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DADOS DE ODINRIGHT

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MALDIÇÃO
Organizadores
MARIE O’REGAN
E PAUL KANE
MALDIÇÃO
Uma antologia
dos melhores contos de
fadas sinistros
TRADUÇÃO

Ulisses Teixeira
Título original: Cursed — An Anthology of Dark Fairy Tales

Esta tradução de Cursed, cuja edição original data de 2020, é publicada mediante acordo com o Titan
Publishing Group Ltd.

Introdução © Marie O’Regan e Paul Kane, 2020; O castelo amaldiçoado © Jane Yolen, 2020; Vermelha
como sangue, branca como a neve © Christina Henry, 2020; A ponte do troll © Neil Gaiman, 1993.
Publicado originalmente em Snow White, Blood Red, editado por Ellen Datlow e Terri Windling.
Reimpresso mediante permissão do autor; Nessa idade © Catriona Ward, 2020; Escute © Jen Williams,
2020; Henry e a caixa de madeira © M.R. Carey, 2020; Pele © James Brogden, 2020; Faith & Fred ©
Maura McHugh, 2020; A maldição da fada sombria © Karen Joy Fowler, 1997. Publicado originalmente
em Black Raven, White Swan, editado por Ellen Datlow e Terri Windling. Reimpresso mediante
permissão da autora; Wendy, querida © Christopher Golden, 2014. Publicado originalmente em Out of
Tune, editado por Jonathan Maberry. Reimpresso mediante permissão do autor; Fadas lobisomens
versus vampiros zumbis © Charlie Jane Anders, 2011. Publicado originalmente em Flurb: A Webzine of
Astonishing Tales #11, editado por Eileen Gunn. Reimpresso mediante permissão do autor; Olhe aqui
dentro © Michael Marshall Smith, 2013. Publicado originalmente em Fearie Tales: Stories of the Grimm
and Gruesome, editado por Stephen Jones. Reimpresso mediante permissão do autor; Vermelhinha ©
Jane Yolen e Adam Stemple, 2009. Publicado originalmente em Firebirds Soaring — Uma Antologia de
Ficção Especulativa, editado por Sharyn November. Reimpresso mediante permissão dos autores; Vinho
novo © Angela Slatter, 2020; Haza e Ghani © Lilith Saintcrow, 2020; Odiado © Christopher Fowler,
1995. Publicado originalmente em Flesh Wounds. Reimpresso mediante permissão do autor; Os alegres
dançarinos © Alison Littlewood, 2020; De novo © Tim Lebbon, 2020; A garota que veio do inferno ©
Margo Lanagan, 2020; O castelo despertando © Jane Yolen, 2020.

Direitos de edição da obra em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela Trama, selo da EDITORA NOVA
FRONTEIRA PARTICIPAÇÕES S.A. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e
estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja
eletrônico, de fotocópia, gravação etc., sem a permissão do detentor do copirraite.

EDITORA NOVA FRONTEIRA PARTICIPAÇÕES S.A.


Rua Candelária, 60 — 7.º andar —
Centro — 20091-020
Rio de Janeiro — RJ — Brasil
Tel.: (21) 3882-8200

Imagem de capa: Sketched Images | Shutterstock


Imagem das guardas: Joe Prachatree | Shutterstock

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO


NA PUBLICAÇÃO (CIP)

O66m
O’Reagan, Marie
Maldição: uma antologia dos melhores contos de fadas sinistros /
Marie O’Reagan, Paul Kane ; traduzido por Ulisses Teixeira. – 2.ed. – Rio de Janeiro : Trama, 2021.
360 p.
 
Formato: e-book com 3,7 MB
 
Título original: Cursed – an anthology of dark fairy tales
ISBN: 978-65-89132-57-8
 
1. Literatura fantástica – antologia de contos. I. Kane, Paul. II. Teixeira, Ulisses. III. Título.
 
CDD: 808.8
CDU: 82-32

André Queiroz – CRB-4/2242


SUMÁRIO
Capa
Folha de rosto
Créditos
Introdução. Por Marie O’Regan e Paul Kane
O castelo amaldiçoado. Por Jane Yolen
Vermelha como sangue, branca como a neve. Por Christina
Henry
A ponte do troll. Por Neil Gaiman
Nessa idade. Por Catriona Ward
Escute. Por Jen Williams
Henry e a caixa de madeira. Por M.R. Carey
Pele. Por James Brogden
Faith e Fred. Por Maura McHugh
A maldição da fada sombria. Por Karen Joy Fowler
Wendy, querida. Por Christopher Golden
Fadas lobisomens versus vampiros zumbis. Por Charlie Jane
Anders
Olhe aqui dentro. Por Michael Marshall Smith
Vermelhinha. Por Jane Yolen e Adam Stemple
Vinho novo. Por Angela Slatter
Haza e Ghani. Por Lilith Saintcrow
Odiado. Christopher Fowler
Os alegres dançarinos. Por Alison Littlewood
De novo. Por Tim Lebbon
A garota que veio do inferno. Por Margo Lanagan
O castelo despertando. Por Jane Yolen
Sobre os autores
Sobre os organizadores
Agradecimentos
Colofão
INTRODUÇÃO
POR MARIE O’REGAN E PAUL
KANE

M
aldições.
É impossível não amá-las.
O elemento principal de qualquer conto de
fadas, o centro das histórias cheias de lições
de moral que todos nós ouvimos enquanto
crescíamos — narrativas que nos educavam, que
alimentavam a nossa crença de que os culpados deveriam
ser punidos, que, se tudo desse certo, nos mantinham no
caminho da virtude e da honestidade… Os exemplos
clássicos tiram sua inspiração do folclore ao redor do
mundo, e, nesta antologia, você encontrará histórias que
vêm dos contos da Noruega, da Dinamarca, da França e
muitos outros. Há também escritos no estilo de Perrault, de
Hans Christian Andersen e dos irmãos Grimm (cujas
histórias originais eram muito, muito mais sombrias do que
muita gente conhece). Veja a Bela Adormecida, por
exemplo, machucando o dedo e dormindo por toda a
eternidade. Ou a Chapeuzinho Vermelho, que, com certeza,
teve sua família amaldiçoada por aquele lobo — uma
maldição em si, se você acreditar em algumas visões sobre
o conto. A Branca de Neve também, amaldiçoada pela
bruxa que também era rainha e por uma maçã envenenada.
Porém, sem o mal, como poderíamos reconhecer o bem?
Nosso objetivo com este livro era simples. Usar a ideia de
ser amaldiçoado era o pontapé inicial, dando aos escritores
a chance de reescrever alguns clássicos — como Jane Yolen
e Adam Stemple fazem em “Vermelhinha”, Neil Gaiman faz
em “A ponte do troll”, Lilith Saintcrow em “Haza e Ghani” e
Christina Henri em “Vermelha como sangue, branca como a
neve” —, tornando-os seus e apresentando pontos de vista
bem diferentes em coisas familiares. Ao mesmo tempo, nós
queríamos incluir algumas histórias “amaldiçoadas” novas e
modernas — contos morais como os de Christopher Fowler
(“Odiado”), James Brogden (“Pele”), Catriona Ward (“Nessa
idade”) e Margo Lanagan (“A garota que veio do inferno”).
Nem todas essas histórias se encaixam no conto de fadas
tradicional, mas todas elas compartilham o mesmo coração
sombrio.
Os autores foram encorajados a pensar fora da caixa — ou
até mesmo dentro dela, literalmente, como você vai ver no
lúgubre conto cômico de M.R. Carey, “Henry e a caixa de
madeira”, e em “Olhe aqui dentro”, de Michael Marshall
Smith — enquanto bebiam de fontes como Peter Pan
(“Wendy, querida”, de Christopher Golden) ou a lenda do
Barba Azul (“Vinho novo”, de Angela Slatter). Isso sem
mencionar aqueles que criaram as suas mitologias
(“Escute”, de Jen Williams), que se inspiraram em contos de
fadas ou fizeram uma mistura deles (“Os alegres
dançarinos”, de Alison Littlewood), bolaram maldições com
as próprias regras (“De novo”, de Tim Lebbon, e “Faith &
Fred”, de Maura McHugh) ou até trouxeram o horror como
núcleo da história (o tumultuoso “Fadas lobisomens versus
vampiros zumbis”, de Charlie Jane Anders).
Quando terminar de ler estas histórias incríveis destes
autores maravilhosos, todos em sua melhor forma, vai
perceber que maldições vêm de todos os formatos e
tamanhos e que ficam escondidas nos lugares mais
inesperados — como se você precisasse de mais motivos
para se comportar.
Ora, elas podem vir até mesmo na forma de uma
coletânea… Não dá para saber.
Maldições.
É impossível não amá-las.

MARIE O’REGAN E PAUL KANE


Derbyshire, julho de 2019.
O CASTELO AMALDIÇOADO
JANE YOLEN
A maldição se arrastou silenciosa como uma serpente
Pelas raízes do espinheiro.
Flores nas paredes murcharam, embora o jardim
Continuasse o mesmo, como se pintado no chão.
 
Um gavião, em um mergulho profundo, cai
De bico no barro,
A cobra do fosso flutua.
Cavalos param entre um relincho e outro.

Três guardas, ainda de serviço, não recebem o soldo


Por cem anos, mas ainda mantêm
A maior parte do castelo a salvo.
Não o quarto na torre onde a princesa dorme, porém.

Ela foi pega entre suspiros,


Lábios apertados, como se pedissem um beijo
Ou experimentassem o azedume da idade,
Ou como se tivessem se arrependido de tudo, menos da
[ agulha em sua mão.
VERMELHA COMO SANGUE,
BRANCA COMO A NEVE
CHRISTINA HENRY

S
eria meu maior prazer, mais do que qualquer
coisa no mundo, ver esta aliança em seu dedo,
pois significaria que você concordou em ser
minha esposa — disse ele, ajoelhando-se na
frente dela.
Murmúrios percorreram o cômodo — uma série de
aprovações da parte da corte — pois o que mais a princesa
deles poderia desejar além de um príncipe? Ele era rico e
belo e vinha de uma terra boa, ou ao menos era o que
diziam, já que seu reino era tão distante que ninguém ali já
o tinha visto.
Suas maneiras eram tão atraentes que ele foi
imediatamente apelidado de “Príncipe Encantado”, embora,
é claro, nenhuma pessoa demonstraria tamanho
desrespeito ao chamá-lo assim ao alcance de seus ouvidos.
Neve não o considerava encantador. Quando ela olhou em
seus olhos muito, muito sombrios, não viu o charme
delicioso efervescente, mas o tremeluzir de uma língua
entre dentes afiados.
Ele segurava a aliança diante dela, seu sorriso branco,
fácil e esperançoso. Encantado escolhera bem o seu
momento. Ela dificilmente poderia recusá-lo diante de toda
a corte, por mais que quisesse jogar o anel na cara dele e
fugir.
Neve observou o Rei e a Rainha de soslaio. A boca de sua
madrasta era uma linha reta, os cantos dos olhos apertados
de medo. O pai de Neve assentia e sorria feito um velho
caduco, como se estivesse enfeitiçado — o que ele estava.
O Príncipe esperou, pois tinha todo o tempo do mundo, e
sabia qual seria a resposta dela. Ela viu tudo isso em seu
rosto, na curva sem preocupações de seus lábios, em seus
olhos onde a serpente se enrolava.
— É claro que aceito — respondeu ela, e ficou feliz por sua
voz ter saído clara e cristalina; assim, ninguém na corte
ouviria o horror que fervia dentro dela.
Ela desejou que tivesse a coragem para correr, mas uma
princesa é criada para ser educada acima de todas as
outras coisas, e, se o recusasse ali, haveria Consequências
— e Consequências sempre significavam guerra, sobretudo
quando o orgulho ferido de um homem estivesse envolvido.
Neve amava sua nação e seu povo. Não queria que eles
sofressem. Então, precisava aceitar a aliança, mesmo
sabendo que era uma armadilha.
Neve viu, como se a distância, sua mão se movendo
devagar na direção de Encantado, viu o leve tremor de seu
sangue em sua pele branca, viu o triunfo correr pelo seu
belo rosto conforme ele pegou os dedos dela.
O corpo de Neve se retraiu quando ele a tocou. Aquilo
pareceu deixá-lo ainda mais satisfeito. Suas mãos a
apertaram o suficiente para deixar marcas roxas, e ela
pensou que talvez ele a estivesse testando para ver o
quanto ela aguentaria antes de gritar.
Não vou gritar, pensou ela, cerrando os dentes. Não vou
dar esse prazer a ele.
No momento em que a aliança deslizou pela articulação e
encontrou seu lugar, ela se estabeleceu cruelmente e, com
pequenos dentes afiados, se uniu à pele. O rubi mudou sua
aparência, agora semelhante a um olho sangrento a
observá-la.
Ele cruzou seu braço com o dela, querendo dar a
impressão da união de um amante para todo o mundo,
conforme se viraram para encarar a corte. Apenas Neve
sabia que ele a prendia ali, suas asas de borboleta batiam
inutilmente sob o alfinete dele.
Ele a manteve por perto durante muitas horas, e ela
sentiu seu sorriso ficar forçado, mas não falhar. Neve não
mostraria fraqueza, embora soubesse que ele sentia sua
aversão e parecia se deleitar em segredo com ela.
No momento em que teve a oportunidade, ela se livrou de
seu braço.
— Está abafado demais aqui, meu Príncipe — disse ela. —
Preciso sair para tomar ar puro.
— É claro, minha princesa — respondeu ele. — Mas volte
logo para mim, pois vejo que não conseguirei tolerar um
único segundo sem você.
Diversas das jovens damas (e até mesmo algumas das
mais velhas, que deveriam entender melhor a situação)
fizeram um som de contentamento, murmurando sobre
como sua princesa tinha sorte de receber o amor de um
príncipe tão devoto.
Devoto, pensou Neve amargamente enquanto ia para o
jardim e tentava não pensar naquilo como uma fuga. Ela só
precisava de um momento para respirar, um momento
afastada do miasma ao redor dele.
Neve foi bem fundo na mata, onde ninguém poderia
encontrá-la por acidente. Parou perto de sua lagoa favorita,
coberta por vitórias-régias verdes com sapos gordos
empoleirados nelas. Libélulas iridescentes iam de um lado
para outro, pousando aqui e ali, e salgueiros-chorões se
esticavam sobre a água com suas folhas compridas.
Neve se aninhou nas sombras secretas debaixo das
árvores, girando a aliança em seu dedo, embora soubesse
que era inútil. O metal parecia prata, mas não se
comportava como nenhuma prata comum que ela
conhecesse.
Conforme ela girava, a aliança apertava sua mordida,
seus dentes entrando mais profundamente na carne dela,
até o sangue sair e Neve gritar.
— Não é assim que você vai conseguir tirá-la, mas acho
que já sabe disso.
— Mãe! — falou Neve.
Ela correu até a madrasta, que estava parada, chorando,
na ponta da lagoa, as mãos envolvendo uma à outra de
tristeza.
A Rainha segurou Neve em seus braços e as duas
choraram juntas, pois amava a garota como se fosse sua
filha, e ela era a única mãe que Neve conhecera.
Após a tempestade de pranto passar, ambas foram para
debaixo da árvore e se sentaram em silêncio. A Rainha
colocou um dedo nos lábios, demonstrando que Neve não
devia fazer perguntas. Com a outra mão, fez um gesto para
que Neve colocasse a mão presa à terrível aliança na água.
Neve ponderou sobre aquilo, mas obedeceu, porque sua
madrasta sabia de muitas coisas que ela não sabia. A
Rainha tinha nascido em uma terra mágica — e um pouco
da magia ainda residia nela — e, às vezes, conseguia fazer
pequenos milagres.
No instante em que Neve colocou a mão na lagoa, sentiu
algo mudar e se acalmar. Teve a estranha sensação de que
o olho dentro do rubi tinha ficado cego.
A Rainha leu a expressão no rosto de Neve, pois seus
corações eram próximos mesmo que não tivessem o mesmo
sangue, e assentiu.
— De vez em quando, a água pode subjugar a magia,
ainda que seja apenas um adiamento temporário. Assim
que você tirá-lo da lagoa, o olho do rubi vai se abrir de
novo.
— Então, ele está me espionando — disse Neve. — Eu
pensei que estivesse, mas quase me esqueci depois de ele
me morder.
A Rainha assentiu.
— O Príncipe tem poderes que nem mesmo eu vi. Ele
jogou seu feitiço sobre seu pai de forma tão rápida e
completa que não tive a chance de impedi-lo ou, pelo
menos, enfraquecê-lo. No entanto, sei que se seu pai
estivesse desperto e no controle de si mesmo, nunca teria
consentido com este casamento.
— Mas ele não está desperto nem está no controle de si
mesmo. E meus três irmãos estão todos longe, resolvendo
problemas do reino. Não há ninguém para me defender
desse lobo entre nós.
— Teremos que fazer o possível, ainda que não possamos
ameaçá-lo com a espada — falou a Rainha com tristeza. —
Não vou permitir que você seja machucada. E ele quer
machucá-la. Não se engane quanto a isso.
Neve concordou.
— Eu posso sentir. Embora não entenda por quê, ou por
que ele veio até aqui por mim, na verdade. Ou até por que
seus encantos não parecem ter efeito sobre mim ou você.
— Ele veio por você pela mesma razão de não poder
afetá-la — explicou a Rainha, acariciando o cabelo de Neve.
— Sua mãe também tinha um pouco de magia nela, só uma
gota, e essa gota passou para você, a última filha dela. Não
é o suficiente para que possa lançar feitiços, mas basta para
você se defender dele. Basta para manter a rede que ele
joga em todos os outros longe de nossos olhos.
Neve ficou surpresa ao ouvir sobre a magia em sua mãe,
embora não tão surpresa quanto deveria ter ficado. Eu já
devia saber, em algum lugar lá no fundo. Devo ter sentido.
Mas não importa agora. A única coisa que importa é que o
Príncipe me quer por causa disso.
— Por que o Príncipe está interessado em meu poder, se
ele é tão pequeno? Sem dúvida um homem com o poder
mágico dele ia querer uma feiticeira de verdade como
esposa, alguém que pudesse passar este dom para os
descendentes.
A Rainha bateu os dedos no joelho, como se contemplasse
se deveria contar a Neve o que estava passando por sua
cabeça.
— O que quer que a esteja incomodando, deve me contar
— disse Neve. — Posso não ter me casado ainda, mas já
estou completa e verdadeiramente jurada a ele agora.
A Rainha suspirou.
— É apenas um rumor, nada mais. Quando eu vivia em
minha própria terra, ouvi histórias sobre o pai do Príncipe.
Diziam que ele teve muitas esposas e que cada uma delas
desapareceu e nunca mais foi encontrada. Mas não pode ser
verdade, pois se princesas de tantas nações tivessem
desaparecido, teria havido um alvoroço. Os pais delas
teriam marchado reino adentro, exigindo saber o destino de
suas filhas. Então, essa parte não pode ser verdade, não de
fato.
“Não de fato” significa que pode ser verdade. Pode
mesmo.
— E qual é a outra parte da história? — perguntou Neve.
— Quando Encantado chegou, mandei em segredo um
mensageiro para a terra do Príncipe. Visto que ele era tão
desconhecido para nós, pensei que seria melhor. O
mensageiro retornou apenas na noite passada, embora
tenha cavalgado na ida e na volta com todo o empenho que
conseguiu juntar. Ele me contou que Encantado já foi
casado e que sua primeira esposa morreu. O Príncipe, é
claro, se esqueceu de nos contar isso.
— O mensageiro disse como a esposa morreu?
— No parto — respondeu a Rainha.
— Mas você não acredita nisso — disse Neve.
— Não há criança alguma na casa do Príncipe, embora
suponho que ela possa ter sido natimorta. E ninguém viu
sua esposa após ela ter entrado no castelo. Nem mesmo
uma vez.
Neve sentiu um arrepio na espinha.
— Não posso deixar ele me levar.
— Não acho que tenhamos nenhuma escolha sobre isso
agora. Ele vai casar com você e você irá com ele, porque
não pode se recusar sem causar uma guerra — disse a
Rainha.
— Eu me pergunto se é isso que ele realmente quer —
falou Neve, pensativa. — De fato, ele trouxe um exército
grande demais para um príncipe que diz ter vindo para
cortejar uma esposa.
— Meu mensageiro contou que o país de Encantado não é
bom, nem perto disso, então talvez você tenha razão. Pode
ser que tenhamos mais recursos do que ele. Mas não acho
que a intenção dele era sair daqui sem você. De qualquer
forma, não importa se ele a ganhasse de maneira justa ou
não. É a maneira que ele olha para você.
— Sim — respondeu Neve, e tremeu. — Você percebeu o
jeito que ele olha para mim.
— Mas vou tentar fazer o que puder. Em primeiro lugar,
temos que remover esse espião do seu dedo. Ele já engoliu
um pouco de seu sangue, então o feitiço já está bem fixado,
mas pode ser que possamos envenená-lo para que ele a
solte.
A Rainha deu tapinhas no joelho de Neve e falou:
— Espere aqui.
Ela caminhou para o jardim e voltou com uma maçã, uma
bela maçã redonda e vermelha, irresistível. De uma prega
no vestido, a madrasta de Neve pegou diversos frascos
pequenos.
— Você pensou que teria que me livrar de um feitiço esta
tarde? — perguntou Neve, surpresa pela Rainha ter todos
aqueles itens à mão.
— Eu esperava envenenar o Príncipe, mas não tive a
chance. Ele é bastante cuidadoso com sua comida, veja
bem.
— Sim — disse Neve. — O menino que está sempre ao
lado dele prova tudo.
— Para início de conversa, confesso que não era um bom
plano, mas, sim, um plano desesperado. Se ele de repente
caísse envenenado em nosso castelo, então suas tropas,
agrupadas do outro lado de nossos portões, com certeza
atacariam.
— Então, em vez disso, vai me envenenar? — indagou
Neve, observando a madrasta gotejar vários líquidos na
maçã.
A rainha murmurou algumas palavras conforme fazia
aquilo, palavras que Neve não entendia com a mente, mas
com o coração; palavras que soavam como o calor do sol,
como uma tempestade de areia e como a escuridão fria das
sombras sob uma lua perolada. Eram as palavras da terra
natal da Rainha, aquele lugar mágico que ela deixara para
trás, pois se apaixonara por um Rei que vivia em um lugar
verde distante.
— Estou temperando o feitiço para que ele não a
envenene a ponto de deixá-la doente. Apenas o suficiente
para deixar a aliança enjoada do seu sangue. Mas você
deve comer só um pedaço da maçã por dia e tomar cuidado
para que a aliança não veja você fazendo isso, pois tudo
que a aliança vê, o Príncipe também vê. — A Rainha
entregou a fruta para Neve.
Ela deu uma única mordida antes de escondê-la nas saias.
O sabor era estranho para sua língua, apimentado em vez
de doce, e deixou um rastro de fogo em sua garganta.
— Não sei mais o que posso fazer — disse a Rainha —,
exceto que, no instante em que seus irmãos voltarem, vou
mandá-los atrás de você. O Príncipe não pode negar a
entrada da família de sua esposa em seu castelo nem
machucá-la enquanto eles estiverem por perto.
Neve não disse em voz alta o que estava pensando, pois
via o mesmo medo no rosto de sua madrasta.
E se eu não sobreviver por tempo suficiente para meus
irmãos me encontrarem?
— Assim que sua mão estiver livre da aliança, você pode
se esconder dele — falou a Rainha. — Até lá, qualquer
esforço que fizer será inútil, pois ele pode segui-la e
encontrá-la tão facilmente quanto um falcão. Então, fique
de boca fechada, esconda seus sentimentos e finja ser uma
boa e amorosa esposa até esse dia.
— E depois?
— E depois, filha — disse a Rainha —, você deve correr.

O casamento aconteceu três dias depois, no meio da corte,


com o sol brilhando através das janelas altas e pétalas
espalhadas pelo chão de pedra. Todos sorriram e
celebraram quando o Príncipe beijou a princesa dele, e Neve
se manteve calma e não se afastou dele, embora tivesse
vontade.
Quando o Príncipe levou sua cabeça para trás, Neve viu
confusão ali, como se ele estivesse esperando outra coisa.
— O que foi, meu Príncipe? — perguntou ela em voz baixa
enquanto serpentinas e rosas eram jogadas na direção
deles.
— É que sua boca é como o vinho doce com um toque de
pimenta — respondeu ele. — Eu estava esperando o doce,
mas não a pimenta.
Ela sabia que ele tinha provado da maçã envenenada e
ficou com medo de que ele pudesse descobrir seu segredo,
então falou (de uma maneira quase galanteadora que era
tão incomum para ela):
— Acho que todas as coisas doces ficam melhores com
um pouco de pimenta, não acha?
Ele encarou profundamente os olhos dela, e Neve sentiu
uma sensação de picada desconfortável em todo o corpo,
como se ele estivesse tentando olhar o coração dela. Mas
ela levantou uma parede de espinhos em volta do coração e
manteve seus segredos lá. Por fim, ele desviou o olhar, uma
curva de insatisfação nos lábios.
Eles partiram logo depois do casamento, pois agora os
negócios do Príncipe estavam concluídos e ele queria voltar
para o próprio reino. Ele disse que tinha ficado tempo
demais longe e que precisava garantir a segurança de suas
fronteiras, mas Neve sabia que era porque o quanto antes
ele a prendesse em segredo, mais rápido ele completaria os
planos que tinha em relação a ela.
Mas tenho muitos dias de viagem, pensou ela conforme
subia na carruagem. Ainda tenho tempo.
O Príncipe insistira — de uma maneira tão suave quanto
intransigente — que Neve não precisaria de uma
empregada para viajar com ela.
— Tenho muitas servas em meu palácio, e não há
necessidade de uma das suas fazer uma jornada tão longa.
A Rainha tentou argumentar, falar como aquilo era
impróprio, mas o Rei apenas fez um gesto vago com a mão.
— Neve estará acompanhada do marido. Não há nada
impróprio — disse ele, e é claro que a palavra do Rei era a
final.
Ah, pai, pensou Neve desesperada. O que vai pensar
quando despertar deste sono encantado? Vai ficar
horrorizado com o que deixou acontecer?
Então Neve se sentou sozinha na carruagem com as
cortinas fechadas enquanto seu marido cavalgava com seus
homens. Todo dia, em segredo, ela comia um pedaço da
maçã que a Rainha lhe dera, e, todo dia, a aliança parecia
ficar menos apertada, embora o olhar do rubi nunca se
apagasse.
Tentou não se preocupar com o futuro ou mesmo se teria
um.
Tentou não se preocupar com o que aconteceria quando
ele exigisse seus direitos matrimoniais.
Até então, seu novo marido era sempre educado e solícito
sobre o conforto dela. Toda noite, quando levantavam
acampamento, ele se assegurava que Neve estava
confortável na grande tenda enquanto ele ia dormir do lado
de fora. Mas ela via o brilho nos seus olhos, aquele que dizia
que ele esperava algum prazer futuro, e o brilho a fazia
tremer e se afastar.
Enfim eles chegaram ao país do Príncipe. Neve observou
pela janela da carruagem e viu apenas cinza — pedras cinza
e cascas de árvores cinza e pesadas nuvens cinza que se
acumulavam sobre a terra. Quase não havia plantações e
aquelas que ela viu eram franzinas e de aparência doente,
assim como as pessoas que cuidavam delas.
Como essas pessoas sobrevivem?, imaginou ela, e então
pensou que aquele deveria ser um reino muito infeliz se o
seu regente negligenciava seu povo daquela maneira.
O castelo do Príncipe ficava empoleirado em uma
montanha alta com uma estrada íngreme que subia na sua
direção. Em torno da base do castelo havia uma enorme
quantidade de pedregulhos que tornavam impossível
alcançá-lo de outra maneira que não a estrada.
Uma forma de entrar e uma forma de sair, pensou Neve,
observando as pedras. A não ser que a pessoa seja muito
corajosa ou muito tola.
Quando os portões do castelo se fecharam atrás da
carruagem, ela pensou: Eu devo ser tola. Talvez precise ser.
O Príncipe ofereceu a mão para que Neve pudesse descer
do veículo. Quando ela colocou sua mão na dele, a aliança
de rubi mudou em seu dedo. Foi sutil, quase imperceptível,
mas o Príncipe lançou a ela um olhar afiado.
Alguns dos dentes retrocederam, pensou ela, e então
sorriu para ele com seu melhor sorriso de princesa e disse:
— Onde está a castelã?
O Príncipe apertou os olhos e respondeu:
— Minha casa é muito diferente. Você vai ver quando
estiver lá dentro.
Neve estava um pouco enjoada por causa da ansiedade. O
Príncipe tinha percebido o movimento da aliança ou ela
pensou ter imaginado aquilo? Ele suspeitava dela? Ela tinha
esperança de que a aliança estivesse solta antes de
chegarem ao castelo. Pensara em escapar durante a noite
na floresta do país do Príncipe. Mas não havia florestas ali,
nenhuma forma fácil de escapar, e, embora a aliança não
estivesse tão justa quanto antes, ela ainda não sairia de seu
dedo.
Tenho que esperar. Preciso ter paciência até ele não poder
me seguir, não poder me encontrar.
Não havia homem algum na porta do castelo para recebê-
los, nem a castelã. Não havia serviçal lá dentro para tirar a
capa de Neve ou levá-la para um cômodo em que um banho
estivesse esperando por ela. Havia apenas o eco ressonante
da porta batendo atrás dela.
Neve observou o local vazio, a tapeçaria puída, a palha
podre que cobria o chão de pedra.
O rosto do Príncipe não era mais encantado. Não havia
necessidade de usar a máscara agora que ele estava longe
de todos.
— Onde estão todos os serviçais? — perguntou Neve. Sua
voz retornou a ela, uma coisa oca naquele aposento
deprimente.
— Tudo que você quiser, o castelo vai providenciar —
disse ele. — Basta pedir.
Mais feitiços, considerou Neve em desespero. Nenhuma
criada enxerida ou rapazes para se perguntar por que a
senhora da casa está gritando.
Ela desejava girar a aliança, ver se conseguia enfim se
livrar dela, mas, em vez disso, fechou a mão em punho
debaixo das mangas de seu vestido. Ela não chamaria
atenção para a única coisa que queria que o Príncipe
ignorasse.
A maçã estava escondida em sua saia. Agora, não havia
mais muito dela, o núcleo com as sementes aparente por
todos os lados menos um. Neve só podia torcer para que
tivesse veneno suficiente para libertá-la.
— Quando vou conhecer seu pai? — indagou ela, pois é
claro que ele ainda era príncipe porque seu pai era rei.
— Meu pai não tem se sentido bem ultimamente —
respondeu o Príncipe. — Quando ele estiver melhor, vou
levá-la até ele.
Aquilo era uma mentira clara, mas Neve não falou nada.
Ela precisava ficar quieta e não demonstrar resistência pelo
tempo que fosse preciso. Ela não poderia deixá-lo suspeitar
que estava planejando escapar.
Embora eu não faça ideia de para onde ir e como chegar
lá.
Mas poderia deixar aquilo para depois. Por ora, precisava
escapar do seu olhar. Nada era possível até esse momento.
— Você pode ir a qualquer lugar do castelo, menos à ala
leste — avisou o Príncipe, acenando na direção de uma
escada fina e curvada à esquerda. — O castelo é muito
velho e não é seguro lá. Seu quarto fica nessa direção.
Ele indicou que ela o seguisse por uma escada mais larga.
Assim ela o fez, seu coração batendo forte, imaginando o
que ele faria agora.
Contudo, ele apenas a levou até uma porta de madeira
com um enorme rubi vermelho, um rubi semelhante a um
olho sangrento. Era o gêmeo da joia na aliança de Neve, e
seu ânimo diminuiu ainda mais quando ela entrou no quarto
e percebeu que a joia era visível de ambos os lados.
Olhos em toda parte, pensou. O que posso fazer?
— Você pode se lavar, trocar de roupa e descer para
jantar — falou ele. Seus lábios estavam curvados, formando
aquele terrível sorriso satisfeito de novo, como se tivesse
notado o olhar dela para o rubi.
Ele sabe que eu sei, e isso o diverte. Isso o diverte porque
ele tem certeza de que não há nada que eu possa fazer em
relação a isso. Sou apenas um rato em um labirinto para
ele. Não impem relação a caminho que eu faça, ele sabe
que não poderei escapar.
— Obrigada — disse ela, de maneira muito formal, e não
demonstrou nenhum sinal da surpresa que sentiu ao ver
que havia uma banheira enorme cheia d’água no canto do
quarto, o vapor subindo gentilmente de sua superfície.
Além da banheira, havia uma cama com dossel com um
cobertor gasto de cor vermelha sobre ela. Um vestido
branco estava esticado sobre ele, para que Neve o usasse
depois do banho.
Enquanto passava o vestido pela cabeça, ela pensou em
como poderia amarrar os laços nas costas sem uma
serviçal. Então, ela gritou de choque e horror, pois os laços
apertavam sem a ajuda de mão alguma, e a faixa estava
amarrada na parte de trás de sua cintura. Um pente grande
correu por seu cabelo úmido, que então foi feito em tranças
e alfinetado em sua coroa.
Durante tudo isso, Neve não emitiu som algum exceto seu
grito inicial, embora estivesse abalada e chocada por
dentro. Ela não demonstraria fraqueza para o Príncipe, que
decerto estava assistindo àquilo e esperando que ela
entrasse em pânico.
Pois não acontecerá. Sou uma princesa.
Com cuidado, Neve colocou seu outro vestido na cama e
escondeu a maçã com seu último pedaço na roupa nova, o
corpo bloqueando a visão do olhar da joia na porta.
Ela pensou que a porta se abriria sem que fosse
necessário tocá-la, mas percebeu que precisava abri-la de
maneira manual. Também notou que havia uma chave
pequena e antiga na fechadura. Ela a pegou e a manteve
perto da maçã envenenada, embora soubesse muito bem
que o Príncipe teria uma chave dele.
O Príncipe se sentou de frente para ela, do outro lado da
mesa, no jantar, falando coisas sem importância que ela
respondeu sem prestar atenção. Ela percebeu que o cabelo
dele estava molhado e presumiu que ele também tinha
tomado banho, embora não tivesse se incomodado em fazer
a barba. Havia um tufinho saindo de seu queixo, e as
sombras ficavam estranhas à luz das velas, dando a
aparência de azul na barba, em vez do preto de seus
cabelos.
Quando acabaram a refeição, Neve se perguntou o que
fariam depois. Na casa dela, haveria música, ou costura, ou
histórias para ouvir, ou até dança, de vez em quando. Ela
não desejava dançar com o marido ou pensava que a
música ecoaria agradavelmente naquele lugar. Qualquer
canção seria poluída pelo ar.
— Pode voltar ao seu quarto agora — disse ele. — Preciso
cuidar de algumas coisas.
— É claro — respondeu Neve, e subiu as escadas.
Seu coração estava à boca. Ele iria vê-la quando
terminasse os seus negócios, quaisquer que fossem. Não
havia exército para ouvi-lo agora, como havia na estrada.
Eu devo ficar no quarto tremendo como um coelhinho que
espera a raposa à porta entrar e me engolir quando quiser?
Ela entrou no quarto e fechou a porta. O olho vermelho
piscou para ela, e Neve sentiu uma onda de raiva repentina.
Por que estou sendo espionada como uma criminosa? Por
que ele deve ter essa satisfação? Pelo menos eu posso
esconder a aliança nas dobras da saia.
Neve puxou sua roupa de viagem da cama e arrancou a
faixa da cintura. Puxou diversos alfinetes do cabelo e
prendeu a faixa na porta, cobrindo o olho do rubi. Um
estranho zumbido saiu dele ao ser coberto, como se fosse
uma abelha furiosa tentando se libertar.
— Veja se gosta disso — falou Neve.
Então, ela tirou a chave do bolso. Não conseguia enganar
a si mesma dizendo que o Príncipe ficaria do lado de fora
após uma tentativa tão boba, mas trancou a porta mesmo
assim. Pelo menos teria alguns momentos para se preparar
enquanto ele a destrancava.
Uma linha de fumaça fazia curvas, vinda da fechadura.
Outro feitiço? Algo para me impedir de usar a chave?
Neve se dobrou para ver mais de perto. Não percebeu
nada óbvio, mas sentiu o cheiro de algo doce e apimentado
no ar.
A maçã, pensou. O veneno da maçã. Deve ter encostado
na chave.
Ela girou a maçaneta e puxou a porta, que não abriu.
Seria o suficiente para manter o Príncipe longe de sua
cama?
O baú de Neve tinha surgido no quarto enquanto ela
estava jantando lá embaixo. Ela pegou sua camisola.
Esperava que as mãos fantasmas aparecessem para
desatar os nós do vestido, já que foram elas que os
apertaram, mas não houve nada.
Será porque eu cobri o olho da porta? Era uma explicação
interessante, claro, uma que poderia significar
consequências à liberdade de Neve. Mas não a ajudava a
remover uma roupa que precisava da ajuda de uma pessoa
para vestir, de qualquer forma.
Depois de muitos minutos irritantes tentando se livrar do
vestido branco, Neve desistiu e se deitou com ele mesmo,
removendo apenas a faixa que mantinha a vestimenta bem
presa na sua cintura.
Ela pensou que estaria amedrontada demais para dormir,
mas deve ter cochilado, pois a próxima coisa que percebeu
foi escuridão e que havia alguém tentando abrir a porta.
Neve se sentou reta, com o coração palpitando. Ela
deslizou a aliança com o olho de rubi para debaixo das
cobertas, de forma que ele não soubesse que ela estava
acordada. A voz do Príncipe surgiu através do buraco da
fechadura, as palavras indistintas, mas o significado claro.
Ele está tentando abrir a porta com magia.
Ela escutou sua voz ficar mais alta de frustração, ouviu-o
xingar.
Mas a fechadura aguentou firme.
— Abra a porta, querida — pediu ele.
Jamais a palavra “querida” foi dita com menos afeição na
história do mundo.
Neve permaneceu quieta, tão quieta, mais quieta do que
o menor dos ratos pego pelo olhar de um gato.
— Branca de Neve — falou ele com a voz baixa e suave,
com a intenção de seduzir, enfeitiçar, encantar. — Abra a
porta para o seu marido.
Não vou abrir.
Sua mão fez a maçaneta tremer. Nesse momento, ela
sentiu sua fúria, sua frustração, sua fome, e sua fome era
uma coisa terrível, uma coisa que queria consumi-la. Era
como uma onda que se quebrava na porta, escorrendo
pelos nós da madeira, esmurrando Neve. Suas mãos
seguraram os lençóis pela sua vida e ela mordeu o lábio
inferior para não chorar.
— Branca de Neve! — disse ele, e não havia mais
fingimento. — Abra essa porta, eu ordeno! Você não tem o
direito de me recusar.
Neve se perguntou o quanto seria pior para ela depois,
pois, de alguma forma, sabia que estava apenas evitando o
inevitável. Mas não conseguia se obrigar a abrir a porta.
Não podia convidar o lobo para entrar.
Depois de um tempo, o barulho na maçaneta cessou. Ela
escutou sua gargalhada, longa e sombria.
— Sempre há um amanhã, minha querida — falou ele.
Neve não voltou a dormir naquela noite.
Na manhã seguinte, ela comeu o último pedaço da maçã.
Quase não havia sobrado magia alguma ali, pois não
queimou com o mesmo fogo quando ela o engoliu. Ela sabia
que um pouco do feitiço tinha passado para a chave.
Neve abriu as cortinas e escancarou a janela. O ar do lado
de fora era rarefeito e frio, mas a fraca luz do sol
atravessava as nuvens. Ela girou a aliança sob a luz do sol.
A prata tinha um veio preto fino nela que não estava lá no
início, e ela teve a impressão de que o olho parecia opaco,
mas poderia ser apenas seu desejo.
Ela respirou fundo e destrancou a porta do quarto. O
Príncipe não estava espreitando no corredor, esperando
para puni-la conforme ela havia esperado. Neve desceu a
escada com cautela e encontrou a mesa posta com o café
da manhã, mas não havia prato para o Príncipe e ele não
estava em lugar algum.
Havia um pequeno pedaço de pergaminho em cima de
seu prato, uma nota escrita com uma linda caligrafia:
Querida esposa, tenho outros deveres para resolver hoje,
mas com certeza a verei esta noite.
Neve jogou o papel longe. Para qualquer pessoa que
visse, a nota pareceria o compromisso de um amante, mas
ela reconhecia pelo que era de verdade: uma ameaça. E
uma promessa.
Neve se sentou à mesa e comeu, pois achava que
pensava melhor com a barriga cheia. Percebeu que estava
com mais fome do que pensara. Estava se esticando para
pegar outra torrada quando aconteceu.
A aliança de prata deslizou da sua mão esquerda e caiu
em um prato de manteiga.
O coração de Neve ficou mais leve, pois agora que tinha
se livrado da aliança, poderia escapar. Na verdade, poderia
escapar agora mesmo. O Príncipe não estava lá para
impedi-la, e, se algum dos soldados perguntasse, ela
poderia responder simplesmente que estava indo dar uma
caminhada. Ela era a princesa deles agora, e eles não
podiam controlá-la.
Ela se levantou com a ideia de vestir algo mais apropriado
— o vestido branco era como uma bandeira que chamaria a
atenção de todos os olhares nessa paisagem cinzenta (e
talvez tenha sido esse o objetivo dele quando deu isso a
você).
Foi aí que ouviu a mulher chorando.
Neve parou, pega de surpresa pelo som. Não, a mulher
não estava chorando. Ela estava meio soluçando, meio
gritando, e o barulho vinha da ala leste.
Neve hesitou, mas só por um segundo. O Príncipe disse
para ela não ir à ala leste, mas Neve não podia ignorar uma
pessoa que estivesse sofrendo.
Mas e se o Príncipe voltar e pegar você? E se você perder
a chance de escapar?
Aqueles eram pensamentos egoístas, e talvez tivessem
convencido Neve se o lamento da mulher não tivesse ficado
mais alto.
— Não posso — disse ela. — Não posso deixá-la, quem
quer que seja.
Neve subiu as escadas da ala leste.
Pelo menos, tudo que o Príncipe pode ver neste momento
é um prato de manteiga, pensou ela, limpando as mãos
suadas no vestido amassado e tentou não ficar com medo.
Após a escada, havia um longo corredor, e, no final do
corredor, apenas uma porta.
A voz da mulher estava desaparecendo, uma corrente
fraca que vinha do cômodo além.
Neve correu para a porta e puxou a maçaneta, mas a
porta não abriu.
Ela tirou a chave envenenada do bolso e colocou-a na
fechadura.
A porta se abriu.
No primeiro cômodo, havia caixotes em pedestais,
caixotes feitos de madeira preta brilhante cobertos de joias
de todas as cores. No canto do aposento, havia uma pesada
cortina vermelha que deveria levar ao outro quarto.
Barulhos horríveis vinham daquele quarto e Neve
titubeou, porque seu estômago, seus pulmões e sua
garganta estavam cheios de um terror tão profundo que ela
mal conseguia respirar. Ela passou pelos caixotes na ponta
dos pés até alcançar o último.
Este estava aberto, como se estivesse esperando por
algo. E estava coberto por joias vermelhas exatamente
iguais à de sua aliança.
Por mim, pensou ela com uma certeza repentina, e então
precisava saber o que tinha nos outros caixotes.
Ela tocou a tampa do caixote ao lado do vazio e o abriu.
Lá dentro havia um coração, vermelho, brilhante e
batendo.
Neve abriu o próximo caixote, as mãos tremendo, e
encontrou outro, tão fresco e impossível quanto o primeiro.
Ela viu todos os caixotes, dúzias deles, em todo o quarto, e
se lembrou do que a Rainha dissera sobre o pai do Príncipe
e as muitas esposas que haviam desaparecido.
E o próprio Príncipe tivera uma esposa antes de Neve, que
também tinha sumido.
Neve encarou a cortina vermelha e ouviu os barulhos
horríveis vindo do quarto contíguo. Ela não queria saber,
mas precisava.
Ela abriu a cortina.
O rosto de seu marido estava afundado em algo que um
dia pode ter sido uma mulher, embora tudo que tivesse
restado fosse carne. Ele levantou o rosto, se afastando da
sua refeição, e ela viu que o rosto dele estava coberto por
uma barba azul grossa que crescera durante a noite e que
seus olhos estavam tão vermelhos quanto o sangue que
corria em seu queixo.
Ele sorriu, e Neve pensou que era um absurdo chamar
aquilo de sorriso.
— Sua garota danadinha — disse o marido. — Eu mandei
ficar longe da ala leste.
Neve correu.
Ela ouviu sua gargalhada ecoando atrás dela conforme
atravessou às pressas o corredor, desceu as escadas e foi
para a porta, mas, não importa o quanto forçasse a
maçaneta, ela não cedia, e não havia buraco na fechadura
para a chave mágica.
— Para onde está indo, minha noivinha? — gritou Príncipe
Encantado de cima da escada da ala leste.
Neve correu para a escada oposta, sem saber o que
poderia fazer ou para onde ir, apenas precisava escapar,
ficar longe das mãos dele.
Conforme passou pela mesa, viu a aliança envenenada
afundada na manteiga. Sem saber exatamente por quê,
pegou a aliança (e um bocado de manteiga junto) e
continuou correndo, subindo a escada da ala oeste.
— Não há escapatória, Branca de Neve — gritou seu
marido. Ele parecia estar se divertindo, sem pressa e muito
perto dela.
— Nenhuma das minhas noivas jamais escapou, não
importou o quanto gritaram, choraram e correram — disse
ele. — Eu gosto quando elas correm. Continue correndo,
pombinha. Vai deixar tudo mais doce quando eu pegar você.
Neve disparou para o quarto, pensando que poderia
trancar a porta novamente, mas a magia havia se esgotado
e a tranca não mais se rebelaria contra seu mestre.
Ela se afastou quando a porta se escancarou, sua mente
repetindo a mesma frase sem parar: O que eu faço? O que
eu faço? A manteiga escapava dos seus dedos e seu
coração batia tanto que ela pensou que ele deixaria seu
corpo.
Ele vai deixar meu corpo. Ele vai cortá-lo, arrancá-lo do
meu corpo e colocá-lo em um caixote, um prêmio como
todos os outros.
Ele parecia gigantesco enquanto passava pela porta, com
o dobro do tamanho que tinha antes, e suas mãos estavam
vermelhas e pegajosas e indo na direção dela.
— Não há lugar para fugir, então seja uma boa menina e
me deixe fazer o que quero com você, Branca de Neve —
disse ele. — Eu vou fazer, de qualquer maneira.
Ela viu todos os terrores que sentia refletidos nos olhos
dele. A brisa da janela aberta atrás dela mexeu seu vestido
branco. Seus dedos se fecharam, prontos para arrancá-lo
dela.
Não, pensou Neve. Não vou. Nunca mais serei uma boa
menina.
Ele abriu a boca e se curvou em direção à dela — para
beijar? Para morder? Neve nunca soube — e ela meteu a
mão cheia de manteiga, com a aliança envenenada, em sua
boca, forçando tudo para dentro das mandíbulas dele.
Ele engasgou e, por reflexo, engoliu, e a manteiga fez o
anel deslizar pela sua garganta.
— O que você fez? — perguntou ele, arranhando o próprio
pescoço, arrancando longos pedaços sangrentos de carne.
Fumaça escapava de sua boca e do canto dos seus olhos, e
veias escuras apareciam no seu rosto. — O QUE VOCÊ FEZ,
BRANCA DE NEVE?
Ele a atacou e ela escapou das suas mãos, revelando a
janela aberta.
Neve o empurrou o mais forte que conseguiu.
Ele gritou enquanto caía, e ela ouviu o horror e a fúria que
ele sentia, e ficou feliz.
Depois de um tempo, ele parou de gritar, e ela pôde olhar
para fora. Lá embaixo, ela viu o corpo quebrado dele nos
pedregulhos que cercavam o castelo.
Havia uma nuvem de poeira distante, subindo da estrada.
Conforme Neve observava, três figuras surgiram,
cavalgando rápido — seus irmãos, vindo para levá-la para
casa.
A PONTE DO TROLL
NEIL GAIMAN

E
les tiraram a maior parte dos trilhos no início
dos anos 1960, quando eu tinha três ou quatro
anos. Eles depenaram o serviço ferroviário. Isso
significa que não havia lugar algum a ir a não
ser Londres, e a cidadezinha em que eu morava
se tornou o fim da linha.
Minha primeira memória confiável: dezoito meses de vida,
minha mãe no hospital tendo a minha irmã e minha avó
atravessando uma ponte comigo, me levantando para ver o
trem abaixo, soltando ar e fumaça como um dragão de ferro
preto.
Nos anos seguintes, eles perderiam o último dos trens a
vapor, e com eles se foi a rede ferroviária que conectava
vilarejo a vilarejo, cidade a cidade.
Eu não sabia que os trens estavam sumindo. Quando fiz
sete anos, já eram coisa do passado.
Nós morávamos em uma casa velha nos arredores da
cidade. Os terrenos em frente estavam vazios e não eram
usados para nada. Eu costumava pular a cerca e me deitar
na sombra de junco e ler; ou, se estivesse me sentindo mais
audaz, exploraria o entorno da mansão abandonada além
dos campos. Ela tinha um lago ornamental cheio de ervas
daninhas, com uma pequena ponte de madeira. Nunca
encontrei nenhum caseiro ou cuidador nas minhas incursões
através dos jardins e bosques, e jamais tentei entrar na
mansão. Isso seria flertar com um desastre e, além disso,
para mim todas as casas velhas são assombradas.
Não é que eu fosse crédulo, eu simplesmente acreditava
em tudo que fosse sombrio e perigoso. Era parte do meu
credo juvenil que a noite era cheia de fantasmas e bruxas,
famintas e voando e vestidas de preto dos pés à cabeça.
Para me tranquilizar, o contrário era verdadeiro: a luz do
dia era segura. A luz do dia era sempre segura.
Um ritual: no último dia de escola, antes das férias de
verão, voltando para casa, eu tiraria os meus sapatos e as
minhas meias e, carregando tudo na mão, caminharia pela
rua pedregosa sobre pés rosados e delicados. Durante as
férias de verão, eu só colocaria sapatos sob pressão. Eu me
rebelaria na minha liberdade de calçados até que o
semestre escolar recomeçasse em setembro.
Quando eu tinha sete anos, descobri a trilha que
atravessa a floresta. Era verão, quente e claro, e caminhei,
sem ter uma direção definida, para bem longe de casa
naquele dia.
Eu estava explorando. Passei pela mansão, suas janelas
cobertas por tábuas e as cortinas fechadas, pelo terreno e
fui além, por algumas árvores desconhecidas. Desci uma
ribanceira e me vi em um caminho escuro que era novo
para mim e cheio de árvores; a luz que atravessava as
folhas tinha um tom verde e dourado, e eu pensei estar na
terra das fadas.
Um riacho corria pela lateral da trilha, repleto de
camarõezinhos transparentes. Eu os peguei e os observei se
mexendo e girando nas pontas dos meus dedos. Depois,
coloquei-os de volta.
Segui além no caminho. Era perfeitamente reto e coberto
de grama baixa. De tempos em tempos, eu encontraria
algumas pedras incríveis: coisas cheias de bolhas e
derretidas, marrons, e roxas, e pretas. Se você as colocasse
contra a luz, poderia ver todas as cores do arco-íris. Eu
estava certo de que elas tinham que ser extremamente
valiosas e enchi meus bolsos com elas.
Andei e andei pelo silencioso corredor verde e dourado e
não vi ninguém.
Eu não estava com fome ou com sede. Apenas seguia
para onde o caminho levava. Ele continuava a ser uma linha
reta e era perfeitamente plano. O caminho nunca mudava,
mas o campo ao redor, sim. No início, eu estava
caminhando na parte de baixo de uma ravina, barrancos
íngremes e cobertos de mato subindo em cada lado. Depois,
o caminho ficava acima de tudo, e, conforme eu avançava,
podia ver a copa das árvores abaixo, e os telhados de casas
distantes que apareciam de vez em quando. Meu caminho
era sempre plano e reto, e segui nele por vales e planaltos,
vales e planaltos. E em algum momento, em um desses
vales, cheguei a uma ponte.
Ela era de tijolos vermelhos, um enorme arco curvo sobre
o caminho. Ao seu lado, havia degraus cortados na pedra e,
no topo da escada, um pequeno portão de madeira.
Fiquei surpreso ao ver qualquer sinal da existência
humana no meu caminho, que, agora eu estava convencido,
era uma formação natural, como um vulcão. E, mais por
curiosidade do que por qualquer outra coisa (eu tinha,
afinal, caminhado por milhares de quilômetros, ou assim
pensava, e poderia estar em qualquer lugar), subi os
degraus e atravessei o portão.
Eu estava em lugar nenhum.
O topo da ponte estava coberto de lama. Em cada lado,
havia um campo. O campo do meu lado era uma plantação
de trigo; o outro era só mato. Havia as pegadas endurecidas
de enormes tratores na lama seca. Eu caminhei pela ponte
para ter certeza: na ponta dos pés, sem fazer barulho.
Nada por quilômetros; apenas campos, e trigo, e árvores.
Peguei uma espiga de trigo e tirei dela os grãos doces,
descascando-os com os dedos, mastigando-os
meditativamente.
Percebi que estava ficando com fome e voltei para descer
os degraus e chegar na estrada de ferro abandonada. Era
hora de voltar para casa. Eu não estava perdido; tudo que
precisava fazer era seguir o meu caminho para casa de
novo.
Tinha um troll esperando por mim debaixo da ponte.
— Eu sou um troll — disse ele. Então fez uma pausa e
acrescentou, mais ou menos após um momento de
reconsideração: — Fol rol de ol rol.
Ele era gigantesco: sua cabeça raspava o topo do arco de
tijolos. Era mais ou menos translúcido: eu conseguia ver os
tijolos e as árvores atrás dele, apagados, mas não perdidos.
Ele era todos os meus pesadelos feitos em carne. Tinha
dentes robustos e vigorosos, e garras afiadas, e mãos fortes
e peludas. O cabelo dele era longo como o dos brinquedos
gonks da minha irmã, e seus olhos eram esbugalhados. Ele
estava nu, e seu pênis se dependurava do monte de pelos
iguais aos do brinquedo entre suas pernas.
— Eu ouvi você, Jack — sussurrou ele em uma voz como o
vento. — Ouvi você caminhando na ponta dos pés em cima
da minha ponte. E agora vou comer a sua vida.
Eu só tinha sete anos, mas ainda era dia, e não me lembro
de ter ficado com medo. É bom quando crianças se
deparam com elementos dos contos de fadas — elas estão
bem preparadas para lidar com eles.
— Não me coma — pedi ao troll. Eu estava usando uma
camisa listrada marrom e uma calça cotelê da mesma cor.
Meu cabelo também era amarronzado, e eu tinha perdido o
dente da frente. Estava aprendendo a assobiar entre os
dentes, mas ainda não tinha conseguido fazer isso muito
bem.
— Eu vou comer a sua vida, Jack — disse o troll.
Eu o encarei.
— Minha irmã mais velha vai chegar daqui a pouco —
menti —, e ela é muito mais saborosa do que eu. Coma ela
em vez de mim.
O troll cheirou o ar e sorriu.
— Você está completamente sozinho — disse ele. — Não
tem mais nada no caminho. Absolutamente nada. — Então,
ele se inclinou e passou seus dedos em mim: parecia que
borboletas acariciavam meu rosto, era como o toque de
uma pessoa cega. Então ele cheirou os próprios dedos e
balançou sua cabeça grande. — Você não tem uma irmã
mais velha. Só tem uma irmã mais nova e ela está na casa
de uma amiga hoje.
— Você percebe tudo isso pelo cheiro? — perguntei,
abismado.
— Os trolls podem sentir o cheiro dos arcos-íris, os trolls
podem sentir o cheiro das estrelas — murmurou a criatura,
triste. — Os trolls podem sentir o cheiro dos sonhos que
você sonhou antes de nascer. Chegue mais perto para eu
comer sua vida.
— Eu tenho pedras preciosas no bolso — falei para o troll.
— Fique com elas, não comigo. Olhe. — Mostrei para ele as
joias de lava que encontrara mais cedo.
— Clínquer — disse o troll. — O rejeito descartado de um
trem a vapor. Não tem valor para mim.
Ele escancarou a boca. Dentes afiados. Bafo com cheiro
de terra coberta de folhas secas e da parte de baixo das
coisas.
— Comer. Agora.
Ele começou a ficar cada vez mais sólido para mim, cada
vez mais real; e o mundo exterior se tornou inanimado,
começou a sumir.
— Espere. — Afundei meus pés na terra úmida embaixo
da ponte, remexi meus dedos, me segurei firme ao mundo
real. Fitei seus olhos imensos. — Você não quer comer a
minha vida. Ainda não. E-eu só tenho sete anos. Não vivi
nem um pouco. Tem livros que eu ainda não li. Nunca viajei
de avião. Não consigo nem assobiar, não de verdade. Por
que não me deixa ir? Quando eu for mais velho, maior e
uma refeição melhor, eu volto.
O troll me encarou com olhos que pareciam faróis.
Aí, ele assentiu.
— Quando você voltar, então — falou. E sorriu.
Dei as costas e caminhei pela trilha reta que já tinha dado
lugar para a estrada de ferro.
Depois de um tempo, comecei a correr.
Caminhei com passos fortes pela trilha, bufando e
ofegando, até sentir uma dor pontuda na parte de trás das
costelas, a dor de uma agulhada; e, com a mão na lateral
do meu corpo, fui tropeando até em casa.

Os campos começaram a desaparecer conforme fui


envelhecendo. Uma por uma, fileira por fileira, casas
surgiam em ruas com nomes de flores silvestres e escritores
respeitáveis. Nossa casa — uma casa vitoriana velha e
acabada — foi vendida e demolida; novas casas cobriam o
jardim.
Eles construíram casas em todo lugar.
Certa vez fiquei perdido na nova organização de casas
que cobria dois campos, dos quais eu conhecera cada
centímetro. No entanto, eu não me importava que os
campos estivessem sumindo. A velha mansão foi comprada
por uma multinacional e o terreno deu lugar a mais casas.
Demorou oito anos para eu voltar para a velha linha de
trem, e, quando isso aconteceu, eu não estava sozinho.
Eu tinha quinze anos; já havia mudado de escola duas
vezes naquela época. O nome dela era Louise e ela foi meu
primeiro amor.
Eu adorava seus olhos cinzentos, e seu belo cabelo
castanho-claro, e seu jeito desajeitado de andar (como um
fauno que tivesse acabado de aprender a caminhar, o que
parece bem idiota, e peço desculpas por isso): eu a vi
mascando chiclete quando tinha treze anos e fiquei caidinho
por ela, como um suicida por uma ponte.
O maior problema de estar apaixonado por Louise é que
nós éramos melhores amigos e nós dois estávamos saindo
com outras pessoas.
Eu nunca contei que a amava, ou mesmo que gostava
dela. Nós éramos amigos.
Eu tinha ido visitá-la naquela tarde: ficamos no quarto
dela ouvindo Rattus Norvegicus, o primeiro disco do
Stranglers. Era o início do punk, e tudo parecia tão
estimulante: as possibilidades, fossem na música ou em
qualquer outra coisa, eram infinitas. Então chegou a hora de
eu ir para casa e ela decidiu me acompanhar. Fomos de
mãos dadas, inocentemente, apenas amigos, e seguimos
devagar pela caminhada de dez minutos até a minha casa.
A lua brilhava, o mundo estava visível e sem cor, e a noite
estava quente.
Chegamos na minha casa. Vi as luzes lá dentro, parado na
entrada da garagem, falando sobre a banda que eu estava
começando. Não entramos.
Então, foi decidido que eu acompanharia ela para casa,
caminhamos de volta para a casa dela.
Ela me contou sobre as batalhas que estava tendo com a
irmã mais nova, que roubava sua maquiagem e seu
perfume. Louise suspeitava que a irmã estava transando
com meninos. Louise era virgem. Nós dois éramos.
Ficamos na rua, na frente da casa dela, sob a luz
amarelada da lâmpada de vapor de sódio do poste, e
olhamos para os lábios escurecidos e rostos pálidos um do
outro.
Nós trocamos sorrisos.
E então apenas andamos, escolhendo ruas calmas e
caminhos desertos. Em um dos novos terrenos de casas, um
caminho levava para a mata, e seguimos nele.
O caminho era reto e escuro, mas as luzes das casas ao
longe brilhavam como estrelas no chão e a lua nos
proporcionava iluminação o suficiente para ver. Uma vez
ficamos assustados, quando alguma coisa farejou e bufou
na nossa frente. Chegamos mais perto, vimos que era um
texugo, rimos, nos abraçamos e continuamos em frente.
Falamos coisas sem sentido e importância sobre os nossos
sonhos, as nossas vontades e os nossos pensamentos.
E, durante todo o tempo, eu queria beijá-la e sentir seus
seios, e talvez colocar minha mão entre suas pernas.
Enfim tive a chance. Havia uma velha ponte de tijolos que
atravessava o caminho, e nós paramos embaixo dela.
Pressionei meu corpo sobre o dela. Sua boca se abriu na
minha.
Então ela ficou gelada e rígida, e parou de se mexer.
— Olá — disse o troll.
Larguei Louise. Estava escuro embaixo da ponte, mas a
silhueta do troll preenchia a escuridão.
— Eu congelei ela — falou o troll — para que pudéssemos
conversar. Agora: eu vou comer sua vida.
Meu coração martelava e eu conseguia sentir meu corpo
tremendo.
— Não.
— Você disse que voltaria. E voltou. Aprendeu a assobiar?
— Sim.
— Que bom. Eu nunca consegui assobiar. — Ele farejou e
assentiu. — Estou satisfeito. Você cresceu em vida e
experiência. Mais para comer. Mais para mim.
Agarrei Louise, um zumbi retesado, e a empurrei adiante.
— Não me coma. Eu não quero morrer. Pegue ela. Aposto
que ela é muito mais saborosa do que eu. E é dois meses
mais velha. Por que não fica com ela?
O troll ficou em silêncio.
Ele cheirou Louise dos pés à cabeça, fungando nos pés, e
na virilha, e nos seios, e no cabelo.
Então olhou para mim.
— Ela é inocente — falou. — Você não. Eu não quero ela.
Quero você.
Caminhei até o início da ponte e olhei para cima, para as
estrelas na noite.
— Mas tem tanta coisa que eu não fiz ainda — falei, em
parte para mim mesmo. — Quer dizer, eu nunca. Bem, eu
nunca fiz sexo. E nunca fui para os Estados Unidos. E não…
— Parei por um instante. — Eu não fiz nada. Ainda não.
O troll não disse nada.
— Eu vou voltar. Quando for mais velho.
O troll não disse nada.
— Eu vou voltar. Sério, vou mesmo.
— Voltar? — perguntou Louise. — Por quê? Para onde está
indo?
Dei um giro. O troll tinha desaparecido e a garota que eu
pensei amar estava de pé nas sombras embaixo da ponte.
— Vamos voltar para casa — falei para ela. — Anda.
Caminhamos de volta e nunca falamos nada.
Ela saiu com o baterista da banda punk que eu comecei e,
bem mais tarde, se casou com outra pessoa. Nós nos
encontramos uma vez, em um trem, após ela ter se casado,
e ela me perguntou se eu me lembrava daquela noite.
Eu respondi que sim.
— Naquela noite… eu gostava mesmo de você, Jack —
falou ela. — Pensei que fosse me beijar. Pensei que fosse me
convidar para sair. Eu teria dito sim. Se tivesse convidado.
— Mas não convidei.
— Não — disse ela. — Não convidou. — O cabelo dela
estava com um corte curto demais. Não combinava com ela.
Nunca mais a vi. A mulher podada com um sorriso tenso
não era a garota que eu tinha amado, e conversar com ela
foi desconfortável.

Eu me mudei para Londres e então, alguns anos depois,


voltei para a minha cidade, mas a cidade para a qual voltei
não era a mesma de que eu me lembrava: não havia
campos, fazendas ou ruelas; e me mudei assim que foi
possível para um vilarejo a pouco mais de quinze
quilômetros descendo a estrada.
Eu me mudei com a minha família — àquela altura, já
estava casado e tínhamos um bebê — para uma casa velha
que fora, muitos anos antes, uma estação de trem. Os
trilhos tinham sido desenterrados, e o velho casal que
morava à nossa frente usava o lugar para cultivar vegetais.
Eu estava ficando mais velho. Um dia, encontrei um
cabelo branco; em outro, ouvi a uma gravação de mim
mesmo falando e percebi que a minha voz estava igual à do
meu pai.
Eu trabalhava em Londres, como caça-talentos de um dos
maiores selos fonográficos. Na maioria dos dias, eu ia para
Londres de trem, voltando algumas noites.
Era preciso manter um apartamento em Londres; é difícil
voltar para casa quando as bandas que você quer ver só
pisam no palco depois de meia-noite. Isso também
significava que era muito fácil transar se eu quisesse, e eu
queria.
Achei que Eleanora — este era o nome da minha esposa;
eu deveria ter mencionado isso antes, suponho — não sabia
sobre as outras mulheres; mas, em um dia de inverno, voltei
de uma viagem de duas semanas para Nova York, e, quando
cheguei em casa, estava vazia e gelada.
Ela tinha me deixado uma carta, não um recado. Quinze
páginas, belamente datilografadas, e cada palavra era
verdade. Incluindo o P.S., que era: Você não me ama de
verdade. E nunca me amou.
Coloquei um casaco pesado, saí de casa e apenas
caminhei, desnorteado e um pouco estarrecido.
Não havia neve no chão, mas havia uma nevasca cruel, e
as folhas faziam barulho sob meus pés conforme eu andava.
As árvores eram esqueletos pretos contra o rigoroso céu
cinza do inverno.
Caminhei pela lateral da estrada. Carros passavam por
mim, indo e voltando de Londres. Tropecei em um galho
meio escondido por um monte de folhas marrons, e rasguei
a minha calça, e arranhei a minha perna.
Cheguei na cidade vizinha. Havia um rio ao lado da
estrada, e um caminho que eu nunca tinha visto antes ao
lado dele, e segui por ele, e olhei para o rio um pouco
congelado. Ele gorgolejava, e ondeava, e cantava.
O caminho seguia pelos campos; era reto e gramado.
Encontrei uma pedra, meio enterrada, na lateral da trilha.
Peguei-a e limpei a lama. Era um caroço derretido de algo
arroxeado com um brilho de arco-íris. Coloquei a pedra no
bolso do casaco e segurei-a na mão enquanto caminhava, a
presença dela era reconfortante e cálida.
O rio se desviou pelos campos, e eu continuei andando
em silêncio.
Tinha caminhado por uma hora quando vi casas — novas,
e pequenas, e quadradas — no terreno acima de mim.
E então vi a ponte e soube onde eu estava: na trilha da
velha linha de trem. Percebi que eu tinha chegado lá pela
outra direção.
Havia pichações na lateral da ponte: FODA-SE e BARRY
AMA SUSAN e a sempre presente sigla do partido
nazifascista inglês.
Parei debaixo da ponte, no arco de tijolos vermelhos,
entre embalagens de picolé, sacos de biscoito e uma única
e tristonha camisinha usada, e vi minha respiração se
condensar no ar frio da tarde.
O sangue secara na minha calça.
Carros passavam pela ponte acima de mim; consegui
ouvir um rádio tocando alto em um deles.
— Olá? — falei discretamente, me sentindo
envergonhado, me sentindo idiota. — Olá?
Não houve resposta. O vento arrastou os pacotes de
biscoito e as folhas.
— Eu voltei. Eu disse que voltaria. E voltei. Olá?
Silêncio.
Então, comecei a chorar, estúpida e silenciosamente,
soluçando debaixo da ponte.
Senti a mão de alguém no meu rosto e olhei para cima.
— Não achei que você fosse voltar — disse o troll.
Ele tinha a minha altura agora, mas, fora isso, nada havia
mudado. Seu cabelo longo de brinquedo estava
despenteado e tinha folhas nele, e seus olhos eram grandes
e solitários.
Dei de ombros e então limpei as lágrimas com a manga
do casaco.
— Eu voltei.
Três moleques passaram acima de nós na ponte, gritando
e correndo.
— Eu sou um troll — sussurrou com a voz baixa e
assustada. — Fol rol de ol rol.
Ele tremia.
Estendi a mão e coloquei a pata com garras dele na
minha. Sorri para ele.
— Está tudo bem — falei. — De verdade. Está tudo bem.
O troll assentiu.
Ele me empurrou para o chão, para cima das folhas, das
embalagens e da camisinha, e se debruçou sobre mim.
Então levantou a cabeça e abriu a boca, e comeu a minha
vida com seus dentes robustos e afiados.
Quando terminou, o troll se levantou e tirou a sujeira do
corpo. Colocou a mão no bolso do seu casaco e tirou de lá
uma pedra clínquer queimada e cheia de bolhas.
Ele a entregou para mim.
— Isso é seu — disse o troll.
Olhei para ele: usando minha vida confortavelmente, fácil,
como se já a estivesse usando por anos. Peguei o clínquer
da mão dele e cheirei. Consegui sentir o odor do trem do
qual ele tinha caído há tanto tempo. Apertei-a bem na
minha mão cabeluda.
— Obrigado.
— Boa sorte — disse o troll.
— É. Bem. Você também.
O troll sorriu com o meu rosto.
Ele me deu as costas e começou a andar pelo mesmo
caminho que eu tinha vindo, na direção do vilarejo, de volta
para a casa vazia que eu deixara naquela manhã; e
assobiou enquanto caminhava.
Fiquei aqui desde então. Me escondendo. Esperando.
Parte da ponte.
Nas sombras, vejo as pessoas passarem: passeando com
seus cachorros, ou conversando, ou fazendo as coisas que
pessoas fazem. Às vezes, as pessoas param debaixo da
minha ponte, para ficar lá, ou mijar, ou fazer amor. E eu as
observo, mas não falo nada; e elas nunca me veem.
Fol rol de ol rol.
Eu vou ficar aqui, na escuridão sob o arco. Eu posso ouvir
todos vocês por aí, andando na ponta dos pés, andando na
ponta dos pés em cima da minha ponte.
Ah, sim, eu posso ouvir vocês.
Mas não vou sair.
NESSA IDADE
CATRIONA WARD

Q
uando eles entram na sala de aula, John
pensa que está vendo em dobro. Eles são
exatamente iguais: dourado e azuis, cabelo e
olhos. O garoto é um pouco mais alto, talvez.
John fica mais tempo olhando para a menina.
Todo mundo está encarando eles. Eles não parecem se
importar. Estão acostumados com isso. A professora fala o
nome deles, e eles sorriem com educação. Daisy e Drew.
John pensa como é idiota dar nomes que começam com a
mesma letra a gêmeos, como personagens de velhas
histórias sobre colégios internos. Alice gostava desse tipo de
livros. John não.
Há um assento vazio ao seu lado, e ele fica cheio de
esperança. Mas é claro que a professora coloca a garota lá
no fundo da sala, e o menino fica com a carteira ao lado de
John. Ele emana um odor estranho e delicado, como a tigela
de frutas em casa, quando as mosquinhas começavam a
voar ao redor dela.
John se assusta, porque, de repente, os pés das carteiras
começam a arranhar o piso e há um tumulto de vozes. A
aula terminou. O menino está olhando para ele de maneira
amigável.
— Você estava dormindo de olhos abertos.
— Estava um saco — responde John. Ele não dorme mais à
noite, mas não quer falar sobre isso.
John tem treze anos. Às vezes, ele diz às pessoas que tem
dezesseis. E, às vezes, elas acreditam porque ele é alto —
embora tenha começado a desenvolver uma corcunda nos
últimos meses. Ele não gosta de ocupar muito espaço ou
que as pessoas fiquem o encarando. Só no caso de que o
que há no seu interior fique visível no exterior.
Ele pisca. Está no pátio, sob o sol, e aquele garoto Drew
está ao seu lado, com um jeito amistoso. Sua pele e seus
olhos são tão claros que ele parece quase perolado, com
uma luz do lado de dentro. As garotas do ensino médio
formam uma fila. O recreio delas chegou ao fim. Elas olham
para Drew, pequenos flashes de calor passando pela cerca
de arame. John sente alfinetadas profundas de inveja no
estômago. Elas não olham daquela maneira para ele, com
seu cabelo castanho idiota e seus olhos normais.
Drew pergunta:
— E aí, o que tem para fazer aqui?
— Não muito — responde John. Não se preocupa em
parecer amigável.
— Quer ir na nossa casa depois da aula? Não vai ter
nenhum adulto lá.
John diz:
— Nah.
— Ah, vai sim — fala Drew, e John dá de ombros e
responde Ok para fazer com que o garoto vá embora. Ele
supõe que vai ser melhor do que ir para a própria casa, para
a mãe dele e seu lento sofrimento. Ele anda cansado
ultimamente. Talvez seja por isso que as pessoas acreditam
nele quando fala que é mais velho.

