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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES – CCHLA


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

RELATÓRIO FINAL DO GRUPO MONTEVIDÉU

JANEIRO
2021
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE


CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES – CCHLA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

ALAÍDE MATIAS RIBEIRO


DOUGLAS ARAÚJO DE MEDEIROS DANTAS
MAIARA JULIANA GONÇALVES DA SILVA
MARIA SAMARA DA SILVA
THAISE GABRIELLA DE ALMEIDA RODRIGUES
RONALD DE FIGUEREIDO E ALBUQUERQUE FILHO

RELATÓRIO DO GRUPO MONTEVIDÉU

Relatório do grupo Montevidéu


apresentado a disciplina de Teoria
e Metodologia da História,
ministrada pelo professor Dr.
Renato Amado Peixoto no
Programa de Pós-graduação em
História da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte, semestre
2020.1.

JANEIRO
2021
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SUMÁRIO

1. Relatório das atividades do grupo............................................................................ 4

2. Estudos de casos de cada integrante......................................................................... 16

2.1 Espaço e lugar no Livro XVII da Geografia de Estrabão, de Alaide Matias


Ribeiro........................................................................................................................................ 16
2.2 “Progresso que na terra levanta”: o Sanatório Meduna visto como espaço de exclusão no
contexto da modernização urbana em Teresina (1954-1958), de Douglas Araújo de
Medeiros Dantas ....................................................................................................................... 28
2.3 “Às intelectualidades femininas da terra! ”: a constituição de um campo intelectual na
cidade de Natal no século XX, de Maiara Juliana Gonçalves da Silva........................... 37
2.4 Entre o apego e a aversão: experiências com espaços e lugares na escrita de Mauro
Mota, de Maria Samara da Silva .....................................................................................56
2.5 O espaço como configuração humana: migração, biopoder e necropolítica no processo
de modernização em Crato, Ceará, de Ronald de Figueiredo e Albuquerque Filho ..... 75
2.6 O hospício como espaço de reclusão: um olhar sobre as instituições manicomiais de
Natal/RN, de Thaise G. de Almeida Rodrigues............................................................... 98
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1. RELATÓRIO DAS ATIVIDADES DO GRUPO

1.1 ESTUDO DE CASO DO TÓPICO 1: NAÇÃO E CIDADE

O grupo Montevidéu se reuniu, pela primeira vez, no dia 02 de setembro de 2020. Na


reunião desse dia estiveram presentes todos os membros do grupo: Maria Samara Slva, Alaíde
Ribeiro, Ronald Filho, Maiara Juliana Gonçalves, Douglas Dantas e Thaise Rodrigues. A pauta
da reunião foi a apresentação entre os membros do grupo, onde cada integrante falou sobre a
sua pesquisa. Nesse momento também dividimos as tarefas internas do grupo, decidindo que a
aluna do doutorado Maria Samara continuaria como líder do grupo, a vice-liderança ficaria por
conta da aluna do mestrado Alaíde. No que tange, as funções de secretariado e responsável pela
organização do relatório final do grupo escolhemos, respectivamente, as alunas Thaise
Rodrigues e Maiara Juliana Gonçalves.
Após as devidas apresentações e divisões, a nossa segunda pauta foi a discussão sobre
os textos “Comunidades Imaginadas” do Benedict Anderson e do Walter Benjamin a serem
apresentados pelo grupo “Buenos Aires”. Essa discussão tem por objetivo trabalhar os textos
para associar os conceitos para o estudo de caso. Alaíde começou a apresentar sua visão sobre
o texto do Benedict Anderson, levantando os pontos principais. Em seguida, Maiara chamou
atenção para alguns conceitos principais dos dois textos e deu ideias sobre mídias que podem
se associar com os textos para realizar os estudos de caso – ela sugeriu dialogar com o texto do
Benedict Anderson com o filme “Bacurau” em diversos aspectos, principalmente sobre
nacionalismo e identidade. A segunda sugestão de Maiara foi associar os shoppings com a
alienação trabalhada no texto do Walter Benjamin ou dos internautas com o flâneur, aquele que
observa. Samara sugeriu que diminuísse o objeto do estudo de caso para algo mais específico.
Em seguida, ela começou a compartilhar sua ideia de utilizar o texto “Narradores de Javé” para
trabalhar com a construção da história e a pressão do mercado editorial para legitimar uma
história que é escrita. Alaíde sugeriu trabalhar com as ideias de comunidade trabalhadas no
texto do Anderson com o livro “A revolução dos bichos” de George Orwell. Além disso citou
o exemplo de Jonestown como comunidade religiosa. Thaise apresentou as ideias de notícias
de conflitos nacionalistas nos Bálcãs, dentre outros. Citou também o quadrinho “Maus” para
trabalhar nacionalismo. Douglas sugeriu o desenho “Educação para morte” em que explica
como foi criado o nacionalismo alemão, a partir do nazismo.
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Na segunda parte da reunião, após cada um expor suas ideias, Maiara começou a desenvolver
as ligações entre os conceitos do texto de Anderson e o filme “Bacurau”: do capitalismo
editorial (não relacionado ao filme diretamente, mas como discurso intertextual acerca da região
nordestina e nação); da comunidade imaginada, soberana e limitada; esquecimento e memória;
morte. Alaíde questionou sobre a questão do “apego” trabalhada por Anderson e como esse
conceito seria trabalhado em relação ao filme. Maiara respondeu que o filme mostra uma
comunidade que resiste com armas, que se une frente à ameaça. Com relação ao conceito de
“simultaneidade”, Maiara sugeriu fazer um adendo utilizando, novamente, a recepção do filme
e de como os nordestinos se reconheceram em alguns elementos da obra. Na terceira parte da
reunião, foi se dividindo as funções de cada integrante do grupo ficando Maiara, Ronald e
Alaíde responsáveis por relacionarem os conceitos citados acima com o filme. Ronald ficou
designado para discutir sobre o “capitalismo editorial”; o conceito de “comunidade” ficou com
Alaíde; “memória e esquecimento”, “morte” e os adendos ficaram para Maiara. Samara ficou
responsável pela produção e projeção slide e Douglas pela marcação do tempo das cenas de
Bacurau a serem compartilhadas com os colegas.
No dia 07 de setembro de 2020, o grupo voltou a se reunir para tratar da apresentação
do nosso primeiro estudo de caso. A reunião teve por pauta a discussão da “minutagem” das
cenas do filme “Bacurau” para relacionar com o texto Nações imaginadas de Benedict
Anderson. Estavam presentes na reunião: Alaíde Ribeiro, Douglas Dantas, Maiara Gonçalves,
Ronald Filho, Maria Samara Silva e Thaise Rodrigues. Em um primeiro momento, foram
apresentadas as duas cenas (24’30’’ a 26’33’’; 1h50’ a 1h52’31’’) que serão utilizadas para
exemplificar o estudo de caso. Em seguida, partimos para a discussão acerca dos slides. Ronald
foi o primeiro a apresentar, correções foram feitas e algumas partes removidas, para que a
apresentação conseguisse ser feita dentro do tempo. Ele apresentou algumas perspectivas da
relação entre capitalismo editorial e a exploração do tema das secas no Nordeste nos jornais do
século XX para sensibilizar o poder público. Essa discussão apresentada por Ronald abre espaço
para Alaíde começar a discutir sobre a associação do filme com o conceito das comunidades
que são imaginadas, limitadas e soberanas. Alaíde começa corrigindo alguns pontos de sua
parte do slide e em seguida, faz uma apresentação cronometrada para testar se suas questões se
encaixam no tempo proposto. A terceira a apresentar é Maiara, e como os outros dois
apresentadores, primeiramente conferiu seus slides. Em seguida, ela começou a apresentar
sobre o símbolo da morte presente no filme e discutido por Anderson. Outro conceito trabalhado
por Maiara é o de Memória e Esquecimento utilizando a cena do museu de Bacurau e da ligação
que os habitantes da cidade tinham com este espaço. Maiara finaliza sua parte com um adendo
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sobre a recepção do filme e a identificação que o público do sertão nordestino se identifica


fortemente com a obra. Além disso, ela discute que não há distinção na temporalidade, o tempo
é homogêneo, conceito trabalhado por Anderson. E por fim, comenta sobre a visão que o filme
alcançou como forma de resistência do Nordeste ao atual governo de Jair Bolsonaro. Na última
parte da reunião foi discutida a ordem de apresentação dos textos do tópico 2, no qual o nosso
grupo ficou responsável por conduzir a exposição. A questão em pauta foi: primeiro apresentar
o texto do Yi Fu Tuan ou do Dennis Cosgrove? Ficou decidido que o primeiro texto a ser
apresentado seria os fragmentos selecionados de “Paisagens do medo”, do Yi Fu Tuan, para o
dia 16 de setembro, e o fragmento de “Social formation and symbolic landscape”, do Dennis
Cosgrove, ficou para o dia 23 de setembro.

1.2 AS APRESENTAÇÕES DO TÓPICO 2 - PAISAGENS

A discussão, esquematização e organização da nossa primeira apresentação ocorreram


no dia 14 de setembro. As nossas reuniões sempre contaram com a participação de todos os
integrantes, raramente um não estava presente. Portanto, nessa reunião estava presente Alaíde
Ribeiro, Douglas Dantas, Maiara Silva, Maria Samara, Ronald Filho e Thaise Rodrigues. No
início da reunião, conversamos sobre o mal desempenho do nosso primeiro estudo de caso, que
acabou sendo avaliado com uma nota baixa. Fizemos a autocrítica e discutimos a respeito do
que podíamos melhorar. Após a avaliação do grupo, discutimos sobre o texto Paisagens do
Medo, do geógrafo Yi Fu Tuan. Alaíde sugeriu dar ênfase nos conceitos de paisagem e medo,
além da relação do homem com a natureza. Samara comentou sobre se atentar não só ao medo,
mas também a aventura e a experimentação. Maiara sugeriu que não só fossem lidas as citações
na apresentação, mas fossem lidas e explicadas, o que caracterizaria melhor a apresentação
como uma leitura dirigida.
Alaíde comentou que a ideia era ler as citações do autor e explicar, além de utilizar um
poema e sobre a ideia de colocar as imagens dos instrumentos de tortura e execução. Foi
também sugerido que colocassem imagens das instituições trabalhadas no capítulo 14 do livro
de Yi Fu Tuan. Samara comentou sobre a constante análise de Tuan sobre a relação do ser
humano com o ambiente, por sua formação em geografia. Ronald comentou sobre alguns vídeos
que associam paisagem e sociedade. Em seguida, Thaise falou sobre a organização do slide e
afirmou que precisava ser sintetizado. Por fim, nossa apresentação ocorreu no dia 16 de
setembro e se desenvolveu sem maiores problemas.
Como o texto em inglês demandava um trabalho mais minucioso, no dia 19 de setembro,
nosso grupo se reuniu previamente para debater o texto “Social formation and simbolic
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landscape”, do Dennis Cosgrove. A reunião teve duas horas de duração e foi conduzida pelos
doutorandos, com participação da aluna do mestrado Alaíde Ribeiro. Os demais alunos do
mestrado não puderam participar do debate sobre o texto nesse dia. Já no dia 23 de setembro,
foram apresentados os roteiros e os slides da apresentação do texto do Denis Cosgrove,
elaborados pelos doutorandos do grupo. Nessa reunião, todos integrantes do grupo estavam
presentes. De início, Maiara apresentou seu slide, começando pela apresentação do autor e sua
vida acadêmica. Em seguida, ela falou com relação às obras do autor e sobre sua influência nos
campos da geografia e história. No ponto seguinte, Maiara trouxe suas análises das abordagens
de Cosgrove escritas na introdução e no prefácio da obra. O formato da apresentação de Maiara
foi colocar a citação em inglês, paralelo a citação traduzida, destacando as partes mais
importantes das citações em negrito. Além disso, ela explicou cada excerto do slide e fez uso
de imagens presentes na obra. Em seguida, foi discutido sobre qual mestrando apresentaria em
caso de “problemas técnicos” na apresentação dos doutorandos. Adotamos essa ideia de
“apresentador(a) de emergência”, ou seja, antes da nossa apresentação, todo mundo
compartilhava os seus roteiros de falas no grupo de whatsapp. Cada integrante do grupo tinha
um “substituto”, caso o(a) apresentador(a) principal enfrentasse alguns problemas, tais como:
queda no sinal de internet, doença ou imprevisto. A segunda parte da apresentação ficou sob a
responsabilidade de Ronald. Ronald começou apresentando seus slides sobre o capítulo “A
ideia de paisagem” da obra. Ele decide não ler as citações e somente falar sobre cada citação e
imagens de acordo com o roteiro. Quando Ronald finalizou, Maiara sugeriu colocar as citações
em inglês ao lado das citações em português como ela fez em seus slides. Samara ficou com a
terceira e última parte da apresentação sobre o debate teórico do capítulo “A ideia de paisagem”.
Samara então leu o roteiro construído por ela e falou um pouco das imagens que serão utilizadas
no slide. Por fim, os doutorandos perguntaram aos mestrandos se deu para entender os
principais aspectos da obra pela apresentação deles, tendo uma resposta afirmativa por partes
dos mestrandos. Alaíde então sugeriu que colocassem mais citações nos slides, para se
enquadrar melhor na proposta de leitura dirigida. Por fim, outro ponto da pauta era sobre quem
ficaria responsável por passar o slide e por organizar o slide final. Thaise ficou responsável por
passar os slides e Douglas responsável por ser o apresentador “substituto”, isto é, ler os roteiros
caso ocorra algum problema técnico na apresentação dos doutorandos. Nosso bloco de
apresentação foi finalizado no dia 23 de setembro de 2020.
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1.3. ESTUDO DE CASO DO TÓPICO 4: O IMAGINÁRIO E OS ESPAÇOS


Após alguns dias de um respiro importante das apresentações, tivemos tempo suficiente para
lermos e pensarmos sobre o nosso segundo estudo de caso a ser elaborados sobre os textos
“Terrae Incognitae”, de John K. Wright., e Imaginary Cartographies, de Daniel Smail. No dia
15 de outubro de 2020, o grupo completo se reuniu para discutir as ideias e encaminhamentos
do estudo de caso sobre os dois textos mencionados. O grupo decidiu utilizar o texto do John
Wright por entender que essa obra proporciona um contexto mais geral sobre o Imaginário e os
Espaços, dando ênfase ao conceito de imaginação e geosofia. Maiara sugeriu utilizar esse
conceito de geosofia em relação a literatura. Alaíde colocou em pauta o problema do texto falar
da relação da literatura com a ilusão, que iria em caminho contrário ao sugerido pelo Wright.
Em seguida, Samara começou a comentar suas ideias para o estudo de caso. A primeira ideia é
utilizar uma obra de Umberto Eco chamada “Baudolino”, em que o autor narra as viagens de
Baudolino. A segunda ideia é utilizar os escritos sobre a expedição do Barão de Langsdorff,
entretanto, Samara afirma que é um tanto perigoso utilizar essa ideia já que o autor escreve de
maneira científica e não transparece ter uma admiração colocada como importante por Wright.
A terceira ideia é utilizar “Cinco semanas em um balão”, obra bastante conhecida de Júlio
Verne. Nessa obra, Samara diz que aparece esse sentimento de admiração trabalhado por
Wright e como inspirou diversos outros autores a trabalhem de forma semelhante na literatura.
A obra utiliza diversos espaços como desertos, florestas, se deparando com diversas terra
incognitae. Ela então fala dos problemas de utilizar essa obra por conter questões colonialistas
e racistas, já que a história se passa na África. Alaíde então questiona sobre a execução do
trabalho utilizando a obra de Julio Verne por ser uma “geosofia estética”. Alaíde também lançou
a ideia sobre a identidade que é colocada no espaço, gerando divisão em alguns casos, então ela
pensou em utilizar como exemplo o embate entre o Sindicato do Crime e PCC na cidade de
Natal. Em seguida, foi o momento de dividir os capítulos para que cada componente do grupo
destaque os pontos da obra que exemplificam a obra de Wright. Combinamos de cada integrante
ler os capítulos da obra do Verner e produzir alguns esboços sobre suas considerações traçando
diálogos com os conceitos de Wright. Assim, todo o grupo ajudou na análise da obra, no
entanto, a apresentação do estudo de caso ficou por conta dos integrantes Samara, Thaise e
Ronald.
No dia 20 de outubro de 2020, voltamos a nos reunir discutindo o conjunto de análises
sobre alguns trechos da obra de Verner. Estavam presentes na reunião: Alaíde Ribeiro, Douglas
Dantas, Maiara Gonçalves, Maria Samara, Ronald Filho e Thaise Rodrigues. Essa reunião teve
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por objetivo discutir a dinâmica do estudo de caso a ser apresentado no dia seguinte, no dia 21
de outubro de 2020. A reunião começou com Samara comentando que deveríamos decidir sobre
a dinâmica de apresentação do estudo de caso. Ronald disse que vai fazer a apresentação do
autor Júlio Verne, do conceito de geosofia, da subjetividade estética. Samara sugere então que
Ronald fale mais do contexto da obra, do autor e sobre o conceito de geosofia, deixando o
aprofundamento dos conceitos para outros integrantes, já que Ronald ficou responsável pela
introdução. Maiara sugeriu que Ronald também falasse do porquê utilizar a obra de Verne com
o texto de Wright. Samara diz que o objetivo é perceber como Verne constrói o espaço africano,
além da presença de juízos de valor europeus na obra e a produção de valores feita pela obra.
Em seguida, Ronald pediu para ler o texto introdutório que fez para apresentação. Após Ronald
terminar o texto, Samara sugeriu que ele acrescentasse o contexto histórico neocolonialista do
momento em que foi lançado o livro e o público alvo do livro (infanto-juvenil), com relação à
necessidade de colocar uma narrativa mais encantadora para prender a atenção. Em seguida,
Samara disse que conseguiu imagens dos povos aos quais Verne cita em sua obra, mas que
poderia acabar fugindo do cerne da questão, já que este não entrou em detalhes sobre esses
povos. Alaíde sugere que façamos a seleção dos trechos que exemplificam os conceitos, para
que não se torne repetitivo ou confuso. Ficou decidido seguir a ordem do texto do Wright, já
que as partes da obra de Verne que se associam ao texto de Wright se repete com frequência.
Ronald ficou com a primeira parte da apresentação, a parte introdutória. Thaise ficou com a
segunda parte, para falar sobre terrae incognitae, imaginação promocional, intuitiva e estética.
Samara ficou com a parte “legítimo e desejável” falado por Wright. Thaise sugeriu selecionar
os trechos da narrativa em grupo, ao invés de cada apresentador escolher os trechos
individualmente. Após escolhidos os trechos, ficou então combinado que cada apresentador
montasse sua apresentação para exibi-la na reunião do dia seguinte. Na manhã do dia 21 de
outubro, realizamos a última reunião antes da apresentação (no turno da tarde), para fazermos
os últimos ajustes e apresentar para o grupo todo. No período da tarde, a apresentação ocorreu
de forma tranquila.

