sobre a rocha diziam SILÊNCIO. E o
homem estremeceu, virou o rosto e fugiu para longe. E eu não mais
o avistei.”
*
Ora, belas histórias há nos volumes dos Magos — nos
melancólicos volumes dos Magos encadernados em ferro. Nele, eu
afirmo, há gloriosas histórias do Céu, da Terra e do poderoso Mar —
e dos Gênios que dominavam o mar e a terra, e o altivo Céu.
Também muita sabedoria havia nas palavras ditas pelas Sibilas[9]; e
santas, santas coisas foram ouvidas antigamente pelas folhas
sombrias que tremiam ao redor de Dodona[10] — mas, tão certo
quanto Alá vive, a fábula que o Demônio me contou, quando
sentado ao meu lado na sombra do sepulcro, considero-a a mais
maravilhosa de todas! E quando o Demônio terminou sua história,
deixou-se cair na cavidade do sepulcro e riu. E eu não pude rir com
o Demônio, e ele me amaldiçoou porque eu não podia rir. E o lince,
que habita o sepulcro por toda a eternidade, dele saiu e deitou-se
aos pés do Demônio, e fitou-o fixamente no rosto.
A INGRATIDÃO (Charlotte Brontë)

Um rato, cansado da vida urbana e das cortes (pois tinha


desempenhado o seu papel nos palácios de reis e nos salões de
grandes senhores), um rato que a experiência tinha feito sábio,
enfim, um rato que, de cortesão fizera-se filósofo, tinha-se retirado
para a sua casa de campo (um buraco no tronco de um grande
olmo), onde vivia como eremita e dedicava todo o seu tempo e
atenções à educação do seu único filho.
O jovem rato, que ainda não tinha recebido essas severas —
malgrado salutares — lições de experiência, era um pouco tonto: os
sábios conselhos de seu pai pareciam-lhe maçantes; a sombra e a
paz do bosque, em vez de acalmar seu espírito, enfadavam-no. Mal
podia esperar para viajar e conhecer o mundo.
Tendo, numa bela manhã, levantado cedo, fez uma pequena
trouxa contendo queijo e cereais e, sem dizer uma palavra a
ninguém, o ingrato abandonou o seu pai e o seu lar, e partiu para
países desconhecidos.
No início, tudo lhe parecia encantador: as flores eram frescas
e as árvores eram mais verdes do que as que via em casa. Depois,
viu coisas maravilhosas: um animal com uma cauda maior do que o
corpo (era um esquilo), um bichinho que carregava a própria casa
nas costas (era um caracol). Após algumas horas, ele se acercou de
uma fazenda. Atraído pelo cheiro de comida, entrou no pátio da
fazenda e lá deparou-se com uma espécie de ave gigantesca, que
fazia um barulho horrível enquanto caminhava com um ar altivo e
orgulhoso. O pássaro era um peru, mas o nosso rato pensou que
fosse um monstro e, assustado com a sua aparência, fugiu dali
prontamente.
Ao anoitecer, entrou num bosque. Muito cansado e
extenuado, sentou-se ao pé de uma árvore, abriu sua pequena
trouxa, comeu o seu jantar e deitou-se.
Quando a cotovia o despertou, sentiu os membros dormentes
de frio. O seu leito duro o machucava. Então, lembrou-se o ingrato
de seu pai, recordando-se dos desvelos e das ternuras do bom e
velho rato. Tomou vãs resoluções para o futuro, pois era tarde
demais: o frio havia congelado seu sangue. A Experiência, que foi
para ele uma amante austera, deu-lhe apenas uma lição e apenas
um castigo: a morte.
No dia seguinte, um lenhador encontrou o seu cadáver, olhou-
o como um mero objeto repugnante e o empurrou, com o pé, ao
passar, sem imaginar que ali estava o filho ingrato de um pai
amoroso.
CADA QUAL COM A SUA QUIMERA (Charles Baudelaire)

Sob um grande céu cinzento, em uma grande planície sem


sendas, sem relva, sem um cardo, sem uma urtiga, encontrei vários
homens que caminhavam encurvados.
Cada um deles carregava nas costas uma enorme Quimera,
tão pesada quanto um saco de farinha ou carvão, ou a mochila de
soldados de infantaria romana.
Mas o monstruoso animal não era um peso morto; ao
contrário, ele cingia e oprimia o homem com seus músculos
elásticos e poderosos. Ele atrelava-se ao peito de sua montaria com
suas duas grandes garras, e sua cabeça fabulosa elevava-se acima
da fronte do homem, como um desses horrendos capacetes com os
quais os antigos guerreiros pretendiam ampliar o terror do inimigo.
Interroguei um desses homens, perguntando-lhe para onde
ia daquele modo. Ele disse que não sabia; nem os demais. Mas,
obviamente, eles iam a algum lugar, porquanto eram impelidos por
uma necessidade invencível de andar.
Observação curiosa: nenhum daqueles viajantes parecia
irritar-se com a besta feroz pendurada em seu pescoço e agarrada
às suas costas. Poderíamos dizer que eles as consideravam parte
de si mesmos. Todos estes rostos cansados e circunspectos não
exibiam qualquer desespero. Sob a cúpula melancólica do céu, os
pés imersos na poeira do chão tão desolado quanto aquele
firmamento, caminhavam com o semblante resignado dos que foram
condenados a esperar para sempre.
E o séquito passou junto a mim e mergulhou na atmosfera
do horizonte, no ponto em que a superfície recurva do planeta se
esquiva à curiosidade do olhar humano.
E por uns instantes eu me obstinei em penetrar naquele
mistério; mas logo uma indiferença irresistível caiu sobre mim e me
quedei ainda mais pesadamente oprimido do que eles mesmos por
suas esmagadoras Quimeras.
O CÃO MORTO (Liev Tolstói)

Tendo Jesus chegado, numa certa tarde, aos portões de uma


cidade, mandou aos seus discípulos que seguissem adiante e
preparassem a ceia. Sempre inclinado ao bem e à caridade,
embrenhou-se pelas ruas, e alcançou a praça do mercado.
Viu Jesus algumas pessoas reunidas num canto,
vislumbrando algo que jazia no chão.
Aproximou-se, então, para ver o que chamava atenção
daquele grupo.
Era um cão morto. Estava preso pelo pescoço por uma corda
e esta servira para arrastá-lo pela lama. Aos olhos daquelas
pessoas, jamais coisa tão vil, tão repugnante, tão suja havia-se
oferecido.
E todos os integrantes do círculo contemplavam o animal com
desgosto.
— Esta coisa envenena o ar — disse um dos presentes.
— Este animal apodrecido impedirá o caminho por muito
tempo — disse outro.
— Olhem o couro dele — disse um terceiro. — Não há um só
pedaço que se aproveite para fazer umas sandálias.
— E suas repulsivas orelhas — exclamou um quarto — estão
tisnadas de sangue.
— Talvez tenha sido enforcado por um ladrão — acrescentou
mais outro.
E Jesus os escutava.
— Seus dentes são mais brancos e belos que as pérolas! —
disse Jesus, lançando um olhar de compaixão ao imundo animal.
As pessoas, então, se admiraram. Voltaram-se para Jesus,
exclamando:
— Quem será este homem? Será Jesus de Nazaré? Somente
ele poderia compadecer-se e mesmo elogiar em um cão morto!
E todos, envergonhados, seguiram o seu caminho,
humilhando-se diante do filho de Deus.
A VIÚVA INCONSOLÁVEL (Ambrose Bierce)

De luto, uma mulher chorava sobre uma sepultura.