Daisy está esperando no portão da escola. Ela caminha ao


lado deles em silêncio. O cabelo cai sobre um dos olhos
como um ramo branco-dourado. Drew pergunta:
— Qual é o lugar mais perto que vende cerveja?
— Tem uma birosca na esquina — responde John. — Mas
eles pedem para ver a identidade.
— Não se preocupe — diz Drew.
John imagina que Drew tenha uma identidade falsa. Os
gêmeos têm dinheiro, isso é óbvio. Ele pode comprar bebida
de qualidade.
— Eu vou pagar — fala Drew, como se lesse os
pensamentos de John. — Daisy e eu vamos. A gente não se
importa.
John para na pequena travessa com chão de pedras perto
da birosca.
— Beleza — diz ele. — Pode ir.
— Eu não vou entrar — fala Drew. — Você vai.
John sente um jorro de irritação.
— Eu não posso — afirma ele. — Eles me conhecem e
conhecem a minha mãe. Eu pensei que você tinha uma
identidade ou algo assim.
— Não.
— Que perda de tempo — comenta John, andando para
longe.
— Espere. — Uma mão leve e pálida no braço dele. Daisy
tem o mesmo cheiro do irmão, só que mais doce, como suco
de maçã. — Por favor — diz ela. — Temos uma ideia.
John para. Parece que a mão dela está mergulhando na
sua carne, mas não de um jeito nojento.
— Eu conheço um truque que podemos usar — diz Drew.
— É como… hipnose ou algo parecido. É daquele cara que
hipnotizou todo um estádio de futebol. Você viu isso na
televisão?
Apesar de tudo, John está interessado. Ele chegou mesmo
a ver o sujeito hipnotizando um estádio de futebol cheio de
gente. Foi bem legal. Ele gosta de mágica e essas coisas.
— Você só precisa se debruçar e falar uma palavra, aí a
outra pessoa vai fazer tudo que você mandar.
— É, tá bom.
— Eu sei que parece loucura — diz Drew. — Mas funciona,
juro.
— Qual é a palavra?
Drew sussurra no ouvido dele. Mais tarde, John não
consegue se lembrar da palavra. É mais ou menos como
anuśru ou anushru, mas não exatamente. Parece com pedra
batendo na pedra, ossos calcificando nas entranhas da
terra.

A porta se abre com um tilintar alegre. Lá dentro, a birosca


tem um cheiro de metal frio, como garrafas d’água ou
moedas, talvez. As palmas das mãos de John começam a
suar. Começa a sentir um frio na espinha quando vê que
não é o velho que está atrás do balcão, é a esposa dele. Ela
está tricotando e o barulho das agulhas parece ecoar o
coração rápido de John. Click, click, click. A sra. Berry tem
um jeito de olhar para você, exatamente como ela está
fazendo agora, por cima dos óculos.
Ele vai até o freezer, de qualquer forma. As latas são azuis
e douradas, tão geladas que grudam na mão dele. As cores
o lembram de Daisy. Ele pega o emaranhado de seis latas
de alguma coisa. Pode ser cerveja ou cidra. Os olhos dele
não conseguem ler o rótulo. Seus dedos não estão firmes e
ele deixa cair as latas no chão com um barulho agudo. A
sra. Berry olha para ele.
— Identidade, por favor — pede ela com gentileza. Não
está irritada, é pior do que isso. John vê que a mulher está
com pena dele, que ela está pensando em Alice e em como
tudo isso é triste. O coração dele parece um balão cheio
demais que está a ponto de estourar.
Ele se debruça sobre ela. A palavra sai de sua boca como
uma pedra. A sra. Berry pisca e pergunta:
— Está tudo bem, John?
Ele repete a palavra, entrando em pânico, e ela afasta a
cerveja dele.
— Vou colocar isso no freezer de novo — diz ela. — Você
volta para casa. — Por um momento, coloca a mão sobre a
dele. — Sei que deve estar sendo um momento difícil. Vai
passar, prometo. Você precisa tentar e ajudar sua mãe
agora.
Fora da birosca, John vê que está tremendo de raiva. Ele
corre para a travessa onde deixou os gêmeos, pega Drew e
joga o garoto contra a parede de tijolos.
— Você me sacaneou — diz ele, respirando fundo. — A
palavra não funcionou.
Drew grita com uma mistura de surpresa e riso.
— É claro que não funcionou — fala ele. — No que você
estava pensando? Sério.
John o encara por um momento. Um sentimento começa a
borbulhar dentro dele, que explode, e ele percebe que está
rindo também. Como ele acreditou que tinha uma palavra
mágica que obrigaria as pessoas a fazer o que ele queria?
Para falar a verdade, era bem engraçado.
— Vamos para a sua casa — diz ele.
O sorriso começa a se espalhar devagar pelo rosto de
Daisy como um pôr do sol.

A casa de Daisy e Drew fica na nova área construída, do


outro lado da cidade. Eles caminham devagar até lá.
— Você tem irmã, John? — pergunta Daisy.
— Uma gêmea — responde John. Ele não quer entrar em
toda a coisa da Alice agora. — Ela estuda em outra escola.
Todas as casas são iguais onde Drew e Daisy moram. São
grandes, limpas e anônimas. Não têm a tristeza pesada,
porque nada aconteceu nelas ainda. John queria que ele e a
mãe morassem ali, e não na casinha geminada e cinzenta
cheia de memórias de perda. Ele se preocupa com a mãe.
Pelo menos John tem que ir para a escola de dia. Ela só fica
lá sentada.
Eles param na frente de uma casa branca, que é
exatamente igual às casas brancas adjacentes e todas as
outras casas na região. Drew abre o portão e eles
atravessam o jardim, que é tão novo que os cristais nas
pedras do pavimento brilham com o sol da tarde.
Logo depois da porta da frente tem uma mesa enorme
com uma pilha de trinta centímetros de cartas e contas.
— Uau — exclama John.
— Os antigos donos — fala Daisy, puxando ele para
dentro. — Não deixaram o novo endereço. Acho que temos
que jogar tudo no lixo.
A sala de estar era como uma caverna espaçosa e fria, o
que sua mãe chamaria de “espaço aberto”. Tudo lá era ou
branco ou brilhante. Daisy coloca uma música, que surge de
alto-falantes escondidos nas paredes. Drew dá uma bebida
para John em uma taça de martíni, que nem James Bond. O
primeiro gole queima sua garganta, mas depois tudo
começa a parecer maravilhoso.
— Vamos dar uma festa — diz Drew.
— Ah, vamos sim — diz Daisy.
John ri, porque claro, por que não? Uma festa, do nada.
— Sua mãe e seu pai não vão ficar chateados?
— Hester não está aqui — diz Daisy. — Mas ela não vai se
importar, de qualquer maneira.
Drew pega seu telefone e começa a ligar para as pessoas.
Em uma questão de minutos, ou assim parece, a campainha
toca e tem crianças do lado de fora. John não conhece
ninguém. Devem estudar em outros colégios. Acontece de
novo, e de novo, e logo a sala branca está cheia de
adolescentes. O dente de todo mundo parece muito branco,
e as roupas das meninas são incríveis: vestidos que
parecem prontos para flutuar como nuvens, coroas de flores
e pés descalços.
John se vê conversando com um garoto sério usando preto
chamado Edmond. Ele usa óculos e seu cabelo escuro é
longo, penteado de forma a cobrir uma parte do rosto.
Mesmo assim, John consegue ver a cicatriz embaixo. É longa
e perversa.
— Como você conseguiu isso aí? — pergunta. John sabe
que fazer perguntas pessoais é falta de educação, mas se
sente tão próximo de Edmond com seus olhos nervosos e
rosto doce.
Edmond ajeita o cabelo abruptamente.
— Foi há muito tempo — responde. — Tipo, anos e anos
atrás.
— Quando você era bebê?
— Tipo isso — diz Edmond. Então, seu rosto perde a cor
na luz fraca. — Eu me esqueci de dar minhas cartas para
eles. — Ele desaparece. John dá de ombros e anda pela
festa. A música fica mais alta e tem efeitos de luz correndo
pelas paredes brancas. Azul, rosa, dourado. É bem legal. Na
verdade, John não se sente tão bem em meses. A bebida
não parece estar deixando-o mais lento, mas fazendo-o ficar
mais alerta, mais aceso. Tem outra taça cheia na mão dele.
Ele não se lembra de como ela foi parar ali. Drew e Daisy
são legais, ele decide. Mais legais do que ele esperava. O
cheiro estranho que vinha deles parece ter sumido agora.

Quando John chega em casa, sua mãe está sentada à mesa


da cozinha, como sempre. Ela encara o nada.
— Mãe? — chama ele com cuidado. Ela não responde.
Bate os dedos na mesa. Há marquinhas formadas na
superfície de madeira, onde suas unhas bateram o dia
inteiro.
Ele vai para o quarto. A porta está entreaberta, e a luz do
poste invade o cômodo. Ele pensa no quarto vazio ao lado,
aquele em que eles nunca entram. Ele quase pode senti-la,
Alice, no escuro, do outro lado da parede. Pensa em Drew e
Daisy com inveja fervente — a beleza fácil deles, a mãe
legal que deixa que os dois deem festas, a casa sem
fantasmas espreitando atrás de portas fechadas.

No dia seguinte, na escola, Drew está ao lado dele, todo


sorrisos e pele perfeita.
— Quer ir jantar lá em casa hoje de noite? — pergunta ele.
— Seus pais não vão se importar?
— A Hester? Não — disse Drew.
John concorda em ir. Fica feliz de não ter que comer peixe
empanado de caixinha em casa. Em geral, ele acaba
cozinhando por tempo demais, e a comida fica com um
gosto horrível. Ele precisa convencer a mãe a comer uns
poucos pedaços queimados.
— Onde você mora? — pergunta a Drew. — Tenho aula de
futebol.
Drew parece não entender.
— Ah, não se preocupe com isso — diz ele. — Vamos
esperar por você. Podemos todos ir andando até lá juntos.
— Vai ser ruim para vocês — fala John, surpreso.
— A gente não se importa.
Por um momento, John se pergunta por que Drew não
sabe o próprio endereço. Mas o pensamento se esvai. Já faz
muito tempo que ele não se sente feliz.
Daisy cozinha. Ela prepara coisas sobre as quais John só leu
em livros velhos, abobrinha recheada seguida por pavê
inglês. Ele nem sabia que ainda dava para conseguir
abobrinhas. Ele come tudo que lhe é dado.
— Cadê os seus pais? — pergunta ele.
— Só tem Hester — responde Daisy. — Ela meio que nos
adotou.
— A Hester está aqui? — indaga John, nervoso. Ele não é
bom com pais. Sempre diz alguma coisa estranha.
— Sim — responde Drew. — Está dormindo agora. Não é,
Daisy?
Daisy concorda com a cabeça. John sente uma pontada de
simpatia. Ele sabe como é ter uma mãe que só dorme o
tempo inteiro. Eles têm muito em comum, ele e os gêmeos.
— E você, John? — pergunta Daisy com educação.
— É só eu e minha mãe — diz John. — Meu pai foi embora.
— De alguma forma, aquilo não dói, falar sobre o assunto
aqui, com a barriga cheia de pavê.
— Que triste — diz Daisy. — Bem, fico feliz de termos nos
encontrado. Penso que ter amigos é importante.
— Desculpe por ter sido grosseiro quando conheci vocês
— fala John com pressa. — Acho que me lembrou da minha
irmã, Alice. Ver vocês juntos, quero dizer. A gente era bem
próximo, que nem vocês. Antes do acidente.
Drew olha para Daisy.
— Acidente? — pergunta ele.
— É. — As lágrimas tocam as pálpebras de John pela
primeira vez desde o acidente. — Eu me sinto pela metade
agora. É tão idiota.
Daisy diz baixinho:
— Então sua gêmea está morta, John?
— Sim — confirma ele.
— Suponho que era impossível perceber — fala Daisy —,
pois você não a deixou ir.
Vem um barulho do andar de cima e depois um gemido,
como se alguém tivesse caído da cama direto nas tábuas do
chão.
— O que foi isso? — pergunta John.
— Não sei — responde Daisy. — Gatos no telhado,
imagino. É melhor ir lá dar uma olhada, Drew.
— Em um minuto — fala Drew.
Alguma coisa se mexe no teto sobre suas cabeças. Algo
pesado se arrasta na direção da escada. O gemido surge
novamente, abafado, cheio de dor.
— Por Javé — diz Drew. — Está tarde, John, é melhor você
ir.
John se despede e Daisy também. Ela é educada como
sempre, mas é como se ouvisse atentamente algo que John
não conseguisse escutar.
Conforme John caminha pelo saguão da casa, ele dá uma
olhada rápida nas cartas empilhadas na mesa. Deve haver
duzentas, todas endereçadas para pessoas diferentes de
diversas partes do país. Ele encontra uma endereçada a um
Edmond Booker, em Halifax. Não pode ser o mesmo
Edmond que ele conheceu na festa; Halifax fica a centenas
de quilômetros de distância. Mesmo assim, isso faz John se
sentir esquisito. Ele logo sai pela porta da frente.
John segue pelo caminho de granito cintilante na poeira
arroxeada. Os sons que vêm de dentro da casa são
carregados pela noite tranquila. A pessoa que estava
gemendo agora está chorando, talvez implorando. Drew fala
com ela.. Ou pelo menos parecia Drew no início. Agora, John
não tem tanta certeza. É uma voz velha, muito velha.
— Deixe-o em paz — diz. — Volte para o seu buraco.

Quando John chega em casa, sua mãe está sentada à mesa


da cozinha, a luz da rua fazendo sombras no seu rosto
congelado. John vai para o andar de cima. Para no topo da
escada, antes da porta do quarto de Alice. Depois de um
momento, ele a abre e entra. Está quente demais, o ar tem
gosto rançoso e de poeira.
Ele acende a luz e vai até a prateleira de Alice. Pega um
livro com uma capa clara, ilustrada, mostrando cinco
crianças sorridentes e um cachorro. Estes eram os favoritos
da Alice, contos dos anos 1950 sobre crianças em idade
escolar que se viam em aventuras envolvendo contrabando,
roubos e ilhas secretas. Ele abre o livro e lê. Não demora
muito para encontrar o que está procurando.
“— Por Javé — diz Harry. — São montanhas e montanhas
de pavê.”

No dia seguinte, na aula de história, o assento ao lado de


John está desocupado. Quando retorce o pescoço, vê que há
um espaço vazio na última fileira como um dente arrancado.
Daisy também não tinha ido à escola. Por um momento,
John sente alguma coisa — com certeza, não pode ser
desapontamento, pode? Então, sente-se elétrico. Isso prova
que tem alguma coisa acontecendo. De onde aqueles dois
tinham surgido, afinal? Ele não cochila na carteira hoje. Sua
mente está cheia de pensamentos envolvendo viagens no
tempo ou talvez vampiros.
No instante em que o último sinal toca, John coloca a
mochila no ombro. Ele corre pelas ruas sombreadas para as
novas casas brancas. Ele não sabe o que dizer, mas está
cheio de convicção. Eles estão fazendo alguma coisa ruim,
ele sabe disso. Ele tem quase certeza de que estão
mantendo alguém prisioneiro no andar de cima da casa.
Talvez a mãe deles, Hester. John suspeita de que o que ele
está fazendo é perigoso, mas é um alívio sentir algo,
mesmo que seja medo.
Ele se aproxima do lugar em que as primeiras casas jazem
pálidas e altas contra o céu de verão. Conforme avança, ele
começa a vacilar. Era a segunda ou a terceira à esquerda
depois da casa com o teixo no jardim? Tudo parece igual. Ele
não vê vivalma. A maioria das casas está vazia — ele pode
ver as largas paredes nuas e brancas através das janelas.
Nenhuma delas tem o número no portão. E ele não sabe o
número, de qualquer maneira. Quando as primeiras estrelas
começam a aparecer no horizonte, John está perdido,
confinado por casas brancas vazias.
No final, ele a encontra por causa do barulho. Luzes
rosadas e azuladas brincam nas janelas, e a casa parece
pulsar com o ritmo. Os gêmeos estão dando outra festa.
Bem, pensa John, eles não podem ter dito que estavam
doentes. Contra sua vontade, John sente seu coração e seus
pés acelerando conforme a música.
Ele empurra a porta da frente, que se escancara.
Rapidamente, vai até o armário debaixo da escada. Está
escuro, o que parece mais seguro do que as luzes coloridas.
Ele observa pela fechadura. A festa parece já ter começado
há um tempo. Através dos flashes de luz, conseguiu ver
todo mundo dançando. Mas, ao que parecia, estava menos
divertida do que a festa que John foi. No calor brilhante
dado pela bebida, não tinha notado algumas coisas. Um
monte daqueles garotos parecia machucado ou tinha
cicatrizes antigas. Um não tinha uma das mãos. E eles
bebem e se misturam, mas não falam oi um para o outro.
Não é como se fossem tímidos — é como se todos ali se
conhecessem bem demais para se dar ao trabalho. Alguns
dos garotos estão vestidos de maneira muito estranha. Uma
menina está usando uma camisola antiga volumosa. Um
garoto louro usa um terno completo, com colete. Outro usa
culotes e tem fivelas brilhantes nos sapatos.
A música para e as luzes são acesas. John pensa “Eles
sabem que estou aqui” e para de respirar. Mas o foco de
todos está em Drew, no centro do cômodo.
— Chegou a hora — diz ele.
— Quantos? — pergunta uma menininha com um chemise
branco e cintilante.
— Quatro, hoje.
Os garotos baixaram a cabeça e alguém soluça. Mas
ninguém se mexe.
— Decidam — ordena Drew — ou eu vou escolher. —
Quando ninguém se move, ele anda em volta do círculo e
puxa quatro pessoas para o centro. — Você me obrigou a
isso — diz ele para a garotinha com o chemise branco, que
começa a chorar.
De cabeça baixa, os quatro seguem em fila para a escada.
Eles sobem devagar e desaparecem de vista, um por um,
deixando apenas o silêncio para trás.
— Ora, vamos lá! — grita Drew. — Homessa! Isso é uma
festa! — A música aumenta, e, apesar do que acabou de
presenciar, o coração de John começa a voltar ao normal.
— É assim que eles pegam a gente no início — diz
Edmond. — Com as festas. — Ele está no armário ao lado do
de John. — Se você vem uma vez, precisa voltar, não
importa onde ou quando seja a festa. O tempo não significa
nada para eles. Passado ou futuro, você precisa vir. Precisa
encher a casa. Às vezes, eu me escondo quando é hora de
escolher. Não sabia que você tinha pensado nisso também.
— O que Drew vai fazer com eles lá em cima? — pergunta
John. Ele fica enjoado. Já tinha ouvido falar naquilo. Crianças
que eram atraídas para fazer parte de gangues. É chamado
de aliciamento de menor. E então, coisas horríveis,
horríveis.
— O corpo dela está velho agora. Ele se desgasta
depressa — diz Edmond. — É por isso que ela precisa de
gêmeos. Peças sobressalentes que combinam. Meu irmão se
voluntariou. Ela o usou primeiro.
O cabelo de Edmond cai de lado, e John vê que ele não
tem um olho direito. Os dedos de Edmond exploram o lugar
em que o olho esteve.
— Cadê a Daisy? — sussurra John. Ele não conseguiu
encontrá-la na festa. Torce para que ela não tenha sido
levada lá para cima. Teme por ela.
— Não tem muito mais da Daisy sobrando — responde
Edmond. — Não depois de tanto tempo.
— Para de ser bizarro — fala John, assustado.
— Corpos são como casas para Hester — revela Edmond.
— Ela encontra um que goste e fica com ele, até que ele
não possa mais ser consertado.
John quer que Edmond pare de falar aquelas coisas
malucas, então dá um empurrão forte nele. Edmond não
parece notar. Ele está vendo além de John, ele vê Drew, de
pé na porta aberta do armário, cabelo dourado penteado
para trás como um astro de cinema de antigamente. John vê
que Drew não tem uma das orelhas.
— Eu esperava que você não fosse voltar — diz Drew a
John. — Convenci-a de que não precisava de você. Eu até
dei uma coisa para ela, para ajudá-la a esquecer.
— Você vai me contar o que está acontecendo aqui agora
mesmo — exige John. Ele se apega a restos desesperados
de esperança, de que tudo aquilo era um erro, um mal-
entendido, que ele está bêbado, ou maluco, ou sonhando.
— Está acontecendo o que sempre aconteceu — diz Drew,
com paciência. — Elas sempre pegaram crianças. As
pessoas costumavam pensar que elas trocavam de lugar
com as crianças. As fadas que trocam crianças, você sabe.
Talvez exista alguma confusão sobre a coisa dos gêmeos.
Mas elas costumavam manter as crianças dentro das
montanhas, isso é verdade. Só que elas se modernizaram
desde então.
John está prestes a explodir de raiva. Ele sabe que estão
tirando sarro com a cara dele. É que nem aquela coisa do
lado de fora da birosca de novo. Todo o sentimento que tem
crescido desde que a Alice morreu agora enche as
entranhas dele, perto de transbordar.
— Você acha que eu acredito nisso? — Ele dá um soco
forte na cara de Drew. Ele escuta, mas não sente, o estalar
agudo das suas juntas contra a cartilagem. O nariz de Drew
explode em uma névoa vermelha. Ele cai no chão. John não
vê Daisy até que as mãos dela estão apertando o seu
pescoço. Estrelas surgem, atrapalhando a sua visão.
— Ele foi o único que defendeu você — sussurra Daisy no
ouvido de John. — Ele traiu Hester, tentou ajudar você a
escapar. Você devia agradecer a ele de joelhos. Mas, em vez
disso, acabou com o nariz dele.
— Agora você conseguiu — diz Edmond. Ele coloca o
cabelo sobre o buraco onde seu olho deveria estar e volta
devagar para a escuridão do armário.
Drew olha para John com seus olhos azuis velhos. John se
pergunta como pode ter pensado que eles eram da mesma
idade.
— Eu tentei manter você fora disso, meu chapa — diz
Drew. — Você não é mais um gêmeo, então é inútil. Poderia
ter vivido uma vida longa. Mas ela saiu do buraco agora.
Havia um som como pedra raspando na pedra. As luzes e
a música desapareceram. As crianças correm, se
acumulando nos cantos. O cômodo é iluminado por uma luz
esverdeada. As paredes se movem enquanto John observa.
Elas estalam com a dor do crescimento. Novos ramos e
galhos se empurram para fora delas, folhas leves nascem
neles violentamente, ficando escuras e brilhosas para então
se encolherem e se tornarem marrons. Um espinheiro
branco explode no ar, fazendo chover pétalas. Tudo brota, e
cresce, e murcha, e morre diante dos olhos de John. O
tempo corre em uma velocidade enjoativa.
— Corra — diz ele para Daisy, virando-se.
Mas alguma coisa aconteceu com a Daisy. O rosto dela se
tornou um buraco com uma criança nele. Ela é feita de
camada sobre camada de tempo. É mais velha do que
qualquer coisa no mundo. É feita de madeira, com uma face
que parece uma mulher gritando presa em um tronco de
árvore. Então, ela é a irmã de John, Alice, pálida e linda com
sua mortalha.
Vinhas correm pelo chão como cobras, enrolando-se nos
pés da mobília, deixando-as com uma aparência verde e
pegajosa. Elas voam na direção de Daisy, que as pega, as
afaga como filhotinhos e canta para elas com a voz aguda.
Então, elas voltam seus dedos finos para Drew.
— Não lute com elas — murmura Daisy. Mas Drew luta. Ele
arranca as vinhas e grita uma palavra que soa como
moksha. Ela se recolhe, seus dedos verdes soltos, mas só
por um momento. Então, ela o tem no seu entrelaçamento
estrangulatório mais uma vez. Ela pega as mãos dele
conforme o musgo se arrasta, verde e vivo, sobre seu rosto.
— Desculpa — diz a coisa que era Daisy.
— Não — rebate Drew. — Por favor! — Os dedos dela
alcançam a boca do garoto agora, a garganta dele e ainda
mais profundamente. Em pouco tempo estava acabado.
Hester fica de pé. Ela usa o corpo de Daisy com uma
graça animal.
— Que isso sirva de lição para todos vocês — avisa ela. —
Não me testem. Agora vou voltar lá para cima com meu
novo amigo John. Ele não vai servir para reparos, mas acho
que posso fazer alguma coisa com ele. Ele me deve um
irmão, afinal. Venha, John.
Eles sobem de mãos dadas. Hester arrasta o cadáver de
Drew atrás dela e a cabeça faz um crack ao bater em cada
degrau.

John abre a porta de casa. A mãe dele está sentada à mesa.


A luz do luar brinca no cabelo dela, que está escuro de
novo, com um coque para cima preso por uma coroa de
prata. O aroma do jardim enche a cozinha, o cheiro dos
oleandros e das glicínias pesados no ar. Um laguinho ondula
aos pés dela. Nenúfares se abrem lentamente sob o olhar
dele. Um peixe-dourado beija a superfície lisa da água,
depois mergulha de volta para as profundezas. Uma libélula
passa perto do nariz de John. Ele vê agora — o lugar em que
sua mãe esteve durante todo esse tempo.
A mãe olha para ele e sorri.
— Não é lindo? — pergunta ela.
— Sim — responde ele. — É lindo, mãe. — Ele aperta a
mão dela.
A primeira coisa que Hester fez foi roubar a mente de sua
mãe. Isso aconteceu antes mesmo de ele conhecer Daisy e
Drew. Tem uma ordem na coisa. Ela remove os pais
primeiro. Ele pensa em todos aqueles pais e mães sentados
sozinhos nos seus jardins noturnos, presos no tempo e no
espaço. Desde que existe gente, existe Hester. Ele se
pergunta como era a verdadeira Daisy. Ele tem certeza de
que uma parte de Daisy ainda resiste no corpo dela, assim
como ainda há um pouco de John no corpo dele. Não há
mais Drew, no entanto. Drew está morto. John não quer
morrer.
John pega as cartas e contas que estavam empilhadas na
mesa do saguão. Ele vai levá-las para Hester, e todas serão
respondidas e pagas, e ninguém vai perturbar sua mãe
enquanto ela estiver sentada em seu jardim noturno. Ele
olhou em torno e deu adeus à casa. Não vai voltar para cá
por um bom tempo.
Ele demora um segundo para ajeitar seu cabelo louro
brilhante no espelho do saguão. Mesmo à luz do luar, ele
consegue ver o azul profundo e perfeito dos seus olhos.
Hora de ir. Ele tem um dia cheio amanhã. Vai começar na
nova escola. Com cuidado, John fecha a porta da frente da
casa.
ESCUTE
JEN WILLIAMS

E
las sempre sabiam quando ela estava prestes a
chegar. Erren não entendia como aquilo
funcionava, mas, enfim, ela não entendia muita
coisa sobre a vida dela naquele tempo.
Que os deuses as ajudem, elas ficavam até
animadas. Conforme Erren alcançava os limites desse novo
assentamento, viu um monte de crianças sentadas em uma
cerca longa e curvilínea, os rostos cheios de interesse.
Quando ela chegou mais perto, a poeira da estrada
comprida formando nuvenzinhas alaranjadas em volta dos
seus pés, elas começaram a gritar perguntas estridentes
para ela. De onde ela vinha? O que ia tocar? Se eles
pedissem, ela tocaria a música que eles queriam?
Erren assentiu para as crianças e falou bem pouco.
Infelizmente, elas logo ouviriam sua canção.
Ela seguiu as crianças, que a levaram a uma construção
que mais parecia um monte pequeno, feito de pedra e lama
e pontuado com janelinhas quadradas que eram pouco mais
que buracos. O topo do lugar era coberto de grama verde e
flores, e uma fina fumaça cinzenta saía regularmente de um
buraco que ela não conseguia ver. Erren tinha quase certeza
de que nunca tinha visto nada igual, mas, uma vez dentro,
percebeu que era apenas outra taberna, igual a qualquer
outro buraco para beber que ela já tinha entrado: o cheiro
forte de cerveja, a centelha esfumaçada de uma lareira.
— Então, você é a música — disse a taberneiro,
amigavelmente. — Veio de longe?
Erren optou por ignorar a questão. Eles nunca
entenderiam a resposta.
— Sou a música — confirmou ela. — Você vai me escutar?
Toda vez que ela perguntava, uma pequena parte dela
esperava que respondessem que não, mas ninguém havia
dito isso ainda. É claro que não. A taberneira abriu ainda
mais o sorriso, cruzando os braços debaixo do seu
considerável busto.
— Vamos ficar felizes em escutar você — disse ela. — Não
temos muito entretenimento por aqui. Acho que a maior
parte do vilarejo vem ver você, querida. Quer que eu abra
um espaço perto da lareira? De quanto espaço você
precisa?
— Não muito, só tenho minhas flautas. Mas será que
posso pedir uma comida antes…?
Ela aprendera a garantir seu alimento antes de tocar. Era
difícil resistir ao ímpeto de tocar; a necessidade era como
uma sensação seca e quente na nuca, um peso nos seus
dedos, mas se ela se concentrasse bastante, conseguiria
evitar por mais ou menos uma hora. A taberneira trouxe
sopa de cebola quente, pão fresco e, para o deleite de
Erren, uma taça de um rum com gosto de framboesa que a
fazia lembrar bem da sua casa impossivelmente distante.
Mas logo seus dedos começaram a tremer, e o calor na
nuca se tornou sufocante, como se mãos finas se
apertassem em volta da garganta dela. Ela colocou a
cumbuca e a taça de lado e procurou pela flauta.
Enquanto estava comendo, a taberna aos poucos se
encheu de clientes até cada cadeira ficar ocupada e havia
outros de pé, todos os olhos nela. Eles não pareciam
surpresos pela flauta em si, mas, então, as pessoas
raramente ficavam. Erren muitas vezes se perguntava se
eles pensavam que os tubos eram feitos de uma madeira
clara especial ou algum tipo de argila fina. Ou talvez eles
soubessem o que o instrumento era e não se importassem.
Sem olhar para os homens e as mulheres reunidos — e as
crianças, que os deuses as ajudem, as crianças também —,
ela baixou a boca para a ponta do tubo e tomou fôlego.

Quando saiu, sob os céus rosa-acinzentados do quase-


crepúsculo, toda vida e todo o entusiasmo pareceu ter
desaparecido do lugar. Erren correu na direção dos portões,
de cabeça baixa, tentando ouvir apenas seus próprios pés
no chão arenoso, mas em algum lugar próximo, um homem
chorava, um som desesperador e sem fundo, e então,
conforme ela atravessava o portão, escutou um grito
irritado e um longo gemido como resposta.
Mas não importava. Os pés dela já estavam a chamando
para o próximo destino, e ela não poderia ter parado
mesmo se quisesse.
O próximo lugar era maior, um vilarejo agrupado às
margens de um rio. Em algum lugar durante sua longa
caminhada, Erren tinha cruzado uma fronteira — vira sinais
feitos de madeira, pintados com símbolos um pouco
familiares — e este lugar era mais próspero. Havia uma bela
muralha feita de tijolos de argila vermelha, e, à margem do
rio largo, estava um conjunto de pequenos barcos
amarrados; um mercado estava agitado mesmo ao
entardecer. Erren viu caixotes de peixes serem carregados
para fora do mercado, rolos espessos de lá sendo enfiados
em sacos. Ela não conseguiu achar a taberna, mas tinha
certeza de que devia haver uma, então foi na direção do
pequeno mercado em praça pública, seguindo o cheiro forte
de peixes fluviais. Fora uma longa caminhada sem ter visto
ninguém, e a ânsia de tocar era esmagadora. Não haveria
comida ou descanso para ela hoje à noite.
Quando ela encontrou a pequena área de apresentação, o
sol poente já tinha deixado o céu manchado de laranja. Era
uma praça ampla de terra batida, rodeada por bandeirolas
coloridas em postes, e, dentro dela, um homenzinho todo
duro estava de pé sobre um banquinho, fazendo malabares
com tacos de madeira. Duas crianças imundas o
observavam, expressões de tédio idênticas em cada face.
— Posso pegar seu banquinho emprestado, meu amigo?
— perguntou Erren. O homenzinho pareceu ultrajado, mas
pegou seus tacos do ar e desceu para a terra.
— O banquinho não é meu — retrucou ele, acrescentando:
— Você não vai conseguir ninguém para ouvir você hoje,
garota. É a época do ano errada para isso, entende? Todo
mundo está lá nas docas, trabalhando.
Erren assentiu, mas se sentou de qualquer maneira.
Alguns segundos depois, uma família e um trio de homens
vestidos como guardas se juntaram às duas crianças
imundas. Mais alguns minutos passaram, e a multidão
cresceu; mulheres com aventais sujos, meninas com os
cabelos presos sob chapéus vermelhos, homens velhos de
juntas finas. Erren os observou, sem surpresa. Aquilo fazia
parte da coisa. Sempre haveria um público para ela, onde
quer que ela fosse.
Ignorando os roncos da sua barriga, ela pegou a flauta da
bolsa e levou-a de imediato aos lábios. Ela não queria olhar
para aquelas pessoas, não queria poder se lembrar do rosto
delas depois. Com a menor das exalações, uma série de
notas graves e espantosas flutuou pela praça. Na mesma
hora, o murmúrio gentil do público cessou, e um silêncio
assustador encheu o espaço, quebrado apenas pelas notas
cadenciadas de Erren. Agora, a música estava aumentando,
ficando mais complexa — uma estranha filigrana de sons,
mais do que poderia ser produzido pelo sopro de uma única
mulher, talvez —, e a quietude parecia estar criando
sombras. Apesar da luz cálida do céu no início da noite,
poças de escuridão estavam surgindo aos pés do público
dela, saindo do solo como petróleo. As pessoas ainda não
tinham notado, estavam ocupadas demais assistindo a ela.
Seus rostos estavam congelados, ligeiramente confusos,
como se não estivessem entendendo o que estavam
ouvindo.
Os dedos de Erren corriam sobre os buraquinhos na flauta,
fazendo novos sons, mais sombrios. No fundo da multidão,
um bebê começou a chorar.
— O que está acontecendo? — perguntou alguém, mas a
voz estava grossa, quase lenta demais, como se a pessoa
tivesse acabado de acordar de um sono profundo. As
sombras ao redor dos pés do público se uniram para virar
uma coisa só, tornando-se uma espécie de palco largo e
escuro entre Erren e eles. Era outra coisa que Erren não
gostava de olhar — a escuridão era plana demais,
sobrenatural demais sob o céu tocado pelo sol.
Foi naquele momento que a primeira das figuras
apareceu. Um inchaço formado naquele palco preto e liso,
uma coroa empurrando para revelar uma pequena cabeça
comum. A garota tinha cabelo ruivo e longo, e levantou o
rosto para o céu, como se sentisse saudade dele, seus
lábios finos se abrindo para revelar dentinhos amarelados. A
pela era cinzenta e os olhos eram buracos vazios.
— O quê… O que é… — A voz que vinha do público ficou
mais alta por um momento, lutando com o silêncio que caíra
sobre eles, e se calou novamente. A garota surgiu inteira da
escuridão e começou a dançar, mexendo os braços
conforme a música, girando no mesmo lugar. Ela dançava
como uma criança, e Erren pensou que a menina devia ter
mais ou menos nove anos quando era viva. O vestido dela
era um trapo marrom, mas seus pés eram rápidos, e Erren
pensou que era possível a garota estar até gostando daquilo
— ela gostava de dizer isso a si mesma, quando as noites
eram especialmente sombrias.
— Lizbet? — Uma mulher de cabelo cor de morango abriu
caminho abruptamente para o início da multidão, quase
caindo de joelhos. — Deuses me acudam. Lizbet?
A música continuou e outra figura estava se erguendo do
negrume. Essa surgiu mais rápido, como se não pudesse
esperar para se livrar das sombras; era um velho, tão
dolorosamente magro que até Erren ficou chocada, apesar
de tudo que já tinha visto. Ossos cutucavam a pele, que era
de um tom de cinza mais escuro que o da garota, e seus
joelhos pareciam inchados e estranhos, grandes demais
para os cambitos que suportavam. Como a garota, tinha
buracos escuros onde seus olhos deveriam estar. Apesar de
tudo isso, ele dançou, os cotovelos para fora e o queixo para
cima. Enquanto isso, a mulher na beira da plateia tinha
avançado de maneira atrapalhada, os braços erguidos na
direção da menina dançarina, sem ousar tocar o palco
escuro que havia entre eles.
— Lizbet, meu amor? O que… O que está acontecendo?
Você voltou para nós?
A garota parou de dançar tão abruptamente que era como
se ela tivesse sido golpeada. Ela deixou cair os braços e se
voltou para a multidão, olhando para as pessoas pela
primeira vez — ou, ao menos, seu rosto estava voltado para
a plateia; ela não tinha olhos para ver qualquer um que
fosse. Os dedos de Erren continuaram correndo pelo
instrumento, e a música continuou. Não havia como parar
agora.
— Mãe. — A voz dela era fina e aguda, uma voz ouvida no
vento, meio imaginada. — Eu gostava de escalar?
A mulher baixou os braços. Atrás da garota, o velho morto
ainda dançava animadamente, seus longos dentes expostos
para o céu.
— Eu… Não, querida. Você gostava de ficar sentada com
suas bonecas, conversando com elas. Você não gostava
quando seus vestidos ficavam sujos. — A voz da mulher se
quebrou, e Erren viu lágrimas correndo pelas suas
bochechas. — Você era uma menina tão doce, minha
florzinha.
— Então por que eu estava na muralha, mãe? Por que eu
estava lá em cima? — Ela virou a cabeça de leve, como se
para apontar a figura magra e de cabelos louros ao lado da
mãe. O garoto estava congelado, toda cor havia
abandonado o seu rosto. — Talvez você deva perguntar a
Willem.
O rosto da mulher pareceu desfalecer, e ela se virou para
o garoto ao seu lado, mas a menina já estava dançando de
novo, seus braços finos e cinzentos girando e girando.
Àquela altura, outras figuras estavam surgindo do negrume,
suas faces sem olhos levantadas para saudar o céu do
crepúsculo, e a multidão começava a gritar, um som de
gemido desesperado, como crianças presas em um
pesadelo. Um homem grande de ombros largos e rosto
barbudo abriu caminho, irritado, até a frente.
— O que está acontecendo aqui? — berrou ele, apontando
um dedo gordo na direção de Erren. — O que você está
tocando com essa… essa abominação?
Erren continuou tocando de cabeça baixa. O velho
magricela, no entanto, o homem que tinha surgido depois
de Lizbet da escuridão, se virou para o homenzarrão.
— Abominação? Olha quem fala, Samuel, olha quem fala.
O homem — Samuel, presumiu Erren — fechou as mãos
em punhos, o rosto ficando vermelho como o de um tijolo.
— Cale a boca! Você não deveria…
— Este é o meu filho, o meu Samuel. — O velho morto e
magro ergueu as mãos, dedos separados, como se estivesse
se dirigindo a toda a plateia. — Quando fiquei doente,
doente demais para trabalhar, para comer sozinho, ele me
trancou no quarto dos fundos e me deixou passar fome. Me
deixou lá, mijado e cagado, sim, deixou, até eu morrer, com
fome e coberto de sujeira. — Seus lábios cinzentos se
retraíram no que Erren supôs ser um sorriso. — O bom e
valoroso Samuel. Todos os seus vizinhos gentis que
compraram carne, batatas e pão para mim? Ele comeu
tudo. É, comeu, sim. E quando os meus lamentos se
tornaram um incômodo muito grande, ele arrancou tiras de
tecido e encheu os ouvidos com elas. Eu pergunto a vocês,
meu bom povo, quem é a verdadeira abominação aqui?
Um som de raiva da multidão.
Houve mais. Mais homens e mulheres e crianças mortos
se ergueram e, com cada um deles, um monte de segredos
dolorosos e verdades devastadoras. A plateia — as famílias
deles, os amigos deles — não conseguia sair dali, enraizada
no mesmo lugar até cada morto ter a sua oportunidade de
falar. Erren tocou noite adentro, seus dedos e busto doendo
e seus membros congelando, até que, em algum momento,
o palco preto deu lugar ao seu último fantasma, e, juntos,
todos eles começaram a desaparecer com o sol nascente.
Ainda não havia acabado para os vivos, no entanto;
algumas brigas já surgiam, pontuadas por discussões
berradas e confissões soluçadas, e a vingança tinha sido
jurada já uma meia dúzia de vezes.
Quando acabou, Erren se levantou, estremecendo com a
onda de formigamento nos pés e nas pernas dormentes, e
guardou a flauta de volta na bolsa. Era hora de seguir em
frente.

Demorou dias para ela chegar ao próximo assentamento, e


finalmente ela chegara a uma clareira na floresta onde
sentiu que poderia parar um pouco. Tremendo de cansaço,
Erren preparou uma fogueira com os primeiros ramos que
conseguiu achar e em pouco tempo ela tinha uma flama
produzindo fumaça acesa — o suficiente para esquentar um
pouco de água, beber um copo de alguma coisa quente. Na
bolsa, havia alguns poucos pedaços de carne seca, e ela os
mergulhou na água até estarem macios o bastante para
mastigar. Ela permaneceu sentada sem pensar em nada, o
olhar perdido. Depois de um tempo, a clareira sombreada
começou a ficar mais clara. Pequenas partículas amarelas
de luz flutuavam para fora das árvores, e um calor começou
a se arrastar pela terra cheia de folhas. Erren fechou os
olhos por um momento.
— Não. Me deixe em paz. Já não fez comigo o suficiente?
A luz brilhou mais clara, o movimento das partículas ficou
mais frenético, até que uma figura surgiu das árvores. Ela
era alta e dolorosamente bela. Sua pele era tão verde
quanto a folha nova da primavera, e um par de chifres
curvos surgia da sua testa.
— Eu gosto de ver como você está indo, Erren.
— Está da mesma forma de sempre — disse ela. — Eu vou
para lugares, toco música para eles e eles sofrem. E
machucam uns aos outros, por causa das coisas que eu
mostro para eles.
— Todas aquelas pequenas crueldades humanas. — A
mulher de chifres assentiu, parecendo satisfeita. — Há
tantas delas, não? Como você se sente, vendo tudo que eles
fizeram? Todas as pessoas normais, capazes de coisas tão
terríveis.
Erren não respondeu. Em vez disso, olhou para as próprias
mãos.
— Deixe-me vê-lo — falou a mulher de chifres, o tom de
voz mais sério de repente. Para Erren, era tão impossível
desobedecê-la quanto seria voar pelo céu como um
pássaro, tirou a flauta da bolsa e a segurou. A mulher verde
foi na direção do instrumento, mas mudou de ideia. Ela se
afastou, como um animal escapando de um golpe iminente,
e Erren sentiu a própria vergonha se aprofundar apesar da
raiva que sentia.
— Me desculpe — disse ela.
— Desculpa? Do que isso me serve? — A mulher balançou
a cabeça de leve, e Erren guardou o instrumento. — Você
não precisava de mais carne, caçadora. Não naquele dia.
Sua bolsa estava cheia.
— Eu sei. — As duas já tinham tido aquela conversa
muitas vezes. — Mas era o veado mais bonito que eu tinha
visto. Eu precisava tê-lo.
— Você vê algo bonito e o mata. — A mulher de chifres
olhou para ela, e seus olhos, amarelos, como uma maçã que
ainda não tinha amadurecido, brilharam de raiva. — Vou
mostrar para você o que a morte significa, mortal. O que a
crueldade significa.
— Então, me mate. — Ela se forçou a encarar o olhar
furioso da mulher de chifres. Ela queria se levantar, ficar
cara a cara com ela, mas tinha medo de que suas pernas
não aguentariam depois de tantos dias de caminhada. —
Acabe com isso.
— Não vou matar você. — Ela fez uma pausa, então
recitou uma antiga maldição: — Os mortos dançarão, onde
quer que você vá, e os vivos nunca a machucarão. Não
posso matar você, Erren Keeneye, mesmo se eu quisesse.
— Mas você não é mortal! — Erren acabou se levantando,
derrubando seu pequeno copo de água quente. — Você é
uma deusa! Pode fazer o que quiser.
— Sou apenas um espírito da floresta, caçadora. Mais do
que você jamais será, sim, mas uma deusa intocável? — Ela
apontou para a bolsa de Erren, onde a flauta estava
guardada novamente. — Meu irmão morreu fácil, não? Uma
flecha no coração.
Para isso, Erren não tinha nenhuma resposta. A mulher
com chifres se afastou, e sua luz desapareceu nas sombras
suaves do entardecer.

Dias se tornaram meses. A lua ficou cheia e afinou de novo,


e de novo e de novo, e as estações deixaram de fazer
qualquer sentido, o inverno se debruçando sobre o verão,
primavera virando outono, e tudo de novo. Erren andou e,
em volta dela, o mundo mudou, mas sua pele se manteve
lisa e seus membros, fortes. Ela sentia dor o tempo inteiro,
mas era a dor profunda e familiar do trabalho, algo que
provocava a lembrança intensa dos seus dias como
caçadora nas florestas, não a dos enfermos ou dos idosos.
Os vivos não conseguiam tocar nela nem, pelo visto, a
passagem do tempo.
E o mundo mudou. Ela passou por cima dos restos de
campos de batalha, onde a armadura ainda não enferrujara
e as aves carniceiras ainda se divertiam. Os fantasmas nos
assentamentos perto desses lugares eram barulhentos,
falavam alto, cheios de raiva com a batalha e as injustiças
da guerra. Os prédios ficavam mais altos, mais bonitos; ela
viu torres que pareciam arranhar o céu, tão finas quanto
agulhas, e arenas enormes em que homens e mulheres
competiam corridas em carruagens. Selvas e paisagens
rochosas deram lugar a plantações e pomares, e ela viu
gente usando roupas de todas as cores, sedas finas e
bordadas, gemas e metais preciosos nos dedos, nos
pescoços. As armas também estavam mudando: espadas
frágeis ganharam aço duro, se tornando lâminas
impossivelmente letais de um metal claro que ela não sabia
nomear.
No próximo assentamento a que ela foi, Erren tocou em
um belo salão com seis lareiras, todas mais altas do que ela.
Ela atravessou o mar e tocou para o capitão do navio;
homens e mulheres surgiram da escuridão com alga no
cabelo e enguias no lugar dos olhos. Em um continente
inteiramente novo, ela tocou suas flautas em um anel de
pedras enormes da cor de casca de árvores, e as pessoas lá
a lembraram da mulher com chifres, seus olhos eram claros
e elas eram altas. Eram pessoas bonitas, mas, ainda assim,
quando seus mortos se ergueram da escuridão, seus rostos
se tornaram feios, assustados e irados. Eles sacaram
lâminas prateadas e esfaquearam uns aos outros.
Dentro de uma montanha, Erren tocou sua música para
pessoas que pareciam feitas em parte de pedra para ela.
Suas faces eram sarapintadas como mármore, e todas, até
a menor das crianças, carregavam picaretas nos cintos.
Quando seus mortos terminaram a dança, a luta que veio
depois foi a mais brutal que Erren já viu, e quando enfim
deixou o local, arrastando-se para fora do túnel, lavou o
rosto e as mãos na neve e viu o branco ficar rosado com o
sangue dos outros. Ao terminar, começou a descer a
inclinação, caindo ao lado da trilha, sua barriga se
esvaziando de repente. O sangue, a fumaça, os gritos…
— É demais! — Ela se largou sobre um pedregulho. A
temperatura na lateral da montanha era congelante, mas
não importava. Aquilo não poderia matá-la. — Não posso
continuar com isso. Não posso.
— Mas você deve e vai. — Um punhado de luz quente do
sol à esquerda e a mulher com chifres estava lá. Ela estava
próxima, olhando para baixo com uma expressão que Erren
nunca tinha visto antes. — Estes são os termos da maldição
que caiu sobre você. Tocar para sempre.
— Quanto tempo já faz? — perguntou ela, depois engoliu
em seco. Ficou assustada com o quão partida sua voz
soava. — Pode me falar isso?
— Você quer dizer que pequena parte de “para sempre”
você já completou? Acha que saber disso vai ajudá-la? — O
espírito da floresta franzia o cenho de leve, de mãos dadas
nas costas, como se estivesse envergonhada.
— E quanto à minha família? Todo mundo que eu deixei
para trás. O que aconteceu com eles?
— Erren Keeneye, todo mundo que você já conheceu
abandonou este mundo há muito tempo. Acho que, no seu
coração, você já sabia disso.
Erren deixou a cabeça cair para a frente. Houve uma
época em que era orgulhosa demais para chorar na frente
da mulher de chifres, mas esse tempo também tinha
passado. Soluços abriram caminho pela garganta dela. Por
dentro, ela se sentiu mais próxima ao poço sombrio, e foi na
direção dele avidamente; seria um alívio se perder na
escuridão, mesmo que por apenas algum tempo.
— Eu não deveria estar aqui — disse Erren em algum
momento. — Mesmo você deve ver isso. Meu tempo passou.
Não reconheço mais esse mundo. Tudo mudou muito. É
claro que isso vai além da punição que você imaginou
quando colocou essa compulsão em mim?
A mulher com chifres deu um passo atrás. Verde e cheia
da própria luz de verão, parecia especialmente sobrenatural
contra o fundo cinza, branco e marrom da montanha. Pela
primeira vez, ela pareceu desconfortável.
— Não posso livrar você disso, Erren — falou. A caçadora
ouviu a voz da outra com facilidade, apesar dos ventos
uivantes. — Sou uma coisa mortal e viva, presa a este
mundo como você, e não posso machucá-la. Ou tirar essa
maldição de você.
— Então por que continua vindo me ver? — Erren limpou
com força as lágrimas quentes nas bochechas, furiosa de
repente. O espírito da floresta abriu sua boca para falar,
mas então Erren gritou: — Você já me disse tantas vezes
que eu não entendia o que estava fazendo quando matei
seu irmão, que eu não compreendia completamente o
impacto das minhas ações. Bem, eu acho que você também
não entendia quando criou essa maldição. Quando me
forçou a criar esses tubos dos ossos do seu irmão, você
estava pensando nisso? — Erren apontou para a neve suja
de sangue.
Porém, quando se voltou para a mulher, ela já tinha
desaparecido. O pequeno pedaço de neve onde estivera era
agora uma poça d’água. Erren olhou para aquilo e colocou a
mochila nos ombros. Hora de se mexer de novo.

Os anos passaram, e Erren ficou temerária. Quando tinha


tempo para comer, pedia aos anfitriões a bebida mais forte
que tinham, e bebia o máximo possível antes da vontade de
começar a tocar a flauta a engolisse. Enquanto a plateia se
reunia, ela gritava avisos — embora fossem sempre
ignorados — e, quando as lutas começavam após tocar, ela
corria para o meio delas e ficava lá quanto tempo
conseguisse, esperando que algum machado lançado a
acertasse. Mas nunca aconteceu. Lâminas, flechas, dardos
e, em algum momento, balas, todos conseguiam se desviar
dela, como se Erren existisse em um casulo de segurança.
Certa noite, tarde no último de mil verões, ela tocou sua
flauta sob uma lua cheia no requintado jardim de um
palácio. O lugar estava cheio de flores que se abriam à
noite, e pessoas se reuniam por todos os lados para vê-la,
os rostos iluminados pela luz pastel das lanternas de papel
espelhadas ao redor. Até onde ela conseguira ver, o palácio
pertencia a um jovem príncipe e seus primos favoritos,
sentados em cadeiras douradas de frente a ela.
— Toque para eles! — clamou o jovem príncipe, rindo um
pouco com o primo à sua direita. — Me disseram que sua
música é a melhor que o mundo já viu.
O som fraco da flauta flutuou através do jardim, e a
grama ficou preta, tão cheia de sombras que era como olhar
para um buraco negro. Uma a uma, as figuras emergiram,
os rostos voltados para as estrelas, e cada uma delas era
uma moça. Elas dançaram juntas por um tempo, seus
membros cinzentos se mexendo graciosamente pela
escuridão. Erren ficou tocada por aquilo, pelos seus passos
cuidadosos, e pela maneira como elas se davam as mãos.
Então, quando a plateia ficou agitava, todas elas se viraram
para encarar o jovem príncipe e seu olhar vazio.
A que estava à frente falou por todas:
— Viemos para esse palácio como serventes. Todas
encontramos nossos fins e câmaras secretas aqui. O
príncipe fala docemente e promete muito, mas tem o
apetite de um animal selvagem.
Houve um tumulto. Erren se levantou, enfiando o
instrumento musical na mochila conforme um número
considerável de guardas surgia dos portões internos do
palácio. Evidentemente, o príncipe tinha convidado os
plebeus da sua terra para o jardim, e era essa gente que
dera suas filhas para ele, de novo e de novo. Pela rapidez do
levante, Erren pensou que eles já deviam desconfiar dos
crimes do príncipe por muitos anos, mas nunca tinham
encontrado a coragem para confrontá-lo. Seus fantasmas
dançantes enfim deram o empurrão de que eles
precisavam.
Enquanto saía, pegando os caminhos mais calmos em
direção à cidade, ela viu o príncipe de novo. Suas roupas
estavam rasgadas e seu nariz sangrava. De alguma
maneira, ele tinha se separado dos guardas.
— Você! Barda. Leve-me para a cidade, me ajude a sair
daqui. Vou lhe pagar bem por isso, mulher.
Ela olhou para ele. Pela maneira que estava agachado, o
príncipe com certeza sentia medo, embora seu olhar para
ela fosse direto, confidente. Na cabeça do príncipe, não
havia como aquela mulher desobedecê-lo.
— Você não dá valor a vida alguma, a não ser a sua —
falou ela. — Viu algo lindo e precisava acabar com ele. E
agora, chegou a hora de encarar a justiça. — Ela levantou a
voz para ser ouvida pela multidão que ainda estava no
jardim. — Ele está aqui embaixo! Sozinho! Venham pegá-lo.
Conforme atravessava os caminhos mais calmos até a
cidade, ela olhou para trás para ver a luz pastel das
lanternas de papel, e a mulher com chifres estava lá, um
estranho facho de luz na escuridão. Ela observava Erren, e,
por um estranho momento, Erren teve vontade de acenar
para o espírito da floresta — fazê-la saber que a vira, de
alguma maneira. Mas, em vez disso, Erren deu as costas a
ela e caminhou noite adentro.

Por um bom tempo, Erren caminhou e caminhou e não


encontrou ninguém. Houve longos campos gramados,
montanhas arroxeadas sem-fim, florestas profundas em que
cogumelos cresciam até ficar tão altos quanto árvores; ela
atravessou tudo isso sem ouvir outra voz humana. Pela
primeira vez em sua longa vida, Erren começou a imaginar
se não teria se perdido, mas o sentimento de seguir um
caminho nunca a abandonou, então ela continuou em
frente, os olhos estudando o horizonte por uma fumaça de
chaminé ou pelas familiares estruturas dos homens.
Ele chegou a um lugar onde a terra parecia ter se dividido
em duas. Montes enormes de uma pedra preta brilhante se
erguiam de ambos os lados, e o chão sob seus pés era uma
camada densa de pequenas pedras amareladas — quando
as observou com mais atenção, viu que eram ossos, os
crânios de milhões de animais pequenos. O abismo levava
para o centro do mundo, cada vez mais profundo até o céu
acima dela ficar de uma escuridão azulada profunda e ser
pontuado por estranhas estrelas multicoloridas. O tempo —
sempre uma companhia não confiável na sua jornada —
pareceu ficar completamente livre, e ela não poderia dizer
quanto tempo passou no abismo. Anos, certamente.
Séculos? Parecia bastante plausível.
— Para onde está me mandando?
A mulher com chifres nunca respondeu.
Por fim, ela chegou a um vasto salão com um trono, cheio
de tanques de água tão escura quanto o vinho. Em todo
aquele amplo espaço, havia homens e mulheres de pé,
conversando aos sussurros ou tocando instrumentos
musicais. Mas Erren soube de imediato que eles não eram
pessoas como ela conhecia o termo; cada um deles tinha o
dobro da sua altura, e eles brilhavam com sua própria luz
interior. Alguns tinham a cabeça de animais, e um homem
com uma longa barba dourada tinha um par de asas de
águia saindo das costas. Eles observaram Erren com olhos
que pareciam mais vazios do que os dos mortos.
— E então? — A voz do deus alado ribombou. — Você veio
de muito longe. Vai tocar ou não?
Erren hesitou. O ímpeto de tocar era forte como sempre,
mas parecia absurdo pegar os velhos tubos feitos de ossos
da bolsa quando podia ver harpas feitas de ouro, uma flauta
que brilhava da cor da lua. A música dos deuses a
provocava, a fazia se sentir bêbada. Eu não deveria estar
aqui, pensou ela de novo.
No entanto, ela não conseguiria resistir eternamente.
Sentou-se na frente deles e começou a tocar. A escuridão
veio, como sempre, e aos poucos, aos poucos, novas figuras
começaram a surgir das sombras. Eram tão impressionantes
quanto os deuses que as observavam, figuras enormes de
pele dourada, de pele de ébano, com rostos tão bonitos que
era difícil olhar para eles. Elas dançavam de forma solene e
sem a alegria que era tão natural aos humanos, e, uma a
uma, suas histórias vieram.
O herói que fez a jornada de volta à sua casa após uma
guerra que durou uma década e encontrou a mulher com
que se casara sob um feitiço, abrindo sua cama — e seu
reino — para outro deus.
A deusa que dera o próprio coração para salvar o filho,
apenas para o deus-bruxo queimar o órgão, ganhando todo
o poder dela.
As crianças que foram comidas pelo pai-de-todos, uma a
uma, até que um dia se levantem e o vençam.
Todas as traições, os assassinatos, as violações, tudo foi
revelado, e até os deuses tiveram que permanecer sentados
e ouvir. Erren os observou sobre seu instrumento musical, e
viu os olhares furiosos lançados entre eles, certos rostos
perdendo a cor devagar. Quando terminou, o homem com
as asas de águia olhou para baixo, para ela. As penas dele
estavam ficando pretas.
— Estamos em paz há séculos, mulher, e você nos trouxe
a guerra através das notas de uma flauta puída. Acha que a
deixaremos sair daqui com vida?
Erren riu. A risada pareceu estranha em sua boca, uma
fruta que ela jamais tinha experimentado.
— Nenhum mortal pode me matar — disse ela.
— E o que pensa que nós somos? — perguntou o homem
alado.

Ao menos, foi rápido.


Houve uma sensação de movimento, uma sensação de
queda e uma breve explosão de dor no peito. No instante
seguinte, Erren estava a alguns passos de distância,
olhando para baixo, para o próprio corpo amassado. O deus
alado já passando por cima dela, convocando um vórtice de
luz cintilante na mão estendida. Ele observava um homem
do outro lado do tanque de mármore, que erguia o próprio
tridente. Os deuses largavam seus instrumentos e
procuravam espadas e machados.
Uma voz sua ao lado dela.
— Acabou, então.
A mulher verde estava lá com ela. Erren não ficou
surpresa ao vê-la.
— Finalmente. — O alívio era tão grande que era difícil
compreendê-lo. Em vez disso, ela olhou para o céu. As
enormes estrelas que queimavam ali, azul, e verde, e
vermelho, aos poucos estavam dando seus últimos brilhos.
Um lobo gigantesco, maior do que qualquer coisa que ela já
tinha visto, comia a lua. — O que está acontecendo?
— Apenas o fim de todas as coisas. Podemos ir? Posso
levá-la para bem longe daqui, se quiser.
Erren concordou e pegou a mão da mulher com chifres.
Ela parecia fria contra sua pele.
— Para um lugar quieto, acho. Sem música e sem dança.
— Ah, acho que posso dar um jeito nisso.
Acima delas, o céu se desafazia em pedaços
silenciosamente.
HENRY E A CAIXA DE
MADEIRA
M.R. CAREY

