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MALDIÇÃO
Organizadores
MARIE O’REGAN
E PAUL KANE
MALDIÇÃO
Uma antologia
dos melhores contos de
fadas sinistros
TRADUÇÃO
Ulisses Teixeira
Título original: Cursed — An Anthology of Dark Fairy Tales
Esta tradução de Cursed, cuja edição original data de 2020, é publicada mediante acordo com o Titan
Publishing Group Ltd.
Introdução © Marie O’Regan e Paul Kane, 2020; O castelo amaldiçoado © Jane Yolen, 2020; Vermelha
como sangue, branca como a neve © Christina Henry, 2020; A ponte do troll © Neil Gaiman, 1993.
Publicado originalmente em Snow White, Blood Red, editado por Ellen Datlow e Terri Windling.
Reimpresso mediante permissão do autor; Nessa idade © Catriona Ward, 2020; Escute © Jen Williams,
2020; Henry e a caixa de madeira © M.R. Carey, 2020; Pele © James Brogden, 2020; Faith & Fred ©
Maura McHugh, 2020; A maldição da fada sombria © Karen Joy Fowler, 1997. Publicado originalmente
em Black Raven, White Swan, editado por Ellen Datlow e Terri Windling. Reimpresso mediante
permissão da autora; Wendy, querida © Christopher Golden, 2014. Publicado originalmente em Out of
Tune, editado por Jonathan Maberry. Reimpresso mediante permissão do autor; Fadas lobisomens
versus vampiros zumbis © Charlie Jane Anders, 2011. Publicado originalmente em Flurb: A Webzine of
Astonishing Tales #11, editado por Eileen Gunn. Reimpresso mediante permissão do autor; Olhe aqui
dentro © Michael Marshall Smith, 2013. Publicado originalmente em Fearie Tales: Stories of the Grimm
and Gruesome, editado por Stephen Jones. Reimpresso mediante permissão do autor; Vermelhinha ©
Jane Yolen e Adam Stemple, 2009. Publicado originalmente em Firebirds Soaring — Uma Antologia de
Ficção Especulativa, editado por Sharyn November. Reimpresso mediante permissão dos autores; Vinho
novo © Angela Slatter, 2020; Haza e Ghani © Lilith Saintcrow, 2020; Odiado © Christopher Fowler,
1995. Publicado originalmente em Flesh Wounds. Reimpresso mediante permissão do autor; Os alegres
dançarinos © Alison Littlewood, 2020; De novo © Tim Lebbon, 2020; A garota que veio do inferno ©
Margo Lanagan, 2020; O castelo despertando © Jane Yolen, 2020.
Direitos de edição da obra em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela Trama, selo da EDITORA NOVA
FRONTEIRA PARTICIPAÇÕES S.A. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e
estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja
eletrônico, de fotocópia, gravação etc., sem a permissão do detentor do copirraite.
O66m
O’Reagan, Marie
Maldição: uma antologia dos melhores contos de fadas sinistros /
Marie O’Reagan, Paul Kane ; traduzido por Ulisses Teixeira. – 2.ed. – Rio de Janeiro : Trama, 2021.
360 p.
Formato: e-book com 3,7 MB
Título original: Cursed – an anthology of dark fairy tales
ISBN: 978-65-89132-57-8
1. Literatura fantástica – antologia de contos. I. Kane, Paul. II. Teixeira, Ulisses. III. Título.
CDD: 808.8
CDU: 82-32
M
aldições.
É impossível não amá-las.
O elemento principal de qualquer conto de
fadas, o centro das histórias cheias de lições
de moral que todos nós ouvimos enquanto
crescíamos — narrativas que nos educavam, que
alimentavam a nossa crença de que os culpados deveriam
ser punidos, que, se tudo desse certo, nos mantinham no
caminho da virtude e da honestidade… Os exemplos
clássicos tiram sua inspiração do folclore ao redor do
mundo, e, nesta antologia, você encontrará histórias que
vêm dos contos da Noruega, da Dinamarca, da França e
muitos outros. Há também escritos no estilo de Perrault, de
Hans Christian Andersen e dos irmãos Grimm (cujas
histórias originais eram muito, muito mais sombrias do que
muita gente conhece). Veja a Bela Adormecida, por
exemplo, machucando o dedo e dormindo por toda a
eternidade. Ou a Chapeuzinho Vermelho, que, com certeza,
teve sua família amaldiçoada por aquele lobo — uma
maldição em si, se você acreditar em algumas visões sobre
o conto. A Branca de Neve também, amaldiçoada pela
bruxa que também era rainha e por uma maçã envenenada.
Porém, sem o mal, como poderíamos reconhecer o bem?
Nosso objetivo com este livro era simples. Usar a ideia de
ser amaldiçoado era o pontapé inicial, dando aos escritores
a chance de reescrever alguns clássicos — como Jane Yolen
e Adam Stemple fazem em “Vermelhinha”, Neil Gaiman faz
em “A ponte do troll”, Lilith Saintcrow em “Haza e Ghani” e
Christina Henri em “Vermelha como sangue, branca como a
neve” —, tornando-os seus e apresentando pontos de vista
bem diferentes em coisas familiares. Ao mesmo tempo, nós
queríamos incluir algumas histórias “amaldiçoadas” novas e
modernas — contos morais como os de Christopher Fowler
(“Odiado”), James Brogden (“Pele”), Catriona Ward (“Nessa
idade”) e Margo Lanagan (“A garota que veio do inferno”).
Nem todas essas histórias se encaixam no conto de fadas
tradicional, mas todas elas compartilham o mesmo coração
sombrio.
Os autores foram encorajados a pensar fora da caixa — ou
até mesmo dentro dela, literalmente, como você vai ver no
lúgubre conto cômico de M.R. Carey, “Henry e a caixa de
madeira”, e em “Olhe aqui dentro”, de Michael Marshall
Smith — enquanto bebiam de fontes como Peter Pan
(“Wendy, querida”, de Christopher Golden) ou a lenda do
Barba Azul (“Vinho novo”, de Angela Slatter). Isso sem
mencionar aqueles que criaram as suas mitologias
(“Escute”, de Jen Williams), que se inspiraram em contos de
fadas ou fizeram uma mistura deles (“Os alegres
dançarinos”, de Alison Littlewood), bolaram maldições com
as próprias regras (“De novo”, de Tim Lebbon, e “Faith &
Fred”, de Maura McHugh) ou até trouxeram o horror como
núcleo da história (o tumultuoso “Fadas lobisomens versus
vampiros zumbis”, de Charlie Jane Anders).
Quando terminar de ler estas histórias incríveis destes
autores maravilhosos, todos em sua melhor forma, vai
perceber que maldições vêm de todos os formatos e
tamanhos e que ficam escondidas nos lugares mais
inesperados — como se você precisasse de mais motivos
para se comportar.
Ora, elas podem vir até mesmo na forma de uma
coletânea… Não dá para saber.
Maldições.
É impossível não amá-las.
S
eria meu maior prazer, mais do que qualquer
coisa no mundo, ver esta aliança em seu dedo,
pois significaria que você concordou em ser
minha esposa — disse ele, ajoelhando-se na
frente dela.
Murmúrios percorreram o cômodo — uma série de
aprovações da parte da corte — pois o que mais a princesa
deles poderia desejar além de um príncipe? Ele era rico e
belo e vinha de uma terra boa, ou ao menos era o que
diziam, já que seu reino era tão distante que ninguém ali já
o tinha visto.
Suas maneiras eram tão atraentes que ele foi
imediatamente apelidado de “Príncipe Encantado”, embora,
é claro, nenhuma pessoa demonstraria tamanho
desrespeito ao chamá-lo assim ao alcance de seus ouvidos.
Neve não o considerava encantador. Quando ela olhou em
seus olhos muito, muito sombrios, não viu o charme
delicioso efervescente, mas o tremeluzir de uma língua
entre dentes afiados.
Ele segurava a aliança diante dela, seu sorriso branco,
fácil e esperançoso. Encantado escolhera bem o seu
momento. Ela dificilmente poderia recusá-lo diante de toda
a corte, por mais que quisesse jogar o anel na cara dele e
fugir.
Neve observou o Rei e a Rainha de soslaio. A boca de sua
madrasta era uma linha reta, os cantos dos olhos apertados
de medo. O pai de Neve assentia e sorria feito um velho
caduco, como se estivesse enfeitiçado — o que ele estava.
O Príncipe esperou, pois tinha todo o tempo do mundo, e
sabia qual seria a resposta dela. Ela viu tudo isso em seu
rosto, na curva sem preocupações de seus lábios, em seus
olhos onde a serpente se enrolava.
— É claro que aceito — respondeu ela, e ficou feliz por sua
voz ter saído clara e cristalina; assim, ninguém na corte
ouviria o horror que fervia dentro dela.
Ela desejou que tivesse a coragem para correr, mas uma
princesa é criada para ser educada acima de todas as
outras coisas, e, se o recusasse ali, haveria Consequências
— e Consequências sempre significavam guerra, sobretudo
quando o orgulho ferido de um homem estivesse envolvido.
Neve amava sua nação e seu povo. Não queria que eles
sofressem. Então, precisava aceitar a aliança, mesmo
sabendo que era uma armadilha.
Neve viu, como se a distância, sua mão se movendo
devagar na direção de Encantado, viu o leve tremor de seu
sangue em sua pele branca, viu o triunfo correr pelo seu
belo rosto conforme ele pegou os dedos dela.
O corpo de Neve se retraiu quando ele a tocou. Aquilo
pareceu deixá-lo ainda mais satisfeito. Suas mãos a
apertaram o suficiente para deixar marcas roxas, e ela
pensou que talvez ele a estivesse testando para ver o
quanto ela aguentaria antes de gritar.
Não vou gritar, pensou ela, cerrando os dentes. Não vou
dar esse prazer a ele.
No momento em que a aliança deslizou pela articulação e
encontrou seu lugar, ela se estabeleceu cruelmente e, com
pequenos dentes afiados, se uniu à pele. O rubi mudou sua
aparência, agora semelhante a um olho sangrento a
observá-la.
Ele cruzou seu braço com o dela, querendo dar a
impressão da união de um amante para todo o mundo,
conforme se viraram para encarar a corte. Apenas Neve
sabia que ele a prendia ali, suas asas de borboleta batiam
inutilmente sob o alfinete dele.
Ele a manteve por perto durante muitas horas, e ela
sentiu seu sorriso ficar forçado, mas não falhar. Neve não
mostraria fraqueza, embora soubesse que ele sentia sua
aversão e parecia se deleitar em segredo com ela.
No momento em que teve a oportunidade, ela se livrou de
seu braço.
— Está abafado demais aqui, meu Príncipe — disse ela. —
Preciso sair para tomar ar puro.
— É claro, minha princesa — respondeu ele. — Mas volte
logo para mim, pois vejo que não conseguirei tolerar um
único segundo sem você.
Diversas das jovens damas (e até mesmo algumas das
mais velhas, que deveriam entender melhor a situação)
fizeram um som de contentamento, murmurando sobre
como sua princesa tinha sorte de receber o amor de um
príncipe tão devoto.
Devoto, pensou Neve amargamente enquanto ia para o
jardim e tentava não pensar naquilo como uma fuga. Ela só
precisava de um momento para respirar, um momento
afastada do miasma ao redor dele.
Neve foi bem fundo na mata, onde ninguém poderia
encontrá-la por acidente. Parou perto de sua lagoa favorita,
coberta por vitórias-régias verdes com sapos gordos
empoleirados nelas. Libélulas iridescentes iam de um lado
para outro, pousando aqui e ali, e salgueiros-chorões se
esticavam sobre a água com suas folhas compridas.
Neve se aninhou nas sombras secretas debaixo das
árvores, girando a aliança em seu dedo, embora soubesse
que era inútil. O metal parecia prata, mas não se
comportava como nenhuma prata comum que ela
conhecesse.
Conforme ela girava, a aliança apertava sua mordida,
seus dentes entrando mais profundamente na carne dela,
até o sangue sair e Neve gritar.
— Não é assim que você vai conseguir tirá-la, mas acho
que já sabe disso.
— Mãe! — falou Neve.
Ela correu até a madrasta, que estava parada, chorando,
na ponta da lagoa, as mãos envolvendo uma à outra de
tristeza.
A Rainha segurou Neve em seus braços e as duas
choraram juntas, pois amava a garota como se fosse sua
filha, e ela era a única mãe que Neve conhecera.
Após a tempestade de pranto passar, ambas foram para
debaixo da árvore e se sentaram em silêncio. A Rainha
colocou um dedo nos lábios, demonstrando que Neve não
devia fazer perguntas. Com a outra mão, fez um gesto para
que Neve colocasse a mão presa à terrível aliança na água.
Neve ponderou sobre aquilo, mas obedeceu, porque sua
madrasta sabia de muitas coisas que ela não sabia. A
Rainha tinha nascido em uma terra mágica — e um pouco
da magia ainda residia nela — e, às vezes, conseguia fazer
pequenos milagres.
No instante em que Neve colocou a mão na lagoa, sentiu
algo mudar e se acalmar. Teve a estranha sensação de que
o olho dentro do rubi tinha ficado cego.
A Rainha leu a expressão no rosto de Neve, pois seus
corações eram próximos mesmo que não tivessem o mesmo
sangue, e assentiu.
— De vez em quando, a água pode subjugar a magia,
ainda que seja apenas um adiamento temporário. Assim
que você tirá-lo da lagoa, o olho do rubi vai se abrir de
novo.
— Então, ele está me espionando — disse Neve. — Eu
pensei que estivesse, mas quase me esqueci depois de ele
me morder.
A Rainha assentiu.
— O Príncipe tem poderes que nem mesmo eu vi. Ele
jogou seu feitiço sobre seu pai de forma tão rápida e
completa que não tive a chance de impedi-lo ou, pelo
menos, enfraquecê-lo. No entanto, sei que se seu pai
estivesse desperto e no controle de si mesmo, nunca teria
consentido com este casamento.
— Mas ele não está desperto nem está no controle de si
mesmo. E meus três irmãos estão todos longe, resolvendo
problemas do reino. Não há ninguém para me defender
desse lobo entre nós.
— Teremos que fazer o possível, ainda que não possamos
ameaçá-lo com a espada — falou a Rainha com tristeza. —
Não vou permitir que você seja machucada. E ele quer
machucá-la. Não se engane quanto a isso.
Neve concordou.
— Eu posso sentir. Embora não entenda por quê, ou por
que ele veio até aqui por mim, na verdade. Ou até por que
seus encantos não parecem ter efeito sobre mim ou você.
— Ele veio por você pela mesma razão de não poder
afetá-la — explicou a Rainha, acariciando o cabelo de Neve.
— Sua mãe também tinha um pouco de magia nela, só uma
gota, e essa gota passou para você, a última filha dela. Não
é o suficiente para que possa lançar feitiços, mas basta para
você se defender dele. Basta para manter a rede que ele
joga em todos os outros longe de nossos olhos.
Neve ficou surpresa ao ouvir sobre a magia em sua mãe,
embora não tão surpresa quanto deveria ter ficado. Eu já
devia saber, em algum lugar lá no fundo. Devo ter sentido.
Mas não importa agora. A única coisa que importa é que o
Príncipe me quer por causa disso.
— Por que o Príncipe está interessado em meu poder, se
ele é tão pequeno? Sem dúvida um homem com o poder
mágico dele ia querer uma feiticeira de verdade como
esposa, alguém que pudesse passar este dom para os
descendentes.
A Rainha bateu os dedos no joelho, como se contemplasse
se deveria contar a Neve o que estava passando por sua
cabeça.
— O que quer que a esteja incomodando, deve me contar
— disse Neve. — Posso não ter me casado ainda, mas já
estou completa e verdadeiramente jurada a ele agora.
A Rainha suspirou.
— É apenas um rumor, nada mais. Quando eu vivia em
minha própria terra, ouvi histórias sobre o pai do Príncipe.
Diziam que ele teve muitas esposas e que cada uma delas
desapareceu e nunca mais foi encontrada. Mas não pode ser
verdade, pois se princesas de tantas nações tivessem
desaparecido, teria havido um alvoroço. Os pais delas
teriam marchado reino adentro, exigindo saber o destino de
suas filhas. Então, essa parte não pode ser verdade, não de
fato.
“Não de fato” significa que pode ser verdade. Pode
mesmo.
— E qual é a outra parte da história? — perguntou Neve.
— Quando Encantado chegou, mandei em segredo um
mensageiro para a terra do Príncipe. Visto que ele era tão
desconhecido para nós, pensei que seria melhor. O
mensageiro retornou apenas na noite passada, embora
tenha cavalgado na ida e na volta com todo o empenho que
conseguiu juntar. Ele me contou que Encantado já foi
casado e que sua primeira esposa morreu. O Príncipe, é
claro, se esqueceu de nos contar isso.
— O mensageiro disse como a esposa morreu?
— No parto — respondeu a Rainha.
— Mas você não acredita nisso — disse Neve.
— Não há criança alguma na casa do Príncipe, embora
suponho que ela possa ter sido natimorta. E ninguém viu
sua esposa após ela ter entrado no castelo. Nem mesmo
uma vez.
Neve sentiu um arrepio na espinha.
— Não posso deixar ele me levar.
— Não acho que tenhamos nenhuma escolha sobre isso
agora. Ele vai casar com você e você irá com ele, porque
não pode se recusar sem causar uma guerra — disse a
Rainha.
— Eu me pergunto se é isso que ele realmente quer —
falou Neve, pensativa. — De fato, ele trouxe um exército
grande demais para um príncipe que diz ter vindo para
cortejar uma esposa.
— Meu mensageiro contou que o país de Encantado não é
bom, nem perto disso, então talvez você tenha razão. Pode
ser que tenhamos mais recursos do que ele. Mas não acho
que a intenção dele era sair daqui sem você. De qualquer
forma, não importa se ele a ganhasse de maneira justa ou
não. É a maneira que ele olha para você.
— Sim — respondeu Neve, e tremeu. — Você percebeu o
jeito que ele olha para mim.
— Mas vou tentar fazer o que puder. Em primeiro lugar,
temos que remover esse espião do seu dedo. Ele já engoliu
um pouco de seu sangue, então o feitiço já está bem fixado,
mas pode ser que possamos envenená-lo para que ele a
solte.
A Rainha deu tapinhas no joelho de Neve e falou:
— Espere aqui.
Ela caminhou para o jardim e voltou com uma maçã, uma
bela maçã redonda e vermelha, irresistível. De uma prega
no vestido, a madrasta de Neve pegou diversos frascos
pequenos.
— Você pensou que teria que me livrar de um feitiço esta
tarde? — perguntou Neve, surpresa pela Rainha ter todos
aqueles itens à mão.
— Eu esperava envenenar o Príncipe, mas não tive a
chance. Ele é bastante cuidadoso com sua comida, veja
bem.
— Sim — disse Neve. — O menino que está sempre ao
lado dele prova tudo.
— Para início de conversa, confesso que não era um bom
plano, mas, sim, um plano desesperado. Se ele de repente
caísse envenenado em nosso castelo, então suas tropas,
agrupadas do outro lado de nossos portões, com certeza
atacariam.
— Então, em vez disso, vai me envenenar? — indagou
Neve, observando a madrasta gotejar vários líquidos na
maçã.
A rainha murmurou algumas palavras conforme fazia
aquilo, palavras que Neve não entendia com a mente, mas
com o coração; palavras que soavam como o calor do sol,
como uma tempestade de areia e como a escuridão fria das
sombras sob uma lua perolada. Eram as palavras da terra
natal da Rainha, aquele lugar mágico que ela deixara para
trás, pois se apaixonara por um Rei que vivia em um lugar
verde distante.
— Estou temperando o feitiço para que ele não a
envenene a ponto de deixá-la doente. Apenas o suficiente
para deixar a aliança enjoada do seu sangue. Mas você
deve comer só um pedaço da maçã por dia e tomar cuidado
para que a aliança não veja você fazendo isso, pois tudo
que a aliança vê, o Príncipe também vê. — A Rainha
entregou a fruta para Neve.
Ela deu uma única mordida antes de escondê-la nas saias.
O sabor era estranho para sua língua, apimentado em vez
de doce, e deixou um rastro de fogo em sua garganta.
— Não sei mais o que posso fazer — disse a Rainha —,
exceto que, no instante em que seus irmãos voltarem, vou
mandá-los atrás de você. O Príncipe não pode negar a
entrada da família de sua esposa em seu castelo nem
machucá-la enquanto eles estiverem por perto.
Neve não disse em voz alta o que estava pensando, pois
via o mesmo medo no rosto de sua madrasta.
E se eu não sobreviver por tempo suficiente para meus
irmãos me encontrarem?
— Assim que sua mão estiver livre da aliança, você pode
se esconder dele — falou a Rainha. — Até lá, qualquer
esforço que fizer será inútil, pois ele pode segui-la e
encontrá-la tão facilmente quanto um falcão. Então, fique
de boca fechada, esconda seus sentimentos e finja ser uma
boa e amorosa esposa até esse dia.
— E depois?
— E depois, filha — disse a Rainha —, você deve correr.
E
les tiraram a maior parte dos trilhos no início
dos anos 1960, quando eu tinha três ou quatro
anos. Eles depenaram o serviço ferroviário. Isso
significa que não havia lugar algum a ir a não
ser Londres, e a cidadezinha em que eu morava
se tornou o fim da linha.
Minha primeira memória confiável: dezoito meses de vida,
minha mãe no hospital tendo a minha irmã e minha avó
atravessando uma ponte comigo, me levantando para ver o
trem abaixo, soltando ar e fumaça como um dragão de ferro
preto.
Nos anos seguintes, eles perderiam o último dos trens a
vapor, e com eles se foi a rede ferroviária que conectava
vilarejo a vilarejo, cidade a cidade.
Eu não sabia que os trens estavam sumindo. Quando fiz
sete anos, já eram coisa do passado.
Nós morávamos em uma casa velha nos arredores da
cidade. Os terrenos em frente estavam vazios e não eram
usados para nada. Eu costumava pular a cerca e me deitar
na sombra de junco e ler; ou, se estivesse me sentindo mais
audaz, exploraria o entorno da mansão abandonada além
dos campos. Ela tinha um lago ornamental cheio de ervas
daninhas, com uma pequena ponte de madeira. Nunca
encontrei nenhum caseiro ou cuidador nas minhas incursões
através dos jardins e bosques, e jamais tentei entrar na
mansão. Isso seria flertar com um desastre e, além disso,
para mim todas as casas velhas são assombradas.
Não é que eu fosse crédulo, eu simplesmente acreditava
em tudo que fosse sombrio e perigoso. Era parte do meu
credo juvenil que a noite era cheia de fantasmas e bruxas,
famintas e voando e vestidas de preto dos pés à cabeça.