1.4 ESTUDO DE CASO DO TÓPICO 5: A POÉTICA E A POLÍTICA DE


ESPAÇO:
Nosso grupo também ficou responsável por apresentar um dos estudos de casos dos textos
do tópico 5, correspondente aos escritos Orientalismos, de Edward Said e Maps of Imagination,
de Peter Turki. Para tanto, no dia 03 de novembro, nos reunimos novamente para pensar no
estudo de caso utilizando a obra de Said, Orientalismo. Maiara começou expondo suas ideias
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sobre o estudo de caso utilizando o texto de E. Said. A primeira ideia é associar o filme 300
(2006), que pode falar sobre o contexto histórico de produção do filme e a presença dos EUA
no Oriente Médio. A segunda proposta foi utilizar o filme Argos, da luta dos EUA contra os
terroristas. A terceira proposta foi utilizar a história de Aladdin. Maiara explicou que Aladdin
era a sua proposta principal, porque a história não é original do livro das Mil e uma noites, mas
foi criada pelo orientalista Antoine Galland, um francês tradutor da obra. Thaise então
questionou, dizendo que o conto não foi criação do orientalista, mas do libanês Hanna Dyiab,
sendo então transcrita por Galland. Então surgiu o questionamento: será que Galland não
modificou a história contada por Dyiab? A história originalmente se passava na China, vimos
então uma modificação substancial.

Em seguida, Alaíde sugeriu a ideia de relacionar o texto de Said com o livro O caçador de
pipas de Khaled Hosseini. O grupo escolheu então trabalhar com a ideia de Aladdin, mostrando
o deslocamento da história escrita por Galland para as representações mais recentes em
animação e no filme (2019). O momento seguinte foi para escolher quem apresentaria o estudo
de caso: os integrantes Maiara, Alaíde e Douglas se colocaram à disposição. Samara salientou
a importância de apesar destes apresentarem o estudo de caso, todos devem participar
novamente da pesquisa do tema. Maiara pensou então em utilizar também a animação de
Aladdin, mas Samara sugeriu só utilizar o conto escrito por Galland, por ser difícil analisar o
contexto do momento de produção do filme. Um ponto primordial da análise é perceber como
a história foi adaptada para o Ocidente. Samara sugeriu pesquisar a fundo tudo que diz respeito
ao Antoine Galland, sobre Aladdin, tendo em mente a obra de Said. O grupo se dividiu em
duplas para pesquisar sobre o estudo de caso: Alaíde e Samara pesquisaram sobre o Antoine
Galland; Ronald e Douglas pesquisaram sobre a repercussão da obra As mil e uma noites no
Ocidente, a origem e tradução da obra por Galland; Thaise e Maiara pesquisaram sobre o conto
de Aladdin.
Na semana seguinte, o grupo completo se reuniu novamente para discutir os aspectos da
apresentação do estudo de caso a ser realizada no dia 11 de novembro de 2020, utilizando o
texto de E. Said. e a história de Aladdin presente no livro As mil e uma noites de Antoine
Galland. A reunião se iniciou com a divisão da apresentação do texto de Edward Relph que será
apresentado no dia 18 de novembro pelos doutorandos Maiara, Samara e Ronald. Acordamos
entre o grupo que, dessa vez, inverteríamos a ordem da apresentação: primeiro os doutorandos
e depois os mestrandos, pois esses últimos iriam participar do Encontro Estadual da Associação
Nacional de Professores de História (ANPUH) do Rio Grande do Norte. Em seguida,
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começamos a conversar sobre o estudo de caso propriamente dito. Samara perguntou a Alaíde
se ela teria utilizado o diário de Galland como fonte, Alaíde então disse que não, que havia
utilizado trabalhos acadêmicos e sites. Samara então continuou dizendo que encontrou um aviso
numa edição francesa do século XIX que a tradução de Galland permitia que os franceses
lessem as histórias das Mil e uma Noites sem adquirir os “vícios” dos orientais, ou seja, a
tradução não foi literal, mas alterações significativas foram feitas. Alaíde sugeriu que essa parte
poderia ficar com a parte da apresentação de Douglas que vai comentar sobre a difusão e
recepção da obra na Europa.
Na ocasião, Samara então disse que a versão de Galland d’As mil e uma noites foi a que
mais se destacou por se aproximar mais do contexto europeu. Maiara então sugeriu para Alaíde
que ressaltasse o contexto do autor e como esse contexto influenciou na obra e na construção
do espaço na literatura. Samara disse que procurou no diário de Galland ilustrações e mapas
para utilizar no estudo de caso, mas não encontrou, encontrando apenas algumas citações em
árabe da fala de pessoas que ele encontrava enquanto viajava pelo Oriente. Entretanto, ela disse
que essas falas não influenciam muito para a construção do espaço pela literatura e que
devíamos utilizar mesmo a obra de Galland, não o diário. Maiara sugeriu para Douglas que ele
explicasse o título da obra, a repercussão e o interesse imperialista da França e Inglaterra sobre
o Oriente, fazendo que com a segunda tradução a ser feita das Mil e uma noites, depois da
francesa, fosse a inglesa. Em seguida, Maiara começou a dizer os aspectos que abordará na sua
parte da apresentação. O porquê de utilizarmos Aladdin, a caracterização dos personagens
orientais pelo Galland, as modificações feitas na narrativa e as representações pejorativas dos
islâmicos, além de analisar a associação do Deus cristão com Alá. Samara então perguntou se
no conto de Aladdin fala sobre aspectos paisagísticos na narrativa e que seria interessante
colocar as descrições dos espaços.
Observamos que a divisão de tarefas para a pesquisa funcionou bastante. Reunimos muito
conteúdo para ser abordado na apresentação. No entanto, o excesso de conteúdo acabou
prejudicando a nossa organização conforme o tempo e passamos alguns minutos dos 45 minutos
estimados pela apresentação. Todavia, a apresentação foi satisfatória, sendo o grupo penalizado
apenas pelo não cumprimento do tempo de apresentação.
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1.5 AS APRESENTAÇÕES DO TÓPICO 6: LUGARIZAÇÃO VIVIDA OU


NOMADISMO?

O nosso segundo bloco de apresentações das leituras dirigidas foi composto pelos textos:
Place and placelessness, do Edward Relph e Mil Platôs, do Gilles Deleze e Félix Guattari.
Iniciamos discutindo as questões referentes ao texto de Edward Relph com apresentação
marcada para o dia 18 de novembro. A reunião começou com Samara comentando que o autor
é bem objetivo no texto que será apresentado, o que seria um problema, caso fosse utilizado só
esse texto. Por isso, foi importante achar outro artigo do mesmo autor, publicado
posteriormente, para complementar a apresentação. Maiara começou a expor os pontos de sua
apresentação para os colegas de grupo. Ela então fala as informações sobre o autor e sobre o
site elaborado e alimentado pelo próprio autor www.placeness.com e sugere a leitura de outros
artigos do Relph na academia.edu, sobretudo para compreender a relação entre fenomenologia
e geografia.
Em seguida, Maiara iniciou a apresentação sobre o autor, sobre a obra e sobre a relação
entre a geografia humanista e o uso da fenomenologia. Após a finalização da apresentação de
Maiara, Ronald, o seguinte apresentador, comentou um pouco os conceitos que abordaria em
sua apresentação. Ronald fala de sua ideia de utilizar alguns artigos para tentar compreender
melhor o texto, mas sem fazer cruzamento de obras. Após Ronald finalizar seu momento de
fala, Samara deu continuidade à discussão do texto, falando sobre raízes e sentimentos de apego
a lugares. Ao finalizar sua parte, Samara sugeriu a Maiara que o que ela sentisse que estivesse
sendo repetitivo na introdução, ela reduzisse, já que ela faz uma síntese geral do texto, e Samara
e Ronald aprofundam as questões. Para finalizar a reunião, foi o momento de decidir quem faria
o slide. Optamos por Samara reunindo os slides e Douglas ficaria responsável pela exibição dos
slides na apresentação, já que o mesmo não iria participar do Encontro Estadual da ANPUH-
RN.
No dia 19 de novembro, o grupo se reuniu para discutir o texto Mil Platôs. Estiveram
presentes na reunião Alaíde Ribeiro, Douglas Dantas, Maria Samara, Ronald Filho e Thaise
Rodrigues. A doutoranda Maiara não pode estar presente, pois se encontrava envolvida nas
atividades do Encontro Estadual da ANPUH-RN, que ocorreu do dia 17 a 20 de novembro, de
modo remoto. A reunião teve por objetivo discutir o texto Mil Platôs que foi apresentado pelos
mestrandos, a fim de, conjuntamente, compreendermos os conceitos explorados pelos autores.
De início, Alaíde se dispôs a comentar suas anotações. Em seguida, Samara sugeriu que já que
são três mestrandos apresentando, formássemos duplas com os doutorandos para destrinchar as
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partes dos textos que cada um apresentará. Todos presentes na reunião concordaram com a
sugestão. Depois foi o momento de dividir o texto. Thaise ficou com a primeira parte, Douglas
com a segunda parte e Alaíde com a última parte. Samara então disse que seria interessante
também dar uma olhada na obra Anti-Édipo já que existem conceitos utilizados em Mil Platôs
que foram anteriormente analisados nessa obra. Thaise ficou com essa parte de dar um contexto
anterior a Mil Platôs. Samara também sugeriu que tirássemos a parte da apresentação do autor
já que o texto é denso, trabalhando inúmeros conceitos. Por fim, ficou decidido que na reunião
seguinte levaríamos as dúvidas.
Antes da realização da última apresentação de leitura dirigida, nos reunimos para conferir
os pontos de apresentação do texto Mil Platôs. Desse modo, com o grupo completo, Thaise, a
primeira a falar, demonstrou os pontos do texto que apresentaria. No término da parte de Thaise,
Samara descreve as motivações da crítica a psicanálise e a linguística exposta por Deleuze e
Guattari. Ronald também fez contribuições falando do Corpo sem Órgãos e da contraposição
da interpretação feita por Freud e a experimentação falada por Deleuze e Guattari.
Posteriormente, foi a vez de Douglas apresentar a sua parte para o grupo e expressar as suas
dúvidas. Depois de Douglas, foi a vez de Alaíde de apresentar. Alaíde não teve nenhuma
dúvida, só sobre máquina de guerra, que foi sanada antes de sua parte. Por fim, ficou definido
que Alaíde organizaria os slides e Maiara ficaria responsável sobre transmiti-lo. Não apenas
para esse texto – apontado como mais complexo – , mas o grupo, ao longo da disciplina,
conseguiu se auxiliar mutuamente no entendimento dos textos, o que destacamos como ponto
positivo no trabalho interno do grupo.

1.6 ESTUDO DE CASO DO TÓPICO 8: MEIO AMBIENTE E O CORPO


POLÍTICO

No dia 10 de dezembro, tivemos a primeira reunião para discutir o último estudo de caso
que seria apresentado pelo grupo para a disciplina. Estavam presentes na reunião: Alaíde
Ribeiro, Douglas Dantas, Maiara Gonçalves, Maria Samara, Ronald Filho e Thaise Rodrigues.
A apresentação corresponderia aos textos do tópico 8: The ´political Landscape as polity and
place, de Kenneth Olwig, e Ecocrítica, do Greg Garrard. Nosso grupo optou por trabalhar com
o texto do Greg Garrard “Ecocritica”. Inicialmente, Samara pediu para que todos dessem ideias
para o estudo de caso. Thaise pensou em relacionar o texto com algum filme do Studio Ghibli,
que tem como tema em muitos dos seus filmes uma crítica a destruição da natureza pelos
humanos. Alaíde em seguida, perguntou se deveríamos escolher um capítulo de Ecocrítica ou
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usar todos. Samara deu a ideia de falar sobre o poema Ode ao rouxinol do inglês John Keats do
século XIX do romantismo inglês, trabalhando com a natureza pastoral que se deteriora com o
decorrer do tempo.
O grupo entrou em um acordo que seria interessante abordarmos a poesia, já que o autor
explora tantos poetas em seus exemplos. Por isso, decidimos que usaríamos os poemas de
Keats. Samara então disse que talvez poderia usar também outros poetas românticos. Maiara
afirmou que seria interessante trazer só dois poemas e trabalhar de forma mais aprofundada
diante do tempo de apresentação que teríamos. Conversamos sobre a divisão da apresentação,
e os integrantes que se propuseram a apresentar foram Douglas, Thaise e Alaíde. Douglas ficaria
com a introdução, falando sobre o autor, depois, para relacionar com o texto do Garrard, Thaise
ficou com um dos poemas e Alaíde com outro. Após esse momento de divisão da apresentação,
Samara leu um pouco dos poemas. Por fim, Samara ressaltou a importância de problematizar
os poemas do Keats que permitem relacionar a crítica de Garrard a tradição pastoral, por isso
optamos por usar o único capítulo que o autor fazia essa crítica.
A última reunião do grupo Montevidéu ocorreu no dia 16 de dezembro. Tivemos que fazer
uma modificação nos integrantes que apresentariam o estudo de caso devido a membra Thaise
ter adoecido. Nesse caso, Samara substituiria Thaise. Sendo assim, Samara começou a reunião
falando que o autor de Ecocrítica Garrard é uma pessoa do campo e critica a pastoral romântica,
já John Keats, escolhido para ser utilizado no estudo de caso, em seus poemas que se enquadram
na definição dos poetas sentimentais, almejando viver no campo, quando na verdade vivia em
Londres da Revolução Industrial marcada pela doença e pela falta de natureza, trabalhando em
Ode ao rouxinol a ideia de fuga da cidade, o levando para a pureza do campo. Em seguida,
Samara passou a fala para Douglas, que ficou responsável pela primeira parte da apresentação
que diz respeito à biografia e o contexto histórico de John Keats. Douglas falou que estava
tendo um pouco de dificuldade para elaborar a explicação do que seria o objetivo do estudo de
caso. Samara diz então que o estudo de caso objetiva analisar a relação do homem com a
natureza do ponto de vista simbólico e real, dando ênfase na abordagem antropocêntrica e
ecocêntrica da pastoral. Ela afirma que Keats fica no limbo entre essas duas abordagens e que
as naturezas nos seus poemas aparecem numa perspectiva distante, já que ele faz parte da
dinâmica urbana e não da paisagem rural, que ele tanto almejava.
Além disso, Samara sugere finalizar a apresentação fazendo uma relação da obra Ecocrítica
com a ideia ecológica contemporânea. Maiara sugere então que ao invés da ordem de
apresentação ser Douglas, Samara e Alaíde, ser Douglas, Alaíde e Samara que fará essa relação
da obra de Garrard com a contemporaneidade, para que não fique centrado apenas no século
P á g i n a | 15

XIX, época de Keats. Samara aceitou a sugestão. Alaíde então ficou com o primeiro poema a
ser trabalhado no estudo de caso, Ode ao outono de Keats, com a proposta de ler todo o poema,
já que é curto, e associar com Ecocrítica. Após ler o poema, Alaíde apresentou a análise que
fez, alternando a releitura de trechos do poema para exemplificar e citações de Ecocrítica que
analisam certos aspectos da poesia pastoral de Keats. Para finalizar, ficou combinado que
Maiara apresentaria os slides e Thaise juntaria e organizaria os slides.

Para concluir, as atividades do grupo Montevidéu ocorrem de modo tranquilo e sem


conflitos. Em nossas reuniões, os integrantes estiveram presentes e se comprometiam com as
atividades ou de apresentação ou de auxiliar a pesquisa que comporia a fala dos apresentadores.
Na medida do possível, tentamos fazer um rodízio de apresentações. Para os textos em inglês,
os doutorandos tiveram momentos em que puderam discutir e apresentar os textos. Como
avaliação total, o grupo trabalhou em uma harmonia, passando juntos por momentos tanto de
tensões, que sempre precediam as apresentações, como de boas risadas ao longo dos trabalhos
pensados coletivamente.
P á g i n a | 16

2. ESTUDOS DE CASOS DE CADA INTEGRANTE

Espaço e lugar no Livro XVII da Geografia de Estrabão

Alaide Matias Ribeiro1

A Geografia de Estrabão

Entre o primeiro século antes e depois da era comum, durante os principados de Otávio
Augusto e Tibério, Estrabão de Amásia (64 a.e.c. – 24 e.c.) produziu uma obra escrita em grego
intitulada Geografia. É composta por dezessete livros que, à exceção dos dois primeiros,
correspondem a descrições geográficas de territórios. Os Livros I e II são uma introdução geral
em que o autor apresenta uma discussão sobre o que é geografia, tanto a área de conhecimento
como a sua própria obra, os pressupostos e concepções de mundo que orientam os geógrafos,
quais são os geógrafos conhecidos antes e em seu tempo. Alguns dos personagens debatidos
nos primeiros livros e que aparecem, na forma de citações diretas e indiretas, nos demais livros
da Geografia são Píteas (380 – 310 a.e.c), Eratóstenes de Cirene (276 – 194 a.e.c.), Hiparco
(190 – 120 a.e.c.) e Posidônio (135 – 51 a.e.c.)2. Christina Roseman (2005, p. 30-31) enuncia
que o principal objetivo de Estrabão nessa introdução geral é a epanorthosis, a correção dos
geógrafos anteriores por meio de uma crítica às suas obras e ideias de acordo com os princípios
aceitos da filosofia natural. Além disso, cabe mencionar que é nessa primeira parte que o
geógrafo enunciou o objetivo e utilidade da geografia, destacando, dessa forma, a relevância do
seu empreendimento para o campo.
Estrabão é enfático em sua argumentação inicial e explanativa ao destacar que a
geografia serve “por uma parte no que concerne aos assuntos políticos e as práticas de governo,
por outro no que concerne ao conhecimento dos corpos ou fenômenos celestes e ao que existe
na terra e no mar, animais, plantas, frutas e tudo o que é possível ver em cada lugar” (Estrabão,

1
Licenciada em História (2019). Atualmente cursa o mestrado em História pelo PPGH-UFRN/Natal,
desenvolvendo pesquisa sobre a Geografia de Estrabão e o Norte da África na Antiguidade sob a orientação da
professora doutora Marcia Severina Vasques. E-mail para contato: alaideribeiro@ufrn.edu.br
2
É importante destacar que Estrabão não arrola somente as ideias e argumentos dos geógrafos que o precederam.
Ao longo dos Livros I e II, mas também nos próprios livros dedicados propriamente à descrição geográfica, o
geógrafo amasiano incluiu especialistas de outras áreas que, para ele, não estavam dissociadas da geografia ou da
ciência natural. É o caso da inclusão do historiador Políbio. É interessante ressaltar que, de certa forma, todos os
autores citados se configuram como filósofos pois a geografia foi considerada pelo autor como uma atividade
filosófica, já que em sua concepção os primeiros que produziram filosofia eram geógrafos, como, por exemplo:
Homero, Anaximandro de Mileto, Hecateu de Mileto, Demócrito de Abdera, Eudoxo de Cnido, Dicearco de
Mesene e Éforo de Cime (Estrabão, Geografia, I, 1, 1).
P á g i n a | 17