— Console-se, madame — disse um simpático forasteiro. — A
misericórdia celestial é infinita. Haverá, em algum lugar, outro
homem, além de seu marido, com quem você ainda poderá ser feliz.
— Havia — soluçou a senhora. — Havia, mas esta é a
sepultura dele.
A CIMITARRA (Ambrose Bierce)

Quando o grande Gichi-Kuktai era Mikado[11], condenou Jijiji


Ri, alto funcionário da corte, à decapitação. Pouco depois da hora
assinalada para a realização do ritual, qual não foi a surpresa de
Sua Majestade ao ver aproximar-se tranquilamente do trono o
homem que deveria estar morto há dez minutos!
— Por setecentos mil impossíveis dragões! — exclamou,
enfurecido, o monarca. — Eu não te condenei a comparecer à praça
do mercado, para que o executor público te cortasse a cabeça às
três horas? E, agora, não são três e dez?
— Filho de mil deidades ilustres — respondeu o ministro
condenado —, tudo o que dizes é tão verdadeiro que, em
comparação com tuas palavras, a verdade é mentira. Mas os
solares e vivificantes desejos de Vossa Majestade Celestial foram
pestilentamente ignorados. Com alegria, corri e expus o meu corpo
indigno na praça do mercado. O carrasco apareceu com a cimitarra
nua, ostensivamente a girou no ar e, depois, tocando-me levemente
o pescoço, foi-se embora, hostilizado pela turba, de quem sempre
fora um favorito. Venho reclamar por que caia a justiça sobre sua
desonrada e traidora cabeça.
— A que regimento de verdugos pertence esse patife de
negras entranhas?
— Ao galante Nove Mil Oitocentos e Trinta e Sete. Eu o
conheço. Seu nome é Sakko-Samshi.
— Que seja ele trazido diante de mim — disse o Mikado a
um ajudante, e meia hora depois o culpado estava em sua
Presença.
— Oh, bastardo filho de um corcunda de três pernas sem
polegares! — rugiu o soberano. — Por que deste apenas um suave
toque no pescoço que deverias ter o prazer de decepar?
— Senhor dos Grous e das Flores de Cerejas — respondeu,
impassível, o carrasco. — Ordena ao ministro que assoe o nariz
com os dedos.
Acatando a ordem do soberano, Jijiji Ri segurou o nariz e
expirou como um elefante. Todos esperavam ver tombar a cabeça
decepada, assim desgarrada violentamente do corpo. Mas nada
disto aconteceu. O desempenho perdurou pacificamente até o fim.
Todos os olhos voltaram-se ao executor, que ficara tão branco
quanto as neves no cume do Fujiyama. Suas pernas tremiam e sua
respiração exalava o terror.
— Por mil leões de latão espinhoso! — gritou. — Sou um
arruinado e desonrado espadachim! Golpeei tenuemente o vilão
porque, ao florear a cimitarra, a fiz atravessar acidentalmente o meu
próprio pescoço. Pai da Lua, renuncio ao meu cargo.
Tendo dito isto, agarrou-se pelo o rabicho, ergueu a própria
cabeça e, avançando em direção ao trono, a depositou
humildemente aos pés do Mikado.
OS PRISIONEIROS (Friedrich Nietzsche)

Certa manhã, os prisioneiros saíram ao pátio de trabalho. O


guarda estava ausente. Alguns se entregaram imediatamente ao
trabalho, como era de costume, mas outros permaneceram ociosos,
lançando olhares de desafio ao redor. Então, um deles deu um
passo à frente e disse em voz alta:
— Trabalhem o quanto quiserem ou não façam nada; é
completamente indiferente. As suas maquinações secretas foram
todas descobertas, o guarda da prisão surpreendeu-os e nos
próximos dias pronunciará sobre as suas cabeças o seu terrível
julgamento. Como sabem, ele é severo e vingativo. Mas escutem
bem o que eu lhes direi: vocês não me conheciam até hoje; não sou
eu quem acreditam quem eu seja. Sou o filho do guarda desta
prisão e posso obter, dele, tudo o que quiser. Eu posso salvá-los e
quero salvá-los. Mas devo avisar-lhes que salvarei apenas aqueles,
entre vocês, que acreditam que sou o filho do carcereiro. Aqueles
que não acreditam em mim, que colham os frutos da sua
incredulidade.
— Bem — disse um prisioneiro idoso, após um momento de
silêncio —, o que lhe importa se acreditamos ou não em você? Se é,
verdadeiramente, o filho do carcereiro, e pode fazer o que diz,
interceda em nosso favor, pois estará a fazer, em verdade, uma boa
ação! Mas guarde para si mesmo tais disparates de fé e
incredulidade!
— Também não acredito em você! — disse um homem mais
jovem. — Isto tudo é loucura. Aposto que em oito dias ainda
estaremos aqui, na mesma situação de hoje, e que o guarda não
soube de nada!
— E se ele soube de alguma coisa, agora não sabe mais —
disse o último dos prisioneiros, que tinha acabado de descer para o
pátio. — O guarda da prisão morreu de repente.
— Bravo! — exclamaram em uníssono quase todos os
prisioneiros. Bravo! Senhor filho, senhor filho! E a herança? Será
que somos agora seus prisioneiros?
— Já lhes disse — respondeu com doçura o orador — que
darei liberdade a qualquer um que tenha fé em mim, e digo isto com
tanta convicção como a de que meu pai ainda está vivo.
Os prisioneiros não riram. Deram de ombro e o deixaram no
pátio.
O MESTRE (Oscar Wilde)

Então, quando a escuridão envolveu a terra de José de


Arimateia, tendo ele acendido uma tocha de pinho, desceu da
colina em direção ao vale. Pois ele tinha afazeres em sua própria
casa.
E viu, ajoelhado sobre o sílex do Vale da Desolação, um
jovem que estava nu e chorava. Seus cabelos eram da cor de mel
e seu corpo era como uma flor branca, mas ele havia ferido o
próprio corpo com espinhos e, com cinza, coroado os cabelos.
E aquele que tinha grandes propriedades disse ao jovem
nu, que chorava:
— Não me admira que a tua tristeza seja tão grande;
porque, certamente, Ele era um homem justo.
E o jovem respondeu:
— Não choro por Ele, mas por mim mesmo. Eu também
transformei água em vinho, curei leprosos, dei vista aos cegos. Eu
andei sobre as águas e expulsei demônios daqueles que
habitavam os sepulcros. Eu alimentei os famintos no deserto,
onde não havia comida, e ressuscitei os mortos de suas estreitas
moradas. E, conforme a minha ordem, e diante de uma grande
multidão, uma figueira estéril mirrou. Tudo o que esse homem fez,
eu também fiz. E, no entanto, eles não me crucificaram.
O PROPICIADOR DO BEM (Oscar Wilde)

Era noite e Ele estava sozinho.