Para me tranquilizar, o contrário era verdadeiro: a luz do
dia era segura. A luz do dia era sempre segura.
Um ritual: no último dia de escola, antes das férias de
verão, voltando para casa, eu tiraria os meus sapatos e as
minhas meias e, carregando tudo na mão, caminharia pela
rua pedregosa sobre pés rosados e delicados. Durante as
férias de verão, eu só colocaria sapatos sob pressão. Eu me
rebelaria na minha liberdade de calçados até que o
semestre escolar recomeçasse em setembro.
Quando eu tinha sete anos, descobri a trilha que
atravessa a floresta. Era verão, quente e claro, e caminhei,
sem ter uma direção definida, para bem longe de casa
naquele dia.
Eu estava explorando. Passei pela mansão, suas janelas
cobertas por tábuas e as cortinas fechadas, pelo terreno e
fui além, por algumas árvores desconhecidas. Desci uma
ribanceira e me vi em um caminho escuro que era novo
para mim e cheio de árvores; a luz que atravessava as
folhas tinha um tom verde e dourado, e eu pensei estar na
terra das fadas.
Um riacho corria pela lateral da trilha, repleto de
camarõezinhos transparentes. Eu os peguei e os observei se
mexendo e girando nas pontas dos meus dedos. Depois,
coloquei-os de volta.
Segui além no caminho. Era perfeitamente reto e coberto
de grama baixa. De tempos em tempos, eu encontraria
algumas pedras incríveis: coisas cheias de bolhas e
derretidas, marrons, e roxas, e pretas. Se você as colocasse
contra a luz, poderia ver todas as cores do arco-íris. Eu
estava certo de que elas tinham que ser extremamente
valiosas e enchi meus bolsos com elas.
Andei e andei pelo silencioso corredor verde e dourado e
não vi ninguém.
Eu não estava com fome ou com sede. Apenas seguia
para onde o caminho levava. Ele continuava a ser uma linha
reta e era perfeitamente plano. O caminho nunca mudava,
mas o campo ao redor, sim. No início, eu estava
caminhando na parte de baixo de uma ravina, barrancos
íngremes e cobertos de mato subindo em cada lado. Depois,
o caminho ficava acima de tudo, e, conforme eu avançava,
podia ver a copa das árvores abaixo, e os telhados de casas
distantes que apareciam de vez em quando. Meu caminho
era sempre plano e reto, e segui nele por vales e planaltos,
vales e planaltos. E em algum momento, em um desses
vales, cheguei a uma ponte.
Ela era de tijolos vermelhos, um enorme arco curvo sobre
o caminho. Ao seu lado, havia degraus cortados na pedra e,
no topo da escada, um pequeno portão de madeira.
Fiquei surpreso ao ver qualquer sinal da existência
humana no meu caminho, que, agora eu estava convencido,
era uma formação natural, como um vulcão. E, mais por
curiosidade do que por qualquer outra coisa (eu tinha,
afinal, caminhado por milhares de quilômetros, ou assim
pensava, e poderia estar em qualquer lugar), subi os
degraus e atravessei o portão.
Eu estava em lugar nenhum.
O topo da ponte estava coberto de lama. Em cada lado,
havia um campo. O campo do meu lado era uma plantação
de trigo; o outro era só mato. Havia as pegadas endurecidas
de enormes tratores na lama seca. Eu caminhei pela ponte
para ter certeza: na ponta dos pés, sem fazer barulho.
Nada por quilômetros; apenas campos, e trigo, e árvores.
Peguei uma espiga de trigo e tirei dela os grãos doces,
descascando-os com os dedos, mastigando-os
meditativamente.
Percebi que estava ficando com fome e voltei para descer
os degraus e chegar na estrada de ferro abandonada. Era
hora de voltar para casa. Eu não estava perdido; tudo que
precisava fazer era seguir o meu caminho para casa de
novo.
Tinha um troll esperando por mim debaixo da ponte.
— Eu sou um troll — disse ele. Então fez uma pausa e
acrescentou, mais ou menos após um momento de
reconsideração: — Fol rol de ol rol.
Ele era gigantesco: sua cabeça raspava o topo do arco de
tijolos. Era mais ou menos translúcido: eu conseguia ver os
tijolos e as árvores atrás dele, apagados, mas não perdidos.
Ele era todos os meus pesadelos feitos em carne. Tinha
dentes robustos e vigorosos, e garras afiadas, e mãos fortes
e peludas. O cabelo dele era longo como o dos brinquedos
gonks da minha irmã, e seus olhos eram esbugalhados. Ele
estava nu, e seu pênis se dependurava do monte de pelos
iguais aos do brinquedo entre suas pernas.
— Eu ouvi você, Jack — sussurrou ele em uma voz como o
vento. — Ouvi você caminhando na ponta dos pés em cima
da minha ponte. E agora vou comer a sua vida.
Eu só tinha sete anos, mas ainda era dia, e não me lembro
de ter ficado com medo. É bom quando crianças se
deparam com elementos dos contos de fadas — elas estão
bem preparadas para lidar com eles.
— Não me coma — pedi ao troll. Eu estava usando uma
camisa listrada marrom e uma calça cotelê da mesma cor.
Meu cabelo também era amarronzado, e eu tinha perdido o
dente da frente. Estava aprendendo a assobiar entre os
dentes, mas ainda não tinha conseguido fazer isso muito
bem.
— Eu vou comer a sua vida, Jack — disse o troll.
Eu o encarei.
— Minha irmã mais velha vai chegar daqui a pouco —
menti —, e ela é muito mais saborosa do que eu. Coma ela
em vez de mim.
O troll cheirou o ar e sorriu.
— Você está completamente sozinho — disse ele. — Não
tem mais nada no caminho. Absolutamente nada. — Então,
ele se inclinou e passou seus dedos em mim: parecia que
borboletas acariciavam meu rosto, era como o toque de
uma pessoa cega. Então ele cheirou os próprios dedos e
balançou sua cabeça grande. — Você não tem uma irmã
mais velha. Só tem uma irmã mais nova e ela está na casa
de uma amiga hoje.
— Você percebe tudo isso pelo cheiro? — perguntei,
abismado.
— Os trolls podem sentir o cheiro dos arcos-íris, os trolls
podem sentir o cheiro das estrelas — murmurou a criatura,
triste. — Os trolls podem sentir o cheiro dos sonhos que
você sonhou antes de nascer. Chegue mais perto para eu
comer sua vida.
— Eu tenho pedras preciosas no bolso — falei para o troll.
— Fique com elas, não comigo. Olhe. — Mostrei para ele as
joias de lava que encontrara mais cedo.
— Clínquer — disse o troll. — O rejeito descartado de um
trem a vapor. Não tem valor para mim.
Ele escancarou a boca. Dentes afiados. Bafo com cheiro
de terra coberta de folhas secas e da parte de baixo das
coisas.
— Comer. Agora.
Ele começou a ficar cada vez mais sólido para mim, cada
vez mais real; e o mundo exterior se tornou inanimado,
começou a sumir.
— Espere. — Afundei meus pés na terra úmida embaixo
da ponte, remexi meus dedos, me segurei firme ao mundo
real. Fitei seus olhos imensos. — Você não quer comer a
minha vida. Ainda não. E-eu só tenho sete anos. Não vivi
nem um pouco. Tem livros que eu ainda não li. Nunca viajei
de avião. Não consigo nem assobiar, não de verdade. Por
que não me deixa ir? Quando eu for mais velho, maior e
uma refeição melhor, eu volto.
O troll me encarou com olhos que pareciam faróis.
Aí, ele assentiu.
— Quando você voltar, então — falou. E sorriu.
Dei as costas e caminhei pela trilha reta que já tinha dado
lugar para a estrada de ferro.
Depois de um tempo, comecei a correr.
Caminhei com passos fortes pela trilha, bufando e
ofegando, até sentir uma dor pontuda na parte de trás das
costelas, a dor de uma agulhada; e, com a mão na lateral
do meu corpo, fui tropeando até em casa.
Q
uando eles entram na sala de aula, John
pensa que está vendo em dobro. Eles são
exatamente iguais: dourado e azuis, cabelo e
olhos. O garoto é um pouco mais alto, talvez.
John fica mais tempo olhando para a menina.
Todo mundo está encarando eles. Eles não parecem se
importar. Estão acostumados com isso. A professora fala o
nome deles, e eles sorriem com educação. Daisy e Drew.
John pensa como é idiota dar nomes que começam com a
mesma letra a gêmeos, como personagens de velhas
histórias sobre colégios internos. Alice gostava desse tipo de
livros. John não.
Há um assento vazio ao seu lado, e ele fica cheio de
esperança. Mas é claro que a professora coloca a garota lá
no fundo da sala, e o menino fica com a carteira ao lado de
John. Ele emana um odor estranho e delicado, como a tigela
de frutas em casa, quando as mosquinhas começavam a
voar ao redor dela.
John se assusta, porque, de repente, os pés das carteiras
começam a arranhar o piso e há um tumulto de vozes. A
aula terminou. O menino está olhando para ele de maneira
amigável.
— Você estava dormindo de olhos abertos.
— Estava um saco — responde John. Ele não dorme mais à
noite, mas não quer falar sobre isso.
John tem treze anos. Às vezes, ele diz às pessoas que tem
dezesseis. E, às vezes, elas acreditam porque ele é alto —
embora tenha começado a desenvolver uma corcunda nos
últimos meses. Ele não gosta de ocupar muito espaço ou
que as pessoas fiquem o encarando. Só no caso de que o
que há no seu interior fique visível no exterior.
Ele pisca. Está no pátio, sob o sol, e aquele garoto Drew
está ao seu lado, com um jeito amistoso. Sua pele e seus
olhos são tão claros que ele parece quase perolado, com
uma luz do lado de dentro. As garotas do ensino médio
formam uma fila. O recreio delas chegou ao fim. Elas olham
para Drew, pequenos flashes de calor passando pela cerca
de arame. John sente alfinetadas profundas de inveja no
estômago. Elas não olham daquela maneira para ele, com
seu cabelo castanho idiota e seus olhos normais.
Drew pergunta:
— E aí, o que tem para fazer aqui?
— Não muito — responde John. Não se preocupa em
parecer amigável.
— Quer ir na nossa casa depois da aula? Não vai ter
nenhum adulto lá.
John diz:
— Nah.
— Ah, vai sim — fala Drew, e John dá de ombros e
responde Ok para fazer com que o garoto vá embora. Ele
supõe que vai ser melhor do que ir para a própria casa, para
a mãe dele e seu lento sofrimento. Ele anda cansado
ultimamente. Talvez seja por isso que as pessoas acreditam
nele quando fala que é mais velho.
E
las sempre sabiam quando ela estava prestes a
chegar. Erren não entendia como aquilo
funcionava, mas, enfim, ela não entendia muita
coisa sobre a vida dela naquele tempo.
Que os deuses as ajudem, elas ficavam até
animadas. Conforme Erren alcançava os limites desse novo
assentamento, viu um monte de crianças sentadas em uma
cerca longa e curvilínea, os rostos cheios de interesse.
Quando ela chegou mais perto, a poeira da estrada
comprida formando nuvenzinhas alaranjadas em volta dos
seus pés, elas começaram a gritar perguntas estridentes
para ela. De onde ela vinha? O que ia tocar? Se eles
pedissem, ela tocaria a música que eles queriam?
Erren assentiu para as crianças e falou bem pouco.
Infelizmente, elas logo ouviriam sua canção.
Ela seguiu as crianças, que a levaram a uma construção
que mais parecia um monte pequeno, feito de pedra e lama
e pontuado com janelinhas quadradas que eram pouco mais
que buracos. O topo do lugar era coberto de grama verde e
flores, e uma fina fumaça cinzenta saía regularmente de um
buraco que ela não conseguia ver. Erren tinha quase certeza
de que nunca tinha visto nada igual, mas, uma vez dentro,
percebeu que era apenas outra taberna, igual a qualquer
outro buraco para beber que ela já tinha entrado: o cheiro
forte de cerveja, a centelha esfumaçada de uma lareira.
— Então, você é a música — disse a taberneiro,
amigavelmente. — Veio de longe?
Erren optou por ignorar a questão. Eles nunca
entenderiam a resposta.
— Sou a música — confirmou ela. — Você vai me escutar?
Toda vez que ela perguntava, uma pequena parte dela
esperava que respondessem que não, mas ninguém havia
dito isso ainda. É claro que não. A taberneira abriu ainda
mais o sorriso, cruzando os braços debaixo do seu
considerável busto.
— Vamos ficar felizes em escutar você — disse ela. — Não
temos muito entretenimento por aqui. Acho que a maior
parte do vilarejo vem ver você, querida. Quer que eu abra
um espaço perto da lareira? De quanto espaço você
precisa?
— Não muito, só tenho minhas flautas. Mas será que
posso pedir uma comida antes…?
Ela aprendera a garantir seu alimento antes de tocar. Era
difícil resistir ao ímpeto de tocar; a necessidade era como
uma sensação seca e quente na nuca, um peso nos seus
dedos, mas se ela se concentrasse bastante, conseguiria
evitar por mais ou menos uma hora. A taberneira trouxe
sopa de cebola quente, pão fresco e, para o deleite de
Erren, uma taça de um rum com gosto de framboesa que a
fazia lembrar bem da sua casa impossivelmente distante.
Mas logo seus dedos começaram a tremer, e o calor na
nuca se tornou sufocante, como se mãos finas se
apertassem em volta da garganta dela. Ela colocou a
cumbuca e a taça de lado e procurou pela flauta.
Enquanto estava comendo, a taberna aos poucos se
encheu de clientes até cada cadeira ficar ocupada e havia
outros de pé, todos os olhos nela. Eles não pareciam
surpresos pela flauta em si, mas, então, as pessoas
raramente ficavam. Erren muitas vezes se perguntava se
eles pensavam que os tubos eram feitos de uma madeira
clara especial ou algum tipo de argila fina. Ou talvez eles
soubessem o que o instrumento era e não se importassem.
Sem olhar para os homens e as mulheres reunidos — e as
crianças, que os deuses as ajudem, as crianças também —,
ela baixou a boca para a ponta do tubo e tomou fôlego.
E
u estava sentado do lado da vitrine de uma loja
de caridade em East Barnet quando Henry
Mossop passou pela rua. O meu lugar não era
particularmente bom. O assistente (aquela
coisinha sem noção com cor de vômito) me
colocou bem no canto, entre um vaso tão feio que era capaz
de fazer alguém chorar e um prato em comemoração ao
casamento do príncipe Charles e Lady Diana Spencer.
Eu não olhei uma segunda vez para Henry conforme ele
invadia o meu campo de visão. Ele não era o tipo de pessoa
que convidava segundos olhares. Era basicamente um
punhado de membros bagunçados com uma cabeça no
formato de nabo. Cabelos pretos engordurados que mais
pareciam uma colônia de bactérias. Roupas que
combinavam com uma bela fogueira.
Segundo olhar ou não, Henry tinha uma alma receptiva e,
por sorte, ele demorou tempo suficiente para fazer contato.
Acho que foi o prato que primeiro chamou a atenção dele —
não porque fosse um entusiasta da realeza, mas porque era
um romântico. Ficou com os olhos todos marejados, e
chegou tão perto da vitrine que sua respiração embaçou o
lado oposto do vidro. Dava para ver que “Candle in the
Wind” estava tocando em som surround 5.1 no cinema
perfeito da mente dele.
Dei a volta pelo cinema, encontrei a saída de emergência,
forcei-a para abrir e entrei. Tudo isso levou mais ou menos
dez segundos. O que eu posso dizer? Sou bom nisso.
Ei, Henry, falei. Ei. Olha aqui. Aqui para baixo. Vire à
esquerda depois do prato até chegar no… não, não, você
passou. Volte um pouco para a direita. Mais um pouquinho.
Perfeito. E aí?
Apesar dessa saudação, muito verborrágica para os meus
padrões e cheia de detalhes, Henry olhou para os lados,
para o caso de eu estar falando com alguém atrás dele.
Não, falei. Você. Estou falando com você. Jesus! Henry, eu
usei o seu nome.
— Foi mal.
Esquece. Só, sabe, se concentra um pouco. É importante.
— Hã… Como é que você pode falar? — perguntou Henry.
Eu falo do mesmo jeito que você. Bem, não exatamente
do mesmo jeito. Não tenho boca, claro. Mas formo conceitos
na minha mente usando palavras como um ábaco
semântico e junto tudo em frases inteligentes.
— Mas você é uma caixa!
Não, na verdade, não. É um erro comum. Eu pareço uma
caixa, mas na verdade sou… sabe, preferiria deixar esses
detalhes de lado por enquanto. Eu estava prestes a fazer
uma proposta para você.
Henry coçou a cabeça, o gesto imemorial daqueles que
estão comicamente impressionados.
— Uma o quê?
Uma proposta. Uma barganha. Uma oferta. Um negócio. A
chance de uma vida et cetera e tal. Um pouco faustiana,
mas boa ainda assim. Bem, bom é um conceito complicado,
mas, comparado a esse tipo de arranjo, estou oferecendo o
bilhete dourado.
Henry se agarrou a uma das poucas palavras que tinha
entendido e a estudou da melhor maneira que podia.
— Uma oferta especial?
É, Henry. Isso mesmo. Exatamente. Uma oferta muito,
muito especial.
— O que é, então?
Desejos.
— Desejos?
Isso mesmo. Quer dinheiro? Sexo? Uma assinatura de
graça da Netflix? Mais sexo? Superpoderes? Sexo
selvagem? O que quer que faça jorrar as suas endorfinas,
eu posso selvagemr. Em uma abundância gigantesca, para
ser sincero.
Henry pensou sobre isso. Ou ao menos o mais perto que
consegue chegar de “pensar”. Ele não era exatamente um
campeão nessa atividade em particular.
— Você é uma fada? — perguntou ele.
Puta merda, pensei. Me dei bem. Mas meus termos e
condições são restritos. Não posso mentir. Não, Henry. Não
sou exatamente uma fada. Sou meio que parecido com isso,
mas… é, não, nem um pouco parecido. Sou diferente.
Completamente diferente. Água e vinho.
Henry olhou de forma suspeita para mim. Um olhar que
dizia que ele não era o tipo de homem que se enganava por
caixas falantes com propostas de vendas escorregadias e
credenciais duvidosas.
— O que você é, então? — questionou ele.
E, como ele perguntou, eu tinha que responder. Sou um
demônio.
Aqui é o vai ou racha para algumas pessoas. Henry podia
ter dado sebo nas canelas e se mandado, e eu teria deixado
ele ir. Não dá para forçar essas coisas. Ainda mais quando
sua extrusão material ficou presa na forma de uma caixa de
madeira com uma galinha e uns pintinhos (muito mal)
desenhados na tampa. Não estou equipado para fazer
perseguições em alta velocidade. Não neste plano. Se você
me encontrasse nos campos de Tártaro, seria outra coisa. E
o encontro seria breve.
Mas Henry não correu. Ele apenas assentiu. Sua
expressão vazia não mudou.
O consentimento é importante nesses assuntos, então
tentei de novo. Um demônio, falei. Sabe como é. Como em
diabo. Capeta. Cria do inferno. Esse tipo de coisa.
— Tá bom. Mas você concede desejos do mesmo jeito que
uma fada.
Sim. Até melhor que uma fada. Nosso pacote atual inclui
desejos ilimitados. Dispensamos o teto usual de três para
fazedores de desejos especiais como você. Você pode até
desejar mais desejos, embora, como a sua base é infinita,
provavelmente já tem todos de que pode precisar. Nós
tambémovemos a restrição temporária de desejos que
alteram a linha do tempo. Você pode bagunçar o tempo-
espaço à vontade.
Henry juntou as mãos. Seu rosto inocente estava
impregnado de uma animação crescente.
— Uma fada na caixa! — disse ele. — Que maneiro! Que
maneiro!
Demônio. Então vamos fechar o negócio, Henry. Entre na
loja e me compre. Eu custo quatro libras e noventa e nove
centavos, mas você pode recuperar isso imediatamente ao
desejar o dinheiro de volta. Eu não ia querer que você
ficasse andando por aí sem dinheiro no bolso. Vamos.
A palavra “bolso” — um belo substantivo das antigas que
denota uma coisa física — causou uma reação nele. Henry
procurou nos seus vários bolsos por notas e moedas, por fim
recuperando um amontoado razoável.
— Isso aqui dá? — perguntou ele.
Dá, Henry. Você tem trinta e cinco e mais uns trocados aí.
É só dar para a mulher a nota azul que ela vai te dar um
centavo de troco. Além de mim. Ah, mas Henry, antes de
você completar a compra…
Ele estava quase entrando na loja. Então parou.
— O quê?
Eu sou um demônio, mas não sou o demônio de Maxwell.
Entende o que eu quero dizer?
Ele balançou a cabeça.
— Não.
Ah, tudo bem então, a gente vê isso depois. Agora faz o
que você tem que fazer, homem. Vamos fechar negócio.
E assim foi. Fiquei orgulhoso do carinha. Ele negociou a
transação sem titubear, e até ganhou uma sacola plástica
para me levar para casa. Tecnicamente, aquilo deveria ter
custado mais cinco centavos, mas a mulher no balcão não
viu por que insistir naquilo. Ela sentiu pena de Henry, vendo
ele como alguém intrinsicamente inofensivo e basicamente
à deriva nas marés da vida. Eu tinha presumido a mesma
coisa, mas, enquanto eu queria formar uma ligação
parasítica com ele a fim de explorar aquela ingenuidade
para os meus próprios indizíveis fins, ela só se sentiu um
pouco matriarcal. Acho que seria um tédio se fôssemos
todos iguais.
Assim que chegamos à casa de Henry, eu o encorajei a
fazer um test drive, por assim dizer. Uma coisa pequena,
falei. Para ter certeza de que funciona. Ok, disse Henry. Ele
apertou bem os olhos e desejou um peixinho-dourado. Um
nanossegundo depois lá estava ele, nadando por aí. Henry
não tinha desejado um aquário ou água, mas dei isso para
ele mesmo assim — e também alguma areia e pedras para
cobrir a parte de baixo, uma luz LED azul para dar um pouco
de atmosfera e um filtro no formato de um galeão espanhol.
Eu podia ter feito o peixinho-dourado sufocar até a última
das suas respirações inúteis no chão de linóleo — o gambito
da literalidade levada às últimas, como chamamos —, mas
isso é para perdedores. Quer dizer, é divertido no início, de
um jeito meio pastelão e estúpido, mas faz com que não
tenha muito retorno. Eu queria que Henry confiasse em mim
ou, pelo menos, confiasse no processo. Que ele sentisse que
podia ir atrás do filão de ouro.
Enquanto isso, a uns continentes de distância, a bicicleta
de um indiano que trabalha com tecidos perdeu a roda da
frente quando descia uma ladeira. O pobre coitado caiu de
cara no chão e um carro atropelou ele antes de conseguir
parar. Uma verdadeira bagunça, vou te dizer.