Geografia, I, 1, 1)3. Os demais livros correspondem às corografias dos territórios existentes nos
três continentes que configuravam esse mundo antigo: a Europa, a Ásia e a Líbia. É importante
ressaltar que Estrabão produzira anteriormente à Geografia uma obra denominada Comentários
Históricos que é mencionada em algumas passagens do seu trabalho posterior. No entanto,
poucos foram os fragmentos dessa primeira obra que sobreviveram ao tempo e poucas as
referências da Antiguidade que indicam sua existência4. Postula-se que essa obra dava
continuidade à História de Políbio (ANDREOTTI, 2009, p. 44), já que a produção de
sequências às publicações anteriores de outros autores era corrente na época. Ainda é
importante destacar que, segundo Clarke (1999, p. 2) no período helenístico podemos observar
uma ambiguidade nas definições de geografia e história. Essa informação é relevante porque
indica a trajetória do autor que, herdeiro dessa tradição, caminha entre os campo da história, da
geografia e da filosofia.
Daniela Dueck (2000, p. 2) propõe que Estrabão teria vivido entre o ano 64 antes da era
comum e o ano 24 da era comum. Ele foi um sujeito oriundo da cidade de Amásia, localizada
no vale do rio Íris, interior do Ponto Euxino, atual Turquia, uma região que pouco antes do
nascimento do geógrafo havia se tornado uma província romana. Sabe-se, por meio da
Geografia e de algumas referências provindas de fragmentos medievais, a saber, a enciclopédia
bizantina do século X intitulada Suda, que à época da conquista do general Pompeu, o Grande,
sobre o rei Mitrídates VI Eupator em 66 a.e.c., ao fim das Guerras Mitridáticas (97 – 66 a.e.c.),
membros da família de Estrabão, especificamente, da parte materna, entraram em divergência
com o rei do Ponto. No entanto, o que considero relevante é projetar a imagem do geógrafo a
partir de dois aspectos. O primeiro faz referência à sua origem, seu pertencimento à uma zona
asiática na extremidade oriental do Mediterrâneo, um espaço que pode ser considerado grego,
mas ao mesmo tempo bárbaro, haja vista a influência persa presente na região antes do período
helenístico.
O segundo aspecto diz respeito ao status social do geógrafo que pode ser evidenciado
pela sua formação e produção. De acordo com Clarke (1999, p. 193) Estrabão foi um sujeito
que transitava entre os mundos Grego e Romano e que teve acesso à elite romana, recebendo
uma educação tradicionalmente helenística na qual a Filosofia, a Retórica e a Gramática

3
Todas as citações da Geografia de Estrabão foram traduzidas para o português pela autora de acordo com as
versões traduzidas da obra para o espanhol e para o francês referenciadas na bibliografia. As traduções das citações
das referências utilizadas ao longo do texto também são de nossa autoria.
4
De acordo com García Ramon (1991, p. 51) existem três referências aos Comentários Históricos na Geografia
de Estrabão, onze nas Antiguidades Judaicas e uma no Contra Apião, ambas de Flávio Josefo (37 – 100 e.c.), três
em Plutarco (46 – 120 e.c.) e uma em Tertuliano (160 – 220 e.c.), totalizando dezenove referências à obra.
P á g i n a | 18

cumpriram um papel importante. Roseman (2005, p. 28) argumenta que Estrabão esteve sob a
tutela de mestres peripatéticos como Aristodemo de Nisa, Xenarco de Selêucia e Tirano de
Amiso. Seus colegas e filósofos, Boeto de Sidon (75 – 10 a.e.c.), peripatético, e Atenodoro de
Tarso (74 a.e.c. – 7 e.c.), estoico, foram comentadores da obra Categorias de Aristóteles (384
– 322 a.e.c). Podemos concluir que, vivenciando um momento de novas edições e discussão
das obras de Aristóteles pelos sujeitos citados anteriormente, o geógrafo esteve em contato com
a filosofia aristotélica e esse contato se fez presente na Geografia5. Sabe-se também que
empreendeu viagens à Roma e ao Egito e que possuía contatos com sujeitos da elite, a exemplo
do governador da província da Síria e da África, Cneu Calpúrnio Pisão (Estrabão, Geografia,
II, 5, 33) e o segundo prefeito equestre do Egito, Élio Galo (Estrabão, Geografia, XVII, 1, 29).
No que concerne ao material a ser analisado neste estudo de caso, o Livro XVII, tem-se
que é a última parte da Geografia, comportando a descrição do Egito, da Etiópia e da Líbia,
territórios localizados na terceira parte do mundo habitado e conhecido à época de Estrabão,
hoje denominado de Norte da África. O Livro XVII incorpora em três capítulos a descrição
desses territórios ou espaços geográficos que integraram uma parte do mundo habitado e
conhecido, cada uma compreendendo espaços, lugares e povos com características distintas.
Nosso objetivo é refletir sobre como o geógrafo amasiano construiu discursivamente esse
espaço africano, em especial, o espaço do Egito antigo, utilizando, para isso, a ideia de que as
cidades desse território podem ser compreendidas como lugares que, ao serem descritos,
apresentam uma série de propriedades, mas que parecem ser definidas, sobretudo, pelas práticas
exercidas pelo povo que as habitam.

Categorias espaciais e experiências de lugar

Ao analisarmos o contexto em que Estrabão viveu e produziu suas obras, podemos dizer
de um momento de imperialismo romano, com a expansão e manutenção do poder de Roma em
diversos territórios à ocidente, à oriente, à norte e ao sul do mar Mediterrâneo, vide a criação e
manutenção das províncias senatoriais e imperiais6. A oikoumene estava em construção e

5
No entanto é preciso considerar que, apesar de Estrabão ter conhecido as principais escolas filosóficas correntes
à sua época, o Estoicismo foi a filosofia assumida pelo geógrafo. “Ele, de fato, proclamou a Stoa como sua
inspiração, apesar de nunca ter mencionado ter estudado com um mestre estoico, e na época em que escreveu a
Geografia ele poderia se referir ao Estoicismo como ‘nosso’ (1.2.3; 2.3.8) e a Zenão como ‘nosso Zenão’ (1.2.34;
16. 4. 27). [...] Por outro lado, a ênfase do Estoicismo na física e nas ciências naturais certamente o atraiu, e talvez,
seu rigor e dogma também.” (ROSEMAN, 2005, p. 28-29).
6
De acordo com Rowe (2011, p. 115), as províncias eram divididas em províncias do povo Romano (caracterizada
por serem habitadas por romanos ou povos “pacificados”, com governantes ‘oficiais’ escolhidos pelo Senado) e
províncias de César (regiões de fronteiras, guarnecidas por legiões, com governantes da ordem equestre indicados
pelo imperador). Todavia, “Entre as duas havia pouca diferença real: imperador e república emitiam ordens para
P á g i n a | 19

argumentamos que a Geografia de Estrabão pode ser compreendida como uma obra que
informa esse projeto, apresentando o mundo por meio do discurso. No entanto, a obra não pode
ser interpretada apenas como um inventário dos espaços, lugares, povos e recursos. Há que se
considerar a produção como resultado da experiência de um sujeito em um determinado
contexto histórico e em um determinado grupo, seja ele de filósofos, historiadores ou geógrafos.
Pensando dessa forma, a Geografia de Estrabão pode ser percebida como uma fonte profícua
para a discussão do espaço e de categorias associadas no início do Império Romano 7. No
entanto, é preciso considerar que essa produção espacializante que enuncia ao público leitor
uma série de lugares é uma leitura particular de um sujeito que não faz parte do contexto que
está descrevendo – no caso, esse Norte da África – mas que o experienciou e o relatou, criando
o espaço por meio do discurso e definindo os lugares por que passou ao longo de seu percurso
a partir dos elementos físicos, mas principalmente, humanos que observa.
Tomando como base a perspectiva da experiência, pretendemos fazer uma leitura do
Livro XVII da Geografia de Estrabão a partir das ideias de espaço e lugar propostos pelo
geógrafo escocês Edward Relph no livro Place and Placelessness (1976). A escolha desse
aporte teórico se deu em razão da possibilidade de exploração de outros sentidos possíveis de
serem identificados no discurso geográfico produzido pelo amasiano, em especial, na
interpretação dos espaços e lugares descritos como produtos da experiência do geógrafo. Para
isso, nos apoiaremos em Relph que, em sua obra, estava preocupado com “as diferentes formas
em que lugares se manifestam em nossas experiências ou consciência do mundo vivido, e com
os componentes distintivos e essenciais de lugar e ausência de lugar bem como eles são
expressos na paisagem.” (RELPH, 1976, p. 6-7). Destarte, podemos elencar algumas questões
norteadoras como: partindo do discurso geográfico, em especial, o Livro XVII, é possível
identificar como os lugares são manifestados por meio do percurso e olhar de Estrabão, a partir

ambas, e os rendimentos de ambas eram direcionados ao tesouro público” (MILLAR, 1966 apud ROWE, 2011, p.
115).
7
É importante destacar que especialistas da Antiguidade que estudam a Geografia de Estrabão, como Katherine
Clarke (1999) e Daniela Dueck (2000), percebem a obra como um discurso que enfatiza e elogia o processo de
imperialismo romano ao longo do mundo habitado e conhecido e, especialmente, o principado de Augusto. Essa
perspectiva enfatiza uma dimensão política na Geografia e da descrição do espaço como uma forma de inventariar
e controlar os territórios submetidos à administração romana. Consideramos importante inserir a produção dentro
do contexto do imperialismo romano, todavia, optamos por investigar o discurso para além da dimensão política.
Mas, também considero relevante constatar que uma interpretação que considere a Geografia como uma descrição
da terra preocupada com a ocupação e o controle do espaço territorial seria possível sob a perspectiva do geo-
poder proposta por Gearóid Thuathail em Critical Geopolitics, pois esse teórico argumenta que “o funcionamento
do conhecimento geográfico não como um corpo inocente de conhecimento e aprendizagem, mas como um
conjunto de tecnologias de poder preocupadas com a produção governamental e gestão do espaço territorial.”
(THUATHAIL, 1996, p. 5). No entanto, como Thuathail restringe cronologicamente o conceito para tratar do
século XVI em diante, optei por não tentar uma aplicação que resultaria em anacronismo.
P á g i n a | 20

de sua experiência de peregrinação no espaço? Quais as propriedades dos lugares


experienciados que se expressam nas paisagens também descritas por Estrabão? Afinal, o
geógrafo descreveu lugares ou paisagens?
De acordo com Edward Relph, “Em geral parece que o espaço fornece o contexto para
os lugares, mas deriva seu significado de lugares particulares.” (RELPH, 1976, p. 8). Com isso,
o geógrafo indica a estreita relação entre os conceitos de espaço e lugar, não sendo possível
separar o lugar, expressão variável da experiência humana, de seu contexto experiencial e
conceitual. É preciso considerar também que, assim como existem várias formas de lugares, há
distintas formas de espaço, os quais estariam em um contínuo que tem a experiência direta em
um extremo e o pensamento abstrato no outro extremo8. Partindo dessas considerações iniciais
e aplicando-as na fonte que é o nosso objeto de estudo, o primeiro elemento a destacar é como
Estrabão percebe esses fenômenos de espaço e lugar e os inscreve no discurso. Para elucidarmos
essa questão é preciso considerar como o geógrafo amasiano operacionalizou o discurso. Ele
enuncia que:
A Líbia, até agora como imaginamos em um plano, tem a forma de um
triângulo retângulo cuja base seria o litoral mediterrânico que vai do Egito e
do Nilo à Maurúsia e às Colunas de Héracles; o lado perpendicular à base seria
formado pelo Nilo até a Etiópia, e nós o estendemos até o Oceano, e o lado
oposto ao ângulo reto corresponderia a toda a costa oceânica entre os Etíopes
e os Maurúsios. De resto, quando nós dizemos que a região situada no cume
da figura descrita já se destaca quase na área tórrida, isto é apenas uma
conjectura: ela é tão inacessível que nós seríamos incapazes de avaliar a maior
largura do país. (Estrabão, Geografia, XVII, 3, 1)

O trecho acima citado faz parte da primeira seção do terceiro capítulo do Livro XVII
que é dedicado à descrição da Líbia. O que é interessante notar é o esquema de descrição
espacial que não é apanágio desse livro em específico, mas que se repete nos demais ao longo
da Geografia. Estrabão inicia apresentando o espaço da Líbia, imaginando-o como uma forma
geométrica estendida sob um plano ou mapa, indicando suas extremidades e os territórios - e
elementos geográficos de destaque como o Nilo e as Colunas de Héracles, atual Estreito de
Gibraltar - contíguos a este, relacionando os povos que habitam esses espaços9. Pensando nessa

8
Dentre as várias formas de espaço apresentadas por Edward Relph (1976, p. 10-26) temos o espaço pragmático
ou primitivo, o perceptivo ou substantivo, o existencial, o arquitetônico ou de planejamento, o cognitivo e o
abstrato.
9
É interessante pensar na questão da produção do conhecimento geográfico empreendido por Estrabão em sua
Geografia, trabalho que poderia ser também compreendido como uma espécie de geosofia (WRIGHT, 2014, p. 4),
afinal, para o amasiano, a geografia é uma atividade filosófica por excelência. No entanto, é preciso considerar
uma ressalva. Estrabão construiu seu discurso com um objetivo preciso e de acordo com os preceitos aceitos na
época. Um dos principais elementos a considerar – e, principal motivo para não termos realizado um estudo
baseado estritamente nas considerações do geógrafo norte-americano John Wright – é a prioridade do estudo do
P á g i n a | 21

construção, podemos afirmar que o que é apresentado pelo amasiano pode ser relacionado a um
tipo específico de espaço denotado por Edward Relph, no caso, o espaço cognitivo. De acordo
com o autor, esse espaço se configura no constructo abstrato do espaço que surge da
identificação do espaço tanto como um objeto possível de reflexão e passível de se desenvolver
teorias (RELPH, 1976, p. 24).
Avançando na discussão sobre essa forma de espaço, concebido como um tipo
homogêneo, uniforme, neutro, uma simples dimensão, “o espaço da geometria e mapas e teorias
da organização espacial.” (RELPH, 1976, p. 25), Relph enuncia que dentro desse espaço
orientado pela teoria euclidiana, o lugar é compreendido basicamente como uma localização
definida por um conjunto de coordenadas. Ao analisar a descrição do Egito, Etiópia e Líbia,
podemos identificar uma série de lugares-posições, localizações indicadas por estádios e, como
explicitado no final do trecho destacado, por sua inserção em zonas climáticas. No entanto,
retomando a ideia da existência de vários espaços em um contínuo, alegamos que na Geografia
de Estrabão, outra categoria de espaço indicada por Relph pode ser identificada. Uma forma de
espaço que permite uma outra compreensão de lugar que é mais interessante para a nossa análise
das experiências de lugar nesse discurso. É o espaço existencial, um espaço que está
constantemente sendo criado e refeito pelas atividades humanas e que, na interpretação de
Edward Relph, pode ser lido a partir de duas perspectivas, a saber: o espaço sagrado e o espaço
geográfico ou profano. De acordo com o autor:

Lugares no espaço existencial podem, portanto, ser entendidos como centros


de significado ou focos de intenção e propósito. Os tipos de significados e
funções que definem os lugares não precisam ser o mesmo para todos os
grupos culturais, nem os centros precisam ser claramente demarcados por
características físicas, mas eles devem ter um interior que possa ser
experienciado como algo diferente do exterior. [...] Mas em ambos os casos
lugares constituem centros significativos de experiência dentro do contexto do
espaço vivido do cotidiano do mundo social. (RELPH, 1976, p. 22)

Esse enunciado que propõe a ideia de que o lugar pode ser compreendido como um
centro significativo dentro de um determinado contexto de experiência cotidiana dos sujeitos
nos é útil para refletir em que medida é possível considerar as cidades descritas por Estrabão
em sua Geografia, especialmente, em sua trajetória pelo Egito, como lugares, como centros de
significado que tem um interior que difere de um exterior. Mas, cabe ressaltar o porquê de

que já é conhecido na geografia. O estudo de Estrabão não se preocupa na descoberta de terras incógnitas, mas na
revisão do que já é conhecido. O que está além do conhecido, além do que é possível de avaliar, não passa, na
visão do geógrafo amasiano, de conjecturas. Todavia, é preciso considerar que o elemento “imaginação” não está
ausente, haja vista a primeira sentença do trecho selecionado.
P á g i n a | 22

falarmos em termos de cidade e em que medida elas podem ser entendidas como centros de
significado. Katherine Clarke (CLARKE, 1999, p. 205) argumenta que a descrição produzida
pelo geógrafo amasiano que se inicia de forma geral, vide as descrições que, de certa forma,
nos fazem pensar no espaço abstrato comunicado por Relph 10, dá lugar à narração das
sucessivas cidades presentes nos territórios. Portanto, advogando com a perspectiva de uma
descrição que enfatiza esses centros urbanos, nossa proposta de análise é pensar nas cidades
descritas como centros de significado, como lugares, os quais se distinguem, especialmente,
pela prática religiosa experienciada pelos sujeitos registrada no discurso de Estrabão.
Relph argumenta que o lugar deve ser compreendido como um fenômeno de experiência
multifacetado com propriedades como localização, paisagem e envolvimento/experiência
pessoal (RELPH, 1976, p. 29). Tendo em vista essa definição, consideremos a descrição de
Estrabão e como essas propriedades se fazem presente no discurso da Geografia. No primeiro
capítulo do Livro XVII encontramos a descrição do Egito, cujo território é apresentado em uma
divisão bem definida pelo geógrafo que, já nas seções iniciais, enuncia que “ele foi primeiro
dividido em nomos: dez nomos na Tebaida, dez no Delta e dezesseis entre os dois [...]. Como
a população total, a de cada nomo foi dividida em três, enquanto o território foi dividido em
três partes iguais.” (Estrabão, Geografia, XVII, I, 3). No entanto, no que concerne aos aspectos
de lugar, vejamos a propriedade da localização, comum à maioria dos lugares. Ele enuncia:

Assim, a distância entre Catabatmos e Paraitonion, se navegarmos em linha


reta, é de novecentos estádios. Há uma cidade e um grande porto com cerca
de quarenta estádios; alguns chamam a cidade de Paraitonion, outros de
Amônia. Entre os dois passamos pela aldeia não murada dos egípcios, a ponta
de Ainèsisphyra e os Rochas de Tíndaro, um arquipélago de quatro ilhotas
com um porto, depois, o cabo Drépanon, a ilha de Ainèsippeia com seu porto
e a aldeia de Apis, a cem estádios de Paraitonion e a cinco dias de caminhada
do templo de Amon. (Estrabão, Geografia, XVII, I, 14)

Percebe-se que Estrabão se preocupa em apresentar ao público a localização geográfica


das cidades que descreve ao longo de sua trajetória em território egípcio. Para isso, ele move a
narrativa de forma linear, sequenciada, indicando as distâncias de um lugar para outro
utilizando, na maior parte, o estádio como unidade de medida 11. No entanto, vale considerar

10
“O espaço abstrato é o espaço das relações lógicas que nos permitem descrever o espaço sem necessariamente
basear essas descrições em observações empíricas.” (RELPH, 1976, p. 26). Definição útil para refletirmos sobre a
descrição dos territórios que não foram percorridos ou experienciados diretamente pelo geógrafo amasiano.
11
Apesar das distâncias serem medidas, na maior parte do texto, em termos de estádios, Estrabão também utiliza
outros unidades, como, por exemplo, dias de caminhada. Ele também indica as direções em relação à nascente e o
poente, ou seja, ao oriente e ao ocidente e, mais ainda na descrição do Egito, termos como jusante e montante.
P á g i n a | 23

que o geógrafo também enfatiza a forma física visual dos lugares, o que é definido por Edward
Relph como paisagem, a propriedade em que o espírito do lugar reside. Nessa perspectiva,
poderíamos pensar no discurso sobre o Egito como descrições de paisagens porque aí os lugares
são identificados como centros distintos ou definidos por características “como cidades
muradas, vilas nucleadas, topos de colinas ou a confluência de rios, e geralmente são esses
locais claramente definidos e publicamente observáveis que aparecem em relatos de viagens ou
descrições geográficas simples.” (RELPH, 1976, p. 30). Perceba como essa segunda
propriedade do lugar pode ser identificada na seguinte seção:

Lá, também encontramos a cidade de Boubastos e o nomo Boubastite, bem


como, a montante, o nomo Héliopolita. É lá que podemos ver Heliópolis que
se estende por um dique notável, com seu templo de Hélios e seu boi Mnévis
que se ergue em uma espécie de recinto sagrado: a população o honra como a
um deus, assim como Ápis em Mênfis. Em frente ao dique, esticam-se os lagos
para os quais flui o canal vizinho. A cidade hoje está completamente deserta,
mas tem seu antigo santuário, construído em estilo egípcio, onde se podem ver
muitos vestígios da loucura sacrílega de Cambises que, ora de fogo, ora de
ferro, tentou danificar os templos mutilando-os e queimando-os, como
também fez com os obeliscos, exceto por dois que não estavam muito
danificados e que foram transportados para Roma, os outros, aqui e para
Tebas, atual Diospolis, ou ainda estão de pé, mas comidos pelo fogo, ou estão
caídos no chão. (Estrabão, Geografia, XVII, I, 27)

Edward Relph também argumenta que as experiências de lugar não podem ser compreendidas
como experiências de paisagem. Mas, importa destacar que o autor não nega a relevância da
aparência como um elemento a considerar na constituição do lugar, aspecto que é apresentado
na menção aos estilos de construção de templo.
Outra propriedade que nos ajuda a compreender o lugar como fenômeno multifacetado
é o tempo, pois “a mudança de caráter dos lugares através do tempo, é claro, está relacionada
às modificações de edifícios e paisagens bem como mudanças em nossas atitudes, e é provável
que pareça bastante dramático após uma ausência prolongada.” (RELPH, 1976, p. 31). Essa
ideia de modificação dos lugares ou a percepção de que um lugar já não é o mesmo que outrora
era também está presente na descrição de Estrabão, pois ao longo do discurso podemos perceber
que o geógrafo menciona acontecimentos do passado para dizer de uma situação do presente e,
também o contrário, apresentando a situação do lugar no presente – o que ele experiencia - para
dizer do passado, como pode ser identificado na citação acima. Mas, é preciso destacar que a
atitude do geógrafo amasiano perante esses lugares deriva tanto de sua excursão no Egito como
das informações adquiridas em obras que são inseridas no texto. Portanto, a experiência de
Estrabão pode ser alocada também no outro espectro da ideia de modificação do lugar,
P á g i n a | 24

relacionada ao aspecto de continuidade, seja na experiência de mudança ou na própria natureza


dessa, que serviria como um modo de intensificar o sentido de associação e ligação ao lugar.
Mas, Estrabão não vive no Egito, ele experiencia o espaço e os lugares como um
viajante, e, sobretudo, como um especialista com um propósito definido que é a descrição
geográfica do território. Dessa forma, podemos questionar: será possível pensar em termos de
ligação com o lugar? Diante de uma asserção negativa, argumentamos, no entanto, que é
possível perceber no discurso indícios de como os egípcios são ligados aos lugares descritos e
como esses lugares vêm a ser definidos, na perspectiva do geógrafo, pelo povo que o habita.
Relph também propõe pensarmos o lugar como essencialmente seu povo e que a paisagem ou
a aparência são aspectos mais triviais (RELPH, 1976, p. 33). No caso, o autor enfatiza a ideia
da comunidade e a relação entre povo e lugar, relação que resultaria na intensificação da
identidade tanto do povo como do lugar. Esse aspecto é relevante para a nossa proposta de
análise porque ao longo da descrição das cidades do Egito no primeiro capítulo do Livro XVII,
percebemos que esses lugares são definidos por sua comunidade.
Assim, pensando a partir das propriedades discutidas anteriormente – localização,
paisagem, tempo e comunidade – argumentamos que podemos identificar esses lugares – as
cidades ao longo dos nomos – e discutir como esses se diferenciam um do outro. Essa distinção
deriva não tanto da localização geográfica em que estão alocadas – alto, baixo ou médio Egito
– e nem do aspecto visual, mas sim pelas práticas religiosas próprias dos lugares. Essa dimensão
religiosa já pode ser visualizada nos excertos destacados anteriormente, haja vista a citação aos
templos. Aqui a comunidade deve ser compreendida para além da categoria geral Egípcios e
sim como a comunidade urbana que é definida pelo geógrafo amasiano, principalmente, em
razão do culto à uma divindade particular. Essa ideia pode ser identificada em seções mais
específicas, como, por exemplo:
Depois de passar por esses monumentos e continuar a navegação por uma
centena de estádios, chegamos à cidade de Arsinoé, que antes era chamada de
Crocodilópolis: o crocodilo é realmente muito homenageado nesse nomo, e
entre eles há um sagrado, criado à parte em um lago, que se comporta
obedientemente com os sacerdotes. (Estrabão, Geografia, XVII, 1, 38)

Depois dos nomos Arsinoita e Héracléotico, chegamos a Héracleópolis, onde


adoram o ichneumon em oposição aos Arsinoítas; porque se alguns
reverenciam os crocodilos - e esta é a razão pela qual não só o seu canal, mas
também o Lago Moeris estão cheios de crocodilos, já que as pessoas os
respeitam e preservam - outros reverenciam os ichneumons, o pior flagelo de
crocodilos, bem como das víboras. (Estrabão, Geografia, XVII, 1, 39)

Vale destacar que já pela nomenclatura desses lugares - no caso, na antiga cidade
P á g i n a | 25

Crocodilópolis que no tempo de Estrabão é denominada Arsinoé - é possível perceber esse


aspecto identitário ligado às práticas. Por fim, para marcar ainda mais essa distinção que define
essas cidades como lugares, como centros que possuem um significado particular e cujas
práticas e atitudes dos sujeitos que o habitam, especialmente, perante os elementos da natureza
circundante que são divinizados, denotam sua identidade, veja a seguinte seção:

Em seguida vêm o nomo Cinopolite e Cinopolis, onde veneram Anúbis e os


cães, que recebem alimento sagrado. Na margem oposta está a cidade de
Oxirrinco no nomo de mesmo nome; as pessoas adoram o oxirrinco lá e têm
um templo dedicado ao oxirrinco, embora esse culto também seja
compartilhado pelo resto do Egito. Todos os Egípcios, de fato, têm em comum
o culto de certos animais, por exemplo três animais terrestres, a cabra, o
cachorro e o gato, dois pássaros, o falcão e a íbis, e dois peixes, o lepidote e o
oxirrinco; mas há outros que cada um venera por si mesmo, por exemplo, as
ovelhas em Sais e Tebas, o latès, um peixe do Nilo, em Latópolis, o lobo em
Licópolis, o babuíno em Hermópolis, os kèpos em Babilônia perto de Mênfis
[...] a águia em Tebas, o leão em Leontópolis, a cabra e o bode em Mendes, o
musaranho em Athribis, e assim por diante; mas a explicação das causas
desses cultos não é unânime. (Estrabão, Geografia, XVII, I, 40)

Partindo do exposto nessas passagens, argumentamos que o geógrafo apresenta ao


público uma descrição de lugares que se definem pelo culto, as cidades passam a ser, de forma
geral, associadas ao culto que é aí prestado. É interessante destacar que a descrição, em alguns
momentos do texto, é resumida à indicação do lugar, da divindade que é cultuada, e algumas
características que, na perspectiva grega de Estrabão, podem ser consideradas exóticas, haja
vista o tratamento dispensado aos animais em alguns desses lugares.

Considerações finais

Demonstramos como o geógrafo apresenta as cidades por meio de elementos que se


configuram como propriedades dos lugares: localização, paisagem, tempo e comunidade. A
intenção deste estudo foi apresentar como no Livro XVII da Geografia de Estrabão, as cidades
podem ser compreendidas como lugares por meio da identificação de determinadas
propriedades que as distinguiriam uma das outras, como centros de significado, focos de
intenção e função, como fenômenos que oferecem diferentes experiências aos sujeitos que a
habitam. No entanto, cabe enfatizar que as cidades são lugares para os Egípcios e não,
propriamente, para Estrabão. Mas, isso não impende a leitura das cidades descritas, partindo da
ideia de considerá-las centros profundos da existência humana (RELPH, 1976, p. 43), como
lugares para os Egípcios.
P á g i n a | 26

Bibliografia

Fontes primárias

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Paris: Les Belles Lettres, 2015.

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WRIGHT, J. K. Terrae Incognitae: O lugar da imaginação na Geografia. Geograficidade, v.4,


n.2, 2014.
P á g i n a | 27

“PROGRESSO QUE NA TERRA LEVANTA”: o Sanatório Meduna visto como espaço


de exclusão no contexto da modernização urbana em Teresina (1954-1958)

Douglas Araújo de Medeiros Dantas 12

12
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da UFRN. Email: dougsdantas@hotmail.com
P á g i n a | 28

O medo, geralmente, é algo diretamente associada à imaginação humana e tem suas


origens relacionadas às circunstâncias externas a nós, seres humanos, exceto, é claro, em casos
como as doenças, mas a sua construção quase sempre está ligada à nossa imaginação, quanto
menos imaginação tivermos, menos medo sentiremos. É sobre esse tema, e as paisagens criadas
a partir desse fenômeno, que Tuan vai tratar ao longo do livro Paisagens do Medo (2006). Dessa
forma, nosso estudo de caso fundamentar-se-á nos assuntos tratados por ele, especificamente
quando o autor se refere ao resultado de uma “paisagem do castigo” (TUAN, p. 280), sustentada
com base nas punições e no medo implantado em uma sociedade a partir da criação de leis
severas, que poderiam resultar em castigos físicos ou reclusões. Com isso, considerando o
contexto social da capital piauiense entre os anos de 1954 à 1958, a qual passava por um
processo de modernização do espaço urbano, faremos uma análise, a partir da perspectiva do
livro citado, de como os sujeitos tidos como loucos foram ‘vítimas’ do complexo entrelaçado
de leis e normas, muitas dessas de caráter moral, e como o Sanatório Meduna, nosso objeto de
estudo, inserido nessa realidade, assim como outras instituições que tinham seus discursos
voltados para o tratamento da loucura, serviu na verdade como forma de reclusão e de castigo
para esses indivíduos desviantes.
Antes de adentrarmos no nosso estudo de caso, para melhor nos situarmos sobre o tema,
iremos trazer um pouco sobre o conceito de “paisagens do medo” abordado por Tuan, qual sua
relação com o conceito de exclusão e o que seria essa “paisagem do castigo”. Para Tuan a
paisagem, como conceito usado desde o século XVII, é uma “construção da mente”, que ele
compara a uma “entidade física e mensurável”. Dessa forma, “paisagens do medo” diz respeito
tanto as formas criadas pela nossa mente, como ao meio ambiente, por exemplo. Por tanto,
podemos considerar que a “paisagem do medo” são as inúmeras demonstrações das “forças do
caos, naturais e humanas”, e toda construção humana, seja ela imaginário ou material, é “um
componente da paisagem do medo, porque existe para controlar o caos” (TUAN, p.13).
A paisagem do castigo se firmou a partir de uma forma de controle, na tentativa de
estabelecer uma ordem social e evitar qualquer tipo de ações contra os governantes. Isso tudo
a partir do medo, sustentado com ajuda de leis e punições que existiam para o descumprimento
dessas leis, que tinham como objetivo o aviso e a intimidação por meio do terror das impiedosas
e sanguinárias formas de castigo nesse contexto. Segundo Tuan, essa paisagem do medo foi
notada na Europa, principalmente entre o fim da Idade Média até o final do século XVIII.
P á g i n a | 29

Como foi dito, esse conceito de paisagem teve sua origem ligada a uma resposta das
autoridades, ao caos social instaurado naquele cenário. Dito isto, é notória que para se viver em
sociedade é necessária uma ordem que deve ser seguida por todos os seus membros e quem não
cumpre essa ordem, pode ser punido, isso acontece com ladrões, assassinos ou qualquer grupo
de minorias que, por alguma razão, quebram essas normas de conduta. Entretendo, nos
aproximado do nosso objeto, em alguns casos os sujeitos quebram essa ordem devido ao estado
em que se encontram, as vezes sem ter a consciência, por assim dizer, do intricado de princípios
que regem um corpo social, como é o caso dos indivíduos tidos como loucos, que subvertem as
regras de uma comunidade, com seus comportamento e ações que divergem das normas
estabelecidas em um cenário sem muitas vezes ter a intenção em seus atos.
Em relação a esses indivíduos considerados loucos, Tuan (2006, p. 299) diz que, no
contexto citado, esses sujeitos viviam em meio à comunidade, desde que sua presença, de
alguma forma, não causasse mal ou desconforto para os habitantes “normais”. Caso fossem
violentos ou cometessem crimes, as regras recaiam sobre eles e dessa forma seriam cruelmente
punidos, geralmente com castigos físicos. Entretanto, o autor mostra que essas sociedades ainda
tinham outras formas de condenação para impor ordem ou evitar o caos, essas formas seriam o
exílio e a exclusão.
A loucura, a pobreza, o alcoolismo, a lepra e demais doenças e enfermidades que
afetaram essa época estiveram em um patamar parecido de desordem social. Como medida
preventiva, para evitar uma possível contaminação ou maior desordem no âmbito social, esses
grupos, muitas vezes, foram encarcerados em instituições, geralmente isoladas das cidades e
excluídos do convívio social. Não seriam encarcerados para serem tratados ou assistidos, mas
com o intuído de serem removidos do ambiente coletivo. O contato com familiares e amigos
chegava ao fim no início das portas dessas instituições. Esses lugares de exclusão foram
denominados de “Instituições Totais” (BENELLI, 2014, p. 23-62), locais que tem, por
finalidade, o objetivo de controlar a vida dos indivíduos a ela submetidos, sobrepondo todas as
possibilidades de interação social por alternativas internas. É a partir daí, que surgem as ideias
dos primeiros asilos, que seriam instituições para o “tratamento” desse tipo de indivíduo.
A partir de agora, direcionando ao nosso objeto e baseando-se nessa perspectiva
trabalhada por Tuan, daremos mais atenção aos discursos que tinham como objetivo estabelecer
uma ordem social no nosso contexto, como estes discursos estavam diretamente ligados a uma
forma de controlar o caos gerado pelos indivíduos considerados loucos, e como o nosso objeto,
o Sanatório Meduna, como meio de reclusão/exclusão, era visto como uma solução para o
problema da desordem causada por esses sujeitos naquele cenário de modernização urbana.
P á g i n a | 30

Na primeira metade do século XX, na cidade de Teresina, desenvolveu-se um conjunto


de estratégias que tinham como foco policiar e criminalizar condutas das diferentes esferas
sociais da população teresinense, voltadas com maior intensidade para as camadas mais
desfavorecidas, onde normalmente se encontravam maior número de sujeitos portadores de
transtornos mentais. A psiquiatria foi se constituindo como um saber que poderia arquitetar
mecanismos capazes de ordenar e normatizar o espaço urbano e as posturas de seus cidadãos.
Foi nesse sentido que a medicina psiquiátrica se ocupou em uma luta pela recuperação e
prevenção das moralidades anômalas (LOPES, 2011, p. 21).
Dentro desse novo sistema, a loucura deixou de ser vista como uma característica dos
vadios, dos indivíduos desocupados, que tomavam o ambiente urbano, para ser transformada
em uma patologia, com o domínio das explicações a partir do saber médico-psiquiátrico. Esse
saber médico interligou muitas vezes a loucura e a criminalidade, em muitos momentos sendo
entendidas como sinônimo, pois o louco teria predileção ao crime devido não seguir um padrão
de comportamento determinado, ou seja, nesse contexto, como também no cenário mostrado
por Tuan (2006, p. 299), alguns comportamentos que não seguiam as normas de condutas
estabelecidas pela sociedade, podiam ser vistos como crimes e passível de pena (LOPES, 2011,
p. 47).
Esse novo modelo assistencial proposto por o saber psiquiátrico, começa a ser percebido
de forma mais intensa na década de 1920 em todo o país, e um dos principais motivos
relacionados a isto foi o encontro da psiquiatria com as ideias de eugenia.13 Nesse período, esse
pensamento foi muito difundido dentro das próprias faculdades de medicina da Bahia e do Rio
de Janeiro, onde os conceitos de degenerescência moral, organicidade e hereditariedade do
fenômeno mental se tornaram prerrogativas nesses ambientes, sendo transmitidos e tomando
forma nos debates médicos. Essa compreensão fundamentou um discurso de intervenção
médica sobre comportamentos desviantes da sociedade.
Juntamente a isso, surgia uma grande preocupação no que concerne a um novo ramo de
atuação da medicina: o atendimento e assistência às crianças. Nesse cenário se pensava que os
filhos gerados pelos indivíduos desviantes (no qual se encaixa os loucos, os mendigos, os
ociosos, as prostitutas, entre outras minorias), herdariam os genes ruins dos seus pais. O