E vislumbrou, ao longe, as muralhas de uma cidade circular
e seguiu para ela.
E, quando se aproximou, ouviu, na cidade, as batidas de pés
de alegria, o riso da boca de alegria e o alto sonido de numerosos
alaúdes. E bateu no portão e um dos porteiros o abriu para Ele.
E viu uma casa que era de mármore e tinha colunas de
mármore no pórtico. As colunas eram ornadas grinaldas, e por
dentro e por fora havia tochas de cedro. E Ele entrou na casa.
E, tendo passado pelas salas de calcedônia e de jaspe, e
chegando ao longo salão de festas, viu estendido, num sofá
púrpura, um jovem cujos cabelos estavam coroados de rosas
vermelhas e cujos lábios estavam rubros de vinho.
E caminhou-se para ele, tocou-lhe no ombro e disse-lhe:
— Por que vives assim?
E o jovem, voltando-se, reconheceu-o e, respondendo,
disse-lhe:
— Bem, eu era leproso, e tu me curaste. De que outra
maneira eu deveria viver?
E Ele saiu de casa e retornou à rua.
E, depois, viu uma mulher de rosto pintado e vestes tingidas,
cujos pés eram calçados com pérolas. E vinha atrás dela,
lentamente, sorrateiro como um caçador, um jovem que usava um
manto de duas cores. E o rosto da mulher era belíssimo como o de
um ídolo, e os olhos do jovem reluziam de luxúria.
Seguindo-os apressadamente, Ele tocou a mão do jovem e
disse-lhe:
— Por que olhas para esta mulher e com tanto
discernimento?
E o jovem, voltando-se, reconheceu-o e disse:
— Antes eu era cego e tu me deste a vista. Para o que mais
eu deveria olhar?
E, correndo e postando-se à frente da mulher, tocou-lhe as
vestes tingidas e disse-lhe:
— Não há outro caminho a percorrer que não o do pecado?
E a mulher, voltando-se, reconheceu-o. Sorriu e disse-lhe:
— Mas tu me perdoaste os meus pecados, e o caminho que
sigo é uma trilha prazerosa.
E Ele saiu da cidade.
Lá fora, viu sentado, à beira do caminho, um jovem que
chorava.
E seguiu em sua direção, tocou-lhe as longas mechas de
cabelo e disse-lhe:
—Por que choras?
E o jovem, erguendo os olhos, reconheceu-o e respondeu:
— Eu já estava morto e tu me ressuscitaste dentre os
mortos. O que mais eu deveria fazer, além de chorar?
O DISCÍPULO (Oscar Wilde)

Quando Narciso morreu, seu lago de prazer passou de uma


taça de águas doces a uma copa de lágrimas salgadas. As
Oréades[12] vieram do bosque, a chorar, com a esperança de cantar
para o lago e confortá-lo.
E quando viram que a piscina passara de uma taça de águas
doces a uma copa de águas salgadas, desprenderam suas verdes
tranças e choraram para o lago, dizendo:
— Não nos admira que chores assim por Narciso. Ele era tão
lindo!
— Mas Narciso era lindo? — disse o lago.
— Quem deveria sabê-lo mais que tu? — responderam as
Oréades. — Por nós ele sempre passava indiferente, pois era
apenas a ti quem ele procurava: deitava-se às tuas margens e te
contemplava. E no espelho de tuas águas colhia o reflexo de sua
própria beleza.
E o lago respondeu:
— Mas eu amava Narciso porque, enquanto ele deitava-se
sobre as minhas margens e olhava para mim, no espelho de seus
olhos eu via sempre refletida a minha própria beleza.
A TRAPAÇA (Anton Tchekhov)

Nos velhos tempos, na Inglaterra, aos delinquentes


condenados à pena de morte conferia-se o direito de vender, em
vida, os próprios cadáveres a anatomistas e fisiólogos. Com o
dinheiro assim obtido, os condenados, quando não ajudavam a
família, o esbanjavam.
Um deles, apanhado num crime hediondo, chamou a si um
médico cientista e, após barganhar com este até onde pôde, vendeu
a si mesmo por dois guinéus.
Tendo recebido o dinheiro, o criminoso, de repente, começou
a gargalhar...
— Está rindo de quê? — perguntou o médico, admirado.
— O senhor me comprou como a alguém que deveria ser
enfocado — disse o criminoso, gargalhando —, mas eu o enganei.
Morrerei queimado na fogueira! Ha, ha, ha!
OS DOIS HOMENS SÁBIOS (Khalil Gibran)

Outrora, viviam na antiga cidade de Afkar dois homens sábios


que odiavam e menosprezavam a erudição um do outro. Isto era
assim porque um deles negava a existência dos deuses, enquanto o
outro acreditava que os deuses existiam.
Certo dia, encontraram-se os dois no mercado e, em meio a
seus seguidores, começaram a disputar e a discutir sobre a
existência ou a não-existência dos deuses. Depois de horas de
contendas, eles se separaram.
Naquela noite, o homem incrédulo rumou ao templo e,
prostrando-se diante do altar, orou aos deuses, rogando-lhes que
lhe perdoasse o passando rebelde.
E, naquela mesma hora, o outro erudito, que sustentava a
existência dos deuses, queimava seus livros sagrados: havia se
tornado um incrédulo.
AS TRÊS FORMIGAS (Khalil Gibran)

Três formigas se encontraram no nariz de um homem que


dormia ao sol. Depois que se cumprimentaram, cada uma, em
conformidade com o costume de seu clã, começaram a conversar.
A primeira formiga disse:
— Essas colinas e planícies são as mais estéreis que eu já
conheci. Procurei o dia todo um grão de qualquer espécie, mas
nada há a ser encontrado.
Disse a segunda formiga:
— Também nada encontrei, embora eu tenha esquadrinhado
cada canto e clareira. Estamos — creio eu — no lugar que o meu
povo chama de terra tenra em movimento, onde nada cresce.
Então a terceira, erguendo a cabeça, disse:
— Minhas amigas, estamos agora no nariz da Formiga
Suprema, a formiga poderosa e infinita, cujo corpo é tão extenso
que não podemos contemplá-lo, sua sombra é tão vasta que não
podemos rastreá-la, e sua voz é tão potente que não podemos
escutá-la. E ela é onipresente.
Quando a terceira formiga terminou de falar, as demais se
entreolharam e riram.
Naquele instante, o homem se mexeu e, durante o sono,
ergueu a mão e coçou o nariz. E as três formigas foram esmagadas.
O OLHO (Khalil Gibran)

Certo dia, o Olho disse:


— Eu vejo, além desses vales, uma montanha coberta de
névoa azul. Não é linda?
O Ouvido escutou o que o Olho dizia e, depois de assuntar por
algum tempo, disse:
— Mas, onde está a tal montanha? Eu não a ouço.
Então, a Mão disse:
— Estou tentando, em vão, senti-la e tocá-la. Mas não consigo
encontrar montanha nenhuma.
E o Nariz disse:
— Não existe montanha. Eu não consigo sentir o cheiro dela.
Então o Olho virou para o lado e todos os demais começaram a
conversar sobre a ilusão do Olho. Disseram:
— Deve haver algum problema com o Olho...
A PONTE (Franz Kafka)