Sem saber deste interessante drama humano, Henry
gargarejou de felicidade.
— Vou chamar ele de Goldy! — falou.
Por mim, pode chamá-lo até de Ivan, o fodidamente
Terrível, pensei. Só continue com os desejos.
O que ele fez. Conforme eu esperava, a primeira
demonstração, por mais modesta que fosse, foi suficiente
para dar tratos à bola. Em pouco tempo, Henry pediu outro
peixinho-dourado, uma televisão OLED, uma poltrona
reclinável em frente a esse televisor, mais dois peixinhos-
dourados, uma coleção em DVD dos trabalhos de Oliver
Postgate (Nogging the Nog, The Clangers, Bagpuss, todos os
clássicos) e uma refeição de salsichas e batatas fritas
seguida por arroz-doce. Ah, e algum dinheiro. O suficiente
para sobreviver, o que eu interpretei com alguma liberdade.
Há alguns meses, ele tinha sido demitido do trabalho
(coloque aspas aqui) limpando privadas no shopping Spires
e estava tão perto da falência que não fazia diferença.
Isso ainda era coisa pequena, para falar a verdade, mas
coisa pequena pode ter grandes efeitos se você fizer a coisa
certa. Um fusível explode no subúrbio de Cape Town. Na
escuridão, alguém tropeça e dá um grito. Uma pedra
estraçalha uma janela. Antes mesmo de perceber, você já
está até o joelho de dano colateral. Eu já fiz isso antes, se
ainda não ficou claro.
Eu passei a conhecer Henry muito bem naquele tempo,
afinal, éramos colegas de quarto. Vivíamos sob o mesmo
teto, dividíamos todas as balbúrdias da vida de uma
maneira que daria uma excelente sitcom. Fiquei sabendo do
pai horrível dele (abusivo, e então abominável, e então
ausente), a merda que ele teve que aguentar dos colegas
sociopatas da escola, a mãe dele, que foi intempestiva…
vou te poupar dos detalhes. É tão chato quanto parece. O
cara era um saco de pancada com um rosto. Boa matéria-
prima, companhia horrorosa. Eu sofro pela minha arte, é
tudo que vou dizer sobre o assunto.
Mas agora nós estávamos realmente pegando o jeito. Isso
sempre acontece, com desejos ilimitados. Toda aquela coisa
dos três-desejos-e-acabou foi criada com a intenção de
deixar o fazedor de desejos em uma zona de consequências
não intencionais e deixá-lo lá. Eram tempos mais simples.
Assim que conseguimos entender as letras miúdas das leis
da termodinâmica, redefinimos nossos objetivos.
Não que Henry estivesse morrendo de vontade de fazer
coisas que não podia fazer, na verdade. Longe disso. Ele
precisava de muitas cotoveladas de leve e persuasão no
caminho. Então, Henry, falei, mais ou menos três dias
depois. Me diz uma coisa.
— Pois não, caixa?
Essa casa é bem grande para um cara só. Você sempre
morou aqui sozinho?
— Não, minha mãe morava aqui comigo.
Saquei. Caramba, foi difícil quando ela morreu?
— Eu senti muito a falta dela. Ainda sinto. Ela sempre
cuidou de mim.
Claro.
— Eu tinha uma cadela também. O nome dela era
Princess. — Seus olhos ficaram esbugalhados. — Ah! —
disse ele. — Ah!
O que foi?
— Eu poderia… Eu poderia desejar…
Qualquer coisa, cara. Qualquer coisa mesmo. É só pedir.
Saiu tudo de uma vez.
— Eu desejo que Princess volte à vida!
Francamente, eu teria preferido a mãe, esse era o meu
objetivo. Mais energia para brincar, porque a linha de tempo
de um ser humano é um negócio maior, mais complicado.
Mas um cachorro é melhor do que nada. Princess apareceu
no meio da sala, o rabo se movimentando como um
metrônomo peludo em prestíssimo, e correu para o colo de
Henry.
Em outro lugar, ao mesmo tempo e não por coincidência,
um sumidouro engoliu uma casa em Buenos Aires. Eu queria
fazer isso há um tempo. O cara que morava na casa era
meio que um santo secular, com uma alma límpida, limpa e
generosa, o que me deixava irritado para cacete.
Muito mais importante era que o pedido de Henry abria a
janela da linha de tempo alternativa. Voltei para o passado e
mexi em uma coisinha ou duas — a maior delas foi a
Ermächtigungsgesetz no Reichstag da Alemanha de 1933,
que agora fora aprovada com folga, em vez de perder por
um voto. Abracadabra! Uma guerra mundial que nunca
tinha acontecido agora, de repente, tinha. Os caras maus
perderam, mas conseguiram dar uns socos antes de cair, e
as consequências continuaram por décadas. Eu estava
mandando bem.
Henry podia ser mais devagar que melaço em cima de
uma geleira, mas estava começando a ver pelo menos
algumas das possibilidades infinitas. Se podia trazer sua
cadela de volta, podia ter alguns dos confortos de outrora
também. Ainda estava inseguro demais para trazer a
mamãe de volta dos mortos. Talvez ele tenha assistido a
uma reprise de “The Monkey’s Paw” no Thirty-Minute
Theatre quando era moleque, e aquilo deixou nele uma
sensação vestigial de como aquela transação poderia dar
errado. Mas ele podia e desejou alguns brinquedos perdidos,
bichos de estimação mortos e as neves do caralho de
outrora. Os bichos de estimação em particular foram um
desafio para mim. A casa estava cheia de cachorros, gatos,
hamsters e periquitos, alguns dos quais tinham sérios
problemas ao usar o banheiro e não respeitavam um
acabamento envernizado.
Mas aguentei tudo isso com uma paciência filosófica. As
consequências negativas eram minhas, e o céu era o limite
agora. Literalmente. Enchi a atmosfera com gases de efeito
estufa, girando o mundo em uma linha do tempo em que a
energia renovável só era descoberta tarde demais e a
maioria das pessoas a ignorava. A biosfera só apanhava,
eventos climáticos catastróficos estavam acontecendo dia
sim, dia não e a diversão estava só começando.
Ao mesmo tempo, fiz alguns indivíduos intolerantes e
demagogos que pregavam o ódio avançarem nas suas
carreiras, dando a eles as plataformas que eles precisavam
para divulgar suas mensagens para o maior número de
pessoas. O discurso racional saiu de moda e foi jogado no
lixo. Os fatos se tornaram irrelevantes. Materialistas e
charlatões foram reverenciados como deuses. Foi uma coisa
incrível.
Talvez eu tenha exagerado um pouco. Pensei que Henry
estava perdido demais no seu zoológico cada vez maior
para notar o estado em que o mundo se encontrava. Mas,
uma manhã, percebi que ele olhava pela janela com o que
às vezes é chamado de cenho franzido. Ou, no caso de
Henry, tobogã de piolho franzido.
Qual é o problema, meu chapa?, perguntei a ele.
— Todo mundo está tão triste, caixa.
É a condição humana. Não se preocupe com isso.
— Mas eles estão mais tristes do que costumavam ficar.
Isso não é bom, pensei. Nem um pouco. É melhor
encontrar algum jeito de mudar de assunto antes que…
— Por quê, caixa? Por que eles estão tão tristes?
Tarde demais. Assim que ele fez a pergunta, eu não tinha
escolha. Termos e condições etc. No tocante, eu era
dominado por ele, sob juramento. Por sorte, pensei, a
Maravilha Descerebrada aqui não era nem um pouco
preparada para o passeio que a gente ia ter. Ele
simplesmente não tinha o kit de cognição.
Bem, falei, é o seguinte, Henry. Lembra quando nos
encontramos pela primeira vez. Eu te falei que era um
demônio.
— Eu lembro.
Mas eu também falei que não era o demônio de Maxwell.
Eu estava tentando encontrar uma maneira simples de
explicar um conceito dificílimo. É sobre entropia. Eu posso
explicar isso sem problema, mas duvido que você entenda
uma palavra.
— Me conta!
Então tá bom. Senta aí e abra as orelhas, cara. Faça o seu
melhor.
Henry realmente fez o seu melhor para parecer atento.
Ele ficou ridículo.
Maxwell era esse cara, sabe? Físico. Matemático. Adorava
se masturbar em público, mas isso era de se esperar.
Ninguém nunca pegou ele fazendo isso. Enfim, ele se
interessou pela segunda lei da termodinâmica. Aquela que
diz que as coisas acabam e não tem como voltar atrás.
Maxwell tentou inventar uma forma de voltar atrás. Na
minha experiência, a masturbação nunca dá em nada de
bom. Ou, mesmo quando dá, deixa tudo uma zona para
limpar depois. Pensando nisso, esse é um bom exemplo da
lei da termodinâmica quanto qualquer outro. Em um
sistema fechado, a entropia — a desordem, a
disfuncionalidade, a bagunça — sempre deve aumentar.
Não é por coincidência que as estrelas queimam até apagar,
e que os quarks parem de girar, e que seu freezer desmaie
e morra durante uma onda de calor. É a natureza das
coisas. É assim mesmo.
Mas então, diz Maxwell. Vamos colocar uma caixa com
dois compartimentos. Átomos indo de lá para cá em todas
as direções. Um sistema turbulento. Uma tempestade de
merda. Que nem o seu quarto, Henry, mas sem o ursinho de
pelúcia caolho. Ou deixo o urso lá, se isso te ajuda. É só um
experimento da mente.
Agora vamos colocar um alçapão no meio da caixa, na
parede que separa os dois compartimentos. E um demônio,
sentado bem do lado do alçapão, com sua mão cheia de
garras na maçaneta. Ele pode estar segurando o seu
ursinho, se você quiser. Sempre que um átomo passa perto
desse carinha, ele escolhe se vai deixar ou não o átomo ir
para o outro lado. Se for rápido — e, portanto, quente —, ele
abre a porta. Se for devagar, e assim frio, ele dá um gelo no
átomo. A porta continua fechada.
E então, com o tempo, átomo por átomo, a caixa meio
que se resolve sozinha. Metade dela fica quente, a outra
metade, fria.
— Por que isso importa? — questiona Henry.
Fiquei surpreso. Parecia uma pergunta pertinente.
Assustador. Só um acidente, no entanto, com certeza.
Importa, Henry, porque a entropia diminuiu. A ordem foi
criada sem gasto de energia. É meio mágico. Um milagre
amigável. Significa que o universo não precisa terminar
como porra congelada com merda para tudo quanto é lado.
Tem uma chance de que ele fique bem, afinal.
Mas — e me acompanhe aqui, Henry — eu não sou esse
demônio. Sou um tipo completamente diferente de
demônio. Eu gosto da entropia. Cacete, eu amo essa coisa.
Você pode dizer que sou uma fábrica de entropia. Enquanto
o demônio de Maxwell tira o pó dos enfeites sobre o
aparador e leva o lixo para fora, eu destruo o aparador com
um cutelo e coloco fogo no lixo. Está me entendendo?
Henry franziu o cenho, como se estivesse tentando muito
me entender.
— Não.
Caramba, que alívio. Um sim teria me deixado bem
preocupado.
Então, Henry, olha, falei. Eu concedo desejos, certo? Isso,
de um modo, é antientrópico. Ou poderia ser. Reorganiza o
universo de acordo com os desejos de um dos seus
detentos atuais, o que aumenta a ordem. Tenho que
reconhecer que, em geral, esse tipo de coisa é gasto com
ninharias. Mas, intrinsecamente, é a porra de um negócio
incrível. Quem não ia querer um pouco disso? Dá para
entender por que as pessoas aceitam. Mas o coice é o que
mata.
— Como assim, coice? — pergunta Henry, com o mesmo
olhar de intelectualidade constipada.
É como de uma arma, Henry. Quando você atira uma
arma e cai de costas no chão. A energia para mover aquela
bala pequenininha por mil metros é mais que suficiente
para mover um objeto muito maior — você —, fazendo-o dar
uma cambalhota hilariante até cair de bunda no chão. Eu
faço isso. Só que faço melhor. Toda vez que atendo a um
pedido, jogo uma maldição. E a maldição é mais ou menos
mil vezes maior do que o pedido. Eu uso o poder
probabilístico afrouxado pelo desejo para bagunçar com o
mundo inteiro em uma escala que… não, não devo me
gabar, mas é coisa boa. O que, é claro, significa que é coisa
ruim. Coisa ruim que me deixa excitado.
Foi um discurso propositalmente longo, pois eu sabia que
a atenção de Henry era curta. Mas depois que terminei,
dava para ver, pelos músculos que continuavam a se mexer
na cara dele, que Henry estava tentando pensar.
Não se preocupa, Henry, falei. Por favor, não se preocupa.
Eu sei o que Oscar Wilde disse. A ignorância é como uma
fruta exótica delicada. Toque nela que ela vira merda.
— Mas… — disse Henry.
Não, cara, não. Não faz isso consigo mesmo. Só pede
alguma coisa bem legal, e deixa o seu cérebro ficar quieto
de novo. Não dá para ter bichos suficiente, né?
— Não, mas…
Ma-ma-ma-ma-muu-muu-muuáá! Vamos nos concentrar
naquilo que fazemos melhor. O que te deixaria feliz agora? É
só me dizer que eu cuido disso.
— Mas se me deixar feliz faz com que todo mundo fique
triste…
Merda! Quebrei o Henry. Como eu consegui fazer isso? Ele
era um modelo único de estupidez de alto impacto.
Não, insisti. Henry. Me escuta. A infelicidade é uma
condição humana. Se você não fizer com que aquelas
pessoas se sintam miseráveis, elas vão achar que tem algo
faltando. E se não for isso, confie em mim, vai ser outra
coisa. Ei, se lembra daqueles descaralhados que torturaram
você no colégio? Bem, multiplique eles por um bilhão e você
tem a raça humana. Você não deve nada a eles, exceto
talvez um pouco de vingança.
Henry balançou a cabeça, o que significava que ele tinha
a temeridade e os até então ignorados culhões para
discordar de mim.
— Minha mãe dizia que você precisa sempre ajudar as
pessoas em necessidade. Ela disse que somos colocados
aqui nesse mundo para ajudar uns aos outros.
Ela disse? Caramba! Que filósofa de merda sua mãe era.
Agora, vamos voltar a ser amigos. Faça um pedido. Um bem
grande. O que me diz?
Henry não respondeu. A cara dele parecia a de uma mula
com um cacto preso na bunda.
Henry, falei. Você tem que fazer um pedido, cara. Vai se
sentir melhor com isso, e eu também.
Mais reflexões de mula/cacto. Eu estava prestes a intervir,
quando Henry me interrompeu.
— Eu desejo…
Finalmente! Você tinha me deixado preocupado, meu
chapa. Vamos ouvir.
— Eu desejo ser inteligente o suficiente para entender
tudo que você me disse.
Ah, merda.
Não é algo condicional, para o caso de você estar em
dúvida. Não dá para conceder um desejo e ignorar o outro.
O sistema não é feito dessa maneira. As condições padrão
dão início e a energia flui. Um milhão de pequenas rodas
dentadas começam a se mexer. A realidade se transforma
para um novo formato, com um monte de cliques e claques
e o ocasional zumbido da probabilidade escapando.
O entendimento impregnou o rosto de Henry. Não foi
bonito.
— Você me usou — disse ele.
Essa é uma forma pouco lisonjeira de você colocar, Henry.
Nós usamos um ao outro, claro. Eu pude tirar o mundo do
lugar, você ganhou bichinhos. Mas se não estiver feliz com o
negócio, pode acabar com ele a qualquer momento. Agora
mesmo, inclusive. Você decide.
— Você me deu presentes triviais e conglobou… o quê, o
resíduo existencial? Então usou esse poder para piorar
significativa e irreversivelmente a vida de milhões de
pessoas.
Bilhões, você quer dizer. Gostei dessa frase, resíduo
existencial. É uma boa forma de colocar. Mais uma vez,
você pode anular sua barganha a qualquer hora, e eu não
vou ficar chateado. O que me diz? Seguir caminhos
separados?
— Não.
De novo, merda. O cérebro turbinado de Henry estava
preparando a mira e eu era o alvo. Havia uma razão para eu
ter escolhido ele em primeiro lugar. Ele era… como é aquela
frase do Lênin? Ah, sim, um idiota útil. E lá estava ele agora,
tendo pensamentos profundos. Bem para cima de mim. Não
gostei nem um pouco daquilo.
— Então, um pedido que propicia um pequeno aumento
de felicidade para uma pessoa cria um efeito do tipo coice,
uma maldição, que propicia miséria a milhões.
E agora eu vejo que esse tipo de coisa não funciona para
você. Eu respeito isso. É só falar, Henry, que eu me mando.
— Funcionaria da maneira contrária? Se eu fizesse um
pedido que me causasse dor, o coice seria um aumento
geral de felicidade?
Merda, pela terceira e última vez.
Sim, falei. Eu não podia mentir. Não podia esconder nada.
Ele tinha encontrado a minha kryptonita.
Henry se sentou. Ele encarou a caixa de madeira que é
minha extensão material. Correu o dedo pela beirada da
minha tampa.
— Acomode-se — falou ele para mim. — Vai ser uma longa
noite.
Ele não estava brincando. Foi mesmo uma longa noite,
uma longa manhã, uma longa semana, um longo… As
coisas ficaram longas. Vamos deixar assim.
Minha relação com o Henry nunca foi a mesma depois
daquele dia fodido terrível. Quer dizer, tem seu lado bom.
Eu posso assar o rabo daquele filho da mãe espertinho,
tanto de forma figurativa quanto literal. Sempre que meu
ódio profundo por ele e pelas coisas que ele me obriga a
fazer ficam demais para aguentar, eu posso descarregar
cada grama de frustração nele. Sem regras, sem limites.
Mas sempre que eu faço isso, o mundo fica mais perto da
Utopia. Ele sofre, e o coice gera ondas de coisas fortuitas
descobertas por acaso, alegria e caridade. A arquitetura da
realidade se redefine, sem descanso, em algo
surpreendente, maravilhoso e inspirador, um templo
onidimensional que canta em harmonias angelicais quando
os ventos do limbo batem em suas vistas marmorizadas. Me
dá vontade de vomitar.
Os outros demônios riem de mim pelas costas. Lá vai o
Bondoso Dois-Cascos, dizem eles, com sua varinha mágica
e seu tutu cintilante, levando presentes para todos os
menininhos e todas as menininhas. O animalzinho de
estimação de Henry Mossop. O arcanjo Burraldo. A fada no
topo da árvore de Natal.
Tenho bebido um bocado. Dois ou três bares por noite.
Qualquer lugar em que sirvam uma ou dez cervejas para
uma caixa de madeira. Noite passada, eu encontrei o
demônio de Maxwell e a gente entornou umas juntos.
Ele me falou que nunca foi sobre termodinâmica para ele.
Que ele estava fazendo o que amava.
PELE
JAMES BROGDEN
Q
uase em casa — ela quase chegou em casa.
Hannah não conseguia identificar o
momento exato em que percebeu o shlop-
shploft dos passos se arrastando na calçada a
uns dez metros dela, seguindo-a. O ônibus
noturno tinha deixado ela perto das vitrines claras como
aquários e postes da rua principal, e ela virara a esquina na
rua dela, que estava sempre perfeitamente iluminada, sua
casa a apenas algumas portas de distância. Se fosse um
pouco mais longe ou estivesse mais escuro, ela teria
pegado um táxi. Não parecia impossível que alguém
pudesse ter percebido a existência dela por tempo
suficiente para segui-la.
A não ser que a pessoa, quem quer que fosse, estivesse
no ônibus também, de olho nela o tempo todo.
Ela tentou se lembrar da aparência dos outros
passageiros, mas tinha sentado na frente, perto do
motorista, um lugar bom e seguro.
Shlop-shploft. Shlop-shploft.
Ventava muito e fazia frio, as correntes de ar castigando o
seu casaco. Ela caminhou mais rápido, apertando o passo,
mas sem correr, disse a si mesma, diante das casas
geminadas com janelas de sacada e luz escapando das
cortinas fechadas. Os jardins eram minúsculos; se fosse
necessário, ela poderia se esticar sobre os portões, bater na
janela e pedir ajuda. Mas obviamente era só um velho
inofensivo atrás dela, e que tipo de idiota ela ia parecer,
batendo na porta de um estranho por isso?
… shlopshploftshlopshploft…
O passo dele ficou mais depressa para se igualar ao dela.
Ela colocou a mão no bolso do casaco, pegando o
chaveiro de casa e colocando cada chave entre os dedos.
Mais duas portas — número 47, que ainda estava com os
pisca-piscas de Natal, e então a número 49 com sua lata de
lixo comprida que se espalhava pelo lugar como um
beberrão e a cerca baixa que sempre tinha lixo nela — e ela
estaria em casa.
— Hannah! — gritou ele.
Deus, como ele sabia o nome dela? Ela empurrou o portão
com as coxas, deu três passos pelo caminhozinho até a
porta, a luz de segurança se acendendo de repente, a chave
na outra mão escorregando para dentro da fechadura,
quando ele gritou de novo.
— Hannah, espere, por favor, eu preciso falar com você!
E então, subitamente, a coisa mais estranha de todas: ela
reconheceu aquela voz.
Ela parou na hora de virar a chave, e olhou para trás
sobre o ombro.
— Robin?
Ele parou na calçada, as mãos enfiadas nos bolsos, o rosto
oculto pelas sombras de um capuz pesado e escuro. Uma
lufada de vento os rodeou, fazendo o lixo na rua dançar. Ele
assentiu.
— Robin, é você? Cacete, Robin, você me deu um puta
susto.
— Eu sinto muito — murmurou ele. Aquilo era estranho; o
Robin Saunders que ela conhecia nunca teria pedido
desculpas com um tom tão humilde. Ele parecia e tinha o
cheiro de uma pessoa que estava dormindo na rua. Agora
que olhava com mais atenção, ela viu que ele usava uma
calça de moletom amassada e tênis imundos com buracos
nas solas — roupas que o Robin de antigamente preferiria
morrer a usar — e o odor que vinha dele era pungente e
encorpado. — Era isso que eu queria falar para você — disse
ele. — Que eu sinto muito. Por tudo.
— Bem… — Ela percebeu que não tinha palavras. — Que
bom, então. — Ela virou a chave e começou a abrir a porta.
— E também… — falou ele. Robin deu um passo adiante,
mas pareceu ter se arrependido da sua avidez e voltou para
o lugar em que estava, baixando a cabeça. Era isso ou ele
estava tentando ficar longe da luz. Ela ainda não conseguia
ver o rosto dele. — Queria dizer que fiz uma coisa para
você. Um presente. Para me desculpar.
Ela continuou a abrir a porta, entrando um pouco.