13
Eugenia pode ser entendido como um conjunto de ideias propostas por Francis Galton, antropólogo,
meteorologista, matemático e estatístico inglês. A partir de textos seus textos, ele tem por objetivo provar que a
inteligência e habilidades humanas não seriam fruto da educação recebida durante a vida ou do meio a que estaria
submetido o sujeito, mas sim, razão das características herdadas de seus ascendentes. Esta proposta evoluiu em
direção a discussão sobre o controle sobre a reprodução e seu papel na seleção social para preservação de gerações
sadias e futuras.
P á g i n a | 31

convívio com o meio e a questão da hereditariedade, por si só, já determinavam a


degenerescência do indivíduo, sendo muito difícil esquivar-se dessas influências a qual já
estavam submetidos (LOPES, 2011, p. 49).
A partir dessas ideias, o cidadão teria de se ocupar, de alguma forma, com atividades
que contribuíssem para o desenvolvimento da pátria, além de não oferecer qualquer risco futuro
à nação. Era feito uma análise biológica do indivíduo, onde qualquer tipo de comportamento
ou vício não condizente com o que era estabelecido, faria com que essa criança fosse tida como
um potencial disgênico, capaz de afetar de maneira negativa, em termos genéticos, a formação
de uma futura sociedade brasileira. Foi pensado instrumentos de intervenção e repressão,
efetivado pelo Estado e amparado pela medicina, onde o poder da polícia, respaldado pela classe
médica, era capaz de dizer quem estava contribuindo ou não para o progresso do país
(CARDOSO, 2016, p. 72). A única forma de driblar esse destino e a possível reclusão, seria
seguindo uma moral social determinada e por meio do trabalho, que fazendo uma analogia à
fala colocada por Tuan (2006, p. 307), era por meio deste que esses indivíduos “podiam se
tornar membros produtivos da sociedade”.
As relações entre a medicina, polícia e práticas educacionais andaram de mãos dadas
em Teresina durante boa parte do século XX, com o objetivo de impulsionar uma normatização
da sociedade, que iria afetar especialmente os loucos, visto como criminosos e as classes pobres
em geral. A medicina influi naquilo que é jurisdição da polícia, propiciando uma medicalização
das prisões nos asilos e patologizando o comportamento do “criminoso”. O corpo policial
atuava onde a medicina não podia, nas ruas, apreendendo a loucura e trancafiando dentro dos
asilos e instituição de tratamento da loucura.
Nos anos anteriores a 1907 (ano de inauguração do primeiro asilo da capital), aqueles
sujeitos considerados loucos, os que eram mais pacatos nas ruas da capital, que não
interrompiam o trânsito das pessoas ou perturbavam a paz dos moradores, viviam livres nas
ruas da cidade. Os loucos mais agressivos e agitados, que poderiam causar algum tipo de
desordem em Teresina, eram retirados das ruas pelas autoridades policiais e encaminhados para
a casa de detenção. No primeiro momento ocorreu dessa forma: o “louco manso” nas ruas e o
“louco bravo” nas casas de detenção (LIMA, 2015, p. 54).
No dia 24 de janeiro de 1907, com festividades e o discurso do Dr. Areolino de Abreu,
foi inaugurado o “Asylo de Alienados”, a primeira instituição que prometia curar a loucura de
Teresina, porém o prédio não estava totalmente pronto o que veio a causar problemas de
lotação. É importante frisar o papel do Dr. Areolino de Abreu em relação a essa conquista para
P á g i n a | 32

a cidade de Teresina.14 Formado na Bahia, político, como era normal nessa época, Abreu
assume a governança do Piauí em 1906, e a partir daí inicia uma campanha para angariar fundos
para a construção de um Asilo para Alienados. A elite teresinense, juntamente com a classe
médica, arrecadou a maioria dos recursos usados para comprar um terreno no Campo de Marte,
onde foi construído o primeiro asilo do Estado.
Em relação ao andamento do Asilo, já nas primeiras décadas de funcionamento, o
mesmo se via alvo de muita preocupação entre as autoridades políticas do Estado. O número de
internos subia gradativamente, e como já havia dito, o local não foi terminado como se
pretendia, faltava uma grande parte do que tinha sido projetado e demanda de internos era maior
do que o Asilo podia oferecer (LIMA, 2015, p. 34). O projeto que garantia atender a demanda
da capital piauiense não passou de uma mudança de lugar dos ditos loucos, das celas da Casa
de Detenção para os pavilhões do hospital.
Com o passar dos anos as condições de higiene nos compartimentos onde os internos
ficavam, se agravaram. Existia um pequeno esgoto, nos quartos onde os loucos eram mantidos,
para que eles fizessem suas necessidades, e com a má limpeza dos locais isso se tornou um
problema de salubridade com o passar dos anos. Alguns alienados eram trancafiados nesses
cômodos apertados e sem janelas, aqueles mais agressivos eram amarrados por correntes em
troncos de cajueiros que ficavam localizados no pátio do Asilo, e ali permaneciam, embaixo
das folhas do cajueiro, sem qualquer assistência, muitas vezes sofrendo agressão de outros
internos que ali passavam, sem o direito de defesa e sem a capacidade de cuidar da sua higiene
pessoal, dificilmente fazendo uma alimentação descente ou realizando suas necessidades
básicas (OLIVEIRA, 2011, p. 29).
Poucos métodos terapêuticos foram utilizados nesse período, se compararmos com o
que temos atualmente. Entretanto, a violência sempre esteve presente nesta relação. Camisas
de força, isolamento em quartos totalmente fechados, falta de salubridade nos ambientes,
estrutura incompleta; tudo isso fez parte de um cenário construído em que a loucura se via como
única participante, que padeceria com a exposição desse trágico espetáculo.

14
Tinha o nome todo de Areolino Antônio de Abreu, nascido em Teresina, ano de 1865. Faleceu em União (PI),
1908. Doutor em medicina pela Faculdade da Bahia. Professor de português e matemática. Na capital piauiense
desempenhou elevadas funções. Deputado provincial. Presidente do Conselho Municipal e do Tribunal de Contas.
Vice-governador do Piauí. Na ausência do governador Álvaro Mendes para Parnaíba, assumiu o comando
administrativo a 11 de dezembro de 1905, nele permanecendo até 2 de abril de 1906, quando teve oportunidade de
criar o Asilo dos Alienados. Em 1887, o então formando em medicina, Areolino Antônio de Abreu, apresenta sua
these à Faculdade de Medicina da Bahia, a fim de obter o grau de Doutor, denominada: “Glycosúria (diabetes
assucarado)”.
P á g i n a | 33

É fundamental a ressalva de que desde o início da imprensa no Brasil, a loucura estava


exposta nas páginas de jornais e revistas, testemunhando a liberdade desses indivíduos nos
cenários das grandes cidades. Seja denunciando a má impressão e os aborrecimentos que estes
causavam a população e a cidade, reivindicando um lugar para essas pessoas ou até mesmo
apontando as péssimas qualidades dos auxílios oferecidos a estes pelo governo, bem como dos
locais onde eram destinados para serem tratados (GARCIA, 2015, p. 38). Esse argumento pode
ser corroborado com uma coluna do jornal da época “O Piauí”, que retrata a realidade do
descaso do governo com os loucos em Teresina:
Há poucos dias éste jornal chamou a atenção dos poderes públicos para o
número de loucos que se encontra sôlto nas ruas, inteiramente abandonados à
própria sorte, sem que dêles o Estado tome sequer conhecimento. Focalizamos
então, como exemplo, a figura de “Ângela”, a louca desprotegida, a quem se
nega a esmola de um caldo e de uma injeção de cardizol.
Ultimamente esta bem aumentando o número dêsses desamparados, aos quais
se poderá ajuntar uma dupla parcela de mendigos, que vagam pela cidade, à
mercê da caridades dos transeuntes e servindo, muitas vêzes, para gafolhas de
máu gôsto. E não nos consta que qualquer providência esteja sendo objetivo
de estudos, para dá remédio a situação.
O govêrno está na obrigação de tomar medidas condizentes com o fato
lamentável, providenciando o internamento dos doentes e provendo de
recursos o Hospital Psiquiátrico, que está com suas verbas desatualizadas em
frente ao elevado custo de vida em nossos dias. [...] (TERESINA –
MANICÔMIO SEM GRADES. Teresina: O Piauí, 1954)
A notícia do dia 21 de abril de 1954 refere-se à atenção que o governo do Estado
dispunha quando se tratava da saúde mental. Mesmo existindo o Asylo de Alienados, o número
de doentes mentais (um dos termos utilizado na época) nas ruas se multiplicava a cada ano. Isso
fazia com que a população e a imprensa incomodassem o governo com a exigência de acolher
esses indivíduos e tirá-los das ruas, já que uma cidade moderna não poderia apresentar tal
contraste. Durante todo o século XX a imprensa se viu com o dever de denunciar o menosprezo
dos governantes com o quadro em que se encontrava esse gênero de assistência. A imprensa
deixava a população ciente de como estava o estado de assistência ao doente mental e como
este era um problema nas ruas da cidade, além de ajudar a modelar o conhecimento sobre a
doença mental, visto que os fatos são construídos a partir de uma noção abordada pela própria
mídia.
A desassistência do novo Asilo fez com que Clidenor de Freita Santos, um jovem
médico psiquiatra da cidade, considerasse a possibilidade de erguer seu próprio negócio, seu
próprio estabelecimento para tratar a loucura. Inaugurou-se, no dia 21 de abril de 1954, seu
suntuoso edifício, o Sanatório Meduna, que veio a ser considerado, pela própria imprensa um
P á g i n a | 34

marco de modernização em termos estruturais e científico em Teresina (OLIVEIRA, 2011, p.


38).
Retornando ao momento de inauguração do Meduna, a psiquiatria francesa teve grande
influência na constituição de uma psiquiatria nacional. Clidenor Santos era um grande adepto
da filosofia de Philippe Pinel15, e acreditava que a instituição asilar, por si só, já era uma forma
de tratamento quanto retirava o louco do seu local de vivência, afastando-o dos vícios, das
paixões e de tudo aquilo que poderia contribuir para o agravamento da loucura. O Meduna tinha
o objetivo de responder a essas inquietações, oferecendo o suporte necessário aos indivíduos
em relação a estrutura e terapêutica, possuindo tudo de mais moderno no que concerne ao
tratamento do doente mental (SANTANNA, 2011, p. 09), além de retirar os loucas das ruas,
que por muitos eram vistos como um problema para a modernização e desenvolvimento da
cidade e causavam constrangimento aos que transitavam nas ruas, ou seja, o Meduna prometia
tirar os loucos das ruas e resolver o problema da desassistência à saúde em que esses indivíduos
sofriam, solucionando dois problemas de uma vez.
É indiscutível que a construção do novo espaço para a loucura em Teresina, representou
um aumento significativo da duração dos períodos de internações dos pacientes, se
considerarmos os dois hospitais, seguindo a lógica das políticas de higienização do espaço
urbano, já que os indivíduos ficariam internados por muito tempo, promovendo uma aparência
de uma cidade bem limpa e estruturada.
Clidenor Santos, com a reclusão, tentava criar uma nova sociedade, um novo corpo
social dentro do asilo, com normas, hierarquias, autoridade, o que pode ser considerada uma
comunidade asilar. Essa era mais uma das diversas técnicas que fez grande sucesso e estava
presente dentro do Meduna. Porém, o grande destaque no quesito de modernização, em relação
a assistência ao doente mental pelo psiquiatra, se deu com a criação do aparelho Eletrochoque,
demasiadamente usado no mundo todo como ferramenta que substituía algumas formas de
tratamento, como o choque insulínico e cadiazólico, aumentando a praticidade, diminuindo os
efeitos colaterais, lesões e riscos dos antigos métodos, mas que muitos viam como uma forma
de tortura, devido a dor e situação que ficava os indivíduos após a sessão nesse equipamento,

15
Philippe Pinel (1745 – 1826) era francês, adepto das ideias do Iluminismo, foi o primeiro no tratamento de
doentes mentais e considerado, por muitos, o pai da psiquiatria. Formado em medicina pela Universidade de
Tolouse (França), dirigiu os hospitais de Bicêtre e Salpêtrière neste país. Na sua Biografia consta que se interessou
por essa área depois que um amigo tomado de loucura, fugiu para uma floresta, tendo sido devorado por lobos. Da
observação dos seus próprios pacientes, em 1801, publicou seu Tratado Médico-Filosófico sobre a Alienação
Mental, em que defende a doença mental como resultado de uma exposição excessiva a situações de estresse e,
também, a danos hereditários capazes de provocar alterações patológicas no cérebro.
P á g i n a | 35

além dos relatos, como informa Oliveira (2011), que muitas vezes o eletrochoque foi usado
para causar terror psicológico e punir os internos mais problemáticos.
Com isso percebemos o papel fundamental do Meduna referente a assistência mental no
Piauí, tanto o Sanatório quanto o seu criador, tiveram um papel na luta pela assistência a esses
sujeitos como no que se refere a higienização da cidade ao retira-los das ruas. O médico chegou
ao a cidade de Teresina com as novidades na mala, revolucionando o tratamento da loucura,
trazendo novo métodos, humanizando o atendimento. Construiu seu próprio negócio, que virou
um marco nesse caminho, fabricou seu aparelho de eletrochoque e fez o Meduna se tornar
referência nacional no que concerne ao tratamento dos portadores de doença mental.
O Sanatório Meduna se tornou um símbolo de modernidade em Teresina no que se refere
a assistência à saúde mental, e olhando pelo lado da medicina, deu um novo sopro de esperança
aos desvalidos. Meduna marcou a capital como um período de inovação e renovação, passando
a dividir os paciente com o Asilo de Alienados, que juntos formaram a rede de assistência de
saúde mental da cidade, enquanto o Asilo atendia a uma população mais carente, o novo
sanatório buscava atender a um público que possuía assistência previdenciária ou podia pagar
pelo serviço, ou seja, enquanto um assistia uma população marginalizada o outro direcionava
sua assistência a uma população que poderia pagar pelo atendimento.

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MENTAL NO PIAUÍ: desafios na atenção psicossocial. Dissertação (Mestrado em Políticas
Públicas) – Universidade Federal do Piauí. Teresina, 2016

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GARCIA, Tarcila. A Loucura Impressa: Uma Representação Social da Loucura na mídia


impressa, no contexto da crise da Dinsam (1978 – 1982). 2015. Dissertação (Mestrado em
História das Ciências e da Saúde). Fundação Oswaldo Cruz. Casa de Oswaldo Cruz, Rio de
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P á g i n a | 36

LIMA, Emanoel José Batista de. Cartografias do cuidado em Saúde Mental: o Piauí em Cena.
Tese (Doutorado em Psicologia Social) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São
Paulo, 2015.

LOPES, Felipe Da Cunha. PATOLÓGICOS E DELINQUENTES: As estratégias de controle


social da loucura em Teresina (1870-1930). 2011. Dissertação (Mestrado Acadêmico em
História) – Centro de Humanidades. Área de Concentração: História e Cultura, Universidade
Estadual do Ceará, Fortaleza.

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do autor. Teresina: oficina da palavra, 2011.p. 29

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Alienados a Construção do Sanatório Meduna em Teresina. Anais do XXVI Simpósio Nacional
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TUAN, Yi-Fu. Paisagens do medo. São Paulo: Unesp, 2006.

“Às intelectualidades femininas da terra!”: a constituição de um campo intelectual na


cidade de Natal no século XX
P á g i n a | 37

Maiara Juliana Gonçalves da Silva16

Vários foram os sociólogos que se debruçaram em métodos e teorias para explicar as


relações sociais na contemporaneidade. O sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930 - 2002)
compõe o grupo desses teóricos que buscaram compreender, de modo mais profundo, as
estruturas que explicariam as manifestações da vida social. Para tanto, Pierre Bourdieu buscou
compreender o mundo social a partir de conceitos fundamentais, tais como: espaço social,
campos, capitais e habitus. No presente estudo de caso, utilizaremos esses conceitos a fim de
analisar a composição de uma intelectualidade feminina na cidade de Natal, no início do século
XX.
Desse modo, o objetivo do presenteestudo consiste em analisar a formação de uma
intelectualidade feminina potiguar na década de 1910, enfatizando a trajetória de vida de duas
representantes desse meio, a saber: as escritoras Palmyra Wanderley e Carolina Wanderley. O
estudo de caso está divido em três momentos: no primeiro deles teceremos algumas
considerações sobre o campo intelectual potiguar; no segundo, analisaremos os habitus de
classe produzidos e reproduzidos nas trajetórias de Palmyra e Carolina Wanderley, enfatizando
suas experiências familiares e escolares; e, por fim, no terceiro momento, discutiremos acerca
do vínculo do espaço social abstrato com o espaço físico da capital do Rio Grande do Norte.
Ainda que não seja possível comparar as atividades intelectuais da vida social potiguar
com a vida social francesa, estudada por Pierre Bourdieu, ao analisar a sociedade francesa nos
anos de 1970, Bourdieu se dedicou a “descobrir as estruturas enterradas de maneiras mais
profundas nos diversos mundos sociais que compõe o universo societário” (BOURDIEU, 1989,
p.7), bem como formulou considerações sobre os mecanismos que asseguram a reprodução e a
transformação desse universo. Ao elaborar uma análise sobre esse universo societário, o
sociólogo identificou que, se por um lado, a perspectiva do objetivismo tornaria o ator
individual irrelevante para a explicação sociológica, fazendo predominar as estruturas sociais,
por outro, a perspectiva do subjetivismo conceberia as estruturas sociais como produto
condicionado pelas vontades, pelos desejos e pelas condutas individuais geradas por intenções
subjetivas.

16
Maiara Juliana Gonçalves da Silva é aluna de doutorado do Programa de Pós-graduação de História da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Atualmente, Maiara Gonçalves desenvolve a pesquisa
sobre as lutas políticas e sociais de mulheres na imprensa potiguar (1914 - 1934). E-mail: maiarajgs@gmail.com
P á g i n a | 38

Subjetivismo e objetivismo são conceitos centrais na Sociologia, levantando debates


pertinentes no interior do campo científico sociológico17. Pierre Bourdieu buscou resolver esse
embate propondo a transcendência da dicotomia subjetivismo/objetivismo, pretendendo, assim,
fugir das limitações existentes nos enfoques sociológicos, procurando um modo de integrar as
ferramentas analíticas usadas pelo subjetivismo e pelo objetivismo. Sendo assim, a primeira
etapa da análise sociológica poderia ser desenvolvida em uma perspectiva objetivista, na qual o
universo societário seria vislumbrado como uma configuração social total, coletiva, muito embora
ela não seja estática, já que essa configuração é mantida em movimento histórico pelas ações dos
agentes que nela estão imersos. Considerando que tais ações não são mecânicas, mas condutas
orientadas por interesses e por habilidades práticas, o momento subjetivista do inquérito
sociológico procuraria, então, acessar as subjetividades individuais para mostrar como operam
tais interesses e habilidades dos agentes sociais.
A partir das considerações bourdiesianas, as estruturas profundas que compõe o mundo
social e que afetam a conduta dos indivíduos não operam exclusivamente sobre eles a partir de
fora, de uma exterioridade, mas também através deles, de uma interioridade. A partir dessa
consideração, Pierre Bourdieu propôs uma perspectiva praxiológica 18, cujo cerne é a relação
dialética entre condutas individuais e as estruturas objetivas. Portanto, essa tentativa de
superação da dicotomia subjetivismo/objetivismo está na raiz do quadro teórico – e também
metodológico – elaborado por Pierre Bourdieu para analisar a vida social. Nesse sentido, a
escolha do uso da perspectiva bourdiesiana para esse estudo de caso justifica-se pelo objetivo
proposto, que é o de tentar pensar a relação entre os agentes sociais (indivíduos) e o universo
da sociedade (estruturas) situados espacialmente na cidade do Natal e localizados
temporalmente na década de 1910. Pretendemos pensar o nosso objeto de estudo a partir de
dois conceitos que, segundo Pierre Bourdieu, são capazes de articular o subjetivismo com o
objetivismo, a saber: os conceitos de campo, entendido como espaços objetivos de relações
entre agentes diferencialmente posicionados19, e de habitus, esquemas simbólicos

17
No que respeita ao debate objetivismo x subjetivismo, de um lado, encontram-se os que defendem que as
estruturas sociais condicionam as ações dos sujeitos, sendo suas ações fruto de determinantes externos, já do outro,
estão os que acreditam que os sujeitos são autônomos e suas ações são conscientes e intencionais, capaz de
formular sentidos dados pelos sujeitos.
18
A perspectiva praxiológica ou Teoria Prática, proposta por Pierre Bourdieu, é um modo de conhecimento e de
leitura do mundo social, em que as práticas das ações humanas são observáveis e observadas empiricamente, de
modo que pela observação pode-se apreender o jogo simbólico e de poder, seja individual ou em grupos.
(BOURDIEU, 1994ª, p. 46-81).
19
De acordo com Pierre Bourdieu, as posições sociais dos agentes dependem da distribuição – que é desigual –
dos recursos materiais (bens) e simbólicos (capitais). (BOURDIEU, 1989. p. 59-73.)
P á g i n a | 39

subjetivamente internalizados e que permite perceber como se organizam as atividades práticas


dos agentes sociais20.