Eu estava rígido e frio; eu era uma ponte atravessada sobre


um precipício. Em uma das extremidades estavam as pontas dos
pés; na outra, as mãos; no barro quebradiço cravei os dentes,
firmando-me. As abas de meu casaco esvoaçavam às minhas
costas.
Nas profundezas, rumorejava o gélido arroio de trutas.
Nenhum turista desviava-se a estas alturas intransitáveis: a ponte
não figurava nos mapas. Assim, eu ali permanecia, esperando.
Tinha que esperar. Toda ponte, uma vez construída, não pode
deixar de ser ponte sem desmoronar.
Foi num entardecer — não sei se foi o primeiro ou o milésimo;
meus pensamentos, sempre confusos, giravam sempre em círculos
—, foi num entardecer de verão, em que o arroio murmurava
soturnamente, que escutei os passos de um homem. Para cá, para
cá. Estira-te, ponte; apruma-te, viga sem corrimões; sustenta quem
a ti foi confiado. Nivela imperceptivelmente a insegurança de seu
passo; se ele vacila, dá-te a conhecer como um deus da montanha,
põe-no em terra firme.
Ele chegou e me tateou com a ponta metálica de seu bastão;
depois ergueu com ela as abas de meu casaco e as acomodou
sobre mim. A ponta do bastão imiscuiu-se entre os meus cabelos
emaranhados e ali permaneceu por um tempo, enquanto ele olhava,
provavelmente com olhos selvagens, ao redor. Foi então — apenas
sonhei-o sobre montanhas e vales — que ele saltou, caindo com
ambos os pés sobre o meio do meu corpo. Uma dor selvagem me
fez estremecer, ignorante do que acontecia. Quem era ele? Uma
criança? Um sonho? Um salteador? Um suicida? Um tentador? Um
destruidor? Virei-me para vê-lo. A ponte girava. Não havia terminado
de virar-me e eu já caía, caía e estava dilacerado, empalado pelos
seixos pontiagudos que sempre haviam olhado para mim tão
pacificamente através das águas turbulentas.
O ABUTRE (Franz Kafka)

O abutre bicava os meus pés. Já me havia dilacerado os


sapatos e as meias, e agora bicava-me os próprios pés. Sempre
que me arrancava um pedaço, voava, inquieto, várias vezes ao meu
redor, e depois prosseguia o seu trabalho. Passou um cavalheiro,
olhou-nos uns instantes e me perguntou por que eu tolerava o
abutre.
— Estou indefeso — respondi. — Quando ele chegou e
começou a me atacar, eu, naturalmente, tentei espantá-lo, e mesmo
pensei em torcer-lhe o pescoço. Mas esses animais são muito fortes
e este estava prestes a saltar à minha cara. Preferi sacrificar os pés.
Agora eles estão quase despedaçados.
— Não se deixe atormentar com isto — disse o cavalheiro. —
Basta um tiro e é o fim do abutre.
— Acha mesmo? — perguntei. — E o senhor faria isto por
mim?
— Com prazer — disse o cavalheiro. — Só preciso apanhar
meu fuzil em casa. Pode suportar mais meia hora?
— Não estou certo disto — respondi e, por um instante, fiquei
rígido de dor. Depois, acresci:
— Por favor, tente de qualquer forma.
— Muito bem — disse o senhor —, irei o mais rápido que
puder.
Em silêncio, o abutre ouvira tranquilamente o nosso diálogo e
deixara vagar o olhar ente mim e o cavalheiro. Naquele instante,
percebi que ele compreendia tudo. O abutre voou um pouco mais
distante, recuou para obter um bom impulso e, como um atleta que
arremessa o dardo, enfiou profundamente o bico em minha boca.
Ao cair de costas, senti-me aliviado. Senti que no meu sangue
— e este me preenchia todas as profundidades e me inundava
todas as margens — o abutre, irremediavelmente, se afogava.
UMA PEQUENA FÁBULA (Franz Kafka)

— Ah —disse o rato — o mundo se torna mais estreito a cada


dia. Antes, ele ela era tão vasto que me dava medo; então eu corria,
ficava feliz em finalmente vislumbrar, à distância, à direita e à
esquerda, as longas paredes. Mas agora elas convergem tão
rapidamente uma à outra que eu já estou no último quarto, e lá no
canto está a ratoeira para qual eu corro.
— Você só tem que mudar de direção — disse o rato, e o
devorou.
O CORPO DE UMA MULHER (Ryūnosuke Akutagawa)

Certa noite de verão, um chinês chamado Wang despertou,


de repente, por causa do calor insuportável. Deitado de bruços, a
cabeça entre as mãos, ele começava a tecer fantasias ardentes,
quando percebeu que uma pulga, num lado da cama, avançava em
sua direção. Na penumbra de seu quarto, ele a viu a arrastar o seu
diminuto corpo, brilhante como pó de prata, na direção do ombro da
mulher, que dormia a seu lado. Deitada e nua, ela estava
profundamente adormecida, e ele a ouviu respirar docemente, com
a cabeça e o corpo voltados para ele.
Observando o indolente avançar da pulga, Yang refletiu
sobre a existência dessas criaturas. Uma pulga precisa de uma hora
para chegar a um ponto que está a apenas dois ou três passos de
nós. "Minha vida seria muito tediosa se eu fosse uma pulga."
Dominada por esses pensamentos, a sua consciência
começou a esmorecer lentamente e, sem dar-se conta, acabou
mergulhando num estranho transe que não era nem sonho nem
realidade. Imperceptivelmente, justamente quando se sentiu
acordado, viu, com assombro, que sua alma havia penetrado no
corpo da pulga que, durante todo esse tempo, avançava lentamente
na cama, guiada pelo cheiro acre de suor. Isto, no entanto, não foi a
única coisa que que o confundiu, embora aquela fosse uma situação
tão misteriosa que ele não conseguia sair de seu espanto inicial.
Em seu caminho, erguia-se uma alta montanha, de forma
mais ou menos arredondada, que subia para além do espectro de
sua visão, e descia até a cama onde se encontrava. A base meio
arredondada da montanha, contígua à cama, tinha a aparência de
uma romã tão brilhante que parecia conter uma chama ígnea em
seu interior. Exceto por essa base, o resto dessa montanha
harmoniosa era esbranquiçada, composto por uma massa nívea de
substância adiposa, macia e polida. A vasta superfície da montanha,
banhada pela luz, emitia um leve brilho ambarino, que se curvava
em direção ao céu como um arco de beleza requintada, enquanto o
lado escuro refulgia como a neve azulada à luz da Lua.
Com os olhos bem abertos, Yang fixou o olhar atônito
naquela montanha de inusitada beleza. Mas o que realmente o
chocou foi descobrir que a montanha era um dos seios de sua
esposa. Ao pôr de lado o amor, o ódio e o desejo carnal, Yang
contemplou aquele seio enorme, que parecia uma montanha de
mármore. No auge de sua admiração, ele permaneceu, por um
longo tempo, petrificado e aturdido por aquela visão irresistível,
alheio por completo ao acre cheiro de suor. Antes de se tornar uma
pulga, ele não tinha notado a beleza de sua esposa.
Um homem de temperamento artístico não pode se limitar a
contemplar a beleza aparente de uma mulher, e deve vê-la através
do olhar espantado de uma pulga.
O PEQUENO PRÍNCIPE E O BEBERRÃO (Antoine de
Saint-Exupéry)