E
u estava sentado do lado da vitrine de uma loja
de caridade em East Barnet quando Henry
Mossop passou pela rua. O meu lugar não era
particularmente bom. O assistente (aquela
coisinha sem noção com cor de vômito) me
colocou bem no canto, entre um vaso tão feio que era capaz
de fazer alguém chorar e um prato em comemoração ao
casamento do príncipe Charles e Lady Diana Spencer.
Eu não olhei uma segunda vez para Henry conforme ele
invadia o meu campo de visão. Ele não era o tipo de pessoa
que convidava segundos olhares. Era basicamente um
punhado de membros bagunçados com uma cabeça no
formato de nabo. Cabelos pretos engordurados que mais
pareciam uma colônia de bactérias. Roupas que
combinavam com uma bela fogueira.
Segundo olhar ou não, Henry tinha uma alma receptiva e,
por sorte, ele demorou tempo suficiente para fazer contato.
Acho que foi o prato que primeiro chamou a atenção dele —
não porque fosse um entusiasta da realeza, mas porque era
um romântico. Ficou com os olhos todos marejados, e
chegou tão perto da vitrine que sua respiração embaçou o
lado oposto do vidro. Dava para ver que “Candle in the
Wind” estava tocando em som surround 5.1 no cinema
perfeito da mente dele.
Dei a volta pelo cinema, encontrei a saída de emergência,
forcei-a para abrir e entrei. Tudo isso levou mais ou menos
dez segundos. O que eu posso dizer? Sou bom nisso.
Ei, Henry, falei. Ei. Olha aqui. Aqui para baixo. Vire à
esquerda depois do prato até chegar no… não, não, você
passou. Volte um pouco para a direita. Mais um pouquinho.
Perfeito. E aí?
Apesar dessa saudação, muito verborrágica para os meus
padrões e cheia de detalhes, Henry olhou para os lados,
para o caso de eu estar falando com alguém atrás dele.
Não, falei. Você. Estou falando com você. Jesus! Henry, eu
usei o seu nome.
— Foi mal.
Esquece. Só, sabe, se concentra um pouco. É importante.
— Hã… Como é que você pode falar? — perguntou Henry.
Eu falo do mesmo jeito que você. Bem, não exatamente
do mesmo jeito. Não tenho boca, claro. Mas formo conceitos
na minha mente usando palavras como um ábaco
semântico e junto tudo em frases inteligentes.
— Mas você é uma caixa!
Não, na verdade, não. É um erro comum. Eu pareço uma
caixa, mas na verdade sou… sabe, preferiria deixar esses
detalhes de lado por enquanto. Eu estava prestes a fazer
uma proposta para você.
Henry coçou a cabeça, o gesto imemorial daqueles que
estão comicamente impressionados.
— Uma o quê?
Uma proposta. Uma barganha. Uma oferta. Um negócio. A
chance de uma vida et cetera e tal. Um pouco faustiana,
mas boa ainda assim. Bem, bom é um conceito complicado,
mas, comparado a esse tipo de arranjo, estou oferecendo o
bilhete dourado.
Henry se agarrou a uma das poucas palavras que tinha
entendido e a estudou da melhor maneira que podia.
— Uma oferta especial?
É, Henry. Isso mesmo. Exatamente. Uma oferta muito,
muito especial.
— O que é, então?
Desejos.
— Desejos?
Isso mesmo. Quer dinheiro? Sexo? Uma assinatura de
graça da Netflix? Mais sexo? Superpoderes? Sexo
selvagem? O que quer que faça jorrar as suas endorfinas,
eu posso selvagemr. Em uma abundância gigantesca, para
ser sincero.
Henry pensou sobre isso. Ou ao menos o mais perto que
consegue chegar de “pensar”. Ele não era exatamente um
campeão nessa atividade em particular.
— Você é uma fada? — perguntou ele.
Puta merda, pensei. Me dei bem. Mas meus termos e
condições são restritos. Não posso mentir. Não, Henry. Não
sou exatamente uma fada. Sou meio que parecido com isso,
mas… é, não, nem um pouco parecido. Sou diferente.
Completamente diferente. Água e vinho.
Henry olhou de forma suspeita para mim. Um olhar que
dizia que ele não era o tipo de homem que se enganava por
caixas falantes com propostas de vendas escorregadias e
credenciais duvidosas.
— O que você é, então? — questionou ele.
E, como ele perguntou, eu tinha que responder. Sou um
demônio.
Aqui é o vai ou racha para algumas pessoas. Henry podia
ter dado sebo nas canelas e se mandado, e eu teria deixado
ele ir. Não dá para forçar essas coisas. Ainda mais quando
sua extrusão material ficou presa na forma de uma caixa de
madeira com uma galinha e uns pintinhos (muito mal)
desenhados na tampa. Não estou equipado para fazer
perseguições em alta velocidade. Não neste plano. Se você
me encontrasse nos campos de Tártaro, seria outra coisa. E
o encontro seria breve.
Mas Henry não correu. Ele apenas assentiu. Sua
expressão vazia não mudou.
O consentimento é importante nesses assuntos, então
tentei de novo. Um demônio, falei. Sabe como é. Como em
diabo. Capeta. Cria do inferno. Esse tipo de coisa.
— Tá bom. Mas você concede desejos do mesmo jeito que
uma fada.
Sim. Até melhor que uma fada. Nosso pacote atual inclui
desejos ilimitados. Dispensamos o teto usual de três para
fazedores de desejos especiais como você. Você pode até
desejar mais desejos, embora, como a sua base é infinita,
provavelmente já tem todos de que pode precisar. Nós
tambémovemos a restrição temporária de desejos que
alteram a linha do tempo. Você pode bagunçar o tempo-
espaço à vontade.
Henry juntou as mãos. Seu rosto inocente estava
impregnado de uma animação crescente.
— Uma fada na caixa! — disse ele. — Que maneiro! Que
maneiro!
Demônio. Então vamos fechar o negócio, Henry. Entre na
loja e me compre. Eu custo quatro libras e noventa e nove
centavos, mas você pode recuperar isso imediatamente ao
desejar o dinheiro de volta. Eu não ia querer que você
ficasse andando por aí sem dinheiro no bolso. Vamos.
A palavra “bolso” — um belo substantivo das antigas que
denota uma coisa física — causou uma reação nele. Henry
procurou nos seus vários bolsos por notas e moedas, por fim
recuperando um amontoado razoável.
— Isso aqui dá? — perguntou ele.
Dá, Henry. Você tem trinta e cinco e mais uns trocados aí.
É só dar para a mulher a nota azul que ela vai te dar um
centavo de troco. Além de mim. Ah, mas Henry, antes de
você completar a compra…
Ele estava quase entrando na loja. Então parou.
— O quê?
Eu sou um demônio, mas não sou o demônio de Maxwell.
Entende o que eu quero dizer?
Ele balançou a cabeça.
— Não.
Ah, tudo bem então, a gente vê isso depois. Agora faz o
que você tem que fazer, homem. Vamos fechar negócio.
E assim foi. Fiquei orgulhoso do carinha. Ele negociou a
transação sem titubear, e até ganhou uma sacola plástica
para me levar para casa. Tecnicamente, aquilo deveria ter
custado mais cinco centavos, mas a mulher no balcão não
viu por que insistir naquilo. Ela sentiu pena de Henry, vendo
ele como alguém intrinsicamente inofensivo e basicamente
à deriva nas marés da vida. Eu tinha presumido a mesma
coisa, mas, enquanto eu queria formar uma ligação
parasítica com ele a fim de explorar aquela ingenuidade
para os meus próprios indizíveis fins, ela só se sentiu um
pouco matriarcal. Acho que seria um tédio se fôssemos
todos iguais.
Assim que chegamos à casa de Henry, eu o encorajei a
fazer um test drive, por assim dizer. Uma coisa pequena,
falei. Para ter certeza de que funciona. Ok, disse Henry. Ele
apertou bem os olhos e desejou um peixinho-dourado. Um
nanossegundo depois lá estava ele, nadando por aí. Henry
não tinha desejado um aquário ou água, mas dei isso para
ele mesmo assim — e também alguma areia e pedras para
cobrir a parte de baixo, uma luz LED azul para dar um pouco
de atmosfera e um filtro no formato de um galeão espanhol.
Eu podia ter feito o peixinho-dourado sufocar até a última
das suas respirações inúteis no chão de linóleo — o gambito
da literalidade levada às últimas, como chamamos —, mas
isso é para perdedores. Quer dizer, é divertido no início, de
um jeito meio pastelão e estúpido, mas faz com que não
tenha muito retorno. Eu queria que Henry confiasse em mim
ou, pelo menos, confiasse no processo. Que ele sentisse que
podia ir atrás do filão de ouro.
Enquanto isso, a uns continentes de distância, a bicicleta
de um indiano que trabalha com tecidos perdeu a roda da
frente quando descia uma ladeira. O pobre coitado caiu de
cara no chão e um carro atropelou ele antes de conseguir
parar. Uma verdadeira bagunça, vou te dizer.
Sem saber deste interessante drama humano, Henry
gargarejou de felicidade.
— Vou chamar ele de Goldy! — falou.
Por mim, pode chamá-lo até de Ivan, o fodidamente
Terrível, pensei. Só continue com os desejos.
O que ele fez. Conforme eu esperava, a primeira
demonstração, por mais modesta que fosse, foi suficiente
para dar tratos à bola. Em pouco tempo, Henry pediu outro
peixinho-dourado, uma televisão OLED, uma poltrona
reclinável em frente a esse televisor, mais dois peixinhos-
dourados, uma coleção em DVD dos trabalhos de Oliver
Postgate (Nogging the Nog, The Clangers, Bagpuss, todos os
clássicos) e uma refeição de salsichas e batatas fritas
seguida por arroz-doce. Ah, e algum dinheiro. O suficiente
para sobreviver, o que eu interpretei com alguma liberdade.
Há alguns meses, ele tinha sido demitido do trabalho
(coloque aspas aqui) limpando privadas no shopping Spires
e estava tão perto da falência que não fazia diferença.
Isso ainda era coisa pequena, para falar a verdade, mas
coisa pequena pode ter grandes efeitos se você fizer a coisa
certa. Um fusível explode no subúrbio de Cape Town. Na
escuridão, alguém tropeça e dá um grito. Uma pedra
estraçalha uma janela. Antes mesmo de perceber, você já
está até o joelho de dano colateral. Eu já fiz isso antes, se
ainda não ficou claro.
Eu passei a conhecer Henry muito bem naquele tempo,
afinal, éramos colegas de quarto. Vivíamos sob o mesmo
teto, dividíamos todas as balbúrdias da vida de uma
maneira que daria uma excelente sitcom. Fiquei sabendo do
pai horrível dele (abusivo, e então abominável, e então
ausente), a merda que ele teve que aguentar dos colegas
sociopatas da escola, a mãe dele, que foi intempestiva…
vou te poupar dos detalhes. É tão chato quanto parece. O
cara era um saco de pancada com um rosto. Boa matéria-
prima, companhia horrorosa. Eu sofro pela minha arte, é
tudo que vou dizer sobre o assunto.
Mas agora nós estávamos realmente pegando o jeito. Isso
sempre acontece, com desejos ilimitados. Toda aquela coisa
dos três-desejos-e-acabou foi criada com a intenção de
deixar o fazedor de desejos em uma zona de consequências
não intencionais e deixá-lo lá. Eram tempos mais simples.
Assim que conseguimos entender as letras miúdas das leis
da termodinâmica, redefinimos nossos objetivos.
Não que Henry estivesse morrendo de vontade de fazer
coisas que não podia fazer, na verdade. Longe disso. Ele
precisava de muitas cotoveladas de leve e persuasão no
caminho. Então, Henry, falei, mais ou menos três dias
depois. Me diz uma coisa.
— Pois não, caixa?
Essa casa é bem grande para um cara só. Você sempre
morou aqui sozinho?
— Não, minha mãe morava aqui comigo.
Saquei. Caramba, foi difícil quando ela morreu?
— Eu senti muito a falta dela. Ainda sinto. Ela sempre
cuidou de mim.
Claro.
— Eu tinha uma cadela também. O nome dela era
Princess. — Seus olhos ficaram esbugalhados. — Ah! —
disse ele. — Ah!
O que foi?
— Eu poderia… Eu poderia desejar…
Qualquer coisa, cara. Qualquer coisa mesmo. É só pedir.
Saiu tudo de uma vez.
— Eu desejo que Princess volte à vida!
Francamente, eu teria preferido a mãe, esse era o meu
objetivo. Mais energia para brincar, porque a linha de tempo
de um ser humano é um negócio maior, mais complicado.
Mas um cachorro é melhor do que nada. Princess apareceu
no meio da sala, o rabo se movimentando como um
metrônomo peludo em prestíssimo, e correu para o colo de
Henry.
Em outro lugar, ao mesmo tempo e não por coincidência,
um sumidouro engoliu uma casa em Buenos Aires. Eu queria
fazer isso há um tempo. O cara que morava na casa era
meio que um santo secular, com uma alma límpida, limpa e
generosa, o que me deixava irritado para cacete.
Muito mais importante era que o pedido de Henry abria a
janela da linha de tempo alternativa. Voltei para o passado e
mexi em uma coisinha ou duas — a maior delas foi a
Ermächtigungsgesetz no Reichstag da Alemanha de 1933,
que agora fora aprovada com folga, em vez de perder por
um voto. Abracadabra! Uma guerra mundial que nunca
tinha acontecido agora, de repente, tinha. Os caras maus
perderam, mas conseguiram dar uns socos antes de cair, e
as consequências continuaram por décadas. Eu estava
mandando bem.
Henry podia ser mais devagar que melaço em cima de
uma geleira, mas estava começando a ver pelo menos
algumas das possibilidades infinitas. Se podia trazer sua
cadela de volta, podia ter alguns dos confortos de outrora
também. Ainda estava inseguro demais para trazer a
mamãe de volta dos mortos. Talvez ele tenha assistido a
uma reprise de “The Monkey’s Paw” no Thirty-Minute
Theatre quando era moleque, e aquilo deixou nele uma
sensação vestigial de como aquela transação poderia dar
errado. Mas ele podia e desejou alguns brinquedos perdidos,
bichos de estimação mortos e as neves do caralho de
outrora. Os bichos de estimação em particular foram um
desafio para mim. A casa estava cheia de cachorros, gatos,
hamsters e periquitos, alguns dos quais tinham sérios
problemas ao usar o banheiro e não respeitavam um
acabamento envernizado.
Mas aguentei tudo isso com uma paciência filosófica. As
consequências negativas eram minhas, e o céu era o limite
agora. Literalmente. Enchi a atmosfera com gases de efeito
estufa, girando o mundo em uma linha do tempo em que a
energia renovável só era descoberta tarde demais e a
maioria das pessoas a ignorava. A biosfera só apanhava,
eventos climáticos catastróficos estavam acontecendo dia
sim, dia não e a diversão estava só começando.
Ao mesmo tempo, fiz alguns indivíduos intolerantes e
demagogos que pregavam o ódio avançarem nas suas
carreiras, dando a eles as plataformas que eles precisavam
para divulgar suas mensagens para o maior número de
pessoas. O discurso racional saiu de moda e foi jogado no
lixo. Os fatos se tornaram irrelevantes. Materialistas e
charlatões foram reverenciados como deuses. Foi uma coisa
incrível.
Talvez eu tenha exagerado um pouco. Pensei que Henry
estava perdido demais no seu zoológico cada vez maior
para notar o estado em que o mundo se encontrava. Mas,
uma manhã, percebi que ele olhava pela janela com o que
às vezes é chamado de cenho franzido. Ou, no caso de
Henry, tobogã de piolho franzido.
Qual é o problema, meu chapa?, perguntei a ele.
— Todo mundo está tão triste, caixa.
É a condição humana. Não se preocupe com isso.
— Mas eles estão mais tristes do que costumavam ficar.
Isso não é bom, pensei. Nem um pouco. É melhor
encontrar algum jeito de mudar de assunto antes que…
— Por quê, caixa? Por que eles estão tão tristes?
Tarde demais. Assim que ele fez a pergunta, eu não tinha
escolha. Termos e condições etc. No tocante, eu era
dominado por ele, sob juramento. Por sorte, pensei, a
Maravilha Descerebrada aqui não era nem um pouco
preparada para o passeio que a gente ia ter. Ele
simplesmente não tinha o kit de cognição.
Bem, falei, é o seguinte, Henry. Lembra quando nos
encontramos pela primeira vez. Eu te falei que era um
demônio.
— Eu lembro.
Mas eu também falei que não era o demônio de Maxwell.
Eu estava tentando encontrar uma maneira simples de
explicar um conceito dificílimo. É sobre entropia. Eu posso
explicar isso sem problema, mas duvido que você entenda
uma palavra.
— Me conta!
Então tá bom. Senta aí e abra as orelhas, cara. Faça o seu
melhor.
Henry realmente fez o seu melhor para parecer atento.
Ele ficou ridículo.
Maxwell era esse cara, sabe? Físico. Matemático. Adorava
se masturbar em público, mas isso era de se esperar.
Ninguém nunca pegou ele fazendo isso. Enfim, ele se
interessou pela segunda lei da termodinâmica. Aquela que
diz que as coisas acabam e não tem como voltar atrás.
Maxwell tentou inventar uma forma de voltar atrás. Na
minha experiência, a masturbação nunca dá em nada de
bom. Ou, mesmo quando dá, deixa tudo uma zona para
limpar depois. Pensando nisso, esse é um bom exemplo da
lei da termodinâmica quanto qualquer outro. Em um
sistema fechado, a entropia — a desordem, a
disfuncionalidade, a bagunça — sempre deve aumentar.
Não é por coincidência que as estrelas queimam até apagar,
e que os quarks parem de girar, e que seu freezer desmaie
e morra durante uma onda de calor. É a natureza das
coisas. É assim mesmo.
Mas então, diz Maxwell. Vamos colocar uma caixa com
dois compartimentos. Átomos indo de lá para cá em todas
as direções. Um sistema turbulento. Uma tempestade de
merda. Que nem o seu quarto, Henry, mas sem o ursinho de
pelúcia caolho. Ou deixo o urso lá, se isso te ajuda. É só um
experimento da mente.
Agora vamos colocar um alçapão no meio da caixa, na
parede que separa os dois compartimentos. E um demônio,
sentado bem do lado do alçapão, com sua mão cheia de
garras na maçaneta. Ele pode estar segurando o seu
ursinho, se você quiser. Sempre que um átomo passa perto
desse carinha, ele escolhe se vai deixar ou não o átomo ir
para o outro lado. Se for rápido — e, portanto, quente —, ele
abre a porta. Se for devagar, e assim frio, ele dá um gelo no
átomo. A porta continua fechada.
E então, com o tempo, átomo por átomo, a caixa meio
que se resolve sozinha. Metade dela fica quente, a outra
metade, fria.
— Por que isso importa? — questiona Henry.
Fiquei surpreso. Parecia uma pergunta pertinente.
Assustador. Só um acidente, no entanto, com certeza.
Importa, Henry, porque a entropia diminuiu. A ordem foi
criada sem gasto de energia. É meio mágico. Um milagre
amigável. Significa que o universo não precisa terminar
como porra congelada com merda para tudo quanto é lado.
Tem uma chance de que ele fique bem, afinal.
Mas — e me acompanhe aqui, Henry — eu não sou esse
demônio. Sou um tipo completamente diferente de
demônio. Eu gosto da entropia. Cacete, eu amo essa coisa.
Você pode dizer que sou uma fábrica de entropia. Enquanto
o demônio de Maxwell tira o pó dos enfeites sobre o
aparador e leva o lixo para fora, eu destruo o aparador com
um cutelo e coloco fogo no lixo. Está me entendendo?
Henry franziu o cenho, como se estivesse tentando muito
me entender.
— Não.
Caramba, que alívio. Um sim teria me deixado bem
preocupado.
Então, Henry, olha, falei. Eu concedo desejos, certo? Isso,
de um modo, é antientrópico. Ou poderia ser. Reorganiza o
universo de acordo com os desejos de um dos seus
detentos atuais, o que aumenta a ordem. Tenho que
reconhecer que, em geral, esse tipo de coisa é gasto com
ninharias. Mas, intrinsecamente, é a porra de um negócio
incrível. Quem não ia querer um pouco disso? Dá para
entender por que as pessoas aceitam. Mas o coice é o que
mata.
— Como assim, coice? — pergunta Henry, com o mesmo
olhar de intelectualidade constipada.
É como de uma arma, Henry. Quando você atira uma
arma e cai de costas no chão. A energia para mover aquela
bala pequenininha por mil metros é mais que suficiente
para mover um objeto muito maior — você —, fazendo-o dar
uma cambalhota hilariante até cair de bunda no chão. Eu
faço isso. Só que faço melhor. Toda vez que atendo a um
pedido, jogo uma maldição. E a maldição é mais ou menos
mil vezes maior do que o pedido. Eu uso o poder
probabilístico afrouxado pelo desejo para bagunçar com o
mundo inteiro em uma escala que… não, não devo me
gabar, mas é coisa boa. O que, é claro, significa que é coisa
ruim. Coisa ruim que me deixa excitado.
Foi um discurso propositalmente longo, pois eu sabia que
a atenção de Henry era curta. Mas depois que terminei,
dava para ver, pelos músculos que continuavam a se mexer
na cara dele, que Henry estava tentando pensar.
Não se preocupa, Henry, falei. Por favor, não se preocupa.
Eu sei o que Oscar Wilde disse. A ignorância é como uma
fruta exótica delicada. Toque nela que ela vira merda.
— Mas… — disse Henry.
Não, cara, não. Não faz isso consigo mesmo. Só pede
alguma coisa bem legal, e deixa o seu cérebro ficar quieto
de novo. Não dá para ter bichos suficiente, né?
— Não, mas…
Ma-ma-ma-ma-muu-muu-muuáá! Vamos nos concentrar
naquilo que fazemos melhor. O que te deixaria feliz agora? É
só me dizer que eu cuido disso.
— Mas se me deixar feliz faz com que todo mundo fique
triste…
Merda! Quebrei o Henry. Como eu consegui fazer isso? Ele
era um modelo único de estupidez de alto impacto.
Não, insisti. Henry. Me escuta. A infelicidade é uma
condição humana. Se você não fizer com que aquelas
pessoas se sintam miseráveis, elas vão achar que tem algo
faltando. E se não for isso, confie em mim, vai ser outra
coisa. Ei, se lembra daqueles descaralhados que torturaram
você no colégio? Bem, multiplique eles por um bilhão e você
tem a raça humana. Você não deve nada a eles, exceto
talvez um pouco de vingança.
Henry balançou a cabeça, o que significava que ele tinha
a temeridade e os até então ignorados culhões para
discordar de mim.
— Minha mãe dizia que você precisa sempre ajudar as
pessoas em necessidade. Ela disse que somos colocados
aqui nesse mundo para ajudar uns aos outros.
Ela disse? Caramba! Que filósofa de merda sua mãe era.
Agora, vamos voltar a ser amigos. Faça um pedido. Um bem
grande. O que me diz?
Henry não respondeu. A cara dele parecia a de uma mula
com um cacto preso na bunda.
Henry, falei. Você tem que fazer um pedido, cara. Vai se
sentir melhor com isso, e eu também.
Mais reflexões de mula/cacto. Eu estava prestes a intervir,
quando Henry me interrompeu.
— Eu desejo…
Finalmente! Você tinha me deixado preocupado, meu
chapa. Vamos ouvir.
— Eu desejo ser inteligente o suficiente para entender
tudo que você me disse.
Ah, merda.
Não é algo condicional, para o caso de você estar em
dúvida. Não dá para conceder um desejo e ignorar o outro.
O sistema não é feito dessa maneira. As condições padrão
dão início e a energia flui. Um milhão de pequenas rodas
dentadas começam a se mexer. A realidade se transforma
para um novo formato, com um monte de cliques e claques
e o ocasional zumbido da probabilidade escapando.
O entendimento impregnou o rosto de Henry. Não foi
bonito.
— Você me usou — disse ele.
Essa é uma forma pouco lisonjeira de você colocar, Henry.
Nós usamos um ao outro, claro. Eu pude tirar o mundo do
lugar, você ganhou bichinhos. Mas se não estiver feliz com o
negócio, pode acabar com ele a qualquer momento. Agora
mesmo, inclusive. Você decide.
— Você me deu presentes triviais e conglobou… o quê, o
resíduo existencial? Então usou esse poder para piorar
significativa e irreversivelmente a vida de milhões de
pessoas.
Bilhões, você quer dizer. Gostei dessa frase, resíduo
existencial. É uma boa forma de colocar. Mais uma vez,
você pode anular sua barganha a qualquer hora, e eu não
vou ficar chateado. O que me diz? Seguir caminhos
separados?
— Não.
De novo, merda. O cérebro turbinado de Henry estava
preparando a mira e eu era o alvo. Havia uma razão para eu
ter escolhido ele em primeiro lugar. Ele era… como é aquela
frase do Lênin? Ah, sim, um idiota útil. E lá estava ele agora,
tendo pensamentos profundos. Bem para cima de mim. Não
gostei nem um pouco daquilo.
— Então, um pedido que propicia um pequeno aumento
de felicidade para uma pessoa cria um efeito do tipo coice,
uma maldição, que propicia miséria a milhões.
E agora eu vejo que esse tipo de coisa não funciona para
você. Eu respeito isso. É só falar, Henry, que eu me mando.
— Funcionaria da maneira contrária? Se eu fizesse um
pedido que me causasse dor, o coice seria um aumento
geral de felicidade?
Merda, pela terceira e última vez.
Sim, falei. Eu não podia mentir. Não podia esconder nada.
Ele tinha encontrado a minha kryptonita.
Henry se sentou. Ele encarou a caixa de madeira que é
minha extensão material. Correu o dedo pela beirada da
minha tampa.
— Acomode-se — falou ele para mim. — Vai ser uma longa
noite.
Ele não estava brincando. Foi mesmo uma longa noite,
uma longa manhã, uma longa semana, um longo… As
coisas ficaram longas. Vamos deixar assim.
Minha relação com o Henry nunca foi a mesma depois
daquele dia fodido terrível. Quer dizer, tem seu lado bom.
Eu posso assar o rabo daquele filho da mãe espertinho,
tanto de forma figurativa quanto literal. Sempre que meu
ódio profundo por ele e pelas coisas que ele me obriga a
fazer ficam demais para aguentar, eu posso descarregar
cada grama de frustração nele. Sem regras, sem limites.
Mas sempre que eu faço isso, o mundo fica mais perto da
Utopia. Ele sofre, e o coice gera ondas de coisas fortuitas
descobertas por acaso, alegria e caridade. A arquitetura da
realidade se redefine, sem descanso, em algo
surpreendente, maravilhoso e inspirador, um templo
onidimensional que canta em harmonias angelicais quando
os ventos do limbo batem em suas vistas marmorizadas. Me
dá vontade de vomitar.
Os outros demônios riem de mim pelas costas. Lá vai o
Bondoso Dois-Cascos, dizem eles, com sua varinha mágica
e seu tutu cintilante, levando presentes para todos os
menininhos e todas as menininhas. O animalzinho de
estimação de Henry Mossop. O arcanjo Burraldo. A fada no
topo da árvore de Natal.
Tenho bebido um bocado. Dois ou três bares por noite.
Qualquer lugar em que sirvam uma ou dez cervejas para
uma caixa de madeira. Noite passada, eu encontrei o
demônio de Maxwell e a gente entornou umas juntos.
Ele me falou que nunca foi sobre termodinâmica para ele.
Que ele estava fazendo o que amava.
PELE
JAMES BROGDEN

Q
uase em casa — ela quase chegou em casa.
Hannah não conseguia identificar o
momento exato em que percebeu o shlop-
shploft dos passos se arrastando na calçada a
uns dez metros dela, seguindo-a. O ônibus
noturno tinha deixado ela perto das vitrines claras como
aquários e postes da rua principal, e ela virara a esquina na
rua dela, que estava sempre perfeitamente iluminada, sua
casa a apenas algumas portas de distância. Se fosse um
pouco mais longe ou estivesse mais escuro, ela teria
pegado um táxi. Não parecia impossível que alguém
pudesse ter percebido a existência dela por tempo
suficiente para segui-la.
A não ser que a pessoa, quem quer que fosse, estivesse
no ônibus também, de olho nela o tempo todo.
Ela tentou se lembrar da aparência dos outros
passageiros, mas tinha sentado na frente, perto do
motorista, um lugar bom e seguro.
Shlop-shploft. Shlop-shploft.
Ventava muito e fazia frio, as correntes de ar castigando o
seu casaco. Ela caminhou mais rápido, apertando o passo,
mas sem correr, disse a si mesma, diante das casas
geminadas com janelas de sacada e luz escapando das
cortinas fechadas. Os jardins eram minúsculos; se fosse
necessário, ela poderia se esticar sobre os portões, bater na
janela e pedir ajuda. Mas obviamente era só um velho
inofensivo atrás dela, e que tipo de idiota ela ia parecer,
batendo na porta de um estranho por isso?
… shlopshploftshlopshploft…
O passo dele ficou mais depressa para se igualar ao dela.
Ela colocou a mão no bolso do casaco, pegando o
chaveiro de casa e colocando cada chave entre os dedos.
Mais duas portas — número 47, que ainda estava com os
pisca-piscas de Natal, e então a número 49 com sua lata de
lixo comprida que se espalhava pelo lugar como um
beberrão e a cerca baixa que sempre tinha lixo nela — e ela
estaria em casa.
— Hannah! — gritou ele.
Deus, como ele sabia o nome dela? Ela empurrou o portão
com as coxas, deu três passos pelo caminhozinho até a
porta, a luz de segurança se acendendo de repente, a chave
na outra mão escorregando para dentro da fechadura,
quando ele gritou de novo.
— Hannah, espere, por favor, eu preciso falar com você!
E então, subitamente, a coisa mais estranha de todas: ela
reconheceu aquela voz.
Ela parou na hora de virar a chave, e olhou para trás
sobre o ombro.
— Robin?
Ele parou na calçada, as mãos enfiadas nos bolsos, o rosto
oculto pelas sombras de um capuz pesado e escuro. Uma
lufada de vento os rodeou, fazendo o lixo na rua dançar. Ele
assentiu.
— Robin, é você? Cacete, Robin, você me deu um puta
susto.
— Eu sinto muito — murmurou ele. Aquilo era estranho; o
Robin Saunders que ela conhecia nunca teria pedido
desculpas com um tom tão humilde. Ele parecia e tinha o
cheiro de uma pessoa que estava dormindo na rua. Agora
que olhava com mais atenção, ela viu que ele usava uma
calça de moletom amassada e tênis imundos com buracos
nas solas — roupas que o Robin de antigamente preferiria
morrer a usar — e o odor que vinha dele era pungente e
encorpado. — Era isso que eu queria falar para você — disse
ele. — Que eu sinto muito. Por tudo.
— Bem… — Ela percebeu que não tinha palavras. — Que
bom, então. — Ela virou a chave e começou a abrir a porta.
— E também… — falou ele. Robin deu um passo adiante,
mas pareceu ter se arrependido da sua avidez e voltou para
o lugar em que estava, baixando a cabeça. Era isso ou ele
estava tentando ficar longe da luz. Ela ainda não conseguia
ver o rosto dele. — Queria dizer que fiz uma coisa para
você. Um presente. Para me desculpar.
Ela continuou a abrir a porta, entrando um pouco.
— Você me fez o quê? — As palavras dele não faziam
sentido. — Eu não vejo você há seis meses e agora você
aparece e… Me desculpa, o quê? Um presente? Do que você
está falando?
— Por favor…
Outra lufada de vento soprou, fazendo escorregar o capuz
dele por um momento. Robin colocou de volta, mas Hannah
conseguiu ter um vislumbre dos seus traços, o que a fez
engasgar de choque e dar alguns passos atrás pelo batente.
Ele parecia estar sofrendo de algum tipo de doença que
destruía a sua carne, pedaços da pele com buracos e
crateras, brilhando com tecido cicatrizado, a não ser que…
bom Deus, aquilo era osso?
— Deus do céu, Rob, o que aconteceu com você?
Ele se afastou, puxando a borda do capuz sobre o rosto o
máximo que podia, e então ela notou que ele estava usando
luvas, como se o que quer que estivesse o acometendo não
atacasse só o rosto, mas o corpo inteiro.
— Desculpa — falou ele. — Eu não deveria ter vindo. Foi
um erro.
Ele fez menção de ir embora, e ela realmente deveria ter
deixado ele ir, mas tinha alguma coisa tão patética ali
comparando com a arrogância do homem que ela
conhecera que ela se viu sentindo pena dele e, apesar de
tudo, ela falou:
— Espera!
Ele parou, se curvando contra o vento.
— Não posso deixar você entrar — disse ela. — Já está
tarde e eu tive um longo dia, e é… Não, hoje não.
— Eu entendo. — Um carro passou e ele se escondeu da
luz dos faróis.
— Mas volte amanhã para a gente conversar.
Ele assentiu.
— Eu quero saber… — Ela parou de repente. Era coisa
demais para tratar ali, na soleira da porta. — Precisamos
conversar. — Era idiota, mas era tudo que ela podia
oferecer.
— Obrigado, Hannah — murmurou ele, e foi embora.
Ela entrou, trancou a porta e, na mesma hora, foi para a
sala espiar por uma fresta nas cortinas para ver se ele ainda
estava parado na rua, talvez escondido nas sombras da
casa vizinha. Mas ele parecia ter desaparecido de verdade.
Com um grande suspiro de alívio, ela largou a bolsa no hall
e foi até a cozinha apertada onde sabia que havia uma
garrafa de vinho tinto pela metade sobre o balcão. Ela se
serviu uma taça generosa, levou-a junto com a garrafa para
a sala, se jogou no sofá e então ficou sentada lá, encarando
o silêncio são e ordenado da sua casa vazia.
— Merda — disse ela calmamente.
Tomando o vinho com goles pequenos, ela pegou o
telefone e começou a ver as fotos antigas do seu Instagram.
Era dito que uma semana pode ser um longo tempo na
política, mas seis meses eram uma era geológica nas mídias
sociais. Ela tinha deletado todas as fotos dele e aquelas em
que eles apareciam juntos — os dois tinham saído poucas
vezes, então não tinham tantas fotos assim —, mas lá
estavam eles com os amigos, ao lado de comentários
parabenizando-a, como “Garota ele é LINDO você se deu
BEM”, “Ah para, ele deve ser gay” e “Ele tem irmãos?”. Ela
precisava admitir que ele era (ou tinha sido, na verdade)
fantasticamente bonito: olhos cor de avelã, cabelo escuro
despenteado com estilo, pele perfeita da cor de rabanada
frita de leve e um corpo torneado, mas não musculoso
demais. Seus últimos encontros antes de Rob tinham sido
com caras cujas ideias de conversa durante o jantar
pareciam ser falar apenas sobre si mesmos, o que eles
odiavam nos seus trabalhos, times de futebol ou seus
programas de TV favoritos, programas que ela nunca tinha
ouvido falar. Ela tinha ficado tão surpresa ao se ver na
companhia de um homem que prestava atenção de verdade
nela e parecia querer alguma coisa que confundiu a vaidade
dele com autoconfiança e ignorou todos os alarmes até ser
tarde demais.
Conforme ela percorria as imagens, com aquela mesma
mistura de confusão e culpa, percebeu que estava sentindo
uma comichão no joelho esquerdo e que já coçava
inconscientemente há algum tempo. A pele estava
vermelha e descascando, e pedacinhos esbranquiçados se
amontoavam embaixo da almofada do sofá.
— Ah, sua burra — xingou a si mesma. Voltando aos
velhos hábitos mais uma vez. Ela limpou os pedacinhos e foi
para o banheiro no andar de cima procurar pelo pote de
creme para pele.
A primeira vez que ela encontrou Rob foi em uma clínica
dermatológica na Hagley Road. Ela fora fazer um check-up
para a sua psoríase — não que tenha falado isso para ele, é
claro. Dava vergonha e era feio, e, além disso, a
descamação só acontecia em lugares como seus joelhos e
cotovelos, que eram fáceis de esconder, e por que você
falaria para o cara lindo ao seu lado na sala de espera que
você estava ali porque partes de você ficavam caindo como
se você fosse uma espécie de troll nojento? Ela inventou
alguma coisa sobre dar uma olhada em uma verruga
suspeita, porque ele tinha mostrado a ela uma foto em seu
celular daquele antigo desenho do cara no consultório
médico que tinha em seu ombro uma pequena criatura
peluda usando sobretudo e óculos escuros, e eles riram. Por
acaso, ele explicou que estava lá para remover uma verruga
e mostrou uma mancha quase imperceptível no lado
esquerdo do queixo. Ela pensou que aquilo não parecia sério
o suficiente para precisar de atenção, mas ela não era
médica, era o dinheiro dele e quem era ela para julgar?
Quando ele perguntou se ela ia fazer alguma coisa depois
da consulta e se eles podiam tomar um café juntos, ela
quase recusou porque ele era muita areia para o seu
caminhãozinho — mas, então, ela viu que uma parte
pequena e corajosa dela tinha tomado controle da situação
e que ela estava assentindo e dizendo que sim, seria ótimo,
obrigada.
Então teve o café, e, uma semana depois, o jantar, e três
jantares depois teve o concerto na Orquestra Sinfônica. Ele
era analista de crédito sênior de uma grande multinacional
que tinha realocado seu escritório britânico de Londres para
as Terras Médias, e ela criava fantasias sobre levá-lo para
conhecer seus pais, porque ele era exatamente o tipo de
jovem bonito e bem-sucedido que a mãe dela sonhava em
ver levando sua filha sem graça para o altar, e exatamente
o tipo de genro com futuro que responsabilizaria seu pai por
sua política de direita inflamada pelo Daily Mail e ainda
seria respeitado por isso.
As fotos dos seus encontros ainda estavam nos feeds dos
seus amigos, como fantasmas. Elas a assombravam com
seus fragmentos de conversas esquecidas, e a pele dela
formigou ao relembrar o leve toque da mão dele no braço
dele conforme Rob a ajuda a sair de um táxi, ou a perna
dele encostando na dela enquanto eles ocupavam seus
assentos no concerto. Ele sempre foi atencioso e respeitoso,
mas, olhando as imagens, ela viu as insinuações do que
estava escondido, como manchas na fachada suave do seu
charme. A maneira como ele inclinava de leve a cabeça
para um lado em todas as fotos, como se soubesse qual era
o seu melhor ângulo e o apresentava instintivamente. A
forma como ele, no final de uma corrida de táxi em que ela
tinha descansado a cabeça no ombro dele, tirou com
cansaço e cara feia um fio de cabelo dela que tinha ficado
na jaqueta dele.
Ele escondia bem, mas era um homem vaidoso. Ela não
tinha percebido exatamente o quanto até a primeira e única
vez em que visitou o apartamento dele.
Eles já estavam se beijando enquanto entravam no hall,
uma das mãos dele na parte de baixo das suas costas e a
outra puxando o zíper do vestido, mas ela conseguiu se
afastar dele por tempo suficiente para perguntar onde
ficava o banheiro; Mistérios Femininos e tudo o mais, disse
ela, torcendo para que tivesse parecido engraçada, mas
com medo de que tivesse sido pedante. Ele sorriu, mostrou
o caminho e falou que estaria na sala, preparando um
drinque para eles.
Como o restante do apartamento e o homem que era
dono dele, o banheiro era decorado com coisas caras e de
bom gosto. Era um banheiro de boxe aberto, com o chuveiro
do tamanho de um prato de jantar, piso de ardósia natural,
torneiras cromadas e um armarinho com espelho sobre a
pia. Ela resolveu suas questões e então, sem qualquer
impulso mais nobre que a curiosidade nua e crua, deu uma
espiada rápida no armarinho. Ela se recusou a assumir para
si mesma que estava procurando por evidências de outra
mulher na vida dele, mas, ao mesmo tempo, sentiu um leve
tremido de alívio quando não encontrou nenhuma. O que
ela encontrou, por outro lado, foi a caverna de Aladim de
produtos para pele masculinos. Havia cremes, lenços,
bálsamos e esfoliantes, misturas químicas para peeling e
loções para controle de oleosidade, cremes de depilação,
loções antibrilho, máscaras purificadoras de carvão de uso
diário e uma coisa chamada sistema hidroenergético
antifadiga. Havia toda uma prateleira cintilante de objetos
de aço imaculados, capazes de deixar qualquer consultório
odontológico no chinelo: tesouras, pinças, alicates, alicates
de cutícula, extratores de cravos, barbeadores (elétricos e
descartáveis) e, na prateleira mais alta, uma coisa que
parecia uma máscara de robô para o Dia das Bruxas, com
fios e até um lugar para colocar pilha. Ela imaginava que ela
usava aquilo à noite, embora torcesse para que não fosse
toda noite — ela pensou que se acordasse ao lado daquilo
iria gritar até não poder mais.
Então o pensamento de estar na cama dele dominou sua
mente e ela saiu do banheiro para voltar de onde eles
tinham parado.
Dez minutos depois, eles estavam no sofá, ela com os
dedos apertando o cabelo dele e a boca junto à dele
enquanto ele subia uma das suas mãos pela parte de trás
da coxa para debaixo do vestido. Ela dobrou o joelho para
cima da perna dele e a mão dele escorregou para trás do
joelho dela antes que Hannah pudesse perceber para onde
estava indo e o que encontraria lá, e sua centelha brilhante
de pânico coincidiu perfeitamente com a exclamação
chocada de Rob conforme ele se afastava rápido.
— O que diabo é isso? — perguntou ele, imperativo.
Confusa e com o rosto vermelho de vergonha, ela se
afastou para o próprio lado do sofá, colocando a saia do
vestido de volta ao lugar.
— É só um pouco de pele seca — murmurou ela. —
Obrigada por mencionar.
Por mais animador que fosse voltar a sair com alguém
depois de tanto tempo, aquilo tinha o efeito colateral infeliz
de fazer a sua psoríase aflorar de novo. O remédio mantinha
quase tudo sob controle, mas não havia como disfarçar a
descamação que seus dedos encontraram. A pele dela
coçava, mas não era nada comparado à humilhação que ela
sentia.
— Isso é mais do que pele seca — respondeu ele,
encarando, acusatório, um único floco esbranquiçado que
havia entre eles no couro escuro do sofá. Ele olhou para a
própria mão, murmurou “Aimeudeus” e correu para o
banheiro, de onde ela conseguiu ouvir o barulho de água
jorrando da torneira.
A humilhação dela se transformou em raiva.
— Não é contagioso, sabe? — gritou ela. — Cristo, Rob,
qual é o seu problema?
— Meu problema?! — gritou ele de volta do outro cômodo.
— E o seu problema? O que é isso, Hannah? O que você
tem?
A essa altura, ela já tinha pegado as suas coisas e estava
indo para o corredor, mas parou na porta aberta do
banheiro. Ela estava diante da pia, esfregando furiosamente
as mãos.
— É psoríase, tá bom? — disse ela. — Eu tenho psoríase,
porra. Feliz agora?
Ele gemeu e esfregou ainda mais forte.
— Como você não me falou que tinha uma coisa tão
grotesca? — inquiriu ele. — Como pôde mentir assim para
mim?
O charme e a educação tinham sumido completamente da
voz dele; ele falava como qualquer babaca bêbado do lado
de fora de uma casa noturna berrando sobre o que achava
ser um direito seu.
— Mentir para você? — A raiva quase virou uma explosão
alimentada pela humilhação, e ela sentiu o coração se
acelerar dentro dela. A condição, leve como o caso dela era,
tinha sido um pesadelo desde que ela podia se lembrar. A
escola fora especialmente ruim, sobretudo as aulas de
educação física. Ela teve que aguentar todo tipo de bullying
e apelidos — “Pereba” tinha sido o mais popular. Cereais
matinais foram colocados no seu cabelo, e raspas de lápis
na comida. Começaram um rumor de que era uma doença
sexualmente transmissível, que ela tinha pegado por ser
uma puta. E na internet era ainda pior. Ela pensou que tinha
deixado tudo aquilo na infância, mas lá estava de novo: o
mesmo rosto horroroso da crueldade mesquinha, só com
umas roupas melhores. Agora a raiva ardia mais forte, bem
abaixo do umbigo, se espalhando e crescendo pela barriga
conforme ela começava a sua.
— Você não faz ideia do que é grotesco! — gritou ela em
resposta. — Você não faz ideia de como é, ter partes de
você caindo. Bem, eu espero que seja mesmo contagioso.
Espero que veja o quanto você é grotesco toda vez que se
olhar no espelho. Espero que veja cada mancha e sarda e
que elas te enlouqueçam até que você tenha que cortá-las
fora da própria merda de pele!
E assim, o fogo dentro dela explodiu em um tsunami que
ia do seu escalpo até seus pés, explodindo em cima dele,
deixando-a vazia, tonta e sem fôlego. Ela não esperou pela
resposta de Rob, apenas saiu do apartamento, mais confusa
agora do que com raiva e vergonha.
Aquela tinha sido a última vez que ela vira ou ouvira falar
de Rob até aquela noite. Terminou seu vinho e foi para
cama, mas ficou acordada na escuridão, se perguntando se
ele estava lá fora na rua de novo, observando. Ela encarou
as imagens no telefone, vendo apenas a ruina que era o
rosto dele, iluminado parcamente pelos postes. Bom Deus,
será que ele tinha seguido literalmente as palavras dela? A
avó dela contava histórias sobre as mulheres da família dela
e as coisas que conseguiam fazer, mas é claro que Hannah
não acreditou nela. Quem acreditaria? A ideia de que ela
podia ter amaldiçoado ele era ridícula.
Porque, se o Rob tinha se tornado aquela monstruosidade,
o que ela era, então?
Ela deu uma olhada nas fotografias de novo, relendo os
comentários e suas próprias respostas, contorcendo-se com
o tom convencido e autoconglaturatório com o qual tinha se
gabado com as amigas sobre o homem lindo que ela
conseguiu pegar. Olha para mim! Tá vendo? Eu sou popular!
Se ele tinha sido um homem vaidoso obcecado com a
própria aparência, o que ela tinha feito além de alimentar
aquilo? O mínimo que ela podia fazer era lhe dar uma
chance de se explicar.
Na manhã seguinte, ela ligou para o trabalho, disse que
estava doente e esperou.
Ela não tinha percebido o quanto estava nervosa até ouvir
uma tentativa de batida na porta. Por mais que os toques
fossem leves, eles a atingiram como se fossem choques
elétricos. Através do vidro esfumaçado da porta, ela viu a
silhueta borrada inquieta, e parou com a mão na maçaneta.
Ela podia ignorá-lo, fingir que não estava em casa e esperar
que qualquer revelação que ele trouxesse desapareceria
com ele. Mas ela precisava saber o que tinha acontecido.
Precisava saber se fora culpa dela, de alguma forma.
Hannah destrancou a porta e a abriu.
Rob ainda estava de capuz, mas não havia como esconder
suas mutilações na luz clara da manhã — na verdade, da
maneira desafiadora que seu queixo estava, parecia que ele
não tinha intenções de escondê-las dela.
Mas, ah, quanto dano tinha sido acometido àquele queixo
e à face acima dele.
O pouco de pele que restava ficava instável entre pedaços
de músculos expostos e tendões, a cartilagem amarelada
marmoreando o vermelho, e os vislumbres de osso nu na
testa e nas bochechas na noite passado não tinham sido
frutos da sua imaginação. Ele não tinha pálpebras, seus
globos oculares estavam nus e não paravam de encarar, e
ela não podia imaginar por que ele não estava
completamente cego. Seus lábios (ela se lembrou do toque
deles e tremeu) pareciam tiras grossas de borracha, e o
nariz era pouco mais que uma cavidade com um resto de
cartilagem. As marcas se estendiam pelo pescoço e para
baixo do colarinho da camiseta manchada; será que o corpo
inteiro dele estava assim? Aquilo explicava por que sua voz
tinha soado tão anasalada e abafada na noite anterior. Ele
parecia uma imitação tosca de um daqueles corpos
plastinados da exibição “Bodyworlds”, feita por um amador
com mãos que não paravam de tremer e a tampa
enferrujada de uma lata em vez de um bisturi. Com tantos
machucados, ele deveria estar na UTI, mas estava ali em
vez disso. Os lábios dele se afinaram em uma coisa cuja
intenção poderia ter sido um sorriso, mas quando ela viu o
trabalho anatômico para fazer com que aquele sorriso
existisse, quase bateu a porta na cara dele.
— Oi, Hannah — disse ele.
— Rob-Robin. — Teve que se esforçar para dizer aquilo.
— Eu sei. — Ele fez um gesto indicando a si mesmo.
Estava usando luvas cirúrgicas cor de lavanda. Era de se
presumir que suas mãos estavam tão ruins quanto o
restante. Ela tentou não se lembrar do toque daqueles
dedos no seu rosto, acariciando sua pele. — Não posso
imaginar como isso deve parecer para você.
Ela fez uma careta.
— Obrigado por me deixar voltar — disse ele. — Não
poderia ter te culpado se você tivesse me mandado me
foder.
Até onde ela sabia, aquilo ainda era uma possibilidade. O
homem claramente não estava pensando direito. Ela não
tinha tirado a corrente da porta.
— O quê… — Ela vacilou, engoliu em seco, tentou de
novo. — Ah, Rob, o que você fez consigo mesmo?
— O que eu fiz? Nada que eu não merecesse, sei disso
agora. Mas foram as suas palavras, Hannah, que me
obrigaram a fazer isso.
— Ah, não. — Ela balançou a cabeça veementemente e
começou a fechar a porta. — Isso não é culpa minha.
— Não, claro que não! Eu sei disso! Não foi isso que eu
quis dizer! Por favor! — Ela tentou fechar a porta, mas ele
colocou o pé para impedi-la. Ainda assim, ela forçou, e ele
resmungou de dor, mas não recuou.
— Vou chamar a polícia — avisou ela.
— Hannah — implorou ele, e a súplica em sua voz era
mais nua do que sua carne arruinada. — Você estava certa!
Absolutamente certa em dizer o que disse! Depois que você
foi embora, eu dei uma boa olhada em mim mesmo, e estou
falando literalmente, e tudo que eu podia ver era feiura.
Cada verruga, cada poro entupido, cada ruga. Era tudo que
eu podia ver, e essas coisas estavam em todo lugar, e eu
sabia que tinha que cortá-las para fora de mim, então foi o
que fiz. Eu fiz isso porque você me mandou fazer! Não
conseguia parar! Continuei cortando e cortando até que
estivesse livre de tudo. Por favor, você tem que entender…
você tem que ver!
— Ah, eu posso ver muito bem — falou. — Tire o seu pé
daí ou juro por Deus que…
— Não!
Ele forçou o espaço ainda mais, arrebentando a corrente,
e então ele estava sob a soleira da porta e no corredor da
casa de Hannah, indo para cima dela com suas mãos
mutiladas em suas luvas cirúrgicas. Ela gritou e tentou
correr, mas, mesmo naquela condição, ele era rápido
demais. Ele a pegou por trás na escada, agarrando-a com os
braços.
— Eu não vou machucar você — disse ele, o fôlego quente
na orelha dela. — Mas também não vou deixar que ignore
isso. Foi você que fez isso. Lá no fundo, você sabe. Você fez
isso comigo. Mas não me entenda mal! — falou ele
rapidamente. — Foi uma coisa boa, a coisa certa, mas você
sabe que precisa ver tudo. Pode correr e chamar a polícia se
quiser, mas já vou estar longe quando eles chegarem aqui,
e aí você nunca vai saber. Ou pode vir comigo e me deixar
mostrar para você. Só estou pedindo uma hora do seu
tempo. Então, nunca vai me ver de novo, juro.
Ele estava sendo honesto e a deixou ir.
Ela correu.
Mas só conseguiu chegar na cozinha, a mão na porta dos
fundos.
Ela parou e olhou para trás. Ele não estava perseguindo
ela. Aparentemente, seus esforços para invadir a casa e
segurá-la tinham lhe custado caro, pois ele estava
encostado na parede, tremendo e arquejando de dor. Ela
podia facilmente escapar e chamar a polícia, ou pegar uma
faca e obrigá-lo a sair da casa dela. Não fez nada daquilo.
Com cuidado, ela voltou para perto dele.
— Uma hora — disse ela.
Ele assentiu, como se até mesmo falar estivesse além das
suas capacidades no momento, e saiu cambaleando da
casa.
Ela o seguiu.
Ele a levou para seu apartamento. Eles seguiram por
becos e ruas secundárias vazias, onde havia menos gente
para vê-lo — embora ele tenha colocado uma espécie de
cachecol em volta da cabeça, de qualquer maneira —, e
passaram pelos fundos do prédio até um conjunto de
escadas que levavam até a porta dele. Ela ficou surpresa
por ele ainda estar morando no mesmo lugar, como se sua
estranha condição devesse ter tornado impossível para ele
manter uma casa, mas percebeu que nunca tinha sabido de
nada sobre seus arranjos domésticos. Até onde sabia, ele
pode ter sido sempre o dono daquele lugar, e nem
precisava de um emprego para mantê-lo. Afinal, ele não
podia estar trabalhando no seu estado atual. Ocorreu-lhe
que ela nunca soube nada de verdade sobre ele. Ela tinha
mesmo namorado ele só porque ele era bonito, porque
chamava atenção e porque ficava bem ao lado dela nas
fotos que seus amigos e sua família iam curtir? Será que ela
era tão superficial quanto ele?
Quando entraram, ficou claro que ele não estava
arrumando nada. Muito longe do apartamento limpo e
elegante que ela vira, esse estava cheio de sujeira e
cheirava como um matadouro.
— Eu não conseguia jogar fora, sabe? — explicou ele,
levando-a por um corredor até uma pilha velha de jornais.
Coisas velozes correram com a aproximação deles,
escondendo-se mais profundamente nas sombras. — Isso
teria sido como uma traição com tudo que eu estava
aprendendo.
— O quê… O que você estava aprendendo? — perguntou
ela, seguindo com cautela.
Ele parou e olhou para trás, seus olhos sem pálpebras
brilhando.
— O que eu era — respondeu, e continuou a conduzi-la. —
Um homem vaidoso e superficial obcecado com a perfeição
da sua aparência externa, mas cego para a feiura interna.
Foi preciso que você me fizesse entender isso, que fizesse
isso aflorar, para que eu mesmo pudesse cortar fora. Mas
jogar no lixo? Não, essa teria sido uma negação ainda pior.
Eles estavam na entrada do banheiro, o último lugar em
que ela o tinha visto como um ser humano normal,
esfregando sua pele em horror e encarando o próprio
reflexo. Uma luz fraca invadia o local através de uma janela
imunda, o suficiente para ver que as torneiras cromadas
tinham perdido o brilho, o piso de ardósia e a porcelana da
pia com manchas velhas de sangue. O armarinho ainda
estava lá — na verdade, provavelmente era a única coisa
limpa daquele lugar, uma oval reluzente feita à mão da sua
superfície suja. Espalhados em volta dele, do lado da pia e
no chão, estavam os objetos enferrujados e sujos de sangue
que habitavam o armarinho, que ele usara para cortar fora
a feiura que a maldição dela o forçou a ver. E, dependurada
em um cabide comum no chuveiro, estava uma coisa que, a
princípio, ela pensou ser um saco de roupas sujas arruinado,
ou a casca descartada de um monstruoso inseto.
— Ali — sussurrou ele. Seu rosto estava para o outro lado,
como se ele não suportasse olhar para aquilo. — Você vê?
Ela viu.
Era o amarelado leitoso de cascas de pele e unhas do pé
que cresceram demais, faixas e partes dela se enrolando e
ficando amarronzadas nas pontas, mas costuradas e
coladas com todo o esforço, grosseiramente aproximando
cada pedaço de onde ele foi cortado do corpo; um traje
humano da sua própria pele cortada. Algumas partes eram
reconhecíveis — aqui havia uma pálpebra, ali um mamilo,
em outro lugar o redemoinho de uma articulação —, mas o
restante era uma colcha de retalhos digna de um bobo da
corte, feita de carne deformada cheia de verrugas e
escurecida pelo sangue, completamente repugnante. Ela
andou para trás, as mãos cobrindo a boca, horrorizada.
— Eu cortei fora, mas tive que juntar tudo, para poder ver
como você me via.
Então, ela olhou para os músculos e tendões no rosto
dele, a prova da tortura física que ele se obrigou a passar
para expiar sua vaidade — e, de repente, viu a beleza de
sua oferta, quanta nobreza o sofrimento dele trouxe à luz.
Quando ele se aproximou, ela não se encolheu; em vez
disso, foi com vontade para os braços dele e o beijou. Ele
engasgou um pouco; ele não tinha pele e aquilo deve ter
doído, mas ele a deixou explorar a maciez da sua carne, o
tremeluzir tênue dos seus músculos, a suavidade do osso
nu.
— Sinto muito — disse ela, surpresa ao perceber as
lágrimas nas bochechas. — Sinto muito por ter provocado
isso.
— Eu não. É só que… — Ele vacilou.
— O quê?
O sussurro dele era tão leve, um cabelo na sua bochecha.
— Dói.
Agora, com seu corpo pressionado contra o dele, ela
sentiu o calor profundo dentro dele. Não o calor de uma
doença — embora Deus soubesse que ele já deveria ter
morrido há muito tempo —, aquilo parecia familiar. Era a
raiva e o ódio que ela tinha jogado nele na noite em que ele
a humilhou, seis meses antes. Ainda estava nele,
mantendo-o vivo e forçando-o a cometer aquelas
atrocidades em si mesmo. Ele não havia a trazido ali apenas
para ver o resultado daquilo, cada tendão deformado nele
estava implorando por liberdade.
Ele não era o monstro ali.
— Eu sinto muito — repetiu ela, chorando, e pegou o fogo
de volta, extraindo para fora dele e para dentro dela, que
era o lugar dele, em uma flor cheia de pétalas que pulsava
devagar atrás do seu umbigo. Ele suspirou e se curvou em
seus braços, mas o fogo deu forças a ela, e ela o sustentou,
porque era hora de começar a aprender a fazer algo melhor
com aquela força. Ela deu um beijo de despedida nele e
levou seu corpo para o quarto, colocando-o deitado na
escuridão, mas viu que ainda podia vê-lo muito claramente.
Ali, naquele lugar, ele brilhava.
FAITH & FRED
MAURA McHUGH

E
les encontraram os crânios no terceiro dia da
reforma.
Owen tinha acabado de acertar o reboco com
a marreta que seu empreiteiro, Jim Careca,
entregara para ele com um “Deixe ela fazer o
trabalho, rapaz”.
Owen fizera cara feia com o “rapaz”, já que tinha quase
trinta anos, mas o peso da marreta velha nas suas mãos
enluvadas lhe deu uma alegria tátil, que superou seu
orgulho. Atacar a parede foi profundamente satisfatório: o
golpe firme, o som de protesto quando a cabeça de metal
cheia de marcas acertou a cobertura barata e o choque
posterior correndo pelos seus braços.
Poeira e fragmentos lascados voaram para todos os lados
e, no início, atrapalharam a visão. Aos poucos, a luz do dia
das grandes janelas atrás deles se lançou através do grande
talho que Owen criara. Eles sabiam que aquilo tinha sido
uma espécie de armário, antes de um antigo morador
fechá-lo com uma parede, mas era um espaço
desperdiçado, e Owen estava determinado a usar cada
centímetro da casa de fazenda Caldwere. Dos seus cômodos
dilapidados, ele criaria uma casa para qualquer um que
estivesse disposto a pagar um bom preço.
Jim Careca lhe deu um tapinha no ombro para indicar que
era hora de recuar com a arma, e, relutantemente, Owen a
entregou de volta ao homem parrudo mais velho. A força
bruta deu conta do recado, agora era o momento da finesse
dos especialistas.
Jim Careca apoiou a ferramenta na parede e selecionou
uma marreta menor. Ele deu uma boa olhada no buraco,
abrindo-o ainda mais até parar de repente e dar um passo
atrás, alarmado.
— Caramba — disse ele.
— O que foi? — Owen entrou naquela bagunça, apertando
os olhos. Alguma coisa com brilho branco entre as barras de
metal. Ele pegou o telefone do bolso da sua calça cargo e
ligou a lanterna. Ele estava ciente da presença massiva de
Jim Careca atrás dele.
Dois crânios humanos o encaravam de dentro de uma
gaiola de metal feita de tiras de ferro. A gaiola repousava
dentro de uma caixa de madeira simples.
— Puta merda! — falou Owen, a voz abafada conforme ele
direcionava a luz pelo cômodo. Ele se inclinou adiante,
inalando um fedor mofado, se arrependendo na mesma
hora de não ter colocado uma máscara de proteção.
Na frente da gaiola estava um cartão branco inscrito com
uma tinta acobreada, coberta por uma camada de poeira.
Com cuidado, ele esticou a mão e pegou o cartão.

Eis aqui Faith & Fred


Mantenha-os nesta casa,
Para que não lamentem.
— Maldição — disse Jim Careca depois de dar uma olhada
no papel.
Ele caminhou até a janela dupla, entrando sob a luz do sol
de maio, e pegou um celular velho de um dos muitos
bolsos.
— Vou chamar a polícia.
— O quê?
— Você acha que essa é a primeira vez que eu encontro
uma coisa assustadora em uma casa antiga? — Ele
balançou a cabeça. — Esse é um dos ossos do ofício.
— O que a polícia vai fazer?
Jim Careca tirou seu capacete de construção e olhou
através do vidro, pelos campos de grama verde até a linha
azul que indicava a costa ao longe.
— Eles vão levar seus novos amigos para uns testes. Fazer
umas perguntas. Trazer uns caixões. Vai ter uma papelada,
com certeza. Vai ser um porre.
Aquelas palavras instigaram o pânico em Owen. Ele
imaginou o cômodo sendo fechado e o planejamento deles
indo por água abaixo. A notícia ia se espalhar pelo local e
poderia até se tornar uma história viral na internet.
Ele notou que Jim Careca se mantinha longe do buraco
que criara na parede e sempre olhava para aquela direção
com uma careta. Se aquele sujeito estava nervoso por
causa de uma descoberta aterrorizante, como os outros
pedreiros iam reagir? Ou compradores em potencial?
Owen não podia cometer muitos erros. Sua nova página
tinha virado muito recentemente e havia muita gente
torcendo para vê-lo ferrado de novo.
— Mais alguém precisa saber disso?
Jim Careca desviou da paisagem calma e deu um olhar
duro para Owen, mas não disse nada, deixando uma
oportunidade que Owen tratou de aproveitar logo.
— Isso provavelmente é só uma sala de entretenimento
do século XIX. Sabemos pelas plantas que já estava fechada
há pelo menos cem anos. Não é uma situação do tipo CSI
Holderness…
Jim Careca assentiu e deixou Owen continuar.
— Se eu der um jeito de fazer esses dois desaparecerem,
então ninguém precisa saber. — Ele pegou a carteira. — Por
que você não tira o resto do dia de folga?
Ele contou seis notas de cinquenta libras e as entregou.
Jim Careca considerou o dinheiro por um longo momento.
Owen suou um pouco mais.
— É — disse o empreiteiro. — A patroa vai adorar jantar
fora. — Ele apontou para o buraco. — Mas não quero ver
nem sinal deles quando eu voltar, veja bem. — Ele colocou
as notas no bolso de trás e caminhou para a porta, suas
botas ecoando nas tábuas de madeira.
Na entrada, ele parou e acrescentou?
— O Thaddy… quer dizer, o Thadeus Ogram é o dono do
Serpente Celta. A família dele vive nessa região desde a
Arca de Noé. Ele pode saber alguma coisa sobre… — E ele
indicou o problema com a cabeça.
De onde Owen estava, viu fachos cheios de poeira se
inclinando para dentro do cômodo iluminarem as órbitas
oculares vazias do casal morto, dando-lhes novos olhos
brilhantes. Calafrios percorreram seus braços. Os espaços
vazios entre seus dentes velhos sorriam para ele.
— Vou cuidar disso — prometeu.
Jim Careca saiu, e Owen o ouviu chamar Roger e Jim Alto.
Seguiu-se um murmúrio de vozes e, logo depois, o som de
portas batendo e carros se dirigindo do longo caminho até a
estrada principal.
Owen caminhou até onde Jim Careca tinha deixado a
marreta, pegou-a e atacou as pontas do buraco, soltando
palavrões enquanto fazia isso, colocando sua frustração
para fora.
Ele ofegava quando o buraco estava largo o suficiente
para tirar a gaiola.
Foi estranho arquear o corpo para dentro daquele espaço
escondido e enroscar os dedos na grade de metal. Suas
pernas pressionavam o restante de reboco conforme ele se
esticava para levantar e passar a gaiola pelo buraco
irregular.
Um crack audível: o restante da parede entrou em colapso
e ele se jogou para dentro do cômodo, caindo em cima da
gaiola e derrubando-a da mesa.
Ele caiu completamente dentro do lugar, seu rosto e seu
peito aterrissando na lateral cruel da gaiola. Estrelas
explodiram em sua visão. Abaixo dele, as caveiras rolaram
como bolas de sinuca. Talvez rolassem com alegria.
Ele uivou de dor e medo, respirando aquele ar úmido do
século passado e pactos antigos.
A raiva surgiu e ele se levantou com braços agitados e
palavrões gritados.
— Claro que isso ia acontecer, porra! — berrou ele,
puxando a gaiola pela parede quebrada, atirando-a no chão
e chutando-a várias vezes até ela estar no canto mais
distante da sala. Com isso, os crânios saíram do lugar, e ele
notou outra coisa em sua superfície de marfim: manchas
com pontinhos vermelhos.
O fio úmido na testa o alertou para o corte. Ele levantou a
mão para tocar e seus dedos retornaram à sua visão
gotejando sangue escarlate vivo. Sua antiga fobia ressurgiu
com aquela visão. O peito apertou enquanto as pernas
ficaram moles como macarrão cozido por tempo demais.
Ele precisava sair dali desesperadamente.
Owen conseguiu dar alguns passos oscilantes na direção
da porta antes de desmaiar.

Quando acordou por causa da dor, já era o final da tarde.


Com cuidado, ele mexeu os braços e os pulsos, que
devem ter aparado a queda: machucados, arroxeados, mas
não torcidos ou quebrados, graças a Deus. Ele se sentou.
Seus pés e suas pernas estavam bem, mas a testa
tamborilava com uma batida agonizante, e sua clavícula
direita irradiava problemas. Com muito cuidado, ele tocou a
têmpora e sentiu a casca do machucado. Ele ofegou um
pouco, sentindo o horror crescer dentro dele mais uma vez,
o que foi logo seguido pelo nojo que sentia em relação à sua
fraqueza. Aquilo trouxe à tona uma tempestade de
memórias dos seus piores momentos: sua irmã mais nova,
Poppy, defendendo-o na escola porque os valentões tinham
descoberto que conseguiam fazer Owen desmaiar se o
cortassem; evitando qualquer conflito ao alegar que estava
doente e se escondendo; se transformando em um
babaquinha cínico que imitava os outros à perfeição e fazia
coisas idiotas para que seus “amigos” rissem; pegando no
pé da Poppy sem dó durante a adolescência, tentando
diminuir a força dela para que os dois fossem igualmente
frágeis.
Ele afundou o rosto nas mãos e chorou um pouco, porque
aquele pecado era mais doloroso do que qualquer outra
coisa. Então, baniu o passado para lidar com o presente.
O cômodo estava bastante escuro conforme o mundo
mergulhava em um silêncio rosa-violeta. Os pássaros não
estavam cantando suas despedidas para o sol.
Owen observou a fenda na parede, um corte escuro que
parecia vazar sombras para dentro do quarto. Ele não sabia
o que envolvia ter uma concussão, mas se perguntou se
tinha uma. Nunca parecia bom quando os médicos
preocupados dos seriados de TV falavam sobre isso
enquanto iluminavam os olhos dos seus pacientes com uma
lanterna.
Ele se levantou sobre um joelho e se ergueu sem pressa.
O local cambaleou e se distorceu por um segundo, e ele
respirou profundamente para se firmar. A gaiola estava
imersa em uma escuridão irregular, visível apenas por
causa de manchas brancas que pareciam remendadas.
Um crochê de crânios, pensou Owen, e um silvo de graça
bizarra beliscou sua boca, mas ele se conteve para não
quebrar o silêncio sufocante.
Um garoto da cidade, Owen tinha dificuldades com a
tranquilidade pungente da casa de campo, sobretudo à
noite. Ainda pior eram os barulhos assustadores, estranhos
e imprevisíveis que expulsavam a calmaria opressiva em
momentos estranhos: o ganir de uma raposa, os chiados
dos morcegos caçando, o chalreio de uma coruja para a
outra. Sempre que ele ia para fora fumar e era engolfado
pela tranquilizante fumaça do cigarro, formas escuras
podiam de repente cortar o céu ou correr pelo chão. O
interior tinha muita vida estranha e selvagem para ele.
Owen criara uma existência monástica para ele no quarto
do andar de cima, mas mantinha seus fones de ouvido sem
fio sempre com ele, ouvindo música ou podcasts, ou
assistindo a filmes. Qualquer coisa para evitar confrontar
sua solidão aflitiva.
Ele se aproximou da gaiola e tirou-a do seu esconderijo
para os quadrados iluminados por estrelas das janelas.
Havia um ferrolho na frente, que se abria facilmente. Owen
abriu a porta e considerou o que fazer a seguir. O
pensamento de tocar as caveiras fez seus dedos se
fecharem involuntariamente.
— Vira homem — sussurrou ele, e na mesma hora odiou
quando a frase passou pelos seus lábios. Era um incentivo
odioso que foi dado a ele pelo seu pai em várias ocasiões.
Ele colocou a mão dentro da gaiola e puxou um dos
crânios: era frio ao toque e surpreendentemente sólido. A
mandíbula inferior estava presa ao crânio por fios de cobre.
Por alguma razão, ele pensou que aquela era Faith. Ele a
deixou no peitoril da janela e pegou seu irmão.
Ele colocou Fred ao lado dela e se perguntou por que
pensava neles como irmãos.
Owen ficou ao lado deles, olhando para suas cavidades
oculares escuras, cheias de segredos.
— E então, qual é a história de vocês?
Eles o encararam, sorrindo, firmemente mudos.
Atrás deles, duas figuras passaram voando.
Acende uma luz, idiota!
Ele correu até o interruptor, mas a luz amarela da única
lâmpada se dependurando no teto tornou tudo pior. Uma
palidez doentia afligiu o espaço.
Mas mostrou a ele o martelo caído no chão onde ele tinha
o largado mais cedo. Ele pegou a ferramenta e o peso dela
o deixou confiante. Owen se aproximou das caveiras e
praticou alguns golpes na frente delas. Como se estivesse
ameaçando-as.
Elas não se abalaram.
Ele hesitou, pensando se havia alguma forma melhor de
lidar com aquele problema, e considerou que aquelas
pessoas, mortas há tanto tempo, mereciam algo melhor.
Mas muita gente morre sozinha, esquecida e sem ser
enterrada. O próprio tio-avô dele, Spencer, tinha morrido
naquela casa e não fora descoberto por um mês. Foi assim
que ele acabou herdando o lugar.
Eles tinham vivido a vida deles. Agora era hora de Owen
viver a dele, a vida em que ele se tornaria um irmão mais
velho que Poppy poderia respeitar.
Ele ergueu a marreta e acertou o topo da cabeça de Faith.
Ela explodiu em um milhão de pedacinhos.
Ele riu, e pulverizou Fred.
Ele pegou uma pá, varreu os fragmentos deles e jogou
tudo em um saco de lixo preto. Depois colocou a gaiola no
quarto dele, cobriu-a com uma manta velha e colocou sua
luminária de segunda mão em cima. Então, foi para o lado
de fora, sob o vazio sem fundo das estrelas, e caminhou até
a caçamba. Ele empurrou o saco com os fragmentos de
ossos bem profundamente no entulho e voltou para a casa
assobiando.

No sonho, Faith e Fred eram gêmeos adolescentes com


cabelos encaracolados pretos, olhos escuros e uma pele
bastante bronzeada com marcas de tortura e
espancamento. Eles estavam de pé em uma forca
improvisada, a corda em volta de seus pescoços. O ódio
queimava nos olhos roxos de Faith conforme ela observava
o magistrado na ruidosa multidão de pessoas da cidade.
— Obadiah Creaser: nenhum de seus descendentes vai
prosperar. Você, que jurou cuidar de nós e nos dar abrigo,
nunca se livrará de nós. Vamos contar seus pecados para o
Todo-Poderoso para sempre.
E então o som terrível de dois pescoços se quebrando
seguido pelos uivos de júbilo da multidão.
Os gritos continuaram conforme os rostos das pessoas
que assistiam àquilo se retorciam e se transformavam e
caricaturas dilatadas. Era uma cacofonia de ira justificada.
Owen se levantou de repente da cama, suando, o som
zumbindo nos seus ouvidos, e o coração batendo
rapidamente.
Os gritos continuaram. Duas vozes faziam soar sua fúria
angustiada.
Owen saiu da cama, desorientado, mas desesperado para
acabar com aquele barulho horrível. Estava perto, mas não
no segundo andar.
Ele ligou a luz e encontrou os seus sapatos. Correu para o
andar de baixo, apertando cada interruptor pelo qual
passava, sentindo uma necessidade urgente de expulsar a
escuridão. Durante todo aquele tempo, os gritos atacaram
seus ouvidos e mantiveram as imagens dos jovens gêmeos
dependurados, morrendo em frente a uma plateia vívida em
sua mente.
Ele precisava fazer aquilo parar.
Owen quase tropeçou em uma caixa de azulejos na
cozinha dilapidada, mas notou no último segundo e
conseguiu pular sobre ela antes de escancarar a porta dos
fundos.
Ali, o barulho era tão penetrante que chegava a doer.
Os crânios reagrupados de Faith e Fred estavam na soleira
da porta, gritando.
Owen deu um passo atrás quando a realidade encontrou a
descrença.
Eles continuaram a vociferar sua raiva aos céus.
Em pânico, ele correu, pegou os crânios e os trouxe para
dentro da cozinha.
Eles ficaram em silêncio na mesma hora.
Respirando fundo, ele parou debaixo do batente e olhou
para a noite sinistra. Uma brisa gelada passou pelos seus
tornozelos nus.
Ele baixou os olhos para os crânios em seus braços, e
passou pela porta até o jardim. Os gritos repenicaram outra
vez.
Owen marchou para a cozinha de novo e colocou as
caveiras na pequena mesa cheia de marcas de tinta que
estava usando até o cômodo ser remobiliado propriamente.
Por um bom tempo, Owen encarou as cabeças sem carne
e considerou o que fazer a seguir. Por fim, ele as pegou,
levou-as para seu quarto e colocou-as de volta na gaiola.
Voltou a cobri-la com a manta velha e retornou para a
cozinha, para passar o café e esperar pelo amanhecer.

Jim Careca não discutiu com Owen os eventos do dia


anterior, embora tenha perguntado sobre o machucado na
testa dele. Owen disse que tropeçara na caixa de azulejos
na cozinha durante uma viagem para fazer um lanchinho de
madrugada. Na mesma hora, Jim Careca tirou o obstáculo
do lugar e deu um sermão sobre os perigos de tropeçar.
Satisfeito por ter ensinado alguma coisa para Owen, Jim
Careca e sua equipe voltaram ao trabalho, completando as
funções planejadas. Ainda havia semanas de trabalho a
fazer, e todo dia surgia uma crise pequena para resolver ou
uma conta para pagar. Owen não tinha muito tempo para
considerar o comportamento sobrenatural dos crânios, mas
sempre que seus pensamentos ociosos iam para essa
direção, os gritos reverberavam em sua mente.
Ele se assustou ao ouvir o gemido de uma serra, achando
que eram os crânios novamente, mas se acalmou ao ver a
figura de Roger cortando tábuas com fones de proteção nos
ouvidos. Ele pensou nas caveiras gêmeas, debaixo da
manta no quarto deles. Ouvindo uma nova geração de
pessoas se preparando para ocupar a casa. Considerou as
diversas famílias que eles haviam assombrado até serem
presos na parede. Quantas pessoas eles já devem ter
escutado? Quantas pessoas devem ter cuidado das suas
tarefas diárias sem saber que os gêmeos as espionavam?
Naquela noite, ele dirigiu até o Serpente Celta na aldeia
próxima. Era um bar pequeno, mas bem equipado, que
fizera algumas concessões ao século XXI. Tinha Wi-Fi e uma
boa cidra local, mas os poucos clientes de sempre naquela
noite eram casais idosos e homens solteiros que eram muito
territoriais em relação a seus lugares.
Thaddy estava na casa dos sessenta anos e tinha um
nariz cheio de marcas e bochechas vermelhas. Ele olhou
para Owen no momento em que o rapaz entrou, e seguiu
pelo balcão de carvalho envernizado para falar com ele.
— O que vai ser? — perguntou ele, um pouco brusco.
Owen pediu um refrigerante, mas, assim que as
sobrancelhas bastante peludas de Thaddy se ergueram na
direção de seu cabelo despenteado, ele logo acrescentou:
— E também o prato do dia, por favor.
— Você é o sobrinho do Spencer, né?
— Ah, sobrinho-neto. Owen, prazer em conhecê-lo.
Thaddy colocou o copo com gelo na frente dele.
— Não é de beber, então?
Owen pensou em dar uma resposta vaga, mas imaginou
que Thaddy não ia tolerar bobagens.
— É, eu não bebo. Nunca cai bem.
Thaddy assentiu solenemente conforme servia uísque
para si mesmo.
— Um homem precisa conhecer seus limites.
Owen imaginou que aquele era um aviso sutil de que o
Serpente Celta não era um lugar para conversas abertas e
profundas. Então, eles falaram de rugby por uma hora.
Em algum momento, eles chegaram ao assunto das
lendas e do folclore locais. Thaddy já tinha tomado algumas
doses de uísque e a maioria dos clientes já tinha ido
embora. Só havia um homenzinho encarquilhado bebendo
aos poucos meio copo de cerveja na mesa em frente à
televisão.
— Spencer sabia muito sobre a história daqui — disse
Thaddy. — Era um velho desprezível, Deus o abençoe, mas
gostava de ler. — Thaddy balançou a cabeça como se
aquele fosse um hábito chocante. — Ele até chegou a
escrever alguns panfletos.
— O quê?
Owen só tinha encontrado o tio Spencer uma vez, quando
tinha dez anos, e sabia pouco sobre ele.
— Deve ter alguns espalhados por aí na casa dele… quer
dizer, na sua. A biblioteca pode ter alguma coisa. Spencer
tinha muito orgulho deles.
Thaddy se levantou rigidamente do banquinho atrás do
bar e puxou uma corda de sino. Tocou duas vezes.
— Chegou a hora, cavalheiros. Últimos pedidos, por favor.
Owen dirigiu pelas estradas desertas com muretas de
proteção até sua casa, e, depois de um sanduíche rápido,
foi para a cama. Ele tirou a manta para dar uma olhada na
cadeia e nos prisioneiros.
Eles não pareceram ter se mexido. Não fizeram som
algum.
Ele se sentou diante deles, de pernas cruzadas, e contou
para eles sua noite no pub.

Naquela noite, ele sonhou com Faith e Fred como crianças,


morando com a mãe em uma casinha de uma fazendo perto
de um bosque. As crianças brincavam entre as árvores em
uma cabaninha que elas construíram. Dentro dela, elas
penduraram diversos itens e bugigangas que encontraram
ou fizeram com as próprias mãos. Fred era hábil para
esculpir figuras em madeira. Eles eram estranhamente
similares aos assuntos que ele escolhia retratar: um texugo,
um corvo, um sapo, sua irmã e sua mãe. Seu pai da floresta.
A voz de Faith era sublime, divina. Quando ela cantava, os
pássaros ficavam encantados.
Os gêmeos criavam jogos e cantos especiais. Eles
enfeitiçavam mariposas e caramujos. Eles brincavam com a
enorme gata cinza deles, que era uma caçadora de ratos
bastante astuta. Com frequência, ela trazia passarinhos
feridos e roedores como presentes para eles. As crianças
enterravam esses animais no pequeno cemitério que
criaram e colocavam cruzes feitas de galhos para marcar os
túmulos. Conduziam seus próprios rituais fúnebres na sua
catedral verde, cantando hinos estranhos com suas vozes
angelicais.
E, quando a pequena família ia até a cidade, o que era
raro, uma corrente de sussurros seguia atrás deles.