O campo intelectual potiguar

O problema do espaço ocupa o eixo central da nossa pesquisa de doutorado,


desenvolvida no Programa de Pós-graduação em História, da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. Ao pensar a formação de um campo intelectual composto por mulheres na
cidade do Natal, é possível traçar um diálogo a partir da perspectiva teórica de espaço social
explorada pelo sociólogo Pierre Bourdieu. Segundo Bourdieu, a noção de espaço social é
entendida como “conjunto de posições distintas e coexistentes, exteriores umas às outras,
definidas umas em relação às outras por sua exterioridade mútua e por relações de proximidade,
de vizinhança ou distanciamento, e, também, por relações de ordem, como acima, abaixo e
entre” (BOURDIEU, 2011, p.18-19). Para o sociólogo, a sociedade pode ser entendida como
um espaço, que seria uma realidade invisível, onde estão organizados os indivíduos e suas
práticas (BOURDIEU, 2011, p. 24). Nessa lógica, os indivíduos são nomeados de agentes
sociais, pois se refere àqueles que agem, àqueles que se constituem a partir de uma bagagem, a
partir da incorporação desigual de estruturas sociais (estruturas de disposições). Por fim, esses
agentes encontram-se distribuídos nesse espaço, formando uma estrutura em que essas posições
sociais estão justapostas.
Interessa-nos aqui a lógica relacional que Pierre Bourdieu empreende no campo
intelectual, inserido no que o autor identifica como espaço social. O campo intelectual consiste
no espaço estruturado de posições dentro do espaço social, em que os agentes sociais são
aglutinados a partir do compartilhamento de interesses comuns (BOURDIEU, 1982, p.184). Na
análise da vida social na cidade do Natal, no início do século XX, percebemos a organização
de um campo que reuniu indivíduos que partilhavam interesses em comum, entre eles o
desenvolvimento de uma atividade intelectual. Em fins do século XIX e nas primeiras décadas
do século XX, Natal vivenciou um período de transformações materiais e culturais que
delineavam um novo modelo de organização do espaço urbano. Segundo o historiador
Raimundo Arrais, ainda que a cidade de Natal fosse classificada como uma capital sediada em
uma cidade pequena, a urbe não se mostrou indiferente às ideias que circulavam no mundo

20
Tais esquemas simbólicos tomariam a forma de disposições corporais e mentais, como, por exemplo, os modos
socialmente adquiridos de pensar, de agir, de interpretar, de sentir, de classificar, entre outros.
P á g i n a | 40

(ARRAIS et. all, 2008, p. 27). A capital norte-rio-grandense foi aos poucos assimilando o
espírito de vida moderna, do novo e de progresso.
No Brasil, o discurso do progresso, desenvolvido com o regime republicano, expôs a
urgência de equiparação do país aos modelos de civilização europeus, difundiu-se no país a
necessidade de um rumo à civilização. Parece-nos que a relativa autonomia outorgada pela
República aos estados no Brasil se refletiu no terreno literário nacional, incentivando a
constituição de associações e de movimentos culturais no país (BROCA, 2008, p.32). Logo, as
organizações culturais multiplicaram-se nos demais estados brasileiros. Portanto, esse desejo
de progresso e de civilização não passou indiferentemente em Natal, sendo capaz de estimular
as transformações sociais e físicas empreendidas na urbe dos governos republicanos.
Juntamente com as mudanças sofridas na cidade, Natal também desenvolveu um movimento
intelectual durante as décadas iniciais do século XX, mas o que viria a ser esse grupo de
intelectuais emergentes em solo potiguar?
Longe de ser uma noção consensualmente bem definida, o termo intelectual ganhou
diferentes significados nas diversas elaborações que se propuseram a abordar a sua história.
Devido ao sentido polimorfo do termo intelectual, optamos por restringir o conceito
trabalhando com o próprio sentido instituído pelos agentes potiguares, que autoproclamavam a
sua condição: intelectuais da terra norte-rio-grandense. Nesse estudo de caso, os intelectuais
potiguares são entendidos como indivíduos que se ocupavam da produção literária na cidade,
escrevendo crônicas, poesias, romances, contos, peças de teatros, estudos científicos, críticas,
ensaios monográficos e demais gêneros. Desse modo, nosso entendimento do termo intelectuais
acompanha a noção elaborada por Jean François Sirinelli, que identifica intelectuais enquanto
agentes produtores, mediadores e/ou criadores culturais (SIRINELLI, 2011, p. 231).
O intelectual potiguar do início do século XX é uma figura limite, nele inclui jornalistas,
políticos, comerciantes, médicos, professores, professoras, advogados, entre outros ofícios.
Durante o primeiro período republicano, as letras estavam longe de constituírem-se como uma
profissão, o que significa dizer que a literatura era uma atividade desprovida de ganhos
financeiros. Logo, a sobrevivência dos agentes intelectuais da cidade, que produziam literatura,
dependia das outras profissões mencionadas. Ressaltamos que as identificações de intelectuais
atribuídas aqui não se restringiram apenas aos escritores e escritoras que chegaram a publicar
livros, mas também àqueles que tiveram alguma experiência literária em jornais e em revistas 21,

21
Destacamos alguns periódicos que publicizaram as produções literárias dos intelectuais potiguares: A República,
o principal porta-voz do governo, o jornal oficial do estado do Rio Grande do Norte; Diário do Natal, fundado por
Elias Souto em 1895, funcionou até 1908 e fazia oposição ao jornal A República; A Notícia, fundado em 1921 por
P á g i n a | 41

já que a maior parte da produção literária do período está dispersa nos periódicos que
circulavam no estado. Segundo Maiara Gonçalves (2014), a literatura potiguar nasceu nesses Comentado [RB1]: Maiara, não sei se isso é de área, mas
mesmo sendo um texto seu, não é obrigatório colocar a
jornais e nessas revistas e permaneceu vinculada a eles, uma vez que até mesmo as obras referência? Tipo entre parênteses Maiara Gonçalves (2020)

literárias de alguns intelectuais potiguares passaram pelo jornal antes de tornarem-se brochuras
22
. Desse modo, os periódicos serviram de suportes materiais das produções literárias elaboradas
pelos intelectuais na cidade do Natal, no início do século XX.
Sob a égide da intelectualidade potiguar estavam nomes como: Henrique Castriciano,
Eloy de Souza, Auta de Souza, Isabel Gondim, Antônio Melo e Souza, Pedro Velho
Albuquerque Maranhão, Alberto Maranhão, Aurélio Pinheiro, Pedro Alcântara Pessoa de Melo,
Deolindo Lima, José Emerenciano Gothardo Neto, Barôncio Guerra, Cornélio Leite, os irmãos
Raul e Sebastião Fernandes, Antônio Soares, Galdino Lima, Palmyra Wanderley, Carolina
Wanderley, Maria Carolina Wanderley (Sinhazinha Wanderley), Ana Guimarães Wanderley,
Henrique Castriciano, Antônio Marinho, Ezequiel Wanderley, Luís Lôbo, Francisco Palma,
Celestino Wanderley, Urbano Hermilio, Manoel Dantas, Augusto Tavares de Lyra, Ferreira
Itajubá, Teófilo Marinho, Hervêncio Marinho, Elias Souto Júnior, Lourival Açucena, Anna
Lima, Sinhazinha Wanderley, Stella Gonçalves, Edgar Barbosa, Aderbal França, Clementino
Câmara, e tantos outros e outras (SILVA 2014, p. 76). Esses diversos nomes mencionados são
aglutinados no campo intelectual potiguar por meio de princípios de afinidades, que permite
traçarmos tanto proximidades, se relacionarmos os agentes sociais desse campo entre si, como
diferenciações, se relacionarmos igualmente esses agentes entre si ou se estabelecermos
relações entre os agentes sociais do campo intelectual e de outros campos múltiplos que
compõem o espaço social.
Cada elemento do campo é um agente que comunga de interesses e capitais similares,
mesmo que cada campo possua as suas características, suas regras e seus capitais específicos,
(BOURDIEU, 2010, p. 135). Segundo Jean François Sirinelli (2011, p. 237), os intelectuais
ocupam, indiscutivelmente, um lugar à parte, são uma classe distinta. Eles “não pertencem às
massas por comporem um pequeno grupo estreito” (SIRINELLI, 2011, p. 239), o que sugeriria

Kerginaldo Cavalcanti; A Imprensa, fundado em 1917 pelo coronel Francisco Cascudo; a Revista do Rio Grande
do Norte, produzida em 1899 pelo grupo literário Grêmio Polymáthico; a revista Oásis – Le Monde Marche,
produzida em 1894; entre outros. (MELO, 1987, p.45).
22
Este foi o caso, por exemplo, do poemeto Mãe, de Henrique Castriciano de Souza. Outras publicações não
ultrapassaram as páginas dos periódicos, mas ainda assim, por intermédio dos periódicos, tornaram-se públicas. É
provável que o pequeno número de obras que ficaram nos jornais possua alguma relação com a dificuldade de
publicação existente na cidade do Natal. (SILVA, 2014, p.10-11)
P á g i n a | 42

um hipotético pertencimento dos intelectuais às elites23. No que respeita ao conceito de classes,


o entendimento elaborado por Pierre Bourdieu se diferencia do conceito marxista, uma vez que,
para o sociólogo, não é só o capital econômico que está no princípio das desigualdades sociais,
mas também o capital cultural, cuja lógica de aquisição desse capital e de sua reprodução é
ainda mais difícil de ser decifrada do que a do capital econômico (BOURDIEU, 2011a, p. 98).
As classes sociais são teóricas, guardam a pretensão de existir, e “existem de algum modo em
estado virtual, partilhadas, mas não como um dado, mas como algo que se trata de fazer”
(BOURDIEU, 2011, p.27). Nessa lógica, as predileções estéticas, as opiniões expressas, os
bens que possuem, os gostos, os julgamentos e as preferências que aproximam esses
intelectuais, estão ligados a posições que esses agentes ocupam no espaço social, estão
conectadas a um habitus24 de classe que os distinguem de outros grupos da vida social potiguar.
Ao tratar desse campo intelectual, no que respeita ao capital econômico, podemos
considerar, por exemplo, a localização geográfica das moradias desses agentes na urbe
potiguar25 e as profissões liberais que, boa parte desses intelectuais, ocupavam na cidade.
Todavia, podemos conjecturar a existência de outros capitais categorizados por Pierre
Bourdieu, que vão além do capital econômico, como o capital político, considerando que alguns
indivíduos desse escopo literário estabeleceram relações de mecenato com o Estado,
interessados em suas projeções enquanto escritores e escritoras. Nesse cenário o capital cultural
também é bastante presente, obtido devido ao nível de instrução e de acesso às artes, aos
esportes e às conferencias literárias promovidas na cidade republicana de Natal. Assim, ao
discutir capital cultural, Bourdieu sinaliza que a dominação social moderna está baseada na
herança social – herança familiar – em que o saber é adquirido pela socialização na família,
reproduzindo assim uma cultura de classes nunca percebida enquanto tal. No entanto, se o
intuito fosse elaborar uma análise considerando todos os indivíduos citados acima, nos
estenderíamos muito por essas linhas. Por isso, a partir do próximo tópico, o nosso estudo de
caso enfatizará as trajetórias e a atuação de duas intelectuais que participaram do campo
intelectual potiguar: Palmyra Wanderley e Carolina Wanderley.

23
Segundo Jean François Sirinelli, durante certo tempo, os intelectuais deixaram de serem contemplados pelas
pesquisas no campo da História, uma vez que a historiografia recente experimentou um entusiasmo pelas massas,
lugar social aos quais esses intelectuais não podiam pretender pertencerem (SIRINELLI, 2011, p.239).
24
Pierre Bourdieu define habitus como aquilo que direciona as escolhas dos indivíduos. O habitus é uma forma
de condicionamento que cria um sistema de disposições duradouras para a ação, as práticas, as percepções, as
visões de mundo, as representações dos agentes sociais e que está intrinsecamente relacionada às condições
objetivas de existência desses agentes. (BOURDIEU, 2011a, p. 97)
25
As moradias desses escritores e escritoras estavam localizadas nos bairros da Cidade alta, da Cidade Nova e da
Ribeira (SILVA, 2014, p. 183).
P á g i n a | 43

A formação da intelectualidade feminina enquanto um habitus de classe

No ano de 1914, Palmyra Wanderley e Carolina Wanderley fundaram a revista Via


Láctea, o primeiro periódico impresso exclusivamente feminino da cidade do Natal26. Sobre as
características do periódico Via Láctea, observamos que: possuía papel tamanho ofício, era
impresso na Tipografia J. Pinto Comercial, possuía oito páginas com duas colunas cada, quase
não apresentava colunas fixas – o que pode indicar uma inconstância no que diz respeito às
publicações – e não possuía ilustrações, mas utilizava molduras em determinadas páginas, isso
a fim de delimitar os espaços das matérias que compunham a revista 27. O periódico era
mensalmente distribuído pela capital do Rio Grande do Norte e a forma de aquisição podia ser
mediante a compra de um número avulso, ao custo de 400 contos de réis, ou por meio da
assinatura estimada em 3 mil contos de réis para seis meses e em 1.500 contos de réis para uma
assinatura de três meses (PRAZERES, 1996. p. 32). As aquisições podiam ser realizadas no
endereço da redação do periódico situada na Rua Conceição, número 19 – do número 1 ao 4 –
e, posteriormente, na rua Vigário Bartolomeu – do número 5 ao 8. Ambos os endereços estavam
localizados no bairro da Cidade Alta. Ao todo circularam oito números da revista feminina,
entre novembro de 1914 e junho de 1915.
O primeiro número da Via Láctea foi publicado no dia 1º de novembro de 1914. As
intelectuais Palmyra Wanderley, Carolina Wanderley, Stella Gonçalves, Maria da Penha,
Joanita Gurgel, Anilda Vieira, Dulce Avelino e Stellita Melo28 formavam o grupo de redatoras
da revista. O corpo editorial traduz as sujeitas por trás da proposta do periódico. As mulheres
mencionadas eram professoras em grupos escolares (magistério em escolas primárias) na urbe Comentado [RB2]: Eu cortei porque a concordância estava
estranha, sei que a questão do grupo social aí é importante,
potiguar, ou seja, possuíam um certo capital social no meio em que estavam inseridas (SILVA, pois está relacionado às teorias, porém é possível
implicitamente identificar essa informação ao falar que eram
2015, p.3-4). A revista era dirigida por Palmyra Wanderley e Carolina Wanderley e o seu professoras em grupos escolares. Esse adendo que fiz foi
para tentar evidenciar essa informação que cortei, bem, mas
primeiro editorial foi intitulado “Como nasceu a Via Láctea”, as escritoras anunciavam o veja o que acha.
aparecimento do periódico dizendo: “Falamos às intelectualidades femininas da terra. A nossa
ideia será por todas muito bem acolhida” (VIA LÁCTEA, 1914, p. 4). O órgão literário deu
impulso significativo à carreira das duas jovens na vida intelectual potiguar. Palmyra e Carolina

26
Até então, na capital norte-rio-grandense, as intelectuais contribuíam para jornais e revistas em que a maioria
do corpo editorial e de redatores eram composto por homens. Para atestar a exclusividade do gênero, as editoras
estabeleciam como condição fundamental que as colaboradoras revelassem a identidade da autora ao corpo
editorial, embora a mesma quisesse se ocultar em sua publicação utilizando um pseudônimo.
27
A análise externa da fonte foi realizada pela autora desse artigo e foram usados os números de novembro de
1914 a junho de 1915.
28
A partir do número 5, verificamos que é acrescentado ao corpo editorial Cordélia Silva e Maria Carolina
Wanderley, apelida de Sinhazinha Wanderley.
P á g i n a | 44

escreviam publicamente para uma intelectualidade feminina a qual também pertenciam. As


jovens intelectuais compunham um grupo muito restrito dentro do campo intelectual potiguar,
uma vez que podemos identificar uma divisão sexual na atuação intelectual na imprensa
potiguar, que acabou gerando pequenos conflitos dentro desse campo.
No início do século XX, observamos a proliferação de jornais dirigidos por mulheres 29.
Esse movimento teve início no final do século XIX, todavia tratava-se de uma dezena de jornais
manuscritos que circulavam no Rio Grande do Norte30. Ainda que as condições fossem as mais
adversas possíveis, essas mulheres desejavam se fazer ouvir, divulgar as suas ideias, muito
embora esta divulgação ocorresse por meio de páginas manuscritas. Possivelmente, esta
profusão de jornais inspirou o aparecimento da revista impressa dirigida por Palmyra e Carolina
Wanderley. Os interesses da mulher, a partir da análise da Via Láctea, nos descortinam um
leque de temas que constam já no subtítulo que o periódico levava: “religião, arte, ciência e
letras”. De acordo com Constância Duarte, a diversidade da abrangência da revista refletia uma
espécie de hierarquia entre os tópicos que privilegiava desde a religião católica às discussões
no campo cultura (DUARTE, 1995, p. 29). O programa da revista revelou-se audacioso, por
tomar rumos diferentes e por questionar o modelo de mulher construído nas primeiras décadas
do século XX. A produção cultural midiática exclusiva das mulheres potiguares buscava
diferenciar-se dos temas publicados por homens, voltados ao público feminino. O que quer
dizer que a revista desprezou temas como, por exemplo, dicas culinárias, correio sentimental e
conselhos de beleza – temas atribuídos como “assunto de mulheres”.
O discurso do novo modelo de mulher “mãe-esposa-dona-de-casa” era respaldado na
ideia de uma natureza feminina que dotava a mulher, biologicamente, para desempenhar as
funções da esfera da vida privada, que se resumia em: gerar filhos, cuidar da casa e do seu
marido. A proposta da Via Láctea tão logo despertou a insatisfação de alguns intelectuais do
universo potiguar. Dois meses após o seu lançamento, em 08 de janeiro de 1915, o bacharel em
direito Eloy de Souza, sob o pseudônimo de Jacyntho Canela de Ferro, teceu algumas
considerações sobre o projeto de Palmyra, Carolina Wanderley e amigas: “tivesse eu a fortuna

29
Identificamos jornalzinhos produzidos quase que artesanalmente, a saber: O Lyrio, de Adelle de Oliveira de
Ceará-Mirim; O Batel, o qual colaborava Maria das Mercês, em Mossoró; A Esperança (1903), redigido por
Izaura Carrilho, Dolores Cavalcanti e outras; A Infância e A Distração (1909), produzidos na cidade de Caicó.
Esses dois últimos periódicos eram organizados pelas senhoras da alta sociedade caicoense. Ainda havia: Folha
Nova (1913), dirigido por Alexandrina Chaves na cidade de Macau; O Alphabeto (1917 – 1919), sob a direção de
Maria Antônia de Morais; A Salinésia (1926), criado por um grupo de jovens e apresentado oralmente no Teatro
Moderno na cidade de Macau (DIVA CUNHA E CONSTANCIA LIMA, 2018, p. 13).
30
A produção manuscrita, provavelmente, pode ser justificada pela precariedade no que diz respeito às oficinas
tipográficas instaladas no Rio Grande do Norte, pelo menos até a década de 1920, aliado às condições da vida
daquelas mulheres que residiam no interior do estado, afastadas do centro cultural potiguar.
P á g i n a | 45

de ter nascido mulher e a maior fortuna maior ainda de redigir a Via Láctea, o meu maior
empenho seria recomendar-me para fazer um excelente casamento, escrevendo coisas
interessantes sobre assuntos caseiros” (A REPÚBLICA, 1915, p. 2). O discurso de Eloy de
Souza pode representar um dos conflitos que se dava dentro do campo intelectual, uma vez que,
apesar da boa receptividade da revista de Palmyra e Carolina Wanderley no universo
jornalístico potiguar, os assuntos abordados no meio exclusivamente feminino incomodou os
intelectuais da época.
Há uma incorporação de signos presente neste discurso sobre o que é autorizado ser
escrito por uma mulher intelectual. Enquanto culinária, casamento, dicas de belezas são signos
que compõem um universo feminino, a ciência, a religião e a arte fariam parte do âmbito
masculino. Assim, a divisão sexual de conteúdos a serem produzidos entre a intelectualidade
reforçava a ideia de que se a mulher ocupa uma profissão extradoméstica – escrevendo para
uma revista, por exemplo – ainda assim, ela deve se ocupar de temas ligados ao espaço privado,
ao lar, ao seu ambiente, por excelência, doméstico. O campo intelectual potiguar estava longe
de ser pacífico e homogêneo. Ao mesmo tempo que intelectuais constituíram laços de
afetividade, também protagonizaram episódios de conflitos e de discordâncias. As disputas, as
práticas de hostilidades e as concorrências entre os intelectuais em Natal faz com que esse
campo possa ser lido como uma arena, um jogo cujos participantes estão posicionados em um
dado espaço e submetidos a determinadas regras.
No entanto, Palmyra e Carolina Wanderley circulavam pela urbe potiguar, dentro e fora
das páginas da imprensa e dos livros. Ambas intelectuais pertenciam a família Wanderley,
natural da cidade de Assú, que possuía importante atuação na história da capital do Rio Grande
do Norte. Historicamente, as origens da família estavam ligadas aos holandeses, uma vez que
os portadores do nome original “van der Ley”, da aldeia dos Ley, na Holanda, imigraram para
o Brasil na época da invasão dos povos holandeses31, como podemos observar no brasão abaixo
(WANDERLEY, 1966, p. 34) :