— Você me fez o quê? — As palavras dele não faziam
sentido. — Eu não vejo você há seis meses e agora você
aparece e… Me desculpa, o quê? Um presente? Do que você
está falando?
— Por favor…
Outra lufada de vento soprou, fazendo escorregar o capuz
dele por um momento. Robin colocou de volta, mas Hannah
conseguiu ter um vislumbre dos seus traços, o que a fez
engasgar de choque e dar alguns passos atrás pelo batente.
Ele parecia estar sofrendo de algum tipo de doença que
destruía a sua carne, pedaços da pele com buracos e
crateras, brilhando com tecido cicatrizado, a não ser que…
bom Deus, aquilo era osso?
— Deus do céu, Rob, o que aconteceu com você?
Ele se afastou, puxando a borda do capuz sobre o rosto o
máximo que podia, e então ela notou que ele estava usando
luvas, como se o que quer que estivesse o acometendo não
atacasse só o rosto, mas o corpo inteiro.
— Desculpa — falou ele. — Eu não deveria ter vindo. Foi
um erro.
Ele fez menção de ir embora, e ela realmente deveria ter
deixado ele ir, mas tinha alguma coisa tão patética ali
comparando com a arrogância do homem que ela
conhecera que ela se viu sentindo pena dele e, apesar de
tudo, ela falou:
— Espera!
Ele parou, se curvando contra o vento.
— Não posso deixar você entrar — disse ela. — Já está
tarde e eu tive um longo dia, e é… Não, hoje não.
— Eu entendo. — Um carro passou e ele se escondeu da
luz dos faróis.
— Mas volte amanhã para a gente conversar.
Ele assentiu.
— Eu quero saber… — Ela parou de repente. Era coisa
demais para tratar ali, na soleira da porta. — Precisamos
conversar. — Era idiota, mas era tudo que ela podia
oferecer.
— Obrigado, Hannah — murmurou ele, e foi embora.
Ela entrou, trancou a porta e, na mesma hora, foi para a
sala espiar por uma fresta nas cortinas para ver se ele ainda
estava parado na rua, talvez escondido nas sombras da
casa vizinha. Mas ele parecia ter desaparecido de verdade.
Com um grande suspiro de alívio, ela largou a bolsa no hall
e foi até a cozinha apertada onde sabia que havia uma
garrafa de vinho tinto pela metade sobre o balcão. Ela se
serviu uma taça generosa, levou-a junto com a garrafa para
a sala, se jogou no sofá e então ficou sentada lá, encarando
o silêncio são e ordenado da sua casa vazia.
— Merda — disse ela calmamente.
Tomando o vinho com goles pequenos, ela pegou o
telefone e começou a ver as fotos antigas do seu Instagram.
Era dito que uma semana pode ser um longo tempo na
política, mas seis meses eram uma era geológica nas mídias
sociais. Ela tinha deletado todas as fotos dele e aquelas em
que eles apareciam juntos — os dois tinham saído poucas
vezes, então não tinham tantas fotos assim —, mas lá
estavam eles com os amigos, ao lado de comentários
parabenizando-a, como “Garota ele é LINDO você se deu
BEM”, “Ah para, ele deve ser gay” e “Ele tem irmãos?”. Ela
precisava admitir que ele era (ou tinha sido, na verdade)
fantasticamente bonito: olhos cor de avelã, cabelo escuro
despenteado com estilo, pele perfeita da cor de rabanada
frita de leve e um corpo torneado, mas não musculoso
demais. Seus últimos encontros antes de Rob tinham sido
com caras cujas ideias de conversa durante o jantar
pareciam ser falar apenas sobre si mesmos, o que eles
odiavam nos seus trabalhos, times de futebol ou seus
programas de TV favoritos, programas que ela nunca tinha
ouvido falar. Ela tinha ficado tão surpresa ao se ver na
companhia de um homem que prestava atenção de verdade
nela e parecia querer alguma coisa que confundiu a vaidade
dele com autoconfiança e ignorou todos os alarmes até ser
tarde demais.
Conforme ela percorria as imagens, com aquela mesma
mistura de confusão e culpa, percebeu que estava sentindo
uma comichão no joelho esquerdo e que já coçava
inconscientemente há algum tempo. A pele estava
vermelha e descascando, e pedacinhos esbranquiçados se
amontoavam embaixo da almofada do sofá.
— Ah, sua burra — xingou a si mesma. Voltando aos
velhos hábitos mais uma vez. Ela limpou os pedacinhos e foi
para o banheiro no andar de cima procurar pelo pote de
creme para pele.
A primeira vez que ela encontrou Rob foi em uma clínica
dermatológica na Hagley Road. Ela fora fazer um check-up
para a sua psoríase — não que tenha falado isso para ele, é
claro. Dava vergonha e era feio, e, além disso, a
descamação só acontecia em lugares como seus joelhos e
cotovelos, que eram fáceis de esconder, e por que você
falaria para o cara lindo ao seu lado na sala de espera que
você estava ali porque partes de você ficavam caindo como
se você fosse uma espécie de troll nojento? Ela inventou
alguma coisa sobre dar uma olhada em uma verruga
suspeita, porque ele tinha mostrado a ela uma foto em seu
celular daquele antigo desenho do cara no consultório
médico que tinha em seu ombro uma pequena criatura
peluda usando sobretudo e óculos escuros, e eles riram. Por
acaso, ele explicou que estava lá para remover uma verruga
e mostrou uma mancha quase imperceptível no lado
esquerdo do queixo. Ela pensou que aquilo não parecia sério
o suficiente para precisar de atenção, mas ela não era
médica, era o dinheiro dele e quem era ela para julgar?
Quando ele perguntou se ela ia fazer alguma coisa depois
da consulta e se eles podiam tomar um café juntos, ela
quase recusou porque ele era muita areia para o seu
caminhãozinho — mas, então, ela viu que uma parte
pequena e corajosa dela tinha tomado controle da situação
e que ela estava assentindo e dizendo que sim, seria ótimo,
obrigada.
Então teve o café, e, uma semana depois, o jantar, e três
jantares depois teve o concerto na Orquestra Sinfônica. Ele
era analista de crédito sênior de uma grande multinacional
que tinha realocado seu escritório britânico de Londres para
as Terras Médias, e ela criava fantasias sobre levá-lo para
conhecer seus pais, porque ele era exatamente o tipo de
jovem bonito e bem-sucedido que a mãe dela sonhava em
ver levando sua filha sem graça para o altar, e exatamente
o tipo de genro com futuro que responsabilizaria seu pai por
sua política de direita inflamada pelo Daily Mail e ainda
seria respeitado por isso.
As fotos dos seus encontros ainda estavam nos feeds dos
seus amigos, como fantasmas. Elas a assombravam com
seus fragmentos de conversas esquecidas, e a pele dela
formigou ao relembrar o leve toque da mão dele no braço
dele conforme Rob a ajuda a sair de um táxi, ou a perna
dele encostando na dela enquanto eles ocupavam seus
assentos no concerto. Ele sempre foi atencioso e respeitoso,
mas, olhando as imagens, ela viu as insinuações do que
estava escondido, como manchas na fachada suave do seu
charme. A maneira como ele inclinava de leve a cabeça
para um lado em todas as fotos, como se soubesse qual era
o seu melhor ângulo e o apresentava instintivamente. A
forma como ele, no final de uma corrida de táxi em que ela
tinha descansado a cabeça no ombro dele, tirou com
cansaço e cara feia um fio de cabelo dela que tinha ficado
na jaqueta dele.
Ele escondia bem, mas era um homem vaidoso. Ela não
tinha percebido exatamente o quanto até a primeira e única
vez em que visitou o apartamento dele.
Eles já estavam se beijando enquanto entravam no hall,
uma das mãos dele na parte de baixo das suas costas e a
outra puxando o zíper do vestido, mas ela conseguiu se
afastar dele por tempo suficiente para perguntar onde
ficava o banheiro; Mistérios Femininos e tudo o mais, disse
ela, torcendo para que tivesse parecido engraçada, mas
com medo de que tivesse sido pedante. Ele sorriu, mostrou
o caminho e falou que estaria na sala, preparando um
drinque para eles.
Como o restante do apartamento e o homem que era
dono dele, o banheiro era decorado com coisas caras e de
bom gosto. Era um banheiro de boxe aberto, com o chuveiro
do tamanho de um prato de jantar, piso de ardósia natural,
torneiras cromadas e um armarinho com espelho sobre a
pia. Ela resolveu suas questões e então, sem qualquer
impulso mais nobre que a curiosidade nua e crua, deu uma
espiada rápida no armarinho. Ela se recusou a assumir para
si mesma que estava procurando por evidências de outra
mulher na vida dele, mas, ao mesmo tempo, sentiu um leve
tremido de alívio quando não encontrou nenhuma. O que
ela encontrou, por outro lado, foi a caverna de Aladim de
produtos para pele masculinos. Havia cremes, lenços,
bálsamos e esfoliantes, misturas químicas para peeling e
loções para controle de oleosidade, cremes de depilação,
loções antibrilho, máscaras purificadoras de carvão de uso
diário e uma coisa chamada sistema hidroenergético
antifadiga. Havia toda uma prateleira cintilante de objetos
de aço imaculados, capazes de deixar qualquer consultório
odontológico no chinelo: tesouras, pinças, alicates, alicates
de cutícula, extratores de cravos, barbeadores (elétricos e
descartáveis) e, na prateleira mais alta, uma coisa que
parecia uma máscara de robô para o Dia das Bruxas, com
fios e até um lugar para colocar pilha. Ela imaginava que ela
usava aquilo à noite, embora torcesse para que não fosse
toda noite — ela pensou que se acordasse ao lado daquilo
iria gritar até não poder mais.
Então o pensamento de estar na cama dele dominou sua
mente e ela saiu do banheiro para voltar de onde eles
tinham parado.
Dez minutos depois, eles estavam no sofá, ela com os
dedos apertando o cabelo dele e a boca junto à dele
enquanto ele subia uma das suas mãos pela parte de trás
da coxa para debaixo do vestido. Ela dobrou o joelho para
cima da perna dele e a mão dele escorregou para trás do
joelho dela antes que Hannah pudesse perceber para onde
estava indo e o que encontraria lá, e sua centelha brilhante
de pânico coincidiu perfeitamente com a exclamação
chocada de Rob conforme ele se afastava rápido.
— O que diabo é isso? — perguntou ele, imperativo.
Confusa e com o rosto vermelho de vergonha, ela se
afastou para o próprio lado do sofá, colocando a saia do
vestido de volta ao lugar.
— É só um pouco de pele seca — murmurou ela. —
Obrigada por mencionar.
Por mais animador que fosse voltar a sair com alguém
depois de tanto tempo, aquilo tinha o efeito colateral infeliz
de fazer a sua psoríase aflorar de novo. O remédio mantinha
quase tudo sob controle, mas não havia como disfarçar a
descamação que seus dedos encontraram. A pele dela
coçava, mas não era nada comparado à humilhação que ela
sentia.
— Isso é mais do que pele seca — respondeu ele,
encarando, acusatório, um único floco esbranquiçado que
havia entre eles no couro escuro do sofá. Ele olhou para a
própria mão, murmurou “Aimeudeus” e correu para o
banheiro, de onde ela conseguiu ouvir o barulho de água
jorrando da torneira.
A humilhação dela se transformou em raiva.
— Não é contagioso, sabe? — gritou ela. — Cristo, Rob,
qual é o seu problema?
— Meu problema?! — gritou ele de volta do outro cômodo.
— E o seu problema? O que é isso, Hannah? O que você
tem?
A essa altura, ela já tinha pegado as suas coisas e estava
indo para o corredor, mas parou na porta aberta do
banheiro. Ela estava diante da pia, esfregando furiosamente
as mãos.
— É psoríase, tá bom? — disse ela. — Eu tenho psoríase,
porra. Feliz agora?
Ele gemeu e esfregou ainda mais forte.
— Como você não me falou que tinha uma coisa tão
grotesca? — inquiriu ele. — Como pôde mentir assim para
mim?
O charme e a educação tinham sumido completamente da
voz dele; ele falava como qualquer babaca bêbado do lado
de fora de uma casa noturna berrando sobre o que achava
ser um direito seu.
— Mentir para você? — A raiva quase virou uma explosão
alimentada pela humilhação, e ela sentiu o coração se
acelerar dentro dela. A condição, leve como o caso dela era,
tinha sido um pesadelo desde que ela podia se lembrar. A
escola fora especialmente ruim, sobretudo as aulas de
educação física. Ela teve que aguentar todo tipo de bullying
e apelidos — “Pereba” tinha sido o mais popular. Cereais
matinais foram colocados no seu cabelo, e raspas de lápis
na comida. Começaram um rumor de que era uma doença
sexualmente transmissível, que ela tinha pegado por ser
uma puta. E na internet era ainda pior. Ela pensou que tinha
deixado tudo aquilo na infância, mas lá estava de novo: o
mesmo rosto horroroso da crueldade mesquinha, só com
umas roupas melhores. Agora a raiva ardia mais forte, bem
abaixo do umbigo, se espalhando e crescendo pela barriga
conforme ela começava a sua.
— Você não faz ideia do que é grotesco! — gritou ela em
resposta. — Você não faz ideia de como é, ter partes de
você caindo. Bem, eu espero que seja mesmo contagioso.
Espero que veja o quanto você é grotesco toda vez que se
olhar no espelho. Espero que veja cada mancha e sarda e
que elas te enlouqueçam até que você tenha que cortá-las
fora da própria merda de pele!
E assim, o fogo dentro dela explodiu em um tsunami que
ia do seu escalpo até seus pés, explodindo em cima dele,
deixando-a vazia, tonta e sem fôlego. Ela não esperou pela
resposta de Rob, apenas saiu do apartamento, mais confusa
agora do que com raiva e vergonha.
Aquela tinha sido a última vez que ela vira ou ouvira falar
de Rob até aquela noite. Terminou seu vinho e foi para
cama, mas ficou acordada na escuridão, se perguntando se
ele estava lá fora na rua de novo, observando. Ela encarou
as imagens no telefone, vendo apenas a ruina que era o
rosto dele, iluminado parcamente pelos postes. Bom Deus,
será que ele tinha seguido literalmente as palavras dela? A
avó dela contava histórias sobre as mulheres da família dela
e as coisas que conseguiam fazer, mas é claro que Hannah
não acreditou nela. Quem acreditaria? A ideia de que ela
podia ter amaldiçoado ele era ridícula.
Porque, se o Rob tinha se tornado aquela monstruosidade,
o que ela era, então?
Ela deu uma olhada nas fotografias de novo, relendo os
comentários e suas próprias respostas, contorcendo-se com
o tom convencido e autoconglaturatório com o qual tinha se
gabado com as amigas sobre o homem lindo que ela
conseguiu pegar. Olha para mim! Tá vendo? Eu sou popular!
Se ele tinha sido um homem vaidoso obcecado com a
própria aparência, o que ela tinha feito além de alimentar
aquilo? O mínimo que ela podia fazer era lhe dar uma
chance de se explicar.
Na manhã seguinte, ela ligou para o trabalho, disse que
estava doente e esperou.
Ela não tinha percebido o quanto estava nervosa até ouvir
uma tentativa de batida na porta. Por mais que os toques
fossem leves, eles a atingiram como se fossem choques
elétricos. Através do vidro esfumaçado da porta, ela viu a
silhueta borrada inquieta, e parou com a mão na maçaneta.
Ela podia ignorá-lo, fingir que não estava em casa e esperar
que qualquer revelação que ele trouxesse desapareceria
com ele. Mas ela precisava saber o que tinha acontecido.
Precisava saber se fora culpa dela, de alguma forma.
Hannah destrancou a porta e a abriu.
Rob ainda estava de capuz, mas não havia como esconder
suas mutilações na luz clara da manhã — na verdade, da
maneira desafiadora que seu queixo estava, parecia que ele
não tinha intenções de escondê-las dela.
Mas, ah, quanto dano tinha sido acometido àquele queixo
e à face acima dele.
O pouco de pele que restava ficava instável entre pedaços
de músculos expostos e tendões, a cartilagem amarelada
marmoreando o vermelho, e os vislumbres de osso nu na
testa e nas bochechas na noite passado não tinham sido
frutos da sua imaginação. Ele não tinha pálpebras, seus
globos oculares estavam nus e não paravam de encarar, e
ela não podia imaginar por que ele não estava
completamente cego. Seus lábios (ela se lembrou do toque
deles e tremeu) pareciam tiras grossas de borracha, e o
nariz era pouco mais que uma cavidade com um resto de
cartilagem. As marcas se estendiam pelo pescoço e para
baixo do colarinho da camiseta manchada; será que o corpo
inteiro dele estava assim? Aquilo explicava por que sua voz
tinha soado tão anasalada e abafada na noite anterior. Ele
parecia uma imitação tosca de um daqueles corpos
plastinados da exibição “Bodyworlds”, feita por um amador
com mãos que não paravam de tremer e a tampa
enferrujada de uma lata em vez de um bisturi. Com tantos
machucados, ele deveria estar na UTI, mas estava ali em
vez disso. Os lábios dele se afinaram em uma coisa cuja
intenção poderia ter sido um sorriso, mas quando ela viu o
trabalho anatômico para fazer com que aquele sorriso
existisse, quase bateu a porta na cara dele.
— Oi, Hannah — disse ele.
— Rob-Robin. — Teve que se esforçar para dizer aquilo.
— Eu sei. — Ele fez um gesto indicando a si mesmo.
Estava usando luvas cirúrgicas cor de lavanda. Era de se
presumir que suas mãos estavam tão ruins quanto o
restante. Ela tentou não se lembrar do toque daqueles
dedos no seu rosto, acariciando sua pele. — Não posso
imaginar como isso deve parecer para você.
Ela fez uma careta.
— Obrigado por me deixar voltar — disse ele. — Não
poderia ter te culpado se você tivesse me mandado me
foder.
Até onde ela sabia, aquilo ainda era uma possibilidade. O
homem claramente não estava pensando direito. Ela não
tinha tirado a corrente da porta.
— O quê… — Ela vacilou, engoliu em seco, tentou de
novo. — Ah, Rob, o que você fez consigo mesmo?
— O que eu fiz? Nada que eu não merecesse, sei disso
agora. Mas foram as suas palavras, Hannah, que me
obrigaram a fazer isso.
— Ah, não. — Ela balançou a cabeça veementemente e
começou a fechar a porta. — Isso não é culpa minha.
— Não, claro que não! Eu sei disso! Não foi isso que eu
quis dizer! Por favor! — Ela tentou fechar a porta, mas ele
colocou o pé para impedi-la. Ainda assim, ela forçou, e ele
resmungou de dor, mas não recuou.
— Vou chamar a polícia — avisou ela.
— Hannah — implorou ele, e a súplica em sua voz era
mais nua do que sua carne arruinada. — Você estava certa!
Absolutamente certa em dizer o que disse! Depois que você
foi embora, eu dei uma boa olhada em mim mesmo, e estou
falando literalmente, e tudo que eu podia ver era feiura.
Cada verruga, cada poro entupido, cada ruga. Era tudo que
eu podia ver, e essas coisas estavam em todo lugar, e eu
sabia que tinha que cortá-las para fora de mim, então foi o
que fiz. Eu fiz isso porque você me mandou fazer! Não
conseguia parar! Continuei cortando e cortando até que
estivesse livre de tudo. Por favor, você tem que entender…
você tem que ver!
— Ah, eu posso ver muito bem — falou. — Tire o seu pé
daí ou juro por Deus que…
— Não!
Ele forçou o espaço ainda mais, arrebentando a corrente,
e então ele estava sob a soleira da porta e no corredor da
casa de Hannah, indo para cima dela com suas mãos
mutiladas em suas luvas cirúrgicas. Ela gritou e tentou
correr, mas, mesmo naquela condição, ele era rápido
demais. Ele a pegou por trás na escada, agarrando-a com os
braços.
— Eu não vou machucar você — disse ele, o fôlego quente
na orelha dela. — Mas também não vou deixar que ignore
isso. Foi você que fez isso. Lá no fundo, você sabe. Você fez
isso comigo. Mas não me entenda mal! — falou ele
rapidamente. — Foi uma coisa boa, a coisa certa, mas você
sabe que precisa ver tudo. Pode correr e chamar a polícia se
quiser, mas já vou estar longe quando eles chegarem aqui,
e aí você nunca vai saber. Ou pode vir comigo e me deixar
mostrar para você. Só estou pedindo uma hora do seu
tempo. Então, nunca vai me ver de novo, juro.
Ele estava sendo honesto e a deixou ir.
Ela correu.
Mas só conseguiu chegar na cozinha, a mão na porta dos
fundos.
Ela parou e olhou para trás. Ele não estava perseguindo
ela. Aparentemente, seus esforços para invadir a casa e
segurá-la tinham lhe custado caro, pois ele estava
encostado na parede, tremendo e arquejando de dor. Ela
podia facilmente escapar e chamar a polícia, ou pegar uma
faca e obrigá-lo a sair da casa dela. Não fez nada daquilo.
Com cuidado, ela voltou para perto dele.
— Uma hora — disse ela.
Ele assentiu, como se até mesmo falar estivesse além das
suas capacidades no momento, e saiu cambaleando da
casa.
Ela o seguiu.
Ele a levou para seu apartamento. Eles seguiram por
becos e ruas secundárias vazias, onde havia menos gente
para vê-lo — embora ele tenha colocado uma espécie de
cachecol em volta da cabeça, de qualquer maneira —, e
passaram pelos fundos do prédio até um conjunto de
escadas que levavam até a porta dele. Ela ficou surpresa
por ele ainda estar morando no mesmo lugar, como se sua
estranha condição devesse ter tornado impossível para ele
manter uma casa, mas percebeu que nunca tinha sabido de
nada sobre seus arranjos domésticos. Até onde sabia, ele
pode ter sido sempre o dono daquele lugar, e nem
precisava de um emprego para mantê-lo. Afinal, ele não
podia estar trabalhando no seu estado atual. Ocorreu-lhe
que ela nunca soube nada de verdade sobre ele. Ela tinha
mesmo namorado ele só porque ele era bonito, porque
chamava atenção e porque ficava bem ao lado dela nas
fotos que seus amigos e sua família iam curtir? Será que ela
era tão superficial quanto ele?
Quando entraram, ficou claro que ele não estava
arrumando nada. Muito longe do apartamento limpo e
elegante que ela vira, esse estava cheio de sujeira e
cheirava como um matadouro.
— Eu não conseguia jogar fora, sabe? — explicou ele,
levando-a por um corredor até uma pilha velha de jornais.
Coisas velozes correram com a aproximação deles,
escondendo-se mais profundamente nas sombras. — Isso
teria sido como uma traição com tudo que eu estava
aprendendo.
— O quê… O que você estava aprendendo? — perguntou
ela, seguindo com cautela.