Owen acordou de mau humor, com a cabeça pesada e o


ombro sensível. Ele já sabia parte da tragédia que a família
ia sofrer. Eles só queriam ser deixados em paz. Por que as
pessoas não deixavam os outros em paz?
Mais tarde, ao som de marteladas e batidas, Owen
explorou as caixas de livros e quinquilharias que ele tinha
marcado para doação. Ele não tinha olhado com atenção
para nenhum dos títulos, já que, a seus olhos, eram só um
monte de livros de história chatos, uma matéria em que ele
tinha ido muito mal no vestibular.
Ele quase não viu o exemplar fino que parecia muito bem
conservado. Estava enfiado no meio de um grande livro de
capa dura que falava sobre a invasão viking. Tinha uma
xilogravura na capa, mostrando um casal de anões com
cara de espertinhos tocando um tambor e uma rabeca para
bruxas de chapéus pontudos que dançavam. O título era
Contos de vilarejos desaparecidos e lá estava o nome do
seu tio-avô: Spencer Creaser.
Owen preparou uma xícara de café com bastante leite, e
foi ler em seu quarto. Tinha deixado um pedaço da gaiola
descoberto, para que Faith e Fred pudessem respirar
quando ele não estivesse lá. Puxou mais um pouco da
manta a fim de dar aos gêmeos mais espaço para visão. E
mostrou o livro a eles.
— Spencer escreveu livros. Olha só. — Ele se sentiu
estranhamente orgulhoso do homem. Como se a conquista
literária do parente, de alguma forma, abrisse uma
possibilidade para o seu futuro. Como se ele pudesse ter o
mesmo talento correndo nas veias.
Ele leu o prefácio, no qual Spencer creditava sua avó pelo
seu interesse em história e folclores: Ela contava uma
história para cada pedaço de terra e árvores, e nenhuma
era igual à outra. Ela colecionou os novelos do passado e
queria que eles fossem costurados novamente.
Owen deu uma olhada no sumário. Uma das categorias
era “Fadas, Duendes e Povos Pequenos”. Mas a seção que o
atraiu foi “Crânios esbravejantes”.
Para a grande surpresa dele, havia vários exemplos.
Esqueletos que não encontravam descanso em cemitérios e
começavam a gritar eram desenterrados e voltavam para
suas casas. Com o tempo, seus ossos eram perdidos e só
sobravam as caveiras.
Alguns dos primeiros povos da Inglaterra decapitavam
seus inimigos e mantinham seus crânios como troféus.
Muitas culturas consideram que eles são o receptáculo do
espírito vital. A prática de peregrinação a fim de ver as
ossadas de santos em relicários decorados com joias é
popular até hoje. Em alguns lugares, eles são retirados de
seus relicários todo ano, para serem limpos e festejados. Às
vezes, eles revelam profecias ou atuam como guardiões de
conhecimentos ancestrais. Ouvir suas vozes é sinal de que a
pessoa tem uma ligação com o reino peculiar.
Owen levantou os olhos das páginas e observou as
caveiras. Elas o encararam de volta. Ele franziu o cenho.
Que superpoder de merda.
Ele passou os olhos pelas histórias até ver uma entrada
que fez sua pulsação acelerar: Fazenda Caldwere.
Dizem que a Fazenda Caldwere se tornou a propriedade
de uma viúva de beleza estonteante, que teve gêmeos
chamados Faith e Fred.
Owen piscou e leu as palavras de novo. Era verdade. Ele
observou as caveiras em seu santuário drapejado. Ele ouviu
um bombardeio de marteladas e vozes ficando mais altas lá
embaixo. Algo tinha mudado, como se o próprio eixo da
casa tivesse se movido por um segundo. “Agora chega”, ele
escutou Jim Alto gritar. E então, tudo voltou a ficar quieto.
Owen retornou à leitura.
A família vivia em paz, a um dia de caminhada da vila à
beira-mar de Withensea (há muito engolida pelas ondas). As
crianças brincavam no bosque e quase nunca iam à igreja.
Durante o crepúsculo, luzes eram vistas piscando entre a
mata cerrada. Músicas bizarras flutuavam pelo ar. Os
gêmeos tinham um modo estranho de falar como um só e,
segundo relatos, faziam perguntas ímpias. Como eram
inocentes, deviam ter sido amaldiçoados pela mãe. Algo
precisava ser feito.
A mãe deles foi levada e inquirida, confessando ter pacto
com Satã. Ela foi enforcada, e o magistrado do lugar,
Obadiah Creaser, garantiu que os gêmeos testemunhassem
a figura destruída de sua mãe dependurada na forca com o
pescoço esticado.
Obadiah recebeu a guarda das crianças e de suas terras,
mas quantidade alguma de cuidado divino poderia
apaziguar a selvageria deles. A garota era particularmente
obstinada. O magistrado rezava com ela em seu quarto
particular toda noite, mas os gritos de protesto da menina
eram ouvidos por todos na nova e bela casa de fazenda que
ele construiu no terreno.
Várias pessoas afirmaram que ela se tornou lasciva e
levou o irmão a trair diversas vezes a ordem natural de
Deus. Durante seu julgamento, ambos negaram essa
acusação veementemente, embora a garota não fosse mais
virgem. Sete anos após o enforcamento da mãe, os gêmeos
foram levados à força, diante de todo o vilarejo, para a
mesma forca em que sua mãe encontrou seu fim.
Owen parou, seu rosto em uma careta de revolta. Aquele
homem, Obadiah, era um antepassado que tinha lucrado
com um abuso terrível de sua posição de autoridade. Owen
não queria encarar os gêmeos de novo, então voltou para
os últimos parágrafos.
Na forca, Faith amaldiçoou Obadiah e todos os seus
descendentes. “Você, que jurou cuidar de nós e nos dar
abrigo, nunca se livrará de nós. Vamos contar seus pecados
para o Todo-Poderoso para sempre.” Seus corpos foram
enterrados em covas rasas do lado de fora do cemitério,
mas as pessoas que moravam por perto reclamaram de
gritos penetrantes toda noite, até que, por fim, os exaustos
vizinhos se reuniram, exumaram os cadáveres putrefatos e
os jogaram na fazenda Caldwere.
Com os anos, apenas os crânios restaram. Os Creaser
nunca encontraram sua ruína, mas também não
prosperaram. E cada vez que alguém da família tentava
vender ou destruir as caveiras, elas retornavam para bradar
suas verdades sangrentas até que elas, e seu guardião,
voltassem para casa.
Owen perdeu o fôlego e observou os crânios. Ele sabia
que não poderia se livrar deles. Mas com certeza poderia
deixá-los para trás, não? Ele tinha pensado em cavar um
túmulo especial no porão, onde pudesse enterrá-los para
poder seguir em frente.
Ele se ajoelhou diante das duas caveiras e aproximou o
rosto dos traços duros delas.
— Não fui eu que fiz isso com vocês! Não podem me
culpar.
Os gêmeos o observaram em silêncio. Julgando-o, sentiu
Owen.
Ele colocou a manta de volta por cima da gaiola.
— Não é culpa minha! — sibilou para eles.
Ele se levantou rápido demais e sentiu a cabeça coçar.
Você cuidará de nós.
Owen congelou.
Você ou outra pessoa.
Sua respiração parou no peito, e ele deu um passo atrás,
como se pudesse se livrar daquele pensamento.
— Não — disse ele baixinho.
Você vai nos ouvir sempre, rapaz, não importa para onde
vá. Cantaremos nossas canções especiais. Aquelas que
atraem cobras e aranhas. E isso trará azar e decadência.
Então, você voltará.
Você ou outra pessoa.
Ele tinha planejado vender a casa e dividir o dinheiro com
Poppy. E então ele viajaria e moraria em um lugar longe de
qualquer pessoa que conhecesse seu eu antigo, fraco. Ele
seria um novo indivíduo, livre de expectativas e histórias
velhas.
Era como se correntes gigantescas tivessem caído do teto
e se prendessem aos seus ombros para ancorá-lo no
passado. Ele estaria para sempre preso naquele Owen
fodido e irresponsável.
Ele se jogou no chão com um barulho audível.
Com os dedos instáveis, ele esticou a mão e abriu a
cortina.
Dentro de sua cela sombria, os dois crânios brilhavam
com prazer.
— Por favor — suplicou ele.
Você ou outra pessoa.
A MALDIÇÃO DA FADA
SOMBRIA
KAREN JOY FOWLER

E
la estava sendo perseguida. Jogou os sapatos
para longe, porque eles só estavam
atrapalhando. Ao mesmo tempo, sua saia
pesada desapareceu e ela se viu usando as
roupas de trabalho de sempre. Sem o peso e a
constrição, ela era capaz de correr mais rápido. Olhou para
trás. Ela era muito mais rápida do que ele. O coração dela
era forte. Seus passos eram longos e tranquilos. Ele nunca a
alcançaria agora.

Ela estava cavalgando a égua do caçador e não conseguia


lembrar por quê. Ela era de um vermelho outonal com uma
crina emaranhada. Cavalgava depressa. Um veado pulou na
campina diante dela. Ela viu a mancha branca de seu rabo.
Ela nunca tinha cavalgado bem, nunca tivera a coragem
insana necessária para isso, mas agora estava conseguindo
aproveitar o ritmo fácil da égua. Ela encorajou o animal a ir
mais rápido.
Era noite. Partes do campo estavam suavemente
iluminadas pela luz da lua. Ela poderia ir a qualquer lugar
que quisesse, até o fim do mundo e ainda voltar. Lá ela
encontraria um castelo com uma torre com ameias.
Cercando o castelo havia um cinturão de árvores, pequeno
demais para ser chamado de floresta, mas, ainda assim, tão
espesso que a luz não passava ali. Ela sabia disso. E ainda
mais longe estavam as estrelas. Ela olhou para cima e viu
três delas caindo, uma depois da outra. Fez um pedido,
desejando que pudesse cavalgar até alcançá-las.
Ela estava em uma área de plantação. Cruzou um campo
e pulou sobre uma cerca baixa de pedra. Evitou os chalés,
por mais acolhedores que parecessem, com a fumaça
subindo dos telhados e o brilho cor de manteiga que vinha
das janelas. A égua correu e não parecia se cansar.
Ela usava uma capa que, após ser presa apertada no
pescoço, se levantou durante a cavalgada e deixou suas
pernas nuas. Seus pés estavam frios. Ela olhou para trás.
Ninguém vinha atrás dela.
Ela chegou a um rio. Suas margens estavam verdes por
causa das algas e cheias de lama. No meio, ela conseguia
ver a escuridão das profundezas. A égua tomou a própria
decisão. Cavalgou paralelamente à margem, mas não
cruzou o rio. Muitos metros depois, o animal se abaixou para
entrar em um bosque, afastando-se da água. Ela se
debruçou sobre o pescoço da égua, e as folhas prateadas
dos choupos roçaram no seu cabelo.

Ela subiu em uma das árvores e se arrependeu de cada


árvore na qual deixara de subir. A única parte difícil era o
primeiro galho. Depois disso, era fácil, ou então ela estava
mais forte do que nunca. Mais forte do que precisava ser.
Esse excesso de força lhe deu o momento de alegria mais
puro de que conseguia se lembrar. Escalar a árvore parecia
tão natural quando subir uma escada, e ela foi tão alto
quanto podia, enfim chegando a um galho tão fino que se
dobrava com o peso dela, como um bote. Voltou um pouco
mais para baixo, sentou-se com as costas no tronco e uma
perna balançando. Ninguém jamais pensaria em procurá-la
ali.
Seu cabelo se desprendeu, e ela o deixou solto.
Esquentava os seus ombros.
— Mãe — disse ela, baixo o suficiente para o som se
misturar no vento com as folhas. — Me ajude.
Ela estava se referindo à sua mãe verdadeira. Sua mãe
verdadeira não estava lá, não estava naquele lugar desde
que ela era uma menininha. Mas isso não significava que
não haveria ajuda.
Acima dela havia as estrelas. Abaixo, olhando para cima,
havia um homem. Não era ninguém a ser temido. O pé dela
que balançava ao lado do galho estava nu. Ela não o cobriu.
Talvez não precisasse de ajuda. Essa seria a maior ajuda de
todas.
— Você mandou me chamar? — disse ele. Ela podia
conhecê-lo de algum lugar. Talvez tivessem passado a
infância juntos. — Ou quer que eu vá embora?
— Vá embora. Encontre a sua própria árvore.

Eles foram nadar juntos, e ela nadava melhor do que ele.


Ela observou os braços dele, os ombros se erguendo,
escuros, na água esverdeada. Ele se virou e percebeu que
ela olhava para ele.
— Você sabe o meu nome? — perguntou ele.
— Sim — respondeu ela, embora não conseguisse se
lembrar do nome. Sabia que deveria saber, embora também
pudesse ver que ele não esperava isso dela. Mas ela sentia
que sabia quem ele era, o nome dele era uma parte
pequena disso. — Começa com W? — disse ela.
O sol brilhava. A superfície da água resplandecia como
ouro.
— O que você vai me dar se eu adivinhar?
— O que você quer?
Ela olhou além dele. Na margem, havia um grupo de
mulheres sorridentes, sua avó, sua mãe, sua madrasta
também, suas irmãs e meias-irmãs, todas sorrindo para ela.
Elas acenavam. Ninguém disse: “Coloque as suas roupas.”
Ninguém disse: “Não vá para o fundo, querida.” Ela era uma
boa nadadora, e não havia motivo para ter medo. Ela não
conseguia pensar em uma única coisa que quisesse e se
afastou, rompendo a superfície da água com as pernas.
Foi até uma parte em que a superfície do lago espelhava o
céu. Quando a água se acalmou, olhou para baixo. Esperava
ver como era bonita, mas não era bonita. Um espelho
responde a apenas uma pergunta e não pode mentir. Ela
tinha perdido toda a sua beleza. Ela se perguntou o que
ganhou em troca.

Havia um espelho no quarto. Estava empoeirado, então o


reflexo dela estava um pouco borrado. Mas ela não era
bonita. Ela não estava chateada por causa disso e notou
isso um pouco maravilhada. Não importava nem um pouco
para ela. A maioria das pessoas era levada pelas
aparências, mas outras não. Ela era saudável, era forte. Se
pudesse ser gentil, paciente, espirituosa e corajosa, haveria
homens que a amariam. Haveria homens que achariam isso
extasiante.
Ele estava deitado entre os lençóis, olhando para ela.
— Seus olhos — disse ele. — Seus olhos incríveis.
O rosto dele estava coberto pela escuridão, mas não havia
razão para temer. Ela retirou o vestido. Era vermelho. Ela o
colocou nas costas de uma cadeira.
— Chegue para o lado.
Ela nunca estivera com este homem na cama antes, mas
desejara isso. Era tarde e ninguém sabia onde ela estava.
Na verdade, a mãe dela deixara bem claro que não era para
ela ir lá, mas não havia razão para ter medo.
— Vou dizer a você o que fazer — falou ela. — Você deve
usar a mão e a boca. A outra… não funciona para mim. E
quero ir primeiro. Você vai ter que esperar.
— Eu adoro esperar — respondeu ele. Ele cobriu um dos
seios dela com a boca, a mão se movendo entre as pernas
dela. Ele já sabia como tocá-la. Ele beijou o outro seio.
— Assim — disse ela. — Assim mesmo. — Seu corpo
começou a encolher de antecipação.
Ele beijou sua boca. Ele beijou sua boca.

Ele beijou sua boca. Não foi um beijo rude, mas abriu os
olhos dela. Aquele não era o rosto certo. Ela nunca tinha
visto aquele homem antes e a forma como ele a observou
— ela não tinha certeza de que gostava daquele olhar. Por
que ele estava beijando ela quando ela estava dormindo e
nunca o tinha visto antes? O que ele estava fazendo no
quarto dela? Ela estava tão assustada que parou de respirar
por um momento. Fechou os olhos e desejou que ele fosse
embora.
Ele ainda estava lá. E ela sentiu dor. Seu dedo sangrou e,
quando ela tentou se levantar, estava fraca e se sentia
sobrecarregada pelo vestido pesado, a manta grossa que
era seu cabelo, um espartilho e sapatos apertados e
pontudos.
— Ah — disse ela. — Ah. — Ela estava prestes a chorar e
não conhecia aquele homem para chorar na frente dele. O
tom de voz dela era acusatório. Ela o empurrou e o rosto
dele demonstrou surpresa com esse gesto. Ele se permitiu
ser empurrado. Ela não era forte o bastante para forçá-lo a
fazer isso.
Era provável que ele fosse um homem muito bom. Ele a
encarava com um olhar preocupado. Ela podia ver que ele
estava cansado. Suas roupas estavam rasgadas, as mãos,
arranhadas. Ele tinha acabado de passar por algo difícil,
talvez até perigoso. Deveria ser por esse motivo que ele não
parou para pensar em como ela ficaria assustada ao acordar
com um estranho enquanto estava deitada. Deveria ser por
isso que ele não percebeu que o dedo dela estava
sangrando. E por não ter considerado ou notado essas
coisas, não importava o quanto ela viesse a amá-lo, sempre
haveria uma parte dela que sentiria medo dele.
— Eu estava tendo um sonho lindo — falou. Ela tomou
cuidado para que seu tom de voz não deixasse clara a raiva
que sentia.
WENDY, QUERIDA
CHRISTOPHER GOLDEN

E
m uma noite de sexta-feira no final de maio do
ano 1915, Wendy passou sua última noite na
casa de seu pai em um sono intranquilo,
preocupada com seu casamento no dia seguinte
e com os segredos que tinha mantido
escondidos do seu desejado noivo.
O cômodo já fora exclusivo para atividades infantis, mas
aqueles dias tinham ficado para trás. Ela tinha parado de
sonhar os sonhos da sua meninice anos atrás, de tal modo
que até os ecos desses sonhos haviam se arrastado para as
sombras nos cantos do aposento. Agora era um quarto
apropriado, com uma cama com dossel, um espelho de
prata e um armário enorme que ainda exalava um rico odor
de mogno embora estivesse encostado na parede por mais
de seis anos.
Em certas noites, porém… Em certas noites, as janelas
francesas altas permaneceriam abertas e as cortinas iriam
ondular e flutuar. Nessas noites, o luar invadiria o cômodo
com um calor tão zeloso que parecia querer lembrá-la das
noites de sua infância, quando ela ficava acordada,
conversando em sussurros com seus irmãos no escuro até
todos eles adormecerem e sonharem coisas impossíveis.
Wendy ficara naquele quarto com Michael e John por
tempo demais. Ela deveria ter tido o próprio quarto muito
antes, mas, no início, o pai deles não quisera abrir mão do
escritório para criar um novo quarto, e, depois — quando
ele mudou de ideia —, as crianças não queriam mais se
separar. Àquela altura, Wendy tinha começado a ver os
Garotos Perdidos e a sonhar com eles, e parecia mais
seguro permanecer juntos.
Naquele dia — o dia antes do casamento —, houve uma
espécie de neblina baixa e cerrada por toda a tarde e que
durou até a noite. Diversas vezes ela se remexeu no sono,
inquieta conforme pensava em Jasper, o advogado com
quem se casaria na tarde seguinte. Ela gostava bastante da
ideia de se tornar a sra. Jasper Gilbert, e, ainda assim,
durante a noite, aquela possibilidade a assustava. Cada vez
que seus olhos se abriam, ela permanecia deitada por
muitos minutos, encarando a neblina até conseguir voltar a
dormir.
Um pouco depois, ela acordou e não viu a neblina, mas a
luz do luar. As janelas estavam abertas, e as cortinas
ondulavam como fantasmas, iluminadas pelo brilho
amarelado.
Um sonho, pensou, pois só poderia ser isso. Ela sabia
disso porque a neblina havia desaparecido. Sabia por causa
da luz do luar e da dança impossivelmente lenta das
cortinas e, é claro, porque os Garotos Perdidos estavam lá.
Ela se deitou de lado, com metade do rosto enfiado no
travesseiro de penas, e os observou. A princípio, viu apenas
três: dois no canapé e um meio escondido pelo movimento
das cortinas. O quarto tinha uma expressão contrariada, o
que o fazia parecer mais triste, menos etéreo que os outros,
embora fosse o mais jovem deles. Ela não os via há anos,
desde que seus pais arranjaram um médico, insistindo que
os Garotos Perdidos eram fruto da sua imaginação. Ela
nunca perdoara John e Michael por contarem aos seus pais
as frequentes visitas que os Garotos Perdidos faziam a ela,
um rancor do qual ela veio a se arrepender com a morte de
Michael após o incêndio da chapelaria em 1910. Como ela o
amara.
Mesmo na época do incêndio, já fazia anos que ela não via
os Garotos Perdidos. Depois do ocorrido, ela muitas vezes
rezava para que Michael a visitasse durante a noite.
— Wendy — sussurrou um dos Garotos no sonho da luz do
luar.
— Olá, meninos — disse ela, suando debaixo das
cobertas, o coração acelerado. Ela queria chorar ou gritar,
mas não sabia se o que sentia era medo ou apenas luto.
Como se o luto pudesse ser algo como apenas.
Ela reconheceu os quatro, é claro, e sabia seus nomes.
Mas não se permitiu falar aqueles nomes, nem mesmo
pensar neles. Teria parecido como se ela estivesse dando-
lhes boas-vindas de volta aos seus sonhos, e eles não eram
nem um pouco bem-vindos.
— Você se esqueceu da gente, Wendy. Você prometeu que
nunca ia fazer isso.
Ela afundou a bochecha ainda mais no travesseiro, as
penas espetando o seu rosto através do tecido.
— Eu nunca esqueci — murmurou ela, com a pele
encharcada. Estava quente demais debaixo do cobertor. —
Vocês só existem na minha mente, vejam bem. Não
esqueci, mas meus pais e o dr. Goss me disseram que eu
deveria persuadir meus olhos a não vê-los, no caso de
vocês aparecerem de novo.
— Sentiu saudade da gente, então?
Wendy engoliu em seco. Um arrepio percorreu seu corpo.
Ela não tinha sentido saudade.
— Como estou sonhando, imagino que não tenha
problema em ver vocês.
Os Garotos Perdidos olharam uns para os outros,
compartilhando uma risada sem alegria. Era mais uma
fungada do que uma risada, na verdade. Uma fungada de
desaprovação.
A luz da lua passou através deles.
O mais perto dela — aquele com os olhos tristes — se
aproximou.
— Você deveria ter sido nossa mãe — disse ele.
Wendy não conseguiu respirar. Ela se afastou para longe
deles. Foram aqueles olhos que acenderam o terror dentro
dela, aqueles olhos suplicantes. Ela fechou os próprios
olhos.
— Acorde, Wendy — sussurrou para si mesmo. — Por
favor, acorde.
— Você não se lembra? — perguntou o menino de olhos
tristes, e as pálpebras dela se abriram apenas para
descobrir que ela ainda estava sonhando.
— Por favor, se lembre — disse outro, um menino gracioso
e pequeno que fazia beicinho e com os olhos prestes a
derramar lágrimas.
— Não — murmurou ela.
O gancho. A pele suave contra a dela. A dor. Sangue na
água.
Seu corpo tremia conforme as imagens corriam pela sua
mente e eram expulsas mais uma vez, trancadas em
armários escuros, enterradas em túmulos vazios.
— Fiquem longe de mim — sussurrou ela. — Por favor.
Tenho uma vida inteira pela frente.
Ela não sabia se estava falando com os Garotos Perdidos
ou com as imagens.
— Meu noivo é um bom homem. Talvez, depois que nos
casarmos, possamos ficar com um ou dois de vocês. Ele é
gentil, vejam. Não é como…
Uma porta bateu em sua mente.
— Como quem, Wendy?
Gancho, pensou ela. Meu James.
— Não! — gritou ela, arrancando as cobertas de cima dela
e pulando da cama, lágrimas quentes jorrando dos seus
olhos. — Me deixem em paz, maldição! Me deixem viver!
Com os dedos curvados como garras, ela deu um salto na
direção do menino mais próximo. Atravessando-o, sentindo
arrepios na pele, ela caiu no carpete e ficou em posição
fetal, uma bagunça de prantos.
Sob a luz da lua, ela ficou deitada fora do alcance das
cortinas flutuantes e chorou até o doce esquecimento das
profundezas do sono.
Quando acordou durante a aurora, com o corpo doendo e
congelado, voltou para debaixo das cobertas em busca de
calor e conforto, e disse a si mesma que nunca haveria
outra noite em que precisaria ter medo de pesadelos. Pelo
restante da vida, ela acordaria pela manhã com Jasper ao
seu lado e ele a abraçaria e a beijaria até que a última
sombra do sono fosse embora.
O sol nasceu em uma manhã de céu azul.
Não havia traço da neblina.

O mundo começou a parecer real para Wendy quando a


carruagem parou em frente à igreja. Flores foram colocadas
na porta e nos degraus, e a beleza do momento a fez perder
o fôlego. Um sorriso se espalhou pelos seus lábios e se
transformou em uma risada, e ela se virou para pai, um
banqueiro mal-humorado, e viu que ele também sorria —
que estava radiante, na verdade — e que seus olhos
estavam cheios de amor e orgulho.
— Nunca pensou que veria esse dia, não é, pai? —
provocou Wendy.
George Darling deu um pigarro para se recompor.
— Houve momentos… — Ele se permitiu dizer. — Mas aqui
estamos, minha querida. Aqui estamos.
Ele respirou fundo e desceu da carruagem, também
decorada com arranjos doados pelas amigas da mãe de
Wendy, que faziam parte de um comitê por trás da
Exposição de Flores de Chelsea. Dois padrinhos de
casamento saíram da igreja, mas o pai de Wendy os
dispensou com um aceno e ofereceu a própria mão para
guiá-la pelos degraus da carruagem.
George deu um passo atrás. Ele nunca fora sentimental, e
agora parecia lutar contra quaisquer emoções enterradas
dentro dele. Entre as emoções que ela esperava, Wendy viu
uma centelha de inquietação.
— Você está linda — disse ele.
Wendy sabia que era verdade. Ela raramente tolerava a
vaidade completa, mas, no dia do seu casamento, e naquele
vestido… bem, ela poderia se perdoar. Cetim da cor de
creme, preso com um laço simples, fora um dos primeiros
vestidos que ela vira e gostara dele de imediato. Com
decote, e mangas até os cotovelos, ele tinha uma elegância
sincera que se refletia na simplicidade do véu e da cauda
curta. Seu pai a ajudou a pegar a cauda, espalhou-a atrás
dela e pegou sua mão conforme ambos encaravam a igreja.
— Srta. Darling — disse um dos padrinhos, cujo nome ela
esquecera. Sentia-se terrível, mas parecia que seus
pensamentos eram uma desordem só.
— Estou prestes a me casar — falou ela, apenas para
ouvir aquelas palavras em voz alta.
— Sim, minha querida — concordou George. — Todos
estão esperando por você.
O padrinho de nome esquecido entregou-lhe um buquê de
botões laranja e o outro abriu as portas da igreja. Momentos
depois, Wendy se viu sendo levada até o altar pelo pai
outrora mal-humorado, agora orgulhoso. Uma corneta tocou
e, sem seguida, o órgão, e todos os rostos se viraram para
ela, de forma que ela pudesse ver todos e nenhum ao
mesmo tempo. Ela cheirou as flores e seu coração bateu
mais forte conforme ela começava a se sentir tonta e a
cambalear um pouco.
— Wendy — sussurrou o pai para ela, seu braço apertando
o dela com mais força. — Você está bem?
Adiante, no altar, as madrinhas e os padrinhos estavam
espalhados em cada lado. O vigário estava no meio,
respeitável e sério. A mãe estava sentada na primeira
fileira, o irmão John estava entre os padrinhos. E lá estava
Jasper, tão elegante em seu casaco matinal, seu cabelo
preto brilhando, seus olhos azuis sorrindo.
Ela não se sentia mais tonta. Apenas a salvo e segura.
Até o menininho sair de trás de uma coluna — o garotinho
com os olhos tristes.
— Parem com isso! — gritou ele. — Vocês precisam parar!
Wendy ficou em choque, sentindo uma dor terrível na
barriga, como se estivesse sendo partida ao meio. Ela
perdeu o fôlego e então cobriu a boca, observando através
da rede de seu véu, certa de que seus amigos e familiares
pensariam que ela era louca — mais uma vez. Eles vão
pensar que sou louca mais uma vez.
Mas os olhos deles não estavam nela. Os convidados do
casamento encaram o menininho vestido em trapos, e
quando o segundo garoto correu pela porta até a sacristia, e
o vigário gritou com ele, furioso com aquela invasão, Wendy
enfim entendeu.
O vigário conseguia ver os meninos.
Todos conseguiam ver os meninos.
— Saiam daqui, seus pirralhos! — bradou o vigário. — Não
vou permitir que vocês estraguem o dia…
O garoto de olhos tristes parou diante de Jasper, que só
conseguia encará-lo, se divertindo um pouco. Ser gentil era
da natureza de Jasper, aquela indulgência quando qualquer
outro noivo teria ficado irado.
O terceiro menino saiu das sombras de trás do altar, como
se estivesse ali o tempo todo. E, claro, ele devia ter ficado.
— Não, não, não — disse Wendy, se afastando,
arrancando o braço do aperto do seu pai. Ela se forçou a
fechar os olhos, porque eles não poderiam estar ali. Não
poderiam ser reais.
— Wendy? — disse seu pai. Ela abriu os olhos e o viu
olhando para ela.
Ele sabia. Embora sempre tenha dito a ela que eram
frutos da imaginação e sonhos, ele sempre ficava inquieto
quando falava deles. Espíritos, dizia, não existem, a não ser
nas mentes dos loucos e dos culpados.
Qual deles eu sou?, ela perguntou ao pai na ocasião. Qual
deles eu sou?
Jasper bateu palmas duas vezes, chamando toda a
atenção para si. A irrealidade daquele momento colapsou
em tangibilidade e verdade. Wendy respirou. Cheirou as
flores. Ouviu os protestos e os pigarros dos aturdidos
convidados do casamento.
— Muito bem, garotos, vocês já se divertiram — disse
Jasper. — Agora saiam!
— Wendy, querida — falou um dos meninos, encarando
Jasper, lágrimas nascendo em seus olhos. — Ela não é nem
um pouco “querida”. Você não a conhece, senhor. Ela será
uma mãe cruel. Vai abandonar os filhos…
— Calúnias! — gritou o pai de Wendy. — Como se atreve a
falar da minha filha dessa maneira?
Wendy só conseguiu ver, sem respirar, Jasper caminhando
até o menino de olhos tristes e agarrando a manga da
camisa esfarrapada dele. Ela viu a forma que o tecido
imundo se retorcia nas mãos dele e parecia que a cortina
entre sonho e realidade enfim fora arrancada.
— Não — falou ela, olhando para Jasper… e para os
garotos. — Por favor, não…
Seu noivo olhou para ela, pensando que Wendy tinha
falado com ele, mas os garotos também a encararam. Eles
sabiam a verdade.
— Ela já teve um filho — disse um menino pálido e magro,
indo ficar ao lado de Jasper, os olhos suplicantes. — Vá em
frente. Pergunte a ela.
— Pergunte a ela o que aconteceu com aquela criança —
falou o menino de olhos tristes.
Tremendo, Wendy ia de um lado para outro, presa por
todos aqueles olhos que a observavam. Jasper franziu o
cenho, encarando-a, e ela pôde ver a dúvida crescendo
dentro dele, ver seus lábios começando a formular uma
pergunta. Seu pai ainda olhava para os garotos com raiva,
mas até ele tinha uma centelha de hesitação. Na primeira
fileira, Mary Darling saltou do banco e estendeu uma das
mãos na direção da filha.
— Wendy?
Balançando a cabeça, Wendy começou a se afastar dos
seus entes queridos, recuando pelo meio da igreja. Ela
tropeçou na cauda de seda e, quando caiu no meio da
pureza suave do tecido, gritou.
— Pergunte a ela! — berrou um dos meninos. Ou talvez
tenham sido todos eles.
Levantando-se do chão e mexendo na cauda atrás dela,
Wendy correu. Ela sentia o corpo todo quente, mas, quando
viu de relance a mão esquerda enquanto corria, ela estava
pálida como mármore. Pálida como a morte. Na entrada da
igreja, algumas pétalas de rosa tinham sido jogadas, pétalas
que deveriam ficar no caminho dela e de seu marido após a
cerimônia. Para ela, pareciam sangue de uma ferida.
Ela saiu em disparada da igreja, um abismo de perguntas
não respondidas atrás dela, e correu pelos degraus com
medo de que, se não se apresasse, o silêncio vazio a
arrastaria de volta. A dor esfaqueava a sua barriga, e seu
coração martelava em seu peito. Seus olhos queimavam e,
ainda assim, estranhamente, não havia lágrimas. Ela se
sentia incapaz de chorar.
No fim da escada, ela arrancou a cauda do vestido.
Quando olhou para cima, cavalos chiavam e bufavam. Sua
carruagem de casamento a aguardava. O condutor olhou
para ela com olhos gentis, e a gentileza dele a encheu de
repulsa.
— Wendy!
A voz de Jasper. Atrás dela. Ela não se atreveu a olhar
para ele.
Disparando pela rua, ela entrou em uma ruela apertada
entre uma alfaiataria e uma padaria. Na esquina, quase
colidiu com outros dois Garotos Perdidos — nomes, você
sabe o nome deles — e se virou para a direita para evitar
bater neles, descendo a rua à toda velocidade agora. Mais
um menino surgiu à sua esquerda, saindo de um beco, mas
esse garoto era diferente dos demais. Ele tinha sido
bastante queimado, pele e roupas carbonizadas, e, diferente
do restante, ele não tinha substância, a carne tão
translúcida que ela podia ver a parede de pedras do edifício
atrás dele.
Ela gemeu, tropeçando angustiada, e caiu no chão. Seu
vestido estava rasgado e seu joelho sangrava, então,
quando ela conseguiu se colocar de pé e correu gritando —
o luto remexendo as suas entranhas —, uma mancha de um
vermelho vivo ensopou o cetim, as pétalas de uma rosa
carmesim.
— Mãe — disse o garoto queimado atrás dela.
Ela não olhou para trás, mas observou de relance as
janelas de um pub conforme passava em disparada. No
vidro, viu o reflexo deles, não apenas do garoto queimado,
mas de todos os outros também, um com a cabeça
inclinada demais, o pescoço quebrado, outro que apanhara
tanto que os traços do rosto estavam arruinados.
Momentos antes de irromper entre dois prédios, ela
percebeu para onde estava indo o tempo todo. Ela
escolhera o caminho ou foram eles que a guiaram até lá?
Isso importava?
Wendy encarou as margens do Tâmisa, na água corrente
profunda, e toda a sua força se esvaiu. Trôpega e vazia, ela
se encaminhou para a margem.
Perto dali, um bebê chorava.
Olhando de relance para a esquerda, ela viu o cobertor
enrolado talvez a quatro metrôs de distância, bem perto da
água. O choro do bebê ficou mais alto e mais urgente, e ela
foi na direção dele.
Ela conhecia o padrão daquele cobertor. O cobertor dele.
Ajoelhando-se na margem, seu vestido manchado de
sangue encharcando-se com a umidade, ela esticou a mão
para puxar o cobertor do rosto do bebê. O rosto dele estava
azul, inchado e frio, os olhos injetados, esbugalhados e sem
vida.
O soluço veio de seu peito conforme ela pegou a criança,
colocou-a nos braços e aconchegou-a no peito. Mesmo
assim, ela ainda não conseguia chorar, mas fechou os olhos
bem forte e rezou por lágrimas.
O cobertor em seus braços pareceu leve demais.
Arquejando, ela abriu os olhos.
— Não, por favor — sussurrou ela conforme abria o
cobertor vazio. O cobertor vazio e ensopado.
— Mãe — disse uma voz muito próxima, e a mão de
alguém tocou o ombro dela.
Wendy congelou, o ar arranhando seu peito. Não era o
garoto queimado ou o de olhos tristes da igreja. Era outro
garoto.
Ainda ajoelhada, ela se virou para encará-lo. Nove anos de
idade agora, a pele ainda azul, os olhos ainda injetados e
sem vida. O menino dela.
— Peter — murmurou ela.
Ele enfiou os dedos no cabelo dela conforme Wendy
gritava seu nome — um nome que ela nunca tinha falado
em voz alta. Wendy bateu nos braços dele e arranhou seu
rosto conforme ele a arrastava para a água e a afundava no
rio. Através da água, ela o encarou e seus traços ficaram
borrados e mudaram, formando o rosto do pai dele, James,
o garoto do açougue. Ele tinha ganhado esse apelido com o
gancho sujo de sangue que usava para manejar os pedaços
de carne no açougue no fim da rua dos Darling.
Seu peito queimava por ar, a urgência de sua necessidade
forçando-a a bater mais forte no rosto acima dela, que
agora tinha se tornado o rosto dela, só que nove anos mais
nova. As mãos que a mantinham debaixo d’água eram as
suas, mas ela não era mais si mesma — em vez disso, ela
era um bebezinho, tão recém-nascido que ainda tinha
manchas de sangue do ventre materno. Um bebê concebido
por uma mãe e um pai que também eram crianças,
carregado e nascido em segredo — um segredo mantido a
salvo pelos irmãos dela na privacidade do quarto que
compartilhavam, um segredo que destruiu seu
relacionamento com eles para sempre. Um segredo que só
era possível pela negligência de um pai e a negação de uma
mãe.
Peter, pensou ela.
Faminta por ar, pensamentos e visões desbotando,
diminuindo, escapando, Wendy abriu a boca e engoliu o rio.
A escuridão rastejou para o canto dos seus olhos, sombras
em seu cérebro, e ela percebeu que tinha parado de lutar.
Seus braços deslizaram para dentro d’água e seu cabelo se
juntava na frente do rosto dela. Cetim branco manchado de
sangue flutuava em uma nuvem que a envolvia e abraçava.
As mãos que a seguravam agora eram maiores. Mãos de
um homem. Elas a retiraram do rio e, por um momento,
Wendy viu apenas escuridão, um véu sombrio para uma
mãe cruel.
— Wendy — falou uma voz com urgência.
Ela o viu então. Não o menininho afogado, mas Jasper, seu
noivo. Ele ajoelhou ao seu lado, desesperado e suplicante,
chamando seu nome.
Ao redor deles na margem do rio estavam os Garotos
Perdidos, aquelas crianças recusadas, cada uma delas
morta pela mãe. Os garotos mortos que ela já tinha
conhecido antes, na noite em que afogou Peter no Tâmisa,
quando eles apontaram seus dedos trêmulos para ela e
disseram que ela carregaria a maldição sombria do
assassinato até o fim de seus dias, que ela poderia até
chegar perto da felicidade, mas que nunca a sentiria. Eles
eram a mancha na alma dela e ficaram visíveis para as
pessoas na igreja, sonhos lúgubres que ganharam vida, mas
agora se tornaram invisíveis de novo. Jasper chorava sobre
ela, sem perceber a presença deles…
Wendy só podia observá-lo a uma curta distância. O
vestido dela parecia seco agora, mas a mancha de sangue
permaneceu.
— Não — murmurou ela conforme a escuridão recuava de
seus pensamentos e ela entendia o que via.
Jasper estava ajoelhado, de luto por ela e pela vida que
eles poderiam ter tido juntos. Wendy viu o próprio corpo
sem vida, o espírito dela tão invisível quanto os Garotos
Perdidos. Outras pessoas começaram a correr para a
margem — seus pais e seu irmão John, a esposa do vigário e
o irmão de Jasper, além de uma tia e um tio. Eles pareciam
fantasmas para ela, aqueles indivíduos vivos, o luto deles
distante e desinteressante.
Os Garotos Perdidos a rodearam, os olhos mortos agora
contentes.
— Mãe — sussurrou Peter, pegando a mão direita dela.
Outro garoto pegou sua mão esquerda. Ela baixou a
cabeça e viu os olhos tristes que tanto a perturbaram em
seus sonhos.
— Você prometeu ser uma mãe para todos nós, para
sempre — disse o menino de olhos tristonhos.
Wendy piscou e se virou para o rio. De alguma maneira,
ela ainda podia ver o bebê enrolado no cobertor flutuando
na água, o tecido molhado levando-o para baixo,
exatamente como naquela noite nove anos atrás.
— Para sempre — falou Peter.
Eles a guiaram gentilmente para dentro do rio, onde a
corrente escura levou todos embora.
FADAS LOBISOMENS VERSUS
VAMPIROS ZUMBIS
CHARLIE JANE ANDERS

S
e um dia você estiver em Freeboro, na Carolina
do Norte, procure pela placa do touro. Ela fica
pendurada na lateral de um prédio que tem uma
lanchonete que vende macarrão vietnamita e
uma oficina de carros, perto de um beco que é
praticamente uma saída de esgoto. Só atravesse o beco se
for corajoso o bastante para não olhar por cima do ombro
quando ouvir os barulhos guturais atrás de você. Se chegar
ao fim sem olhar para trás, vire à esquerda e tome cuidado
ao descer os degraus cheios de musgo. A porta de carvalho
lá embaixo da escada só vai abrir se você tiver o tipo certo
de gingado.
E se ela realmente abrir, você vai se encontrar no
Rachel’s Bar & Grill, o melhor botequim das Carolinas. Meu
bar. Só tem uma regra: se você tem um problema, resolve lá
fora. (Fora do meu bar é bom, fora da minha cidade é
melhor ainda, fora da realidade em si é a melhor coisa de
todas.) Eu tenho um monte de histórias sobre o Rachel’s.
Poderia citar alguns nomes — mas algumas dessas pessoas
pode acabar aparecendo. Mas tem uma história que ilustra
bem por que você não deve arranjar problemas no meu bar
e como nós cuidamos dos nossos. Também é a história de
como o bar ganhou sua mascote.
Tinha essa jovem chamada Antonia, que foi de uma linda
bebedora de absinto para uma das minhas clientes
regulares em um mês. A pele dela era tão pálida que era
quase prateada, os traços eram delicados e os pulsos eram
tão finos que ela poderia enfiar a mão no garrafão de vinho
barato atrás do bar — mas ela teria que tirar a mão rápido,
ou Leroy, o duende do vinho, poderia arrancá-la com uma
mordida. Enfim, ela chega perto de mim na hora de fechar e
me pergunta se eu tenho um trabalho para ela. Ela pode
limpar mesas ou até tocar o violão dela algumas noites por
semana.
Se você já esteve no Rachel’s, você sabe que não precisa
de música ao vivo, ou qualquer outra coisa, para dar
atmosfera ao local. Se tem uma coisa que a gente tem
sobrando é atmosfera. É só sentar em um dos nossos
reservados com assentos de veludo — as marcas nas mesas
de madeira contam as histórias delas, e as manchas no
assento se desdobram para sair do caminho da sua bunda.
Do trepidar gentil das tábuas do teto até as luzes cor de
âmbar piscando, passando pelas fotos autografadas de
dragões famosos e súcubos celebridades nas paredes de
tijolo, o lugar é a cidade da atmosfera.
Mas então eu tinha ouvido a Antonia cantar e tocar violão,
e era como a chuva de um dia de verão logo depois de você
ter dado o seu primeiro beijo ou algo assim. Bem lírico. Eu
deixei ela tocar no Rachel’s uma noite e não consegui
acreditar — o pessoal que normalmente só entornava um
jarro da minha sangria “especial” e então desaparecia
estava ficando para ouvir ela, derramando lágrimas
luminescentes que, devagarinho, flutuavam no ar e então
se transformavam em vespas cristalinas. (A sangria faz isso
mesmo.)
Então, depois da Antonia acabar de cantar naquela
primeira noite, eu fui até ela e disse que talvez a gente
pudesse fazer aquilo funcionar, se ela estivesse disposta a
limpar algumas mesas além de fazer o Lilith Fair dela.
— Só tem uma coisa que eu não entendo — falei. — É
óbvio que você é fada, pelo efeito que teve nos idiotas que
vêm aqui. E você é igualzinha àquela princesa desaparecida
da Alta Corte de Silvânia. A princesa Lavinia. — (Silvânia é o
que as fadas chamam de Pensilvânia, o centro do poder
deles.) — Dizem que sua majestade suprema, o rei
Castanha, chora toda noite e daria metade das riquezas de
Silvânia para ter você de volta. A rainha, Mab, o delineador
dela está borrado há meses. Isso sem mencionar o
apaixonadinho do príncipe Azaron. Então por quê?
— Nunca mais posso retornar para casa — disse Antonia
(ou Lavinia) chorando. — Arrependo-me do dia em que
decidi me aventurar e ver o mundo por mim mesma. Pois
naquele dia, encontrei uma maldição tão monstruosa que
não posso arriscar infligí-la a ninguém do meu povo. Não
posso desfazer o que foi feito. A única maneira de proteger
meus amigos e minha família e me manter bem longe deles.
Estou permanentemente exilada, e a culpa é de minha
própria tolice. Agora, por favor, não me pergunte mais nada,
pois bebi de sua sangria e temo que minhas lágrimas
possam picá-la de maneira um tanto cruel.
Não falei mais nada, mesmo com a curiosidade sobre a
maldição que manteve a princesa das fadas longe da Corte
Feérica no condado de Bucks. Não soube de mais nada —
até algumas semanas depois, quando a Lua Cheia chegou.
Antonia apareceu como sempre, usando um vestido
resplandecente de renda feito do melhor samito (acho que
era um Gunne Sax vintage). Ela murmurou alguma coisa
sobre como o show dela ia ser menor que o normal, porque
não estava se sentindo bem. Eu falei que não tinha
problema, que ia colocar o jogo de hóquei na TV de tela
grande. (Eu mencionei a TV de tela grande? Também é
grande parte da atmosfera. A gente tem noite de karaokê às
sextas.) Enfim, a intenção dela era tocar por uma hora, mas
ela se deixou levar por essa linda e triste melodia sobre dois
amantes separados para sempre por um vento cruel, e ficou
mais escuro lá fora conforme a música dela chegava ao
cume de emoção.
E então um negócio estranho aconteceu. As mãos dela,
tão pequenas, começaram a crescer, e o violão ficou mais
frenético e dissonante. Cabelo começou a crescer por toda a
sua pele, e o rosto dela estava mudando também, se
transformando em um focinho.
— Não! — gritou ela (ou uivou?), conforme suas orelhas já
pontudas ficavam ainda mais pontudas e o cabelo dela
ficava mais grosso e mais parecido com pelo. — Não, eu não
permito! Não aqui, não agora. É cedo demais! Pelo meu
sangue feérico, eu o comando: renda-se! — E, com aquela
última palavra, a transformação parou. O cabelo nas suas
mãos desapareceu, o rosto voltou ao normal, e ela só
parecia um pouco mais lupina que o normal. Ela mal teve
tempo de colocar o violão no estojo, deixando-o no bar,
antes de subir correndo a escada que leva até a porta. Eu a
ouvi subindo para dentro do beco e fugindo, sua respiração
dura e gutural.
Antonia não apareceu por três dias, até a lua ficar
minguante. Quando ela enfim cantou para nós, sua música
estava mais lúgubre do que nunca, cheia de uma paixão tão
sexy que nossos órgãos internos derreteram em um fondue
de saudade.
Agora, naquela mesma época, eu estava pensando em
abrir uma franquia. (Aguenta um pouco que isso faz parte
da história.) As coisas estavam indo muito bem em
Freeboro, e eu queria abrir outro bar no lado oposto de
Triad, na cidade de Evening Falls. O maior problema era que
você não ia querer abrir um bar voltado para clientes
místicos e mitológicos em um shopping com uma Igreja
Batista Primitiva, um salão de manicure e uma churrascaria
na Highway 40. E Evening Falls tinha poucos desses lugares
propriamente isolados, todos classificados pela prefeitura
como zonas puramente residenciais ou apenas para
restaurantes.
Se você já esteve no Rachel’s, já deve ter ouvido as
minhas opiniões sobre os malefícios do zoneamento. Mas
caso você não tenha ouvido… [Nota do editor: os próximos
dez parágrafos do manuscrito consistem em um discurso
sobre zonas de habitação e como elas são comparáveis a
sapos-cururus gigantes comedores de carne humana ou
vespas-chifrudas. Você pode ler o texto na internet, no site
www.monstrosdoplanejamentourbano.org.]
Enfim, onde é que eu estava? Franquias. Então, eu
conheço algumas bruxas e facilitadores de todos os tipos,
que podem fazer você acreditar que sábado é segunda, mas
é difícil colocar uma maldição em todo o conselho de
planejamento. Então pensei em como eu poderia fazer para
convencer aquelas pessoas. E foi aí que me lembrei de que
eu tinha a minha própria fada cantora encantadora, com um
toque lupino dentro dela, na folha de pagamento.
Os olhos de Antonia se esbugalharam ainda mais e seus
lábios tremeram quando eu pedi para ela vir comigo e tocar
em uma festa para as elites secretas de Evening Falls.
— Não posso — disse ela. — Faria qualquer coisa dentro
de minhas capacidades para ajudar você, Rachel, mas tenho
medo de viajar para algum local em que possa ser
reconhecida. E minha música não é mais para qualquer
pessoa, é apenas para os perdidos e os desesperados. Não
posso ficar aqui, em seu bar, e tocar para seus clientes?
— Olha, veja bem — falei, empurrando-a para cima do
meu banco de bar menos carnívoro. — Eu fui bem legal com
você, e um monte de gente já teria ligado para o telefone
do lado da caixa de leite de cardo para pegar a recompensa.
Ouro das fadas! Do tipo verdadeiro, não aquele que some
depois de uma hora. Isso sem mencionar que eu tolero o
perigo constante de você morder os meus clientes e
transformar eles em lobisomens. O que, para ser justa,
poderia melhorar a disposição deles e talvez assim eles
dessem gorjetas melhores. Mas você sabe, é tudo sobre
uma mão lavar a outra, mesmo quando uma dessas mãos é
um tentáculo. Ou uma garra. Embora você não fosse querer
que um dos Padres-Polvos de Wilmington lavasse nenhuma
das suas partes, a não ser que quisesse tatuagens de tinta
de lula aparecendo na sua pele por anos depois disso. Bem,
onde eu estava mesmo?
— Você estava tentando me chantagear — disse Antonia,
com um fiapo de dignidade. — Pois bem, Rachel. Você
demonstrou do que sua amizade é feita. Vou tocar em seu
“arrasta-pé”.
— Que bom, que bom. Era tudo que eu queria. — Juro,
deveria ter uma edição especial para fadas de Como chegar
ao sim, só para ajudar a lidar com esse drama feérico.
Então a gente preparou um banquetezinho bem legal em
uma igreja quacre em Evening Falls, com carne de porco
desfiada e quiabo frito. É claro que, considerando que a
maioria daquelas pessoas estava envolvida em
zoneamento, a gente deveria ter deixado que sacrificassem
uma virgem. Quer dizer, falando sério. [O restante dessa
seção está disponível em
www.monstrosdoplanejamentourbano.org — Os editores.]
Onde eu estava? Ah, sim. Então, a maior parte do grupo
era formada pelas pessoas de sempre: velhas carolas,
políticos de baixo calão, empresários locais e por aí vai. Mas
havia dois homens que chamavam tanta atenção quanto
vespas-chifrudas em uma tourada.
Sebastian Valcourt era alto, com belas maçãs do rosto e
uma testa nobre, sob um escândalo de cabelo ondulado
preto que ele provavelmente passava uma hora todo dia
secando com o secador. Usava um terno sob medida, mas a
camisa estava desabotoada quase até o umbigo, revelando
um peito sem pelos que era feito de dinheiro. Sem
brincadeira, eu conhecia um stripper chamado Velcro que
era três-quartos elfo e ele teria matado por aquele peitoral.
O outro homem surpreendentemente bonito se chamava
Gilbert Longwood, e era tão grande e tão forte que parecia
uma estátua clássica. Seus braços eram como falésias
marinhas e seu rosto era enorme e com o queixo quadrado
— como um busto de mármore, só que os olhos dele tinham
pupilas, o que provavelmente era uma coisa boa. Quando
ele segurou a minha mão, senti o aperto e aquilo fez meus
joelhos tremeram. Mas, desde o início da noite, tanto Gilbert
quanto Sebastian só tinham olhos para uma mulher.
Assim que Antonia começou a tocar, já tinha acabado —
todo mundo no local ficou caidinho por ela, e eu poderia ter
conseguido uma permissão para colocar uma pista de
boliche dentro de uma igreja se quisesse. Depois, fiquei
conversando com Gilbert enquanto Sebastian saltava para o
outro lado do salão como um dançarino de balé,
aterrissando em frente a Antonia e beijando a mão dela com
a testa ampla. Ele falou alguma coisa e ela cobriu a risada
com a mão.
— Você deu uma festa divertida — disse Gilbert, tentando
não olhar para o galanteio acrobático que acontecia no
outro canto. — Não me lembro de ter visto metade dessas
pessoas demonstrar qualquer emoção desde que o
historiador da cidade ateou fogo a si mesmo alguns anos
atrás. — A voz dele era como um gongo ecoando por uma
cripta. Eu nunca soube muito bem do passado de Gilbert,
mas entendo que ele era o filho de um escultor rico, parte
da família mais proeminente de Evening Falls.
Àquela altura, Gilbert tinha desistido de fingir que não
estava encarando Antonia.
— É — falei. — Eu descobri aquela garota. Ensinei tudo
que ela sabe. Só que mantive alguns segredos para mim, se
é que você me entende, e eu acho que entende. — Pisquei.
— Peço sua licença, por favor, graciosa senhora — disse
Gilbert. Quando ele se curvou em reverência, parecia uma
ponte levadiça descendo e subindo de novo. Ele caminhou
até o outro lado do cômodo, passando por todas as pessoas
que queriam perguntar para ele sobre zoneamento (os
abutres!) no caminho até onde Sebastian estava brindando
com Antonia.
Eu não pude chegar perto o suficiente para ouvir a
conversa que se sucedeu, mas os rostos deles me falaram
tudo que eu precisava saber. A boca de Sebastian sorriu,
mas seus olhos de âmbar-esverdeado queimavam de desejo
por Antonia, mesmo quando ele fez algum comentário
impróprio para ferir os sentimentos de Gilbert. Gilbert sorriu
de volta, e deixou a esperteza espalhafatosa de Sebastian
bater e voltar no seu rosto de granito enquanto permanecia
olhando para Antonia o tempo inteiro. Quanto a Antonia, ela
corou e observou as profundezas da sua taça de
refrigerante Cheerwine.
Dava para ver um triângulo amoroso nascendo, com os
cantos tão afiados que poderiam cortar sua barriga ao meio
e deixar suas entranhas trêmulas expostas a qualquer tipo
de infecção, incluindo estafilococos resistentes a remédios,
uma coisa que, nos últimos tempos, tem me deixado louca.
Eu sempre lavo as minhas mãos duas vezes, com sabonete
antibacteriano e água benta. Onde eu estava? Ah, é,
triângulo amoroso. Aquilo era um isósceles de puro desejo
fervente, em que dois homens sofreriam de amor pela
mesma mulher impossivelmente bonita com o coração
partido para sempre. Meu primeiro pensamento foi: “Tem
que ter uma maneira de ganhar dinheiro com isso.”
E é claro que tinha. Eu me certifiquei de que Antonia não
desse a eles o seu telefone, nem mesmo sua arroba no
Twitter. Se eles queriam stalkear ela, eles teriam que ir ao
Rachel’s Bar & Grill. E eu consegui dar a entender aos dois
que o que deixava Antonia impressionada era quando um
cara tinha um grande grupo de amigos que bebiam muito.
Eu não precisei ligar a TV de tela grande nem mesmo uma
vez no mês seguinte. Com seus galanteios efervescentes
em relação a Antonia, Sebastian e Gilbert ofereciam tanto
entretenimento gratuito quanto dez maratonas de Um amor
de família. Talvez até onze. Sebastian deu a Antonia um
pequeno unicórnio feito de estanho, que cavalgava pela
palma da mão dela, mas que permanecia parado em outros
lugares. Gilbert levou tantas flores que o bar cheirava bem
pela primeira vez desde 1987.
Certa noite, eu vi Gilbert de olho em Antonia enquanto ela
estava sentada em um dos banquinhos do bar chorando
uma balada. Ela usava uma saia de lona comprida, e seus
pés estavam cruzados no apoio do banquinho. Ele
observava os ângulos trágicos dela — tão graciosos, com
tendões que flexionavam como os sentimentos mais
profundos do coração — e seus grandes olhos castanhos
ficaram marejados.
E então Sebastian chegou, acompanhado de dois outros
homens estranhamente bonitos, anormalmente em forma e
com olhos expressivos. Quando você pensava que suas
sobrancelhas não podiam ficar mais expressivas ou que
seus olhares não poderiam ser mais ardentes, eles iam lá e
aumentavam a dose. As sobrancelhas deles tinham o
alcance dramático de mil Kenneth Branaghs — talvez mil
Kenneth Branaghs por sobrancelha, na verdade. Os outros
dois trocaram sorrisinhos irônicos enquanto Sebastian
mantinha o olhar fixo nos lábios pequenos que tremiam sem
parar e nos olhos gigantes e cheios de tristeza de Antonia.
Algumas semanas — e alguns milhares de dólares de
bebida da melhor qualidade — depois, Sebastian e Gilbert
começaram a falar com Antonia sobre a paixão que
sentiam.
— Um coração ferido tão gravemente quanto o seu
precisa de um cuidado especial, milady — falou Gilbert, a
voz grave retumbante. — Minhas mãos são fortes, mas meu
toque é gentil, e eu a manterei a salvo. — As costeletas dele
eram retângulos perfeitos, emoldurando suas maçãs do
rosto esculpidas perfeitamente.
— Temo que… — Antonia se virou para colocar o violão no
estojo, a fim de esconder a angústia de seu rosto por um
momento. — Temo que o único remédio para quem tem
uma condição como a minha seja a solidão, entrelaçada
com a boa companhia aqui no Rachel’s. Mas sempre
estimarei sua amizade, Gilbert.
Pouco depois, Sebastian se aproximou de Antonia, sem
seus camaradas.
— Minha querida — disse ele. — Sua beleza brilha mais do
que qualquer um desses rótulos de cerveja em néon. Mas é
sua voz, seu tom doce e triste, que me encantou mais do
que qualquer coisa que encontrei em décadas. Deve
concordar em ser minha, ou não terei escolha a não ser me
tornar ainda mais misterioso, até que vire um mistério para
mim mesmo. Eu falei isso alto? O que quis dizer é que vou
definhar. Observe minhas sobrancelhas e vai ver como falo
sério.
— Ah, Sebastian. — Antonia riu e suspirou logo depois. —
Tivesse eu uma lasca de coração para dar, bem poderia dá-
la a você. Mas você fala com uma mulher vazia.
Blá-blá-blá. Isso continuou para sempre, e eu precisei
fazer novos pedidos do uísque single malt, isso sem
mencionar os conhaques baratos e Southern Comfort.
Quem poderia dizer o quanto aquilo teria durado se tanto
Sebastian quanto Gilbert não tivessem aparecido em uma
noite em que Antonia não estava? (Você adivinhou: Lua
Cheia.) Os dois começaram a discutir sobre quem tinha
direito a Antonia. Gilbert ribombou que Sebastian só queria
usar a moça, enquanto Sebastian falou que Gilbert era um
brutamontes feio demais para ela. Gilbert tentou dar um
soco em Sebastian e errou, e foi assim que eu mandei eles
resolverem aquilo lá fora.
Pouco tempo depois, todos nós fomos lá para fora assistir.
Sebastian dançava como Prince em uma frigideira quente,
enquanto Gilbert continuava socando com seus punhos
gigantescos e errado. Até que, finalmente, o antebraço de
Gilbert atingiu Sebastian no ombro, e ele saiu voando para
aterrissar de bunda no chão. Foi aí que as coisas ficaram
divertidas: o rosto de Sebastian ficou todo duro e com
aparência de couro, e presas surgiram em sua boca. Ele deu
uma cambalhota no ar, mirando um chute rápido em Gilbert
— que ergue o punho do tamanho de um pedregulho para
que ele colidisse com o rosto de Sebastian.
Depois disso, a luta consistiu em Gilbert socando
Sebastian sem parar.
— Vampiro idiota — murmurou Sebastian. — Você não é o
primeiro chupador de sangue que eu arrebento.
Àquela altura, a mandíbula de Sebastian parecia
deslocada. As sobrancelhas expressivas estavam retorcidas
de dor.
— Eu não sou… um vampiro… normal — sibilou ele.
Gilbert desceu o punho de marreta no crânio de Sebastian.
Sebastian caiu no chão, uma pilha de ossos nada
elegante. E sorriu.
— Quanto mais eu apanho… mais difícil é… me matar —
disse ele com a voz raspando. E então se levantou com as
pernas cambaleantes, a carne descascando.
O sorriso de Sebastian ficou solto e distendido. Em vez
dos comentários espertinhos de sempre, ele disse apenas
uma palavra:
— Cééééééérebro…
Gilbert continuou socando Sebastian, mas não adiantava.
Nada conseguia pará-lo. Sebastian atacou Gilbert com uma
força terrível e finalmente acertou um ponto fraco, o lugar
em que a cabeça de Gilbert encontrava o pescoço — e
assim, a cabeça de Gilbert caiu, rolando até os meus pés.
A cabeça decepada de Gilbert olhou para mim.
— Diga a Antonia… que meu amor por ela é verdadeiro. —
E aí a cabeça virou pedra. O mesmo aconteceu com o
restante do corpo, que desabou e quebrou em diversos
pedaços no meio do beco escuro.
Sebastian olhou para mim e para os poucos outros
clientes regulares que estavam assistindo. Ele rosnou e o
que tinha sobrado da sua boca falou:
— Cééééééééééééééérebro!
O cliente mais perto era Jerry Dorfenglock, que
frequentava o Rachel’s havia vinte anos. Ele tinha uma
careca bem legal, e ele já tinha experimentado pentear o
cabelo lateral por cima da cabeça até o outro lado até cortar
tudo, que nem o Kojak, antes de decidir aceitar o que ela
era: dois tufos de cabelo grisalho flanqueando um domo
sereno. Sebastian abriu aquele escalpo nobre junto com a
caveira abaixo dele. Com ambas as mãos, Sebastian tentou
pegar um pouco dos miolos do pobre Jerry, mas parou no
último segundo. Então, ele se inclinou e afundou os dentes
no pescoço de Jerry, chupando todo o sangue do corpo dele
em um gole só.
Um momento depois, Sebastian desviou os olhos da casca
do cadáver de Jerry, parecendo mais como era antes.
— Se eu… — Ele parou para limpar a boca. — Se eu comer
o cérebro, me torno irrevogavelmente o zumbi. Mas se eu
beber o sangue, volto ao meu eu vampírico magnífico. É
sempre difícil lembrar a mim mesmo. Pense nisso como a
barreira sangue-cérebro entre o trapaceiro charmoso… e o
inimigo cambaleante. — O outro cliente que estivera
assistindo à luta, Lou, tentou fugir, mas Sebastian era
rápido demais.
Eu olhei para as cascas sem sangue dos meus dois
melhores clientes, além dos pedaços de calcário do pobre
Gilbert, e então de volta a Sebastian — que agora tinha a
mesma aparência de antes, como se nada tivesse
acontecido, tirando as manchas no seu terno sob medida.
Decidi que manter o tom casual era minha maior chance de
sair dali com vida.
— Então você é meio vampiro, meio zumbi — falei como
se estivesse discutindo uma reprise de Seinfeld. — Isso é
uma coisa que não se vê todo dia, acho.
— É uma história interessantíssima — disse Sebastian. —
Quando era mortal, amei uma beleza negra misteriosa, que
se tornava mais misteriosa a cada hora. Meu coração quase
explodiu pelo amor que eu sentia. Por fim, ela revelou a
mim que era uma vampira ancestral e me ofereceu a
chance de ser seu consorte. Ela me deu seu sangue e me
disse que, se eu morresse nas próximas doze horas, me
tornaria um vampiro e poderia me juntar a ela. Se eu não
morresse, poderia voltar à minha vida mortal. Ela me deixou
sozinho para tomar a decisão. Fui até meu lugar favorito às
margens do lago Stoneflower, para considerar minha
decisão e saborear meu último dia na Terra… pois já sabia
qual era minha escolha. Mas, então, um zumbi surgiu do
fundo do lago, onde aterrorizava um robalo, e me mordeu
no rosto. Morri no mesmo instante, porém, conforme o
sangue de vampiro me transformava no eterno jovem
apaixonado pela escuridão, a mordida do zumbi também
fazia sua mágica. Agora, sou um vampiro, contanto que
mantenha uma dieta regular de sangue restaurador.
— Que história legal — falei. Eu já estava pensando no
que faria com os corpos de Lou e Jerry, já que eu tinha a
impressão de que Sebastian consideraria remoção de
cadáveres um trabalho de mulher. — Você devia vender os
direitos para a TV.
— Agradeço o conselho. — Sebastian fitou o fundo dos
meus olhos, e seu olhar me congelou. — Você não vai falar
a ninguém sobre o que viu e ouviu hoje. — Conforme falava,
as palavras se tornaram uma lei inquebrável para mim.
E então Sebastian saiu caminhando para longe, me
deixando — o que foi que eu disse? — para enterrar os
corpos. Pelo menos com Gilbert era só uma questão de
levar os pedaços para o Parque da Estátua Arruinada a
algumas ruas de distância.
Quando eu enfim acabei, minhas mãos estavam horríveis,
e eu estava suando, tremendo e talvez até chorando um
pouco. Voltei para o bar e me servi uma dose de bourbon
Wild Turkey, e aí mais outra, e depois mais um pouco. Eu
queria poder conversar com alguém sobre aquilo. Mas é
claro que eu estava sob o efeito de um feitiço mental e não
poderia falar uma palavra.
Ainda bem que eu tinha uma conta no Hotmail.
Eu coloquei as coisas da forma mais simples que consegui
em um longo e-mail para Antonia, incluindo toda a bagunça
que era a coisa do “vampiro que também é zumbi”. Terminei
o e-mail falando: “O negócio, querida, é que Sebastian vai
pensar que você não sabe nada sobre isso, e, com Gilbert
fora do caminho, ele vai agir. Definitivamente NÃO se case
com ele, o lance de ser meio zumbi é inaceitável, mas não
tente lutar com ele também. Ele tem aquela coisa de que,
quanto mais você o machuca, mais zumbi ele fica e aí não
dá para ganhar; ele vai vencer você de qualquer maneira.
Isso sem mencionar que a Lua Cheia acaba amanhã de
manhã, então você não tem mais um lobo do seu lado. Só
se mantenha a salvo, ok, porque acabaria comigo ver
alguma coisa acontecer com você — quero dizer que você
traz os clientes e o dinheiro deles, não se preocupe, não
estou ficando sentimental com você. Sua chefe, Rachel.”
Ela apareceu no dia seguinte, agarrada à cabeça de
Gilbert. Os olhos estavam inchados e os tendões do pescoço
apareciam quando ela soluçava. Eu dei a ela um copo de
absinto sem falar nada, e ela bebeu tudo na mesma hora.
Então fiz outro, com o cubo de açúcar e tudo o mais.
Eu não tinha certeza se o controle mental de Sebastian
me impediria de dizer que eu sentia muito, mas não me
impediu. Antonia deu de ombros e desabou no meu ombro,
chorando na minha camiseta de flanela, a testa de Gilbert
pressionando o meu estômago.
— Gilbert realmente me amava — disse ela quando foi
recuperar o fôlego e se sentou no seu banquinho de tocar
música de sempre. — Ele me amava mais do que eu
merecia. Eu… eu estava finalmente pronta para me render e
dar meu coração de novo. Tinha me decidido enquanto
corria com os lobos.
— Você ia sair com o Gilbert? — Eu tive que me sentar.
— Não. Eu daria a má notícia para Gilbert gentilmente e,
então, ia sair com Sebastian. Porque ele me faz rir. — Ela
abriu o estojo do violão, revelando uma espada brilhante de
aço silvaniano com o brasão de Thuiron, o Deliberador no
cabo, em vez do instrumento. — Agora, tenho que matá-lo.
— Ei, ei, ei — falei. — Tem algumas boas razões para não
fazer isso, sobre as quais não posso falar agora, mas se
você esperar um minuto e me deixar pegar um bloco de
papel e uma caneta, vou ficar feliz em explicar…
— Você já explicou. — Ela colocou a mão esquerda no
meu ombro. — Obrigada pela sua gentileza, Rachel.
— Eu não… — O que eu poderia dizer? O que eu tinha
permissão de dizer? — Eu não quero que você morra.
— Não vou morrer. — Ela sorriu com pelo menos parte do
rosto.
— Vai começar o show mais cedo hoje? Tenho um pedido
a fazer — disse Sebastian do vão da porta no topo da
escada que levava ao bar, emoldurado pelo restinho de luz
do dia. — Eu queria ouvir um pouco de Van Morrison, em
vez dessa…
Antonia jogou a cabeça de Gilbert em Sebastian. Os olhos
dele se arregalaram quando ele percebeu o que era aquilo e
o que significava. Ela quase se abaixou, mas optou por
pegar a cabeça com uma só mão, para mostrar que ele
ainda estava no controle da situação. No entanto, enquanto
ele estava distraído, Antonia já corria com a espada,
fazendo um barulho enquanto a arma cortava o ar.
Antonia empalou Sebastian, mas errou o coração dele. Ele
deu um chute na cara dela, e ela caiu, cega por causa do
sangue.
— Então é assim que vai ser? — Sebastian jogou a cabeça
no reservado mais perto, onde ela caiu de rosto para cima
na mesa. — Confesso que estou desapontado. Eu ia casar e
depois matar você. Fico com mais tesouro das fadas assim.
— Você… Você… — Antonia cuspiu sangue. — Você nunca
me amou.
— Ah, acorda. — Sebastian ficou em cima de Antonia,
puxou a espada para fora do peito dele e levou-a para cima
de sua cabeça com as duas mãos, querendo dar um corte
limpo. — Vou levar os seus restos para Silvânia e então
contar uma história linda sobre como nos apaixonamos e
nos casamos antes de você ser morta por um javali
selvagem ou um vendedor de seguros. Fique quieta, vai
doer menos assim.
Antonia deu um chute nas suas partes reprodutoras, mas
ele nem ligou. A espada brilhante zuniu em direção ao
pescoço dela.
— Ei! — Eu peguei minha espingarda vorpal de cano duplo
de baixo do balcão. — Sem. Brigas. No. Bar.
— A gente pode resolver isso lá fora — disse Sebastian,
sem mover a espada.
— Tarde demais para isso — falei. — Você está no bar,
então eu decido como a gente vai resolver isso.
— E como vai ser?
Respondi com a primeira coisa que me passou pela
cabeça.
— Com um concurso de karaokê.
E como era o meu bar e eu tenho algumas proteções
preparadas para esse tipo de situação, os dois tinham que
obedecer às minhas palavras. Sebastian reclamou um
pouco, especialmente porque Antonia era uma cantora
semiprofissional, mas não tinha como evitar. A gente
demorou algumas horas para organizar tudo e achar alguns
juízes e colocar uns feitiços de imparcialidade neles, para
manter a competição justa.
Eu até abri o meu garrafão de vinho bom e dei taças de
graça para todo mundo. Assim que seu ninho ficou vazio,
Leroy, o duende do vinho, se arrastou até o bar e apertou os
olhos.
Antonia foi primeiro, e foi direto na jugular — com músicas
da Broadway. Você provavelmente nunca viu uma princesa
das fadas cantar “Don’t Tell Mama”, do Cabaret, girando o
quadril em passos burlescos de dança e fazendo uma coisa
meio Betty Boop quando piscou para a plateia. De alguma
maneira, ela colocou toda a raiva e paixão, toda a ira
justificada tipo da Sarah McLachlan, em um rugido no refrão
final. Os juízes desenharam bons números altos e
tagarelaram com tom de aprovação.
E aí foi a vez de Sebastian — e ele arrebentou com aquela
música do Red Hot Chili Peppers sobre a Cidade dos Anjos.
Ele até colocou mais delineador. Ele olhou fixo para cada um
de nós com aquele olhar vampírico raso, mesmo quando
estava mostrando um fac-símile de uma alma, cantando
sobre estar perdido e solitário e sobre querer o seu maldito
lugar ao sol. O filho da mãe ia ganhar aquele negócio.
Mas tinha uma coisa que eu sabia com certeza. Eu sabia
que ele ia ter que fechar os olhos, por pelo menos um
segundo, quando chegasse nas notas agudas da ponte
sobre a ponte, depois do segundo refrão.
Então, quando Sebastian cantou “Under The Bridge
Downtown”, os olhos dele fecharam para que a voz pudesse
flutuar acima da guitarra de Frusciante mudando do modo
“papinha” para o modo “lixo”. E foi aí que eu atirei nele com
a minha espingarda vorpal. Um na cara, outro no peito. Eu
recarreguei o mais rápido possível, e atirei no peito de novo,
e depois no joelho esquerdo, só para garantir.
Não foi o suficiente para atrasá-lo, mas foi o suficiente
para ele mudar. De repente, a letra virou: “Under the bridge
downtown, I could not get enough… CÉÉÉÉÉÉREBROS!!”
Ele jogou o microfone longe e foi para cima da plateia. Os
três juízes, ainda enfeitiçados para serem cem por cento
imparciais, permaneceram sentados pacientemente,
observando aquilo e fazendo anotações nas suas folhas de
papel, até que um dos clientes os empurrou para fora do
caminho. Leroy, o duende do vinho, cobriu o rosto e gritou
pela segurança de seu garrafão. Pessoas passaram umas
por cima das outras para chegar até a escada.
— Eu assumo daqui em diante. — Antonia ergueu a
espada, girando a arma como um chefe de cozinha de
Benihana enquanto o orgasmo guitarrístico de Frusciante
chegava ao clímax. Ela arrancou um dos braços de
Sebastian, mas ele mal notou.
Ela desferiu outro golpe, tentando arrancar a cabeça
dessa vez, mas ele conseguiu dar um passo de lado e tentar
atingir Antonia com uma cabeçada. A cara dele foi atingida
pela lâmina, e de novo ele mal percebeu, e empurrou o fio
para dentro da barriga de Antonia com a testa. O sangue
jorrou dela conforme a menina caía no chão, e ele pegou o
líquido na boca como se fosse chuva.
Um segundo depois, Sebastian era Sebastian de novo.
— Ah, sangue de fada — falou. — Não tem nada igual.
Antonia tentou se levantar de novo, mas voltou ao chão
com um gemido, curvada sobre o estômago ferido.
Dei outro tiro, mas errei, e Sebastian quebrou a
espingarda no meio. E então quebrou meus dois braços.
— Ninguém vai vir cantar karaokê aqui se você atirar na
cara das pessoas enquanto elas estiverem cantando. Sério.
— Tentei não dar a ela a satisfação de me ouvir chorar.
Antonia levantou a cabeça e lançou um feitiço de fogo.
Fumaça começou a sair do corpo de Sebastian, mas ele
apenas deu de ombros.
— Você já viu o que acontece quando tenta me machucar.
— A fumaça se tornou uma parede de fogo sólida, mas ele a
afastou com um golpe de tai chi. — Então por que se dar ao
trabalho?
— Boa parte — a voz de Antonia veio do outro lado da
parede de fogo — era para distraí-luuuuuuuuuu! — Seu
rosnado virou um uivo, um grito bárbaro por vingança.
Pode ser que exista uma visão mais incrível do que um
lobo branco gigante pulando por uma parede de fogo sólida.
Se existe, eu não vi. Antonia — porque, de alguma forma,
ela conseguiu reunir o suficiente do seu lobo interior para
mudar — tirou as garras para fora durante o pulo. Seus
olhos brilhavam vermelhos e suas orelhas estavam para
trás conforme as chamas abriam espaço para ela e faziam
chover faíscas sobre seu pelo branco cor de mármore.
Sebastian foi pego de surpresa. A primeira mordida dela
abriu o pescoço dele, e a cabeça ficou pendurada em um
lado. Ele começou a virar zumbi de novo, mas Antonia já o
estava arranhando.
— Não… não deixa ele te morder! — gritei de trás do
balcão.
Sebastian quase tinha conseguido pegar Antonia com os
dentes, mas ela desviou.
— CÉÉÉÉREBRO!
Ela estava em cima dele, as mandíbulas abrindo e
fechando sem parar, mas ele mordia tão forte quanto ela. A
saliva de zumbi e os dentes de vampiro estava a
centímetros do pescoço dela.
Eu engatinhei até o cooler onde deixe os jarros de sangria,
e puxei a tampa com meus dentes. Derrubei garrafas e
jarras tentando pegar a surpresa que tinha deixado ali na
noite anterior, em um jarro grande coberto por papel-
celofane.
Eu não tinha enterrado tudo de Lou e Jerry.
Peguei o jarro com os dentes e equilibrei-o entre meus
dois braços e meu queixo, e então levei até onde Antonia e
Sebastian ainda tentavam morder um ao outro.
— Ei — falei com a voz rouca —, guardei um negócio para
você, seu filho da mãe.
E aí derrubei o conteúdo do jarro — o cérebro de dois
caros em um belo vinagrete balsâmico — na cara de
Sebastian. Assim que começou a comer os cérebros, ele não
conseguiu mais parar. Ele estava com miolos no rosto todo e
tentava engolir aquilo o mais rápido possível. Cérebro
entrava nos olhos dele e no que tinha sobrado do nariz. Não
tinha mais como ele voltar atrás agora.
Antonia quebrou o jarro de vidro e segurou um grande
caco nas suas mandíbulas fortes de lobo, cortando o
pescoço de Sebastian até a cabeça sair. Ele ainda estava
engolindo os últimos pedaços de cérebro que tinha na boca
e tentava lamber pedacinhos que ficaram no rosto.
Demorou uma hora para arrumarem os ossos dos meus
braços e eu fiquei com gessos do tamanho de barris de
chope. Colocamos a cabeça de Sebastian em outro jarro,
com uma luz negra dentro para que, sempre que o aparelho
de som tocasse Red Hot Chili Peppers, ele se animasse e
seu rosto ficasse roxo. Eu nunca pensei que iam pedir tanta
música do RHCP no Rachel’s. Mas também nunca consegui
a permissão para abrir um segundo bar.
Quanto a Antonia, acho que toda essa experiência a
deixou mais durona e a fez perceber que ser um pouco um
animal selvagem não é uma coisa ruim para uma princesa
das fadas. E que Anthony Kiedis não tem o alcance musical
que pensa ter. E que, quando se trata de triângulos
amorosos e duelos até a morte, você sempre deve
trapacear. E que fugir dos seus problemas não funciona por
tanto tempo. Tem algumas outras lições também, que eu
imprimi e plastifiquei para ela. Ela continua cantando no
bar, mas fez algumas viagens até Silvânia durante a lua
crescente, e eles estão procurando uma cura para ela.
Provavelmente ela poderia voltar e ser uma princesa se
quisesse, mas estamos conversando sobre fazermos
negócios juntas e abrir alguns bares de karaokê em
Charlotte e Winston-Salem. Ela está aprendendo a levar as
coisas numa boa. Acho que a gente pode conquistar o
mundo.
OLHE AQUI DENTRO
MICHAEL MARSHALL SMITH

E
u vou contar uma mentirinha para você antes
de a gente começar. Não se preocupe — depois
eu conto qual é. Vou deixá-lo com a verdade,
prometo.
Mas vou contar a outra coisa antes.
E eu estou grávida.