O planeta seguinte era habitado por um beberrão. Foi uma


visita muito curta, pois mergulhou o pequeno príncipe numa grande
melancolia.
— O que fazes aqui? — disse ele ao beberrão, que se
sentava em silêncio diante de uma coleção de garrafas vazias e
tantas outras garrafas cheias.
— Eu bebo! — respondeu o beberrão, num tom lúgubre.
— Por que bebes? — perguntou o pequeno príncipe.
— Para esquecer — respondeu o beberrão.
— Para esquecer o quê? — perguntou, já compadecido, o
pequeno príncipe.
— Para esquecer que sinto vergonha — confessou o
beberrão, baixando a cabeça.
— Vergonha de quê? — indagou o pequeno príncipe, que
queria ajudá-lo.
— Vergonha de beber! —concluiu o beberrão, encerrando-se
definitivamente no silêncio.
E o pequeno príncipe, perplexo, foi-se embora.
A ORDEM DAS PÁGINAS (Anônimo Africano)

Dois homens — um fulo e um bambara — compartilhavam a


mesma cela. Souberam eles, por um carcereiro, que, por ordem do
rei, um deles seria castrado e o outro decapitado.
O homem fulo, mais astuto do que o bambara, começou a
queixar-se de imediato, dizendo que lhe doíam muito — muitíssimo
— os testículos, e implorava por um alívio. Gritou tão fortemente que
o carcereiro veio correndo, armado com um sabre afiado, e o
desembaraçou do objeto de sua dor. O fulo sofreu muitíssimo o
resto da noite, mas no fundo estava contente por haver salvo a
cabeça.
Ao seu lado, o bambara dormia profundamente.
Pela manhã, o rei os fez chamar e lhes anunciou que
estavam livres. As penas haviam sido levantadas.
O fulo se lançou a uma série de imprecações e lamentações:
— O bambara salvou a vida — gritava — e eu perdi os meus
testículos!
— Não se deve ler a página cinco antes da página quatro —
redarguiu-lhe o rei.
O JUIZ JULGADO (Anônimo Árabe)

Certa feita, enquanto passeava, Nasrudin tropeçou em um


homem bêbado, deitado na grama. Quando ele o virou de costas,
reconheceu no bêbado um juiz — um homem famoso por pronunciar
sentenças duras por transgressões morais. Nasrudin removeu seus
elegantes chinelos e o manto e seguiu seu caminho.
No dia seguinte, quando o juiz voltou, cambaleante, para
casa, percebeu que havia sido furtado. Lívido, ordenou à polícia que
revistassem cada casa, até encontrar o culpado. Não tardou muito
para que Nasrudin fosse levado ao tribunal.
— Onde você conseguiu esses chinelos e essa capa? —
perguntou o juiz.
— Levei-os de um bêbado que encontrei caído na sarjeta na
noite passada — disse o mulá. — Desde então, estou tentando
devolvê-los, mas não sei a sua identidade. Vossa excelência não a
saberá, por acaso?
— Claro que não! — replicou o juiz. — E caso arquivado!
OS DOIS AMIGOS (Anônimo Árabe)

Dois amigos estavam viajando pelo deserto e em um


determinado ponto da viagem discutiram.
Um deles, ofendido, sem nada dizer, escreveu na areia:

"Hoje meu melhor amigo deu-me um bofetão na cara."

Seguiram em frente e chegaram a um oásis, onde decidiram


tomar banho. Aquele que havia sido esbofeteado e humilhado
começou a se afogar, sendo salvo pelo amigo. Quando se
recuperou, tomou um estilete e escreveu em uma pedra:

"Hoje meu melhor amigo salvou minha vida."

Intrigado, o amigo perguntou:


— Por que, depois que te machuquei, escreveste na areia e
agora escreves em uma pedra?
Sorrindo, o outro amigo respondeu:
— Quando um grande amigo nos ofende, devemos escrever
na areia, onde vento do esquecimento e do perdão se encarrega de
tudo apagar; por outro lado, quando algo de grandioso nos
acontece, teremos que gravá-lo na pedra da memória do coração,
onde nenhum vento do mundo pode apagar o que foi escrito.
A ÁGUIA E O CORVO (Anônimo Australiano)

A águia, precisando se ausentar de seu ninho, pediu ao


corvo (que, até então, não era preto) que tomasse conta de seus
filhos enquanto permanecesse fora.
O corvo consentiu em ajudá-la, mas logo percebeu que não
tinha paciência para cuidar de crianças.
Enfadado e perdendo as estribeiras, o corvo espancou um
dos filhotes até a morte.
Ao retornar, e vendo o que acontecera, a águia saiu para a
desforra.
Para vingar-se, acendeu o fogo sob o corvo assassino, com
o intuito de matá-lo. Mas a pequena ave, estirando as asas,
conseguiu escapar. Saiu, porém, com as penas todas chamuscadas
de preto.
A TERRA DOS SONHOS (Anônimo Chinês)

O professor costumava tirar uma soneca todas as tardes. As


crianças lhe perguntavam por que fazia isto.
— Eu vou à terra dos sonhos — respondia o mestre — para
reunir-me com os sábios antigos, como fazia Confúcio.
Um dia, fazia um calor terrível. Por isto, alguns discípulos
tiraram uma soneca. Como o professor os repreendeu, eles
explicaram:
— Fomos à terra dos sonhos para conhecer os sábios
antigos, como fazia Confúcio.
— E qual foi a mensagem daqueles sábios? — perguntou o
professor.
Então, um dos discípulos respondeu:
— Fomos à terra dos sonhos, encontramo-nos com os
sábios e lhes perguntamos se nosso professor ia lá todas as tardes,
mas eles disseram que jamais haviam visto tal pessoa.
O ESPELHO (Anônimo Chinês)

Um camponês foi à cidade para vender a colheita de arroz e


sua esposa pediu que não esquecesse de lhe trazer um pente.
Depois de vender seu arroz na cidade, o camponês se
encontrou com alguns companheiros, e eles beberam e
comemoraram por um longo tempo. Então, um pouco confuso, na
hora de voltar para casa, lembrou-se de que sua esposa havia
pedido alguma coisa. Mas... o que era? Não conseguia recordar-se!
Assim, comprou, numa loja feminina, a primeira coisa que chamou
sua atenção: um espelho. E voltou para a sua aldeia.
Lá chegando, entregou o presente à esposa e saiu para
trabalhar em seus campos. A mulher olhou no espelho e começou a
chorar inconsolavelmente. A mãe perguntou-lhe o motivo daquelas
lágrimas.
A mulher deu-lhe o espelho e disse:
— Meu marido trouxe outra mulher, jovem e bonita. Eis o
retrato dela.
A mãe tomou o espelho, olhou para ele e disse à filha:
— Você não precisa se preocupar: é uma mulher velha e
venerável.
O NOME SECRETO DE RÁ (Anônimo Egípcio)