Ele parou e olhou para trás, seus olhos sem pálpebras
brilhando.
— O que eu era — respondeu, e continuou a conduzi-la. —
Um homem vaidoso e superficial obcecado com a perfeição
da sua aparência externa, mas cego para a feiura interna.
Foi preciso que você me fizesse entender isso, que fizesse
isso aflorar, para que eu mesmo pudesse cortar fora. Mas
jogar no lixo? Não, essa teria sido uma negação ainda pior.
Eles estavam na entrada do banheiro, o último lugar em
que ela o tinha visto como um ser humano normal,
esfregando sua pele em horror e encarando o próprio
reflexo. Uma luz fraca invadia o local através de uma janela
imunda, o suficiente para ver que as torneiras cromadas
tinham perdido o brilho, o piso de ardósia e a porcelana da
pia com manchas velhas de sangue. O armarinho ainda
estava lá — na verdade, provavelmente era a única coisa
limpa daquele lugar, uma oval reluzente feita à mão da sua
superfície suja. Espalhados em volta dele, do lado da pia e
no chão, estavam os objetos enferrujados e sujos de sangue
que habitavam o armarinho, que ele usara para cortar fora
a feiura que a maldição dela o forçou a ver. E, dependurada
em um cabide comum no chuveiro, estava uma coisa que, a
princípio, ela pensou ser um saco de roupas sujas arruinado,
ou a casca descartada de um monstruoso inseto.
— Ali — sussurrou ele. Seu rosto estava para o outro lado,
como se ele não suportasse olhar para aquilo. — Você vê?
Ela viu.
Era o amarelado leitoso de cascas de pele e unhas do pé
que cresceram demais, faixas e partes dela se enrolando e
ficando amarronzadas nas pontas, mas costuradas e
coladas com todo o esforço, grosseiramente aproximando
cada pedaço de onde ele foi cortado do corpo; um traje
humano da sua própria pele cortada. Algumas partes eram
reconhecíveis — aqui havia uma pálpebra, ali um mamilo,
em outro lugar o redemoinho de uma articulação —, mas o
restante era uma colcha de retalhos digna de um bobo da
corte, feita de carne deformada cheia de verrugas e
escurecida pelo sangue, completamente repugnante. Ela
andou para trás, as mãos cobrindo a boca, horrorizada.
— Eu cortei fora, mas tive que juntar tudo, para poder ver
como você me via.
Então, ela olhou para os músculos e tendões no rosto
dele, a prova da tortura física que ele se obrigou a passar
para expiar sua vaidade — e, de repente, viu a beleza de
sua oferta, quanta nobreza o sofrimento dele trouxe à luz.
Quando ele se aproximou, ela não se encolheu; em vez
disso, foi com vontade para os braços dele e o beijou. Ele
engasgou um pouco; ele não tinha pele e aquilo deve ter
doído, mas ele a deixou explorar a maciez da sua carne, o
tremeluzir tênue dos seus músculos, a suavidade do osso
nu.
— Sinto muito — disse ela, surpresa ao perceber as
lágrimas nas bochechas. — Sinto muito por ter provocado
isso.
— Eu não. É só que… — Ele vacilou.
— O quê?
O sussurro dele era tão leve, um cabelo na sua bochecha.
— Dói.
Agora, com seu corpo pressionado contra o dele, ela
sentiu o calor profundo dentro dele. Não o calor de uma
doença — embora Deus soubesse que ele já deveria ter
morrido há muito tempo —, aquilo parecia familiar. Era a
raiva e o ódio que ela tinha jogado nele na noite em que ele
a humilhou, seis meses antes. Ainda estava nele,
mantendo-o vivo e forçando-o a cometer aquelas
atrocidades em si mesmo. Ele não havia a trazido ali apenas
para ver o resultado daquilo, cada tendão deformado nele
estava implorando por liberdade.
Ele não era o monstro ali.
— Eu sinto muito — repetiu ela, chorando, e pegou o fogo
de volta, extraindo para fora dele e para dentro dela, que
era o lugar dele, em uma flor cheia de pétalas que pulsava
devagar atrás do seu umbigo. Ele suspirou e se curvou em
seus braços, mas o fogo deu forças a ela, e ela o sustentou,
porque era hora de começar a aprender a fazer algo melhor
com aquela força. Ela deu um beijo de despedida nele e
levou seu corpo para o quarto, colocando-o deitado na
escuridão, mas viu que ainda podia vê-lo muito claramente.
Ali, naquele lugar, ele brilhava.
FAITH & FRED
MAURA McHUGH
E
les encontraram os crânios no terceiro dia da
reforma.
Owen tinha acabado de acertar o reboco com
a marreta que seu empreiteiro, Jim Careca,
entregara para ele com um “Deixe ela fazer o
trabalho, rapaz”.
Owen fizera cara feia com o “rapaz”, já que tinha quase
trinta anos, mas o peso da marreta velha nas suas mãos
enluvadas lhe deu uma alegria tátil, que superou seu
orgulho. Atacar a parede foi profundamente satisfatório: o
golpe firme, o som de protesto quando a cabeça de metal
cheia de marcas acertou a cobertura barata e o choque
posterior correndo pelos seus braços.
Poeira e fragmentos lascados voaram para todos os lados
e, no início, atrapalharam a visão. Aos poucos, a luz do dia
das grandes janelas atrás deles se lançou através do grande
talho que Owen criara. Eles sabiam que aquilo tinha sido
uma espécie de armário, antes de um antigo morador
fechá-lo com uma parede, mas era um espaço
desperdiçado, e Owen estava determinado a usar cada
centímetro da casa de fazenda Caldwere. Dos seus cômodos
dilapidados, ele criaria uma casa para qualquer um que
estivesse disposto a pagar um bom preço.
Jim Careca lhe deu um tapinha no ombro para indicar que
era hora de recuar com a arma, e, relutantemente, Owen a
entregou de volta ao homem parrudo mais velho. A força
bruta deu conta do recado, agora era o momento da finesse
dos especialistas.
Jim Careca apoiou a ferramenta na parede e selecionou
uma marreta menor. Ele deu uma boa olhada no buraco,
abrindo-o ainda mais até parar de repente e dar um passo
atrás, alarmado.
— Caramba — disse ele.
— O que foi? — Owen entrou naquela bagunça, apertando
os olhos. Alguma coisa com brilho branco entre as barras de
metal. Ele pegou o telefone do bolso da sua calça cargo e
ligou a lanterna. Ele estava ciente da presença massiva de
Jim Careca atrás dele.
Dois crânios humanos o encaravam de dentro de uma
gaiola de metal feita de tiras de ferro. A gaiola repousava
dentro de uma caixa de madeira simples.
— Puta merda! — falou Owen, a voz abafada conforme ele
direcionava a luz pelo cômodo. Ele se inclinou adiante,
inalando um fedor mofado, se arrependendo na mesma
hora de não ter colocado uma máscara de proteção.
Na frente da gaiola estava um cartão branco inscrito com
uma tinta acobreada, coberta por uma camada de poeira.
Com cuidado, ele esticou a mão e pegou o cartão.
E
la estava sendo perseguida. Jogou os sapatos
para longe, porque eles só estavam
atrapalhando. Ao mesmo tempo, sua saia
pesada desapareceu e ela se viu usando as
roupas de trabalho de sempre. Sem o peso e a
constrição, ela era capaz de correr mais rápido. Olhou para
trás. Ela era muito mais rápida do que ele. O coração dela
era forte. Seus passos eram longos e tranquilos. Ele nunca a
alcançaria agora.
Ele beijou sua boca. Não foi um beijo rude, mas abriu os
olhos dela. Aquele não era o rosto certo. Ela nunca tinha
visto aquele homem antes e a forma como ele a observou
— ela não tinha certeza de que gostava daquele olhar. Por
que ele estava beijando ela quando ela estava dormindo e
nunca o tinha visto antes? O que ele estava fazendo no
quarto dela? Ela estava tão assustada que parou de respirar
por um momento. Fechou os olhos e desejou que ele fosse
embora.
Ele ainda estava lá. E ela sentiu dor. Seu dedo sangrou e,
quando ela tentou se levantar, estava fraca e se sentia
sobrecarregada pelo vestido pesado, a manta grossa que
era seu cabelo, um espartilho e sapatos apertados e
pontudos.
— Ah — disse ela. — Ah. — Ela estava prestes a chorar e
não conhecia aquele homem para chorar na frente dele. O
tom de voz dela era acusatório. Ela o empurrou e o rosto
dele demonstrou surpresa com esse gesto. Ele se permitiu
ser empurrado. Ela não era forte o bastante para forçá-lo a
fazer isso.
Era provável que ele fosse um homem muito bom. Ele a
encarava com um olhar preocupado. Ela podia ver que ele
estava cansado. Suas roupas estavam rasgadas, as mãos,
arranhadas. Ele tinha acabado de passar por algo difícil,
talvez até perigoso. Deveria ser por esse motivo que ele não
parou para pensar em como ela ficaria assustada ao acordar
com um estranho enquanto estava deitada. Deveria ser por
isso que ele não percebeu que o dedo dela estava
sangrando. E por não ter considerado ou notado essas
coisas, não importava o quanto ela viesse a amá-lo, sempre
haveria uma parte dela que sentiria medo dele.
— Eu estava tendo um sonho lindo — falou. Ela tomou
cuidado para que seu tom de voz não deixasse clara a raiva
que sentia.
WENDY, QUERIDA
CHRISTOPHER GOLDEN
E
m uma noite de sexta-feira no final de maio do
ano 1915, Wendy passou sua última noite na
casa de seu pai em um sono intranquilo,
preocupada com seu casamento no dia seguinte
e com os segredos que tinha mantido
escondidos do seu desejado noivo.
O cômodo já fora exclusivo para atividades infantis, mas
aqueles dias tinham ficado para trás. Ela tinha parado de
sonhar os sonhos da sua meninice anos atrás, de tal modo
que até os ecos desses sonhos haviam se arrastado para as
sombras nos cantos do aposento. Agora era um quarto
apropriado, com uma cama com dossel, um espelho de
prata e um armário enorme que ainda exalava um rico odor
de mogno embora estivesse encostado na parede por mais
de seis anos.
Em certas noites, porém… Em certas noites, as janelas
francesas altas permaneceriam abertas e as cortinas iriam
ondular e flutuar. Nessas noites, o luar invadiria o cômodo
com um calor tão zeloso que parecia querer lembrá-la das
noites de sua infância, quando ela ficava acordada,
conversando em sussurros com seus irmãos no escuro até
todos eles adormecerem e sonharem coisas impossíveis.
Wendy ficara naquele quarto com Michael e John por
tempo demais. Ela deveria ter tido o próprio quarto muito
antes, mas, no início, o pai deles não quisera abrir mão do
escritório para criar um novo quarto, e, depois — quando
ele mudou de ideia —, as crianças não queriam mais se
separar. Àquela altura, Wendy tinha começado a ver os
Garotos Perdidos e a sonhar com eles, e parecia mais
seguro permanecer juntos.
Naquele dia — o dia antes do casamento —, houve uma
espécie de neblina baixa e cerrada por toda a tarde e que
durou até a noite. Diversas vezes ela se remexeu no sono,
inquieta conforme pensava em Jasper, o advogado com
quem se casaria na tarde seguinte. Ela gostava bastante da
ideia de se tornar a sra. Jasper Gilbert, e, ainda assim,
durante a noite, aquela possibilidade a assustava. Cada vez
que seus olhos se abriam, ela permanecia deitada por
muitos minutos, encarando a neblina até conseguir voltar a
dormir.
Um pouco depois, ela acordou e não viu a neblina, mas a
luz do luar. As janelas estavam abertas, e as cortinas
ondulavam como fantasmas, iluminadas pelo brilho
amarelado.
Um sonho, pensou, pois só poderia ser isso. Ela sabia
disso porque a neblina havia desaparecido. Sabia por causa
da luz do luar e da dança impossivelmente lenta das
cortinas e, é claro, porque os Garotos Perdidos estavam lá.
Ela se deitou de lado, com metade do rosto enfiado no
travesseiro de penas, e os observou. A princípio, viu apenas
três: dois no canapé e um meio escondido pelo movimento
das cortinas. O quarto tinha uma expressão contrariada, o
que o fazia parecer mais triste, menos etéreo que os outros,
embora fosse o mais jovem deles. Ela não os via há anos,
desde que seus pais arranjaram um médico, insistindo que
os Garotos Perdidos eram fruto da sua imaginação. Ela
nunca perdoara John e Michael por contarem aos seus pais
as frequentes visitas que os Garotos Perdidos faziam a ela,
um rancor do qual ela veio a se arrepender com a morte de
Michael após o incêndio da chapelaria em 1910. Como ela o
amara.
Mesmo na época do incêndio, já fazia anos que ela não via
os Garotos Perdidos. Depois do ocorrido, ela muitas vezes
rezava para que Michael a visitasse durante a noite.
— Wendy — sussurrou um dos Garotos no sonho da luz do
luar.
— Olá, meninos — disse ela, suando debaixo das
cobertas, o coração acelerado. Ela queria chorar ou gritar,
mas não sabia se o que sentia era medo ou apenas luto.
Como se o luto pudesse ser algo como apenas.
Ela reconheceu os quatro, é claro, e sabia seus nomes.
Mas não se permitiu falar aqueles nomes, nem mesmo
pensar neles. Teria parecido como se ela estivesse dando-
lhes boas-vindas de volta aos seus sonhos, e eles não eram
nem um pouco bem-vindos.
— Você se esqueceu da gente, Wendy. Você prometeu que
nunca ia fazer isso.
Ela afundou a bochecha ainda mais no travesseiro, as
penas espetando o seu rosto através do tecido.
— Eu nunca esqueci — murmurou ela, com a pele
encharcada. Estava quente demais debaixo do cobertor. —
Vocês só existem na minha mente, vejam bem. Não
esqueci, mas meus pais e o dr. Goss me disseram que eu
deveria persuadir meus olhos a não vê-los, no caso de
vocês aparecerem de novo.
— Sentiu saudade da gente, então?
Wendy engoliu em seco. Um arrepio percorreu seu corpo.
Ela não tinha sentido saudade.
— Como estou sonhando, imagino que não tenha
problema em ver vocês.
Os Garotos Perdidos olharam uns para os outros,
compartilhando uma risada sem alegria. Era mais uma
fungada do que uma risada, na verdade. Uma fungada de
desaprovação.
A luz da lua passou através deles.
O mais perto dela — aquele com os olhos tristes — se
aproximou.
— Você deveria ter sido nossa mãe — disse ele.
Wendy não conseguiu respirar. Ela se afastou para longe
deles. Foram aqueles olhos que acenderam o terror dentro
dela, aqueles olhos suplicantes. Ela fechou os próprios
olhos.
— Acorde, Wendy — sussurrou para si mesmo. — Por
favor, acorde.
— Você não se lembra? — perguntou o menino de olhos
tristes, e as pálpebras dela se abriram apenas para
descobrir que ela ainda estava sonhando.
— Por favor, se lembre — disse outro, um menino gracioso
e pequeno que fazia beicinho e com os olhos prestes a
derramar lágrimas.
— Não — murmurou ela.
O gancho. A pele suave contra a dela. A dor. Sangue na
água.
Seu corpo tremia conforme as imagens corriam pela sua
mente e eram expulsas mais uma vez, trancadas em
armários escuros, enterradas em túmulos vazios.
— Fiquem longe de mim — sussurrou ela. — Por favor.
Tenho uma vida inteira pela frente.
Ela não sabia se estava falando com os Garotos Perdidos
ou com as imagens.
— Meu noivo é um bom homem. Talvez, depois que nos
casarmos, possamos ficar com um ou dois de vocês. Ele é
gentil, vejam. Não é como…
Uma porta bateu em sua mente.
— Como quem, Wendy?
Gancho, pensou ela. Meu James.
— Não! — gritou ela, arrancando as cobertas de cima dela
e pulando da cama, lágrimas quentes jorrando dos seus
olhos. — Me deixem em paz, maldição! Me deixem viver!
Com os dedos curvados como garras, ela deu um salto na
direção do menino mais próximo. Atravessando-o, sentindo
arrepios na pele, ela caiu no carpete e ficou em posição
fetal, uma bagunça de prantos.
Sob a luz da lua, ela ficou deitada fora do alcance das
cortinas flutuantes e chorou até o doce esquecimento das
profundezas do sono.
Quando acordou durante a aurora, com o corpo doendo e
congelado, voltou para debaixo das cobertas em busca de
calor e conforto, e disse a si mesma que nunca haveria
outra noite em que precisaria ter medo de pesadelos. Pelo
restante da vida, ela acordaria pela manhã com Jasper ao
seu lado e ele a abraçaria e a beijaria até que a última
sombra do sono fosse embora.
O sol nasceu em uma manhã de céu azul.
Não havia traço da neblina.
S
e um dia você estiver em Freeboro, na Carolina
do Norte, procure pela placa do touro. Ela fica
pendurada na lateral de um prédio que tem uma
lanchonete que vende macarrão vietnamita e
uma oficina de carros, perto de um beco que é
praticamente uma saída de esgoto. Só atravesse o beco se
for corajoso o bastante para não olhar por cima do ombro
quando ouvir os barulhos guturais atrás de você. Se chegar
ao fim sem olhar para trás, vire à esquerda e tome cuidado
ao descer os degraus cheios de musgo. A porta de carvalho
lá embaixo da escada só vai abrir se você tiver o tipo certo
de gingado.
E se ela realmente abrir, você vai se encontrar no
Rachel’s Bar & Grill, o melhor botequim das Carolinas. Meu
bar. Só tem uma regra: se você tem um problema, resolve lá
fora. (Fora do meu bar é bom, fora da minha cidade é
melhor ainda, fora da realidade em si é a melhor coisa de
todas.) Eu tenho um monte de histórias sobre o Rachel’s.
Poderia citar alguns nomes — mas algumas dessas pessoas
pode acabar aparecendo. Mas tem uma história que ilustra
bem por que você não deve arranjar problemas no meu bar
e como nós cuidamos dos nossos. Também é a história de
como o bar ganhou sua mascote.
Tinha essa jovem chamada Antonia, que foi de uma linda
bebedora de absinto para uma das minhas clientes
regulares em um mês. A pele dela era tão pálida que era
quase prateada, os traços eram delicados e os pulsos eram
tão finos que ela poderia enfiar a mão no garrafão de vinho
barato atrás do bar — mas ela teria que tirar a mão rápido,
ou Leroy, o duende do vinho, poderia arrancá-la com uma
mordida. Enfim, ela chega perto de mim na hora de fechar e
me pergunta se eu tenho um trabalho para ela. Ela pode
limpar mesas ou até tocar o violão dela algumas noites por
semana.
Se você já esteve no Rachel’s, você sabe que não precisa
de música ao vivo, ou qualquer outra coisa, para dar
atmosfera ao local. Se tem uma coisa que a gente tem
sobrando é atmosfera. É só sentar em um dos nossos
reservados com assentos de veludo — as marcas nas mesas
de madeira contam as histórias delas, e as manchas no
assento se desdobram para sair do caminho da sua bunda.
Do trepidar gentil das tábuas do teto até as luzes cor de
âmbar piscando, passando pelas fotos autografadas de
dragões famosos e súcubos celebridades nas paredes de
tijolo, o lugar é a cidade da atmosfera.
Mas então eu tinha ouvido a Antonia cantar e tocar violão,
e era como a chuva de um dia de verão logo depois de você
ter dado o seu primeiro beijo ou algo assim. Bem lírico. Eu
deixei ela tocar no Rachel’s uma noite e não consegui
acreditar — o pessoal que normalmente só entornava um
jarro da minha sangria “especial” e então desaparecia
estava ficando para ouvir ela, derramando lágrimas
luminescentes que, devagarinho, flutuavam no ar e então
se transformavam em vespas cristalinas. (A sangria faz isso
mesmo.)
Então, depois da Antonia acabar de cantar naquela
primeira noite, eu fui até ela e disse que talvez a gente
pudesse fazer aquilo funcionar, se ela estivesse disposta a
limpar algumas mesas além de fazer o Lilith Fair dela.
— Só tem uma coisa que eu não entendo — falei. — É
óbvio que você é fada, pelo efeito que teve nos idiotas que
vêm aqui. E você é igualzinha àquela princesa desaparecida
da Alta Corte de Silvânia. A princesa Lavinia. — (Silvânia é o
que as fadas chamam de Pensilvânia, o centro do poder
deles.) — Dizem que sua majestade suprema, o rei
Castanha, chora toda noite e daria metade das riquezas de
Silvânia para ter você de volta. A rainha, Mab, o delineador
dela está borrado há meses. Isso sem mencionar o
apaixonadinho do príncipe Azaron. Então por quê?
— Nunca mais posso retornar para casa — disse Antonia
(ou Lavinia) chorando. — Arrependo-me do dia em que
decidi me aventurar e ver o mundo por mim mesma. Pois
naquele dia, encontrei uma maldição tão monstruosa que
não posso arriscar infligí-la a ninguém do meu povo. Não
posso desfazer o que foi feito. A única maneira de proteger
meus amigos e minha família e me manter bem longe deles.
Estou permanentemente exilada, e a culpa é de minha
própria tolice. Agora, por favor, não me pergunte mais nada,
pois bebi de sua sangria e temo que minhas lágrimas
possam picá-la de maneira um tanto cruel.
Não falei mais nada, mesmo com a curiosidade sobre a
maldição que manteve a princesa das fadas longe da Corte
Feérica no condado de Bucks. Não soube de mais nada —
até algumas semanas depois, quando a Lua Cheia chegou.
Antonia apareceu como sempre, usando um vestido
resplandecente de renda feito do melhor samito (acho que
era um Gunne Sax vintage). Ela murmurou alguma coisa
sobre como o show dela ia ser menor que o normal, porque
não estava se sentindo bem. Eu falei que não tinha
problema, que ia colocar o jogo de hóquei na TV de tela
grande. (Eu mencionei a TV de tela grande? Também é
grande parte da atmosfera. A gente tem noite de karaokê às
sextas.) Enfim, a intenção dela era tocar por uma hora, mas
ela se deixou levar por essa linda e triste melodia sobre dois
amantes separados para sempre por um vento cruel, e ficou
mais escuro lá fora conforme a música dela chegava ao
cume de emoção.
E então um negócio estranho aconteceu. As mãos dela,
tão pequenas, começaram a crescer, e o violão ficou mais
frenético e dissonante. Cabelo começou a crescer por toda a
sua pele, e o rosto dela estava mudando também, se
transformando em um focinho.