Eu estava jantando fora quando começou. Era um jantar de


trabalho, o que significa passar algumas horas em um
restaurante italiano do Soho enquanto o meu chefe divaga
sobre os desafios que a empresa está enfrentando nesse
período de dificuldade econômica e faz um ótimo trabalho
ao não ficar encarando o meu decote.
O jantar não demorou muito; mesmo depois de pegar o
metrô, eu estava em casa às 21h30. Eu sou dona de uma
casa bem pequena em uma área ao norte de Londres
chamada Kentish Town, não muito longe da estação de
metrô e da estrada principal. Hoje em dia, Kentish Town é
basicamente o interstício entre as vizinhanças mais legais e
mais caras de Hampstead, Highgate e Camden, mas, antes
de ser engolida pelo avanço urbano, era um lugar digno de
pouca nota, um espaço aberto que ganhava vida pelo belo
rio Fleet — que nascia em uma fonte em Hampstead Heath,
mas há tanto tempo tão poluído e com o curso tão
modificado que o rio acabou sendo perdido, e foi
completamente pavimentado e redirecionado para o esgoto.
Minha pequena casa estreita fica perto de onde o rio um
dia correu, no centro de uma região do meio da era
Vitoriana, e tem três andares de altura (e mais um pouco),
com um jardinzinho nos fundos diminuído pela metade por
uma extensão da cozinha feita pelo antigo proprietário.
Originalmente, ou assim o antigo dono me falou, as casas
foram construídas para servir de moradia para as famílias
dos homens que trabalhavam na linha férrea. É uma casa
anormalmente normal, exceto pelo fato de que um lado do
meu jardim é cercado por um muro de pedras, e que uma
dessas pedras tem uma velha inscrição do St. John’s
College. Um pouco de pesquisa me mostrou que, centenas
de anos atrás, a terra em que essas casas foram
construídas — e um bom pedaço de Kentish Town —
pertencia à instituição, que faz parte da Universidade de
Cambridge. Por que um colégio seria dono de um jardim a
milhares de quilômetros de distância está além da minha
compreensão, mas eu também nunca entendi por que as
pessoas gostam de reality shows ou do Colin Firth, então
pode ser que eu seja a errada nessa história.
Aqui termina o tour pelo lugar.
É uma casa bem pequena, mas tenho sorte em ser dona
dela, já que os preços do mercado imobiliário de Londres
são absurdos. Bem… não foi só sorte. Ah, como os meus
amigos me sacanearam quando eu comprei minha primeira
quitinete e me acorrentei a uma hipoteca logo depois da
universidade; mas agora que eu consegui trocar por um
lugar com uma escada de verdade enquanto eles ainda têm
que morar de aluguel em apartamentos de dois quartos em
vizinhanças nas quais nem hipsters querem viver; não é
mais tão engraçado assim, pelo que parece (exceto para
mim, claro).
Assim que chego, penduro meu casaco, tiro os sapatos e
desabotoo o botão de cima da minha saia em uma tentativa
de me sentir mais confortável em um universo pós-
macarrão. Finalmente civilizada, eu entro na sala de estar
(uma jornada épica de exatamente cinco passos) e na
cozinha, onde cochilo esperando a água da chaleira ferver.
Eu só tinha bebido duas taças de vinho, mas estava
cansada, e a combinação das duas coisas me coloca em um
transe de contornos borrados.
E então, sem nenhuma razão consciente, eu me viro e
vejo a minha sala de estar.
A água da chaleira tinha acabado de ferver, jogando uma
nuvem de vapor na minha cara, e mesmo assim eu senti um
frio na parte de trás do pescoço.
Alguém havia entrado na minha casa.

Eu tinha certeza daquilo. Ou senti que tinha. De uma


maneira um tanto romântica (do tipo “que fofinho, mas
idiota”), sempre acreditei que você saberia de alguma
forma que alguém tinha estado na sua casa: que a invasão
de um estranho deixaria algum traço físico palpável, que
nosso lar é nosso amigo e que vai denunciar o intruso.
Uma casa não passa de paredes com um telhado e uma
coleção de objetos e mobília — a maior parte deles
escolhida por razões econômicas, não com uma atenção
infinita ou um rigor existencial —, e a única diferença entre
você e qualquer outra pessoa no planeta é que você tem o
direito por lei de estar ali. E, mesmo assim, eu sabia.
Eu sabia que alguém tinha entrado na minha casa.
E se ele ainda estiver aqui?
A extensão da cozinha tem uma porta lateral, minha porta
dos fundos, acho, que dá para o jardim. Eu poderia abrir e
escapar por ela. No entanto, não chegaria muito longe, já
que os jardins dos vizinhos estão do outro lado de cercas
altas (uma delas construída sobre a mureta velha de
pedras).
Eu não gostava daquela ideia por outras razões também.
Era a minha casa, caramba, e eu não queria fugir dali. Isso
para não falar que eu me sentiria uma idiota completa se
descobrissem que eu tentei pular a cerca para o jardim de
uma vizinha com base apenas em uma “sensação”. É
exatamente esse tipo de merda que faz as mulheres
perderem toda a reputação.
Contudo, fui até a porta. Girei a maçaneta gentilmente e
descobri que estava destrancada.
Eu sabia que a porta da frente tinha sido trancada — eu a
destranquei quando voltei do jantar. Todas as janelas da
cozinha estavam fechadas e trancadas, e de onde eu
estava, ainda congelada no mesmo lugar, dava para ver que
a janela grande da sala estava trancada também.
Em outras palavras, só havia uma maneira possível de
alguém ter entrado ali — e, no caso, era se eu tivesse
deixado a porta dos fundos destrancada quando saí naquela
manhã.
Eu não sabia nada sobre as táticas de invasões
domiciliares, mas suspeitava que a pessoa deixaria seu
ponto de acesso aberto (ou, ao menos, encostado)
enquanto estivesse nas imediações, para facilitar uma saída
rápida caso o dono da casa aparecesse. Você não deixaria a
porta fechada.
Minha porta dos fundos estava fechada. Minha esperança
era de que aquilo significasse que ele não estivesse nas
imediações.
Relaxei um pouco.
Atravessei a sala de estar na ponta dos pés até o pé da
escada e parei, atenta, tentando ouvir. Não escutei nada, e
eu sabia por experiência própria que aqueles degraus de
madeira são impossíveis de atravessar sem fazer uma
sinfonia de estalos — às vezes, os malditos faziam barulho
no meio da noite mesmo quando não tinha ninguém em
cima deles, especialmente o mais alto.
— Olá?
Prendi a respiração, tentando escutar algum movimento
acima. Nada. Silêncio absoluto.
Com cuidado, explorei o restante da casa: o banheiro e o
assim chamado quarto de hóspedes no primeiro andar; o
quarto e o poço-sem-fundo-de-guardar-roupa; e, por fim, o
“sótão” minúsculo lá em cima, situado acima de sua própria
pequena e mal-acabada escada de cinco degraus. De
acordo com o antigo dono, o cômodo tinha sido pensado
originalmente para uma empregada. Ela teria que ser uma
empregada minúscula.
O lugar era tão apertado que qualquer pessoa de
tamanho normal seria obrigada a dormir em posição fetal.
Ela não teria conseguido ficar de pé ali, conforme eu tinha
confirmado no dia anterior mesmo. Eu finalmente tinha
doado para a caridade algumas caixas velhas de
bugigangas que estavam ocupando aquele espaço desde
que eu me mudara. Durante o processo, estiquei a coluna
em um momento sem pensar e bati a testa na viga velha e
empoeirada com força suficiente para romper a pele,
fazendo com que uma ou duas gotas de sangue caíssem no
chão de madeira.
Eu ainda conseguia ver onde elas caíram, mas pelo menos
aquele cômodo minúsculo estava arrumado agora.
E vazio, assim como todos os outros cômodos.
A casa toda parecia exatamente como eu a tinha deixado
naquela manhã, ou seja, como o lar de uma trabalhadora de
vinte e oito anos que, embora não fosse uma desmazelada
completa, não era obcecada por limpeza. Tudo normal,
nenhum objeto tinha sumido, nem estava fora do lugar. E
não havia ninguém lá.
E nunca tinha havido, claro. A sensação que acreditei ter
tido, a sensação de que alguém tinha estado lá, estava
errada.
Só isso.

Quando voltei para o andar de baixo, estava pensando se


eu deveria assistir à televisão (meu plano original) ou se
deveria tomar um banho e ir para a cama. Ou talvez ir
direto para a cama com um livro. Ou uma revista. Eu ainda
não tinha decidido os detalhes.
Então pensei em outra coisa.
Balancei a cabeça, imaginando que aquilo era idiota, mas
caminhei com passos pesados, cansada, até a cozinha. Eu
poderia dar uma olhada.
Liguei de novo o fogo da chaleira para fazer uma xícara
de chá antes de ir para a cama (no caminho tinha decidido
que já era tarde para passar uma hora assistindo à
programação de bosta da televisão sem dar atenção e que
tudo bem deixar para tomar um banho amanhã, já que não
havia ninguém para me acompanhar até a cama). Assim
que coloquei o saquinho de chá na xícara, voltei-me para o
porta-pão.
Foi minha mãe quem me deu, um presente para a nova
casa que eu tinha comprado. Ele tem um estilo bastante
rústico e ficaria fantástico se colocado ao alcance de um
fogão da marca Aga em uma cozinha de uma casa de
campo (que é o que a minha mãe tem e o que ela gostaria
que eu tivesse também, de preferência o mais rápido
possível e na companhia de um jovem apenas
moderadamente entediante que todo dia iria até o centro de
Londres para um emprego com um bom salário enquanto
me ajudaria a começar a parir crianças em um ritmo
considerável). Na minha estadia atual, o porta-pão só
parecia grande demais para o lugar.
Eu nem como pão, ou pelo menos não com tanta
frequência, já que me dá gases crônicos. Dessa forma,
fiquei convencida de que ele deveria permanecer vazio de
bens assados, exceto por algumas migalhas e por um
croissant duro feito pedra.
Mesmo assim, eu tinha ido até ali para checar o porta-
pão.
Levantei o pegador na frente, o que deixou escapar um
leve cheiro de pão de forma velho. Então dei um gritinho e
pulei para trás.
A parte da frente do porta-pão caiu no balcão com um
barulho que pareceu alto demais. Pisquei os olhos para ver
lá dentro e, com cuidado, estendi a mão.
Havia um bilhete. Peguei-o.
Ele dizia:

É muito linda. Assim como você.

Tenho que voltar um pouco aqui.


Anos atrás, no verão logo após o fim da faculdade, fiz uma
viagem para os Estados Unidos. Na verdade, não posso
descrever aquilo como uma “viagem”, já que só aluguei um
carro e fiquei em motéis na maior parte do tempo — em vez
de heroicamente pedir carona e dormir em albergues torpes
ou acampar na floresta, escapando por um triz de
assassinos psicopatas, heras venenosas e carrapatos cheios
de doença de Lyme —, mas era eu quem estava lá, sozinha,
por dois meses, então isso se qualifica como uma “viagem”
para mim.
No meio disso tudo, eu me hospedei por cinco dias com
alguns velhos amigos dos meus pais, um casal bastante
distinto chamado Brian e Randall que viviam em grandeza
decadente em uma casa antiga de uma pequena cidade
próxima às montanhas Adirondack do estado de Nova York,
cujo nome me escapa agora. Foi um período agradável,
durante o qual eu aprendi que Mozart não é de todo ruim,
que minha mãe uma vez vomitou por duas horas depois de
passar a noite bebendo vinho do Porto e que você pode
melhorar muito um queijo cottage ao misturar um pouco de
endro fresco nele. Fato.
Na minha primeira noite lá, notei uma coisa. Randall fora
dormir no andar de cima. Brian, o mais másculo dos dois por
uma pequena vantagem, ficou um pouco mais de tempo
comigo, me dando conselhos sobre pontos turísticos locais
que valiam ser visitados (quase nenhum, de acordo com
ele).
Conforme desejávamos boa-noite um para o outro na
cozinha, notei que ele verificou se a porta dos fundos da
casa estava fechada (mas sem trancá-la, veja bem) e parou
por um momento diante de uma caixinha de madeira fixada
na parede oposta, antes de dar um tapinha nela.
Acordei cedo na manhã seguinte e, enquanto fazia uma
xícara de chá para mim (Brian e Randall eram anglófilos
ardentes, tendo passado muitos anos vivendo em Oxford, e,
assim, tinham uma variedade impressionante de chás de
verdade para eu escolher), me distraí e dei uma olhada na
caixinha de madeira.
Era pequena, com uns cinco centímetros de profundidade,
vinte e dois de largura e quinze de altura. Tinha uma tampa
com dobradiças e as palavras OLHE AQUI DENTRO!
pintadas.
Eu não achava que era de bom tom bisbilhotar, mas, e
isso foi só uns dias depois — após ver Brian fazer o seu
ritual noturno outras duas vezes —, eu enfim perguntei do
que se tratava. Brian revirou os olhos.
— É uma coisa boba — respondeu. Ele gesticulou
indicando que eu deveria me aproximar. — Vê o que ela diz?
— “Olhe aqui dentro” — falei.
— Isso faz você querer fazer o quê?
— Bem… olhar lá dentro.
Ele sorriu.
— Que bom. Vá em frente.
Abri a caixinha. Dentro dela, havia um envelope. Olhei
para Brian.
— Pode pegar.
Tirei o envelope da caixa. Estava aberto. Dentro dele,
havia um cartão de visitas alegre com as palavras BEM-
VINDO, AMIGO impressas com clareza na frente e outro
envelope, um pouco menor do que o primeiro. Deixei o
segundo envelope de lado por um momento e li a
mensagem que havia no cartão.

Querido visitante não convidado,


Seja bem-vindo a esta casa. Nós a chamamos de
nossa já faz algum tempo agora e gostamos muito dela.
Espero que você encontre alguma utilidade para o que
está neste envelope e que isso seja um incentivo para
você seguir o seu caminho, sem outras perdas ou danos
ao nosso querido lar. Se assim for, você tem o nosso
muito obrigado e desejamos-lhe o melhor.
Atenciosamente,
Randall & Brian
Franzi o cenho em dúvida e encarei Brian.
— Dê uma olhada no segundo envelope — disse ele.
Coloquei o cartão na mesa e abri o envelope. Dentro dele,
presas por um clipe de papel grande com um rosto
sorridente nele, havia notas que totalizavam 260 dólares.
— Nós começamos com cem — explicou Brian. — E
acrescentamos vinte dólares todo ano. Então deve fazer uns
sete anos agora, suponho. Não, oito. O tempo voa, não é? —
Ele fez um gesto vago para indicar a casa como um todo. —
Ninguém vai invadir a casa pela porta da frente. Fica bem
na rua principal e, em uma cidade pequena como essa, as
pessoas ficam de olho nas propriedades dos vizinhos.
Alguém poderia invadir pela lateral, mas quebrar janelas é
complicado e costuma fazer muito barulho. Então sempre
deixamos a porta dos fundos aberta.
— O quê? Por quê?
— Porque esta é a forma mais óbvia de invadir a casa,
minha querida, e custaria centenas e centenas de dólares
para consertar uma porta quebrada, isso sem falar do
tempo perdido e da inconveniência… e quem sabe o que
eles roubariam ou quebrariam quando entrassem? Da
maneira que está agora, uma pessoa pode simplesmente
abrir a porta e entrar na casa, e, uma vez dentro da
cozinha, a primeira coisa que se vê é a caixa. É difícil
resistir, não acha?
Eu sorria, encantada pela ideia.
— E funciona?
— Não faço ideia — falou Brian. — Nunca, jamais tive que
abandonar o meu sono ou retornar de minhas caminhadas
durante o dia para descobrir que o envelope tinha
desaparecido. A coisa toda foi ideia do Randall, para falar a
verdade. Em geral, acho que é melhor deixar ele fazer as
coisas da forma que quer. A não ser, é claro, quando se
trata de fazer um bom e suave molho Hollandaise. Nesse
quesito, ele está… completamente errado.
Alguns dias depois, voltei para dentro do meu carro
alugado e parti para o que quer que fosse que queria fazer
(uma espécie de jornada pelas Carolinas, acho, embora,
como a minha rota era totalmente sem forma e significado,
tudo fica um pouco misturado na minha cabeça agora). Mas
é evidente que eu trouxe a ideia de Randall quando retornei
para Londres, porém — enterrada debaixo de pilhas de
lembranças conscientes até eu me mudar para esta casa.
No meu apartamento antigo, não teria feito muito sentido,
já que ficava no terceiro andar. Mas logo depois que eu me
mudei para a casa em Kentish Town, vi a caixinha de
madeira na loja de quinquilharias local, e a ideia apareceu
na minha cabeça como se estivesse esperando
pacientemente pela minha atenção durante todo esse
tempo.
Comprei a caixa e escolhi um lugar na parede, a quase
dois metros do corredor da minha porta da frente. Passei
uma tarde feliz pintando meticulosamente as palavras OLHE
AQUI DENTRO! na tampa. Você seria bondoso ao descrever
o resultado como artístico, mas estava legível. Quando
pendurei a caixa em um prego, me senti boba.
Não porque eu tinha feito aquilo — eu ainda estava
maravilhada com a ideia —, mas porque estava roubando os
frutos da personalidade de outra pessoa. Aquela tinha sido
uma ideia do Randall, e não minha. Na casa que ele dividia
com Brian (que concordara com aquilo timidamente, por
amor), era uma canção de individualidade, como o endro
obrigatório misturado ao queijo cottage. Se eu fizesse a
mesma coisa, seria simplesmente uma imitação.
Então, mudei um pouco. Em vez de colocar um envelope
de dinheiro na caixa da parede, deixei um bilhete mandando
a pessoa olhar…
No porta-pão da cozinha.
E eu nem oferecia dinheiro também. Deixei uma joia lá.
Admito que não era uma joia que significasse o mundo para
mim, mas também não era desprovida de algum valor
sentimental. Eu a tinha comprado em Brighton anos atrás,
paguei mais do que eu podia na época e tinha afeição real
por ela. Escolhi aquela joia pela razão de que acho que um
sacrifício verdadeiro deve vir com algum custo. Ela devia
valer mais ou menos umas cem pratas, ou ao menos era o
que eu imaginava que alguém poderia conseguir nela se a
exibisse por aí nos pubs de baixa reputação da área.
Como Brian, eu nunca tinha acordado ou voltado para
casa e encontrado alguma evidência de que a caixa no
corredor tinha sido descoberta.
Quer dizer, não até aquele momento.
Voltei depressa para o corredor. Parei quando estava a
poucos metros da caixa e me aproximei com cuidado.
Ela parecia estar da mesma forma de sempre, mas, sendo
honesta, eu tinha parado de prestar atenção nela há muito
tempo. Olhei dentro.
O envelope tinha sido aberto.
É claro que tinha. Só podia ter sido. Sem ler a mensagem
que eu escrevera — quase palavra por palavra do que
Randall criara —, a pessoa nunca pensaria em olhar dentro
do porta-pão, e encontrar o que estava lá, e me deixar o
bilhete.
De repente, minhas pernas ficaram completamente
molengas, e eu cambaleei até a sala e me sentei no sofá a
tempo de não cair.

A casa ainda estava vazia, claro. Eu já tinha estabelecido


isso e o que eu acabara de descobrir não mudava aquilo.
Não havia nada a temer. Nada na situação presente, pelo
menos.
Ah… mas havia.
Eu estava certa, afinal. Alguém tinha entrado na minha
casa. A pessoa deu uma olhada nela, encontrou a caixa no
corredor e o bilhete e, então, a joia no porta-pão. Deixou o
próprio bilhete e foi embora.
O que eu deveria fazer? Chamar a polícia?
Bem, é óbvio que sim. Alguém tinha entrado na minha
casa e pegado uma coisa. Embora fosse algo que eu
convidara a pessoa a pegar, claro.
A não ser que…
Dei uma outra olhada pela casa e não vi nada faltando.
Meu iPad e meu MacBook estavam no lugar de sempre,
assim como minha TV barata e meu aparelho de DVD. Assim
como o restante das minhas joias, as que eu não coloquei
no porta-pão. Eu até desenterrei o meu pouco usado talão
de cheques da mesinha de cabeceira e vi que nenhum
cheque tinha sido retirado do meio (um golpe ardiloso que li
em uma revista qualquer: roubar alguns cheques do meio
em vez do talão inteiro, para que o dono só percebesse o
roubo quando fosse tarde demais). Eu nem sei se ladrões
continuam usando cheques, e, fora alguns objetos cujo
único valor era o sentimental, não havia nada que valesse a
pena roubar na casa toda. E nada tinha sido roubado, de
qualquer forma.
Mesmo assim, a pessoa não deveria ter invadido a minha
casa, mesmo que seu único prêmio fosse uma joia que eu
efetivamente ofereci a ela.
Peguei o telefone e voltei para a cozinha, para recuperar o
bilhete que deixei no balcão, pronta para entregar para a
polícia quando eles chegassem. Eu devia ligar para a
emergência, mesmo que não fosse algo emergencial, ou
devia procurar o número da delegacia mais próxima? Eu não
fazia ideia.
Incerta, coloquei o telefone de volta no lugar.

O dia seguinte no trabalho foi frenético e ligeiramente


bizarro, porque a mulher com quem compartilho o escritório
teve um pequeno colapso nervoso no final da manhã, e saiu
brigando com todo mundo para nunca mais voltar. Eu
sempre achei que ela era meio maluca, então não fiquei de
todo surpresa, mas fiquei impressionada com a quantidade
de caos que a partida dela causou.
Meu chefe levou todo aquele evento admiravelmente
numa boa. Ele olhou com desânimo para a bagunça que ela
deixou, me disse para não me preocupar com isso por
enquanto, mas me perguntou se eu me importaria em
atender o telefone dela enquanto a mulher não voltasse ou
ele contratasse alguém para substituí-la. Isso significou que
fiquei ocupada para caramba toda a tarde, mas eu prefiro
assim. O dia de trabalho corre bem mais rápido quando
você não tem tempo para pensar, e eu já tinha
desperdiçado muito do meu dia na internet naquela manhã.
No metrô, quando voltava para casa, tive tempo para
pensar, e é claro que pensei sobretudo no que tinha
acontecido na noite anterior.
Eu não tinha chamado a polícia, afinal. Era tarde e eu
estava cansada, e embora o ocorrido tenha me assustado
um pouco, eu simplesmente não conseguia me ver lidando
com os policiais.
E também… eu pensei Bem, agora acabou. A polícia não
ia conseguir encontrar o ladrão (que tecnicamente nem era
um ladrão; acho que só poderia categorizá-lo de forma
legítima como “invasor”), e a coisa toda ia acabar em uma
pilha de papel empoeirada na delegacia e eles iam me dar
um número do boletim de ocorrência que eu poderia usar
com a seguradora se eu tentasse conseguir algum tipo de
reembolso pela joia.
Antes de ir para a cama, expulsei o acontecido da minha
cabeça, escolhendo não pensar mais nele, e reforcei isso no
metrô e na caminhada de cinco minutos sob chuva
congelante da estação até minha casa — durante a qual,
hedonista lasciva que sou, também parei em uma lojinha na
esquina para comprar uma comida congelada de micro-
ondas para acompanhar o meu chá. E também um potinho
de sorvete. E alguns biscoitos. Considerando tudo, minha
noite parecia estar indo muito bem.
Dessa vez, no entanto, ficou óbvio que alguma coisa
estava errada no minuto em que eu atravessei a porta.
Uma das vantagens de viver sozinha é que você está no
controle total de certas decisões. O aquecimento central,
por exemplo. Meu pai é um tremendo mão de vaca quando
se trata da conta de gás, e a casa dos meus pais é tão fria
no inverno que é bom mesmo que minha mãe tenha um
Aga, para que ela e eu possamos ficar perto dele quando o
meu pai não está olhando. Viver sozinha significa que
nenhum homem pode meter o bedelho sobre como as
noites na minha casa são calorentas. O meu aquecedor é
programado para ligar no meio da tarde, para que o lugar já
esteja agradável e quentinho quando eu chegar. Assim que
a porta da frente é fechada, você já está cercado de calor.
Mas não essa noite. O aquecimento estava ligado, dava
para sentir ao tocar no radiador no corredor, mas a casa
estava fria.
Fui para a sala. As janelas estavam todas fechadas.
Através de uma delas, consegui ver por que a casa não
estava tão quente quanto deveria estar.
A porta dos fundos estava escancarada.
Eu tinha fechado e trancado aquela porta antes de sair
para trabalhar naquela manhã.
Ou assim pensava que tinha feito. Eu sabia que tinha ao
menos fechado a porta, mas não havia checado se ela
estava trancada. Nem chequei se a chave estava no seu
lugar de sempre, presa na fechadura.
Eu me lembrei de um pensamento do dia anterior, de que
era provável que o invasor deixaria uma saída aberta se
estivesse por perto, e percebi que meus olhos foram para
cima, para o teto da sala de estar e os andares sobre ele.
E se ele ainda estivesse aqui?
Peguei meu telefone. Digitei o número da emergência,
mas não apertei o botão para fazer a ligação.
— Tem alguém aí? — gritei para a escada, voltando para o
corredor e para a porta da frente. — Se tiver, saiba que
estou ligando para a polícia. Agora mesmo.
Não houve som lá em cima. Eu sabia que se tivesse
alguém na casa e ele optasse pela violência, eu seria uma
bagunça sangrenta no canto da sala antes mesmo de os
policiais chegarem na metade do caminho por conta do
engarrafamento na estrada de Kentish Town.
Abri um pouco a porta da frente e voltei até a escada.
— A porta da frente está aberta — falei. — Vou sair do seu
caminho. Vou… para a cozinha. Assim, não vou ver você.
Aquela era uma boa ideia? Ou era bem idiota?
Era idiota, decidi.
— Na verdade — falei — tive outra ideia. Eu vou sair. Vou
ficar parada na esquina. Não vou olhar para cá. Feche a
porta para eu saber que você já foi embora.
E foi isso que eu fiz. Saí pela porta da frente, fechando-a
atrás de mim, meu dedo ainda em cima do botão de ligação
no meu telefone. Caminhei depressa até a esquina.
Esperei dez minutos. Não vi ninguém saindo da casa. Pelo
menos não pela porta da frente.
Voltei. Entrei com cuidado.
A porta dos fundos estava fechada.
Corri para o andar de cima, fazendo o máximo de barulho
que podia, e não encontrei ninguém. Então avancei ainda
mais, e coloquei a cabeça para dentro do sótão minúsculo.
Não havia ninguém lá. Nenhum sinal de nada fora do lugar.
Quando voltei para a cozinha, percebi que a porta dos
fundos não estava fechada de verdade. O invasor tinha
puxado a porta quando saiu, mas não tinha fechado ela
propriamente.
Eu a abri e fui até o jardim, por impulso, mesmo sabendo
que ele ainda podia estar ali.
Do lado da minha cozinha, tem um pequeno pátio de
concreto. Além dele, meu “gramado” — um pedaço de
grama descuidada que teria mais ou menos três metros
quadrados se fosse mesmo um quadrado. Na verdade, era
meio que um paralelogramo, com quase dois metros de
largura no final. Por causa das casas altas vizinhas, a grama
quase nunca recebe muita luz, mesmo no verão, e fica
irregular e lamacenta no inverno.
Molhada o suficiente aquela noite, pensei que seria
possível ver as pegadas de um invasor indo embora, marcas
de sapato ou botas.
Não havia nenhuma.
No entanto, outra coisa chamou minha atenção e eu pisei
na grama para olhar melhor.
O quintal tem esse formato porque a parede esquerda
forma um declive para os fundos, e é isso que é feito de
pedra com a antiga placa gasta. A placa está mais embaixo,
na altura de uma criança, não é muito grande e é feita da
mesma pedra que o restante da mureta. Eu só percebi que
a placa estava lá nove meses depois da minha mudança.
Tudo que ela diz é:
JARDIM […]
ST. JOHN’S COLLEGE

… sendo que a segunda palavra não dava para ser lida


porque já tinha sido gasta pelo tempo e pelas intempéries.
A mureta deve ser alguns séculos mais velha do que os
prédios que agora a cercam, essa pequena parte dela
deixada por construtores vitorianos porque ela coincidia
mais ou menos com os minúsculos quintais que eles
estavam deixando naqueles chalés meio mal-acabados para
a classe trabalhadora.
Tinha uma coisa na grama, perto da placa.
Era a minha joia.

Meia hora depois, eu estava na sala com uma xícara de chá.


Meu broche estava na mesa de centro diante de mim. A
casa estava agradável e quentinha agora que a porta dos
fundos tinha permanecido fechada por um tempo.
Era o meu broche, sem dúvida. Ele tinha um design
triangular distinto, cada ponta dele com uma pedra verde e
semipreciosa. Quando eu o vi em uma loja de antiguidades
anos atrás, não fiquei convencida de que era uma
antiguidade. O formato era tão minimalista — literalmente
um triângulo, embora um dos lados fosse um pouco
desigual e todos os lados fossem ligeiramente curvados —
que parecia algo moderno para os meus olhos (que, eu
admito, eram destreinados).
Ele parecia diferente agora. Eu ainda morava no meu
antigo apartamento quando o comprei, e, na época, minha
intenção era fazer uma boa limpeza nele. No entanto,
percebi que gostava da falta de brilho da peça e decidi
deixá-la assim mesmo. Desde então, a joia ficou com o
metal cada vez mais escuro, e quando a coloquei no porta-
pão meses atrás, o metal estava cinza-escuro.
Agora, ele brilhava. A prata — e não havia dúvida de que
era prata, o que significava que eu tinha feito uma
barganha melhor do que pensara — estava tão brilhante
que parecia quase branca.
Ele não parecia apenas limpo — parecia novo em folha.
Qualquer que tenha sido o processo que o deixou assim
revelou outra coisa também. Tinha alguns desenhos no
broche. Bem de leve na prata, estava gravada uma série
incrivelmente fina e detalhada de linhas, curvas e formatos
celtas entrelaçados. À primeira vista, parecia caótico,
porém, quanto mais eu olhava — e eu já estava sentada ali
havia um tempo —, mais eu percebia um padrão que ainda
não tinha conseguido estabelecer. Era lindo e parecia algo
de fora deste mundo, extremamente antigo.
O problema é que eu estava bastante convencida de que
o broche nunca tivera um padrão antes.
Sim, ele estava manchado quando eu o comprei,
conforme admiti — mas, nos primeiros estágios da
oxidação, você vai perceber que qualquer gravação (ou
imperfeição) no metal em geral fica mais óbvia, ao invés de
menos. É mais fácil notar selos que atestam a pureza do
metal, por exemplo. Você vai ao menos notar um padrão,
ainda mais quando estiver observando algo com a atenção
devida quando estiver considerando gastar um dinheiro
ganho com esforço nessa coisa. Eu não tinha notado nada.
Então o que estava acontecendo?
Eu finalmente percebi que não tinha feito nada com as
minhas compras da loja de esquina, largadas no meio da
sala quando notei a porta dos fundos aberta. Corri e peguei
a sacola. O pacote de sorvete brilhava de um jeito que
indicava que ele já estava avançado no processo de
derretimento, cortesia da minha política generosa com o
aquecimento central. Levei tudo para a cozinha, ainda com
o problema dos desenhos no broche na cabeça, e coloquei o
que tinha na sacola dentro do freezer da minha geladeirinha
vagabunda.
Quando me levantei após fazer isso, meus olhos ficaram
na mesma linha que o porta-pão. Alguma coisa me fez ir até
ele e abri-lo.
O mesmo cheiro de pão velho me saudou, embora
parecesse mais forte agora, o que não fazia sentido.
Tinha um pedaço de papel lá dentro também.
Eu sabia que não podia ser o mesmo que tinha
encontrado na noite anterior, pois eu o colocara na gaveta
da escrivaninha da sala (uma porcaria acabada e infeliz que
pertencera à minha avó).
Peguei o papel e li.

Espero que goste do que fiz com ele.

Eu não precisava comparar a caligrafia entre os dois


bilhetes. Com certeza, eram iguais.
Tinha outra linha escrita, quase três centímetros abaixo
no papel. Por que não a percebi de imediato? Porque era
muito mais sutil. Mas não como se desaparecesse, no
entanto — na verdade, era o oposto.
Conforme observava, sentindo o cabelo da nuca arrepiar,
a escrita, a princípio tão fraca que era quase impossível de
ver, aos poucos foi ficando mais forte até estar tão clara
quanto a linha anterior.
Ela dizia:

Eu fiz desenhos em você também.

Não, não chamei a polícia.


Eu poderia ter chamado. Provavelmente deveria ter
chamado. Eu poderia ter falado para eles que as duas linhas
estavam visíveis quando achei o papel. Não precisava
mencionar que o bilhete tinha sido deixado no meu porta-
pão. Nem que eu estava convencida de que alguém, de
alguma forma, tinha feito um desenho leve e intrincado em
um broche velho, de maneira que parecia que esse detalhe
sempre estivera lá.
A questão era que, se eu não fosse honesta sobre essas
coisas, eu não estaria comunicando a realidade da situação.
Eles pensariam que algum depravado local estava invadindo
minha casa rotineiramente, e eu já sabia que não era isso
que estava acontecendo. Eu sabia disso ou, ao menos,
suspeitava — e agora devia começar a ser sincera — desde
o início. Desde que contei a minha mentirinha.
Era uma mentirinha, mas era significativa.
Quando voltei para casa na noite depois do jantar com o
meu chefe, e tive a impressão, pela primeira vez, de que
alguém tinha entrado na minha casa, e dei uma olhada na
porta dos fundos, ela estava destrancada. Ou foi isso que eu
falei para você, pelo menos.
Mas não era verdade.
A porta dos fundos estava trancada.
Estava trancada por dentro. Assim como todas as janelas,
em todos os andares. Assim como a porta da frente
também, até eu destrancá-la para entrar. Ninguém poderia
ter entrado na casa, encontrado o meu bilhete na caixa do
corredor e, então, o broche na cozinha.
Quem quer que tenha feito essas coisas já estava dentro
da casa.
Não sei por quanto tempo. Talvez desde sempre. Foi isso
que comecei a suspeitar. Pelo menos desde que a casa foi
construída, sobre uma terra que um dia fora um jardim
gramado em uma colina, próxima a uma floresta e um belo
riacho agora preso debaixo do chão.
Antes de tudo dar errado no dia — depois que a minha
colega de trabalho sair explodindo pelo escritório e me
deixar com todo o serviço dela —, eu tinha passado um bom
tempo na internet fazendo uma pesquisa que,
provavelmente, eu já deveria ter feito há muito tempo. Eu
sempre presumira que a palavra perdida na placa de pedra
na mureta do meu jardim fosse MEMORIAL — o sinal
colocado ali para demarcar um pedaço do jardim onde as
pessoas iriam para se lembrar daqueles que estavam
mortos.
Não consegui encontrar nenhuma referência a qualquer
coisa desse tipo na área, embora os registros para essa
parte de Londres sejam ótimos, e nunca tinha entendido por
que a placa fora posicionada tão baixa, como se fosse para
os olhos de pessoas bem mais baixas que o usual.
Eu encontrei uma única menção a um “Jardim Oblativo”.
Uma referência sem fontes em um site de história local com
aspecto bem amador que dizia que o pedaço de terra
pertencente ao St. John’s College era um exemplo da
prática, agora há muito esquecida, de murar uma parte de
qualquer prado, colina ou bosque que tivesse a reputação
de ser a casa ou o local de brincadeiras de fadas da floresta
ou elementais, coabitantes do nosso mundo que não
podiam ser vistos. A ideia, aparentemente, era que essas
criaturas permaneceriam dentro dos muros. Para sempre.
As pessoas que viriam a desenvolver a área, séculos mais
tarde, não sabiam disso. As práticas e as crenças que
davam suporte a esse jardim já estavam mortas há muito
tempo. Eles não notaram, e nem se importaram, que os
danos à placa eram desiguais, quase como se alguém
tivesse tirado a segunda palavra para esconder o propósito
original da mureta.
Pouco antes da minha ex-colega ter o colapso nervoso e
eu ter que parar de pesquisar, enfim encontrei um site com
um mapa bem antigo dessa parte de Kentish Town. A
qualidade da imagem estava péssima, e era difícil ler as
coisas, mas parecia mostrar uma pequena área cercada
dentro de um lote de cinquenta acres pertencente a um
colégio de Cambridge. A área cercada não tinha nome, mas,
ao comparar com um mapa moderno da minha rua,
consegui estabelecer que a placa tinha sido colocada dentro
das muretas e que a área cercada não era grande.
Apenas grande o suficiente para incluir a minha casa.

Em algum momento, eu coloquei meu jantar no micro-ondas


e comi em frente à televisão, colocando o volume lá no alto.
O curry tinha um gosto bem melhor do que eu esperava. O
sorvete também estava ótimo, e acabei com todo o pacote
de biscoitos. Meu apetite estava enorme, apesar da coceira
de nervosismo no fundo do meu estômago.
Tomei um banho. Conforme me secava depois, notei
algumas linhas bem finas na pele dos meus ombros, não
exatamente aleatórias, e quando fui para a cama, descobri
que o quarto estava com um leve cheiro de pão fresco.
Mas não exatamente de pão, na verdade. Embora o odor
lembrasse o de massa assada há pouco tempo, agora que
estava longe do porta-pão na cozinha, percebi que era mais
próximo ao cheiro de grama fresca, aquecida pelo sol de
verão. Grama fresca ou flores que acabaram de abrir,
talvez. Alguma coisa vital, mas secreta.
Alguma coisa bem antiga.
Eu vi que o cobertor da minha cama tinha sido
desdobrado de forma perfeita, como um convite
esperançoso. Havia um pedaço de papel na área
descoberta:

Logo, minha linda.

… era tudo que ele dizia a princípio.


Conforme eu observava, porém, outra linha foi se
revelando. Ela apareceu devagar, como se estivesse
ganhando vida com a luz do luar que atravessa a janela.

Só preciso de um pouco mais de sangue.

Foi então que ouvi os primeiros rangidos leves, como pés


pequenos em cima de tábuas velhas, vindo do sótão
minúsculo lá em cima.
Embora, pelo visto, ele não seja tão pequeno assim.
Se é que você me entende.
VERMELHINHA
JANE YOLEN E ADAM STEMPLE

S
ete anos de azar. É nisso que estou pensando
conforme levo o pedaço de espelho quebrado
para o meu antebraço. À direita da veia azul
longa, traçando as finas cicatrizes que vieram
antes.
Não há dor. Ela está do lado de dentro. E não vai sair, não
importa o quanto eu sangre. Não há dor. Mas, por um
momento…
Alívio.
Por um momento.
Até que o sr. L me chama de novo.
— Ei, você, Vermelhinha. Vem cá.
Ele me chama. Não as outras garotas. Talvez seja porque
ele gosta do meu cabelo vermelho atarracado. Gosta de
enrolar seus dedos atarracados de velho nele. E eu não
posso mandar ele parar.
— Quer voltar para casa? — pergunta ele. — Voltar para a
sua avó? Voltar para aquela velha que não para de fazer
tricô? — Ele leu o meu arquivo. Sabe o que vou dizer.
— Não. Até você é melhor do que aquilo. — E então não
digo mais nada. Fujo para uma parte da minha mente e
deixo o corpo com ele.
A floresta é escura, mas eu conheço o caminho. Já estive
aqui antes. Há um caminho logo adiante, cheio de pedras e
mal conservado, mas meus dedos são como agulhas e
tachas. Se eu ficar aqui, passear por aqui por tempo
suficiente, será que vou me tornar um deles para sempre?

Amanheceu e estou de volta, procurando por alguma coisa


afiada. As faxineiras limparam o espelho; e eu acho que o
sr. L encontrou o pedaço que escondi debaixo do colchão.
Não importa — eu sempre posso encontrar alguma coisa.
Clipes de papel roubados do escritório, bijuteria de plástico
quebrada do jeito certo, até uma unha áspera pode romper
a pele, se você tiver coragem.
Alby está virada para a parede e traça linhas do horizonte
imaginárias no cimento branco. Ela é pequena e tem a pele
escura, o cabelo raspado brutalmente perto do escalpo,
exceto por uma trança longa atrás da orelha esquerda.
— Por que você o provoca desse jeito?
— Provoco quem? — Minha voz está rouca por causa da
falta de uso. Já é a manhã seguinte? Ou alguns dias se
passaram? — E como?
— O sr. L. As coisas que você fala para ele… — Tremendo,
Alby parece mais um terrier com pelo molhado do que uma
garota. — Se você ficasse na linha, tenho certeza de que ele
deixaria você em paz.
Sem ter memória alguma de ter falado com o sr. L, eu
apenas dou de ombros.
— Ficar na linha. Ficar no caminho. Qual é a diferença?
— Promete?
— Ok.
— É, obedeça às regras do jogo, deixe eles pensarem que
você está melhorando. — Alby endireita as costas,
pensando na casa dela, imagino. Ela tem uma casa para a
qual voltar. Com cerca de madeira. Garagem para dois
carros. Mãe e pai e uma tigela cheia de cereal matinal.
Nenhuma vó fazendo limonada em uma tarde fria de
domingo. Nenhuma agulha. Nenhum alfinete.
É minha vez de tremer.
— Eu não quero melhorar. Eles podem acabar me
mandando para casa.
Alby me encara. Ela não tem resposta para isso. Eu me
viro para a cama. Começo a apalpar o colchão, pensando se
ainda tem molas dentro daquela coisa velha. Alby volta para
a parede, o dedo desenhando um novo caminho entre as
rachaduras. Cada uma de nós passa o tempo de uma forma
própria aqui.

Nós ganhamos uma nova terapeuta no dia seguinte. Sempre


ganhamos novas terapeutas. Elas ficam por algumas
semanas, alguns meses, e então vão embora.
Essa quer que a gente escreva diários. Ela nos dá lindos
livros encadernados — capas de tecido com flores,
coelhinhos, unicórnios e coisas do tipo — para que a gente
coloque nossos segredos feios neles.
— O meu tem a Rainbow Brite. — Eu não sei dizer se a
Alby está feliz ou com nojo.
A Joelle diz:
— Eles deviam ter cor de meleca. Deviam ser marrons
que nem… — Ela queria dizer merda. Mas nunca chega a
proferir a palavra.
— Quero que você comece a pensar em coisas bonitas,
Joelle — disse a terapeuta. Ela já decorou todos os nossos
nomes. Penso: Essa aí só vai durar duas semanas. Tempo
suficiente para a gente destruir as capas. Tempo suficiente
para Joelle esfregar a coisa marrom dela nas páginas.
Pego o meu diário. Tem florezinhas lindas por toda a capa.
Vou escrever meus pensamentos aqui. Mas eles não serão
bonitos.

AFIADO
tesoura
faca de cozinha
um pedaço de vidro quebrado
não consigo pressionar forte o bastante
para fazer nada além de arranhar a superfície
e o sangue não é vermelho
até tocar o ar

Tudo bem, não rima e não dá para usar isso como uma
melodia, mas ainda é verdade.
— O que você escreveu, Vermelha? — pergunta Alby.
Joelle já saiu para ir ao banheiro. Não quero nem sentir o
cheiro do diário dela.
— Coisas bonitas. — Cubro o poema com a mão. É bonito,
decido. É sombrio e bonito, que nem quando eu sonho.
— Vermelhinha. — O sr. L está parado à porta. — Com
licença, sra. Augustine. Preciso falar com aquela ali.
Ele aponta para mim. Eu vou embora.

De quatro e com o pelo grosso, persigo alguém por uma


floresta escura. Minha presa está logo à frente — consigo
ouvir sua respiração entrecortada, cheirar seu suor de
terror. Com a longa língua rosada de um lado, pulo adiante,
acelerando. Atravesso um arbusto florido cheio de espinhos
e o vejo: o sr. L, nu e coberto de cabelos grisalhos. Posso
sentir o cheiro do seu medo. Então, estou em cima dele, e
meus dentes afiados se afundam em sua carne. Ossos se
partem e sinto o gosto de medula, um contraponto
adocicado a seu sangue salgado.

Acordo na enfermaria, braços e pernas roxos com


machucados recentes.
— Jesus, Vermelha — diz Alby. — Ele te arrebentou mesmo
dessa vez, hein?
— Acho que sim. — Eu não me lembro. Mas parece
provável.
— E parece que você acertou um nele também.
— Ah, é? — Mal consigo me mexer, mas viro o meu rosto
na direção da voz dela.
Alby dá seu sorriso de fada.
— É. Tem um curativo enorme no pescoço dele, tem
mesmo.
Passo a língua nos meus lábios. Imagino que consigo
sentir o gosto de sangue.
— Ele deve ter se machucado quando fez a barba.
Com o sorriso desaparecendo, Alby diz:
— Você que sabe, Vermelha.
Tento me virar para longe dela, mas algo me mantém no
lugar: faixas de couro nos meus pulsos e tornozelos. E uma
na minha cintura.
— Tira de couro para contenção de pacientes com cinco
pontas — fala Alby, com certo respeito. — Você estava bem
doida quando te trouxeram para cá. Estava até espumando.
Deito minha cabeça de volta no travesseirinho duro. Fecho
os olhos. Talvez eu possa voltar para o meu sonho.

O sr. L me visita no cômodo escuro com as tiras de couro.


Ele não tem atadura nenhuma no pescoço, mas tem
arranhões lá. Eu sei por quê. Tenho a pele dele nas minhas
unhas. Nos meus dentes.
— Pequena Rojo — diz ele, quase de forma amorosa —,
precisa aprender a se controlar.
Tento rir, mas tudo que sai é uma tossida engasgada. Ele
caminha devagar para trás de mim, seu dedo passando pelo
meu cabelo vermelho, meu gorro de sangue.
— Você precisa aprender a andar na linha. — De frente
para mim, ele olha para cima, para a câmera de televisão, a
que está sempre observando. Dá as costas a ela.
— E você vai ser meu professor? — pergunto antes de
cuspir nele.
Ele baixa o olhar para mim. Sorri.
— Se você me deixar. — Então, ele dá tapinhas na minha
bochecha. Antes que ele possa me tocar de novo, eu vou
embora.

É uma noite fria na floresta e eu estou diante de uma


bifurcação. Um caminho é o das agulhas, o outro, dos
alfinetes. Não sei qual é qual. Ambos são caminhos
dolorosos.
Vou pela esquerda.
Não sei o quanto viajei — o que é a distância para mim?
Estou a uma noite de distância da minha toca, a um simples
salto da minha próxima refeição —, mas já estou um pouco
cansada quando a armadilha pega a minha perna.
Dentes afiados e ferro, queima quando corta. Um uivo
escapa da minha garganta e saio de mim.
Vejo o sr. L de pé diante do corpo preso de uma menina.
Não consigo ver as mãos dele. Mas as sinto.
Ele olha para cima e uivo novamente, o rosto dele preso
entre o prazer e a dor. Atravesso as paredes grossas e corro
na noite fria para a floresta escura, para meu corpo peludo.
Roo meu tornozelo com dentes feitos para aquele tipo de
coisa. Alguns segundos dolorosos depois, deixo minha pata
dianteira e, mancando, volto para o caminho.

Passaram-se dias. Semanas. É noite. A lua brilha em minha


janela minúscula. Não havia como eles me manterem
amarrada para sempre. A lei não permite.
Estou agachada no canto do meu quarto, um tubo de
pasta de dentes arruinado nas mãos. Eu tinha aprendido
como quebrá-lo ao meio e desenrolá-lo para formar uma
ponta afiada. Coloco-a em cima do braço, as cicatrizes
brilhando brancas sob a luz do luar, a veia azul pulsando,
me mostrando onde cortar.
Mas eu não faço isso. Eu não corto.
Em vez disso, deixo a dor crescer dentro de mim. Sei que
um corte rápido pode acabar com ela. Pode trazer alívio.
Mas não me mexo. Deixo a dor vir e a aceito, sinto ela me
envolver, passar por mim. Deixo-a vir — e, então, vou
embora.

Estou na floresta, mas não tenho quatro patas. Não tenho


pelos grossos. Não tenho esperança de sentir o gosto de
sangue ou o cheiro doce de uma presa aterrorizada.
Eu sou eu: magra e maltratada, tufos pequenos de
cabelos ruivos arrepiados nascendo da minha cabeça
grande demais. Grandes olhos verdes. Um espaço entre os
dentes da frente grande o suficiente para fugir por ele.
Estou no meio do caminho. Não há bifurcações hoje, o
caminho é reto e verdadeiro como o corte de um bisturi.
Atrás de mim, uma junção de árvores altas. Dou dois passos
incertos e percebo que estou nua. Com vergonha, olho em
volta. Estou sozinha.
Vejo um chalé de madeira branca logo à frente. Há
fumaça saindo da chaminé de tijolos vermelhos. Pedras
achatadas e cinzentas levam à porta principal. Reconheço a
casa. Ela é mais amedrontadora do que a floresta com todas
as suas árvores. A Vovó mora aqui.
Eu me viro, pronta para correr, mas ouço, atrás de mim,
um uivo longo, baixo e fúnebre. Conheço aquele som —
lobos. Lobos caçando. Tenho que ir para dentro o mais
rápido possível.
A porta se abre sem fazer barulho. O primeiro cômodo não
tem qualquer tipo de iluminação conforme entro. Fecho a
porta atrás de mim. Chamo na escuridão:
— Vovó?
— É você, Vermelha? — A voz dela está mais rouca do que
eu me lembrava.
— Sim, Vovó. — Minha voz vacila. Minhas mãos tremem.
— Venha cá para o quarto. Não consigo te ouvir daí.
— Não sei o caminho, Vovó.
Ouço ela respirando fundo, uma respiração grossa de
fumaça, barulhenta de doença.
— Siga a minha voz. Vai se lembrar.
E, de repente, me lembro mesmo. Três passos para a
frente, nove para a esquerda. Estenda a mão direita.
Empurre a porta fina para abrir.
— Estou aqui, Vovó.
Do lado de fora, há ganidos de desapontamento conforme
os lobos chegam à porta da frente e encontram o fim do
meu rastro.
— Chegue mais perto, Vermelha. Não consigo te ver daí.
— Sim, Vovó. — Dou um passo para dentro da escuridão e
lá está ela, deitada na cama. Está maior do que eu me
lembrava, ou talvez eu esteja menor. A colcha sobre ela tem
uns montinhos estranhos, como se a Vovó tivesse ganhado
músculos em novos lugares. Uma pequena quantidade de
baba escorrega de seu lábio inferior.
Olho para minhas mãos vazias. Minha nudez.
— Não trouxe nada para você, Vovó.
Ela sorri, mostrando os dentes pontudos brilhantes.
— Você trouxe a si mesma, Vermelha. Chegue mais perto,
não consigo tocá-la daí.
— Sim, Vovó. — Dou um passo e paro.
A alcateia cheira ao redor da casa, procurando uma
maneira de entrar.
A Vovó se senta. A pele dela está solta, como um vestido
largo demais. Tufos de pelo saem de suas orelhas,
emolduram seus olhos.
— Não, Vovó. Você vai me machucar.
Ela faz não com a cabeça, e o rosto se balança, solto, de
um lado para o outro.
— Eu nunca machuco você, Vermelha. — Ela coça o olho
com a junta de um dedo peludo, então se dobra
rapidamente, agachando-se na capa, preparada para pular.
Suas ancas são grossas e poderosas. — Às vezes, o lobo usa
a minha pele. É ele quem machuca você. — O nariz dela
está longo agora.
— Não, Vovó. — Encaro seus olhos verdes sombrios. —
Não, Vovó. É você.
Então, ela salta, se livrando de sua pele de Vovó conforme
avança na direção da minha garganta. Eu me viro e corro,
corro pela porta fina, corro por nove passos à direita e três
passos para trás, abro a porta da frente, escuto os dentes
dela se fechando atrás de mim, machucando meus tendões,
me fazendo cair. Eu tombo nas pedras achatadas.
Uivando e rosnando, cem lobos me encobrem e me
envolvem. Suas patas almofadadas pisam meu corpo de
leve. Eles têm um cheiro úmido selvagem. Eles abatem a
Vovó em um segundo, e consigo ouvir os gritos dela, seus
velhos ossos frágeis se quebrando.
Penso que vou morrer em seguida, sangrando até o fim
nas pedras cinzentas. Mas uma pele semelhante a couro
cresce em torno do ferimento no meu calcanhar, e pelos
grossos. Meu nariz fica gelado e longo, e consigo sentir o
cheiro do sangue da Vovó. Uivando para externar minha
raiva e minha fome, dou um salto com as minhas quatro
patas com garras. Logo, estou me banqueteando com carne
fresca ao lado de meus irmãos e minhas irmãs.

Acordo, e não fico surpresa de estar presa de novo. Sete


pontas dessa vez, talvez mais, não consigo nem mexer a
cabeça.
— Jesus, Vermelha, você matou ele dessa vez. — Era Alby,
entrando no meu campo de visão acima de mim.
— Sai daqui, Alby. Você nem é real.
Ela assente sem falar nada e vai desaparecendo aos
poucos. Volto a dormir. Não sonho.

Na manhã seguinte, eles me deixam ficar sentada. Peço o


meu diário. Eles não querem me dar uma caneta.
— Você pode se machucar — dizem eles. — Se cortar.
Eles não entendem.
— Então, por que vocês não escrevem o que eu quero
falar? — digo a eles.
Eles riem e me deixam sozinha. Amarrada de novo. Mas
sei o que quero escrever. Está tudo na minha cabeça.

VOVÓ
Que orelhas grandes você tem,
Que dentes grandes,
Grandes como tesouras.
Para cortar fora o meu coração.
Alfinetes e agulhas,
Agulhas e alfinetes,
Onde uma vida acaba
Outra começa.
VINHO NOVO
ANGELA SLATTER

S
e você deixar essa tigela na mesa, em vez de
enxaguar e colocar na lava-louças, vai se
arrepender pelo resto da semana.
A voz de Valerie flutua até ele do hall de
entrada da casa grande demais. Ela tinha ido
pegar a correspondência, ele pode ouvir o barulho dos
saltos dela no piso de taco de madeira se aproximando.
— Mas é meu aniversário! — Alek, tendo acabado de se
levantar, a mochila pendurada no ombro, está a dois passos
e meio da mesa da cozinha (onde eles fazem as refeições,
em vez de na sala de jantar formal).
— Não estou nem aí — responde ela.
Ele dá meia-volta, pega a tigela de cereal e faz o que
deveria ter feito em primeiro lugar. Certifica-se de fazer
muito barulho para ela ouvir.
— Sim, Valerie. — Como ela faz isso? Quase dois anos, e
ele ainda não tinha entendido. O tempo todo. Talvez seja
porque ela sempre fica de olho nele; Alek às vezes se
pergunta se ela presta atenção demais em uma criança
porque falhou em prestar atenção em outra.
Alek gosta de sua tutora, gosta mesmo. Apesar de essa
ser uma palavra estranhamente pequena para descrever o
que ela faz: garantir que ele esteja sempre estudando,
gerenciar os funcionários ocasionais da casa (faxineiros,
jardineiro, mecânicos), fazer comida para eles dois e, em
geral, manter Alek longe de encrencas. E foi assim que o pai
dele, Reid, explicou o trabalho para ela: Tutore o meu
garoto. Mas a coisa da mãe substituta? Isso meio que pegou
os dois de surpresa, pensa Alek, mas talvez eles sejam bons
um para o outro. Todo mundo em Mercy’s Brook sabe o que
aconteceu com a filha de Valerie, mas foi essa situação que
fez com que Valerie surgisse na vida de Alek, e tem dias que
ele acha difícil se sentir mal por causa disso.
Valerie, usando seu vestido leve florido, aparece na porta
da cozinha no momento em que Alek está fechando a lava-
louças; ele mexe as mãos fazendo um ta-dá!
— Deus, e você ainda quer ganhar uns tapinhas nas
costas? — Ela sorri para aliviar o sarcasmo, e é a coisa mais
linda. Alek se lembra de seu pai Reid falando que a maioria
dos caras da sala dele no ensino médio tinha uma quedinha
por ela, inclusive ele mesmo. Quase ninguém era
correspondido. Pelo que Alek conseguira perceber dos
olhares de homens de meia-idade quando ele a ajudava a
fazer as compras, aquilo não tinha mudado muito, e um
monte de seus próprios amigos de escola não são imunes a
ela, não importa se ela tem idade suficiente para ser mãe
deles.
— Vai ter aula até tarde hoje? — pergunta ela.
— Vou.
Ele gosta do fato de que ela acha que ele é esperto. De
que ela sabe que ele é esperto. Ele até gosta que ela
entende como ele é preguiçoso. Além do mais, Valerie tem
um sexto sentido para saber quando ele está ficando para
trás. Ela simplesmente fica de braços cruzados e olha para
ele com aqueles olhos cor de avelã até ele tomar tenência e
fazer todo o dever de casa. Ela também é esperta, tão
esperta que chega a assustá-lo um pouco. Tudo bem,
bastante, mas ele gosta de ter ela por perto. O senso de
humor dela é tão seco que, às vezes, ele chega a engasgar.
Mas ela o conhece e parece gostar dele, de qualquer forma.
De vez em quando, ele pensa que só quer atenção ou só
quer garantir que o seu pai a mantenha contratada por mais
tempo. A verdade é que Alek quase sempre fica na linha
quando ela está lá porque ele não gosta de desapontá-la,
não completamente, e, pelo pai de Alek — que viaja muito,
perdendo mais aniversários e Natais do que ele podia contar
—, tudo bem. No final, o custo de uma tutora vinte e quatro
horas por dia não é nada comparado a escola militar,
clínicas de reabilitação e o salário de um advogado.
Conforme passa por ela, ele lhe dá um beijo na bochecha,
um gesto que ele faz de vez em quando, e, de uma forma
brusca, diz:
— Tchau.
As paredes do corredor que leva até a porta da frente são
cobertas por uma variedade de espelhos antigos. Alek
passou boa parte de sua vida odiando aquelas coisas,
porque sempre se sentia sozinho quando olhava para elas.
Em alguns momentos, ele não tinha nem certeza de que
estava lá. No passado, houve dias em que ele pensou que
poderia ver através de si mesmo pelo reflexo. Porém, desde
que Valerie chegou para ficar, ele tem se sentido sólido.
Pode encarar os espelhos. Alek não quer voltar a ver através
de si mesmo. Valerie o vê, lhe dá peso.
— Bolo de chocolate? — diz ela.
— Com cobertura extra? — Ele sorri, mas não dá meia-
volta. É o aniversário dele, mas com seu pai longe (Reid
sempre está longe por causa de sua empresa de
computação) e uma festona planejada para o fim de
semana, só vai ser eles dois de noite.
— Claro.