31
Walter Wanderley retrata que o primeiro Wanderley nascido no Brasil foi, em 1641, João Maurício Wanderley,
filho de Gaspar van der Ley e de Dona Maria Melo (WANDERLEY, 1966, p. 34)
P á g i n a | 46

Imagem nº 1: brasão da família Wanderley32

Fonte: Site http://www.flogao.com.br/familiawanderley/4828389

No Rio Grande do Norte, o primeiro membro da família a se destacar foi João Carlos
Wanderley (1811-1899). Ainda no período imperial, João Carlos Wanderley ocupou notáveis
cargos públicos na província, entre eles: chefe do partido liberal, deputado provincial, secretário
do governo, deputado geral, inspetor do Tesouro e vice-presidente de Província. Apesar dos
ilustres cargos, João Carlos Wanderley também se destacou em sua atuação na imprensa da
capital potiguar. Com o passar dos anos, a família Wanderley foi aumentando. João Carlos
Wanderley tratou de casar a sua filha, Francisca Carolina Wanderley, com Luiz Carlos Lins
Wanderley (1831-1890), responsável pela impressão do jornal A República, periódico do
partido republicano emergente no Rio Grande do Norte 33 (SILVA, 2014, p.157). Observemos
melhor essa configuração genealógica no quadro abaixo:

32
O brasão da família “Van deer ly” está disponível em: http://www.flogao.com.br/familiawanderley/4828389.
Acessado em: 19 jan 2021.
33
Ainda no ano de 1878, Luiz Carlos Lins Wanderley fundou a gazeta política Correio do Natal, com o objetivo
de divulgar as ideias do Partido Liberal na capital norte-rio-grandense. Logo, Luiz Carlos Wanderley destacou-se
na prematura atividade tipográfica na cidade. Luiz Carlos Lins Wanderley e João Carlos Wanderley trabalhavam
juntos nas redações do Correio do Natal. Foi por meio da notabilidade de sua oficina tipográfica, que Luiz Carlos
Wanderley iniciou a sua relação com o jovem Pedro Velho. Em 1º de julho de 1889, João Avelino e Pedro Velho
de Albuquerque Maranhão encomendaram a impressão do jornal A Republica, periódico do partido republicano
emergente no Rio Grande do Norte, à Luiz Carlos Wanderley. Posteriormente, nos meses prestes à instalação
definitiva do regime republicano no estado, o jornal Correio do Natal divulgou, a pedido de Pedro Velho, um
boletim informando ao povo que a República havia sido proclamada. Posteriormente, Luiz Carlos Wanderley
vendeu as máquinas que compunham a sua oficina tipográfica para Pedro Velho e Pedro Avelino, o que
possibilitou o surgimento da tipografia do jornal oficial do governo republicano, A República. (SILVA, 2014,
p.157)
P á g i n a | 47

Quadro nº 1: Esquema Genealógico da Família Wanderley34

Fonte: O esquema foi produzido pela autora deste artigo por meio do software GenoPro.

Luiz Carlos Wanderley foi o primeiro norte-rio-grandense a se formar em Medicina,


diplomando-se pela Faculdade de Medicina na Bahia em 1857. Além dos serviços médicos,
Luiz Carlos Wanderley também atuou nas instituições públicas, tendo sido professor do colégio
secundarista Atheneu e diretor da Instrução Pública (CARDOSO, 2000, p. 489). Luiz Carlos
Wanderley atuou nos campos político e literário. Na esfera política, o médico ocupou os cargos
de deputado provincial de várias legislaturas e foi vice-presidente de província (1886). No que
diz respeito à esfera intelectual, Luiz Carlos escreveu em jornais da Bahia, de Assu e de Natal
(Correio do Natal e A República), publicou o romance Mistérios de um homem rico (1883) e o Comentado [RB3]: Fiquei na dúvida se realmente tem
esse acento, pois como é o nome de um jornal, pode ser que
livro Impressões de uma viagem, por fim, escreveu peças dramáticas e comédias. Em 25 de na época não tinha acento, se for isso, deixe sem acento, do
contrário, mantenha o acento.
julho de1858, o jovem médico casou-se, em primeiras núpcias, com Francisca Carolina
Wanderley. Do casamento gerou os frutos: Luiz Carlos Wanderley Filho, Manoel Segundo
Wanderley, Celestino Wanderley, Ezequiel Wanderley. O casamento proveitoso entre Luiz
Carlos Lins Wanderley e Francisca Carolina Wanderley gerou quatro intelectuais de importante
atuação no campo literário potiguar: Manoel Segundo, Ezequiel Wanderley, Celestino
Wanderley e, ainda, as netas Maria Carolina Wanderley e Palmyra Wanderley (WANDERLEY,
1922, p. 41).

34
O esquema foi produzido pela autora a partir de informações retiradas das biografias presentes nas obras: 400
nomes de Natal , de Rejane Cardoso (Org.), e Poetas do Rio Grande do Norte, de Ezequiel Wanderley. A estrutura
da árvore genealogia foi produzida por meio do software GenoPro 2011.
P á g i n a | 48

A importância da atuação na esfera estadual da família Wanderley refletiu-se nas


“generosidades” do mecenato do Estado, que financiava, a partir da lei número 145/1900, a
publicação das obras literárias dos “filhos do Rio Grande do Norte” (A REPÚBLICA, 1900,
p.1). A lei estabelecida no governo de Alberto Maranhão e pelo secretário Henrique Castriciano
de Souza, beneficiou dois dos filhos e duas das netas de Luiz Carlos Lins Wanderley. O livro
de Ezequiel Wanderley foi designado à publicação graças à indicação da comissão presidida
pelo intelectual e médico Januário Cicco. A comissão ainda contou com a participação de
Nestor Lima, Sebastião Fernandes, Adaucto da Câmara, Francisco Ivo Filho e Luís da Câmara
Cascudo, que deveria dar parecer a respeito da publicação da obra (A REPÚBLICA, 1921, p.3).
Desse modo, reunidos no escritório da redação do jornal A Imprensa, a comissão representativa
da Lei 145/1900 decidiu que a antologia Poetas do Rio Grande do Norte deveria ser
imediatamente publicada.
Estamos falando de uma decisão que foi tomada no ano de 1921, isto é, um ano antes
da comemoração do Centenário da Independência do Brasil. A urgência em definir-se os poetas
norte-rio-grandenses e a importância social de Ezequiel Wanderley contribuiu para o voto
favorável da publicação da obra. Além disso, Ezequiel Wanderley (1871-1933) também ocupou
cargos específicos na administração do estado: administrador de Mesa de Renda, na Tesouraria
do Estado, foi procurador fiscal, diretor do Banco de Natal e presidente do Natal Club. Outro
exemplo trata-se de Manoel Segundo Wanderley (1860-1909) que se diplomou na Faculdade
de medicina da Bahia, na qual defendeu a tese intitulada Doenças Perniciosas no ano de 1866.
Ao retornar dos estudos à capital norte-rio-grandense, o literato médico ocupou cargos
relacionados diretamente com a sua profissão. Manoel, Segundo Wanderley, foi Inspetor da
Saúde do Porto, médico adjunto e diretor do Hospital da Caridade e Inspetor de Higiene Pública
(SILVA, 2014, p.117). No ano de 1910, a lei nº 145/1900 financiou a publicação da obra
póstumas de Manoel Segundo Wanderley, intitulada Livro de Versos.
As mulheres da família Wanderley também foram contempladas pelo financiamento do
Estado. Anna Lima Guimarães Wanderley, esposa de Celestino Pimentel Wanderley, teve seu
livro, Verbenas (1904), financiado pela lei 145 ainda durante a década em que esta foi
sancionada. A jovem escritora, além de ser esposa do intelectual Celestino Wanderley, era filha
do coronel Galdino dos Santos Lima, indivíduo que fazia parte da organização familiar
Albuquerque Maranhão35. É importante ressaltarmos que a organização familiar Albuquerque

Trabalhamos com a ideia de “organização familiar” a partir das considerações elaboradas pelo historiador Renato
35

Amado Peixoto. Para Peixoto, o conceito de organização familiar se torna mais eficiente para trabalhar os
P á g i n a | 49

Maranhão era composta não apenas pelo núcleo familiar conectado por relações de parentescos,
mas também por indivíduos que se aproximavam do grupo familiar constituindo alianças
estratégicas e trocas políticas. Os sistemas de casamentos obedeciam igualmente a esses
interesses de articulações, como podemos observar no enlace de Anna Guimarães Lima com o
Celestino Pimentel Wanderley. Sendo assim, as articulações com o Estado foram fundamentais
para fazer-se reconhecer como escritor “de qualidade” os “filhos” da terra norte-rio-grandense
na cidade do Natal. Na lei 145/1900, a premiação das obras literárias para publicação era
decidida por uma comissão avaliadora composta por um membro da Instrução Pública e alguns
homens de letras designados pelo governador (SOUZA, 2008, p. 160)36. Isso indica que a
faculdade de dizer “quem era escritor”, de definir a “qualidade de uma obra literária” dependia
do Estado, dos homens que representavam esta instituição.
Como podemos observar no quadro nº1, Palmyra e Carolina Wanderley eram primas,
possuíam familiares que atuavam no movimento intelectual potiguar e, por fim, pareciam ter
herdado o gosto pela atuação nas letras e o capital político que a família Wanderley possuía no
que tange às articulações com o grupo político Albuquerque Maranhão, liderado por Pedro
Velho. A mesma lei que beneficiou a publicação dos livros de seus familiares, as agraciou com
dupla publicação na década de 1910: a obra Esmeraldas (1918), cuja autoria pertence a poetisa
Palmyra Wanderley e os versos Alma em Versos (1919), de Carolina Wanderley. De acordo
com Pierre Bourdieu, o gosto possui relação estreita com a classe social, uma vez que o
sociólogo pensa os julgamentos de gostos e as preferências como características socialmente
construídas e capaz de produzir e reproduzir distinções entre os indivíduos e classes sociais
(BOURDIEU, 2011a, p. 99-100). Nessa lógica, as práticas culturais estão ligadas ao nível de
instrução e submetidas ao volume global de capital que pode ser acumulado por meio da
herança familiar.
Afirma-se, portanto, a “dependência da disposição estética em relação às condições
materiais de existências, legada pelo passado ou transmitida pelo presente através das condições
econômicas e sociais da instituição familiar” (BOURDIEU, 2011a, p.106). Desse modo,
percebemos a transmissão de um capital cultural, assim como de um capital político, inculcado
na família, relacionada intrinsecamente à origem social da família Wanderley. Aliada a família,
a escola também comporia uma instituição que fomentaria as práticas culturais já presentes na
herança familiar. A escola e a família como espaços sociais, produzem competências e,

problemas peculiares à história política do Rio Grande do Norte que o conceito, já naturalizado, de oligarquia,
uma vez que nos permite apontar as peculiaridades das estruturas espaciais e dos arranjos de poder.
36
P á g i n a | 50

contribuem assim com o que, na obra A Distinção, Pierre Bourdieu identifica como sendo
julgamento de “gosto e estético”. A escola, principalmente, ao certificar uma determinada
formação a faz de forma regulamentada e institucionalizada. Ao traçarmos a experiência escolar
individual nas trajetórias de Palmyra Wanderley e de Carolina Wanderley, identificamos que
ambas receberam uma educação tutelada por instituições católicas de ensino.
Palmyra Guimarães Wanderley nasceu no dia 6 de agosto de 1894 e logo nos primeiros
anos da década de 1900, estudou no Colégio Imaculada Conceição (CIC) entre os anos de 1902
a 1909. A instituição, fundada em 1902 por solicitação do bispo da Paraíba Dom Adauto
Aurélio de Miranda Rodrigues, possuía uma orientação de ensino cristão e era destinada
exclusivamente ao público feminino até o ano de 1972. O governador do estado, Alberto
Maranhão, cedeu um prédio localizado na avenida Rio Branco, no bairro Cidade Alta, onde foi
instalada a instituição escolar. Após o ano de 1909, Palmyra Wanderley viajou com a família
para a cidade de Recife, onde deu prosseguimento aos seus estudos em uma instituição
igualmente voltada para uma educação feminina e religiosa: o Instituto das Damas de Instrução
Cristã, onde estudou até o ano de 1914. De acordo com Luís da Câmara Cascudo, nesse período,
a cidade do Natal possuía duas escolas destinadas à educação feminina: o mencionado CIC e o
colégio Nossa Senhora das Neves, ambos de orientação católica. (CASCUDO, 1989, p. 78).
Carolina Wanderley (1891 – 1975) também passou pelas cadeiras do ensino primário
do Colégio Imaculada Conceição (CIC) na primeira década de 1910. Posteriormente, Carolina
Wanderley se formou na Escola Normal de Natal, concluindo o seu magistério, que possibilitou
a sua atuação como professora no Grupo Escolar Tenente coronel José Correia, situado no
município de Assú, e no Grupo Escolar Frei Miguelinho, situado na cidade do Natal. As aulas,
para as mulheres, eram pautadas no ensino da leitura, da escrita e das noções básicas da
matemática, complementadas, geralmente, pelo aprendizado do piano e do francês que, na
maior parte dos casos, era ministrado em suas próprias casas por professoras particulares, ou
em escolas religiosas (DUARTE, 1995, p. 25). Portanto, nas trajetórias de Palmyra e de
Carolina Wanderley, o diploma escolar é tido como um marcador de um elevado poder
simbólico que transforma a escola em uma instancia sine qua non da manutenção da ordem
social, uma vez que a aquisição de saberes escolares mencionados, coroados com um diploma,
fixa as disposições dominantes e ajuda a permanecer no poder uma classe que já é dominante
e, ao mesmo tempo, a separa dos menos instruídos(as).
Esses habitus de vida são representados pelas práticas socialmente percebidas,
classificáveis e reproduzidas, posto que ao serem legitimados são reflexos dos capitais herdados
da família, numa relação estreita com o capital transmitido pela escola (BOURDIEU, 2007, p.
P á g i n a | 51

27). Sendo assim, objetivando conservar seus habitus, as classes sociais empreenderiam
constantes movimentos de disputas, o que Pierre Bourdieu categoriza como movimentos de
desclassificação e de reclassificação. Consequentemente, a luta de classes e frações de classes
na concepção bourdiesiana objetivaria o controle do capital simbólico formado pelo conjunto
de símbolos que permitem situar os agentes no espaço social, possibilitando assim que as
classes dominantes sigam legitimando uma dominação social que se dá no espaço abstrato,
como também no espaço físico.

Vinculando o espaço social ao espaço físico

Em Effets de lieu, publicado em La misère du monde (1991)37, Pierre Bourdieu


identificou os possíveis vínculos existentes entre o espaço social e o espaço físico. Segundo o
sociólogo, o primeiro espaço se retraduziria no segundo, sob a forma de um determinado arranjo
distributivo de agentes e propriedades (BOURDIEU, 1997, p. 2), constituindo o que o
intelectual chama de espaço social reificado ou espaço físico apropriado. Considerando que
todo corpo possui um lugar, está situado, tem uma localização ou, relacionalmente, possuem
uma posição, o lugar ocupado por um agente no espaço físico apropriado constitui excelente
indicador de sua posição no espaço social. Em outras palavras, o espaço físico não é o espaço
social, mas sim uma estrutura social em estado objetivado, ou seja, fisicamente realizado, que
funciona como uma espécie de metáfora espontânea do espaço social.
Para Pierre Bourdieu, os lugares como, por exemplo, igrejas, escolas, lugares públicos
e casas retraduziriam, e ainda retraduzem, as estruturas de divisões sociais objetivadas no
espaço físico (BOURDIEU, 1997, p.6). Ao longo do desenvolvimento deste estudo de caso,
podemos observar isso, principalmente, no tocante as instruções de Palmyra e Carolina
Wanderley em instituições voltadas exclusivamente para um público feminino e ao pequeno
conflito travado na imprensa sobre o conteúdo publicado pelas intelectuais potiguares na revista
Via Láctea. A vida social das intelectuais, que se mostrou intensa, acompanhou as mudanças
na topografia da cidade de Natal. No início do século XX, os espaços públicos fervilhavam na Comentado [RB4]: Campo Grande também é conhecida
como cidade do Natal, a mudança tira essa ambiguidade
capital do Rio Grande do Norte tornando-se verdadeiros itinerários percorridos pelos para um leitor menos avisado.

intelectuais da cidade. Cafés, bilhares, salões, conferências, redações de jornais e tipografias


são exemplos de espaços nos quais os intelectuais potiguares trocavam experiências,

37
O texto foi traduzido para português no ano de 1997, portanto, trabalharemos com a versão em português.
P á g i n a | 52

elaboravam, discutiam, divulgavam e faziam circular suas ideias, bem como forjavam a
formação de uma identidade de grupo, a partir das redes e das relações sociais ora construídas,
ora conservadas nesses ambientes de sociabilidade (SILVA, 2014, p. 211). Para além desses
espaços mencionados, elencamos um ambiente específico, frequentado constantemente pelas
primas da família Wanderley, para analisar a dinâmica do ajuntamento durável, no interior do
mesmo espaço, de agentes que se assemelhavam naquilo em que eram diferentes da grande
maioria e que as permitiam participar da vida social potiguar: o Natal Club.
O Natal Club, fundado em 22 de junho de 1906, serviu de abrigo a encontros dos
intelectuais da cidade por mais de uma década. O clube foi instalado na Rua 21 de Março,
número 8, no bairro da Cidade Alta, local onde funcionava a então sede do Club Carlos Gomes 38
(ARRAIS et. All., 2008, p.140-141). Posteriormente, o clube teve que mudar a sua sede para a
Avenida Rio Branco, uma das principais ruas da cidade.
A sociabilidade dentro do clube ia aquém da promoção de bailes dançantes na cidade
do Natal. O Natal Club constituiu-se como um importante ambiente que colaborou para a
dinamização da vida intelectual no espaço urbano. Na edificação localizada na Avenida Rio
Branco, os agentes intelectuais reuniram-se, conversavam e promoveram o culto à literatura.
Em meio aos festejos elaborados pelo clube, a instituição propunha uma “Hora literária”, ou
seja, um evento em que as festas no clube dedicavam um instante à literatura local. O momento
literário era promovido pelos sócios do clube a fim de proporcionar, aos participantes, um
momento de leitura, declamações de poemas e apreciações das produções literárias com a
presença de alguns dos escritores do estado.
Identificamos a presença de Palmyra Wanderley e Carolina Wanderley nos eventos da
“Hora literária” realizados em um clube que só aceitava homens como seus sócios. O Natal
Club era uma associação fechada a um número específico de sócios, assim que frequentá-lo era
privilégio de poucos, uma vez que o clube “estava aberto apenas a pessoas conceituadas, de
posição social definida”. As candidaturas, para quem desejava ser sócio, eram examinadas por
uma Assembleia Geral e, caso fosse aceito, o sócio deveria contribuir, mensalmente, com o
valor de cinco mil réis, “além do pagamento inicial em joia, no valor de vinte e cinco mil réis”
(ESTATUTO do Natal-Club, 1909, p.3). Em 1917, no 11º aniversário do Natal Club, foi
anunciado nas páginas do Jornal A Republica a presença das: “as maviosas poetisas Palmyra e