— Não! — gritou ela (ou uivou?), conforme suas orelhas já
pontudas ficavam ainda mais pontudas e o cabelo dela
ficava mais grosso e mais parecido com pelo. — Não, eu não
permito! Não aqui, não agora. É cedo demais! Pelo meu
sangue feérico, eu o comando: renda-se! — E, com aquela
última palavra, a transformação parou. O cabelo nas suas
mãos desapareceu, o rosto voltou ao normal, e ela só
parecia um pouco mais lupina que o normal. Ela mal teve
tempo de colocar o violão no estojo, deixando-o no bar,
antes de subir correndo a escada que leva até a porta. Eu a
ouvi subindo para dentro do beco e fugindo, sua respiração
dura e gutural.
Antonia não apareceu por três dias, até a lua ficar
minguante. Quando ela enfim cantou para nós, sua música
estava mais lúgubre do que nunca, cheia de uma paixão tão
sexy que nossos órgãos internos derreteram em um fondue
de saudade.
Agora, naquela mesma época, eu estava pensando em
abrir uma franquia. (Aguenta um pouco que isso faz parte
da história.) As coisas estavam indo muito bem em
Freeboro, e eu queria abrir outro bar no lado oposto de
Triad, na cidade de Evening Falls. O maior problema era que
você não ia querer abrir um bar voltado para clientes
místicos e mitológicos em um shopping com uma Igreja
Batista Primitiva, um salão de manicure e uma churrascaria
na Highway 40. E Evening Falls tinha poucos desses lugares
propriamente isolados, todos classificados pela prefeitura
como zonas puramente residenciais ou apenas para
restaurantes.
Se você já esteve no Rachel’s, já deve ter ouvido as
minhas opiniões sobre os malefícios do zoneamento. Mas
caso você não tenha ouvido… [Nota do editor: os próximos
dez parágrafos do manuscrito consistem em um discurso
sobre zonas de habitação e como elas são comparáveis a
sapos-cururus gigantes comedores de carne humana ou
vespas-chifrudas. Você pode ler o texto na internet, no site
www.monstrosdoplanejamentourbano.org.]
Enfim, onde é que eu estava? Franquias. Então, eu
conheço algumas bruxas e facilitadores de todos os tipos,
que podem fazer você acreditar que sábado é segunda, mas
é difícil colocar uma maldição em todo o conselho de
planejamento. Então pensei em como eu poderia fazer para
convencer aquelas pessoas. E foi aí que me lembrei de que
eu tinha a minha própria fada cantora encantadora, com um
toque lupino dentro dela, na folha de pagamento.
Os olhos de Antonia se esbugalharam ainda mais e seus
lábios tremeram quando eu pedi para ela vir comigo e tocar
em uma festa para as elites secretas de Evening Falls.
— Não posso — disse ela. — Faria qualquer coisa dentro
de minhas capacidades para ajudar você, Rachel, mas tenho
medo de viajar para algum local em que possa ser
reconhecida. E minha música não é mais para qualquer
pessoa, é apenas para os perdidos e os desesperados. Não
posso ficar aqui, em seu bar, e tocar para seus clientes?
— Olha, veja bem — falei, empurrando-a para cima do
meu banco de bar menos carnívoro. — Eu fui bem legal com
você, e um monte de gente já teria ligado para o telefone
do lado da caixa de leite de cardo para pegar a recompensa.
Ouro das fadas! Do tipo verdadeiro, não aquele que some
depois de uma hora. Isso sem mencionar que eu tolero o
perigo constante de você morder os meus clientes e
transformar eles em lobisomens. O que, para ser justa,
poderia melhorar a disposição deles e talvez assim eles
dessem gorjetas melhores. Mas você sabe, é tudo sobre
uma mão lavar a outra, mesmo quando uma dessas mãos é
um tentáculo. Ou uma garra. Embora você não fosse querer
que um dos Padres-Polvos de Wilmington lavasse nenhuma
das suas partes, a não ser que quisesse tatuagens de tinta
de lula aparecendo na sua pele por anos depois disso. Bem,
onde eu estava mesmo?
— Você estava tentando me chantagear — disse Antonia,
com um fiapo de dignidade. — Pois bem, Rachel. Você
demonstrou do que sua amizade é feita. Vou tocar em seu
“arrasta-pé”.
— Que bom, que bom. Era tudo que eu queria. — Juro,
deveria ter uma edição especial para fadas de Como chegar
ao sim, só para ajudar a lidar com esse drama feérico.
Então a gente preparou um banquetezinho bem legal em
uma igreja quacre em Evening Falls, com carne de porco
desfiada e quiabo frito. É claro que, considerando que a
maioria daquelas pessoas estava envolvida em
zoneamento, a gente deveria ter deixado que sacrificassem
uma virgem. Quer dizer, falando sério. [O restante dessa
seção está disponível em
www.monstrosdoplanejamentourbano.org — Os editores.]
Onde eu estava? Ah, sim. Então, a maior parte do grupo
era formada pelas pessoas de sempre: velhas carolas,
políticos de baixo calão, empresários locais e por aí vai. Mas
havia dois homens que chamavam tanta atenção quanto
vespas-chifrudas em uma tourada.
Sebastian Valcourt era alto, com belas maçãs do rosto e
uma testa nobre, sob um escândalo de cabelo ondulado
preto que ele provavelmente passava uma hora todo dia
secando com o secador. Usava um terno sob medida, mas a
camisa estava desabotoada quase até o umbigo, revelando
um peito sem pelos que era feito de dinheiro. Sem
brincadeira, eu conhecia um stripper chamado Velcro que
era três-quartos elfo e ele teria matado por aquele peitoral.
O outro homem surpreendentemente bonito se chamava
Gilbert Longwood, e era tão grande e tão forte que parecia
uma estátua clássica. Seus braços eram como falésias
marinhas e seu rosto era enorme e com o queixo quadrado
— como um busto de mármore, só que os olhos dele tinham
pupilas, o que provavelmente era uma coisa boa. Quando
ele segurou a minha mão, senti o aperto e aquilo fez meus
joelhos tremeram. Mas, desde o início da noite, tanto Gilbert
quanto Sebastian só tinham olhos para uma mulher.
Assim que Antonia começou a tocar, já tinha acabado —
todo mundo no local ficou caidinho por ela, e eu poderia ter
conseguido uma permissão para colocar uma pista de
boliche dentro de uma igreja se quisesse. Depois, fiquei
conversando com Gilbert enquanto Sebastian saltava para o
outro lado do salão como um dançarino de balé,
aterrissando em frente a Antonia e beijando a mão dela com
a testa ampla. Ele falou alguma coisa e ela cobriu a risada
com a mão.
— Você deu uma festa divertida — disse Gilbert, tentando
não olhar para o galanteio acrobático que acontecia no
outro canto. — Não me lembro de ter visto metade dessas
pessoas demonstrar qualquer emoção desde que o
historiador da cidade ateou fogo a si mesmo alguns anos
atrás. — A voz dele era como um gongo ecoando por uma
cripta. Eu nunca soube muito bem do passado de Gilbert,
mas entendo que ele era o filho de um escultor rico, parte
da família mais proeminente de Evening Falls.
Àquela altura, Gilbert tinha desistido de fingir que não
estava encarando Antonia.
— É — falei. — Eu descobri aquela garota. Ensinei tudo
que ela sabe. Só que mantive alguns segredos para mim, se
é que você me entende, e eu acho que entende. — Pisquei.
— Peço sua licença, por favor, graciosa senhora — disse
Gilbert. Quando ele se curvou em reverência, parecia uma
ponte levadiça descendo e subindo de novo. Ele caminhou
até o outro lado do cômodo, passando por todas as pessoas
que queriam perguntar para ele sobre zoneamento (os
abutres!) no caminho até onde Sebastian estava brindando
com Antonia.
Eu não pude chegar perto o suficiente para ouvir a
conversa que se sucedeu, mas os rostos deles me falaram
tudo que eu precisava saber. A boca de Sebastian sorriu,
mas seus olhos de âmbar-esverdeado queimavam de desejo
por Antonia, mesmo quando ele fez algum comentário
impróprio para ferir os sentimentos de Gilbert. Gilbert sorriu
de volta, e deixou a esperteza espalhafatosa de Sebastian
bater e voltar no seu rosto de granito enquanto permanecia
olhando para Antonia o tempo inteiro. Quanto a Antonia, ela
corou e observou as profundezas da sua taça de
refrigerante Cheerwine.
Dava para ver um triângulo amoroso nascendo, com os
cantos tão afiados que poderiam cortar sua barriga ao meio
e deixar suas entranhas trêmulas expostas a qualquer tipo
de infecção, incluindo estafilococos resistentes a remédios,
uma coisa que, nos últimos tempos, tem me deixado louca.
Eu sempre lavo as minhas mãos duas vezes, com sabonete
antibacteriano e água benta. Onde eu estava? Ah, é,
triângulo amoroso. Aquilo era um isósceles de puro desejo
fervente, em que dois homens sofreriam de amor pela
mesma mulher impossivelmente bonita com o coração
partido para sempre. Meu primeiro pensamento foi: “Tem
que ter uma maneira de ganhar dinheiro com isso.”
E é claro que tinha. Eu me certifiquei de que Antonia não
desse a eles o seu telefone, nem mesmo sua arroba no
Twitter. Se eles queriam stalkear ela, eles teriam que ir ao
Rachel’s Bar & Grill. E eu consegui dar a entender aos dois
que o que deixava Antonia impressionada era quando um
cara tinha um grande grupo de amigos que bebiam muito.
Eu não precisei ligar a TV de tela grande nem mesmo uma
vez no mês seguinte. Com seus galanteios efervescentes
em relação a Antonia, Sebastian e Gilbert ofereciam tanto
entretenimento gratuito quanto dez maratonas de Um amor
de família. Talvez até onze. Sebastian deu a Antonia um
pequeno unicórnio feito de estanho, que cavalgava pela
palma da mão dela, mas que permanecia parado em outros
lugares. Gilbert levou tantas flores que o bar cheirava bem
pela primeira vez desde 1987.
Certa noite, eu vi Gilbert de olho em Antonia enquanto ela
estava sentada em um dos banquinhos do bar chorando
uma balada. Ela usava uma saia de lona comprida, e seus
pés estavam cruzados no apoio do banquinho. Ele
observava os ângulos trágicos dela — tão graciosos, com
tendões que flexionavam como os sentimentos mais
profundos do coração — e seus grandes olhos castanhos
ficaram marejados.
E então Sebastian chegou, acompanhado de dois outros
homens estranhamente bonitos, anormalmente em forma e
com olhos expressivos. Quando você pensava que suas
sobrancelhas não podiam ficar mais expressivas ou que
seus olhares não poderiam ser mais ardentes, eles iam lá e
aumentavam a dose. As sobrancelhas deles tinham o
alcance dramático de mil Kenneth Branaghs — talvez mil
Kenneth Branaghs por sobrancelha, na verdade. Os outros
dois trocaram sorrisinhos irônicos enquanto Sebastian
mantinha o olhar fixo nos lábios pequenos que tremiam sem
parar e nos olhos gigantes e cheios de tristeza de Antonia.
Algumas semanas — e alguns milhares de dólares de
bebida da melhor qualidade — depois, Sebastian e Gilbert
começaram a falar com Antonia sobre a paixão que
sentiam.
— Um coração ferido tão gravemente quanto o seu
precisa de um cuidado especial, milady — falou Gilbert, a
voz grave retumbante. — Minhas mãos são fortes, mas meu
toque é gentil, e eu a manterei a salvo. — As costeletas dele
eram retângulos perfeitos, emoldurando suas maçãs do
rosto esculpidas perfeitamente.
— Temo que… — Antonia se virou para colocar o violão no
estojo, a fim de esconder a angústia de seu rosto por um
momento. — Temo que o único remédio para quem tem
uma condição como a minha seja a solidão, entrelaçada
com a boa companhia aqui no Rachel’s. Mas sempre
estimarei sua amizade, Gilbert.
Pouco depois, Sebastian se aproximou de Antonia, sem
seus camaradas.
— Minha querida — disse ele. — Sua beleza brilha mais do
que qualquer um desses rótulos de cerveja em néon. Mas é
sua voz, seu tom doce e triste, que me encantou mais do
que qualquer coisa que encontrei em décadas. Deve
concordar em ser minha, ou não terei escolha a não ser me
tornar ainda mais misterioso, até que vire um mistério para
mim mesmo. Eu falei isso alto? O que quis dizer é que vou
definhar. Observe minhas sobrancelhas e vai ver como falo
sério.
— Ah, Sebastian. — Antonia riu e suspirou logo depois. —
Tivesse eu uma lasca de coração para dar, bem poderia dá-
la a você. Mas você fala com uma mulher vazia.
Blá-blá-blá. Isso continuou para sempre, e eu precisei
fazer novos pedidos do uísque single malt, isso sem
mencionar os conhaques baratos e Southern Comfort.
Quem poderia dizer o quanto aquilo teria durado se tanto
Sebastian quanto Gilbert não tivessem aparecido em uma
noite em que Antonia não estava? (Você adivinhou: Lua
Cheia.) Os dois começaram a discutir sobre quem tinha
direito a Antonia. Gilbert ribombou que Sebastian só queria
usar a moça, enquanto Sebastian falou que Gilbert era um
brutamontes feio demais para ela. Gilbert tentou dar um
soco em Sebastian e errou, e foi assim que eu mandei eles
resolverem aquilo lá fora.
Pouco tempo depois, todos nós fomos lá para fora assistir.
Sebastian dançava como Prince em uma frigideira quente,
enquanto Gilbert continuava socando com seus punhos
gigantescos e errado. Até que, finalmente, o antebraço de
Gilbert atingiu Sebastian no ombro, e ele saiu voando para
aterrissar de bunda no chão. Foi aí que as coisas ficaram
divertidas: o rosto de Sebastian ficou todo duro e com
aparência de couro, e presas surgiram em sua boca. Ele deu
uma cambalhota no ar, mirando um chute rápido em Gilbert
— que ergue o punho do tamanho de um pedregulho para
que ele colidisse com o rosto de Sebastian.
Depois disso, a luta consistiu em Gilbert socando
Sebastian sem parar.
— Vampiro idiota — murmurou Sebastian. — Você não é o
primeiro chupador de sangue que eu arrebento.
Àquela altura, a mandíbula de Sebastian parecia
deslocada. As sobrancelhas expressivas estavam retorcidas
de dor.
— Eu não sou… um vampiro… normal — sibilou ele.
Gilbert desceu o punho de marreta no crânio de Sebastian.
Sebastian caiu no chão, uma pilha de ossos nada
elegante. E sorriu.
— Quanto mais eu apanho… mais difícil é… me matar —
disse ele com a voz raspando. E então se levantou com as
pernas cambaleantes, a carne descascando.
O sorriso de Sebastian ficou solto e distendido. Em vez
dos comentários espertinhos de sempre, ele disse apenas
uma palavra:
— Cééééééérebro…
Gilbert continuou socando Sebastian, mas não adiantava.
Nada conseguia pará-lo. Sebastian atacou Gilbert com uma
força terrível e finalmente acertou um ponto fraco, o lugar
em que a cabeça de Gilbert encontrava o pescoço — e
assim, a cabeça de Gilbert caiu, rolando até os meus pés.
A cabeça decepada de Gilbert olhou para mim.
— Diga a Antonia… que meu amor por ela é verdadeiro. —
E aí a cabeça virou pedra. O mesmo aconteceu com o
restante do corpo, que desabou e quebrou em diversos
pedaços no meio do beco escuro.
Sebastian olhou para mim e para os poucos outros
clientes regulares que estavam assistindo. Ele rosnou e o
que tinha sobrado da sua boca falou:
— Cééééééééééééééérebro!
O cliente mais perto era Jerry Dorfenglock, que
frequentava o Rachel’s havia vinte anos. Ele tinha uma
careca bem legal, e ele já tinha experimentado pentear o
cabelo lateral por cima da cabeça até o outro lado até cortar
tudo, que nem o Kojak, antes de decidir aceitar o que ela
era: dois tufos de cabelo grisalho flanqueando um domo
sereno. Sebastian abriu aquele escalpo nobre junto com a
caveira abaixo dele. Com ambas as mãos, Sebastian tentou
pegar um pouco dos miolos do pobre Jerry, mas parou no
último segundo. Então, ele se inclinou e afundou os dentes
no pescoço de Jerry, chupando todo o sangue do corpo dele
em um gole só.
Um momento depois, Sebastian desviou os olhos da casca
do cadáver de Jerry, parecendo mais como era antes.
— Se eu… — Ele parou para limpar a boca. — Se eu comer
o cérebro, me torno irrevogavelmente o zumbi. Mas se eu
beber o sangue, volto ao meu eu vampírico magnífico. É
sempre difícil lembrar a mim mesmo. Pense nisso como a
barreira sangue-cérebro entre o trapaceiro charmoso… e o
inimigo cambaleante. — O outro cliente que estivera
assistindo à luta, Lou, tentou fugir, mas Sebastian era
rápido demais.
Eu olhei para as cascas sem sangue dos meus dois
melhores clientes, além dos pedaços de calcário do pobre
Gilbert, e então de volta a Sebastian — que agora tinha a
mesma aparência de antes, como se nada tivesse
acontecido, tirando as manchas no seu terno sob medida.
Decidi que manter o tom casual era minha maior chance de
sair dali com vida.
— Então você é meio vampiro, meio zumbi — falei como
se estivesse discutindo uma reprise de Seinfeld. — Isso é
uma coisa que não se vê todo dia, acho.
— É uma história interessantíssima — disse Sebastian. —
Quando era mortal, amei uma beleza negra misteriosa, que
se tornava mais misteriosa a cada hora. Meu coração quase
explodiu pelo amor que eu sentia. Por fim, ela revelou a
mim que era uma vampira ancestral e me ofereceu a
chance de ser seu consorte. Ela me deu seu sangue e me
disse que, se eu morresse nas próximas doze horas, me
tornaria um vampiro e poderia me juntar a ela. Se eu não
morresse, poderia voltar à minha vida mortal. Ela me deixou
sozinho para tomar a decisão. Fui até meu lugar favorito às
margens do lago Stoneflower, para considerar minha
decisão e saborear meu último dia na Terra… pois já sabia
qual era minha escolha. Mas, então, um zumbi surgiu do
fundo do lago, onde aterrorizava um robalo, e me mordeu
no rosto. Morri no mesmo instante, porém, conforme o
sangue de vampiro me transformava no eterno jovem
apaixonado pela escuridão, a mordida do zumbi também
fazia sua mágica. Agora, sou um vampiro, contanto que
mantenha uma dieta regular de sangue restaurador.
— Que história legal — falei. Eu já estava pensando no
que faria com os corpos de Lou e Jerry, já que eu tinha a
impressão de que Sebastian consideraria remoção de
cadáveres um trabalho de mulher. — Você devia vender os
direitos para a TV.
— Agradeço o conselho. — Sebastian fitou o fundo dos
meus olhos, e seu olhar me congelou. — Você não vai falar
a ninguém sobre o que viu e ouviu hoje. — Conforme falava,
as palavras se tornaram uma lei inquebrável para mim.
E então Sebastian saiu caminhando para longe, me
deixando — o que foi que eu disse? — para enterrar os
corpos. Pelo menos com Gilbert era só uma questão de
levar os pedaços para o Parque da Estátua Arruinada a
algumas ruas de distância.
Quando eu enfim acabei, minhas mãos estavam horríveis,
e eu estava suando, tremendo e talvez até chorando um
pouco. Voltei para o bar e me servi uma dose de bourbon
Wild Turkey, e aí mais outra, e depois mais um pouco. Eu
queria poder conversar com alguém sobre aquilo. Mas é
claro que eu estava sob o efeito de um feitiço mental e não
poderia falar uma palavra.
Ainda bem que eu tinha uma conta no Hotmail.
Eu coloquei as coisas da forma mais simples que consegui
em um longo e-mail para Antonia, incluindo toda a bagunça
que era a coisa do “vampiro que também é zumbi”. Terminei
o e-mail falando: “O negócio, querida, é que Sebastian vai
pensar que você não sabe nada sobre isso, e, com Gilbert
fora do caminho, ele vai agir. Definitivamente NÃO se case
com ele, o lance de ser meio zumbi é inaceitável, mas não
tente lutar com ele também. Ele tem aquela coisa de que,
quanto mais você o machuca, mais zumbi ele fica e aí não
dá para ganhar; ele vai vencer você de qualquer maneira.
Isso sem mencionar que a Lua Cheia acaba amanhã de
manhã, então você não tem mais um lobo do seu lado. Só
se mantenha a salvo, ok, porque acabaria comigo ver
alguma coisa acontecer com você — quero dizer que você
traz os clientes e o dinheiro deles, não se preocupe, não
estou ficando sentimental com você. Sua chefe, Rachel.”
Ela apareceu no dia seguinte, agarrada à cabeça de
Gilbert. Os olhos estavam inchados e os tendões do pescoço
apareciam quando ela soluçava. Eu dei a ela um copo de
absinto sem falar nada, e ela bebeu tudo na mesma hora.
Então fiz outro, com o cubo de açúcar e tudo o mais.
Eu não tinha certeza se o controle mental de Sebastian
me impediria de dizer que eu sentia muito, mas não me
impediu. Antonia deu de ombros e desabou no meu ombro,
chorando na minha camiseta de flanela, a testa de Gilbert
pressionando o meu estômago.
— Gilbert realmente me amava — disse ela quando foi
recuperar o fôlego e se sentou no seu banquinho de tocar
música de sempre. — Ele me amava mais do que eu
merecia. Eu… eu estava finalmente pronta para me render e
dar meu coração de novo. Tinha me decidido enquanto
corria com os lobos.
— Você ia sair com o Gilbert? — Eu tive que me sentar.
— Não. Eu daria a má notícia para Gilbert gentilmente e,
então, ia sair com Sebastian. Porque ele me faz rir. — Ela
abriu o estojo do violão, revelando uma espada brilhante de
aço silvaniano com o brasão de Thuiron, o Deliberador no
cabo, em vez do instrumento. — Agora, tenho que matá-lo.
— Ei, ei, ei — falei. — Tem algumas boas razões para não
fazer isso, sobre as quais não posso falar agora, mas se
você esperar um minuto e me deixar pegar um bloco de
papel e uma caneta, vou ficar feliz em explicar…
— Você já explicou. — Ela colocou a mão esquerda no
meu ombro. — Obrigada pela sua gentileza, Rachel.
— Eu não… — O que eu poderia dizer? O que eu tinha
permissão de dizer? — Eu não quero que você morra.
— Não vou morrer. — Ela sorriu com pelo menos parte do
rosto.
— Vai começar o show mais cedo hoje? Tenho um pedido
a fazer — disse Sebastian do vão da porta no topo da
escada que levava ao bar, emoldurado pelo restinho de luz
do dia. — Eu queria ouvir um pouco de Van Morrison, em
vez dessa…
Antonia jogou a cabeça de Gilbert em Sebastian. Os olhos
dele se arregalaram quando ele percebeu o que era aquilo e
o que significava. Ela quase se abaixou, mas optou por
pegar a cabeça com uma só mão, para mostrar que ele
ainda estava no controle da situação. No entanto, enquanto
ele estava distraído, Antonia já corria com a espada,
fazendo um barulho enquanto a arma cortava o ar.