Valerie acha que ter tido uma filha, uma vez, deixa mais
fácil se importar com o garoto, o que ainda a choca às
vezes, porque quando Lily desapareceu, Valerie deixou de
se importar com qualquer pessoa por um bom tempo. Ainda
mais quando ela percebeu que todos aqueles policiais
cheios de boas intenções, mas que não faziam porra
nenhuma, que davam tapinhas nos seus ombros e diziam
que fariam tudo que pudessem, logo voltavam a comer um
caminhão de rosquinhas — o xerife Tully mais do que
qualquer outro. Seu ex-marido era tão inútil quanto, mas em
vez de rosquinhas, se perdia na bebida.
Ela deu uma olhada rápida nas cartas. Havia um monte de
contas. Um envelope retangular e rosado endereçado para
Alek, com um perfume doce que ficaria igual ao fedor de
mijo de gato depois de cinco minutos na pele. O envelope
branco é o único destinado a ela, com uma letra muito
distinta que a faz suspirar. Ela sente o peso daquela casa:
dois andares acima, todos aqueles quartos vazios, banheiros
nunca frequentados, um sótão cheio de poeira; no primeiro
andar fica a cozinha, a biblioteca, as salas de jantar, três
cômodos e o escritório raramente usado de Reid; e abaixo,
no porão, uma garagem grande o suficiente para seis
carros, e uma adega de alta tecnologia, com seu vinho
velho em garrafas velhas, protegidas por uma fechadura
eletrônica e uma senha. Valerie não se interessa por
bebidas alcoólicas.
Ela deixa a correspondência sobre a mesa de pinho e vai
fazer um novo bule de café. Observa todos os ingredientes
necessários para fazer o bolo de aniversário logo depois do
faqueiro de madeira — não precisa comprar nada —, então
abre a lava-louças que Alek não fechou direito. Após
rearrumar seu conteúdo, ela volta a fechar a porta com a
paciência cansada de um santo crucificado, e retorna para
fazer o café.
Alek é um bom menino, na maioria das vezes.
Nem é bem mais um menino, supõe; ele tem dezoito anos
e parece mais novo. Algumas crianças amadurecem mais
rápido quando são negligenciadas, mas imagino que, no
caso de Alek, foi apenas negligência emocional: todas as
suas outras necessidades foram atendidas de uma maneira
que talvez o tenha deixado um pouco infantil, carente.
Valerie conheceu a mãe dele durante o ensino médio — não
é como se fossem amigas; elas não andavam juntas na
escola ou quando tiveram seus filhos —, mas ela também
era carente, a Laura Lane. Qualquer vazio que ela pensou
que se casar com Reid “Red” Howard preencheria
aparentemente permaneceu vazio, e, um dia, quando Alek
tinha nove anos, Laura pegou suas coisas e foi embora,
deixando o garoto para trás. Daí, houve uma série de
empregados e tutores particulares que não ficaram por
muito tempo; não porque Alek era especialmente
complicado, mas sua necessidade de atenção e reafirmação
eram constantes e se ele não fosse atendido nisso… bem,
Reid contou a ela que, quando criança, Alek chorava muito,
quando adolescente, seu silêncio era terrivelmente
apocalíptico. Ninguém durou, seus nervos em frangalhos de
uma maneira ou de outra; ninguém até Valerie.
O pai de Alek poderia ter mandado o filho estudar em
qualquer universidade, até nas Ivy League, mas o manteve
em casa para estudar na pequena instituição desconhecida
na cidade mais próxima. Não que tivesse algo errado com
ela, mas também não havia muita coisa boa a ser dita da
Universidade de Addison (sim, ela tinha “Universidade” no
nome, mas não passava de uma faculdade de segunda).
Tinha um campus bonito, cursos razoáveis, professores
decentes, nenhum grande escândalo até agora, classes
pequenas e um problema com drogas relativamente
pequeno. A maior parte dos alunos vai lá apenas para fazer
programas de transferência de um ano para Syracuse,
Cornell ou Princeton. É claro que algumas garotas com um
passado desprivilegiado frequenta a Addison através da
Bolsa de Estudos Laura Lane-Howard, que Reid criou quando
sua esposa foi embora.
Alek não parece se importar. Reid deu ao filho as chaves
da Mercedes C-300 Coupe preta, e Alek não precisa se
esforçar muito para brilhar na instituição. Ele não parece
querer frequentar qualquer outra universidade, o garoto não
tem ambição.
Um belo carro é ótimo se a sua vida não muda, pensa
Valerie. Mas a vida muda, como ela sabe muito bem. Ela
muda quando você não está olhando, ou mesmo quando
você estava olhando, mas estava ocupado demais com
outras coisas. Em algum momento, Alek vai ver a vida
metendo a porrada nele em um beco como vingança.
Privado do amor materno e com um pai ausente, o garoto é
tão desesperado por afeição e atenção que ele cola
meninas no seu ego como se fossem adesivos de nicotina.
Mas, mesmo assim, ele não é um mau menino, considera
Valerie. Ele está apenas lidando com aquilo da maneira que
conhece, seguindo uma necessidade da única forma que
acha que pode. Ela suspeita de que ele não gosta do eco
vazio que a maioria das pessoas encara uma vez na vida.
Alguns reconhecem esse eco e o absorvem, outros o
ignoram e se livram dele. Há dias em que Valerie acha que
consegue escutar os ruídos tristes do vazio dele
harmonizando com os do dela, justamente quando acha que
conseguiu vencê-lo. A verdade é que o garoto é uma âncora
para ela, e ela não sabia o quanto precisava de uma.
Ela serve a si mesma uma xícara de café, sente o aroma
profundo preenchendo a cozinha de uma maneira que
parece grande demais para um receptáculo tão pequeno.
Ela pensa que parece mágica: o cheiro, o ritual de passar o
café, o efeito dele nos seus sentidos. É estranho como algo
tão amargo possa deixar alguém tão contente. Ela se senta
e separa as cartas em pilhas. Começa abrindo a conta, elas
serão pagas com o cartão de crédito que Reid deu a ela. Ela
coloca o envelope rosa no canto da mesa, para que Alek o
veja quando chegar em casa de noite.
Valerie observa o retângulo rosa, imaginando quem será a
última. Ela sempre fica um pouco impressionada com o jeito
com que o garoto olha para ela, como se ela fosse uma
espécie de bruxa, quando lhe pergunta: “E qual é o nome
dessa?” Como se ele fosse tão misterioso. Meu Deus,
querido, pensa ela, para um garoto esperto, você é bem
burro. Ela poderia lhe dizer que ele é previsível, que só o
nome muda. Poderia dizer que ele era tão fácil de prever
quanto um novo dia. Mas não fala nada.
Quando ela se mudou para a casa dos Howard, Valerie, às
vezes, encontraria a menina da vez para um café e
qualquer que fosse o tipo de bolo que a tristeza pediria após
o inevitável acontecer: Alek perder interesse na garota do
momento. Valerie escutaria o choro e/ou reclamações, ela
concordaria e então falaria que a vida é assim mesmo. Alek
não faz por mal, ela diria, mas ele é um cabeça de vento.
Você não quer um cabeça de vento, eles nunca percebem
do que você precisa, ou, se percebem, provavelmente não
vão dar a você a não ser que vejam alguma vantagem para
eles. E garotos cabeça de vento se tornam homens cabeça
de vento, a não ser que aprendam algumas lições difíceis no
início da vida.
Nem todos os homens eram assim, diria Valerie, mas
havia um número suficiente deles no mundo para tornar a
vida um inferno.
“A decisão é sua”, falava ela. “Você quer ser a mulher que
vai ensinar essas coisas a ele? Porque posso te dizer agora
que ele vai começar a pensar em você como a mãe dele, e
confie em mim: nenhum homem quer dormir com a própria
mãe. E, se querem, então você não vai querer dormir com
eles. Ou você quer um homem que já aprendeu essas lições
através de outra pessoa?”
Ela nunca tinha visto qualquer uma daquelas garotas
decidir que queria ser a mulher a ensinar Alek as lições
necessárias, embora uma delas tenha acusado Valerie de
permitir aquele comportamento da parte dele. Quando
terminou de rir, Valerie respondeu: “O que eu estou
permitindo? Que uma garota possa sair dessa enquanto
ainda não é tarde? Se eu disser para você ficar e lutar, para
bater a cabeça na parede ao tentar forçar alguém a te
amar, que porra de favor estarei fazendo a você? Permitir é
deixar um batalhão de moças voltar para ele sempre, como
bucha de canhão, porque elas pensam que vão ganhar? Se
vocês ficarem voltando, o que ele vai aprender sobre
consequências? Mas, se um número suficiente de mulheres
for embora, talvez ele mesmo se toque.”
Ela balançou a cabeça e terminou: “Um dia, você talvez
tenha filhos e vai ter que lembrar que é você quem vai ter
que ensinar ao seu filho quanta merda uma mulher tem que
aguentar.”
Em algum momento, porém, ela ficou exausta da
quantidade de garotas e mandou Alek parar de trazê-las
para casa até encontrar uma com quem quisesse se casar.
Na verdade, porém, ela sabia, lá no fundo, que se esforçar
para obrigar alguém a tomar decisões melhores era uma
causa perdida.
Valerie gosta de pensar que sua filha não teria precisado
de conselhos assim. Ela gosta de pensar que sua filha teria
sido inteligente demais para suportar aquele tipo de merda
na juventude. Valerie gosta de imaginar como seria sua vida
em Mercy’s Brook se Lily não tivesse partido, embora
“gostar” provavelmente não seja a palavra certa. É mais
como se fosse uma imolação mental. Ela não puxa os
cabelos ou arranca a cutícula; não bebe, fuma ou usa
drogas; não, a automutilação dela é imaginar dias melhores
que nunca virão.
Lily teria se formado na escola, teria ido fazer faculdade
em Nova York ou Boston. Teria decidido se seria uma
médica, advogada, arquiteta: ela tinha todas as escolhas do
mundo. Talvez ela teria voltado para casa e Mercy’s Brook,
talvez ela teria se estabelecido em outro lugar e Valerie
teria que ir visitá-la. Talvez Chase fosse com ela também,
talvez Chase não teria começado a beber se a filha deles
não tivesse desaparecido. Talvez Valerie não tivesse
começado a ter um caso com o gerente da farmácia. Talvez,
se eles tivessem tido alguma resposta sobre o destino de
Lily, a outra coisa nunca teria acontecido.
Ou talvez teria acontecido de qualquer maneira.
Valerie esfrega o rosto com uma das mãos e boceja. Ela
não tem dormido bem; os sonhos estão voltando com toda a
força. Eles sempre voltam nessa época. Ela nem precisa
olhar no calendário para saber que a data está próxima,
basta observar os efeitos físicos e psicológicos causados na
marcha dos dias. E não ajuda o fato de que esse ano, o
senso de desamparo a consumiu. Toda a avenida parecia
estar fechada, não havia uma única pista sobre o que tinha
acontecido com Lily.
Com um suspiro, ela pega o único envelope com o nome
dela. Ela examina novamente a caligrafia com jeito antigo,
um estilo aprendido sob a ameaça de uma régua. Valerie
está prestes a passar a unha comprida na beirada da
abertura e começar o delicado processo de abrir uma carta
quando a campainha toca.

Alek mentira sobre a aula até tarde, e ficou surpreso por se


safar dessa. Em geral, Valerie conhece o cronograma dele
como a palma de sua mão, mas ela tem estado cansada
ultimamente, e quando está assim, fica distraída. Alek vira à
esquerda em vez de à direita, seguindo pelas vias
secundárias de Mercy’s Brook em vez das principais, para
evitar ser visto.
Com certo tédio cansado, Valerie dá apelidos às suas
várias namoradas de acordo com vários fenômenos
climáticos. Furacão Suzie. A Tempestade Francesa. Ciclone
Elaine. Ele sempre pergunta a ela como ela sabe que ele
tem uma nova namorada e ela o encara com aquele olhar,
que é parte do motivo para ele ter mentido para ela.
Conforme Alek estaciona diante da casa de Carrie, o frio
começa a dominar sua barriga. É uma casa grande, mas há
mais corpos ali dentro do que na casa dele: os pais, três
irmãs, quatro irmãos e uma avó. Uma família de verdade
mora aqui. Uma família de verdade que, de acordo com
Carrie, não vai estar em casa hoje. A casa não é grande
como a que ele deixou há alguns minutos — não há tanto
dinheiro aqui quanto Reid tem para gastar —, mas Carrie
também não é uma das bolsistas. Ela mora há dez minutos
da cidade, vinte minutos da casa dele e bem longe da rua
principal, então ele não está preocupado em alguém vê-lo
ali. Ainda é bem de manhã, e uma coisa que ele aprendeu é
não anunciar sua paixão mais recente cedo demais, e não
só porque Valerie vai rir da cara dele.
“É uma cidade pequena, Alek. E meio que parada no
tempo, um tempo bastante particular com um conjunto de
expectativas muito particulares”, disse ela algumas
semanas atrás durante o jantar. “Você começa a sair com
uma garota em público — e, Jesus Cristo, não estou dizendo
para você se esconder como se estivesse envergonhado —,
mas à vista de todos? Conhecer os pais dela, pelo amor de
Deus? Assim que a coisa for revelada, rapaz, você não vai
poder mais aproveitá-la de maneira privada. Todo mundo
vai ficar observando, e toda garota cujos sonhos envolvem
um vestido branco e um cartão de crédito cuja conta ela
não precisa pagar vai olhar para você como se fosse o porco
premiado de um festival da colheita.”
“Um porco? Bem, contanto que seja premiado…”
Os dois riram, mas ela logo voltou a ficar séria. “Pergunte
a si mesmo quantas desculpas você vai ter que pedir, Alek
Howard. Pense antes de fazer alguma burrada, é só o que
peço.”
Nesse momento, ele está sentado no carro. Na mochila,
uma caixa cara de bombons produzidos respeitando as leis
humanitárias, do tipo que Carrie gosta; comprá-los pareceu
uma boa ideia na hora, mas agora… ele não tem certeza se
deve levar a caixa para dentro da casa. Seria exagero ou
algo pequeno demais? Será que ele deveria aparecer de
mãos abanando e ver o que acontece?
Deus, só fazia uma semana. Ele costumava pensar que
estava sendo generoso — se o seu pai tinha lhe ensinado
alguma coisa era generosidade —, mas Alek estava se
perguntando se aquilo mandaria a mensagem errada. Cria
muitas expectativas cedo demais. Agora, a voz de Valerie
estava na cabeça dele. Merda, ele não pode nem dar uma
caixa de bombons para uma garota sem pensar se aquela
era uma boa ideia mesmo.
Quantas desculpas você vai ter que pedir?
A porta da frente se abre e lá está Carrie, esperando
debaixo do batente, com seus longos cabelos pretos, seus
olhos escuros espaçados, seu sorrisinho e sua pele morena.
Alek pega a mochila. Ele vai ver como as coisas vão se
desenrolar.

— ’Dia, Valerie.
O xerife Obadiah Tully tem a forma de um barril
equilibrado sobre pernas magras e curtas. O uniforme dele
precisa ser feito sob medida, mas nem mesmo a alfaiataria
personalizada faz milagres, não com o formato excêntrico
do homem. Valerie acha injusto que Tully não precise se
preocupar por não estar em forma; ela adoraria que ele
fosse afligido ao menos com uma gota da dúvida em
relação a si que está presente em toda mulher. Mas não, ele
só puxa o seu cinto de utilidades que fica debaixo do toldo
formado pela sua pança de um jeito pavonesco.
— Xerife. O que o traz à minha porta?
— Bem, não é exatamente a sua porta, não é, Valerie? —
Tully nunca superou seu ressentimento sobre aquilo.
Quando a investigação dele sobre o desaparecimento de
Lily não deu em nada, as reclamações de Valerie ficaram
cada vez maiores, enquanto o marido dela ficava cada vez
mais bêbado. Tully ficou ressentido. Obadiah tomou para si
a responsabilidade de persegui-la quando ela dirigia para
casa durante a noite ou segui-la pelos corredores do
supermercado, certificando-se de que ela sabia que ele
estava lá. Ele convenceu tanto a polícia estadual quanto o
FBI de que Lily Wynne tinha fugido de casa; da forma que
ele falava, bastava algumas poucas palavras para que os
melhores alunos se tornassem verdadeiros demônios.
Então, Chase Wynne esvaziou a conta bancária deles e
saiu de Mercy’s Brook.
Então, a livraria em que Valerie trabalhava fechou e ela
perdeu o emprego.
Então, a casa teve que ser vendida e as coisas ficaram
bem difíceis.
Foi aí que Reid Howard apareceu — quase um ano depois
do dia em que Lily desapareceu — e lhe ofereceu um
emprego, uma casa e uma criança, mais ou menos. Tully
não teve coragem de continuar atormentando-a depois
disso, então Valerie se perguntava por que diabo aquele
merdinha estava ali agora.
— Posso ajudá-lo em alguma coisa, Obadiah? Ou veio
apenas fazer a gentileza de me visitar?
— Só achei que você ia gostar de saber do passamento de
Lucius Anderson.
— Passou no quê? No vestibular? Passamento: esse é o
termo mais idiota que já ouvi. — A raiva aparente de Valerie
era para cobrir o efeito daquela notícia, mas a inquietação e
uma pontada de tristeza reviraram o seu estômago. Ela
engoliu em seco, se lembrando da última vez que falou com
Lucius… bem, discutiu com ele. Ela pensa no envelope
sobre a mesa da cozinha, a caligrafia distinta. — O que
aconteceu?
— Invasão de domicílio — responde Tully. Ele coloca o
chapéu mais para trás na cabeça, revelando as entradas
grisalhas e a marca onde o chapéu aperta demais.
— Uma invasão de domicílio? Aqui? — Sua descrença é
clara, e não é como se o xerife devesse esperar outra coisa,
mas, ainda assim, ele se endireita, um galo minúsculo
enchendo o peito como se estivesse pronto para a briga.
— Você sabe que tem gente que faz metanfetamina na
floresta. Tem um pessoal que passa pela nossa cidadezinha
que ficaria feliz em nos fazer mal. Você deveria saber disso
melhor do que ninguém, Valerie Wynne.
— O que um drogado ia querer na casa de Lucius
Anderson? Ele não tinha nada lá, não quando havia uma
farmácia inteira cheia de remédios.
— Bem, talvez um drogado não soubesse disso?
— Isso não é algo que você deveria estar investigando?
— Sabe, vim aqui apenas para lhe fazer uma cortesia, já
que ele significava algo para você. Ou talvez não.
— O que quer que tenha acontecido entre Lucius e eu não
é da sua conta. — A mão de Valerie no batente da porta
está tremendo e ela consegue sentir o suor frio surgindo nas
axilas e descendo até a parte de baixo das suas costas. Ela
dá um pigarro, pensa na carta na cozinha de novo. — Olha,
desculpe, Obadiah, não quero brigar com você. Só estou…
chocada. Estou chocada, só isso.
Ele retrocede alguns passos, como se tivesse ficado
surpreso com aquelas palavras conciliatórias, e então
assente. Aperta os olhos e, de repente, pergunta a ela:
— Você falou com ele recentemente? Com Lucius? Ele não
mencionou nada para você?
Então Valerie percebe onde ele queria chegar.
— Como se ele estivesse com medo de alguém? Ou se
tinha visto alguém rondando a casa dele em horários
estranhos? Coisas assim?
— É, coisas assim.
Ela balança a cabeça.
— Obadiah, você sabe que as coisas não terminaram bem
entre nós. — E era verdade, pois ele achava que ela se
casaria com ele depois de Chase ter ido embora. — Eu seria
a última pessoa em quem ele iria confiar. — Mas ela lembra
que tinha visto Lucius no supermercado na semana
passada, e como parecera que ele queria lhe contar algo,
mas então deu meia-volta. Ela dá de ombros, e estende a
mão como uma oferta de paz, e Tully, surpreso, a pega. Ela
espera não ter apertado a mão do xerife forte demais. —
Você pode me manter informada? Eu me importava com
ele, independente do que tenha acontecido.
Ela fecha a porta antes mesmo de ele chegar na viatura.
Ela não ouve o motor dar partida, se ele saiu de lá ou não.
Tem outras coisas na cabeça.
Valerie nunca pensou que Tully tivesse algo a ver com o
desaparecimento de Lily, nunca pensou que ele poderia
estar acobertando outra pessoa, apenas o achava
incompetente e rancoroso, e fazia questão de externar suas
opiniões. Agora, ela se joga contra a parede, sente a
madeira sólida contra suas costas enquanto uma onda de
náusea a envolve.
Nos seus sonhos, Lily a chama, Lily em seu vestido preto e
brilhante de formatura e os belos sapatos de salto alto
vermelhos, Lily com seu cabelo escuro preso em um coque
estiloso, porque a garota sempre teve seus próprios gostos.
Lily, que desaparecera um dia antes de sua formatura
enquanto voltava para casa da sapataria da rua principal,
onde tinha ido comprar os adesivos para que seus pés
parassem de escorregar para fora dos sapatos vermelhos.
Lily nunca teve a chance de usar aquele vestido ou
aqueles sapatos, não de verdade, então a memória que
Valerie tem é do teste que ela e Lily fizeram com
maquiagem e cabelo. Quando Lily conseguiu aperfeiçoar
seus passos naquele salto alto, andando ritmicamente no
corredor do andar de cima até conseguir o balanço correto.
Ainda assim, porém, aquela é a Lily que assombra seus
sonhos, embora, às vezes, Valerie vê o próprio rosto em vez
do da filha.
De volta à cozinha, Valerie se senta à mesa antes de seus
joelhos cederem. Diante dela, estão a agora fria xícara de
café e aquele envelope. Certa noite, enquanto estavam
deitados lado a lado, nus e cobertos de suor, Lucius disse a
ela que ele aprendera caligrafia com seu avô, que era bem
rigoroso. Os outros meninos riam dele porque ninguém mais
escrevia cartas daquela maneira.
Valerie pensa que Lucius deve ter postado a carta pouco
antes de ter sido assassinado. Ela imagina se Obadiah Tully
suspeita de algo assim. Abre o envelope, tira a única folha
de papel branco de dentro e a desdobra.
Com a mesma caligrafia elaborada, estão as palavras:
“Câmera de segurança, Farmácia do Anderson”, e então:
“Me desculpe.” Só isso, apenas aquelas palavras no meio da
página, e ela não entende. Então, seu cérebro dá um estalo
e ela vira a folha e fica sem ar.
Na impressão preto e branco, de jato de tinta, porque
seus dedos suados borram a beirada da imagem, há uma
Mercedes C-300 Coupe preta familiar na rua principal. A
data na imagem é a mesma em que Lily Wynne
desapareceu, e o horário mostra que já havia passado uma
boa hora depois de tudo fechar e da rua estar deserta,
porque as pessoas tinham casa para onde ir e refeições
para preparar.
E Valerie aproxima o papel cada vez mais do rosto, porque
a foto foi tirada em um ângulo que a permite ver bem o
vidro dianteiro do carro, de forma que consegue olhar
claramente a cabeça do motorista e da passageira.
Ela diz a si mesma que aquilo pode não significar nada, e
que o carro pode não ter nada a ver com o desaparecimento
de Lily. Não significaria nada, ela pensa, se ela não
conhecesse o veículo e o motorista muito bem. Se não fosse
a Lily no banco do carona, rindo. Valerie vomita na mesa da
cozinha.

John Wick está na televisão, fazendo piadinhas enquanto


abre caminho por uma variedade de mortes. Carrie está no
colo de Alek, e o som no local é uma série de tiros e os
suspiros finais de homens moribundos até que, de algum
lugar, surge o barulho de uma porta se fechando e então
vozes de uma mulher e uma criança. Gentilmente, ele
coloca Carrie ao lado dele no sofá e então se ajeita de leve,
se colocando a alguns centímetros de distância para a
esquerda. Sobre a mesa de centro, há uma caixa de
bombons meio vazia, do tipo que ela gosta, que Carrie deu
a Alek como presente de aniversário.
Carrie faz beicinho, mas ri, e pega outro bombom. Ela tem
cheiro de baunilha. É bom. Isso é bom, pensa Alek.
— Não se preocupe, minha mãe ainda vai passar um
tempo dando uma olhada no dever de casa. — A garota se
ajeita no canto do sofá e pressiona os dedos dos pés na
coxa dele. — Ei, quando o seu pai voltou?
— Ele não voltou.
— Não — diz ela. — Eu vi ele hoje de manhã.
— Você deve ter se enganado. — Alek se senta com a
coluna reta.
— Eu estava correndo na rua Mason. Ele desacelerou e
acenou para mim. — Ela aperta os lábios. — Sabe, eu sei
que é o seu pai quando olho para ele.
Carrie sorri com o tom afiado que deu à fala, e Alek sente
um arrepio na coluna, não rápido, mas devagar e quase
imperceptível, como uma aranha com oito patas geladas
que não quer ser notada.
No passado, Reid tinha prestado atenção em algumas
namoradas de Alek e conseguira pegar algumas para si tão
facilmente quanto colher uma maçã. Ele não fazia isso para
ter um relacionamento — nenhuma delas tinha durado mais
do que uma noite, jantar e cama —, Reid fazia porque podia.
Alek pensou em Annie e Ellie, em Elaine e Sukie, garotas
bolsistas que ele conhecera na Addison. Todas inteligentes e
ambiciosas, mas com uma desvantagem ou outra, órfãs ou
abandonadas, pobres, das cidades pequenas nas partes
mais remotas do estado. O tipo de cidade que fora
importante outrora, mas que hoje em dia não tinha nem
mesmo uma parada de ônibus intermunicipal.
Às vezes, seu pai era uma das razões por Alek não
continuar com uma garota, mas ele nunca contaria isso a
Valerie, porque quão patético seria? Seu pai roubar uma das
suas namoradas? Além disso, Valerie e Reid, eles foram
amigos durante a escola, e se Alek contasse a Valerie algo
que a fizesse querer sair de sua casa, então como ele
ficaria? Não era apenas a ameaça de ter que preparar a
própria comida, era a ideia de não ter outra voz além da
própria, nenhum rosto além do dele naquela casa enorme.
Valerie o fazia se sentir menos isolado, ela viu algo nele que
achava digno de nota, e ele conseguiu enxergar melhor seu
reflexo nela do que naqueles espelhos do corredor.
O celular vibrou no bolso, e ele pegou para ler a
mensagem.
— É melhor eu ir — diz ele, para o desgosto de Carrie.
Alek tinha que admitir que seu interesse por ela diminuíra
em um espaço de tempo bem curto. Ele percebera a
expressão de Carrie quando mencionara o seu pai, notara
como ela tinha corado e sorrido, como ficara lisonjeada com
a atenção injustificável de um coroa bonito, ainda mais um
coroa bonito rico.
— Por quê? — pergunta Carrie fazendo beicinho de novo.
— Valerie precisa da minha ajuda em casa.
— Claro. — E a boca da garota faz uma careta, se
tornando amarga quando estivera doce e cheia uns minutos
atrás. — E você não quer decepcionar a Valerie, né?
— Não — responde ele, se levantando. E, como está
dizendo a verdade, não se sente com o rosto vermelho ou
com vergonha. — Não quero.

Vinho novo em odres velhos…


A fechadura eletrônica está piscando devagar para ela,
um olhar arrogante. Ela não sabe a senha. Seis dígitos. Se
colocar os números errados, o que acontece? A fechadura
faria soar um alarme em outro lugar? A empresa de
segurança particular vai ligar para a casa e ela vai atender,
vai dizer a eles que foi um acidente. Ainda assim, seria
melhor ninguém saber que ela anda espionando.
A princípio, ela pensou na garagem — era natural, já que
ela viu a Mercedes —, mas ela já esteve lá antes. Ela já
esteve em todos os cômodos da casa; não há segredos ali a
não ser em um lugar, um lugar sobre o qual ela nunca tivera
um pingo de curiosidade. Este cômodo.
Ela pressiona o rosto na superfície prateada da porta,
sente-a fria como a morte na sua pele, vê o próprio reflexo
como uma sombra borrada estranha. Valerie coloca a orelha
no metal e escuta da melhor forma que pode, embora não
tenha certeza do que pode ouvir. Se faz isso por medo ou
esperança, não sabe dizer, mas faz mesmo assim.
Nada. Não há nada.
Valerie pensa por que nunca questionou o propósito desse
cômodo. Ela considera como ele foi esperto quando mostrou
a casa a ela no dia de sua mudança. Ela se lembra dele
descendo a escada para o porão e andando pelo corredor de
pedra, ele tinha parado do lado de fora da porta e apontara
para ela. Ele até tinha apertado alguns botões da fechadura
como uma criança desgovernada, fazendo barulhinhos de
beep-boop. Ele sorrira.
“Adega. De alta tecnologia, por causa das garrafas caras.
Não é um vinho qualquer. Não há vinho novo nesses odres
velhos”, disse ele, rindo. Valerie se lembrava dele falando
aquilo como uma velha piada, explicando que seu próprio
pai usava esses termos para se referir a crianças. Explicar
aquilo não tornava a coisa mais engraçada. “Se você quiser,
posso te dar a senha. Quer dar uma olhada?”
Ela balançara a cabeça. Valerie não tinha interesse em
bebidas, não depois dos hábitos alcoólicos de Chase, e Reid
Howard sabia disso.
“Não fica nem um pouco curiosa? Não quer nem dar uma
olhada rápida?”, ele provocara. Os dois riram e seguiram
em frente.
“Eu não bebo, Reid”, ela o lembrara e vira a estranha
satisfação em seu rosto.
“Desculpe. Me esqueci de Chase.” Mesmo que aquele não
fosse um pedido de desculpas de verdade, ela deu de
ombros; o cômodo não causou impressão alguma em sua
memória. Havia um bar completo no andar de cima, com
mais vinhos e bebidas que qualquer um, incluindo um
adolescente e seus amigos, poderia dar conta. Não havia
necessidade de Alek ir lá para baixo. Eles não viam a adega,
portanto, não precisavam pensar nela.
Valerie se afasta da porta e olha para a tela esverdeada
piscando em seu ritmo de sempre mais uma vez.
Seis números.
Vinho novo em odres velhos.
Ela levanta a mão e quase toca no teclado. Hesita, as
pontas dos dedos tão perto, tão perto. E se estiver errada?
O que aconteceria?
Mas e se ela não tentar? Se ela esperar até ele voltar para
casa, nunca vai conseguir esconder suas suspeitas. Se não
descobrir agora, talvez não consiga se controlar quando ele
finalmente voltar para casa.
Valerie digita os números da data de nascimento de Alek.
A fechadura brilha vermelho para ela, faz um barulho
baixo de desaprovação. Estava esperançosa demais, supôs.
Seria muito fácil. As mãos dela tremem, os dedos estão frios
de desapontamento. Então… ela se lembra de que há mais
um número que pode tentar.
Valerie escolhe os números do dia de amanhã, o
aniversário do desaparecimento de Lily.
Os segundos depois de ela digitar o último número são os
mais longos da sua vida. O teclado bipa, a fechadura se
abre. Valerie empurra a porta prateada e entra.
Nenhum sangue, nenhum osso iluminado por sol ou lua.
O que ela estava esperando?
Não era isso.
É um cômodo enorme, pintado de branco e cheio de
pedestais.
Há uma pequena escada de aço inoxidável que leva até o
chão da adega. Valerie vai até o primeiro pedestal: ele bate
mais ou menos na sua cintura e é feito de vidro verde
grosso. E, nele, exatamente como em todos os outros
pedestais, há um par de belos sapatos de salto alto. Em
todo o lugar, sapatos para todo tipo de ocasião especial. Ela
se aproxima, observa com mais atenção o par mais
próximo: sapatos cor-de-rosa, para uma formatura, com
diamantes nas faixas, assim como manchas de sangue
seco.
Valerie vai até o próximo pedestal: stilettos pretos, com
solas Louboutines vermelhas, manchas amarronzadas no
couro escuro.
Próximo: padrão arroxeado, de marca desconhecida,
baratos, feios e manchados.
Um par de Jimmy Choos verde-claro.
Todas as cores do arco-íris, todos os estilos, de todos os
extratos das camadas sociais e diferentes eras da moda.
Demora um tempo para ela encontrar os de Lily.
Ela precisa de todo o autocontrole para não correr e fazer
sons agudos cada vez mais altos, desesperadamente
procurando pelos sapatos vermelhos de seda. Ela sabe que,
se permitir a si mesma que corra, vai perder toda aparência
de controle, que vai simplesmente se sentar no chão e
começar a chorar, e que vai ficar ali até o Dia do Juízo Final.
Ela está tão concentrada em ver apenas o próximo par
que fica chocada ao descobri-lo na frente dela. Os lindos
sapatos de formatura de Lily. Rasgados, a seda mais
vermelha onde o sangue pingou.
E foi só isso que sobrou de sua filha: um par de sapatos
arruinados. Não há mais nada naquele lugar, nenhum outro
quarto ou porta, nenhuma pista que indique onde está o
restante de sua filha.
Apenas os sapatos.
Quantos pares? Cem, talvez?
Nenhum corpo.
Apenas os sapatos.
Fileira após fileira.
Valerie estica a mão. Aqueles sapatos são tudo que ela
tem, provavelmente tudo que ela vai ter de sua filha de
novo. Ela se surpreende ao perceber como são resistentes,
os saltos stiletto são duros, não importa o quão delicados
pareçam.
— Não toque neles. — O tom é afiado, tão imperativo que
Valerie hesita, quase é tentada a obedecer. — É uma
coleção rara, como já disse antes, Valerie.
— Vá se foder — diz ela, agarrando o sapato do pé direito.
Ela o pousa sobre o peito, ninando-o. Então, ela se vira para
encará-lo.
Reid Howard é bonito, embora não seja muito alto — é
uma cabeça menor do que Valerie. Não há muita diferença
entre ele e Obadiah Tully, para dizer a verdade — e está
vestido de forma bem mais casual do que seus ternos feitos
sob medida: jeans escuros, camiseta, Timberlands. Alek
herdou os traços dele, mas não seu cabelo ruivo. Reid não
tem barba, está sempre muito bem barbeado, e seus olhos
são verde-claro. Ele é tão popular com as mulheres quanto
seu filho — Deus sabe que Valerie quase caiu na lábia dele
antes de recuperar o bom senso —, não tem por que
machucar garotas, mas ela imagina que ele faça isso por
prazer.
Ela acha que precisa de mais tempo, precisa embromar,
então pergunta:
— Por quê? Por que você a pegou? Você mal a conhecia,
ela não era nada para você. Por que a pegou? Por que
roubou a minha filha e me trouxe para cá para cuidar do
seu?
O sorriso dele, conforme ele desce a escada, as botas
pesadas pontuando o silêncio, diz a ela: Porque eu podia. O
sorriso dele escorrega entre as costelas dela, se instala
como uma faca no seu coração.
— Eu gosto de você, Valerie, nunca duvide disso. Mas sua
filha era igualzinha a você na época da escola, igualzinha a
você quando disse não para mim e sim para aquele idiota
do Chase. E depois para o Lucius… a porra do Lucius! Sou
um homem paciente, mas não perdoo fácil. — O sorriso dele
aumenta. — E por que Lily não aceitaria uma carona do
antigo amigo da mãe dela? — Ele dá de ombros. — Manter
você aqui me permitiu ficar de olho em você e fazer com
que o bosta do Tully parasse de fazer reclamações a seu
respeito. Deus, você conseguiu irritar muito aquele homem
com o passar dos anos. Além disso, você cuidaria do idiota
do meu filho. Ele se comporta, e eu não preciso ser distraído
dos negócios ou do prazer. — Ele levanta as mãos, palmas
para cima. — Eu tirei uma criança de você, mas lhe dei
outra. Você gosta bastante de Alek. De certa forma, isso
deixa tudo elas por elas, não é?
Leva um segundo para o choque arrancar um grito de
Valerie:
— Não! — Ela aperta o sapato com mais força ainda.
— Não? — Ele finge surpresa. — Ah, bem. Como você
conseguiu entrar?
— Vinho novo em odres velhos. No início, achei que era
Alek, mas você estava falando do meu vinho novo. — Parte
da mente dela está surpresa em como ela consegue levar
essa conversa tão friamente. Mas ela precisa pensar com
clareza, se quiser sobreviver. Reid está com uma faca, a
maior do faqueiro de madeira, que ele bate no vidro dos
pedestais enquanto caminha, produzindo um estranho som.
— Ah. — Ele sorri secamente. — Não deveria ter
subestimado você. Você é inteligente demais, inteligente
demais para ir para a cama comigo. Mesmo assim, todo
mundo comete erros: não foi inteligente o bastante para
deixar de se casar com Chase ou trepar com Anderson.
— Lucius? Você…
— Tully disse que ele estava fraquejando. Você o deixou
puto quando o abandonou. Você deixa homens putos,
Valerie, essa é uma das suas principais características. E eu
o ajudei, ele estava perdendo muito dinheiro em alguns
investimentos péssimos, então foi tanto uma vingança
quanto uma venda. Ah, ele não sabia o que tinha acontecido
com Lily… não pense tão mal do homem assim. Ele
acreditava que eu tinha deixado a garota em casa e que ela
encontrara a morte em outro lugar, mas estava começando
a imaginar por que esse segredo precisava ser escondido de
você. Mas, quando ele estava nervoso com você, ficava feliz
em colaborar.
— Todo mundo comete erros — diz ela, sem conseguir se
aguentar.
Ele ri.
— Você devia ter me escolhido, Valerie, pelo menos em
algum momento.
— Por que você está em casa? Logo agora? — Ele nunca
tinha se importado em voltar para casa durante o
aniversário do filho, mas…
— O aniversário, Valerie: o nosso aniversário. Todo ano eu
adoro ver você no dia em que Lily desapareceu. Você fica
estranhamente radiante com o luto, é encantador. Não
perderia isso por nada desse mundo.
Valerie começa a se afastar quando ele se aproxima.
— E quanto a Alek?
— O que tem? Vou falar para ele que você foi embora. Vou
dizer que você se cansou dele, que nem a mãe, que você
ficou desapontada com ele. Ele já está acostumado com
isso. Não vai fazer muitas perguntas. O garoto nunca se
prende a nada, você sabe disso melhor do que ninguém.
— Ele não é mais assim. Você não saberia, porque nunca
está em casa. Não conhece o próprio filho. — Uma explosão
de risada histérica fica presa em sua garganta por causa do
caráter doméstico do argumento, dois pais em um cabo de
guerra envolvendo uma criança. — Ele não é mais o garoto
que você criou, não é mais o seu vinho novo.
— Reconheço que você o ajudou a sossegar, o que o
mantém longe de problemas, mas mesmo que você não
tivesse feito esse passeio descuidado pelo meu local, seu
tempo estava chegando ao fim. Se você ficar mais tempo,
acho que ele vai acabar desenvolvendo uma consciência, o
que seria inconveniente. É melhor que desapareça, deixe-o
pensar que foi abandonado de novo. — Ele vira a cabeça,
pensando. — Você acha que é tão protetora em relação a
ele porque falhou com Lily?
Ela engole em seco e não responde. Em vez disso, diz:
— Onde…?
— O quê?
— Onde está a mãe dele?
Reid aponta para o fim da adega; Valerie vê um par velho
de sandálias brancas com saltos baixos, que já saíram de
moda há muito tempo.
— Laura não queria ir. Ela amava o filho.
— Pai?
Os dois se viram e veem Alek no topo da escada na
entrada da adega, em resposta ao texto de Valerie de voltar
para casa, mandado porque ela não conseguiu pensar em
mais ninguém de quem precisava. As mãos dele estavam
para o alto, como se estivesse rendido. Atrás dele, estava
Obadiah Tully — claramente, o ato de Valerie tinha sido mal
concebido —, a arma apontando para as costas do garoto.

Alek desce a escada devagar, não apenas por causa da


ponta da arma que de vez em quando encosta nas costelas
dele. Ele ouvira tudo que Reid e Valerie disseram, e vira o
próprio reflexo no aço da porta, como se as palavras de seu
pai o tivessem transformado em algo mais sombrio.
Desestabilizado. Seu olhar se move do seu pai para sua
tutora, para os pedestais e seus sapatos, para o teto, para o
chão, para as paredes. Ele ainda estava processando tudo
que ouviu quando Tully apareceu e gesticulou para que
entrasse na adega.
Os passos de Tully pararam, mas Alek continuou andando
mais um pouco. Ele olhou sobre o ombro para o xerife. O
rosto de Tully está congelado. Claramente, ele nunca esteve
lá embaixo, assim como Alek, só que a expressão dele
mostrava que só agora ele percebia o tamanho do buraco
em que se meteu. Alek imagina que Obadiah ficava feliz o
suficiente ao aceitar o dinheiro de Reid para desacelerar
coisas como investigações inconvenientes, mas não gostava
do que Reid fazia. O próprio Alek não fazia ideia e agora
pensava em que lado do muro Tully ia cair.
Ele para diante de um pedestal, observa o padrão
arroxeado barato; eles chamam a atenção, não são uma
coisa que ele esqueceria, mesmo sem ter interesse algum
em sapatos. A cabeça pende para o lado e ele pega os
sapatos com uma das mãos.
— Annie.
Seus olhos seguem adiante, e ele aponta para um par de
Prada falsificado de cor azul-elétrico.
— Ellie.
Em algum lugar ali, pensa Alek, estão os sapatos de
Elaine e Sukie. Todas as garotas da Bolsa de Estudos
Howard, as garotas que ele nunca mais viu. Ele não se
preocupou em procurá-las depois de elas terem ficado com
seu pai, ele as apagara da mente para resguardar seu
orgulho ferido de menino. Ele as abandonara. Tentou engolir
em seco, mas é difícil, como se tivesse uma pedra na sua
garganta.
— Pai — diz novamente, notando a faca de cozinha que
Reid está carregando. Alek se sente enjoado. Enjoado, triste
e com dor. Ele repete outra vez, como se aquele fosse o
único pensamento em seu cérebro: — Pai.
— Alek. Timing terrível, meu garoto, como sempre. — Reid
balança a cabeça.
— O que você vai fazer com eles, Reid? — Quando a voz
de Tully surge, fica claro que ele se decidiu; qualquer
esperança que Alek tinha de que o xerife poderia escolher
ajudá-los desapareceu. Mesmo dentro do buraco, Obadiah
continuaria cavando. Alek queria lembrá-lo de que buracos
não funcionavam daquela maneira.
— Bem, minha querida Valerie aqui vai sofrer um
acidente. Você não precisa ficar por perto para ver isso, e
talvez seja melhor que ele também não. Obadiah, leve Alek
para a cozinha e fique com ele até eu terminar.
— Você não pode estar falando sério, Reid. O garoto não
vai ficar de boca fechada.
— Ele é meu filho e vai me obedecer. — Reid levanta a
faca, não como uma ameaça, mas da forma que um
professor faria com uma batuta ou uma bengala: Faça como
eu digo, Tully, se sabe o que é bom para você.
Alek, de pé entre seu pai e o xerife, nota o que os dois
homens adultos esqueceram: Valerie. Reid está de costas
para ela, e a atenção de Tully está concentrada em Reid
com o tipo de visão em túnel que o faz um dos piores
investigadores que Mercy’s Brook já teve a infelicidade de
contratar. Mas ele consegue vê-la pelo rabo do olho — clara
como um reflexo perfeito — e toma o cuidado de não olhar
diretamente para ela conforme Valerie se aproxima alguns
centímetros de Reid. Os passos dela são leves, bem leves,
mas ainda há um sussurro da sua aproximação, e seu pai
começa a virar.
Alek repete:
— Pai?
Reid olha para ele com irritação conforme Valerie afasta a
mão do peito e ergue o sapato vermelho. Alek a vê correr
para a frente, então ele gira, abaixa as mãos e se joga para
cima de Tully, que nem chega a atirar, mas cai no chão, a
cabeça batendo na quina do degrau de baixo. Os olhos de
Obadiah continuam abertos, como se olhassem sem
compreender.
Alek se levanta, massageando o ombro. Ele escuta o som
que seu pai faz, mas leva uns segundos para se recompor e
olhar.
Valerie está em cima de Reid Howard, que está de joelhos,
sem equilíbrio, o salto de um stiletto vermelho cravado no
topo da sua cabeça. Ele parece tão surpreso quanto Tully,
embora com um pouco mais de raiva. Então, ele perde o
pouco de vida que lhe restava e a gravidade assume.
Devagar, ele cai de cara no chão de concreto polido.

Até onde Mercy’s Brook sabe, Obadiah Tully morreu como


um herói, ao salvar Valerie e Alek do episódio psicótico de
Reid Howard até ele mesmo falecer. Nenhum corpo foi
encontrado no terreno da propriedade, e o prefeito está
feliz, já que ele considera que um cemitério de moças teria
sido ruim para o moral da cidade e para futuros
investimentos econômicos. Além disso, deu tudo certo no
final, disse ele para Valerie e Alek, querendo dizer: Fiquem
de bocas caladas e ninguém vai investigar de perto o que
vocês fizeram hoje. O novo xerife, apontado às pressas,
continua dizendo a Valerie que é provável que eles não
encontrem nada além da coleção de sapatos.
Valerie mantém os stilettos vermelhos em uma caixa no
armário. Se pudesse, ela se livraria da memória daquele dia,
mas é como uma chave dourada manchada de sangue que
ela não consegue limpar. Algumas noites, ela sonha com o
momento naquela adega com uma coleção de sapatos
bonitos cheios de sangue, ela sonha que Alek é muito
menor, mais novo, que ele fala “Papai”, e que Reid pega a
mão dele de uma forma que nunca aconteceu na vida real.
Algumas noites, ela sonha que ele se tornou como o pai.
Que quem sai aos seus não degenera, que talvez ele nem
tenha essa escolha, que o interruptor vai ser ligado, não
importa o que os dois queiram. Mas ela também sabe que
ele escolheu quem quer ser.
Lily não aparece mais em seus sonhos, porém, e ela não
sabe dizer se isso é uma bênção ou uma maldição.
HAZA E GHANI
LILITH SAINTCROW

N
osso pai era um lenhador e aquele foi um Ano
do Cão terrível, pois não apenas a mamãe
morreu conforme o frio do inverno diminuía,
mas a loteria do templo caiu sobre nós. Tarde
da noite, meu irmão e eu ficávamos
acordados no sótão ouvindo o choro do pai, pois um filho é a
única fortuna que um lenhador pode ter. Calma, calma,
sussurrava sua nova esposa, envolvendo o corpo dele, forte
pelo trabalho, com o seu, cheio de curvas. Você sempre
pode ter mais filhos. E a pequena Ghani, ela pode ter filhos
também.
Eu não entendia bem o que ela queria dizer então, mas,
conforme ele ouvia, a expressão de Haza ficou como um
toco de árvore teimoso e ele saiu pelo pequeno buraco do
telhado de palha naquela noite, só voltando quando o sol
nascente começou a expulsar a neblina pela teia das
árvores. Quando os padres vieram para levá-lo embora, os
bolsos dele estavam cheios, mas meu irmão não olhou para
trás nenhuma vez, seus cabelos trançados firmemente e
untados com óleo há pouco tempo. A corda de cabelos
preto-avermelhados seria cortada nos degraus do templo, é
claro, mas eu a deixei o mais bonita possível, meus dedos
finos nos cabelos dele e meu estômago roncando.
A menina come por último.
Naquela noite, a nova esposa do pai acendeu o fogo
depois do jantar e penteou seus longos cabelos pretos. Ela
acenou, indicando para eu chegar mais perto, mas eu me
recusei, apesar de o pai ter me dado um tabefe no pé da
orelha e me mandado me comportar, coisa que ele nunca
tinha feito quando a mãe estava viva.
Porém, quando um lenhador encontra uma nova esposa
com as costas flexíveis, cabelos compridos e olhos que
nunca piscam na floresta, já é tarde demais. Naquela noite,
fingi dar um gole do copo de madeira que ela segurava para
mim, com seu cheiro enjoativo de erva-doce se prendendo
no meu nariz e me deixando tonta. Fui para a cama no
sótão quando ela me mandou ir e, quando ouvi meu pai
grunhindo e a cama de madeira rangendo lá embaixo,
passei pelo mesmo buraco que Haza tinha atravessado,
carregando alguns pertences dentro de uma pequena
trouxa de tecido nas costas.
Eu também acendi um precioso toco de vela com uma
pederneira, ambos roubados, e deixei a pequena chama
perto da palha. Quando cheguei ao limite do vale e olhei
para trás, vi, atrás das árvores, um pequeno brilho rosado
na noite. As pedras claras que Haza foi largando me
levaram pelo caminho que os padres fizeram, e, embora a
escuridão fosse profunda, o luar refletia nelas, de forma que
não me perdi.

Haza deve ter ficado sem pedras claras, mas eu não


precisava mais delas quando cheguei à estrada que cortava
a floresta como uma cicatriz. Segui por ela a noite inteira e
pelo dia seguinte e observei a floresta diminuindo e os
assentamentos surgindo de ambos os lados. Pouco depois, o
templo do Deus Esfolado surgiu no horizonte, um triângulo
branco desigual lapidado na lateral de uma montanha sobre
um grande vale cheio de fumaça e barulho.
Nunca tinha visto uma cidade antes, mas já tinha visto
muitos formigueiros, e decidi que eram parecidos.
Foi Kali, a rainha-cozinheira de saia rodada e com
babados, que me viu na bagunça do Mercado Principal,
chutando as canelas de um garoto de rua mais velho que
tentou roubar minha pequena e ridícula trouxa. Não comia
há três dias, mas estava acostumada com isso, e foi a
aproximação dela que afastou os amigos do menino. O corte
na minha testa — eles tinham jogado pedras para ajudar
seu líder — sangrava para dentro dos meus olhos, então foi
através de uma tela carmesim e salgada que fazia meus
olhos arderem que vi a senhora redonda e de cabelos pretos
com sua velha saia de babados multicoloridos e seus
brincos de argola de ferro, seus pés duros como chifres, tão
descalços quanto os meus, e suas mãos ásperas por causa
das feridas advindas do trabalho na cozinha. Kali segurou o
meu queixo e me examinou, um sentimento engraçado de
que eu estava flutuando encheu minha cabeça, e ela fez
tisc-tisc para minhas mãos imundas de poeira.
Ainda assim, ela deve ter visto algo em minhas juntas
ainda não completamente formadas, pois me mandou
segurar firma na sua saia e foi para um lugar menos
movimentado.
Foi assim que aprendi o caminho do Mercado Principal
para a porta de serviço que perfurava a muralha do templo,
e foi assim que desci para o esfumaçado subinferno das
cozinhas, onde Kali me colocou para cortar uma gigantesca
pilha de raízes e outros vegetais.
Não me ocorreu questionar ou reclamar.
Não naquele momento.

Durante toda a primavera, os novos recrutas praticavam


nas largas avenidas de pedra do templo. A maioria deles
caía de exaustão ou se recusava a ir além após uma sessão
particularmente brutal. Era permitido que seus cabelos
crescessem de volta em uma faixa que dava a volta no
crânio; eles conduziam rituais e serviços, mas não eram
admitidos no santuário interno.
Aqueles que não vacilavam eram celebrados e seus
cabelos cortados toda noite. A arte dos monges do Deus
Esfolado era afiada e direta, socos que destruíam ossos e
chutes que partiam metal.
Na cozinha, porém, há o Caminho da Flor. É a dança de
levantar, se curvar, cortar, correr; Kali declarou que eu tinha
talento para aquilo. Eu nem mesmo me importava que os
ligamentos e tendões de uma criança eram levados ao
limite; embora a rainha-cozinheira tivesse um ventre
arredondado e uma barriga generosa, ela se dobrava como
um junco quando assim desejava. Se eu achasse um
movimento difícil demais, ela o faria com uma facilidade
que envergonharia a minha inépcia. Considerava-me
sortuda por ela não me bater nas orelhas, como meu pai
fizera.
Diziam que até o próprio Abade tinha certo respeito por
Kali, pois era ela quem preparava a bebida sagrada, amarga
e apimentada, em seus antigos recipientes de prata para o
ritual da lua nova e outros, sobretudo para o Grande
Despertar, quando o Deus se libertava de sua pele e
dançava sem ela.
Vi o Abade apenas uma vez durante aquele tempo, um
homem grande usando robes suntuosos e leves, ainda que
crus — pois o Deus Esfolado é humilde e expurga o orgulho
—, cujo topo da cabeça cintilava conforme ele caminhava
entre fileiras de suados aprendizes do templo gritando no
ritmo de ataque, defesa, chute, vai!
Um deles era Haza, e o Abade parou para admirar meu
irmão, nu da cintura para cima e brilhando com o suor, o
rosto avermelhado por causa do sol, e se movendo com a
mesma graça imprudente do nosso pai quando ele dançava
com o machado, a serra e o serrote para tirar madeira das
profundezas da floresta.
Observando das sombras do pomar, para onde Kali me
mandou a fim de colher os frutos caídos e maduros demais
para alimentar os porcos pretos e brilhantes do templo,
senti o calor do sol congelar por um momento. Os sussurros
nas cozinhas diziam que os olhos do Abade tinham se
tornado opacos.
Mas não poderia ser, pois o Deus Esfolado requeria que o
servissem por completo.
Ele vinha até a porta dos fundos com frequência, o Velho
Vril, com seus olhos escuros rápidos e seu cajado com
proteções de cobre nas pontas. O cobre estava verde de tão
decadente, e seus dentes eram amarelos, soldados bêbados
que se inclinavam uns sobre os outros procurando por
conforto. Seus farrapos eram velhos, mas ele não tinha
cheiro de podre ou da fervura do corpo, apenas de areia
seca e especiarias funerárias.
Talvez tenha sido por isso que arrisquei causar a ira de
Kali ao dar a ele restos embrulhados em grandes folhas
lustrosas; a rainha-cozinheira queria que os mendigos
esperassem no pátio destinado para esse propósito, com
sua fonte perpetuamente suja e os jovens monges
caminhando entre eles para aprender as artes medicinais e
de cura. Eu não gostava do pátio, pois ficava cheio de
gemidos e choros, e a maneira que os mendigos se jogavam
em cima da comida — tanto a comida inferior preparada a
partir da recompensa de taxação para o escolhido do Deus
Esfolado e os restos dos grandes banquetes — me deixava
incomodada, sobretudo depois que ganhei um pouco de
peso.
Pois Kali nos encorajava a provar a comida. Um bom
cozinheiro deve conhecer a textura de um prato a cada
estágio da preparação, e essa lição permaneceu comigo por
toda a minha vida. O que Kali não nos encorajava a fazer
era dar de comer a qualquer um dos mendigos às portas da
cozinha, e foi azar meu que um dos outros pássaros — pois
assim éramos chamados nas cozinhas, engordando,
crescendo e descansando debaixo de suas saias — me viu
passando um embrulho de folhas com um bocado de carne
queimada e apimentada para o Velho Vril. Ele não olhava
para meus braços e minhas pernas nus como os outros
faziam, até mesmo as mulheres famintas em farrapos.
Foi a própria Kali que manejou a fina vara flexível
conforme eu estava de pé com minhas mãos segurando um
pilar de pedra expiatório em que os muitos nomes do Deus
Esfolado foram esculpidos, e ela não foi cruel. Ainda assim,
chorei sem restrições, bastante ciente de seu
desapontamento e com medo de que iria ser mandada de
volta para o grande vale de fumaça que era a cidade e que
teria que cuidar de mim sozinha novamente.
Naquela noite, de bruços no meu catre no dormitório
inferior ao lado da cozinha inativa, ouvi um arranhar como
de um rato, e me levantei dolorosamente, indo para a porta
como se precisasse fazer minhas necessidades.
O caminho para a latrina era longo, para proporcionar
pudor, e Haza me encontrou na curva da sombra mais
escura, primeiro me abraçando e depois me entregando um
pacote embrulhado de forma um tanto atrapalhada por
folhas.
— Achei que você encontraria o caminho — disse ele
baixinho, sua cabeça raspada reluzindo um pouco conforme
o luar atravessava as largas e enceradas folhas acima. —
Como está o pai?
— Sai de lá na noite seguinte a que você foi embora. — O
pacote ainda estava quente, cheirava a carne e a raiz de
amido que eu tinha ajudado a preparar naquela mesma
noite, ainda choramingando de dor. — Ele provavelmente
está feliz com ela.
Não havia por que contar mais nada a ele, e, de qualquer
maneira, ele não parecia interessado.
— Você esteve nas cozinhas?
— Kali me encontrou. — Queria muito contar a ele sobre o
Caminho da Flor, sobre o barulho que meus tendões faziam,
como era diferente das práticas diretas dos monges. Então
ouvimos um farfalhar e corremos para os arbustos de cada
lado do caminho como as criaturas da floresta que um dia
fomos, esperando um membro mais velho do templo com
robe cor de açafrão passar com uma lanterna, coçando
luxuriosamente sua virilha e bocejando.
Quando ele desapareceu na latrina, surgimos de novo,
respirando ao mesmo tempo, e peguei a mão de Haza.
— Você está bem?
O rosto dele estava imerso na escuridão, mas havia uma
marca entre suas sobrancelhas que eu conhecia. Os dedos
de meu irmão estavam frios e suados.
— Nós comemos bem.
E eu não sabia disso?
— Melhor do que em casa.
— Essa é nossa casa agora. — Ele largou a minha mão,
mas não de uma maneira urgente. Sua linhagem fora
cortada; ele não deveria ter família alguma além de seus
companheiros monges. — Não podemos deixar que saibam,
Ghani.
Como se eu fosse idiota. Mas não me importei. Estávamos
juntos de novo, e um garoto sempre quer dar a última
palavra.
Voltando para o dormitório, parei perto de um arbusto
com folhas longas e particulares, perto da muralha de
proteção do templo. Arranquei umas poucas folhas e
amassei-as dentro de outra, uma folha diferente, jogando-as
sobre o fino catre da garota que roncava, a que me traiu,
conforme eu passava, e pela manhã, ela tinha uma coceira
violenta e enorme causada por hera venenosa.

Não choveu naquele verão, e a poeira ficou grossa. O


governador da província veio em um longo trem e fez
oferendas dentro da pirâmide de pedra reluzente, o incenso
subindo em nuvens e címbalos batendo e quebrando dia e
noite para manter o sol acordado, os banquetes
aumentando sua generosidade para o número cada vez
maior de mendigos tossindo no pátio fedorento deles. Os
olhos do Velho Vril queimavam de febre, e a pele dele
estava fervendo; ele se acomodou em um canto com a
sombra de uma vinha e observou. As proteções de cobre do
seu cajado desenvolveram buracos traçados, a podridão
verde comendo o metal, e seu olhar me seguiu quando
encarei sem medo aquele caldeirão de feridas, pedidos de
ajuda e choros vazios e sem esperança por restos.
Eu não poderia fazê-lo, pois Kali examinou nossas mãos
mais uma vez após o Festival do Sapo, e aqueles que
tinham marcas especiais nas palmas começaram a aprender
a fermentar, secar, moer e ferver as frutas redondas e
fibrosas que eram sagradas ao Deus Esfolado. É preciso
alguma destreza, uma sutileza no toque mesmo entre os
calos, e a palma curvada de um cozinheiro deve ser casada
com dedos longos e diversos outros sinais sutis. Agora, é
claro, posso identificar com apenas um olhar rápido quem
tem as mãos para o trabalho, mas, na época, eu era uma
criança e sabia apenas que Kali tinha encontrado em mim
algo que estava procurando.
Na verdade, ela foi a única que procurou.
Nos piores dias da seca, os rumores começaram. A
princípio, foram apenas olhares trocados entre os monges
mais velhos, mas, assim como o fogo, a suspeita se alastra
em tempos secos. Depois do Festival do Sapo e da visita do
governador, houve outra loteria, e muitos meninos tiveram
suas cabeças raspadas nos degraus do templo e foram
levados para o cinturão de rocha.
Durante o Festival do Jarro D’água, o Abade derrubou seu
cajado, as penas do pássaro divino flutuando ao vento, e
quando ele se agachou para recuperar este item sagrado,
ele apalpou um espaço vazio. Um dos monges mais velhos
teve que recuperar sua parte esvoaçante, e o rumor foi
confirmado perante uma multidão de fiéis e pessoas
importantes.
Eu estava fervendo a bebida sagrada apimentada sob o
olhar vigilante de Kali quando os sussurros varreram a
cozinha. Uma simples garota não pode provar a bebida, mas
eu conseguia sentir seu cheiro muito bem para saber que
estava pronta e ver a fervura mudar. Kali deu uma batida na
minha cabeça com uma colher de limpar osso, para me
lembrar de não me distrair — se você para de mexer, a
bebida não se mistura de forma apropriada.
O Abade deixou cair seu cajado. O Abade não conseguiu
pegá-lo.
O Abade está cego.
Era estranho, pensei enquanto misturava o líquido. O
sacerdote maior do Deus Esfolado não pode ser enfermo.
Ele deve ser completo quanto o Deus diante de seu
sacrifício. Mas coloquei aquelas questões de lado, pois um
mero passarinho de cozinha não intervia naqueles assuntos.
Ou assim eu pensava na época, especialmente depois que
a expressão de Kali ficou dura e ela golpeava com aquela
colher comprida quando via outros passarinhos de cozinha
com rostos culpados e línguas que não paravam quietas. A
garota que me denunciou foi repreendida duas vezes, e me
debrucei no trabalho para não dar tempo para a deusa-
cozinheira me ver pensando. Mais tarde naquela noite, algo
podre foi pescado do poço do templo, e a água salobra
tornou a comida do dia fétida.
No dia seguinte, outra loteria foi anunciada. Esta, porém,
foi para os monges mais jovens, como meu irmão.
Naquela manhã abafada, todos ali observaram conforme
os jovens subiam os degraus do templo, um de cada vez,
para colocar a mão dentro do cesto com um buraco na
tampa e tirar de lá uma pedra escura e lisa. Elas eram
pretas e brilhantes, aqueles ovos sagrados, cada uma delas
trazida das montanhas ardentes que pertenciam
especialmente à mãe de todos os deuses, Ela, cujo nome
não é falado, que usa serpentes nas orelhas e fornece calor
aos mortos se eles viveram de forma íntegra.
De novo e de novo, eles retiravam ovos pretos, e eu
cochilava na sombra parcial das margens do pátio. Ninguém
mais parecia ter problemas em permanecer acordado, mas
eu tinha passado a noite inteira mexendo a mistura e a
tarde prometia mais do mesmo trabalho. Muito da bebida
sagrada era pedida pelos monges naquela estação, para
dar-lhes claridade.
Ao menos eu não cheirava a erva-doce, como a nova
esposa do pai. E ao menos o treinamento de Kali tornou a
dor apenas uma coceira distante.
Devo ter fechado meus olhos; acordei com um sussurro
que era do tamanho da multidão. Meu queixo se levantou,
meus olhos se abriram, e vi Haza diante do cesto, sua
cabeça raspada e queimada de sol brilhando, seus ombros
expressando choque.
Em sua mão, estava uma pedra macia como cetim e
pálida.

Eles o colocaram em isolamento, no longo claustro cheio de


celas com paredes de pedra. Seu corpo jovem era raspado
diariamente pelos ajudantes mais solenes do Abade, mas
sua cabeça foi deixada para crescer os cabelos mais uma
vez. O melhor que podíamos cozinhar era enviado para a
sua cela primeiro, onde ele deveria passar seus dias
meditando. Mas meu irmão, acostumado a correr pelas
florestas ou passar seus dias socando e chutando, quase
não tocou nos pratos antes de eles irem, então, para a mesa
do Abade.
Pediram a Kali para preparar pratos mais tentadores,
sabores mais raros, frutas mais doces. Eu poderia ter dito a
ela que Haza preferiria mingau com algumas folhas para dar
um gosto picante, com talvez um pouco de gordura que
tenha sobrado do jantar da noite anterior se tivesse sido um
bom outono e a mãe não tivesse sido levada pela tosse.
Poderia ter dito a ela que os esquilos da floresta, gordos por
causa do início do inverno e colocados no fogo na margem
argilosa de um rio, era um prato ao qual meu irmão não
resistiria.
Mas não falei. Misturei a bebida sagrada, aprendendo
sobre sua espuma e sua escuma conforme absorvia o
Caminho da Flor e outras artes da cozinha. Quando você é
uma tela em branco, qualquer coisa deixa uma marca.
Quando uma noite em que eu não estava terrivelmente
exausta caiu e a passagem para a latrina estava deserta,
escapei de meu catre e segui pela selvageria familiar do
templo, evitando monges sonolentos que guardavam a
porta e escalando um balcão muito mais sólido e fácil de
navegar do que os galhos tortos e barulhentos.
Tudo fica mais fácil quando você passa o dia mordiscando
nas cozinhas, um rato em um bloco de queijo. O único
perigo é ficar pesado demais, mas o Caminho da Flor
impede isso. Engordamos, mas não ficamos corpulentos de
verdade, nós que misturamos, cortamos e cozinhamos.
— Haza — sussurrei através da grade no meio da porta
pesada. — Haza, sou eu.
Após um breve momento, houve outro ruído, e os dedos
de Haza, lavados e perfumados, apareceram pelo buraco.
— Ghani?
— Você precisa comer. — Pressionei meus lábios em suas
juntas. A boca dele, o hálito cheirando a especiarias caras,
tocou a minha. Ele encostou seu queixo (macio, com óleos
enriquecendo a pele, sem traço de barba ainda) na ponta
dos meus dedos. — Todos estão preocupados.
— Não consigo suportar — sussurrou ele de volta. — É
uma gaiola.
— É por pouco tempo — falei, tentando acalmá-lo. —
Então, você será abade. Vou cozinhar toda noite para você.
— Não consigo suportar — repetiu ele. — Você precisa me
tirar daqui.
— Para onde iríamos? — Não me preocupei em recitar o
castigo de um monge que fugia ao seu destino. Ferver no
óleo era bom para fazer bolinhos saborosos, mas não tão
bom para um rapaz. — Como viveríamos?
— A floresta. Vou cortar árvores.
Balancei a cabeça diante da sua teimosia infantil, embora
fosse sua irmã mais nova.
— Aguente mais um pouco, Haza. Então você será o
escolhido do Deus Esfolado. Não vai ser tão ruim.
— Você não entende. — Mas seu fervor diminuiu. Meu
irmão era sempre o primeiro a pegar fogo e, da mesma
forma, a esfriar. — Estou preocupado com você. Você está
comendo?
Agora ele pergunta.
— É claro. Eu misturo a bebida. — Eu não podia falar o
nome dela, sendo uma mera garota, mas ele, sim.
— ______. — Ele nomeou a bebida com um suspiro. Houve
um brilho nos seus olhos escuros atrás da grade. — Ele não
fala comigo, Ghani. O Deus é mudo.
— Dizem que a bebida o faz falar. — Tentei ouvir o som do
guarda no final do corredor. A respiração do monge gordo
não tinha mudado, e decidi que poderia ficar mais um
pouco. — Ou permite que você o ouça. Devo trazer um
pouco para você?
— Talvez. — Ele não disse o que ambos sabíamos: que se
eu fosse pega, não seria apenas um chicoteamento para
nós dois.
Mas o que mais poderíamos fazer.

Eu ainda era uma criança, e tola. Kali notou que fiz uma


quantidade maior do que a necessária para abastecer os
cálices de prata batida pedidos. Ela me deixou pegar uma
porção mísera em um frasco quando minha inimiga, a
menina de dedos escorregadios que me denunciou, colocou
muito destilado em um frango frito e fez subir um jato de
chama.
Minha inimiga, aquela idiota, também gritou e deixou cair
a panela, pois eu tinha alargado a tira de madeira do
pegador apenas o suficiente para que o metal quente
escorregasse entre ela e mordesse sua mão. A distração
funcionou melhor do que eu esperava, mas, naquela noite,
no caminho para a latrina, a deusa-cozinheira surgiu de uma
sombra profunda sem nem mesmo tocar em uma folha e
me agarrou pela garganta.
Arrastada para um pedaço de luz quente vindo do rosto
cicatrizado da lua, meu pescoço sob seus dedos, ela quase
enfiou o nariz na minha boca, respirando profundamente.
Então, apertando conforme eu chutava, flores pretas se
abrindo no canto da minha visão, ela me observou, seus
olhos como carvões antes de serem cobertos pelas cinzas
brancas — escuros e quentes o suficiente para queimar,
dois ovos de vidro preto.
— Sua ladrazinha — sussurrou ela, suavemente, e todos
os arbustos se mexerem de nervoso. Suar não trazia alívio
na seca, mas muitas árvores tentaram isso, chorando resina
para ser retirada de graça com cuidado e usada para
saborear, para incensos… e outras coisas. — Mas vejo que
não é para você.
Eu me remexi e tentei atacar de novo. Os dedos dela
relaxaram, e eu arquejei o ar quente pela minha traqueia
danificada.
— A pequena de mãos leves tem um amado. Quem é? Um
monge jovem, espero; os velhos são egoístas demais. — Ela
gargalhou sem fazer muito barulho e me deu uma sacudida
grossa, mas bem-intencionada. — Se não fosse pelas suas
mãos, colocaria você no forno. Nenhum homem vale isso.
Abri minha boca para falar que ele era meu irmão, mas
me impedi a tempo. Ela retirou o frasco do tecido que cobria
meu peito e balançou a cabeça.
— Ao menos você não é idiota demais. — Ela fez tisc-tisc
com a língua e me levou até o poço. Achei que ela ia me
afogar nele, mas Kali apenas jogou a bebida sagrada ali, e
logo depois o frasco, e me levou até a latrina. — Chore aí,
se quiser. Amanhã, de volta à mistura. — Seu olhar pareceu
ficar escondido atrás das nuvens, assim como a lua, e
trovões quentes retumbaram a distância.
Alguns pensaram que aquele era um sinal de que o Deus
Esfolado ficara satisfeito e que traria chuvas. Mas os raios
secos não tocaram a terra, e não houve alívio.
Havia um banquete programado para a próxima lua nova, e
Kali me tornou sua protegida. Nem mesmo minha inimiga
invejou aquela alta posição, porque significava pegar, cortar
e picar coisas na mesma velocidade furiosa da própria
rainha da cozinha. Meu catre foi levado para a porta de seu
cômodo minúsculo para o caso de ela precisar de mim
durante a noite, e eu precisava segurar a lanterna na latrina
enquanto ela mijava à meia-noite, quando os raios
brincavam sobre a distante floresta. Apesar de tudo, eu
consegui visitar Haza duas vezes antes do grande festival
sagrado e secreto.
Levei um frasco para ele em ambas as vezes, mas não era
a bebida sagrada. Era uma mistura parecida, mas sem a
espuma pungente e os aditivos que a tornavam sagrada.
Meu irmão, porém, não conhecia o sabor da bebida sagrada,
pois ainda era novo demais, e me agradeceu com uma voz
quieta e suplicante, como a de nosso pai na noite em que
trouxe sua nova esposa de costas flexíveis para casa.
— Sonhei na noite passada — disse ele em minha
segunda visita. — Acho que era o Deus. Ele me mandou ter
coragem. Isso não é ótimo?
Minha cabeça era um mingau para o idoso que não pode
mastigar, a exaustão transformando o mundo em uma
parede pintada com cores brilhantes e vazias.
— Você é corajoso — sussurrei de volta, e passei adiante a
carne embrulhada em folhas que me esforcei para preparar
em panelas de barro, como fazíamos antigamente.
Eram apenas restos, não era esquilo, mas não acho que
ele tenha notado.
Três noites depois era lua nova. O banquete foi de fato
solene, mas a cozinha se tornou uma montanha com fogo
nas tripas, e todos os passarinhos, assistentes de cozinha,
lavadores de louça e fatiadores empurrando ovos-pedras na
garganta dela. Diversos passarinhos de cozinha
desmaiaram naquele inferno. Estes foram levados para o
lado de fora e seus rostos foram molhados com água
salobra antes de serem tratados com massagens vigorosas
e uma bebida amarga e com uma espuma fina que os
reestabelecia. Um assistente de cozinha, entusiasmado,
cortou metade de seu dedo, que acabou indo parar dentro
de um cesto de bolinhos fritos em óleo, e seu uivo agudo foi
engolido pelo barulho.
Não havia mais uma menina chamada Ghani. Havia
apenas a comida dançando sob a ponta dos dedos, a chama
se contorcendo em volta de meus pulsos, a parede-mundo
pintada girando como um brinquedo brilhante que eu tinha
visto certa vez no cesto de um mascate e chorara por ele,
com a consciência de que éramos pobres demais para
comprá-lo, mas desejando-o mesmo assim.
Eu desabei conforme a última rodada de flores saborosas
atravessava a segunda porta da cozinha, mas, àquela
altura, a maior parte da ninhada de olhos arregalados de
Kali tinha feito o mesmo, e fomos levados para nosso
dormitório, se para dormir ou morrer, ainda não sabíamos.
Talvez tenha sido a própria Kali que me colocou em sua
cama estreita e de cheiro doce, com sua coloração
almiscarada de mulher velha.
Sei que Kali dormiu nas cozinhas naquela noite, seu
queixo redondo apoiado sobre uma de suas mãos e seu
outro punho enrugado ainda agarrando um cutelo, como se
qualquer pessoa que aguentasse aquilo seguiria na limpeza
laboriosa de cumbucas, pratos, panelas, frigideiras,
pauzinhos, colheres, pinças. Sei disso porque acordei na
hora em que todo o templo-formigueiro suspirou consigo
mesmo, uma massa de seus habitantes entrando em estado
de sonolência após o empanturramento coletivo.
Naquela noite, com a ausência do luar, eu podia me
mover como quisesse. Eu queria que tivesse sido a voz de
Haza que me despertara, uma corrente prateada puxada
por meus ouvidos, mas não foi.
Em vez disso, o que me trouxe da inconsciência foi a
batida da proteção de cobre de um cajado no pátio dos
mendigos, onde os famintos se deitavam sob o sol para
morrer em números cada vez maiores toda tarde, não
importa quantos banquetes os monges compartilhavam
com os desafortunados.