O deus Rá tem vários nomes, mas somente um é secreto. É


este que lhe dá grande parte de seu poder.
Ísis se perguntava como poderia obrigar Rá a revelar seu
nome secreto. Resolveu aguardar uma ocasião propícia e passou a
vigiá-lo atentamente.
Tendo Rá adormecido, Ísis aproveitou para recolher a saliva
do deus e misturou-a com uma porção de terra, moldando uma
perigosa serpente com a intenção de que esta picasse o deus.
Ísis colocou a víbora no caminho por onde Rá passaria.
Então, a serpente o atacou. Rá lançou um terrível grito de dor e o
veneno da serpente começou a invadir o seu ser, sem que o deus
pudesse combatê-lo e sem saber de onde ele vinha. Os outros
deuses, pesarosos, viam o seu grande sofrimento.
Então Ísis, a deusa feiticeira, aproximou-se de Rá, dizendo:
— Diz-me o teu nome secreto e eu te curarei.
Rá começou a dizer vários de seus nomes: “Criador do Céu
e da Terra, Arquiteto das Montanhas, Controlador da Criação”. Mas
nunca chegava a seu nome secreto.
A picada lhe causara uma dor tão lancinante que Rá
terminou acedendo, impondo apenas uma condição: que Ísis e o
seu filho Hórus não o revelassem a ninguém.
Ísis curou Rá com o emprego de fórmulas mágicas e a
aplicação de unguentos à base de ervas.
E foi assim que a deusa Ísis conseguiu ser tão poderosa
quanto o deus Rá.
A LENDA DA “CALLE DE LA CABEZA” (Lenda
Espanhola)

Nos tempos de D. Filipe II, vivia, numa pequena rua central


de Madri, um sacerdote possuidor de grandes riquezas. Certa noite,
um criado seu, movido pela cobiça, o assassinou, cortando-lhe a
cabeça.
Após decapitar o sacerdote e reunir uma boa fortuna em
ouro e joias, o criado fugiu para Portugal.
Quando o hediondo crime já havia sido olvidado, acobertado
pela areia do tempo e pelo manto da impunidade, resolveu o antigo
criado, agora convertido em cavaleiro, mercê do sangrento espólio
reunido na casa do sacerdote, voltar a Madri.
Certo dia, quando percorria as ruas de Rastro, o cavaleiro,
ao passar diante de um açougue, viu que era exibido um acepipe
que, em seus tempos de criados, parecia-lhe uma deliciosa iguaria.
Saudoso dos velhos sabores, resolveu comprar a cabeça de
carneiro, levá-la para casa e comê-la cozida no jantar.
Havendo guardado a cabeça sob uma capa, retornava o
cavaleiro para a nova vivenda quando foi abordado por um aguazil.
Chamou a atenção do oficial de justiça um profuso rastro de sangue
que o cavaleiro, sem que o percebesse, deixava atrás de si,
enquanto avançava pela rua.
O oficial de justiça deteve o cavaleiro, indagando-lhe sobre o
que ocultava sob a sua capa.
— Trago comigo uma cabeça de carneiro, que acabei de
comprar, para o jantar — respondeu, confiante e sem nada temer, o
cavaleiro.
Dizendo isto, mostrou a cabeça ao aguazil.
Mas, para o seu imenso horror, não era uma cabeça de
carneiro que agora tinha nas mãos. Era, sim, a cabeça do sacerdote
que ele havia decapitado há muitos anos. Os olhos do sacerdote
assassinado, fixos nos seus, miravam-no com uma terrível
expressão acusadora.
Diante de tão severa expressão, e aterrorizado até a medula,
o antigo criado confessou o seu crime. Malgrado sobrenatural,
aquela era uma prova incontestável do latrocínio que praticara.
Julgado e condenado, foi enforcado na Praça Maior de
Madri.
Conta-se que conduziram a cabeça do sacerdote, perante o
supliciado, numa bandeja de prata, até o patíbulo. E que, no mesmo
instante em que o antigo servo foi executado, a cabeça do
sacerdote reassumiu o estado anterior, convolando-se na de um
simples carneiro.
Hoje, o logradouro onde ocorreu o macabro episódio
denomina-se “Calle de la Cabeza” (Rua da Cabeça)[13].
A MULHER QUE ENGANOU O DIABO (Anônimo
Europeu)

Um pobre trabalhador rural, que ganhava por dia lavrado em


terra alheia, tinha um vizinho que era o diabo, mas disso ele não
sabia.
Certo dia, o vizinho chegou ao roceiro e disse-lhe:
— Você é tão pobre! Mas eu tenho um grande campo onde
você pode trabalhar para mim no regime de meação. Faremos um
pacto com a condição de que o que crescer para debaixo da terra
será meu, e o que crescer para cima da terra será seu.
O trabalhador, aceitando a proposta, foi trabalhar o campo e
semeou-o de trigo.
Do campo semeado nasceu muito trigo, que ele colheu no seu
tempo, e disse ao vizinho que fosse buscar o que havia crescido
para debaixo da terra. O diabo só achou as raízes.
Vendo que tinha sido enganado pelo vizinho, disse-lhe:
— O nosso acordo, como está, não me serve mais. Se você
quiser continuar a lavrar a minha terra, há de aceitar um novo pacto
às avessas: o que crescer para cima da terra será meu e o que
crescer para baixo será seu.
O lavrador aceitou a condição e semeou o campo todo de
batatas. A safra vingou maravilhosamente. Disse, então, ao vizinho
que fosse apanhar o que tinha crescido para cima da terra, que era
apenas a rama do tubérculo. Quanto a ele, tirou muitos e muitos
alqueires de batatas, com que fez muito dinheiro. O diabo viu que
perdia sempre no jogo e quis-se vingar do lavrador:
— Ah, velhaco! Você me enganou! Mas eu é que não deixo
ficar assim. Nós vamos brigar cara a cara. E a luta há de ser às
unhadas, que ao menos desta vez estarei em vantagem.
O lavrador bem sabia que o diabo tinha umas garras temíveis,
mas, como não podia escolher as armas, já dava por certa a vitória
do rival.
Então foi ter com a mulher, a quem disse não saber como se
veria livre daquela enrascada.
Então lhe disse a mulher:
— Deixa-o vir para cá, que eu dou um jeito nele. No dia em que
ele vier procurá-lo para a contenda, esconda-se, que eu é que vou
falar com ele.
Chegado o dia, vem o diabo muito furioso e bate à porta do
vizinho:
— Aqui estou para a disputa a unhadas.
Vem a mulher e diz:
— Entre aqui, vizinho, e espere pelo meu homem, que foi
amolar as unhas. Olhe que ele sempre me dá cada unhada! Aqui
está, entre as minhas pernas, a primeira que ele me deu…
Dizendo isto, levantou a saia até o queixo, e claramente
mostrou aquilo, cujo nome todos sabem, ao diabo.
O diabo, assustado, vendo a enorme fenda em toda a sua
dimensão, teve dela um medo horrível, e botou a fugir com o receio
de ficar repleto de arranhaduras como aquela. E nunca mais lá
voltou.[14]
O REI DAS ÁRVORES (Anônimo Hebreu)

Certa feita, as árvores deliberaram eleger para si um rei. E


disseram à oliveira:
— Vem ser o nosso rei.
A oliveira, todavia, lhes disse:
— Eu abdicaria do meu azeite, que honra aos deuses e aos
homens, para reinar sobre as árvores?
Então as árvores disseram à figueira:
— Vem ser nosso rei.
A figueira, porém, lhes disse:
— Eu renunciaria à doçura de fruto saboroso para reinar
sobre as árvores?
Então disseram as árvores à videira:
— Vem ser o nosso rei.
A videira, porém, lhes disse:
— Eu deixaria de produzir meu vinho, que alegra os deuses
e os homens, para reinar sobre as árvores?
Por fim, todas as árvores disseram ao espinheiro:
— Vem ser o nosso rei.
E disse o espinheiro às árvores:
— Se realmente vós me escolheis para que eu seja o vosso
rei, então vinde abrigar-vos sob minha sombra; mas, se, do
contrário, não o fizerdes, sairá fogo do espinheiro, que consumirá
até os cedros do Líbano[15].
A PARÁBOLA DO SEMEADOR (Tradicionalmente
atribuída a Marcos Evangelista, citando Jesus de
Nazaré)

Um homem saiu para semear.