Antonia empalou Sebastian, mas errou o coração dele. Ele
deu um chute na cara dela, e ela caiu, cega por causa do
sangue.
— Então é assim que vai ser? — Sebastian jogou a cabeça
no reservado mais perto, onde ela caiu de rosto para cima
na mesa. — Confesso que estou desapontado. Eu ia casar e
depois matar você. Fico com mais tesouro das fadas assim.
— Você… Você… — Antonia cuspiu sangue. — Você nunca
me amou.
— Ah, acorda. — Sebastian ficou em cima de Antonia,
puxou a espada para fora do peito dele e levou-a para cima
de sua cabeça com as duas mãos, querendo dar um corte
limpo. — Vou levar os seus restos para Silvânia e então
contar uma história linda sobre como nos apaixonamos e
nos casamos antes de você ser morta por um javali
selvagem ou um vendedor de seguros. Fique quieta, vai
doer menos assim.
Antonia deu um chute nas suas partes reprodutoras, mas
ele nem ligou. A espada brilhante zuniu em direção ao
pescoço dela.
— Ei! — Eu peguei minha espingarda vorpal de cano duplo
de baixo do balcão. — Sem. Brigas. No. Bar.
— A gente pode resolver isso lá fora — disse Sebastian,
sem mover a espada.
— Tarde demais para isso — falei. — Você está no bar,
então eu decido como a gente vai resolver isso.
— E como vai ser?
Respondi com a primeira coisa que me passou pela
cabeça.
— Com um concurso de karaokê.
E como era o meu bar e eu tenho algumas proteções
preparadas para esse tipo de situação, os dois tinham que
obedecer às minhas palavras. Sebastian reclamou um
pouco, especialmente porque Antonia era uma cantora
semiprofissional, mas não tinha como evitar. A gente
demorou algumas horas para organizar tudo e achar alguns
juízes e colocar uns feitiços de imparcialidade neles, para
manter a competição justa.
Eu até abri o meu garrafão de vinho bom e dei taças de
graça para todo mundo. Assim que seu ninho ficou vazio,
Leroy, o duende do vinho, se arrastou até o bar e apertou os
olhos.
Antonia foi primeiro, e foi direto na jugular — com músicas
da Broadway. Você provavelmente nunca viu uma princesa
das fadas cantar “Don’t Tell Mama”, do Cabaret, girando o
quadril em passos burlescos de dança e fazendo uma coisa
meio Betty Boop quando piscou para a plateia. De alguma
maneira, ela colocou toda a raiva e paixão, toda a ira
justificada tipo da Sarah McLachlan, em um rugido no refrão
final. Os juízes desenharam bons números altos e
tagarelaram com tom de aprovação.
E aí foi a vez de Sebastian — e ele arrebentou com aquela
música do Red Hot Chili Peppers sobre a Cidade dos Anjos.
Ele até colocou mais delineador. Ele olhou fixo para cada um
de nós com aquele olhar vampírico raso, mesmo quando
estava mostrando um fac-símile de uma alma, cantando
sobre estar perdido e solitário e sobre querer o seu maldito
lugar ao sol. O filho da mãe ia ganhar aquele negócio.
Mas tinha uma coisa que eu sabia com certeza. Eu sabia
que ele ia ter que fechar os olhos, por pelo menos um
segundo, quando chegasse nas notas agudas da ponte
sobre a ponte, depois do segundo refrão.
Então, quando Sebastian cantou “Under The Bridge
Downtown”, os olhos dele fecharam para que a voz pudesse
flutuar acima da guitarra de Frusciante mudando do modo
“papinha” para o modo “lixo”. E foi aí que eu atirei nele com
a minha espingarda vorpal. Um na cara, outro no peito. Eu
recarreguei o mais rápido possível, e atirei no peito de novo,
e depois no joelho esquerdo, só para garantir.
Não foi o suficiente para atrasá-lo, mas foi o suficiente
para ele mudar. De repente, a letra virou: “Under the bridge
downtown, I could not get enough… CÉÉÉÉÉÉREBROS!!”
Ele jogou o microfone longe e foi para cima da plateia. Os
três juízes, ainda enfeitiçados para serem cem por cento
imparciais, permaneceram sentados pacientemente,
observando aquilo e fazendo anotações nas suas folhas de
papel, até que um dos clientes os empurrou para fora do
caminho. Leroy, o duende do vinho, cobriu o rosto e gritou
pela segurança de seu garrafão. Pessoas passaram umas
por cima das outras para chegar até a escada.
— Eu assumo daqui em diante. — Antonia ergueu a
espada, girando a arma como um chefe de cozinha de
Benihana enquanto o orgasmo guitarrístico de Frusciante
chegava ao clímax. Ela arrancou um dos braços de
Sebastian, mas ele mal notou.
Ela desferiu outro golpe, tentando arrancar a cabeça
dessa vez, mas ele conseguiu dar um passo de lado e tentar
atingir Antonia com uma cabeçada. A cara dele foi atingida
pela lâmina, e de novo ele mal percebeu, e empurrou o fio
para dentro da barriga de Antonia com a testa. O sangue
jorrou dela conforme a menina caía no chão, e ele pegou o
líquido na boca como se fosse chuva.
Um segundo depois, Sebastian era Sebastian de novo.
— Ah, sangue de fada — falou. — Não tem nada igual.
Antonia tentou se levantar de novo, mas voltou ao chão
com um gemido, curvada sobre o estômago ferido.
Dei outro tiro, mas errei, e Sebastian quebrou a
espingarda no meio. E então quebrou meus dois braços.
— Ninguém vai vir cantar karaokê aqui se você atirar na
cara das pessoas enquanto elas estiverem cantando. Sério.
— Tentei não dar a ela a satisfação de me ouvir chorar.
Antonia levantou a cabeça e lançou um feitiço de fogo.
Fumaça começou a sair do corpo de Sebastian, mas ele
apenas deu de ombros.
— Você já viu o que acontece quando tenta me machucar.
— A fumaça se tornou uma parede de fogo sólida, mas ele a
afastou com um golpe de tai chi. — Então por que se dar ao
trabalho?
— Boa parte — a voz de Antonia veio do outro lado da
parede de fogo — era para distraí-luuuuuuuuuu! — Seu
rosnado virou um uivo, um grito bárbaro por vingança.
Pode ser que exista uma visão mais incrível do que um
lobo branco gigante pulando por uma parede de fogo sólida.
Se existe, eu não vi. Antonia — porque, de alguma forma,
ela conseguiu reunir o suficiente do seu lobo interior para
mudar — tirou as garras para fora durante o pulo. Seus
olhos brilhavam vermelhos e suas orelhas estavam para
trás conforme as chamas abriam espaço para ela e faziam
chover faíscas sobre seu pelo branco cor de mármore.
Sebastian foi pego de surpresa. A primeira mordida dela
abriu o pescoço dele, e a cabeça ficou pendurada em um
lado. Ele começou a virar zumbi de novo, mas Antonia já o
estava arranhando.
— Não… não deixa ele te morder! — gritei de trás do
balcão.
Sebastian quase tinha conseguido pegar Antonia com os
dentes, mas ela desviou.
— CÉÉÉÉREBRO!
Ela estava em cima dele, as mandíbulas abrindo e
fechando sem parar, mas ele mordia tão forte quanto ela. A
saliva de zumbi e os dentes de vampiro estava a
centímetros do pescoço dela.
Eu engatinhei até o cooler onde deixe os jarros de sangria,
e puxei a tampa com meus dentes. Derrubei garrafas e
jarras tentando pegar a surpresa que tinha deixado ali na
noite anterior, em um jarro grande coberto por papel-
celofane.
Eu não tinha enterrado tudo de Lou e Jerry.
Peguei o jarro com os dentes e equilibrei-o entre meus
dois braços e meu queixo, e então levei até onde Antonia e
Sebastian ainda tentavam morder um ao outro.
— Ei — falei com a voz rouca —, guardei um negócio para
você, seu filho da mãe.
E aí derrubei o conteúdo do jarro — o cérebro de dois
caros em um belo vinagrete balsâmico — na cara de
Sebastian. Assim que começou a comer os cérebros, ele não
conseguiu mais parar. Ele estava com miolos no rosto todo e
tentava engolir aquilo o mais rápido possível. Cérebro
entrava nos olhos dele e no que tinha sobrado do nariz. Não
tinha mais como ele voltar atrás agora.
Antonia quebrou o jarro de vidro e segurou um grande
caco nas suas mandíbulas fortes de lobo, cortando o
pescoço de Sebastian até a cabeça sair. Ele ainda estava
engolindo os últimos pedaços de cérebro que tinha na boca
e tentava lamber pedacinhos que ficaram no rosto.
Demorou uma hora para arrumarem os ossos dos meus
braços e eu fiquei com gessos do tamanho de barris de
chope. Colocamos a cabeça de Sebastian em outro jarro,
com uma luz negra dentro para que, sempre que o aparelho
de som tocasse Red Hot Chili Peppers, ele se animasse e
seu rosto ficasse roxo. Eu nunca pensei que iam pedir tanta
música do RHCP no Rachel’s. Mas também nunca consegui
a permissão para abrir um segundo bar.
Quanto a Antonia, acho que toda essa experiência a
deixou mais durona e a fez perceber que ser um pouco um
animal selvagem não é uma coisa ruim para uma princesa
das fadas. E que Anthony Kiedis não tem o alcance musical
que pensa ter. E que, quando se trata de triângulos
amorosos e duelos até a morte, você sempre deve
trapacear. E que fugir dos seus problemas não funciona por
tanto tempo. Tem algumas outras lições também, que eu
imprimi e plastifiquei para ela. Ela continua cantando no
bar, mas fez algumas viagens até Silvânia durante a lua
crescente, e eles estão procurando uma cura para ela.
Provavelmente ela poderia voltar e ser uma princesa se
quisesse, mas estamos conversando sobre fazermos
negócios juntas e abrir alguns bares de karaokê em
Charlotte e Winston-Salem. Ela está aprendendo a levar as
coisas numa boa. Acho que a gente pode conquistar o
mundo.
OLHE AQUI DENTRO
MICHAEL MARSHALL SMITH
E
u vou contar uma mentirinha para você antes
de a gente começar. Não se preocupe — depois
eu conto qual é. Vou deixá-lo com a verdade,
prometo.
Mas vou contar a outra coisa antes.
E eu estou grávida.
S
ete anos de azar. É nisso que estou pensando
conforme levo o pedaço de espelho quebrado
para o meu antebraço. À direita da veia azul
longa, traçando as finas cicatrizes que vieram
antes.
Não há dor. Ela está do lado de dentro. E não vai sair, não
importa o quanto eu sangre. Não há dor. Mas, por um
momento…
Alívio.
Por um momento.
Até que o sr. L me chama de novo.
— Ei, você, Vermelhinha. Vem cá.
Ele me chama. Não as outras garotas. Talvez seja porque
ele gosta do meu cabelo vermelho atarracado. Gosta de
enrolar seus dedos atarracados de velho nele. E eu não
posso mandar ele parar.
— Quer voltar para casa? — pergunta ele. — Voltar para a
sua avó? Voltar para aquela velha que não para de fazer
tricô? — Ele leu o meu arquivo. Sabe o que vou dizer.
— Não. Até você é melhor do que aquilo. — E então não
digo mais nada. Fujo para uma parte da minha mente e
deixo o corpo com ele.
A floresta é escura, mas eu conheço o caminho. Já estive
aqui antes. Há um caminho logo adiante, cheio de pedras e
mal conservado, mas meus dedos são como agulhas e
tachas. Se eu ficar aqui, passear por aqui por tempo
suficiente, será que vou me tornar um deles para sempre?
AFIADO
tesoura
faca de cozinha
um pedaço de vidro quebrado
não consigo pressionar forte o bastante
para fazer nada além de arranhar a superfície
e o sangue não é vermelho
até tocar o ar
Tudo bem, não rima e não dá para usar isso como uma
melodia, mas ainda é verdade.
— O que você escreveu, Vermelha? — pergunta Alby.
Joelle já saiu para ir ao banheiro. Não quero nem sentir o
cheiro do diário dela.
— Coisas bonitas. — Cubro o poema com a mão. É bonito,
decido. É sombrio e bonito, que nem quando eu sonho.
— Vermelhinha. — O sr. L está parado à porta. — Com
licença, sra. Augustine. Preciso falar com aquela ali.
Ele aponta para mim. Eu vou embora.
VOVÓ
Que orelhas grandes você tem,
Que dentes grandes,
Grandes como tesouras.
Para cortar fora o meu coração.
Alfinetes e agulhas,
Agulhas e alfinetes,
Onde uma vida acaba
Outra começa.
VINHO NOVO
ANGELA SLATTER
S
e você deixar essa tigela na mesa, em vez de
enxaguar e colocar na lava-louças, vai se
arrepender pelo resto da semana.
A voz de Valerie flutua até ele do hall de
entrada da casa grande demais. Ela tinha ido
pegar a correspondência, ele pode ouvir o barulho dos
saltos dela no piso de taco de madeira se aproximando.
— Mas é meu aniversário! — Alek, tendo acabado de se
levantar, a mochila pendurada no ombro, está a dois passos
e meio da mesa da cozinha (onde eles fazem as refeições,
em vez de na sala de jantar formal).
— Não estou nem aí — responde ela.
Ele dá meia-volta, pega a tigela de cereal e faz o que
deveria ter feito em primeiro lugar. Certifica-se de fazer
muito barulho para ela ouvir.
— Sim, Valerie. — Como ela faz isso? Quase dois anos, e
ele ainda não tinha entendido. O tempo todo. Talvez seja
porque ela sempre fica de olho nele; Alek às vezes se
pergunta se ela presta atenção demais em uma criança
porque falhou em prestar atenção em outra.
Alek gosta de sua tutora, gosta mesmo. Apesar de essa
ser uma palavra estranhamente pequena para descrever o
que ela faz: garantir que ele esteja sempre estudando,
gerenciar os funcionários ocasionais da casa (faxineiros,
jardineiro, mecânicos), fazer comida para eles dois e, em
geral, manter Alek longe de encrencas. E foi assim que o pai
dele, Reid, explicou o trabalho para ela: Tutore o meu
garoto. Mas a coisa da mãe substituta? Isso meio que pegou
os dois de surpresa, pensa Alek, mas talvez eles sejam bons
um para o outro. Todo mundo em Mercy’s Brook sabe o que
aconteceu com a filha de Valerie, mas foi essa situação que
fez com que Valerie surgisse na vida de Alek, e tem dias que
ele acha difícil se sentir mal por causa disso.
Valerie, usando seu vestido leve florido, aparece na porta
da cozinha no momento em que Alek está fechando a lava-
louças; ele mexe as mãos fazendo um ta-dá!
— Deus, e você ainda quer ganhar uns tapinhas nas
costas? — Ela sorri para aliviar o sarcasmo, e é a coisa mais
linda. Alek se lembra de seu pai Reid falando que a maioria
dos caras da sala dele no ensino médio tinha uma quedinha
por ela, inclusive ele mesmo. Quase ninguém era
correspondido. Pelo que Alek conseguira perceber dos
olhares de homens de meia-idade quando ele a ajudava a
fazer as compras, aquilo não tinha mudado muito, e um
monte de seus próprios amigos de escola não são imunes a
ela, não importa se ela tem idade suficiente para ser mãe
deles.
— Vai ter aula até tarde hoje? — pergunta ela.
— Vou.
Ele gosta do fato de que ela acha que ele é esperto. De
que ela sabe que ele é esperto. Ele até gosta que ela
entende como ele é preguiçoso. Além do mais, Valerie tem
um sexto sentido para saber quando ele está ficando para
trás. Ela simplesmente fica de braços cruzados e olha para
ele com aqueles olhos cor de avelã até ele tomar tenência e
fazer todo o dever de casa. Ela também é esperta, tão
esperta que chega a assustá-lo um pouco. Tudo bem,
bastante, mas ele gosta de ter ela por perto. O senso de
humor dela é tão seco que, às vezes, ele chega a engasgar.
Mas ela o conhece e parece gostar dele, de qualquer forma.
De vez em quando, ele pensa que só quer atenção ou só
quer garantir que o seu pai a mantenha contratada por mais
tempo. A verdade é que Alek quase sempre fica na linha
quando ela está lá porque ele não gosta de desapontá-la,
não completamente, e, pelo pai de Alek — que viaja muito,
perdendo mais aniversários e Natais do que ele podia contar
—, tudo bem. No final, o custo de uma tutora vinte e quatro
horas por dia não é nada comparado a escola militar,
clínicas de reabilitação e o salário de um advogado.
Conforme passa por ela, ele lhe dá um beijo na bochecha,
um gesto que ele faz de vez em quando, e, de uma forma
brusca, diz:
— Tchau.
As paredes do corredor que leva até a porta da frente são
cobertas por uma variedade de espelhos antigos. Alek
passou boa parte de sua vida odiando aquelas coisas,
porque sempre se sentia sozinho quando olhava para elas.
Em alguns momentos, ele não tinha nem certeza de que
estava lá. No passado, houve dias em que ele pensou que
poderia ver através de si mesmo pelo reflexo. Porém, desde
que Valerie chegou para ficar, ele tem se sentido sólido.
Pode encarar os espelhos. Alek não quer voltar a ver através
de si mesmo. Valerie o vê, lhe dá peso.
— Bolo de chocolate? — diz ela.
— Com cobertura extra? — Ele sorri, mas não dá meia-
volta. É o aniversário dele, mas com seu pai longe (Reid
sempre está longe por causa de sua empresa de
computação) e uma festona planejada para o fim de
semana, só vai ser eles dois de noite.
— Claro.
Valerie acha que ter tido uma filha, uma vez, deixa mais
fácil se importar com o garoto, o que ainda a choca às
vezes, porque quando Lily desapareceu, Valerie deixou de
se importar com qualquer pessoa por um bom tempo. Ainda
mais quando ela percebeu que todos aqueles policiais
cheios de boas intenções, mas que não faziam porra
nenhuma, que davam tapinhas nos seus ombros e diziam
que fariam tudo que pudessem, logo voltavam a comer um
caminhão de rosquinhas — o xerife Tully mais do que
qualquer outro. Seu ex-marido era tão inútil quanto, mas em
vez de rosquinhas, se perdia na bebida.
Ela deu uma olhada rápida nas cartas. Havia um monte de
contas. Um envelope retangular e rosado endereçado para
Alek, com um perfume doce que ficaria igual ao fedor de
mijo de gato depois de cinco minutos na pele. O envelope
branco é o único destinado a ela, com uma letra muito
distinta que a faz suspirar. Ela sente o peso daquela casa:
dois andares acima, todos aqueles quartos vazios, banheiros
nunca frequentados, um sótão cheio de poeira; no primeiro
andar fica a cozinha, a biblioteca, as salas de jantar, três
cômodos e o escritório raramente usado de Reid; e abaixo,
no porão, uma garagem grande o suficiente para seis
carros, e uma adega de alta tecnologia, com seu vinho
velho em garrafas velhas, protegidas por uma fechadura
eletrônica e uma senha. Valerie não se interessa por
bebidas alcoólicas.
Ela deixa a correspondência sobre a mesa de pinho e vai
fazer um novo bule de café. Observa todos os ingredientes
necessários para fazer o bolo de aniversário logo depois do
faqueiro de madeira — não precisa comprar nada —, então
abre a lava-louças que Alek não fechou direito. Após
rearrumar seu conteúdo, ela volta a fechar a porta com a
paciência cansada de um santo crucificado, e retorna para
fazer o café.
Alek é um bom menino, na maioria das vezes.
Nem é bem mais um menino, supõe; ele tem dezoito anos
e parece mais novo. Algumas crianças amadurecem mais
rápido quando são negligenciadas, mas imagino que, no
caso de Alek, foi apenas negligência emocional: todas as
suas outras necessidades foram atendidas de uma maneira
que talvez o tenha deixado um pouco infantil, carente.
Valerie conheceu a mãe dele durante o ensino médio — não
é como se fossem amigas; elas não andavam juntas na
escola ou quando tiveram seus filhos —, mas ela também
era carente, a Laura Lane. Qualquer vazio que ela pensou
que se casar com Reid “Red” Howard preencheria
aparentemente permaneceu vazio, e, um dia, quando Alek
tinha nove anos, Laura pegou suas coisas e foi embora,
deixando o garoto para trás. Daí, houve uma série de
empregados e tutores particulares que não ficaram por
muito tempo; não porque Alek era especialmente
complicado, mas sua necessidade de atenção e reafirmação
eram constantes e se ele não fosse atendido nisso… bem,
Reid contou a ela que, quando criança, Alek chorava muito,
quando adolescente, seu silêncio era terrivelmente
apocalíptico. Ninguém durou, seus nervos em frangalhos de
uma maneira ou de outra; ninguém até Valerie.
O pai de Alek poderia ter mandado o filho estudar em
qualquer universidade, até nas Ivy League, mas o manteve
em casa para estudar na pequena instituição desconhecida
na cidade mais próxima. Não que tivesse algo errado com
ela, mas também não havia muita coisa boa a ser dita da
Universidade de Addison (sim, ela tinha “Universidade” no
nome, mas não passava de uma faculdade de segunda).
Tinha um campus bonito, cursos razoáveis, professores
decentes, nenhum grande escândalo até agora, classes
pequenas e um problema com drogas relativamente
pequeno. A maior parte dos alunos vai lá apenas para fazer
programas de transferência de um ano para Syracuse,
Cornell ou Princeton. É claro que algumas garotas com um
passado desprivilegiado frequenta a Addison através da
Bolsa de Estudos Laura Lane-Howard, que Reid criou quando
sua esposa foi embora.
Alek não parece se importar. Reid deu ao filho as chaves
da Mercedes C-300 Coupe preta, e Alek não precisa se
esforçar muito para brilhar na instituição. Ele não parece
querer frequentar qualquer outra universidade, o garoto não
tem ambição.
Um belo carro é ótimo se a sua vida não muda, pensa
Valerie. Mas a vida muda, como ela sabe muito bem. Ela
muda quando você não está olhando, ou mesmo quando
você estava olhando, mas estava ocupado demais com
outras coisas. Em algum momento, Alek vai ver a vida
metendo a porrada nele em um beco como vingança.
Privado do amor materno e com um pai ausente, o garoto é
tão desesperado por afeição e atenção que ele cola
meninas no seu ego como se fossem adesivos de nicotina.
Mas, mesmo assim, ele não é um mau menino, considera
Valerie. Ele está apenas lidando com aquilo da maneira que
conhece, seguindo uma necessidade da única forma que
acha que pode. Ela suspeita de que ele não gosta do eco
vazio que a maioria das pessoas encara uma vez na vida.