A cela de meu irmão estava vazia. A luz de uma tocha


iluminava o extremo oposto do salão de pedra, e atravessei,
em uma velocidade de sonho, sombras manchadas por
chamas crepitantes que morriam. Uma corrente de luz
vacilante que desaparecia passava por mim de uma fagulha
de escuridão para a outra, uma rosa preta se abrindo atrás
de mim conforme elas davam seus últimos suspiros.
Cada uma das pequenas escuridões fazia um barulho
débil, como um seixo caindo no chão.
Os pátios internos eram altos e quase frios, a pedra
teimosamente resistindo ao banho de calor do sol. Vi as
câmaras dos mistérios divinos, os espaços pouco iluminados
que deveriam ter, mesmo nesta noite sagrada, um número
mínimo de irmãos sentados em almofadas cheias de grama
macia entoando sem parar o nome secreto — um exercício
para as partes invisíveis de um monge que o treinamento
do estilo do templo não abrange —, mas que estavam
estranhamente vazias. O scriptorium, onde cinzel e pincel,
pedra e fibra de tecido, seixos coloridos e tintas que
cresciam de ervas culinárias eram arrumados de forma a
contar histórias sagradas, era apenas um tipo diferente de
cozinha.
Foi no pátio mais interno que encontrei os monges, e, a
princípio, pensei que estava observando uma enorme
carcaça erguida sobre o matadouro de pedra enquanto as
facas eram afiadas. Estava dependurada pelos calcanhares,
mas o formato era estranho.
Eu soube então, mas não queria saber. Em vez disso,
encarei, cada fio de cabelo comprido ou curto do meu corpo
tentando se arrepiar.
O Abade não estava dormindo. Seus membros magros,
pintados, coloridos e manchados de vermelho-escuro,
estavam envolvidos por longas tiras costuradas de maneira
grosseira com tendões, uma veste deselegante. A pele do
escalpo balançava, com cabelos curtos e pretos que
cresceram de uma lua cheia para outra até a face escura da
grande lamparina da noite.
— Eu sou ELE! Eu sou ELE! — gritava o velho Abade como
se estivesse bêbado, e seus ajudantes mais antigos que não
estavam completamente inebriados pelo banquete gritaram
também, o nome do Deus Esfolado. A seca arenosa me
engoliu e os raios caíram lá longe, sobre os muitos seios
verdes da floresta.
A pelica sobre os olhos do Abade tinha desaparecido.
Não me encolhi. Não tremi ao ouvir o nome do Deus
Esfolado sendo usado de maneira errada. Não fiquei louca,
ou idiota, ou cega; a blasfêmia não me comovia. Era o corpo
do meu irmão que eu via, cada junta e curva brilhando.
Espalhado sobre o altar mais interno do grande templo,
seu corpo ainda fumegava.

Alguns poucos monges fugiram naquela noite. Serventes do


templo, exaustos, simplesmente ficaram felizes com a paz.
Muita água salobra foi retirada do poço cada vez mais seco
nos dias seguintes para lavar a roupa, os monges correndo
para lá e para cá com cenhos franzidos e olhares estranhos,
aterrorizados. O espaço para lavar roupas estava cheio de
itens estranhos, mas o banquete tinha sido enorme. Uma
bandeja fora levada para a cela de Haza como sempre, e
voltou intocada, também como sempre.
Quando acordei na hora mais quente daquela tarde, havia
lama seca entre meus dedos do pé. Não era a poeira dos
pátios ou a areia fina e amarela que sujava o jardim. Era
grossa e vermelha, como o rio preguiçoso e cada vez menor
que embalava a cidade. O ar sem umidade, no entanto,
fazia a lama se soltar facilmente.
Mas quem olharia para os pés descalços de um
passarinho de cozinha, ou até mesmo de um assistente,
como os meus estavam naquela manhã? Aqueles de nós
que não sucumbiram foram promovidos, cada um
recebendo uma pequena faca de corte para mantermos em
nossos cintos e a permissão de usarmos o cabelo trançado.
O temperamento de Kali ficou mais sombrio, e ela trouxe
outro grupelho de novos passarinhos da multidão do
mercado. A cidade tinha muitos renegados famintos
naquele ano de seca e de fome.
Pois, embora as plantações estivessem em perigo e a
floresta tivesse se tornado frágil, a próxima celebração, que
aconteceria dali a poucos dias, era o Banquete da Lua Seca.
Seria o momento de tirar Haza do esconderijo e indicá-lo
como o novo Abade… a não ser que acontecesse um
milagre.
E os rumores agora diziam que o Abade conseguia ver.

Uma faca de corte, sua lâmina brilhante diminuída pela


afiação constante. Uma mancha da lama vermelha do rio na
frente da porta de uma sala de abate que não era usada.
Um pedaço de um tecido belo e macio roubado de um
depósito. Um pequeno seixo afiado, cortando
profundamente para separar o músculo do osso, um corte
que eu vira muitas vezes com facas maiores.
Um pacote depositado em um poço, e uma pessoa
responsável por fazer as compras no mercado subornada
para trazer mais lama seca do rio.
Um afinamento nos lábios de Kali conforme ela escuta as
fofocas. Uma olhada em seus assistentes, abaixando os
ombros e curvando-se sobre o trabalho. Salgar. Temperar.
Um prato especial para o banquete.

Duas ou três equipes da cozinha desapareceram, talvez


mais espertas ao entenderem os rumores melhor do que as
outras. Havia murmúrios como o som de um raio seco
caindo ao longe, uma pressão levemente desconfortável
quando os olhares se encontravam.
Ou talvez aqueles que se foram entre os dois festivais
apenas tivessem família nos campos, onde uma fome
nervosa e sedenta espreitava. As chuvas ainda não tinham
vindo, embora as nuvens se avolumassem sobre a floresta,
o templo, a cidade e as planícies partidas além. Ou talvez
eles tivessem parentes no mercado, onde os bens estavam
se tornando cada vez mais escassos e uma nova loteria fora
anunciada, dessa vez para mercadorias em vez de filhos.
Um mensageiro veio, da parte do governador da
província, e a ele foi mostrado um refeitório cheio de
monges que pouco comiam diante de um Abade sereno e
sorridente. O mensageiro, as penas do pássaro divino
flutuando inquietas em seu cocar, foi embora de cenho
franzido antes que uma refeição pudesse ser servida em
sua honra, mal parando para dividir as necessárias moedas
no pátio dos mendigos. Os pedintes não tinham muito o que
fazer com o dinheiro, embora aqueles que ainda tinham
alguns restos envolviam o metal brilhante com os dedos.
O Festival da Lua Seca se aproximava, mas o governador,
que viria para testemunhar sua santidade, estava atrasado.
Um incêndio atravessara seu caminho, a floresta engolida
por uma besta feita de fogo.
Quando a lua cheia nasceu no entardecer do dia do festival,
ela era um olho opaco através da fumaça. Eu saí da cozinha
e passei pelo Velho Vril em uma sombra fraca junto à
muralha do jardim de ervas, olhando para mim de propósito,
como ele fazia em meus frágeis sonhos nervosos.
— Escute, tio velho. — Eu coloquei alguns restos
envolvidos por folhas nas mãos dele. — Não coma as sobras
hoje à noite. Em vez delas, coma isso, entendeu?
Ele sorriu, o tolo simplório com aqueles dentes
amarelados, e assentiu com a cabeça como se não tivesse
entendido. Eu queria chacoalhá-lo ou dar um chute nele.
— Mais nada — falei, sem paciência. Quanto mais eu me
atrasava em vez de voltar correndo com folhas pungentes e
longas hastes flexíveis de madeira de tempero, maiores
eram as chances de eu ser vista. — Só isso.
Ele assentiu de novo, e bateu com seu cajado na pedra do
pátio. Eu quase saí em disparada, e foi durante aquela tarde
quente que muitas pessoas da equipe da cozinha
começaram a colocar a mão sobre a barriga e gemer, pois a
água do poço tinha um gosto estranho e a água do rio,
carregada morro acima em jarros, também.
Esse mal evitou Kali como quase tudo fazia, embora o
rosto redondo da rainha da cozinha estivesse irritado,
caminhando pelo caos, mandando grandes pratos
cambaleando pela porta. E eu?
Eu fiz a mistura da bebida apimentada sagrada conforme
Kali me ensinou. Eu a servi em cálices de prata batida. Fui a
assistente de cozinha favorita de Kali e tinha um dedo meu
em tudo do Festival da Lua: do menor dos assados em
panelas de barro dado aos mendigos para que seguissem
com sua preparação até ficarem suculentos e macios até os
vegetais, o pão ázimo e as pilhas de grãos amarelos.
Barulhenta era a alegria naquela noite no templo do Deus
Esfolado. O vinho foi requerido diversas vezes, e também a
bebida sagrada em cálices de prata batida sobre bandejas
redondas e reluzentes.
O Abade, renovado e aliviado, bebeu mais do que todos.

Na alvorada, coloquei a minha trouxa — tão pequena


quanto na época em que deixei a floresta, embora com um
tecido menos esfarrapado dessa vez — nas costas. Escapei
do dormitório dos assistentes de cozinha com a calma
daqueles treinados no Caminho da Flor e atravessei a
pequena passagem lateral aos portões principais fechados,
um monge que tinha reclamado do trabalho de guarda na
noite anterior dormindo de barriga vazia, mas a salvo, na
pequena guarita.
Do lado de fora da muralha do templo, inspirei
profundamente o ar cheio de fumaça. Mas então ouvi um
barulho ritmado e vi o Velho Vril, seu sorriso já não
parecendo tão bêbado e com uma nova ponta de bronze no
cajado. Atrás dele, Kali balançava sua cabeça redonda e
negra, estalando a língua como se eu tivesse demorado
demais na latrina ou feito um trabalho atrapalhado com
minha faca de corte.
— Ah, aqui está ela. — O Velho Vril girou o cajado sobre a
nova proteção de cobre, e as penas puídas, que já
pertenceram ao pássaro divino, mas que agora estavam
sujas e manchadas de tinta, flutuaram. — Com os dedos
rápidos e o olho afiado. Pequenina, pequenina, o que vai
fazer agora?
Minha garganta fechou sob o olhar de Kali.
— Tudo que posso fazer é cozinhar — falei com algum
esforço.
O Velho Vril riu, um som de assobio seco, e ouvi o ritmo
de seu cajado se aproximando. Ele colocou alguma coisa
redonda e dura na palma da minha mão esquerda, suada, e
Kali fez outro barulho impaciente, acenando. Ela puxou um
pedaço de sua saia rendada e o colocou na minha mão livre.
— Segure firme — disse ela enquanto o mendigo se
afastava, sua silhueta se alongando como cola de amido se
desfazendo ao derreter. — Eu viajo rápido, passarinha.
Distante, os portões da cidade se abriram para os homens
do governador, trompas de bronze soprando o ar que não
eram delas. A coisa na minha mão esquerda era uma pedra
pálida e lisa em formato de ovo, vista através da água
salgada hesitante que enchia meus olhos.
Lá longe, na floresta, a seca se quebrou com a queda de
um raio.

A fumaça de vapor se erguia na floresta, as chamas sendo


derrotadas pelo vento crescente e pela água que caía. O
governador da província, chegando atrasado no festival,
encontrou o grande templo branco do Deus Esfolado
estranhamente quieto. Não havia mendigos no pátio com
sua fonte muitas vezes de água salobra, seu pináculo agora
seco. A cozinha estava deserta, os grandes fogos
queimando baixo ou já transformados em cinzas frias. Até
mesmo a cozinheira-chefe, uma megera gorda de cabelos
pretos que era muito conhecida no Mercado Principal, tinha
desaparecido.
A maior parte dos serventes e dos passarinhos da cozinha
já havia fugido ao meio-dia, o sol um olho vermelho que
enchia o templo com uma luz amarelo-esverdeada
esquisita, e quando os homens do governador arrombaram
as portas sagradas do grande refeitório, encontraram
monges congelados em posição de refestelo, os pratos
empilhados com iguarias raras que eram estranhamente
evitadas pelo enxame de moscas brilhantes como pedras
preciosas. O Abade, usando suas vestes claras, ainda que
não tingidas de branco, estava sentado à mesa principal, os
olhos esbugalhados e vazios, duro como pedra, parado
como pedra.
Aqueles que roubaram um pouco dos banquetes, os
grãos, as frutas amassadas e chamuscadas pela seca, foram
salvos. Os carregadores e assistentes de cozinha que
bebericaram o vinho ou, em um caso, uma jarra inteira que
deveria ter ido a seus superiores, também foram salvos. No
entanto, a carne perfumada e macia preparada em panelas
de barro do rio pode se misturar de forma estranha com
álcool temperado, e os dois podem se misturar com resinas
estranhas misturadas a uma bebida amarga, apimentada e
espumante. Algumas dessas misturas podem petrificar a
carne enquanto mantêm a mente, a alma e a respiração —
embora apenas uma fração de cada coisa — presas dentro
das fronteiras congeladas de um corpo.
O governador e seus homens vão queimar aqueles corpos
inertes, sem saber o que pode estar desesperado para sair
da carne fria e recalcitrante, e Haza será vingado. E eu?
Ah, eu não estou preocupada.
Como a deusa-cozinheira diz, sempre há trabalho para
alguém que saiba cozinhar.
ODIADO
CHRISTOPHER FOWLER
A primeira pista que Michael Everett Townsend recebeu de
que algo estava errado foi quando sua esposa lhe deu
um tapa na cara.
Ela nunca lhe dera um tapa na cara antes. Michael não
esperava o golpe. Ele segurava um copo de leite, que caiu e
respingou nos dois. O copo era de vidro barato e
simplesmente quicou no carpete, mas Michael deu um salto
para trás, chocado, e pisou nele, esmigalhando-o em
pedacinhos, um dos quais entrou em seu pé descalço.
Ofegando de dor, ele se jogou na lateral da cama no
momento em que o sangue começou a fluir livre da sola
ferida. Em vez da simpatia que Michael esperava receber,
no entanto, sua esposa deu um grito de raiva e um
empurrão violento, que o jogou no chão. Então, a mulher
começou a procurar uma faca.
A esposa de Michael realmente o amava.
Mas, para falar a verdade, todo mundo amava. Michael
era o cara mais popular do prédio. Os seguranças davam
tratamento preferencial a ele porque, ao contrário dos
outros moradores, ele nunca reclamava do aquecimento,
que ou estava sempre quente demais, ou era inexistente.
Betty, a vizinha de porta deles, o adorava porque, certa vez,
ele tinha assustado um ladrão drogado do corredor às duas
da manhã, porque ele dizia ter uma admiração pelo povo de
North Yorkshire, onde ela havia crescido, e porque ele
mostrara a ela como substituir a torneira da pia do
banheiro. Mitzi e Karen, as duas australianas louras que
trabalhavam como comissárias de bordo e que moravam no
andar de baixo, gostavam dele porque ele era bonito e um
cavalheiro, porque ele demonstrava o devido respeito que
elas nunca recebiam quando voavam e porque estavam
sempre ligadas a qualquer romance em potencial, fosse
para casar ou não.
Porém, não era só no prédio. Os colegas de trabalho
amavam Michael e deixavam isso claro, o que era incomum,
pois, nas empresas com sede em Londres, pouquíssimas
pessoas estão dispostas a revelar sua lealdade pessoal. O
casal asiático que era dono do mercadinho da esquina o
idolatrava, pois Michael sempre perguntava sobre o filho
deficiente físico deles e conseguia pronunciar o nome do
garoto corretamente. E dezenas de outras pessoas cujas
vidas cruzavam com a de Michael se sentiam um pouco
melhores por conhecê-lo. Ele era um sujeito popular. E, se
fosse honesto consigo mesmo, sabia disso.
Michael estava ciente de sua popularidade desde os cinco
anos, ganhando a simpatia das tias esquisitas e dos tios que
cheiravam a tabaco com um simples sorriso. Filho único de
uma família de classe média tranquila, cresceu em um
subúrbio ensolarado, cercado de amor. Os pais ainda o
adoravam, ligando uma vez por semana para saber de suas
últimas façanhas. Ele tinha sido o menino de ouro que se
mantivera o mesmo como adulto.
Ouro. Era a palavra perfeita.
Cabelo louro, olhos azuis, ombros largos, trinta e dois
anos e casado com uma mulher inteligente, talentosa e
linda. Quando Michael falava, outros ouviam, assentindo
sabiamente conforme consideravam sua opinião. As
pessoas sempre queriam chamá-lo por um apelido que
insinuasse uma amizade íntima, como Micky ou Mike. Era
difícil definir exatamente o que gostavam nele; talvez
gostassem de se deitar sobre os louros de seu sucesso.
Talvez ele os fizesse se sentir mais confiantes em suas
próprias habilidades.
A verdade era mais simples. Michael estava tranquilo no
mundo dele. Até suas conversas mais casuais faziam
sentido. Em uma existência cheia de incertezas, ele era
alguém confiável, uma rocha, uma referência. E os outros
percebiam isso. Todos reconheciam estar na presença de
um vencedor.
Quer dizer, até a noite do acidente.

Não foi culpa de Michael, na verdade. A chuva estava caindo


tão pesada que nem mesmo os limpadores de para-brisa na
velocidade máxima davam conta do recado. Era pouco
depois das onze da noite, e ele estava dirigindo lenta e
cautelosamente, voltando do escritório, onde estivera
trabalhando até tarde. Pensava em Marla enrolada na cama,
esperando ouvir a chave girando na fechadura. Ele guiava o
Mercedes pelo rio que, poucas horas atrás, era a estrada
que levava a Muswell Hill Broadway quando uma bicicleta
apareceu no meio do aguaceiro. Sobre ela, havia uma figura
grande dentro de uma capa de chuva amarela — mas não
por muito tempo. A figura bateu na capota do carro, então
perdeu o controle e caiu. Michael afundou o sapato no freio,
o que fez a traseira do veículo derrapar até atingir o meio-
fio, jogando água suja para todo lado.
Ele pulou para fora do carro e correu até a figura
prostrada.
— Porra, Jesus Cristo! — O ciclista devia ter quarenta e
muitos anos, possivelmente era sul-americano e
encontrava-se muito puto. Michael tentou ajudá-lo a se
levantar, mas foi afastado. — Não encosta em mim, cara,
não encosta em mim, porra! — Ele se voltou para a bicicleta
e a colocou de pé. Aquela coisa não tinha olhos de gato,
freios, nada. E o sujeito parecia estar bêbado ou sob o efeito
de drogas. Imediatamente Michael se sentiu menos culpado.
— Olha, sinto muito mesmo por ter batido em você, mas
você apareceu do nada na minha frente. Foi sorte eu não
estar indo mais rápido.
— É, claro. Que sorte a minha. — O guidão da bicicleta
estava torto e não parecia que poderia ser concertado sem
ferramentas. Ele jogou a bicicleta na beira da estrada de
raiva.
— Eu posso lhe dar uma carona — ofereceu Michael. A
porta do motorista do Mercedes continuava aberta. O
estofamento de couro do banco estava ficando molhado.
— Eu não quero carona em nenhum carro de rico de
merda, seu babaca! — gritou o ciclista, dando um empurrão
em Michael.
— Veja bem, estou tentando resolver isso da melhor
maneira possível — falou Michael, que sempre tentava
resolver tudo da melhor maneira possível. — Você não tinha
refletores e atravessou direto uma placa de sinalização que
mandava parar sem nem diminuir a velocidade. O que diabo
eu deveria fazer?
— Eu poderia processar esse seu rabo, é isso que eu
deveria fazer. — O ciclista o encarou irado conforme
passava a mão com cuidado sobre o pescoço e os ombros.
— Sei lá se não tem alguma coisa quebrada aqui.
— Você deve ter distendido um músculo — disse Michael,
tentando ajudar.
— O quê, você é médico? — A resposta foi agressiva, o
olhar implacável.
Não havia como resolver a situação. Era hora de deixar
aquele maluco sozinho e voltar para o carro, secar o banco
e voltar para casa. Michael começou a se afastar.
— Eu já lhe ofereci uma carona, mas se você vai agir
assim…
— Não precisa dar um chilique. Eu moro aqui perto. — O
ciclista apontou para um quarteirão próximo. — Só me dá
seu endereço. Escreve em algum lugar para eu poder entrar
em contato com você.
Michael hesitou. Realmente não gostava da ideia de dar
seu endereço a um estranho.
— Por que você ia precisar entrar em contato comigo? —
perguntou.
— Cristo, por quê? Pensa um pouco. Se eu tiver deslocado
o ombro ou alguma coisa assim, vou fazer uma reclamação
sobre você, para te obrigar a pagar os custos do que for
necessário. É melhor rezar para que não encontrem nada
errado comigo, cara.
Relutantemente, Michael tirou seu cartão de visita da
carteira e passou adiante. Segundos depois, estava
voltando para o carro e dando uma olhada no relógio. A
coisa toda demorou menos de alguns poucos minutos. De
volta ao volante, observou a capa de chuva amarela se
afastar na névoa da chuva e pensou no acidente.
Era raro ele ser colocado em qualquer tipo de situação
que envolvesse algum confronto e não saísse como
vencedor. Sua simpatia podia desarmar a mais volátil das
personalidades. Enquanto girava a chave na ignição,
imaginou se haveria alguma repercussão. E se aquele
sujeito tivesse mesmo quebrado alguma coisa e não
soubesse ainda? Em termos de seguro, como ele estava?
Michael pensava apenas em si mesmo, mas que inferno,
tinha sido culpa da outra parte. Ele era legal, mas também
não era um santo. Seu estilo de vida confortável não
deixava sobrar muito dinheiro para inconveniências, e
percalços na sua rotina tranquila o irritavam bastante.

— Querido, você está todo molhado. O que aconteceu? —


Marla se levantou e o abraçou, seu corpo quente da cama
contra seu casaco encharcado.
— Um pequeno acidente. Bati em um ciclista. Tive que
sair do carro. — Com gestos gentis, saiu do abraço e
começou a se despir.
Ela se cobriu com o lençol.
— Que coisa horrível. O que aconteceu?
— Ele não olhou ao cruzar a rua. Podia ter matado ele. Por
sorte, o homem não parecia machucado, mas…
O telefone tocou. Marla e Michael ficaram com o mesmo
olhar surpreso. Todos os seus amigos sabiam que eles
tinham um filho de sete anos no quarto ao lado e que,
portanto, não deviam ligar para a casa deles tarde da noite.
Michael pegou o aparelho e levou o receptor ao ouvido. Uma
música bizarra gemeu através do fone.
— Alô, quem é?
— É o cara em quem você bateu essa noite, meu irmão.
— Como você conseguiu meu telefone de ca…
— Desloquei o ombro. Notícia ruim para você. Péssimo
karma.
Não era possível que o homem já tivesse sido consultado
por um médico, mesmo que tivesse ido direto para o
hospital.
— Tem certeza? Quer dizer, como…
— É claro que tenho certeza, você acha que está falando
com um idiota? A Patty me falou que está todo arrebentado.
O que significa que não posso trabalhar. E que você vai ter
que me compensar por isso. Vai ser um dinheirão, cara.
— Olha, espere um minuto… — Talvez aquele fosse um
tipo de golpe profissional.
Marla deu tapinhas do ombro do marido, articulando sem
emitir som: “Quem é?”
Ele colocou a mão sobre o receptor.
— O sujeito que eu atingi com o carro.
— Você ainda está aí? Vai me pagar ou não?
— Olha, acho que está enganado se pensa que vai
conseguir tirar dinheiro de mim. — A famosa simpatia de
Michael começou a falhar. Quem diabo aquele cara pensava
que era, encontrando o número de telefone dele e ligando
de madrugada? — Mas se você se machucou de verdade, a
culpa é sua por andar de bicicleta sem olhos de gato e sem
obedecer às leis de trânsito.
— Você não sabe com quem está lidando — respondeu o
homem. — Acabou de cometer o pior erro da sua vida.
— Isso é uma ameaça?
— Só estou dizendo que gente que nem você precisa
aprender uma merda de uma lição, tratando caras como eu
como se a gente não existisse.
Michael encarou o fone. Aquilo era bobagem. Ele estava
certo, a outra parte estava errada. A lei estava do lado dele.
E ele se importava, tinha consciência social. No entanto,
aquele pensamento o congelou. E se o acidente tivesse sido
culpa dele, de alguma forma?
— Ainda está aí? Diga, sr. Townsend, qual é o seu maior
medo? Que seu filho fique doente? Que a sua mulher te
deixe?
Um arrepio percorreu a espinha de Michael. Ele não
gostou quando aquele homem louco usou seu nome, falou
de sua família. E como poderia saber que Michael era
casado? Aquilo era tão óbvio que dava para perceber
apenas ao dar uma olhada no carro?
— Não, seu maior medo é outra coisa, uma coisa que você
nem sabe. Eu conheço bem gente do seu tipo. Não precisa
de muito para acabar como um sujeito como você. — Havia
desdém na voz, como se o homem estivesse lendo a mente
de Michael.
— Escute aqui — falou Michael, explodindo —, você não
tem o direito de me ameaçar, não quando colocou tanto a
minha quanto a sua vida em perigo. Posso chamar a
polícia…
A voz na ligação o cortou.
— Quando vier me procurar… e você vai fazer isso… não
vai ser com nenhum maldito policial.
De repente, a linha ficou muda. Michael deu de ombros e
desligou o telefone.
— E então, o que ele disse?
— Ah, ele só foi… ofensivo — respondeu ele distraído,
observando a chuva cair sobre os postes de luz.
— Você tem o telefone dele?
— Hã?
— O telefone dele, para o caso de ter algum problema?
Michael percebeu que não sabia nem o nome do homem
em quem tinha batido.

Ele se levantou cedo, deixando a esposa enrolada debaixo


do edredom. Surpreendentemente, até o pequeno Sean
tinha dormido no quarto contíguo. Michael tomou banho e
vestiu uma camisa, pegou uma torrada e serviu um copo de
leite para si. Então, subiu a escada e acordou a esposa
gentilmente.
E aí ela deu o tapa na cara dele.
O copo quebrou. O leite foi derramado. Ele deu um passo
para trás e feriu o pé, mas a dor do machucado não era
nada comparada à dor do coração. Sem entender, passou
os dedos na bochecha vermelha.
— O que diabo… o que você está procurando?
Ela estava procurando freneticamente embaixo do
colchão, então parou de repente, confusa.
— Você… não deveria me assustar assim. — Marla voltou
para debaixo das cobertas, o cabelo desarrumado pela noite
de sono cobrindo os olhos. Virou as costas para ele,
envergonhada pelo sonho vívido que se infiltrara na
realidade.
Tirando o caco de vidro do pé, Michael observou uma gota
colorada de sangue se espalhando como um vírus em uma
poça clara de leite.
Um curativo deu um jeito na ferida. Ele juntou os cacos
em uma caixa, que fechou com fita e depositou na lata de
lixo com pedal debaixo da pia. Então ouviu os passos do
filho descendo a escada.
— Sean? Você quer Crunchy-Crunch? — Michael levantou
a cabeça. Nenhuma resposta. Estranho. A atenção do
menino sempre era conquistada com a menção ao seu
cereal favorito. — Seanie?
Michael olhou em volta e encontrou o filho observando-o,
desconfiado, pelas barras do corrimão.
— Sean, qual é o problema? Venha aqui e se sirva.
O menino balançou a cabeça de forma lenta e solene,
murmurando alguma coisa para si mesmo. Ele colocou o
suéter listrado sobre o queixo e envolveu os joelhos com os
braços. Olhava através das barras, mas não parecia querer
descer mais.
— Vem cá tomar café, Sean. Você pode levar um pouco
para a mamãe.
Outra resposta abafada.
Michael colocou a frigideira de lado e deu um passo na
direção do filho.
— Não dá para ouvir o que você está dizendo.
— Você não é meu pai! — gritou o menino de repente,
disparando escada acima para a segurança de seu quarto.

Michael deu uma olhada em seu reflexo no retrovisor. O


mesmo rosto agradável e cheio de confiança o encarou de
volta, embora o sorriso estivesse um pouco menos
determinado que o normal. Ele dirigiu pela avenida com
árvores encharcadas nas encostas em direção à cidade e
pensou sobre o comportamento de sua família. Não precisou
pensar por muito tempo; os três conseguiram manter uma
vida sem problemas até então, auxiliada, talvez, pela
herança de Marla e por sua própria atitude tranquila. Se
ficassem irritados na presença um do outro, sempre havia o
chalé em Norfolk, um refúgio coberto de hera que fornecia
um isolamento curativo. Mas a lembrança do tapa
permanecia tão clara quanto o formato da palma da mão
em seu rosto.
Michael parou o carro no estacionamento subterrâneo e
pegou o elevador até o sétimo andar, onde trabalhava para
a Aberfitch McKiernny, um escritório de advocacia que
lidava sobretudo com disputas sobre propriedades. A
recepcionista o olhou de soslaio quando ele passou, mas
não o recebeu com o sorriso matutino de sempre. Os
atendentes o encararam taciturnamente conforme ele
passava. Até mesmo o rapaz responsável pela
correspondência parecia ignorá-lo. Por que todo mundo
estava com um mau humor terrível hoje?
Michelle estava esperando por ele na porta de seu
escritório. Ela era a secretária mais eficiente que ele já
contratara. Usando um poderoso terninho justo de linho
preto, o cabelo claro preso com cuidado no pescoço, ela,
sem paciência, bateu em pastas de plástico com a mão
enquanto aguardava Michael retirar o casaco.
— Você devia ter levado esses arquivos para casa ontem à
noite — explicou ela, passando as pastas para ele.
— Nem tive chance de dar uma olhada neles. O caso
Trowebridge ocupou todo o meu tempo. Vou analisá-los no
final da manhã.
Ela esticou a mão e pegou as pastas de volta.
— Acho que não vai adiantar nada. Sua “opinião” era
necessária ontem, ninguém vai querer ouvi-la hoje.
Ela deu uma ênfase estranha às palavras, como se não
tivesse mais muito respeito por ele. Michael se sentou à sua
mesa e observou a secretária. O que estava acontecendo?
Michelle sempre fora sua maior fã, sua maior apoiadora. Era
óbvio que ela era apaixonada por ele, e Michael usava esse
conhecimento sem piedade. Mas hoje, seu tom tinha
mudado. Havia uma irritabilidade em sua voz, como se a
mulher tivesse visto dentro dele e não mais desejasse o que
via.
— Michelle, está tudo bem?
Ela dobrou os braços sobre o peito, completamente
gelada.
— Sim. Por quê?
— Não sei, você parece tão…
— É melhor ir no escritório do Leo. Ele não para de ligar
para cá perguntando por você. Parece bem irritado com
alguma coisa.
Leo Tarrant, cinquenta e sete anos, o centro de calmaria
da firma, estava em paz porque sabia que iria se aposentar
em um ano, e não deixava mais nada no mundo preocupá-
lo. Naquela manhã, porém, o homem não estava assim. Seu
cabelo grisalho, em geral bem-penteado, estava uma zona.
Seu rosto estava rígido e com manchas vermelhas de raiva
suprimida. Ele levou o encosto da cadeira para trás e bateu
ritmicamente nas laterais de uma cigarreira de ouro, um
lembrete de seu hábito abandonado, agora um talismã de
seu coração fortalecido.
— Você me decepcionou muito com toda a coisa de
Trowerbridge — admitiu ele. — Achei que teria resultados
rápidos com o caso nas suas mãos. Em vez disso, parece
agora que eles vão ter que ir aos tribunais, afinal.
Michael se mexeu, desconfortável, no assento. Não
conseguia compreender a atitude de Leo. A Trowerbridge
Developments estava sendo processada por um de seus
inquilinos por não conseguir manter uma propriedade em
boas condições. A empresa, consciente de que tinha poucas
chances de ganhar o caso, pediu a negociação de um
acordo extrajudicial através de seus representantes legais
de longa data. Michael fez tudo que estava ao seu alcance
para garantir que isso aconteceria. Afinal, os clientes eram
amigos dele. Eles até se encontravam de vez em quando.
Seus filhos brincavam juntos.
— Não sei do que você está falando, Leo — confessou
Michael. — Completei minha parte do acordo com tempo
suficiente de impedir que a ação seguisse para os tribunais.
— Pois escutei justamente o contrário — falou o chefe
dele, mexendo sem parar no fecho da cigarreira. — De
acordo com o relatório de progresso do próprio cliente, você
atrasou as negociações e se colocou tão a favor dos
inquilinos que agora há pouquíssimo tempo para a
Trowerbridge fechar um acordo. Nem ele e nem o filho dele
conseguem ver uma maneira satisfatória de acabar com
isso. E tem outra coisa.
Michael ficou perplexo. Ele não podia ter trabalhado mais
duro por aquela gente. Se aquela era a forma como eles
demonstravam gratidão…
— Você já recebeu algum tipo de estímulo financeiro da
família Trowerbridge? Um receptor de patrimônio líquido
negativo ou algo assim?
O velho o estava acusando de aceitar propina? Michael
mal podia acreditar no que estava ouvindo.
— Não, claro que não — gritou ele, furioso. — Estou
embasbacado só de você considerar que eu…
— Acalme-se, não estou acusando você de nada. É só
uma coisa que a companhia sugeriu para eu ficar de olho.
Pense no seu relacionamento com os Trowerbridge nos
últimos meses, tá bom? É melhor ter certeza absoluta de
que nada nos acordos mais recentes com eles possa
prejudicar a sua posição na empresa. Agora, vamos ver em
detalhes as reclamações. — Leo pegou uma pasta vermelha
e abriu-a com cuidado.
Pela próxima uma hora e meia, Michael foi interrogado
sobre seu trabalho em relação ao processo iminente.
Embora tenha saído do escritório de Leo mais ou menos
livre de qualquer suspeita, ele sabia, pelo olhar no rosto do
velho, que algo irrecuperável havia sido perdido, um nível
de confiança fora quebrado. A camada de boa-fé que
sempre existiu entre ele e seus superiores foi arrancada
como as insígnias de um soldado desonrado. Não era
apenas uma questão de reconstruir a confiança que Leo
tinha nele. Michael queria saber por que suas habilidades
tinham sido postas em questão tão rapidamente. Estava
claro que a família Trowerbridge, o pai e o filho, mentiram, e
que Leo acreditara neles. Mas por que fariam isso? O que
ganhariam com isso além de um atraso indesejado no
processo? Não fazia sentido.
Ele pensou naquilo pelo restante da manhã, período no
qual sua secretária se mostrou quase incapaz de praticar a
civilidade comum. Ela aparecia de vez em quando durante o
dia para jogar documentos na mesa dele e, em um
momento, quando Michael olhou para ela, parecia que
Michelle estava prestes a abrir um processo de assédio
contra ele. E, quando o homem estava saindo do prédio no
fim do expediente, o porteiro, de má vontade, lhe disse que
sua vaga de estacionamento mudara para outro lugar, uma
vaga menor e mais distante da porta principal.

Marla já parecia entediada com aquela conversa. Eles


lavaram a louça do jantar juntos. Agora, ela tinha voltado
para a pia e estava limpando o balcão da cozinha
desnecessariamente, pois a empregada estava marcada
para amanhã de manhã. Em algum momento, Marla
percebeu que Michael lhe fizera uma pergunta, então
suspirou e se virou para ele.
— Eu sei lá, Michael. Essas coisas acontecem. Não adianta
ficar paranoico. Ninguém está fazendo isso só para te irritar.
— Ah, mas com certeza parece — reclamou ele, tirando
uma garrafa de uísque do armário e servindo uma generosa
dose para si.
A esposa fez uma careta: se era descrença ou
insatisfação, ele não sabia dizer.
— Sabe — disse ela, devagar —, talvez você só esteja
vendo como é o mundo real, para variar.
— O que diabo isso quer dizer?
Ela fez um gesto vago.
— Você sabe como é. Você sempre teve esse tipo de…
aura de perfeição. As pessoas se desdobram só para tornar
a sua vida mais fácil. Talvez elas não estejam fazendo isso
agora, e você apenas notou pela primeira vez.
Ele esvaziou o copo e o colocou sobre a mesa da cozinha.
— Marla, isso é ridículo, e você sabe muito bem.
— Será? Você caminha por aí com esse brilho dourado e
espera que as pessoas saiam da frente porque você é você.
— Ela ficou em silêncio por um momento e então voltou
para a pia. — Foi algo que notei no dia em que nos
conhecemos. Uma qualidade que pouquíssimos homens
têm. Em geral, é uma coisa que só é encontrada em garotas
muito bonitas, e mesmo nelas, apenas por alguns anos. As
portas se abrem automaticamente. Ninguém nunca achou
que eu era especial assim, só você. O restante de nós anda
atrás de você. Bem, talvez seja a nossa hora de ficar um
tempo ao sol.
Pareceu a Michael que ele tinha sido presenteado com um
dia de revelações, que ele estava, de alguma maneira,
vendo a si mesmo de forma clara pela primeira vez, de
cima, talvez, ou a distância.
Ele se levantou e foi ficar ao lado da esposa, colocando
gentilmente as mãos sobre o quadril dela.
— Não sei por que você não falou sobre esse assunto
comigo antes — disse ele, com suavidade —, por que não
podia ter sido mais honesta comigo.
— De que adiantaria, já que você não está preparado para
ser honesto consigo mesmo? — perguntou ela, removendo
as mãos dele com frieza. — E se quer honestidade, então
vou falar. Acho que não consigo mais aguentar você me
tocando.
O cômodo ficou silencioso e permaneceu assim. Sean não
quis descer para lhe dar um beijo de boa-noite e se
escondeu atrás da saia da mãe até ela colocá-lo na cama.

Ele não achava que a situação poderia piorar ainda mais,


mas piorou.
Marla não queria conversar sobre sua recusa de permitir o
toque dele. À noite, ficava distante dele na cama e ia dormir
usando camiseta e calça comprida. De manhã, ela
levantava e se vestia antes dele. Em geral, já tinha dado
banho e servido café para o filho no horário em que Michael
acordava, para que os dois pudessem enfrentar juntos sua
figura sonolenta.
Embora se recusasse a abordar o tema da vida sexual que
de repente chegara ao fim, Marla revelou que ninguém
estava roubando sua afeição. Era apenas algo que enfim, e
talvez de forma inevitável, tinha acontecido. Excluído em
sua própria casa, ele aumentou as horas no escritório.
Mas lá a situação estava tão ruim quanto em casa. Eles
perderam o caso Trowerbridge e todo mundo agora o olhava
com suspeita, como se ele tivesse afanado materiais de
escritório e sido liberado com uma simples reprimenda. Às
vezes, Michael escutava insultos que membros da equipe
proferiam, baixinho, enquanto estavam longe. No mínimo, o
ignoravam. Ele soube que festas e jantares estavam sendo
organizados pelas suas costas e que piadas idiotas e de
baixo calão eram feitas à sua custa. Na maior parte do
tempo, ninguém parecia notar sua presença. Se ele se
aproximasse de um grupo de pessoas reunido perto da
cafeteira e tentasse começar uma conversa, elas olhariam
sobre seu ombro e notariam algo ou alguém que fosse mais
interessante. Se tentasse organizar algum evento social,
elas davam desculpas abertamente falsas, sem nem tentar
convencê-lo de que estariam indisponíveis.
Queixas mesquinhas, de um tipo que nunca tinham sido
feitas antes, começaram a se acumular. Deram a ele os
casos mais entediantes. Alguém deixou uma garrafa de
Listerine na sua mesa em resposta a uma percepção geral
no escritório de que ele sofria de mau hálito. Até mesmo o
rapaz responsável pelo estacionamento teve a temeridade
de sugerir que ele cuidasse melhor da higiene pessoal.
Por fim, sem aguentar mais, ele pediu para que sua
secretária fosse ao seu escritório e fechasse a porta.
— Quero que seja honesta comigo, Michelle — falou ele
com cuidado, sentando-se e pedindo para ela fazer o
mesmo. — Percebi que a atitude de todo mundo em relação
a mim mudou drasticamente nas duas últimas semanas e
não consigo entender por quê.
— Você quer a verdade nua e crua? — perguntou Michelle,
examinando suas cutículas de uma maneira mordaz.
— Por favor — solicitou Michael, preparado para ouvir a
resposta e analisá-la por completo.
— Bem, é o jeito como você trata as pessoas, como se
elas fossem satélites orbitando o seu planeta. Eu costumava
achar isso atraente, muito masculino. Gostava de você, de
toda essa determinação rude. Assim como os outros. Agora
nem imagino como pude ter sido tão cega. — Ela se mexeu,
desconfortável. — Posso ir agora?
— Claro que não! — Ele bufou, pensou e balançou a
cabeça, perplexo. — Explique o que quer dizer. O que os
outros falam sobre mim?
Michelle olhou para o teto e deixou o ar escapar pela
boca.
— Ah, acho que sabe disso. Que você é metido,
entediante, mandão e muito menos inteligente do que
pensa. Você só deixou de ser uma pessoa tão agradável.
— E você consegue ficar sentada aí e falar isso na minha
cara? — indagou ele.
— Eu já pedi uma transferência — respondeu ela, se
levantando.
Michael percebeu que, se saísse dali e fosse comprar um
cachorro, o bicho provavelmente sairia correndo só para
ficar longe dele. Sentando em um banco úmido no
enlameado parquinho que ficava atrás do escritório,
observando os pombos andarem até seus sapatos e depois
se afastarem de supetão, Michael começou a ficar ciente de
que alguém colocara uma maldição nele. Não uma maldição
clássica como fique-cheio-de-furúnculos-e-morra, mas algo
mais sutil. Apenas uma coisa fora do comum poderia ser
considerada, um suspeito, e era o sr. Sei-lá-o-nome da
bicicleta, o camarada latino que ele atropelou. Quanto mais
Michael analisava aquilo, mas claro ficava que seus
problemas começaram de verdade depois daquela ligação
irritada durante a noite. Ele se lembrou da voz no telefone:
“Qual é o seu maior medo…? Não precisa de muito para
acabar como um sujeito como você… Quando vier me
procurar… e você vai fazer isso…” Tudo começou a fazer
sentido. Poderia haver alguma explicação racional para o
que estava acontecendo com ele? O homem era algum tipo
de xamã ligado ao sobrenatural, um hipnotista cruel ou
apenas um sujeito com poder de sugestão? Não era assim
que o vodu funcionava? Ele estava determinado a tomar
uma atitude.
Já era noite quando Michael finalmente saiu do trabalho.
Levando o carro de volta ao cruzamento onde o acidente
ocorreu, ele se lembrou da resposta do ciclista sobre a
oferta de carona. “Eu moro aqui perto.”
“Aqui perto” se mostrou um quarteirão de moradias
populares pré-fabricadas de dois andares. Sem ter outra
maneira de localizar seu algoz, Michael começou a tocar
campainhas e encarar os moradores irados, a maioria dos
quais estava no meio do jantar. Um deles até o xingou e
cuspiu nele, mas agora Michael já estava acostumado com
aquele tipo de tratamento. Marchando como um coletor de
aluguel insano pelo inundado corredor aberto cheio de
ranhuras, ele de repente se lembrou de um nome
mencionado na ligação: Patty. Não tinha sido ela quem dera
uma olhada no ombro machucado do ciclista? Pelo menos
era alguém específico, uma pessoa pela qual ele poderia
perguntar.
Depois de ter sido maltratado em outras quatro portas,
estava quase chegando ao fim do primeiro andar com
apenas mais uns poucos apartamentos sobrando quando
um jovem asiático com dragões tatuados nos braços
apontou para a porta no final do corredor.
— Ela é casada com um cara mexicano que toca uma
música bizarra a noite inteira — reclamou.
Apoiada no duto do lixo estava a bicicleta que Michael
acertara, agora consertada.
— É lá mesmo — disse Michael, agradecendo ao rapaz e
indo embora. Ele ficou diante da porta e leu o cartão junto à
campainha quebrada.
— Você apareceu antes do que eu esperava — falou
Ramon del Tierro, curandeiro, abrindo a porta com a batida
de Michael e deixando-o entrar. — Achei que ainda ia
demorar pelo menos uma semana.
O corredor estava imerso na escuridão. A música de uma
banda mariachi tocava em um dos quartos. O apartamento
era levemente perfumado, como se alguém tivesse
queimado incenso há pouco tempo. Ramon era mais magro
e mais baixo do que ele se lembrava, pálido e com
aparência de doente. O olho esquerdo era leitoso, cego. Ele
caminhou até uma salinha decorada com algum esmero e
fez um gesto, mandando-o sentar. Michael não queria
sentar. Não considerava mais aquela situação absurda. Só
queria uma resposta e um fim ao ódio.
— Você fez isso comigo, não foi? — O aperto em sua voz
fez ele perceber quanta raiva estava sentindo.
— Fiz o quê? Me diz o que eu fiz. — Ramon deu de
ombros, fingindo confusão.
— Você me fez… fez todo mundo me detestar.
— Olha, como é que eu poderia fazer isso? Você não está
falando coisa com coisa. Quer saber como está o meu
ombro? Obrigado por perguntar, vai ficar tudo bem. — Ele
se virou de costas. — Vou fazer um café. Quer um pouco?
— Eu quero que me diga o que fez comigo, caramba! —
gritou Michael, agarrando um braço magricela.
Ramon manteve o olhar firme e ficou em silêncio até
Michael soltar o braço dele. Então, falou suavemente.
— Tenho um dom, sr. Townsend. Um dom louco e sem
sentido. Se fosse a capacidade de ver o futuro ou algo
parecido, poderia fazer algum dinheiro com ele, mas não.
Quando conheço estranhos, consigo ver o que lhes
proporciona tristeza ou felicidade. Às vezes, dá para sentir o
que eles temem ou o que amam. Depende de quem eu
toco. De vez em quando, não sinto nada. Mas senti com
você. E fiz você ver como a vida pode ser quando não se
tem a coisa que se mais aprecia. No seu caso, é a
popularidade. Tirei seu charme. Você não é mais um sujeito
de que todo mundo gosta. Só não achei que ia ferrar tudo
tão feio assim. Imagino que você ame a si mesmo muito
mais do que a qualquer outra pessoa.
Michael passou um dedo em seu rosto, de repente
exausto.
— Por que fez isso comigo?
— Porque eu posso e porque você mereceu. Agora, o que
vai fazer quanto a isso? Vai chorar na polícia, dizer a eles
que ninguém gosta de você?
A fúria estava crescendo em Michael, borbulhando até a
superfície e se transformando em uma névoa maligna.
— O que você quer?
— Não quero nada de você, sr. Townsend. Você não tem
nada de que desejo.
— Você sabotou o meu trabalho.
Ramon balançou a cabeça.
— Não, senhor, não fiz nada disso. O que quer que tenha
acontecido é porque as pessoas não gostam mais de você.
— Então pode acabar com isso.
O curandeiro considerou aquelas palavras por um
momento, coçando o queixo com a unha.
— Acho que poderia, mas não quero. Veja bem, é melhor
para você reaprender sobre si mesmo do início. Não vai ser
fácil seguir do jeito que está agora, mas mesmo o esforço já
vai te tornar uma pessoa melhor.
Michael sabia que, caso se aproximasse mais, ia
arrebentar a cara de Ramon. Era difícil tirá-lo do sério,
porém, quando isso acontecia, era algo formidável de
observar. Ele estava fechando os punhos e se aproximando
do pequeno mexicano.
— Tire essa coisa de mim neste instante, seu latinozinho
imundo, ou vou te deixar desacordado de tanta porrada e
vou queimar essa latrina de apartamento com você dentro,
entendeu?
— Agora está mostrando sua verdadeira personalidade, sr.
Townsend. — Ramon deu um passo atrás, prudente, mas
não nervoso. — Uma alma como a sua dá um trabalhão para
ser corrigida. Me diga o que quer.
— Quero que faça todo mundo me amar de novo — disse
ele, subitamente e com vergonha da compreensão de suas
necessidades.
— Isso eu posso fazer.
— Quanto tempo vai demorar?
— Poucos segundos, com apenas um toque. Mas você não
vai gostar. Considere a outra opção, por favor. Reaprenda.
Comece de novo com a personalidade que tem agora. Vai
ser mais difícil, mas as recompensas serão melhores.
— Não posso fazer isso. Preciso que aconteça hoje à noite.
— Então vai ter que ser pelo caminho difícil. Chegue mais
perto de mim.
Michael caminhou para os braços estendidos de Ramon.
Antes de perceber o que estava acontecendo, ele sentiu a
faca de lâmina fina que Ramon retirara do pequeno bolso
entre suas costelas atravessar seu coração. A ponta ardente
do aço cortou o músculo que batia, perfurando um
ventrículo e acabando com sua vida em um único segundo
carmesim.

Tantas pessoas apareceram na St. Peter’s Church que o


estacionamento ficou lotado e tiveram que estacionar nos
canteiros gramados ao lado da estrada. O velório foi cheio
de elogios dos sócios sêniores da Aberfitch McKiernny, de
amigos e de parentes, de seus colegas e de sua adorada
esposa. Todos que compareceram ao funeral de Michael
Everett Townsend concordaram plenamente: o homem que
estava sendo enterrado era de fato amado por todos.
OS ALEGRES DANÇARINOS
ALISON LITTLEWOOD
A noite já tinha caído
primeira vez, embora
quando vi minha vizinha pela
não tivesse certeza quando ela
decidira sair para o jardim. Eu estava ocupada
desempacotando as coisas e dizendo a mim mesma que
deveria ficar feliz com o que tinha, e estava escuro quando
fui fechar as cortinas. Ela estava em uma cadeira de rodas,
nada além de uma silhueta corcunda e sombria nos
arbustos. Eu poderia nem mesmo tê-la visto se não fosse o
movimento dos pés, chutando sem parar o cobertor em
cima das pernas. Pensei em Parkinson, na síndrome de
pernas inquietas e em outras doenças que não conseguia
nomear ou conhecia direito. Será que ela havia ficado
doente apenas recentemente ou era algo que já durava
algum tempo? Será que precisava da minha ajuda?
Eu me senti mal por não saber. Não a conhecera antes,
embora minha mãe tivesse vivido naquele imóvel por algum
tempo. Saí de casa assim que fiz dezoito anos, ansiosa para
viver tudo que Londres tinha para oferecer, e só voltei
quando minha mãe ficou doente. Escolhi cuidar dela,
embora não quisesse fazer isso, e, no momento em que
consegui chegar, já era tarde demais. Agora estava aqui e
era como se não pudesse ir embora de novo — não podia
ser tão ingrata a ponto de abandoná-la uma segunda vez,
ainda que ela já tivesse partido.
A idosa que morava na casa ao lado inclinou a cabeça
para trás para ver as estrelas, protegendo os olhos como se
os astros fossem claros demais, e notei o sorriso em seus
lábios. De repente, aquilo pareceu terrivelmente romântico.
A mulher era velha, estava doente e talvez não pudesse
nem andar, e mesmo assim lá estava ela, enfrentando o ar
noturno e sonhando, enquanto eu, com vinte e quatro anos,
agia como se a minha vida tivesse chegado ao fim.
No final, não fui falar com ela. Não a vi de novo naquela
noite, não a observei para ver se tinha voltado para casa,
fechado as portas se mantendo segura. Dormi direto até a
manhã seguinte, me alonguei para deixar meus membros
mais flexíveis, escovei os dentes e me vesti antes de abrir a
cortina e dar de cara com a vizinha sentada lá, no mesmo
lugar em que estava na noite anterior.
Não consegui respirar. Será que a mulher ficara presa ali,
incapaz de sair sozinha? Será que tinha adormecido — ou
algo pior? Ela era uma idosa solitária e precisava de ajuda;
ajuda que, mais uma vez, falhei em dar.
Com infartos, derrames e outros terrores da terceira idade
na cabeça, corri escada abaixo para o jardim. Nossas duas
casas eram as únicas no topo de uma ruela cheia de
árvores, separadas uma da outra e das montanhas que
cresciam ao redor apenas por uma cerca que chegava aos
joelhos. Atravessei-a e disparei até ela, gritando para saber
se estava bem, e a velha se virou para mim, seu olhar de
espanto me fazendo parar de supetão.
— Minha nossa — falou. — Viu um fantasma, mocinha?
Minha apreensão se transformou em desculpas. Expliquei
o que me preocupava e me apresentei, e ela disse que era
Annis Scollay, que tinha acabado de pôr os pés para fora —
pôr as rodas para fora, pensei em corrigir, mas fiquei
calada. As pernas dela ainda chutavam o cobertor, um tartã
cinzento, e pensei novamente que ela tinha algum tipo de
doença, um espasmo muscular que não conseguia controlar.
Tentei não olhar, mas, de vez em quando, um chute mais
agudo chamava minha atenção.
— Eu saí por um tempinho ontem de noite — disse ela. —
Esperava ver os alegres dançarinos. No jornal disseram que
eles podiam ser vistos até aqui no sul, mas não vi nada. Por
acaso, você conseguiu ver, Sophie?
Respondi que não, embora eu me lembrasse da
reportagem a que ela estava se referindo — eu devia ter
pensado naquilo antes. Se não estivesse tão obcecada em
encontrar um lugar para tudo, poderia ter tentado ver a
aurora boreal, ainda que, mesmo com a garantia do âncora
do jornal, parecia improvável que ela desse as caras no céu
de Lincolnshire. Aquele fenômeno era reservado para climas
mais selvagens, para as partes mais ao norte do mundo.
— Mas ainda tá um friozinho — disse ela, tremendo, como
se tivesse que explicar o que estava falando. — Tivemos
isso, pelo menos. Ela mexeu as mãos debaixo do cobertor,
puxando outra coberta de debaixo dele; parecia tão suave
quanto pelo de cabra. Ela passou para mim, mas balancei a
cabeça. Eu tinha saído para ajudá-la, e não para ela me
ajudar. — Esse tom de marrom é chamado de murat. Uma
das melhores coisas que você vai sentir em volta do seu
pescoço.
Uma estranha curiosidade tomou conta de mim e peguei o
tecido, colocando-o em volta dos ombros, e me senti
confortada na mesma hora. Me aconcheguei no seu calor.
— Meu pai criou a cabra que deu a lã desse cobertor —
disse ela. — Ovelha de Shetland, das ilhas. Esse veio da
minha favorita. Bonxie, era como eu a chamava, em
homenagem aos pintinhos de moleiro-grande que viviam
nas falésias. Ela era uma das melhores, as ovelhas gentis,
era como a gente chamava, que dão a melhor lã.
Não consegui resistir e passei o tecido pelo meu pescoço,
quase pensando que eu podia sentir o cheiro não da
lanolina, mas do aroma salgado do oceano.
— É isso mesmo — falou ela, como se eu tivesse dito o
que se passava na minha cabeça. — Tinha pôneis também,
claro, os nossos vizinhos eram donos de alguns, e eu ia lá
sempre que podia. Colocava o cabresto neles e os levava
para passear que nem cachorros, porque eram
praticamente do mesmo tamanho.
— Você cresceu nas ilhas Shetland? — Meus olhos se
abriram. O arquipélago parecia tão desconhecido para mim
quanto um lugar em uma história. Não sabia nem se
conseguiria localizá-lo em um mapa.
— Em Foula — respondeu ela, claramente amando falar
sobre aquilo. — A ilha mais ao oeste e mais distante do
resto, separada do arquipélago por aquele recife terrível, o
Shaalds, embora eu sempre tenha pensado nele como
pedras famintas. A ilha mais solitária da Grã-Bretanha — ela
disse a última frase com um toque de orgulho.
Envolvida por suas palavras, falei apenas:
— Pensei mesmo ter notado um sotaque. — No entanto, a
verdade é que, às vezes, eu notava, e, às vezes, não. Ele
parecia ir e vir, como algo que ela só se lembrava de vez
em quando.
— É, ainda está aqui, quando paro para pensar nisso —
falou ela. — Já perdi a maior parte dele. Perdi muita coisa
quando fui embora. Encontrei outras também. É assim
mesmo, acho.
Ela me encarou como se pudesse ver dentro de mim, e
pensei na forma como eu tinha herdado a casa, como havia
ganhado tudo. Fora ao mesmo tempo fácil e difícil demais.
Tinha perdido a minha mãe, não tinha feito nada para
ajudá-la. Não merecia uma casa como aquela, não dera o
suficiente. Mas estava ajudando agora, não é? Gente velha
gostava de conversar sobre sua vida, suas memórias. Annis
com certeza parecia feliz por ter a oportunidade de falar
com alguém, e minha mãe poderia ter gostado de saber que
eu a escutei — então pedi a ela para me falar sobre como
era lá em Foula.
Não sei bem se ela me ouviu. Annis observava o jardim,
focada em um galho pequeno que ainda balançava, como
se um passarinho tivesse acabado de voar dele; então,
olhou para o outro lado como se não tivesse sido nada,
afinal. Seu olhar suavizou, como se visse apenas lugares
distantes, outros tempos.
— Eu vi um trow quando tinha treze anos — falou. — É
esse tipo de coisa que você gosta de ouvir, querida?
Sorri e assenti, me perguntando o que diabo era um trow.
Um peixe? Um pássaro? Eu tentava não me sentir como
uma criança na hora de dormir, ouvindo histórias no colo da
mamãe.
— A aurora boreal brilhou naquela noite — disse ela. — Os
dançarinos estavam alegres, talvez alegres demais, então,
de certo modo, foi tudo culpa deles, pois se não estivessem
brilhando tanto, a trilha estaria escura demais para sair. O
inverno se aproximava, e as noites estavam ficando mais
longas do que você pode imaginar, embora ainda fosse
entre as estações; tempestades já tinham caído e ainda iam
cair, mas, naquela noite, o tempo estava calmo.
“Eu só fui até a casa dos Turvelson. Eles eram os donos
das terras vizinhas às nossas, e minha mãe me mandou ir
até lá para pedir um pouco de manteiga. Ela estava fazendo
biscoitos para o aniversário dos pequeninos, mas fui eu
quem tive que ir.”
O sotaque pareceu ficar mais forte conforme ela se
lembrava. As consoantes ficaram mais brutas e as vogais
mais profundas.
— Não demorou muito tempo e o embrulho ficou
escorregadio no meu bolso. Por sorte os vizinhos moravam
perto. Menos de quarenta almas viviam em Foula naquela
época, todos nós no planalto mais a leste. A maioria das
ilhas não tem ninguém, sabia disso? E ninguém é capaz de
contá-las. Dizem que tem cem ilhas e rochedos, mas
ninguém sabe de verdade, e dizem que algumas aparecem
e desaparecem ao sabor do clima.
Sorri para ela de forma um tanto extravagante, mas agora
que tinha começado, a idosa mal parecia perceber a minha
presença.
— O céu para o norte parecia todo iluminado — disse ela.
— A cada poucos passos, a trilha ganhava um brilho verde
sob meus pés e eu conseguia ver tudo… e nada, pois a
cintilação lá em cima deixava as montanhas mais escuras
do que nunca. Os trows moram nas montanhas, sabia disso?
Olhei para o grande monte de Hamnafeld, que, do outro
lado, dá para o oceano. No topo, é lá que dizem que fica a
porta, a Chaminé de Liorafeld, uma abertura que vai direto
para as casas deles debaixo da terra. Alguns desceram com
cordas até lá embaixo para ver se encontravam o fundo,
mas ninguém nunca conseguiu. Aqueles que procuram
quase nunca encontram a porta.
“Foi isso que a minha vó tinha contado para mim e era
nisso que eu estava pensando. Talvez tenha sido por esse
motivo que aconteceu… eles foram chamados pelos meus
pensamentos, ou pode ser que fosse apenas a manteiga, ou
que eles gostassem das luzes bonitas. Qualquer que tenha
sido a razão, senti os olhos deles em mim.
“Aquela sensação que se tem de vez em quando de estar
sendo observada… é bem raro em Foula. Tem mais pôneis
do que gente lá, e mais ovelhas do que pôneis, e mais
pássaros do que tudo junto, e nunca uma pessoa estranha,
ainda mais no inverno. Mesmo assim, eu percebi quando ela
chegou, aquela sensação, se arrastando sobre mim como
dedos sujos.
“Eu me virei e lá estava ele: uma silhueta onde não
deveria ter nenhuma. Ele estava no meio do caminho entre
a casa deles e a minha, como se tivesse acabado de sair do
pântano. Em um momento, ele estava claro, delineado na
luz piscante, e no seguinte, mal conseguia vê-lo. Mas era
alto, isso era, e cinzento; achei que a roupa e a pele dele
eram cinzentas também, sua barba e seu cabelo um ninho
de ratos, todo ele, e eu sabia que ele estava olhando para
mim, embora não conseguisse ver seus olhos direito.
“Eu não sei o que eu acabaria fazendo, se gritaria,
correria ou simplesmente faria nada, mas, graças a Deus,
ele começou a se afastar. Ele não andava que nem gente
normal, no entanto. Andava que nem um trow, ou seja, de
costas. Ele nem deu uma espiada para trás para conferir o
caminho. Pelo menos, eu acho que não. Ele ia e vinha na
luz, mas senti que ainda estava me observando, e tremi,
porque soube então que tinha visto um deles. Tem quem
diga que os trows são como os trolls noruegueses, outros
falam que são como as fadas inglesas, mas acho que eles
são uma coisa no meio do caminho.
“O medo tomou conta de mim e corri para casa. Quando
entrei pela porta, minha mãe me chamou pedindo a
manteiga, meu irmão e minha irmã menores tiraram os
olhos da própria brincadeira e minha vó deu uma olhada em
mim e soltou um berro capaz de acordar todos os anjos do
céu.
“Bem, aí foi uma bagunça. ‘O que foi? O que foi?’ Minha
mãe gritava, e eu mal conseguia falar de tanto que tremia,
mas a vó só segurou o lampião perto da minha cara,
mudando a luz de lugar de vez em quando.
“‘O que você viu?’, cuspiu ela, e fiquei com tanto medo
que pensei em mentir, mas eu sabia que ela tinha visto
aquilo em mim. Ela via muita coisa, a minha vó, coisas
demais, talvez. Então contei para ela.
“Ela crocitou como se tivesse pegado um peixe. ‘Eu
sabia!’, falou. ‘Ele deixou a marca dele em você!’
“Então meu irmão sorriu e minha irmã caiu na gargalhada,
mas minha mãe só deu um suspiro e voltou para os
biscoitos de aveia, levando a manteiga. Eu fui na mesma
hora para o espelho. Olhei e olhei, tentando encontrar o que
a vó tinha visto. Deixou a marca dele em você, ela falou,
mas não importa o quanto eu tentasse, naquele momento
ou depois, nunca encontrei um traço dela.”
Annis se mexeu na cadeira, piscando como se não
soubesse muito bem onde estava. Fiquei consciente dos pés
dela se mexendo sem parar debaixo do cobertor, o som de
repente parecendo muito alto. Percebi que o barulho
estivera ali durante todo o tempo em que ela falara, quase
como um sussurro, ou como ondas se quebrando na costa.
Então notei que a idosa esperava por uma resposta minha,
mas, mesmo assim, eu ainda não sabia o que dizer.
— Tem mais coisa, é claro — falou ela. — Eu devia te
contar sobre quando fiz dezesseis anos, sobre o Yule e sobre
o que aconteceu com os gêmeos, meu irmão e minha irmã.
Seu corpo inteiro tremeu na cadeira e ela deu um chute
especialmente forte. O cobertor de tartã caiu, e vi de
relance não brogues largos, ou pantufas de ficar em casa,
ou nada do tipo, mas um par de sapatos requintados de um
vermelho brilhante. Ela arquejou, puxando o cobertor para
cobri-los outra vez.
— Vou contar para você sobre eles também — disse ela
—, mas agora não.
Devo ter me aproximado mesmo sem querer, pensando
em ajudá-la, suponho, pois ela estendeu a mão e pegou a
minha como uma garra ossuda, esmigalhando meus dedos.
— Vou voltar lá para dentro — disse Annis. — Acho que já
falei demais.
Ela deu olhadelas para a esquerda e para a direita antes
de gesticular, me mandando voltar para o meu jardim,
ignorando as minhas despedidas e ofertas de ajuda
enquanto empurrava as rodas da cadeira. Não tenho
certeza se estava mais vendo ela. Ainda conseguia imaginar
aqueles sapatos pontudos, o brilho deles, o vermelho
perfeito, a costura pequena e quase invisível, a maciez do
couro. Percebi que não tinha dito uma palavra sobre a
história dela. E foi apenas quando entrei em casa que notei
que seu cobertor de lã macia ainda estava sobre meus
ombros.