Enquanto lançava a semente à terra, parte dela caiu ao pé
do caminho. As aves a viram e a comeram.
Outra parte caiu em terreno pedregoso, na qual havia pouca
terra. Logo germinou, porque a terra não era profunda. Mas, quando
saiu o Sol, as plantas crescidas se queimaram, porque faltava-lhes a
raiz.
Outra parte caiu num espinheiro, que cresce e sufoca as
outras plantas, de forma que ela não frutificou.
Outra parte ainda caiu em terra boa. Assim, brotou, cresceu
e proporcionou boa colheita, a trinta, a sessenta e até cem por um.
Quem tem ouvidos para ouvir, que ouça.
A PARÁBOLA DO BOM SAMARITANO (Tradicionalmente
atribuída a Lucas Evangelista, citando Jesus de Nazaré)

Um homem, descendo de Jerusalém a Jericó, caiu nas


mãos de salteadores. Depois o despirem e espancarem, os ladrões
fugiram, deixando o viajante meio morto.
Coincidentemente, passava por aquele caminho um
sacerdote. Vendo o homem ferido, passou de largo.
Também um levita, chegando ao lugar, viu o viajante, mas
passou adiante.
Todavia, um viajante samaritano aproximou-se do homem
e, vendo-o ferido, dele teve compaixão.
Chegando-se, atou-lhe as feridas, deitando sobre elas
azeite e vinho; e, pondo-o sobre a sua montaria, levou-o para uma
hospedaria e tratou-o.
No dia seguinte, tirou dois denários, deu-os ao hospedeiro
e disse:
—Cuida dele. O quanto gastares com teus cuidados, eu te
pagarei quando de meu retorno.
O BARQUEIRO INCULTO (Anônimo Indiano)

Era um jovem erudito, arrogante e vaidoso. Para atravessar


um rio caudaloso, de uma à outra margem, pegou um barco.
Silencioso e submisso, o barqueiro começou a remar
diligentemente. De repente, um bando de pássaros cruzou o céu e o
jovem perguntou ao barqueiro:
— Bom homem, você estudou a vida dos pássaros?
— Não, senhor — disse o barqueiro.
— Então, amigo, você perdeu um quarto da sua vida.
Passados alguns minutos, o barco deslizou ao longo de
plantas exóticas, que flutuavam nas águas do rio. O jovem
perguntou ao barqueiro:
— Diga-me, barqueiro, você estudou botânica?
— Não, senhor, eu não sei nada sobre plantas.
— Bem, devo dizer-lhe que você perdeu metade da sua vida
— disse o petulante jovem.
O barqueiro continuava a remar pacientemente. O Sol do
meio-dia refletia-se luminosamente sobre as águas do rio. Então o
jovem perguntou:
— Sem dúvida, barqueiro, você desliza pelas águas há
muitos anos. Você, por acaso, sabe alguma coisa sobre a natureza
da água?
— Não, senhor, eu não sei nada sobre isto. Não sei nada
sobre estas ou outras águas.
— Oh, amigo! — exclamou o jovem. — Você realmente
perdeu três quartos da sua vida.
Subitamente, o barco começou a fazer água. Não havia
como retirar tanta água e o barco começou a afundar. O barqueiro
perguntou ao jovem:
— Senhor, você sabe nadar?
— Não — respondeu o jovem.
— Bem, senhor, receio que você tenha perdido toda a sua
vida.
A FÁBULA DOS DOIS POTES (Anônimo Indiano)

Um carregador de água tinha apenas dois grandes potes,


cada um deles pendurado na extremidade de uma vara que ele
levava atravessada sobre os ombros. Uma tinha várias rachaduras
pelas quais a água escapava, de modo que, no final do percurso, só
conservava a metade de sua capacidade. A outra, de sua feita, era
perfeita e mantinha intacto o seu conteúdo. O pote sem rachaduras
estava muito orgulhoso de seu êxito, pois sabia que era idôneo para
os fins a que foi criado. Mas o pobre pote rachado estava
envergonhado com a sua própria imperfeição e de não poder
cumprir a contento a sua missão. Assim, ao cabo de dois anos,
disse ao carregador:
— Estou envergonhado e quero me desculpar contigo
porque, devido às minhas rachaduras, tu obténs a metade do valor
que deverias receber por seu trabalho.
O carregador respondeu:
— Quando voltarmos para casa, quero que notes as
belíssimas flores que crescem ao longo do caminho.
Assim fez o pote e, de fato, viu muitíssimas flores belas ao
longo da vereda. Mas continuou sentindo-se culpado porque, ao
final do percurso, só guardava em seu interior a metade da água
que trazia no princípio.
O carregador disse, então:
— Percebeste que as flores só crescem no teu lado do
caminho? Quis tirar o lado positivo de tuas rachaduras e semeei a
margem da estrada com sementes de flores. Todos os dias tu cuidas
de regá-las e há dois anos eu as colho. Se tu não fosses
exatamente como és, com tua capacidade e limitações, não me
seria possível criar toda esta beleza. Todos somos potes rachados
em algum lugar, mas sempre existe a possibilidade de aproveitar as
rachaduras para obter bons resultados.
OLOFIN E A IMORTALIDADE (Anônimo Iorubá)

No princípio dos tempos, Olofin — o criador do mundo — fez


o homem e a mulher e lhes concedeu a vida.
Olofin engendrou a vida, mas se esqueceu de criar a morte.
Os anos se passavam e os homens e as mulheres
envelheciam cada vez mais, mas não morriam. Assim, a terra se
encheu de pessoas velhas que tinham milhares de anos e
continuavam governando de acordo com as suas antigas leis.
Tanto imploraram os mais jovens que um dia seus clamores
chegaram aos ouvidos de Olofin. E Olofin viu que o mundo não era
tão bom quanto ele havia planejado e sentiu que ele mesmo estava
velho e cansado demais para consertar aquilo que tão mal lhe havia
saído.
Então Olofin convocou Iku para se encarregar da resolução
do problema. Iku compreendeu que deveria acabar com o tempo em
que as pessoas nunca morriam. Fez, então, com que chovesse
sobre a terra durante trinta dias e trinta noites sem parar. E tudo
ficou submerso. Somente as crianças e os mais jovens puderam
subir nas árvores altaneiras e galgar as montanhas mais elevadas.
A Terra inteira se converteu num grande rio sem margens.
Quando as águas baixaram, os jovens souberam que a terra estava
mais limpa e mais bela e correram a dar graças a Iku, porque este
havia acabado com a imortalidade.
O BARRETE BRANCO (Anônimo Islandês)