Alguns reconhecem esse eco e o absorvem, outros o
ignoram e se livram dele. Há dias em que Valerie acha que
consegue escutar os ruídos tristes do vazio dele
harmonizando com os do dela, justamente quando acha que
conseguiu vencê-lo. A verdade é que o garoto é uma âncora
para ela, e ela não sabia o quanto precisava de uma.
Ela serve a si mesma uma xícara de café, sente o aroma
profundo preenchendo a cozinha de uma maneira que
parece grande demais para um receptáculo tão pequeno.
Ela pensa que parece mágica: o cheiro, o ritual de passar o
café, o efeito dele nos seus sentidos. É estranho como algo
tão amargo possa deixar alguém tão contente. Ela se senta
e separa as cartas em pilhas. Começa abrindo a conta, elas
serão pagas com o cartão de crédito que Reid deu a ela. Ela
coloca o envelope rosa no canto da mesa, para que Alek o
veja quando chegar em casa de noite.
Valerie observa o retângulo rosa, imaginando quem será a
última. Ela sempre fica um pouco impressionada com o jeito
com que o garoto olha para ela, como se ela fosse uma
espécie de bruxa, quando lhe pergunta: “E qual é o nome
dessa?” Como se ele fosse tão misterioso. Meu Deus,
querido, pensa ela, para um garoto esperto, você é bem
burro. Ela poderia lhe dizer que ele é previsível, que só o
nome muda. Poderia dizer que ele era tão fácil de prever
quanto um novo dia. Mas não fala nada.
Quando ela se mudou para a casa dos Howard, Valerie, às
vezes, encontraria a menina da vez para um café e
qualquer que fosse o tipo de bolo que a tristeza pediria após
o inevitável acontecer: Alek perder interesse na garota do
momento. Valerie escutaria o choro e/ou reclamações, ela
concordaria e então falaria que a vida é assim mesmo. Alek
não faz por mal, ela diria, mas ele é um cabeça de vento.
Você não quer um cabeça de vento, eles nunca percebem
do que você precisa, ou, se percebem, provavelmente não
vão dar a você a não ser que vejam alguma vantagem para
eles. E garotos cabeça de vento se tornam homens cabeça
de vento, a não ser que aprendam algumas lições difíceis no
início da vida.
Nem todos os homens eram assim, diria Valerie, mas
havia um número suficiente deles no mundo para tornar a
vida um inferno.
“A decisão é sua”, falava ela. “Você quer ser a mulher que
vai ensinar essas coisas a ele? Porque posso te dizer agora
que ele vai começar a pensar em você como a mãe dele, e
confie em mim: nenhum homem quer dormir com a própria
mãe. E, se querem, então você não vai querer dormir com
eles. Ou você quer um homem que já aprendeu essas lições
através de outra pessoa?”
Ela nunca tinha visto qualquer uma daquelas garotas
decidir que queria ser a mulher a ensinar Alek as lições
necessárias, embora uma delas tenha acusado Valerie de
permitir aquele comportamento da parte dele. Quando
terminou de rir, Valerie respondeu: “O que eu estou
permitindo? Que uma garota possa sair dessa enquanto
ainda não é tarde? Se eu disser para você ficar e lutar, para
bater a cabeça na parede ao tentar forçar alguém a te
amar, que porra de favor estarei fazendo a você? Permitir é
deixar um batalhão de moças voltar para ele sempre, como
bucha de canhão, porque elas pensam que vão ganhar? Se
vocês ficarem voltando, o que ele vai aprender sobre
consequências? Mas, se um número suficiente de mulheres
for embora, talvez ele mesmo se toque.”
Ela balançou a cabeça e terminou: “Um dia, você talvez
tenha filhos e vai ter que lembrar que é você quem vai ter
que ensinar ao seu filho quanta merda uma mulher tem que
aguentar.”
Em algum momento, porém, ela ficou exausta da
quantidade de garotas e mandou Alek parar de trazê-las
para casa até encontrar uma com quem quisesse se casar.
Na verdade, porém, ela sabia, lá no fundo, que se esforçar
para obrigar alguém a tomar decisões melhores era uma
causa perdida.
Valerie gosta de pensar que sua filha não teria precisado
de conselhos assim. Ela gosta de pensar que sua filha teria
sido inteligente demais para suportar aquele tipo de merda
na juventude. Valerie gosta de imaginar como seria sua vida
em Mercy’s Brook se Lily não tivesse partido, embora
“gostar” provavelmente não seja a palavra certa. É mais
como se fosse uma imolação mental. Ela não puxa os
cabelos ou arranca a cutícula; não bebe, fuma ou usa
drogas; não, a automutilação dela é imaginar dias melhores
que nunca virão.
Lily teria se formado na escola, teria ido fazer faculdade
em Nova York ou Boston. Teria decidido se seria uma
médica, advogada, arquiteta: ela tinha todas as escolhas do
mundo. Talvez ela teria voltado para casa e Mercy’s Brook,
talvez ela teria se estabelecido em outro lugar e Valerie
teria que ir visitá-la. Talvez Chase fosse com ela também,
talvez Chase não teria começado a beber se a filha deles
não tivesse desaparecido. Talvez Valerie não tivesse
começado a ter um caso com o gerente da farmácia. Talvez,
se eles tivessem tido alguma resposta sobre o destino de
Lily, a outra coisa nunca teria acontecido.
Ou talvez teria acontecido de qualquer maneira.
Valerie esfrega o rosto com uma das mãos e boceja. Ela
não tem dormido bem; os sonhos estão voltando com toda a
força. Eles sempre voltam nessa época. Ela nem precisa
olhar no calendário para saber que a data está próxima,
basta observar os efeitos físicos e psicológicos causados na
marcha dos dias. E não ajuda o fato de que esse ano, o
senso de desamparo a consumiu. Toda a avenida parecia
estar fechada, não havia uma única pista sobre o que tinha
acontecido com Lily.
Com um suspiro, ela pega o único envelope com o nome
dela. Ela examina novamente a caligrafia com jeito antigo,
um estilo aprendido sob a ameaça de uma régua. Valerie
está prestes a passar a unha comprida na beirada da
abertura e começar o delicado processo de abrir uma carta
quando a campainha toca.
— ’Dia, Valerie.
O xerife Obadiah Tully tem a forma de um barril
equilibrado sobre pernas magras e curtas. O uniforme dele
precisa ser feito sob medida, mas nem mesmo a alfaiataria
personalizada faz milagres, não com o formato excêntrico
do homem. Valerie acha injusto que Tully não precise se
preocupar por não estar em forma; ela adoraria que ele
fosse afligido ao menos com uma gota da dúvida em
relação a si que está presente em toda mulher. Mas não, ele
só puxa o seu cinto de utilidades que fica debaixo do toldo
formado pela sua pança de um jeito pavonesco.
— Xerife. O que o traz à minha porta?
— Bem, não é exatamente a sua porta, não é, Valerie? —
Tully nunca superou seu ressentimento sobre aquilo.
Quando a investigação dele sobre o desaparecimento de
Lily não deu em nada, as reclamações de Valerie ficaram
cada vez maiores, enquanto o marido dela ficava cada vez
mais bêbado. Tully ficou ressentido. Obadiah tomou para si
a responsabilidade de persegui-la quando ela dirigia para
casa durante a noite ou segui-la pelos corredores do
supermercado, certificando-se de que ela sabia que ele
estava lá. Ele convenceu tanto a polícia estadual quanto o
FBI de que Lily Wynne tinha fugido de casa; da forma que
ele falava, bastava algumas poucas palavras para que os
melhores alunos se tornassem verdadeiros demônios.
Então, Chase Wynne esvaziou a conta bancária deles e
saiu de Mercy’s Brook.
Então, a livraria em que Valerie trabalhava fechou e ela
perdeu o emprego.
Então, a casa teve que ser vendida e as coisas ficaram
bem difíceis.
Foi aí que Reid Howard apareceu — quase um ano depois
do dia em que Lily desapareceu — e lhe ofereceu um
emprego, uma casa e uma criança, mais ou menos. Tully
não teve coragem de continuar atormentando-a depois
disso, então Valerie se perguntava por que diabo aquele
merdinha estava ali agora.
— Posso ajudá-lo em alguma coisa, Obadiah? Ou veio
apenas fazer a gentileza de me visitar?
— Só achei que você ia gostar de saber do passamento de
Lucius Anderson.
— Passou no quê? No vestibular? Passamento: esse é o
termo mais idiota que já ouvi. — A raiva aparente de Valerie
era para cobrir o efeito daquela notícia, mas a inquietação e
uma pontada de tristeza reviraram o seu estômago. Ela
engoliu em seco, se lembrando da última vez que falou com
Lucius… bem, discutiu com ele. Ela pensa no envelope
sobre a mesa da cozinha, a caligrafia distinta. — O que
aconteceu?
— Invasão de domicílio — responde Tully. Ele coloca o
chapéu mais para trás na cabeça, revelando as entradas
grisalhas e a marca onde o chapéu aperta demais.
— Uma invasão de domicílio? Aqui? — Sua descrença é
clara, e não é como se o xerife devesse esperar outra coisa,
mas, ainda assim, ele se endireita, um galo minúsculo
enchendo o peito como se estivesse pronto para a briga.
— Você sabe que tem gente que faz metanfetamina na
floresta. Tem um pessoal que passa pela nossa cidadezinha
que ficaria feliz em nos fazer mal. Você deveria saber disso
melhor do que ninguém, Valerie Wynne.
— O que um drogado ia querer na casa de Lucius
Anderson? Ele não tinha nada lá, não quando havia uma
farmácia inteira cheia de remédios.
— Bem, talvez um drogado não soubesse disso?
— Isso não é algo que você deveria estar investigando?
— Sabe, vim aqui apenas para lhe fazer uma cortesia, já
que ele significava algo para você. Ou talvez não.
— O que quer que tenha acontecido entre Lucius e eu não
é da sua conta. — A mão de Valerie no batente da porta
está tremendo e ela consegue sentir o suor frio surgindo nas
axilas e descendo até a parte de baixo das suas costas. Ela
dá um pigarro, pensa na carta na cozinha de novo. — Olha,
desculpe, Obadiah, não quero brigar com você. Só estou…
chocada. Estou chocada, só isso.
Ele retrocede alguns passos, como se tivesse ficado
surpreso com aquelas palavras conciliatórias, e então
assente. Aperta os olhos e, de repente, pergunta a ela:
— Você falou com ele recentemente? Com Lucius? Ele não
mencionou nada para você?
Então Valerie percebe onde ele queria chegar.
— Como se ele estivesse com medo de alguém? Ou se
tinha visto alguém rondando a casa dele em horários
estranhos? Coisas assim?
— É, coisas assim.
Ela balança a cabeça.
— Obadiah, você sabe que as coisas não terminaram bem
entre nós. — E era verdade, pois ele achava que ela se
casaria com ele depois de Chase ter ido embora. — Eu seria
a última pessoa em quem ele iria confiar. — Mas ela lembra
que tinha visto Lucius no supermercado na semana
passada, e como parecera que ele queria lhe contar algo,
mas então deu meia-volta. Ela dá de ombros, e estende a
mão como uma oferta de paz, e Tully, surpreso, a pega. Ela
espera não ter apertado a mão do xerife forte demais. —
Você pode me manter informada? Eu me importava com
ele, independente do que tenha acontecido.
Ela fecha a porta antes mesmo de ele chegar na viatura.
Ela não ouve o motor dar partida, se ele saiu de lá ou não.
Tem outras coisas na cabeça.
Valerie nunca pensou que Tully tivesse algo a ver com o
desaparecimento de Lily, nunca pensou que ele poderia
estar acobertando outra pessoa, apenas o achava
incompetente e rancoroso, e fazia questão de externar suas
opiniões. Agora, ela se joga contra a parede, sente a
madeira sólida contra suas costas enquanto uma onda de
náusea a envolve.
Nos seus sonhos, Lily a chama, Lily em seu vestido preto e
brilhante de formatura e os belos sapatos de salto alto
vermelhos, Lily com seu cabelo escuro preso em um coque
estiloso, porque a garota sempre teve seus próprios gostos.
Lily, que desaparecera um dia antes de sua formatura
enquanto voltava para casa da sapataria da rua principal,
onde tinha ido comprar os adesivos para que seus pés
parassem de escorregar para fora dos sapatos vermelhos.
Lily nunca teve a chance de usar aquele vestido ou
aqueles sapatos, não de verdade, então a memória que
Valerie tem é do teste que ela e Lily fizeram com
maquiagem e cabelo. Quando Lily conseguiu aperfeiçoar
seus passos naquele salto alto, andando ritmicamente no
corredor do andar de cima até conseguir o balanço correto.
Ainda assim, porém, aquela é a Lily que assombra seus
sonhos, embora, às vezes, Valerie vê o próprio rosto em vez
do da filha.
De volta à cozinha, Valerie se senta à mesa antes de seus
joelhos cederem. Diante dela, estão a agora fria xícara de
café e aquele envelope. Certa noite, enquanto estavam
deitados lado a lado, nus e cobertos de suor, Lucius disse a
ela que ele aprendera caligrafia com seu avô, que era bem
rigoroso. Os outros meninos riam dele porque ninguém mais
escrevia cartas daquela maneira.
Valerie pensa que Lucius deve ter postado a carta pouco
antes de ter sido assassinado. Ela imagina se Obadiah Tully
suspeita de algo assim. Abre o envelope, tira a única folha
de papel branco de dentro e a desdobra.
Com a mesma caligrafia elaborada, estão as palavras:
“Câmera de segurança, Farmácia do Anderson”, e então:
“Me desculpe.” Só isso, apenas aquelas palavras no meio da
página, e ela não entende. Então, seu cérebro dá um estalo
e ela vira a folha e fica sem ar.
Na impressão preto e branco, de jato de tinta, porque
seus dedos suados borram a beirada da imagem, há uma
Mercedes C-300 Coupe preta familiar na rua principal. A
data na imagem é a mesma em que Lily Wynne
desapareceu, e o horário mostra que já havia passado uma
boa hora depois de tudo fechar e da rua estar deserta,
porque as pessoas tinham casa para onde ir e refeições
para preparar.
E Valerie aproxima o papel cada vez mais do rosto, porque
a foto foi tirada em um ângulo que a permite ver bem o
vidro dianteiro do carro, de forma que consegue olhar
claramente a cabeça do motorista e da passageira.
Ela diz a si mesma que aquilo pode não significar nada, e
que o carro pode não ter nada a ver com o desaparecimento
de Lily. Não significaria nada, ela pensa, se ela não
conhecesse o veículo e o motorista muito bem. Se não fosse
a Lily no banco do carona, rindo. Valerie vomita na mesa da
cozinha.
N
osso pai era um lenhador e aquele foi um Ano
do Cão terrível, pois não apenas a mamãe
morreu conforme o frio do inverno diminuía,
mas a loteria do templo caiu sobre nós. Tarde
da noite, meu irmão e eu ficávamos
acordados no sótão ouvindo o choro do pai, pois um filho é a
única fortuna que um lenhador pode ter. Calma, calma,
sussurrava sua nova esposa, envolvendo o corpo dele, forte
pelo trabalho, com o seu, cheio de curvas. Você sempre
pode ter mais filhos. E a pequena Ghani, ela pode ter filhos
também.
Eu não entendia bem o que ela queria dizer então, mas,
conforme ele ouvia, a expressão de Haza ficou como um
toco de árvore teimoso e ele saiu pelo pequeno buraco do
telhado de palha naquela noite, só voltando quando o sol
nascente começou a expulsar a neblina pela teia das
árvores. Quando os padres vieram para levá-lo embora, os
bolsos dele estavam cheios, mas meu irmão não olhou para
trás nenhuma vez, seus cabelos trançados firmemente e
untados com óleo há pouco tempo. A corda de cabelos
preto-avermelhados seria cortada nos degraus do templo, é
claro, mas eu a deixei o mais bonita possível, meus dedos
finos nos cabelos dele e meu estômago roncando.
A menina come por último.
Naquela noite, a nova esposa do pai acendeu o fogo
depois do jantar e penteou seus longos cabelos pretos. Ela
acenou, indicando para eu chegar mais perto, mas eu me
recusei, apesar de o pai ter me dado um tabefe no pé da
orelha e me mandado me comportar, coisa que ele nunca
tinha feito quando a mãe estava viva.
Porém, quando um lenhador encontra uma nova esposa
com as costas flexíveis, cabelos compridos e olhos que
nunca piscam na floresta, já é tarde demais. Naquela noite,
fingi dar um gole do copo de madeira que ela segurava para
mim, com seu cheiro enjoativo de erva-doce se prendendo
no meu nariz e me deixando tonta. Fui para a cama no
sótão quando ela me mandou ir e, quando ouvi meu pai
grunhindo e a cama de madeira rangendo lá embaixo,
passei pelo mesmo buraco que Haza tinha atravessado,
carregando alguns pertences dentro de uma pequena
trouxa de tecido nas costas.
Eu também acendi um precioso toco de vela com uma
pederneira, ambos roubados, e deixei a pequena chama
perto da palha. Quando cheguei ao limite do vale e olhei
para trás, vi, atrás das árvores, um pequeno brilho rosado
na noite. As pedras claras que Haza foi largando me
levaram pelo caminho que os padres fizeram, e, embora a
escuridão fosse profunda, o luar refletia nelas, de forma que
não me perdi.
A
quela não o havia sido a primeira vez que Jodi
tinha morrido, mas deve ter sido a mais
estranha.
Os cães selvagens estavam cheirando seu
corpo quebrado e ensanguentado, cutucando-a
com seus focinhos úmidos, e cada ponto de contato era um
choque, tão frio que parecia quente, a respiração deles
congelando-a onde o sangue pulsava das muitas feridas. Ela
sentiu uma língua áspera passando na curva do cotovelo e o
beijo afiado de um dente. Uma promessa do que logo viria.
Por alguma razão, eles pareciam estar esperando ela morrer
antes de começar a comê-la. Aquilo foi uma bênção. Ela
deve ter feito, pelo menos, alguma coisa boa na última vida
para merecer um tratamento assim.
O ar estava ficando preso na garganta dela. A dor cortava
de forma mais fria e afiada do que a faca que fora sua
perdição. Ela ia além das feridas, alcançava a profundidade
dos ossos, seu âmago, suas partes mais abissais, onde
residiam as memórias de inúmeras agonias semelhantes.
Jodi impôs uma distância entre isso e ela mesma. Ela não se
lembraria da dor e isso não tinha serventia porque em breve
— em minutos, senão em segundos — ela estaria morta. E
então a morte e tudo mais que ela havia visto,
experimentado e aprendido nessa vida não existiriam mais.
Pelo menos por um tempo.
E aí ela acordaria de novo em algum lugar, em outro
tempo e como outra pessoa, e Jodi se tornara muito boa em
não levar as sensações da morte agonizante com ela. Havia
uma razão para isso. Uma razão boa, válida.
Não queria enlouquecer.
— Eu vi quinze abelhas ontem — disse uma voz, e a
respiração arfante e úmida de Jodi ficou presa na garganta.
Eu não sabia que ela ainda estava aqui.
— Anteontem foram dezoito. Levando em consideração
essas terras, essas florestas, cheias de flores nessa época
do ano, deveria haver centenas. Ou milhares.
Achei que ela tinha deixado os cães para acabar com o
serviço.
Como se as feras tivessem escutado o pensamento, ela
sentiu presas começando a corroer os dedos talhados de
sua mão direita. Ferimentos defensivos, poderiam ser
chamados assim. Não tinham adiantado de nada. Era o
terrier, ela imaginou, embora não conseguisse levantar a
cabeça para ver. Um belo céu azul era sua vista no
momento em que um cachorrinho começou a comer sua
mão. Ela sentiu cheiro de sangue e de jacintos. Moscas
pequenas voavam ao redor de sua cabeça e aterrissavam
no seu rosto, e ela sentiu cada uma delas, como se a pele
da face tivesse se tornado supersensível.
Eu vou esquecer a dor.
Seus ombros balançaram quando os cães começaram a
puxá-la.
— Salvei o máximo de abelhas que pude — disse a voz.
Jodi se lembrou dela então, a velha senhora com um
monte de cachorros de estimação, as roupas feitas de
incontáveis retalhos unidos por uma linha grossa rosada.
Todos gostavam dela no vilarejo. A mulher podia ser um
pouco excêntrica, mas fazia parte do conselho da cidade,
defendendo mais latas de lixo para cocô de cachorro e um
novo playground no parque. O nome dela era Helen. Ela
matava gente por diversão, e tinha contado a Jodi — uma
andarilha, uma visitante no vilarejo, que logo morreria pela
décima quinta ou décima oitava vez — para não levar aquilo
para o lado pessoal.
— Eu sempre me pergunto se, quando salvo uma abelha
de um bebedouro de pássaros ou da superfície de uma poça
na floresta, estou salvando o mundo. Tudo tem seu ponto de
equilíbrio. O último cigarro que vai te matar, a última lufada
de ar poluído da cidade que vai fazer uma célula no seu
corpo sofrer uma mutação e começar a se multiplicar a uma
velocidade anormal. O último centímetro de uma facada que
vai fazer você mudar de viva para morta.
Bem debaixo do meu coração, pensou Jodi. Acho que foi
essa.
— A última abelha que salvei, isso vai significar que o
mundo não está mais condenado, que um ramo específico
de flores será polinizado. Estou aqui para salvar o mundo.
Daisy, não come a mão da moça até ela estar morta.
A cadela da raça terrier soltou a mão acabada de Jodi, e
seu último suspiro deve ter soado como uma gargalhada.
O belo céu azul ficou preto, e o último pensamento de Jodi
foi: Queria que Eveline estivesse aqui para me ajudar com
isso.
Os dentes dela pegando sua mão. Seu olho rolando até ela,
na boca um sorriso. Risada de gata, resmungo de gata. O
furico da gata a precedendo nos destroços do jardim, uma
estrela cor-de-rosa enrugada embaixo do rabo esticado.
H
á um tremor na fundação do castelo
O espinheiro estremece e cai, derrubado pelo
fim da
[maldição.
O gavião no chão se mexe, uma tragédia
evitada,
Penas tremendo como se sopradas por um vento forte.
EDITOR RESPONSÁVEL
André Marinho
PRODUÇÃO EDITORIAL
Adriana Torres
Júlia Ribeiro
Juliana Borel
REVISÃO DE TRADUÇÃO
Larissa Bontempi
REVISÃO
Daiane Cardoso
Kamila Wozniak
Luíza Côrtes
Thaís Carvas
DIAGRAMAÇÃO
Filigrana
PRODUÇÃO DE EBOOK
S2 Books
[ 01 ] 1 “Rododendro: O assassino do campo”
www.countrysideinfo.co.uk/rhododen.htm