Conforme prossegui com a tarefa de me estabelecer na


casa da minha mãe, a história de Annis começou a parecer
mais e mais absurda. Não sabia o que pensar dela ou da
própria Annis por ter me contado. A narrativa era, com
certeza, de faz de conta, ou ao menos pouco mais que uma
mistura do passado e dos causos que a idosa deve ter
ouvido durante a infância.
Ainda assim, eu ficava voltando para o lugar em que tinha
deixado o cobertor, pegando-o e passando-o na bochecha.
Aquele aroma ainda estava lá, o vento severo e bruto
carregado pelo Atlântico. Porém, quando fechava os olhos,
eram os sapatos que eu via, sapatos tão bonitos para uma
pessoa tão velha, e me perguntava como deveria ser usá-
los. Será que era por causa disso que seus pés estavam
sempre inquietos, como se quisessem dançar? Ou eles
apenas seguiam os rastros dos pensamentos errantes dela?
Balancei a cabeça, descartando a ideia, e decidi dar outra
olhada em Annis. Pareceu o destino, então, que, quando
olhei pela janela, a vi saindo para o jardim, em um dia que
ainda se esforçava para ficar claro.
Depois da última vez, parecia não ter sentido fazer
qualquer cerimônia, então fui até o meu jardim e acenei
conforme atravessava a cerca. Minha intenção era entregar
aquele maravilhoso cobertor para ela, mas Annis gesticulou,
indicando para que ficasse com ele, então me enrolei nele
mais uma vez.
— Minha vó tinha um monte de superstições — falou ela,
como se eu nunca tivesse me afastado. — Ela sempre dizia
que os trows castigariam uma moça que se esquecesse de
colocar um pedacinho de turfa em uma chama que
estivesse morrendo. Eles gostam do fogo, sabe? Eles
também gostam de dar banho em suas crias aos sábados, e
ela me mandaria deixar a água reservada para eles. Se eu
deixasse de fazer essas coisas ou se as fizesse muito bem,
antes mesmo que ela pudesse pensar sobre isso... bem,
tudo foi deixado de lado na noite em que vi o homenzinho.
“Ela não me deixava esquecer aquilo, e, de qualquer
maneira, eu não conseguiria. Pensava muito nele: parado lá
debaixo do céu dançante, me observando sem parar. Não
sei se ainda carregava a marca que a vó tinha falado. Não
gostava de pensar nela e muito menos perguntar, mas o
desejo dele estava em mim, era o que ela sempre dizia, e
isso sempre fazia um arrepio correr pela minha coluna,
como se eu ainda estivesse lá no frio e no escuro.
“Mas é no Yule que os trows realmente perambulam por
cima da terra. Eles saem sete dias antes, na Noite de Tul-ya,
quando acontece a cerimônia de convocação dos mortos e
dos seres mágicos à Terra, e foi assim no ano em que fiz
dezesseis anos. A vó me mandou enfiar facas na carne
curada para impedir os trows de roubá-la, e era eu que
tinha que fazer as bênçãos dos pequeninos.
“Fiz a minha primeiro: me lavei, depois mergulhei as mãos
e os pés na água enquanto a minha mãe jogava carvão
nela, para que os trows não pudessem roubar o poder deles.
Aí chegou a hora de abençoar os pequeninos, mas eles já
estavam mais velhos àquela altura, onze anos, e não
queriam saber de mim: fizeram caretas e jogaram água em
mim até eu ficar encharcada, então falei que, se eles
queriam se arriscar, o problema era deles.
“Verdade seja dita, eu estava cansada dos dois. Eu tinha
que cozinhar para eles, me assegurar de que os rostos
bobos iguais deles estavam limpos, pentear os cabelos
iguais deles. Tinha que pegar isso e arrumar aquilo,
enquanto eles faziam a mesma careta para mim pelas
costas da mãe. Além disso, aquele foi o ano dos sapatos
vermelhos, e depois que eu os vi, não conseguia pensar em
mais nada.”
Percebi que seus pés ainda estavam inquietos, mudando
de lugar e fazendo barulho debaixo do cobertor. Quase me
esqueci do movimento deles, deixara, de alguma forma, de
notar.
— Ah, mas eu queria aqueles sapatos. Vi eles em uma loja
chique no continente, bem na vitrine, cobertos de lacinhos,
e não conseguia falar de outra coisa. O baile estava
chegando, e eu sentia que precisava usar eles. Se tivesse
aqueles sapatos, Alex Galdie poderia me chamar para
dançar. Se tivesse aqueles sapatos, nunca pediria por outra
coisa. Você já quis alguma coisa assim, Sophie? Precisava
tanto dela que parece que tem um nó dentro de você que
nunca afrouxa?
Ela parou, e tentei refletir, mas foram aqueles sapatos
que vieram à minha mente, o vermelho lindo deles, sua
suavidade, sua forma perfeita, e pensei em dançar — em
voar pelo ar como se nunca fosse cair na terra novamente.
Afastei o pensamento, mas ela não notou meu devaneio.
— Eu economizei e economizei — disse Annis. — Joguei
cada centavo, um depois do outro, em um jarro para ajudar
a comprá-los, só que nunca era suficiente. Eu implorei, eu
chorei. Fiz tudo que me mandaram fazer, lavei a roupa dos
pequenos antes mesmo de alguém falar qualquer coisa,
limpei a lareira, todas as ordens da minha mãe. No final,
minha mãe suspirou fundo e disse que eu devia ter sido
enfeitiçada… na montanha, acrescentou, se referindo ao
poder do trow… mas confirmou que os sapatos seriam
meus.
“Talvez ela já pensasse que eu era amaldiçoada naquela
época, sabe, mas não era assim que eu via. Por que uma
garota tem que ser obediente todos os dias? Por que ela só
pode pensar em trabalho, na casa e nos filhos e nada mais?
O mundo era enorme do outro lado da porta, atravessando
o oceano. Toda vez que olhava para fora, pensava nisso, e
toda vez que os rapazes olhavam para mim, escutava uma
música alta tocando, já sentia a dança nos meus pés.”
Eu quase conseguia ver aquilo, ou uma memória daquilo.
Quando ela continuou, tive que afastar aquela visão.
— Em Foula, o Velho Yule ainda é celebrado em janeiro,
conforme era no calendário juliano, embora o resto do
mundo tenha mudado isso em 1752. Nós ainda
mantínhamos tradições que qualquer um tinha deixado para
trás há um bom tempo, talvez porque não tivesse muito
para fazer. Então, o baile foi marcado para o sexto dia.
Depois disso, os vizinhos cinzentos voltariam para dentro da
terra, o feriado deles teria acabado, mas, antes, eles
dançariam o quanto pudessem. Assim como eu.
“Quase nunca nevava em Foula. Você pode não acreditar
nisso, já que ela fica tão ao norte quanto o cabo Farvel, na
Groelândia, mas as correntes do Atlântico mantêm o clima
ameno; só parece tão frio por causa do vento que sopra do
mar. Mas nevou naquela noite, na noite do baile. Uma boa
camada de neve, e o vento só a deixou pior, cada floco que
nem uma faca na pele. E da maneira que eles caíam por
toda parte, era difícil ver um palmo à frente.
“O mar estava brabo quando chegamos em Norderhus,
perto do porto. Eu ouvi sua música, profunda e feroz. O
Atlântico e o mar do Norte estavam em guerra, a água
preta, o céu acima pálido como a morte. Não eram as luzes,
no entanto; os únicos dançarinos alegres estavam dentro de
nós. Dava para ouvir as rabecas no vento, altas em um
instante, quietas e rápidas no seguinte. Eu ainda não estava
usando meus sapatos vermelhos, apenas carregava eles
debaixo do meu capote para que não ficassem molhados.
Estávamos minha mãe, minha vó e eu; os gêmeos foram
considerados novos demais, e não senti nenhuma pena
deles.
“Todo mundo estava do lado de dentro, no cômodo mais
central, e lá estava fervendo. Deixei minhas botas com as
outras e coloquei meus sapatos maravilhosos, e a música
entrou neles de imediato, veloz e livre e me falando de
novos lugares, e praticamente no instante em que coloquei
os pés no salão, eu estava fora de mim, minha mão junto a
de Alex Galdie, tão perto quanto eu poderia desejar, e ele
não tirou os olhos dos meus nem por um segundo enquanto
a gente girava e rodopiava. Havia uma luz no rosto dele
quando ele sorria para mim, e, se eu não estava enfeitiçada
antes, estava enfeitiçada agora. Vi minha mãe e minha vó
me observando, mas não me importei nem um pouco. Meus
sapatos me levavam e eu estava feliz de ir.
“Não pensei nem um segundo em casa, ou nas minhas
tarefas, ou na terra em que nasci, ou nos trows e seus
modos, nem mesmo no amor deles pela dança. A música
acabou e outra ainda mais selvagem começou, e Alex não
me largou. Dançou comigo de novo, me rodopiando pela
cintura, e meus pés ficaram mais rápidos e mais rápidos até
eu rir de alegria.
“Os trows amam a rabeca, sabia disso? Dizem que eles
roubaram e mantiveram a Rabeca de Yell por anos e anos,
embora ele tenha pensado que apenas uma noite se passou
enquanto tocava para eles. E parece que eles não foram os
únicos, porque, depois de um tempo, notei, pelo rabo do
olho, a porta se abrindo e os gêmeos escapulindo para
dentro, bem quietinhos, os olhos esbugalhados e dois
sorrisos iguais nos rostos. Eles passaram desapercebidos,
sem falar com ninguém até se juntarem à dança. Eu os via
vez ou outra, quando nossos caminhos se cruzavam, nossas
mãos se tocavam, rodopiando para longe. Eles me
lançavam olhares desentendidos e nunca me dirigiram uma
palavra. Eu me lembro de pensar que eles devem ter
esperado pelo baile tanto quanto eu, e não podia culpá-los
por isso. Eu não me sentei nem por um segundo, e nunca
mais queria me sentar de novo.
“Eles dançaram de forma linda. Não erraram nem um
passo sequer, e eram tão jovens.
“Era mais ou menos meia-noite quando minha mãe me
pegou pela mão e disse que a gente precisava ir embora. Eu
procurei os gêmeos, mas não os vi em lugar nenhum, então
perguntei a ela onde eles estavam, meus pés inquietos o
tempo todo, porque a música não tinha terminado, e Alex
estava me esperando, e eu não suportava ficar parada.
“Ela balançou a cabeça. Achei que a música tinha deixado
ela surda, então falei mais alto, mas ela ainda não
conseguia entender a pergunta. Durante todo o tempo em
que os gêmeos dançaram, sabe, alguma coisa impedira ela
de ver; ela nem mesmo percebeu que eles estiveram lá. E
então a vó falou que eles não podiam ter vindo, não
sozinhos, porque, quando ela colocou os pés para fora, se
certificou de trancar bem a porta.
“Bem, aí foi uma bagunça. A dança logo parou e todo
mundo vestiu seu capote ou sua capa de chuva e foi
procurar.
“A neve não tinha parado de cair, mas o céu estava
escuro de novo, mais profundo e mais sombrio em
comparação às luzes que dançavam nele. Os alegres
dançarinos tinham vindo, afinal, como se estivessem
zombando de nós.
“Os pequeninos não estavam na casa, claro. Lá estava
tudo quieto, a porta escancarada e a neve entrando e
caindo no chão limpo. As camas dos gêmeos estavam
vazias.
“Encontramos eles no limite do pântano, bem onde eu
tinha visto o homenzinho. Mortos. Deitados na neve, os
olhos abertos na direção do céu e flocos se espalhando
sobre eles, sem derreter. Os dois ficaram lá a noite inteira,
sabe? Nunca tinham dançado e nunca dançariam. Foram os
trows que tinham ido ao baile, roubado a aparência deles
para que pudessem se juntar à folia humana.
“Não sei se os trows precisavam roubar o fôlego deles
antes de pegar a sua aparência, ou se foi um acidente. Eu
nem sabia se aqueles corpinhos eram dos gêmeos, ou se
meu irmão e minha irmã de verdade tinham sido roubados e
levados para debaixo da terra e aquelas coisas não eram
nada além das peles ocas que os trows usaram naquela
noite, como se eles fossem fantoches.
“Às vezes, eu me pergunto se os gêmeos estão dançando
até hoje, debaixo do grande monte de Hamnafeld. Eu me
pergunto se é por isso que meus pés nunca ficam quietos,
porque a minha dança é um eco da deles. Quando meus
sapatos enfim me derem um descanso, talvez eu vá saber
que meu irmão e minha irmã estão mortos. Mas, de
qualquer forma, os anos passam diferente debaixo da terra.
Eles ainda podem ser crianças ou muito mais velhos do que
eu, meu irmão com uma barba que chega aos pés, minha
irmã com o brilho da idade nos olhos.
“Minha mãe uivou e minha vó chorou, e eu não conseguia
consolá-las. Eu me lembro de olhar para baixo, para os
olhos do meu irmão e da minha irmã, para os flocos de neve
que caíam neles, e pensei em como tinha economizado para
aqueles sapatos vermelhos, uma moeda brilhante atrás da
outra caindo no jarro. Fui eu quem falhei em abençoar os
gêmeos. Era eu quem estava cansada deles, eu quem tinha
desejado tanto me livrar deles. E eu estava livre, exceto
pela maneira que meus sapatos continuavam chutando e se
mexendo, ainda sem terminar a dança deles, incansáveis
como o pecado, um lembrete do que eu havia feito.
“Você acha que o povo cinzento me concedeu um desejo
naquela noite, quando eu tinha treze anos? Ou eles me
amaldiçoaram para sempre? Ou será que foram as duas
coisas juntas? Pois vou te contar uma coisa: às vezes, ter o
seu maior desejo colocado nas suas mãos é a maior
maldição de todas.”
Annis parou de falar, mas não olhou para mim, continuou
encarando o passado, e fiquei feliz por isso, porque não
sabia o que dizer. Ela pensava mesmo que seus pés não
paravam quietos porque os sapatos se recusavam a deixar
de dançar? Parecia algo tirado de um conto de fadas, um
que eu mesma tinha lido quando era pequena. A menina de
“Os sapatinhos vermelhos” também fora punida por pensar
demais na sua elegância, seus novos sapatos a forçaram a
dançar e dançar até ficar exausta e um lenhador gentil a
salvar cortando seus pés com um machado. Será que essa
era a raiz do conto de Annis? Talvez ela não tivesse uma
doença física, afinal. Talvez as pernas dela estivessem
sempre chutando porque ela estava se punindo por algum
tipo de acidente que tivesse acontecido com seus irmãos, e
sua enfermidade, sua maldição, era psicossomática. Mas
por que simplesmente não tirava os sapatos? Olhei
desanimada para Annis, percebendo que havia uma chance
de eu não poder ajudá-la, que a ajuda que ela precisava
provavelmente era maior do que a que eu poderia dar. Não
tinha a menor ideia se ela era louca, mas, na minha opinião,
não poderia ser completamente sã.
— Ah, não, não é como na velha história.
Devagar, Annis levantou a cabeça e olhou para mim, e
lutei contra a vontade de me contorcer. Mais uma vez,
parecia que ela estava olhando dentro de mim, que via
tudo.
— Você acha que sabe, mas não é a mesma coisa. O
conto de Andersen veio de uma terra mais bondosa e não é
nada parecido com o meu. Não há lenhador na minha
história ou qualquer madeira, nenhuma árvore cresce em
Foula. Eu me apaixonei por um cortador de turfa e ele nunca
arrancou os meus pés. Ele não me carregou pela porta ou
amarrou meus pés inquietos à mesa da cozinha para que eu
pudesse cortar o peixe para o jantar. Que tipo de homem
faria isso? Não, no final, Alex Galdie decidiu que não me
queria. Ele se casou com uma garota de Hametoon e foi
morar lá. Fui eu quem saí de Foula, no primeiro barco que
consegui pegar. O que mais poderia fazer? Não tinha como
voltar para casa. Consegui minha liberdade, sim, mas
carregava o lugar comigo, e vou te dizer, eu estava certa
sobre aqueles sapatos. Assim que me tornei dona deles,
nunca mais desejei outra coisa.
Eu ainda não sabia o que dizer, então tirei o cobertor dos
meus ombros e coloquei nos dela. Enquanto fazia isso, ela
encostou nos meus dedos, gentilmente dessa vez.
— Você poderia me ajudar — falou. — Você ajudaria uma
velha senhora, querida?
Eu respondi que com certeza a ajudaria. Perguntei do que
ela precisava.
— Eu não posso tirá-los — disse ela. — Já tentei mil vezes.
Mas sei que você pode… se estiver disposta. Se soubesse
da história deles e escolhesse tirá-los mesmo assim, fazer
deles seus.
Ela chutou o tartã que cobria suas pernas. Os pés se
moviam livremente, os dedos pontudos, marcando os
passos que ela não podia dar. Por um instante, os sapatos
pareceram como se tivessem sido usados por alguém mais
jovem; alguém que estivesse rodopiando nos braços de um
rapaz.
Observei de novo o rosto dela, velho e cheio de rugas, os
olhos marejados. Lembrei-me de que a história dela era
louca, insana e não fazia o menor sentido. Eu não
acreditava que ela tinha usado o mesmo par de sapatos por
tantos anos. Não acreditava que não conseguia parar de
dançar — mas ela acreditava. Eu podia libertá-la daquela
ilusão infeliz. Posso ter falhado em ajudar minha mãe, mas
agora poderia ajudar minha vizinha — minha amiga.
E Annis poderia descansar, afinal. Poderia encontrar um
pouco de paz. Poderia ir para onde quisesse, até mesmo
para casa, talvez. Uma imagem surgiu diante de mim: Annis
se unindo ao seu irmão e à sua irmã com os trows, andando
para longe de mim de costas, seus passos firmes, e nunca
desviando o olhar do meu rosto.
Outro sentimento me dominou, então, um que estava
aguardando mais abaixo: de desejo, quase de cobiça. Disse
a mim mesma que estaria fazendo um favor ao retirá-los —
e eles eram sapatos muito lindos mesmo. Era um
desperdício ficarem com ela. Ela era velha. Qual era a
utilidade de Annis dançar?
Estiquei a mão e senti o couro macio nos dedos. Quando
fiz isso, um som chegou aos meus ouvidos: a música baixa e
rápida de uma rabeca. E me lembrei de como tinha sido na
cidade há pouco anos: a música contagiante e sombria que
explodia nos alto-falantes, o toque da mão de um rapaz. Eu
me lembrei de como era a sensação de dançar, de ser livre,
de nunca querer que meus pés ficassem quietos. Eu poderia
ser parte da dança de novo — e o pensamento de que
talvez ela tivesse razão veio à tona: que, se eu deixasse,
seria para sempre. Eu poderia me juntar à dança para
sempre, poderia não voltar jamais para casa.
É só uma história, pensei.
Ainda assim, eu não conseguia escolher. Estendi as mãos
e toquei os sapatos vermelhos, e escutei o ritmo da dança,
senti-o no meu sangue. Senti o cheiro do mar, a brisa
congelante do oceano no cabelo. E olhei para cima, para os
olhos de Annis, e percebi que eu não conseguia mover um
músculo.
DE NOVO
TIM LEBBON

A
quela não o havia sido a primeira vez que Jodi
tinha morrido, mas deve ter sido a mais
estranha.
Os cães selvagens estavam cheirando seu
corpo quebrado e ensanguentado, cutucando-a
com seus focinhos úmidos, e cada ponto de contato era um
choque, tão frio que parecia quente, a respiração deles
congelando-a onde o sangue pulsava das muitas feridas. Ela
sentiu uma língua áspera passando na curva do cotovelo e o
beijo afiado de um dente. Uma promessa do que logo viria.
Por alguma razão, eles pareciam estar esperando ela morrer
antes de começar a comê-la. Aquilo foi uma bênção. Ela
deve ter feito, pelo menos, alguma coisa boa na última vida
para merecer um tratamento assim.
O ar estava ficando preso na garganta dela. A dor cortava
de forma mais fria e afiada do que a faca que fora sua
perdição. Ela ia além das feridas, alcançava a profundidade
dos ossos, seu âmago, suas partes mais abissais, onde
residiam as memórias de inúmeras agonias semelhantes.
Jodi impôs uma distância entre isso e ela mesma. Ela não se
lembraria da dor e isso não tinha serventia porque em breve
— em minutos, senão em segundos — ela estaria morta. E
então a morte e tudo mais que ela havia visto,
experimentado e aprendido nessa vida não existiriam mais.
Pelo menos por um tempo.
E aí ela acordaria de novo em algum lugar, em outro
tempo e como outra pessoa, e Jodi se tornara muito boa em
não levar as sensações da morte agonizante com ela. Havia
uma razão para isso. Uma razão boa, válida.
Não queria enlouquecer.
— Eu vi quinze abelhas ontem — disse uma voz, e a
respiração arfante e úmida de Jodi ficou presa na garganta.
Eu não sabia que ela ainda estava aqui.
— Anteontem foram dezoito. Levando em consideração
essas terras, essas florestas, cheias de flores nessa época
do ano, deveria haver centenas. Ou milhares.
Achei que ela tinha deixado os cães para acabar com o
serviço.
Como se as feras tivessem escutado o pensamento, ela
sentiu presas começando a corroer os dedos talhados de
sua mão direita. Ferimentos defensivos, poderiam ser
chamados assim. Não tinham adiantado de nada. Era o
terrier, ela imaginou, embora não conseguisse levantar a
cabeça para ver. Um belo céu azul era sua vista no
momento em que um cachorrinho começou a comer sua
mão. Ela sentiu cheiro de sangue e de jacintos. Moscas
pequenas voavam ao redor de sua cabeça e aterrissavam
no seu rosto, e ela sentiu cada uma delas, como se a pele
da face tivesse se tornado supersensível.
Eu vou esquecer a dor.
Seus ombros balançaram quando os cães começaram a
puxá-la.
— Salvei o máximo de abelhas que pude — disse a voz.
Jodi se lembrou dela então, a velha senhora com um
monte de cachorros de estimação, as roupas feitas de
incontáveis retalhos unidos por uma linha grossa rosada.
Todos gostavam dela no vilarejo. A mulher podia ser um
pouco excêntrica, mas fazia parte do conselho da cidade,
defendendo mais latas de lixo para cocô de cachorro e um
novo playground no parque. O nome dela era Helen. Ela
matava gente por diversão, e tinha contado a Jodi — uma
andarilha, uma visitante no vilarejo, que logo morreria pela
décima quinta ou décima oitava vez — para não levar aquilo
para o lado pessoal.
— Eu sempre me pergunto se, quando salvo uma abelha
de um bebedouro de pássaros ou da superfície de uma poça
na floresta, estou salvando o mundo. Tudo tem seu ponto de
equilíbrio. O último cigarro que vai te matar, a última lufada
de ar poluído da cidade que vai fazer uma célula no seu
corpo sofrer uma mutação e começar a se multiplicar a uma
velocidade anormal. O último centímetro de uma facada que
vai fazer você mudar de viva para morta.
Bem debaixo do meu coração, pensou Jodi. Acho que foi
essa.
— A última abelha que salvei, isso vai significar que o
mundo não está mais condenado, que um ramo específico
de flores será polinizado. Estou aqui para salvar o mundo.
Daisy, não come a mão da moça até ela estar morta.
A cadela da raça terrier soltou a mão acabada de Jodi, e
seu último suspiro deve ter soado como uma gargalhada.
O belo céu azul ficou preto, e o último pensamento de Jodi
foi: Queria que Eveline estivesse aqui para me ajudar com
isso.

Ela a viu de longe, e, como em geral fazia, se manteve


distante, assimilando a visão e percebendo o quanto ela
tinha mudado. Sempre era um pouco chocante.
Eveline estava envelhecendo. Ainda era bonita, ainda era
radiante e todo seu comportamento transmitia vida,
entusiasmo e amor. Seus cabelos estavam em boa parte
grisalhos, a pele em volta dos olhos e da boca enrugadas
por sorrisos. Ela bebericava de uma pequena xícara de café
e olhava em torno da cafeteria, o celular com a tela virada
para baixo na mesa diante dela. Ao menos cinquenta por
cento dos clientes não tiravam os olhos dos seus telefones,
os dedões acariciando as telas e jogando a vida deles fora
com cliques.
Jodi sabia melhor do que ninguém que cada segundo era
precioso. Era por isso que amava tanto Eveline. Feliz ou
triste, em movimento ou parada, ela absolvia cada
experiência com gosto.
O olhar da velha senhora cruzou com o de Jodi e seguiu
em frente. Jodi sorriu. Eveline fez uma pausa e olhou de
volta, e pronto. Seus olhares se conectaram, e Eveline
refletiu com o próprio sorriso. Sempre vejo primeiro seus
olhos, disse ela a Jodi certa vez, talvez quarenta anos atrás.
Provavelmente é algo inexplicável, porque nunca são os
seus olhos, não do ponto de vista físico, pelo menos. Mas
sempre sei que é você.
Jodi ergueu as sobrancelhas e caminhou na direção de
Eveline.
— Quer mais um? — perguntou, indicando a xícara vazia
com a cabeça.
— Meu médico me mandou evitar a cafeína.
Jodi sentiu o estômago dar um solavanco. Não gostava da
ideia de a velha amiga ficar doente, muito menos
envelhecer. Parecia tão injusto.
— Mas ele que se foda — falou Eveline. — Um flat white,
por favor. E um brownie de chocolate.
Conforme Jodi ia até o balcão, sentiu o olhar da mulher
mais velha a seguindo, avaliando-a, assimilando a pessoa
que ela se tornou.
— Eu nunca soube onde você tinha ido — disse Eveline
quando Jodi retornou à mesa.
— Me desculpe. — Jodi se sentou, colocando uma bandeja
com as bebidas e a comida sobre a mesa. Eveline não tirava
os olhos dela enquanto Jodi fazia aquilo, como se tivesse
medo de que a outra morresse e partisse de novo em
segundos. E talvez isso acontecesse. Há muito tempo, Jodi
desistira de tentar prever suas mortes vindouras, porque
sabia que não havia escapatória.
— Então, onde você…? — perguntou Eveline. Ela nunca
aceitou de fato a situação de Jodi. Talvez nem mesmo
acreditasse muito bem, porque era ridícula, e improvável, e
anormal. Ela via, sentia, entendia, mas deixar que sua
mente inteligente aceitasse por completo a natureza de Jodi
era dar mais um passo em direção à loucura.
— Uma mulher no vilarejo me matou — respondeu Jodi. —
Helen parecia uma senhora boazinha, e todo mundo
gostava dela, mas ela tinha essa… predileção. Fiquei fora
por mais tempo dessa vez, mas então… — Ela olhou para
baixo, para o seu novo corpo, para a nova mulher que tinha
se tornado. — Guatemala. Acidente de carro. Ela foi
arremessada do veículo e acertou uma árvore, morrendo na
hora. E eu entrei.
— Entrou — disse Eveline. Ela bebericou o café. Estava
quente demais, então a mulher segurou a xícara perto da
boca e soprou de leve, como se estivesse ansiosa para
embaçar a visão diante dela.
— A família dela era bondosa e gentil, mas não fiquei por
lá. Estive viajando desde então. Subi a América do Sul, o
México, os Estados Unidos. Passei um tempo no Alasca. —
Jodi sorriu. — Certa vez, escorreguei, torci o pé e passei
uma noite na neve, e achei que tinha chegado a hora. Mas
dois caras e seus cachorros me encontraram.
— E demorou tanto tempo para vir me encontrar? — Não
havia acusação no tom de Eveline, e nenhuma tristeza
também. O relacionamento delas talvez fosse o mais
estranho que poderia haver entre duas pessoas. Como não
poderia ser? No início, Jodi esperara encontrar outros como
ela, passar por eles nas margens da sociedade, reconhecê-
los como Eveline a reconhecia toda vez, apenas com uma
troca de olhares. Mas ela não encontrou ninguém, e
ninguém a encontrou. Há duas vidas, ela parou de procurar.
Há uma vida, ela mencionou a ideia para Eveline e a amiga
tinha rido. Você está assistindo à muita televisão, dissera.
— Sempre parece ser… — falou Jodi.
— Eu conheço os padrões — disse Eveline. — Você me
encontra, passamos algum tempo juntas, e então…
— Mas eu não posso deixar de passar tempo com você —
disse Jodi. — Você é a única que entende.
Eveline riu.
— E eu não entendo nem um pouco. — Ela ergueu a
xícara e a colocou sobre a mesa outra vez. — Vamos. Tenho
algo para lhe mostrar.
Elas saíram da cafeteria juntas, de mãos dadas. Podiam
ser mãe e filha ou amantes.

— Você o encontrou — disse Jodi.


— Encontrei algumas histórias sobre ele — respondeu
Eveline. — As maravilhas da internet.
Jodi não tinha certeza se queria saber. Ela mesma nunca
fora procurar, e mesmo mais tarde, quando imaginava que
ele deveria estar morto e só sobrara ela para ecoar através
dos anos, da morte à vida, da morte à vida novamente, não
tivera a inclinação de buscá-lo. Na sua mente, ele tinha sido
uma fera aleatória, um homem doente e cruel que errara
com ela e que morrera pouco depois.
— Quer ver? — perguntou Eveline. Estavam na casa dela,
um chalé pequeno e confortável nos limites de Crickhowell,
em Gales do Sul. Tinha uma linda mobília com decorações
feitas em casa, e a cozinha era uma bagunça prazerosa de
cestas cheias de vegetais da hortinha do jardim, jarros
cheios de picles e chutneys e uma bandeja das primeiras
frutas da estação. Jodi testemunhara seu crescimento e
envelhecimento, entrando e saindo da vida dela diversas
vezes no espaço de tempo que compreendia as últimas
poucas décadas. Não era justo, ela sabia, mas o amor entre
as duas era forte demais para qualquer uma delas ignorar.
Eveline poderia tê-la evitado se assim quisesse. Jodi poderia
ter escolhido não retornar. Nenhuma delas fez isso.
O chalé ficava perto do rio, e depois ambas sairiam para
uma caminhada. Jodi já estivera ali duas vezes antes, em
outras vidas. Ainda se lembrava do beijo gelado do rio
quando foram nadar na barragem dezessete anos e uma
vida inteira atrás.
— Não — falou Jodi. — Acho que não quero ver.
Eveline pareceu chocada e, então, magoada.
— Eu demorei tanto tempo…
Jodi levantou um canto da boca, em um sorriso de
desculpas.
— Se é bom para você saber sobre ele, fico satisfeita. Mas
passei tempo demais tentando esquecer.
— Ele amaldiçoou você com essa vida.
— Com essas vidas, você quer dizer — brincou Jodi, mas
Eveline não estava sorrindo.
— Ele morreu nos anos 1930 — disse Eveline. — Era um
ocultista renomado. Um líder de culto. Um homem mau e
cruel, e há diversos testemunhos sobre abuso, assassinatos
e…
— Fiz o meu melhor para esquecer.
— Mas talvez ao saber mais sobre ele, ao analisarmos
mais profundamente, isso pode revelar uma maneira de
você conseguir mudar as coisas.
Jodi não respondeu. Observou em volta, o olhar
repousando em um suporte para garrafas de vinho.
— Que tal levarmos algumas com a gente até o rio?
Eveline suspirou e depois sorriu com gentileza, e,
enquanto Jodi escolhia os vinhos, ela se ocupou na cozinha
preparando um piquenique para duas pessoas. Ainda estava
quente lá dentro. Quando enfim chegassem ao rio, o sol
estaria se pondo nas montanhas galesas, e elas poderiam
falar sobre todas as coisas que perderam desde a última vez
que se viram.
Pegando uma garrafa e lendo o rótulo, vendo que o vinho
tinha sido engarrafado depois de sua última morte e
renascimento, Jodi pensou: Eu não quero mudar nada.

Três anos depois, uma pedra rolou debaixo do pé de Jodi


quando ela e Eveline estavam fazendo trilhas em
Snowdonia. Eveline tinha quase setenta anos, mas estava
com a mesma forma de sempre, e responsabilizava Jodi por
isso; queria manter o mesmo passo que Jodi. A mulher
guatemalteca em que Jodi caiu estava no início da casa dos
quarenta, e isso dava a Eveline algo para se esforçar.
O pé de Jodi torceu e ela caiu, dando cambalhotas de lado
e escorregando por um declive íngreme por quase seis
metros. Ela bateu em uma rocha, o que a preveniu de cair
ainda mais. Infelizmente, ela acertou a rocha com a cabeça,
e morreu no helicóptero de resgate chamado para trazê-la
de volta à segurança. Eveline estava ao lado dela — era a
primeira vez que testemunhava sua morte — com Jodi
recuperando e perdendo a consciência, e, embora o som
das hélices girando que entrava pelas portas ainda abertas
impedisse qualquer conversa, um olhar entre elas disse
tudo.
Eu vou ver você novamente.
Eu vou procurar por você.
O último pensamento de Jodi, enquanto ela entrava na
escuridão da qual essa forma dela jamais ia se recuperar,
foi: Só espero que eu ainda tenha tempo.

Na verdade, ela nunca tinha esquecido o homem que a


amaldiçoou. Ele sempre estava lá quando ela renascia, no
sangue e na dor, às vezes gritando, às vezes em um corpo
sofrendo com convulsões violentas e ferimentos terríveis. A
memória da voz dele, do rosto, da petulância e da ira de um
homem velho quando ela recusou seus avanços doentios
permanecia em Jodi durante o processo de se tornar ela
mesma e outra pessoa mais uma vez.
“Você nunca vai morrer”, diz ele.
“Gostaria que você morresse”, responde ela.
“Sou um homem especial. Um homem maravilhoso. Você
pode ficar ao meu lado, mas escolhe…”
“Exato. Eu escolho. Só não escolho você.”
“Então você… nunca… vai… morrer.”
E, com a ponta de dedo com textura de couro, ele toca
suavemente a bochecha esquerda dela. A mulher empurra
seu braço e dá um passo para trás. O homem ri.
Ela o deixa para trás, abandona aquele lugar dele, e
aquele povo dele, uma comunidade doente de indivíduos de
mente fraca — o maior erro de todas as suas vidas — e foge
para o sul, na direção de Londres, chegando à cidade
algumas semanas depois e se perdendo na atmosfera
caótica e esfumaçada. Ela espera nunca encontrá-lo de
novo e, por um tempo, não encontra. Não até morrer.
O cavalo e a carroça surgiram do nada e a atropelaram. A
escuridão a puxa para dentro de seu frio abraço. O nada. A
ausência. Nenhuma experiência, sensação ou memória, e
então ela está deitada em uma cama de hospital em um
lugar e um corpo que não conhece.
Você nunca vai morrer, escuta ela, e tem uma lembrança
daquele velho encarquilhado como uma sombra atrás dela,
perpetuando a maldição com que a castigou. Então uma
família com rostos surpresos aparece em volta da cama e
ela começa uma segunda e confusa vida.
A confusão logo acaba, e fins e começos se tornam parte
da existência dela.
As palavras do homem velho foram certeiras. Através dos
anos, Jodi se esforçou para mudar suas palavras de uma
maldição para outra coisa.
Ela ainda fica incomodada com o fato de que ele poderia
ter sido incrível, mas escolheu ser mau.

Parecia não haver regras que ditassem quanto tempo após


sua morte ela voltaria à vida de novo. Às vezes, era quase
instantâneo, outras vezes demorava anos. Houvera ocasiões
em que demorou um bocado para reencontrar Eveline, em
parte por causa do local onde podia renascer — o mais
distante de casa tinha sido a Austrália no meio dos anos
1970, quase sete anos após a morte, o mais próximo,
apenas a um quilômetro e meio do local em que morrera
três dias antes —, mas também porque, de vez em quando,
a situação em que ela renascia tornava um retorno imediato
difícil. Certa vez, ela foi arrastada de volta à vida no corpo
de uma viciada em drogas que morrera recentemente.
Amontoada na umidade fétida de um sofá em frangalhos,
rodeada por almas vazias e sem rumo que nem conheciam
a pessoa que habitava o corpo antes dela, ela foi esmagada
pela agonia urgente do desejo de usar drogas como um
carro batendo em um muro. Aquilo a deixou sem fôlego e a
agarrou com um punho horrendo; aquela foi a vez em que
ela reconheceu de fato a maldição do velho.
Essa nova ressurreição deve ter sido a mais estranha de
todas.
Ela sentiu pressão, frio, um abraço abrangente e alguma
coisa cutucando seu rosto sem parar. Abrindo a boca para
inspirar pela primeira vez nesse corpo, Jodi percebeu,
abalada, que aquele talvez fosse seu último suspiro. Não
estava exatamente escuro, nem exatamente quieto, e não
havia ar ao redor dela.
Alguma coisa bateu no seu ombro, e quando ela se virou
para olhar — devagar, empurrando a água que a mantinha
nas profundezas —, a coisa encostou de novo no seu rosto,
empurrando a cabeça dela para o outro lado, mas de forma
gentil, quase afetuosa.
Um som reverberou pelo seu crânio, como um telefone
vibrando a distância. Ela procurou pelo corpo com um gesto
ridículo. Pode ser Eveline, eu estou de volta e ela está
ligando…
Ela tossiu a água dos pulmões, expelindo o máximo que
podia em uma violenta explosão, e com isso saíram também
quaisquer sobras de ar que restaram de sua última
respiração.
Minha não, pensou ela. De outra pessoa.
A toninha a empurrou de novo, então colocou seu nariz
debaixo do braço dela e a levou na direção da luz.
Jodi olhou para cima. A superfície da água brilhava e
ondulava, como um lençol sólido de luz dançando em algum
lugar acima dela. Poderia estar a dois metros ou vinte de
distância, e se fosse a última opção, essa seria a vida mais
curta dela.
Tudo ao seu redor se tornou um borrão. Ela não entrou em
pânico, porque momentos antes ela tinha sido nada e agora
era algo, e se agarrou a esse milagre.
A toninha a cutucou ainda mais e a pressão de seu nariz
debaixo do braço de Jodi quase chegava a doer. Então, ela
emergiu e tudo voltou a ela de uma vez: o ar fresco; o calor
do sol, que cegou seus olhos já turvos; a dor.
Ela tossiu de novo e de novo e vomitou água do mar, e
então rolou sobre si mesma e flutuou de costas. Ela
percebia a toninha nadando ao redor e embaixo dela, e a
agradeceu mentalmente. Estava sendo embalada por ondas
gentis. Olhando para o céu. Ouvindo o som suave da
arrebentação quebrando em uma praia próxima.
Eu pulei ou fui empurrada? Estava nadando? Tem alguém
na praia me procurando? Estava feliz por estar viva ou
desesperada para morrer?
Por alguns minutos, ela se fez aquelas perguntas, mas não
sentiu nenhuma urgência para descobrir as respostas. Ela
estava viva. Por um tempo, era tudo que importava.

— No início, achei que era um lugar nas Bahamas. O sol


estava tão quente, e havia a toninha, e parecia tão…
exótico. Mas então finalmente cheguei à praia. Havia uma
pequena pilha de roupas dobrada com cuidado na areia. Era
uma praia pequena, uns trinta metros de uma ponta à
outra, sem ninguém lá. Imaginei que era um lugar que
apenas a mulher que eu tinha sido conhecia, o que me
deixou triste. Ela quis ir lá para se matar. Um triste
desperdício. Então coloquei as roupas dela e subi pela trilha
íngreme do penhasco, e, quando comecei a caminhar para
longe da praia, vi uma sinalização na estrada e notei que
estava em Cornwall.
— Ahh — suspirou Eveline. Elas estiveram em Cornwall
juntas para um fim de semana mais ou menos quarenta
anos atrás, quando Jodi vivia em um corpo de uma mulher
alta e magra, com apenas um braço. Ela não conhecia a
história da antiga inquilina. Nunca tentou descobrir, porque
aquilo tornaria o afastamento da sua antiga vida bem mais
difícil. E ela sempre se afastava. Nunca conseguia fingir
para os entes queridos ou filhos.
Ela sempre disse a Eveline que aquela era a verdadeira
maldição. Poder acabar partindo o coração dos outros com
sua ressurreição. Jodi fazia seu melhor para se mudar o
mais rápido possível, mas nem sempre conseguia. Rostos
tristes e confusos assombravam seu sono. Lágrimas a
seguiam de uma vida para a outra.
— E assim que vi em que dia estávamos, vim direto ver
você.
Elas estavam sentadas no jardim do chalé de Eveline. Não
está tão bem-cuidado agora, com canteiros grandes demais,
arcos de rosas se dependurando pesadamente com belas
flores grandes, arbustos que precisavam ser podados. O
jardim tinha se tornado selvagem, e Eveline dizia que
gostava dele assim. Zumbia com inúmeras abelhas, e Jodi
lembrou daquele momento no vilarejo com a cadelinha
roendo sua mão e uma mulher louca conversando com ela
enquanto ela morria. Pássaros brincavam na macieira.
Borboletas tremulavam aqui e ali, arcos-íris dançando sob o
sol.
— Eu… posso ter encontrado uma maneira de você…
escapar — disse Eveline. Era mais do que Jodi a tinha ouvido
falar desde o seu retorno, dois dias atrás. Ela era uma
mulher bem idosa agora, com quase um século de idade, e
seu corpo estava cedendo aos poucos. Não a mente, porém.
Sua mente continuava nova, como se tivesse passando pela
própria renovação pessoal com o reaparecimento de Jodi.
— Como assim? — perguntou Jodi. Ela tremeu. A ideia de
escapar de sua existência a incomodou por um tempo,
quando tudo aquilo começou. Mas pelos últimos cinquenta
anos, Jodi mal pensou no assunto.
— Eu pesquisei sobre ele — disse Eveline. — Toda a minha
vida. Todas as suas vidas. E pode haver uma maneira. Tudo
que você tem que fazer é voltar para aquele lugar, a
biblioteca dele ainda está lá na velha mansão, e procurar…
— Não — falou Jodi, e Eveline ficou em silêncio, respirando
ruidosamente como se tivesse acabado de voltar de um
longo passeio. Ela se acomodou na cadeira reclinada,
parecendo feliz por não ter mais lugar nenhum para onde ir.
— Respire fundo.
— Mas eu posso… te ajudar.
— Você sempre me ajudou. Sempre. — Um melro cantou
na árvore no fim do jardim, sua música rica em tons
deliciando o ar. Ela se lembrava de Eveline chamando a
melodia de jazz da natureza. — E eu não quero mudar. Ele
pensou que tinha me amaldiçoado, e, por um tempo,
amaldiçoou mesmo. Ainda há momentos em que… — Ela
balançou a cabeça, tentando afastar os rostos tristes e as
lágrimas dos familiares que não conhecia.
Eveline esticou o braço e pegou sua mão. Ela não era
forte, mas ainda assim apertou firme.
— Você quer me perder? — perguntou Eveline.
— Vou te perder de qualquer maneira. — Jodi sentiu
lágrimas nas bochechas. — Mas fui a pessoa viva mais
sortuda de todas, em qualquer vida, por poder conhecer
você por tanto tempo. E eu venci a maldição dele. Passei
por tanta coisa que ele nunca passou. Pense em tudo que
eu vi e fiz, todas as experiências que tive, boas ou ruins. Ele
perdeu tudo isso. Minhas vidas acabaram compensando
pela pequena existência miserável dele.
— Mas você continua morrendo. A dor, o sofrimento…
— São inevitáveis. O amor, não. — Ela ergueu a mão de
Eveline e a beijou, então ambas se sentaram juntas, viram o
sol brilhando através das folhas remexidas pela brisa e
ouviram as abelhas fazendo seu trabalho.
— Eu me pergunto de quantas abelhas você precisa para
salvar o mundo — disse Jodi.
— Sua boba — falou Eveline. E ela riu.
A GAROTA QUE VEIO DO
INFERNO
MARGO LANAGAN
O rododendro invade áreas tanto vegetativamente quanto
através de sementes […] Uma única planta pode acabar
cobrindo muitos metros de solo com galhos grossos
entrelaçados e impenetráveis […]. Novas mudas não podem
se estabelecer embaixo dessa cobertura sem sol. [ 01 ]
Luar de quase meia-noite. A casa parece ainda mais
próxima do colapso. O jardim é só blocos e ameias de lixo,
explosões congeladas de molas de colchões, o barracão
quebrado fazendo jorrar jornais, garrafas e jarros em uma
queda cintilante de caixas destruídas pela chuva, mais
geladeiras e fogões que uma velhinha poderia ter usado
uma vida inteira.
A jovem Agnes parou para recuperar o fôlego na sombra
fraca daquela árvore gentil. A raiva que a tinha trazido para
cá diminuíra e se acalmara, toda aquela corrida havia
colocado um fim nela. O ar frio deixa o rosto e as mãos com
uma sensação boa. A calça e a bainha da camiseta estão
geladas, pesadas com a umidade.
Ela coloca a bolsa no chão e, de dentro dela, pega o saco
com cinzas e terra.
Aquela outra casa, grande e limpa, com os jardins bem-
cuidados, arbustos podados para ficar no formato da lua
minguante, uma hortinha de inverno nos fundos. O cachorro
que vai pular bem em cima dela agora, se mexendo todo,
muito amigável. Will a levou até o armário das louças,
bufadas e a cauda se mexendo sem parar enquanto ela
pega o pão e o queijo. Will no ombro dela conforme ela
mexe no que restou do fogo.

Ela bloqueia a tranca do portão e segue em frente. A velha


— sua avó, que choque — vai estar na cozinha, planejando
e andando de lá para cá. Seu problema era um inseto, lá no
alto, na parte de trás do cérebro de Agnes.
Agnes começa no que sobrou do caminho, pela escada
empenada do alpendre. Ela deposita as cinzas de acordo
com o que sente, mantendo a linha sem falhas. É um
trabalho delicado manter a linha através das ervas que
nascem entre o lixo e em cima das pilhas de molas de
colchão, mas ela vai fazer o que for necessário. Seus tênis
passam pela grama, suas mangas sussurram pela beirada
de um fogão, a brisa respirando vez ou outra no ouvido
dela. Tudo isso conspirou a seu favor. Eles fazem parte do
segredo.
Ah, alguém suspira. Pensei ter ouvido um rato rastejando.
A gata está na janela. A cara dela parece ainda mais um
crânio sob a luz da lua. Seu único olho bom a encara de
cima, grande e preto.
Sorte sua eu ser velha e preguiçosa.
Ela a observa passando, as cinzas e, às vezes, a terra
caindo dos dedos.
Sorte sua eu não ligar para nada. E ficar impressionada
com tudo.

Os dentes dela pegando sua mão. Seu olho rolando até ela,
na boca um sorriso. Risada de gata, resmungo de gata. O
furico da gata a precedendo nos destroços do jardim, uma
estrela cor-de-rosa enrugada embaixo do rabo esticado.

O jardim nos fundos é mais selvagem, com mais ervas.


Aromas de planta eram liberados conforme ela passava. Os
pés da velha ficam confusos e param nas tábuas do chão da
cozinha. Recipientes fazem barulhos diversos. A própria
casa é um caldeirão, seu fervor mágico em uma das
beiradas. As cinzas estão desenhando uma linha em volta,
sua última. Logo, logo ela vai acordar; logo, logo ela vai ver
o que trouxe para sua vida.

Foi aí que percebi, disse a mãe. Caminhando no riacho e


indo dormir. Caminhando na direção contrária, e lá estava
de novo. Nadando, afastando as plantas, em qualquer
sentido. Eu só podia chegar até um lugar, aí a mãe dele me
fez desaparecer.
No meio do caminho, Agnes faz uma pausa para olhar para
cima e respirar. Isso vai custar tudo que ela tem — então
não deve se apressar. O cabelo arrepiado da velha, que
mais parece uma massa peluda, se move um pouco para a
esquerda, e então mais para a direita, como um pequeno
animal sarnento no peitoril da janela. A luz amarelada das
lâmpadas da cozinha vazia mancha as pilhas de coisas que
se acumulam debaixo da janela. Debaixo do telhado único,
a lua, com sua cara marcada, limpa o céu gelado. Seus fios
e seus dedos estão em todo lugar. Eles são o que Agnes
está reunindo para fazer aquilo acontecer.

Não faça nenhuma loucura…


A voz da mãe desaparecendo quando ela vai longe
demais e começa a dormir.
Mas como ela podia contar a Agnes tudo aquilo e ainda
esperar que ela ficasse? Ficar sentada lá no inferno com ela,
presa e estrangulada?
Loucura é a única coisa que existe. Loucura é a única
coisa sensível a ser feita.

Volte. Às vezes, a loucura precisa ser metódica, se você


quiser que funcione. Ela requer silêncio, concentração, os
ingredientes corretos e o entrelaçamento e afunilamento
certos da lua, para estabelecer um limite como aquele. O
desastre deve crescer do chão. Agnes está sentindo seu
caminho adiante através da inovação e da retidão,
mantendo o caminho certo, mão cheia atrás de mão cheia
do material macio e frio, centímetro por centímetro
gotejado.
Quando o anel se completa, ela sente um arrepio na
espinha, até a nuca e além, fazendo cócegas nas suas
sobrancelhas enquanto ela corre até a árvore, até a bolsa.
Ela tira a trança sedosa e escura, a barba mais áspera, faz
um nó com as pontas de um e desenrola o outro. Ela os
espalha pela bolsa achatada e os mistura, dando outro nó
para juntá-los. O fio precisa ser fortalecido primeiro, e então
enrolado em um cone. Ela abre os cabelos sobre aquilo com
as pontas arrepiadas no topo.

O cabelo da mãe é como água preta derramada atrás da


cabeça e dos ombros dela, escorrendo pelas costas. No sol,
fios soltos mostram todo o inferno, flutuando, não importa
se ela os bagunçou ou nadou. Corte fora, diz ela quando
Agnes traz a tesoura para casa. Pode cortar tudo fora. É só
mais uma armadilha, uma prisão.
E então elas não podem queimar, ou enterrar, ou jogar no
vento ou na água. É muito estranho, muito mãe. Tem um
poder nele, assim como há um poder em Agnes, sem voz,
adormecido.
Agnes o separa com a tesoura e os outros tesouros. A
mãe a observa, acariciando o novo cabelo, que é todo curto
e macio, como as penas do peito de um pássaro.
Ela desenrosca a tampa do jarro de água do rio e pega o
pão e o queijo da casa boa. Uma casca do pão vai servir. Ela
a joga nele. Um pedaço do queijo. Ela come o restante
rápido, para lhe dar forças, quando em geral ela se demora
sobre eles, meditando sobre seus sabores, seu custo, seus
significados impossíveis.

Escondida dentro do arbusto podado, observando a mulher


caminhar até o armário de louças — sua avó, outra! Que
com certeza sabe que Agnes está aqui, pela maneira que
olha ao redor, pela maneira que a chama — Gatinha?
Gatinha? Sabe, mas não sabe, então deixa a comida e volta
para o caminho, procurando na noite. Amanhã ela vai saber.
Amanhã, a mãe e Agnes vão andar direto pelo caminho da
frente, sem se esconder.
Ah, e o pai, ela começa a pensar. Ela vai ter um pai
amanhã também. Ela se maravilha com aquela ideia, lá
entre as folhas.

Ela pega a faca e o pedaço de inferno retorcido e o corta de


volta para onde ele vai manter o equilíbrio no jarro. Ela
coloca duas das folhas extras no cone de cabelo e barba.
Em volta dela, através e além da sombra da árvore, a lua
está derramando sua luz; um fio dela está movendo por seu
braço como a dor, e ela deve respirar, respirar, se preparar
para entrar novamente. Está tão perto. Vai acontecer logo.
Está vindo para ela, rápido e dramático.
Ela fica de pé, cone de cabelo em uma das mãos, jarro na
outra. Segue através do portão-vão, pelo caminho. A casa
tinha sido silenciada pelas cinzas, mas no momento que ela
cruza a linha, sente o pote borbulhando, a velha envolvida
nos seus rituais, a gata observando do peitoril, através de
todas as paredes e do tesouro que há entre elas.
Ela coloca o jarro no chão, pega um isqueiro de plástico
do bolso, acende-o, mantém a armadilha aberta com um
elástico. Coloca-a com cuidado na tábua mais plana do
alpendre, centralizada na porta da frente. Leva o cone
consigo.
Fedor imediato. A ponta do cabelo agrupado pega fogo
por um instante, as chamas se contorcendo e
desaparecendo. A dor e o cheiro horrível ficam presos na
garganta de Agnes. Ela recua, tossindo rápido pela casa
com o jarro.
A gata a observa. A gata sempre soube. A gata não disse
nada a ela, só esperou para aquilo vir até a casa, até ela. A
gata é velha, cravejada com pequenos cânceres e manchas
nas costas. Seu olho preto e seu olho branco conseguem vê-
la igualmente bem.
Que catinga, diz. Ela vai sentir o cheiro a qualquer
momento. Aí o jogo vai começar.
Agnes cruza a linha, coloca os pés ao lado da caldeira de
bronze. Equilibrando-se na parede com a pintura
descascando, na ponta dos pés, coloca o jarro no peitoril ao
lado da gata, onde ele pode acabar caindo de qualquer
maneira. Cabe à gata fazer o que diz que não vai fazer. De
se importar de uma maneira ou de outra. De decidir o
quanto deve à avó.
Da cozinha, uma exclamação. Atenção de bruxa, como
raios. O jogo começou.
Agnes dá um pulo. Ainda dentro da linha, para e olha para
trás.
A gata boceja, sua língua uma folha enrolada e úmida
iluminada pela lua. O jarro também brilha, e o rododendro
se espalha. Visto assim, juntos, eles são claramente parte
da mesma família de magia.
A voz da avó está vociferando feitiços pelo corredor.
Agnes tem uma coisa na ponta dos dedos para isso, no
lábio, algo abafado e sufocante. Ela conhece bem a
estrangulação.
A gata-crânio continua observando. Passos no corredor.
Mas o corredor está uma zona, assim como todos os
outros cômodos da casa. Você precisa superar as barreiras,
passar por brechas apertadas, empurrar montes de lixo para
os lados. As folhas em combustão, o clarão do cabelo e o
lamento no alpendre. O medo da bruxa tem cheiro de uma
fogueira depois de garotos mijarem nela. Ele flutua pelas
paredes como vento. Agnes sussurra para a explosão. A
gata observa como uma estátua de gato.
E no momento em que a avó alcança a porta, lutando com
a tranca, a pata magricela da gata se move vagarosamente
debaixo de seu peito e bate no jarro do peitoril.
Para dentro da casa.
Água e vinhas alcançam os joelhos de Agnes. Ela se joga
por cima da linha, para fora do anel. Escurecida pela luz da
lua, surgindo com troncos que engrossam e dão folhas e
flores, a água ressoa para cima, um cilindro brilhante de
ondas delimitado pelas boas cinzas, pela boa terra. Lá no
alto, ele se movimenta e lava e movimenta as folhas.
Agnes rasteja e corre próxima à parede de sua criação,
até o caminho onde está a árvore e a sombra nas suas
costas, uma amiga próxima. A exaustão está vindo até ela,
cavalgando nas ondas de sua criação adiante. Dentro de
algum lugar dela, a velha se esforça e lança feitiços, mas
seus encantamentos estão mutilados, quebrados, seus
membros presos pelos caules, a água mágica se forçando
por sua garganta até os pulmões.

O barco, o rio, a lua lua lua. Pulando de um lugar para outro


e através da água da lua enquanto ele vira o barco talvez
pela milésima vez. Cercando-o por todos os lados como um
abraço, mas com uma faca, uma faca de pedaço da lua
nela. Balançando com ele conforme rema, presa na remada
para que ele não possa se livrar dela. Pegando a barba dele,
balançando para trás, cortando. Sussurrando no ouvido
dele: Eu vou colocar um fim nisso! Beijando sem parar sua
bochecha molhada, ainda com raiva, sem conseguir dizer:
Pai. Pulando de volta, a água agarrando sua cintura,
puxando suas pernas. Lutando para chegar à margem…

A casa fica em silêncio. As proteções se esgotam. A água


perde a força, os ramos do feitiço do inferno caem com ela,
secando, morrendo. Todos os cheiros naturais, de rio e de
rododendro, evaporam. Os fios da lua, os fios das estrelas
ficam fracos e frouxos. A casa está viscosa de magia,
pantanosa por dentro, um resultado encharcado. E então
volta ao seu estado normal, seca, se desintegrando. O cone
de cabelos está sozinho no alpendre, a chama do isqueiro
dentro dele, pequena, brilhante, leal, entre as cinzas de
folhas e restos de cabelo. A porta está parcialmente aberta,
impedida de ser fechada por uma pilha de listas telefônicas.
Além dela, nada, nenhum caldeirão em ebulição, nenhuma
atenção vacilante. Tesouro escondido, espaço morto.

Você só pode estar brincando!, diz a mãe. Todos esses anos,


remando de lá para cá? O próprio filho dela? E eu aqui
pensando que ela só tinha me enfeitiçado. Que ele fora
poupado, que havia seguido em frente e constituído família.
Outra família, eu quero dizer. Ele não sabia que já tinha
uma, não é? Eu não sabia quando ela me colocou aqui.
Me conta tudo desde o início, diz Agnes. Não estou
entendendo nada.

Agnes se abaixa na borda do alpendre, esvaziada, sem


amarras. Espera para saber o que fazer a seguir. Se é que
há algo para ser feito.
Uma boca se abre em um miau silencioso. Pelo se
esfregando na madeira cheia de farpas. Uma gata, jovem e
tigrada, corre para longe através do portão e pelo caminho,
faz uma pausa para cheirar as cinzas úmidas gastas e ergue
dois olhos pretos para encará-la.
Eu nunca tinha me afogado antes, diz ela. É muito bom.
Quase não faz bagunça.
Dá um passo atrás, senta-se e coloca a cauda entre as
patas.
E lá elas esperam pelos outros, que virão, do rododendro
e do rio. Que ainda vão encontrar na trilha iluminada pela
lua. Que vão subir a colina até a casa juntos, de mãos
dadas.
O CASTELO DESPERTANDO
JANE YOLEN

H
á um tremor na fundação do castelo
O espinheiro estremece e cai, derrubado pelo
fim da
[maldição.
O gavião no chão se mexe, uma tragédia
evitada,
Penas tremendo como se sopradas por um vento forte.

Moscas começam a zumbir, como brinquedos de corda,


Embora estes ainda não tenham sido inventados.
Os guardas do palácio entram em posição de sentido,
[estão atentos.
Não há menção a uma dívida de magia.

A colher de pau do cozinheiro desce de repente


Sobre os erros nos ombros de seu jovem ajudante.
A rainha se espreguiça de forma graciosa, o rei faz rugir
um
[palavrão.
É como se momentos, e não séculos, estivessem aqui.

Apenas na torre, uma quietude — tão incomum quanto o


[ amor —
Invade o cômodo. Com medo de ter cometido um erro,
Ela hesita, olha em volta, respira fundo,
E enche o espaço com deslumbres.
SOBRE OS AUTORES
Jane Yolen, considerada pela revista Newsweek como a
“Hans Christian Andersen dos Estados Unidos”, é autora de
mais de 382 livros, que vão desde obras infantis até de
poesia, romances, culinária, coletâneas, graphic novels, não
ficção e até uma biografia em verso sobre sua família
imigrante. Ela mora na Nova Inglaterra, nos Estados Unidos,
e também em St Andrews, na Escócia. Escreve um poema
por dia e o envia para mais de mil assinantes. Saiba mais
sobre Jane em janeyolen.com.

Christina Henry é autora de The Girl in Red, The Mermaid,


Lost Boy, Alice, Red Queen e dos sete livros da série de
fantasia urbana Black Wings. Ela gosta de correr por longas
distâncias, ler qualquer coisa em que consegue colocar as
mãos e assistir a filmes com samurais, zumbis e/ou
legendas em seu tempo livre. Ela mora em Chicago com o
marido e o filho. Você pode encontrá-la on-line em
christinahenry.net, facebook.com/authorChristinaHenry,
twitter.com/C_Henry_Author e
goodreads.com/CHenryAuthor.

Neil Gaiman é autor best-seller do New York Times e


escreve livros, graphic novels, contos e roteiros para cinema
e televisão voltados para todas as idades, incluindo
Mitologia nórdica, Lugar nenhum, Coraline, O livro do
cemitério, O oceano no fim do caminho, The View from the
Cheap Seats e a série de quadrinhos Sandman. Sua obra já
recebeu prêmios como a Newbery, a Carnegie, o Hugo, o
Nebula, o World Fantasy e o Will Eisner. Ele foi roteirista e
showrunner da minissérie que adaptou Belas maldições,
baseada no livro que escreveu em parceria com Sir Terry
Pratchett. Em 2017, se tornou embaixador do ACNUR, a
agência de refugiados das Nações Unidas. Nascido na
Inglaterra, mora hoje nos Estados Unidos, onde é professor
na Bard College. Visite-o em neilgaiman.com.

Catriona Ward nasceu na cidade de Washington e cresceu


nos Estados Unidos, no Quênia, em Madagascar, no Iêmen e
no Marrocos. Estudou Inglês no St Edmund Hall, em Oxford,
e é mestra em escrita criativa pela University of East Anglia.
Seu livro de estreia, Rawblood (W&N, 2015), ganhou o
prêmio de Melhor Livro de Horror da edição de 2016 do
British Fantasy Awards e foi indicado ao Melhor Livro de
Estreia pelo Author’s Club. Seu segundo livro, Little Eve
(W&N) ganhou o Shirley Jackson Award e foi indicado pelo
jornal Guardian como um dos melhores livros de 2018. Ela
mora em Londres e Devon. Você pode seguir Catriona no
Twitter: @Catrionaward.

Jen Williams é autora de fantasia de Londres. Fã de dragões


e piratas desde a mais tenra idade, hoje em dia escreve
épicos fantásticos centrados nos personagens com um olhar
feminista e diálogos rápidos. A trilogia The Copper Cat foi
indicada ao British Fantasy Award várias vezes, e The Ninth
Rain, primeiro volume da trilogia Winnowing Flame, ganhou
o prêmio de Melhor Livro em 2018. Quando não está
apertando os olhos em direção a telas de notebooks, é
também vendedora de livros e copidesque, e é cofundadora
do Super Relaxed Fantasy Club, grupo que faz reuniões
sociais todo mês. Jen ama animações de todos os tipos,
assim como videogames complicados demais, e mora com
seu parceiro e seu gato ridiculamente pequeno na sua parte
favorita de Londres. Ela está quase sempre no Twitter sob a
arroba @sennydreadful.

M.R. Carey é roteirista indicado ao BAFTA, autor e escritor


de quadrinhos. Nascido em Liverpool, trabalhou como
professor por quinze anos antes de se demitir para escrever
em tempo integral. Escreveu o roteiro da adaptação
cinematográfica de seu livro, A menina que tinha dons.
Produzido no Reino Unido pela Warner Bros., o filme abriu o
festival de Locarno em 2016 e foi lançado posteriormente
no mundo inteiro. M.R. trabalhou por muito tempo com
quadrinhos, com arcos aclamados pela crítica de Lúcifer,
Ultimate Quarteto Fantástico e X-Men. Sua série de
quadrinhos O inescrito apareceu diversas vezes na lista de
graphic novels mais vendidas do New York Times. É também
autor dos livros de Felix Castor e (com sua esposa Linda e
sua filha Louise) de dois livros de fantasia, The City of Silk
and Steel e The House of War and Witness, publicados no
Reino Unido pela Victor Gollancz, e nos Estados Unidos, pela
Chizine Press. Sua obra mais recente, lançada tanto no
Reino Unidos quanto nos Estados Unidos em novembro de
2018, é Someone Like Me, um thriller psicológico com
toques sobrenaturais. Siga Mike no Twitter:
@michaelcarey191.

James Brogden é autor de terror e fantasia sombria.


Australiano em meio período, ele cresceu na Tasmânia e nas
fronteiras de Cúmbria, e desde então escapou dos subúrbios
e agora mora com a esposa e as duas filhas nas Terras
Médias, onde ensina inglês. Quando não está escrevendo ou
ensinando, em geral pode ser encontrado no topo de uma
montanha, mexendo em círculos de pedra ou túmulos
antigos. Ele também é dono de mais Legos do que é
estritamente necessário. Seus contos apareceram em várias
coletâneas e periódicos, desde The Big Issue até a premiada
Alchemy Press, da British Fantasy Society. Hekla’s Children,
The Hollow Tree e The Plague Stones foram publicados pela
Titan Books, assim como Bone Harvest em maio de 2020.
Textos de sua autoria aparecem de forma não muito
frequente em jamesbrogden. blogspot.co.uk e tuítes em
@skippybe.

Maura McHugh mora em Galway, na Irlanda, e já escreveu


três coletâneas: Twisted Fairy Tales e Twisted Myths —
publicados nos Estados Unidos — e The Boughs Withered
(When I Told Them My Dreams) pela NewCon Press, no
Reino Unido. Já escreveu quadrinhos para a Dark Horse, IDW
e 2000 AD, e também é dramaturga, roteirista e crítica. Sua
monografia sobre o filme de David Lynch, Twin Peaks: Fire
Walk With Me, foi indicada ao British Fantasy Award por
Melhor Não Ficção. Seu site é o splinister.com e seu Twitter é
@splinister.

Karen Joy Fowler é autora de seis livros, incluindo Sarah


Canary, que ganhou a medalha Commonwealth por melhor
romance de estreia por um californiano ou californiana e O
clube de leitura de Jane Austen, best-seller do New York
Times. Além destes, lançou também três coletâneas, duas
das quais ganharam o World Fantasy Award em seus anos
de publicação. Sua obra mais recente, We Are All
Completely Beside Ourselves, foi publicada pela Putnam em
maio de 2013. Atualmente, vive em Santa Cruz e está
trabalhando em um romance histórico. Descubra mais sobre
Karen em karenjoyfowler.com.

Christopher Golden é autor best-seller do New York Times e


vencedor do Bram Stoker Award por romances como Ararat,
The Pandora Room, Snowblind e The Ocean Dark. É coautor,
junto com Mike Mignola, de duas séries cult de quadrinhos:
Baltimore e Joe Golem: Occult Detective. Como editor,
trabalhou nas coletâneas Seize the Night, Dark Cities e The
New Dead, entre outras, e também escreveu e coescreveu
quadrinhos, videogames, roteiros e um piloto para uma
série de televisão. Em 2015, fundou o popular Merrimack
Valley Halloween Book Festival. Nasceu em Massachusetts,
onde ainda vive com a família. Seu trabalho já foi indicado
para o British Fantasy Award, o Eisner Award e diversos
Shirley Jackson Awards. Por favor, visite-o em
christophergolden.com.

O último livro de Charlie Jane Anders é The City in the


Middle of the Night. Ela também é autora de Todos os
pássaros no céu, que ganhou o Nebula, a Crawford e o
Locus, e Choir Boy, que ganhou o Lambda Literary Award.
Além de um romance chamado Rock Manning Goes For
Broke e uma coletânea chamada Six Months, Three Days,
Five Others. Seus contos de ficção apareceram em Tor.com,
Boston Review, Tin House, Conjunctions, The Magazine of
Fantasy and Science Fiction, Wired Magazine, Slate,
Asimov’s Science Fiction, Lightspeed, ZYZZYVA, Catamaran
Literary Review, McSweeney’s Internet Tendency e diversas
outras antologias. Sua história “Six Months, Three Days”
recebeu o Hugo, e sua história “Don’t Press Charges And I
Won’t Sue” foi premiada com o Theodore Sturgeon Award.
Charlie Jane também organiza a série de leituras mensais
em Writers With Drinks e coapresenta o podcast Our
Opinions Are Correct com Annalee Newitz. Siga Charlie Jane
no Twitter: @charliejane.

Michael Marshall Smith é romancista e roteirista. Sob este


nome, já publicou noventa contos e cinco livros — Only
Forward, Spares, One of Us e The Servants — ganhando os
prêmios Philip K. Dick, International Horror Guild e August
Derleth, além do Bob Morane, na França. Recebeu o British
Fantasy Award por Melhor Conto quatro vezes, mais do que
qualquer outro autor. Em 2017, publicou Hannah Green and
her Unfeasibly Mundane Existence. Como Michael Marshall,
já escreveu sete thrillers best-sellers internacionais,
incluindo a série The Straw Men, Intruders — recentemente
adaptada pela BBC America, estrelando John Simm e Mira
Sorvino — e Killer Move. Seu romance mais recente sob este
nome é We Are Here. E, sob o nome Michael Rutger,
publicou em 2018 o thriller de aventura The Anomaly. A
sequência, The Possession, foi lançada em 2019.
Atualmente, está se preparando para ser coroteirista e
produtor executivo da adaptação televisiva de The Straw
Men. Também é consultor criativo para a The Blank
Corporation, a produtora de Neil Gaiman. Mora em Santa
Cruz, Califórnia, com a esposa, o filho e dois gatos. Saiba
mais sobre Michael em michaelmarshallsmith.com, sobre
seus e-books em ememess.com, e siga-o no Twitter
(@ememess) e no Instagram (@ememess).

Adam Stemple (adamstemple.com) é autor, músico, web


designer e jogador de cartas profissional. Escreveu nove
romances, incluindo Pay the Piper (com Jane Yolen),
ganhador do Locus de 2006 por Melhor Livro YA. Sobre seu
romance solo de estreia, Singer of Souls, Anne McCaffrey
disse: “Um dos melhores livros de estreia que já li.”

Angela Slatter é autora da série sobrenatural de crimes


Verity Fassbinder (Vigil, Corpselight e Restoration) assim
como nove coletâneas, incluindo The Bitterwood Bible and
Other Recountings e A Feast of Sorrows: Stories. Tem
mestrado e Ph.D. em Escrita Criativa. Ganhou o World
Fantasy Award, o British Fantasy Award, o Ditmar Award, o
Australian Shadows Award e seis Aurealis Awards; seu
romance de estreia foi indicado ao Dublin Literary Award.
Suas obras já foram traduzidas para o francês, chinês,
espanhol, japonês, russo e búlgaro. Os direitos de seu conto
“Finnegan’s Field” foram vendidos para o cinema. O site de
Angela é angelaslatter.com.

Lilith Saintcrow mora em Vancouver, Washington, com duas


crianças, dois cachorros, dois gatos e uma biblioteca de
livros rebeldes. Você pode encontrá-la em
lilithsaintcrow.com.

Christopher Fowler é ganhador de vários prêmios e autor de


quase cinquenta romances e coletâneas, incluindo os
mistérios de Bryant & May. Algumas de suas obras são
Roofworld, Spanky, Psychoville, Calabash e dois volumes de
memórias, Paperboy (ganhador do primeiro Green Carnation
Prize) e Film Freak. Em 2015, recebeu o CWA Dagger in the
Library pelo conjunto de seu trabalho. Entre seus livros mais
recentes estão The Book of Forgotten Authors e The Lonely
Hour. Descubra mais sobre Christopher em
christopherfowler.co.uk.

O último livro de Alison Littlewood é Mistletoe, uma história


de fantasmas passada no inverno. Seu livro anterior, The
Crow Garden, fala sobre obsessão em cenários como
hospícios vitorianos e sessões espíritas. Alguns de seus
outros livros são A Cold Season, Path of Needles, The
Unquiet House e The Hidden People. Os contos de Alison já
foram escolhidos para diversas antologias de Melhores do
Ano, e ela recebeu um Shirley Jackson Award por Conto de
Ficção. Alison mora em Yorkshire, na Inglaterra, em uma
casa com portas que rangem e paredes tortas, com seu
parceiro Fergus, dois dálmatas muito entusiasmados e uma
coleção cada vez maior de canetas-tinteiro. Visite-a em
alisonlittlewood.co.uk.

Tim Lebbon é autor best-seller do New York Times. É de


Gales do Sul. Até agora já publicou mais de quarenta
romances, assim como centenas de contos. Seu lançamento
mais recente é The Edge, o último livro da trilogia Relics.
Outros lançamentos incluem The Silence, The Family Man, a
trilogia The Rage War e Blood of the Four, com Christopher
Golden. Ganhou quatro British Fantasy Awards, um Bram
Stoker Award e um Scribe Award, e já foi finalista dos
prêmios World Fantasy, International Horror Guild e Shirley
Jackson. Seu trabalho já apareceu em diversas antologias de
Melhores do Ano, assim como Melhor Horror do Século. O
filme O silêncio, estrelando Stanley Tucci e Kiernan Shipka,
estreou na Netflix em abril de 2019, e Regresso do mal,
estrelando Nicolas Cage, foi lançado no Dia das Bruxas de
2015. Diversos outros projetos estão em desenvolvimento
para a TV e para o cinema, incluindo os roteiros originais
como Playtime (com Stephen Volk) e My Hunted House.
Descubra mais sobre Tim em seu site: timlebbon.net.

Margo Lanagan publicou dois romances de fantasia sombria


(Tender Morsels e The Brides of Rollrock Island) e sete
coletâneas, mais recentemente Singing My Sister Down and
Other Stories, Phantom Limbs e Stray Bats pela Small Beer
Press. Colaborou com Scott Westerfeld e Deborah Biancotti
na trilogia YA best-seller do New York Times, Zeroes. Seu
trabalho lhe rendeu quatro prêmios World Fantasy, nove
Aurealis e cinco Ditmar, e ela já foi indicada aos prêmios da
British Science Fiction Association e da British Fantasy, além
do Nebula, do Hugo, do Bram Stoker, do Theodore Sturgeon,
do Shirley Jackson, do International Horror Guild e de Seiun.
Figurou por duas vezes na lista honorária de James Tiptree
Jr. Seus livros e suas histórias já foram traduzidos para
dezenove idiomas. Margo mora em Sydney, na Austrália.
Você pode segui-la no Twitter: @margolanagan.
SOBRE OS ORGANIZADORES
Marie O’Regan é autora e editora, indicada três vezes ao
British Fantasy Award. Mora em Derbyshire. Sua primeira
coletânea, Mirror Mere, foi publicada em 2006 pela Rainfall
Books; sua segunda, In Times of Want, saiu em setembro de
2016 pela Hersham Horror Books. A terceira, The Last Ghost
and Other Stories, foi publicada pela Luna Press em 2019.
Seus contos já apareceram em diversas revistas do gênero
e antologias no Reino Unido, Estados Unidos, Canadá, Itália
e Alemanha, incluindo Best British Horror 2014, Great
British Horror: Dark Satanic Mills (2017) e The Mammoth
Book of Halloween Stories. Seu romance Bury Them Deep
foi publicado pela Hersham Horror Books em setembro de
2017. Foi indicada para o British Fantasy Award por Melhor
Conto em 2006 e por Melhor Antologia em 2010 (Hellbound
Hearts) e 2012 (Mammoth Book of Ghost Stories by
Women). Suas obras jornalísticas sobre o gênero
apareceram em revistas como The Dark Side, Rue Morgue e
Fortean Times, e seu livro de entrevistas de figuras
proeminentes no horror, Voices in the Dark, foi lançado em
2011. Um ensaio sobre o filme A troca foi publicado no livro
Cinema Macabre, da OS Publishing, editado por Mark Morris.
Ela é coeditora dos livros best-sellers Hellbound Hearts,
Mammoth Book of Body Horror, A Carnivàle of Horror —
Dark Tales from the Fairground, Exit Wounds e Wonderland,
além de editora do best-seller The Mammoth Book of Ghost
Stories by Women e Phantoms. Ela é copresidente da UK
Chapter of the Horror Writers’ Association e, no momento da
publicação de Maldição, estava organizando a StokerCon
UK, a prestigiosa convenção da Horror Writers Association’s.
Marie é representada por Jamie Cowen da The Ampersand
Agency.

Paul Kane é autor e editor premiado e best-seller de mais de


noventa livros — incluindo a trilogia Arrowhead (reunida no
omnibus esgotado Hooded Man, sobre uma versão pós-
apocalíptica de Robin Hood), The Butterfly Man and Other
Stories, Hellbound Hearts, The Mammoth Book of Body
Horror e Pain Cages (best-seller número um na Amazon).
Seus livros de não ficção incluem The Hellraiser Films and
Their Legacy e Voices in the Dark, e seu jornalismo voltado
para o tema já apareceu em veículos como SFX, Rue
Morgue e DeathRay. Já foi convidado no Alt.Fiction cinco
vezes, foi convidado no primeiro SFX Weekender; no
Thought Bubble de 2011; no Derbyshire Literary Festival e
no Off the Shelf de 2012; no Monster Mash e no Event
Horizon de 2013; no Edge-Lit de 2014 e de 2018; na
HorrorCon, no HorrorFest e no Grimm Up North de 2015; no
Dublin Ghost Story Festival e no Sledge-Lit de 2016; no
IMATS Olympia e no Celluloid Screams de 2017; além do
Black Library Live e do UK Ghost Story Festival de 2019,
assim como participou de painéis na FantasyCon e na World
Fantasy Convention, e foi jurado de ficção no festival Sci-Fi
London. Ex-editor da British Fantasy Society Special
Publications, atualmente é copresidente da UK chapter of
the Horror Writers’ Association. Os direitos de seu trabalho
já foram comprados e adaptados para o cinema e a
televisão, incluindo alguns dos principais canais de TV
americanos, e seu trabalho com áudio conta com a
adaptação dramática de The Hellbound Heart para a
Bafflegab, estrelando Tom Meeten (The Ghoul), Neve
McIntosh (Doctor Who) e Alice Lowe (Prevenge), e a
aventura The Red Lord, da série Robin of Sherwood, para a
Spiteful Puppet/ITV, narrada por Ian Ogilvy (Return of the
Saint). Os romances mais recentes de Paul são Lunar (que
está sendo adaptado para o cinema), o livro YA The Rainbow
Man (como P.B. Kane), e as sequências de RED — Blood RED
e Deep RED —, o sucesso ganhador de prêmios Sherlock
Holmes & the Servants of Hell, Before (que figurou no Top 5
de fantasias sombrias mais vendidas) e Arcana. Ele mora
em Derbyshire, no Reino Unido, com sua esposa Marie
O’Regan e sua família. Saiba mais em seu site shadow-
writer.co.uk, que já teve como convidados escritores como
Stephen King, Charlaine Harris, Robert Kirkman, Dean
Koontz e Guillermo del Toro.
AGRADECIMENTOS
E agora algo extremamente importante — nossa chance de
agradecer. Em primeiro lugar, a todos os autores, por
suas contribuições; a Cat Camacho e toda a equipe da Titan
Books pelo apoio, como sempre. Obrigado também a Jamie
Cowen, e à nossa ninhada, sem a qual etc.
DIREÇÃO EDITORIAL
Daniele Cajueiro

EDITOR RESPONSÁVEL
André Marinho

PRODUÇÃO EDITORIAL
Adriana Torres
Júlia Ribeiro
Juliana Borel

REVISÃO DE TRADUÇÃO
Larissa Bontempi

REVISÃO
Daiane Cardoso
Kamila Wozniak
Luíza Côrtes
Thaís Carvas

CAPA E PROJETO GRÁFICO DE MIOLO


Anderson Junqueira

DIAGRAMAÇÃO
Filigrana

PRODUÇÃO DE EBOOK
S2 Books
[ 01 ] 1 “Rododendro: O assassino do campo”
www.countrysideinfo.co.uk/rhododen.htm

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