Viviam próximos a uma igreja um garoto e uma menina,


cujos nomes este relato não conserva. O garoto, bastante travesso
e malicioso, tinha por hábito tratar de assustar a menina das mais
diversas formas. Mas ela, de tão acostumada a seus truques, já não
era capaz de assustar-se com as coisas que ele fazia.
Num úmido dia, a menina foi enviada por sua mãe para
buscar a roupa molhada que havia sido posta para secar no pátio da
igreja. Quando ela encheu a sua cesta de roupa e estava prestes a
voltar, viu sentada, ali perto, numa tumba, uma figura vestida dos
pés à cabeça de branco. Ela, porém, não se alarmou, achando que
era outra artimanha do menino. Então, correu para a figura e, dando
um safanão no barrete que esta trazia, disse-lhe:
— Tu não me assustarás desta vez!
Então, quando terminou de recolher a roupa seca, voltou
para casa. Mas, para sua surpresa, o garoto foi a primeira pessoa
que a recebeu quando ela entrou. Era impossível que ele tivesse
chegado sem que ela visse.
Quando, porém, a roupa seca foi arrumada, encontrou-se
um barrete branco, tisnado de terra, que não pertencia a nenhum
dos moradores da casa.
Na manhã seguinte, o fantasma (já que a menina tinha visto
um fantasma) foi visto sentado, sem o barrete na cabeça, sobre a
mesma tumba do dia anterior. E como ninguém teve a coragem de
restituir o barrete à cabeça do espectro, ou sabia ao menos como
esconjurá-lo, a família solicitou ajuda à vizinhança.
Um velho homem declarou que a única maneira de evitar
uma calamidade geral era que a menina voltasse a pôr na cabeça
do espectro o barrete que ela havia tomado, em presença de muita
gente, que guardaria um perfeito silêncio. Assim que a multidão se
reuniu na igreja, a menina, à frente de todos, se atreveu, um pouco
atemorizada, a colocar o gorro na cabeça do fantasma, dizendo-lhe:
— Estás satisfeito?
Mas o fantasma, levantando as mãos, lhe deu um terrível
safanão, e disse:
— Sim. Mas, e quanto a ti, estás agora satisfeita?
A menina caiu no chão. No mesmo instante, o fantasma
afundou-se no seu sepulcro — o mesmo em que se sentara —, para
nunca mais ser visto.
OS RATINHOS (Anônimo Sioux)

Era uma vez um rato da pradaria que se ocupara todo o


outono em guardar feijões em seu esconderijo. Todas as manhãs,
ele saía cedo com seu saco de pele de cobra vazia, que enchia de
feijão moído, e o arrastava para casa com seus dentes.
O ratinho tinha um primo que gostava de dançar e
conversar, mas nada queria com o trabalho. Tal primo não teve o
cuidado de formar o seu estoque de feijão, e o outono já estava bem
avançado quando decidiu fazer alguma coisa. Quando se deu conta
de sua necessidade, percebeu que não tinha saco — que era o
resquício da muda de uma cobra — para encher de feijão e
transportá-lo à sua toca. Então ele foi ter com seu primo trabalhador
e disse:
— Primo, não tenho feijões armazenados para o inverno e a
estação está quase acabando. E não tenho pele de cobra para
recolher os feijões. Podes emprestar-me um?
— Mas porque não tens um saco? Onde estavas tu quando
as serpentes se livraram das peles velhas?
— Eu estava aqui.
— Mas o que estavas fazendo?
— Eu estava ocupado em dançar e conversar.
— Agora tens o teu castigo — disse o outro. — É sempre
assim com pessoas preguiçosas e descuidadas. Mas eu te deixo
ficar com a pele de cobra. E agora vai, e com trabalho duro e
dedicação, tenta recuperar o teu tempo perdido.
CRÉDITOS
LIVRO DAS FÁBULAS, APÓLOGOS, PARÁBOLAS E BREVES CONTOS
TRADICIONAIS.
Esopo (620 – 564 a.C.), Han Fei (c. 289 – 233 a.C.), Fedro (sec. I. d.C.), Leonardo da Vinci
(1452 – 1519), Jean de La Fontaine (1621 – 1695), Augustin Calmet (1672 – 1757), Jacob
Grimm (1785 – 1863), Wilhelm Grimm (1786 – 1859), Edgar Allan Pöe (1809 – 1849),
Charlotte Brontë (1816 – 1855), Charles Baudelaire (1821 – 1867), Liev Tolstói (1828 –
1910), Ambrose Bierce (1842 – c. 1914), Friedrich Nietzsche (1844 – 1900), Oscar Wilde
(1854 – 1900), Anton Tchekhov (1860 – 1904), Khalil Gibran (1883 – 1931), Franz Kafka
(1883 – 1924), Ryūnosuke Akutagawa (1892 – 1927), Antoine de Saint-Exupéry (1900 –
1944) e autores anônimos.
Textos originais de domínio público.
Tradução (direta e indireta), paráfrases e adaptação textual: Paulo Soriano.
Imagem da capa: Iluminura de autor desconhecido do séc. XII (in “Grande Livro de
Canções Manuscritas de Heidelberg”).
Leiaute: Canva.
Ano da Edição: 2020.
© da tradução, das paráfrases e da adaptação textual: Paulo Soriano, 2020.

Edições TRIUMVIRATUS
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http://www.triumviratus.net
http://triumviratus.weebly.com

O objetivo das Edições Triumviratus é levar ao leitor de língua portuguesa obras de clássicos da literatura,
sobretudo fantástica, escritas por grandes mestres da Literatura Universal. Muitos de nossos livros eletrônicos
contêm obras raras de grandes autores. As traduções são originais e exclusivas ou de domínio público.

[1]
Na mitologia grega, uma das fúrias, divindades da vingança.
[2]
Estanislau de Szczepanów (1030 – 1079), bispo de Cracóvia, foi canonizado em 1253
pelo papa Inocêncio IV.
[3]
Bosleslau II (c. 1041 – 1081) foi rei da Polônia entre 1076 e 1079. Conta-se que,
excomungado por Estanislau, em razão de relações ilícitas que mantinha com uma dama
nobre, assassinou pessoalmente o prelado enquanto este celebrava a missa. No mesmo
ano do incidente, o rei foi deposto e exilado.
[4]
Poeta espartano do séc. VII a.C.
[5]
Vento muito quente que sopra do centro da África em direção a regiões setentrionais.
[6]
Ou seja, a África.
[7]
Arquipélago situado na costa ocidental da Escócia.
[8]
Monstro gigantesco descrito no livro de Jó.
[9]
Na mitologia grega, mulheres dotadas de dons proféticos, que agiam sob a inspiração
de Apolo.
[10]
Cidade da Grécia antiga, cujas ruínas se encontram próximas à cidade de Tomaros.
[11]
Imperador.
[12]
Na mitologia grega, ninfas habitantes e protetoras das montanhas e grutas.
[13]
Texto elaborado por Paulo Soriano a partir de uma narrativa tradicional espanhola.
[14]
Texto tradicional adaptado por Paulo Soriano a partir de “O Diabo de Papefiguière”, de
La Fontaine, “Como o Diabo Foi Enganado por uma Velha Mulher de Papefiguière”, de
Rebelais, e, sobretudo, de “O Compadre Diabo”, de Teófilo Braga.
[15]
Apólogo constante do livro dos Juízes, 9:8-15.

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