38
O Club Carlos Gomes respondia aos apelos de uma sociedade que ansiava por um lugar em que pudesse ser
promovidos reuniões sociais e bailes dançantes. No ano de 1893, o Carlos Gomes agitava a vida natalense
promovendo um salão que continha bilhar, sala de palestras, uma banda de música e uma sala de espera destinada
às famílias da capital potiguar.
P á g i n a | 53

Carolina Wanderley” ao lado de outros nomes representativos do universo literário potiguar:


Galdino Lima, Ezequiel Wanderley, Ponciano Barbosa e Moysés Soares (A REPÚBLICA,
1917, p.2).
Considerando a exclusividade de acesso ao público masculino, que marcou inicialmente
a dinâmica Natal Club e o alto valor empenhado para obter a associação do clube, sob a luz da
discussão de Pierre Bourdieu, podemos conjecturar que a aquisição ao capital – econômico e
cultural, nesse caso – permite manter distante pessoas e coisas indesejáveis, ao mesmo tempo
em que pode permitir a aproximação de pessoas e coisas desejáveis. Aquelas que são Comentado [RB5]: Eu modalizei pois o aproximar não
estava claro a quem.
desprovidos desse capital são mantidos a distância, seja ela simbólica ou física, como no caso
do Natal Club.
As primas Palmyra e Carolina Wanderley participavam dos eventos realizados em
ambientes potiguares considerados distintos, devido às suas condições de existência e às
relações de parentesco. Ezequiel Wanderley, tio das meninas, era sócio do Natal Club desde
1906 e Moysés Soares, noivo de Palmyra Wanderley, era um dos sócios fundadores do clube,
ou seja, havia relações de proximidade com o grupo político de Albuquerque Maranhão devido
ao capital da família Wanderley. Além disso, vale observar a notoriedade da qual elas gozavam
no meio intelectual, uma vez que suas produções já circulavam no âmbito social potiguar. Todas
essas condições de existência estão conectadas uma a outra. Portanto, o Natal Club excluía,
juridicamente em seu estatuto ou privava de fato, todos aqueles que não apresentavam as
propriedades desejadas ou que apresentavam uma das propriedades indesejáveis naquele
ambiente, o que nos leva a presumir que as diferenças no espaço físico ribombam os efeitos da
distância estruturada no espaço social.
A partir desse estudo de caso, concluímos que os conceitos de Pierre Bourdieu (habitus,
campo, espaço social e capitais) possibilitam estabelecermos relações entre os
condicionamentos sociais exteriores e as subjetividades dos agentes sociais, a fim de tentarmos
explicar a profunda dinâmica da composição de uma intelectualidade feminina potiguar no
início de 1910. Se a ausência de capital acorrenta os agentes sociais a um lugar, inversamente,
a posse do capital garante a proximidade em relação aos bens raros e a quase ubiquidade que
torna possível tanto o domínio econômico como o domínio simbólico (BOURDIEU, 2011a,
p.99). Logo, o uso dos bens materiais e simbólicos, o gosto pelas letras, a atuação na escrita de
poesias e de artigos para jornais, produzidos e reproduzidos por Palmyra e Carolina Wanderley,
classifica-as e aproxima-as daqueles que experimentam determinados bens e,
concomitantemente, as distinguem daqueles que não os possuem. Desse modo, as
P á g i n a | 54

considerações bourdiesianas inspiram um modelo de compreensão dos mecanismos sociais e


culturais de um determinado universo societário.

Referências

Fontes:

Jornal A República (1915, 1917, 1921)

Via Láctea (Natal, 1914- 1915) – edição fac similar.


ESTATUTO do Natal-Club. Natal/RN: Typografia d’A República, 1909.

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WANDERLEY, Walter. Família Wanderley – história e genealogia. Editora Pongetti, 1966
P á g i n a | 56

Entre o apego e a aversão: experiências com espaços e lugares na escrita de Mauro Mota

Maria Samara da Silva 39

1 INTRODUÇÃO

Este estudo tem por objetivo discutir as atitudes e valores espaciais presentes em uma
parte da obra de Mauro Ramos da Mota Albuquerque Filho, escritor de variada carreira
intelectual. Esse pernambucano, nasceu em 1911 no Recife passando sua infância no município
de Nazaré da Mata localizado na região da Zona da Mata pernambucana. Sua educação formal
começa na escola Dom Vieira, ainda em Nazaré da Mata, e segue no Colégio Salesiano e
Ginásio ambos no Recife. Cursa direito na Faculdade de Direito do Recife onde se forma em
1937, porém pouco exerce a profissão. Mota casou-se pela primeira vez em 1939, com
Hermantine Soares Cortez, com quem teve dois filhos: Roberto e Luciana. Ficou viúvo em 1947
casando-se novamente com Marly Mota com quem teve mais quatro filhos: Maurício, Sérgio,
Eduardo e Teresa Alexandrina (AMARAL,2018). Mauro Mota faleceu no Recife em 22 de
novembro de 1984.
A participação de Mota nos jornais pernambucanos começa nos anos 1920 nos
periódicos Timbaúba Jornal da cidade de Timbaúba e A voz de Nazareth em Nazaré da Mata.
Em 1941 começa a colaborar com o Diário de Pernambuco (AMARAL, 2018). Foi neste que
editou um suplemento literário, espaço dedicado a temas variados, entre eles a discussão sobre
obras literárias. Foi a partir deste instrumento que Mota entrou em contato com escritores como:
João Cabral de Melo Neto, José Lins do Rêgo, Gilberto Freyre, Álvaro Lins e Carlos Pena Filho
(AMARAL, 2018).
Como escritor, Mauro Mota foi múltiplo, escreveu: poesia, crônica, romance, ensaios
sociológicos, História e Geografia, além de refletir sobre as trajetórias de colegas, amigos e
outras personalidades, como Gilberto Freyre, Álvaro Lins e Delmiro Gouveia. Produziu ainda
trabalhos sobre o papel do jornalismo na sociedade e na cultura.
Além de carreira jornalística, exerceu funções como administrador de instituições
culturais como a diretoria do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais (IJNPS), atual
Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) e do Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano
(Apeje). Colaborou com o Conselho Pernambucano e Federal de Cultura. Foi membro da
Academia Pernambucana de Letras e da Academia Brasileira de Letras além de sócio

39
Aluna do Doutorado em História da Universidade Federal do Rio Grande Norte.
P á g i n a | 57

correspondente em uma meia dúzia de outras academias e institutos históricos e geográficos 40.
Tudo isso no período entre as décadas de 1950 a 1980. Ocupou-se também na carreira
pedagógica como professor em instituições como o Ginásio do Recife onde lecionou História e
no Instituto de Educação de Pernambuco, entre os anos de 1950 e 1971 onde ocupou a cátedra
de Geografia.
Por esse percurso podemos verificar a relevância de Mota no cenário intelectual de seu
contexto, embora sua obra não tenha mantido grande relevância sendo lembrada especialmente
entre os membros de seu conjunto de amigos e colegas bem como nas instituições pelas quais
ele passou.
Na escrita de Mauro Mota, seja qual for a modalidade dos textos, a questão dos espaços
esteve sempre presente, ele demarcou em sua escrita dois polos geográficos e sociais
específicos: o litoral da Zona da Mata da cana-de-açúcar, urbano do Recife, e o Sertão da mata
cinzenta, do criatório e rural. No presente estudo, investigamos os juízos de valor produzidos
sobre estes núcleos. Em nosso esforço o primeiro polo se resume a experiência urbana do Recife
e o segundo a experiência rural do Sertão.
Além disso, o artista pernambucano e seus textos esteve inserido em um computo das
publicações nordestinas de seu contexto que eram em grande medida estudos sobre a cultura, a
história e o povo da Zona da Mata pernambucana encabeçados pela figura de Gilberto Freyre e
sua vertente Regionalista. Assim sendo, ao nos dedicarmos a pensar, o Sertão e o Recife, na
escrita de Mauro Mota, ao adentrar no seu mundo de visões particulares, temos que partir da
constatação de que estas espacialidades foram construídas em um encadeamento histórico, o
qual começa antes de Mota e tem com ele sua continuidade.

2 CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DOS ESPAÇOS, O RECIFE E O SERTÃO

O histórico da construção da espacialidade sertaneja é longo, remetendo a diversos


espaços. No Brasil, o Sertão foi originalmente uma categoria criada para se referir às terras
ainda não propriamente “civilizadas”, alvos das bandeiras que adentravam a colônia. Por muito
tempo, o conceito de Sertão foi ligado ao de fronteira entre a civilização e o mundo do selvagem
(SOUZA, 1998). Em seu estudo, A pátria geográfica: Sertão e litoral no pensamento social
brasileiro (2015), Candice Vital de Souza mostra que o espaço sertanejo tem sido entendido,

40
Mota é citado como sócio correspondente da Academia Paulista de Letras; Academia paraibana de letras;
Academia Alagoana de Letras; Academia Sergipana de Letras. Foi também sócio honorário do Instituto Histórico
e Geográfico de Minas Gerais; Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas; Instituto Histórico e Geográfico de do
Rio Grande do Norte e do Instituto Histórico e Geográfico do Amazonas.
P á g i n a | 58

no pensamento social brasileiro, como uma constante oposição ao litorâneo. Para ela, isto se
justifica pela origem e disposição dos narradores, sobretudo litorâneos e exógenos, que em suas
viagens concretas ou imaginárias passam a enxergar um espaço totalmente díspar daqueles em
que cresceram. Neste sentido, a narrativa tende a dar mais foco aos problemas da região. O
afastamento dos “centros de civilização” teria produzido uma sociedade muito mais próxima à
selvageria e a barbárie. Na visão destes estudiosos, é necessário pensar uma unidade nacional
e, desse modo, o Sertão surge como um espaço problema que precisa de meios para se integrar
à nação e construir um Brasil único.
Nesse viés, o Litoral é visto como um lugar de familiaridade, sobre o qual não se precisa
fazer nenhuma discussão, a não ser o reconhecimento de que se trata de um ambiente irradiador
de cultura, tecnologia, da lei e da ordem. No seu estudo, Souza focou em intelectuais do Sudeste,
porém os intelectuais do Nordeste também conduziam interpretações sobre o espaço sertanejo.
Para alguns, esta região é vista como um espaço de louvação e de saudade reificando qualidades
de seu povo e de sua terra. Mas, para outros, oriundos sobretudo da Zona da Mata, o Sertão é
uma alteridade baseada nas condições telúricas das duas regiões. Essa diferença também é
pensada em termos de cultura e civilização, entre a sociedade da agricultura e a do criatório.
Essa necessidade de se diferenciar surge principalmente quando a nordestinidade passa
a ser compreendida sob referenciais do mundo sertanejo, e não mais pelo dos engenhos. Isso é
bem perceptível no grupo dos intelectuais liderados por Gilberto Freyre, do qual Mauro Mota
é participante. Dentro desse contexto, fica claro que, mesmo no momento de sua construção
como regionalidade, o Nordeste também enfrentava diferenças internas persistentes até hoje,
ou seja, vários Nordestes dentro do Nordeste.
Por fim, temos o Recife, cidade que tem sido vista e revista por viajantes e nativos cuja
paisagem e marcada pelas águas de rios e do mar. Sobre este tema, Raimundo Arrais apresenta
a obra Pântano e Riacho: a formação do espaço público do Recife do século XIX (2004), estudo
que nos convida a perceber que até o início do século XX a cidade do Recife não surgia como
tópico de estudo histórico. O Recife torna-se objeto de discussão a partir das décadas de 1920
e 1930 em diante, quando irrompe o processo de modernização da cidade, mediado por uma
necessidade de se adequar aos preceitos urbanísticos que dominaram o país na Belle Époque.
Esta mudança na paisagem urbana incomodou principalmente um grupo de intelectuais
nascidos na cidade, entre eles Gilberto Freyre e Mário Sette, que passaram a produzir uma
reação a esse processo, considerando-o desagregador da paisagem de sua cidade natal. Além do
problema estético arquitetônico, a modernização do Recife trouxe, para esses homens, um outro
prejuízo, pois com a chegada de fábricas têxteis, uma série de imigrações vão constituir, em
P á g i n a | 59

determinados bairros, grandes comunidades empobrecidas que encontraram no Mocambo sua


forma de moradia, em meio à lama e à sujeira.
Para tentar fugir disso, esses intelectuais passam a produzir visões da cidade onde
reinam a nostalgia ladeada pela experiência pessoal destes autores em seus núcleos familiares.
Ganham foco os estudos sobre o cotidiano e as histórias despertadas pela toponímia do Recife,
além de suas figuras pitorescas, seus fantasmas de senhores e escravos que assombravam os
sobrados. Para Arrais, a característica, um tanto contraditória, que unia estes narradores diz
respeito a forma como estes conduziam seus estudos financiados, ou empregados, pelo mesmo
estado que constituía a modernização que tanto criticavam.
Ambas perspectivas aqui apresentadas, serão fundamentais para entender as formas
como Mota se porta diante de cada um dos espaços estudados, porém, não são suficientes para
explicar com profundidade a emoção presente nos textos de Mota. Tal emotividade é sim
resultante de tal contexto, mas também surge de atitudes e valores que são profundamente
humanos, o apego e o amor, a aversão e o medo.

3 A RELAÇÃO HOMEM MEIO EM TESES DA GEOGRAFIA HUMANÍSTICA E


SUAS POSSIBILIDADES DE ESTUDO DENTRO DA HISTÓRIA

No discurso de 1946 para a American Geographical Society, Jonh K. Whright


estabelece entre outras possibilidades a de uma geosofia histórica que se incumbiria da
compreensão dos variados tipos de conhecimento acerca dos espaços, oriundos de variadas
fontes e processos.

Seja lá como for com os animais, tal conhecimento é adquirido em primeira


instancia através de observações de vários tipos – a partir da visão do homem
da idade da pedra às medidas geodésicas precisas de hoje auxiliadas pelo uso
de aparelhos eletrônicos. Sua aquisição, em contrapartida, é condicionada pela
complexa ação recíproca de fatores culturais e psicológicos. Os dados com os
quais ele lida caem no âmbito de cada uma das ciências naturais, os estudos
sociais e as humanidades. Sua gama de concepções parte do puramente
pessoal, impressões subjetivas de um fazendeiro ou um caçador, àquelas
ganhas a partir de cálculos matemáticos rigorosos e correlações estatísticas
altamente refinadas, e encontram expressão não apenas na forma científica,
mas através da literatura e da arte. De fato, quase todas as atividades
importantes nas quais o homem se engaja como capinar um campo, escrever
um livro, conduzir um negócio, pregar o evangelho ou travar uma guerra é,
em alguma medida, afetada pelo conhecimento geográfico à disposição.
(WRIGHT, 2014.p. 16)
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A importância dessa abordagem é, em primeiro lugar, indicar um caminho de


colaboração entre as ciências, sobretudo entre a História e a Geografia. E em uma segunda
analise, o autor pontua a questão dos espaços como um elo fundamental entre homem e o
mundo. Uma relevância que não só pode como deve ser analisada nas suas infindáveis formas.
Um terceiro ponto é que o conjunto deste pequeno texto, nos transmite o valor das
subjetividades, da imaginação e dos sentimentos que ligam o homem ao seu meio. Ao nos
dedicarmos a compreensão da importância que determinados espaços tem na escrita de Mauro
Mota, acreditamos estar participando do projeto imaginado por Wright, pois embora nosso
interesse se fixe em uma experiência que é, em sua maior parte, individual acreditamos que ela
seja um reflexo de um modo de ver os espaços que é sim construído historicamente, socialmente
e culturalmente. Assim, o olhar de Mota para o Recife ou para o Sertão é algo que se baseia na
sua experiência através dos seus sentidos, ao andar pelas ruas da cidade, ou ao singrar as
rodovias sertanejas. Mas também é fruto de todo um contexto social em que ele viveu, suas
leituras, e sua formação acadêmica.
Um outro caminho importante vem de um texto igualmente pequeno de Eric Dardel,
O homem e a terra publicado originalmente em 1952, nele estabelece seu conceito fundamental
de Geograficidade, definindo-o como “uma relação concreta que liga o homem à Terra”
(Dardel,2011 p. 2). Essa definição engendra também o aspecto da percepção do homem para
com o meio que pode ser, tanto positivo e acolhedor quando negativo e opressor. O que define
essas duas possibilidades é o fato de que perante a natureza o homem é um ser frágil, embora,
os últimos séculos de problemas ambientais possam dizer o contrário. Outro aspecto importante
em Dardel é a questão do apego ao lar e a necessidade de desbravamento, sentimentos
contrastantes, mas que podem em alguma medida se complementar, uma vez que, ao nos
afastarmos do lar, e partimos em busca do mundo, podemos ter reforçado o apego a nosso lugar
inicial, nossa casa.
Quando confrontado coma a experiência de Mota que estudamos aqui, veremos as duas
formas de relação, o apego ao meio ambiente atávico do lar, o Recife, permeado por sentimentos
profundos de cuidado e de outro lado temos uma expedição pelos sertões nordestinos passando
por terras desconhecidas e em certa medida hostis. A razão para empreender tal jornada é a
pesquisa sobre aquelas paragens.
Tal perspectiva esteve também no cerne dos desenvolvimentos iniciais da vertente
humanística da geografia na década de 1970, sobre tudo, em autores como Yi – Fu Tuan e
Eduard Relph. Esse entendimento que tem suas raízes na fenomenologia e nos estudos de
Gaston Bachelard e Martin Heidegger foi, posteriormente desenvolvida e gerou
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desdobramentos para pensamentos que vão além da disciplina geográfica buscando os diversos
sentidos do homem em seu meio presentes nas mais variadas formas de expressão intelectual.
Um outro desenvolvimento recente dessa abordagem tem se dado através dos estudos
da geocrítica e da cartografia literária encabeçados por autores como Robert Tally. Para ele essa
questão dos espaços e seus impactos sobre o pensamento humano não são importantes apenas
no âmbito da geografia, mas sim, uma questão que transborda variados campos de estudo,
constituindo- se como um ente persistente e influente nas variadas formas de produção
intelectual.
Robert Tally refere-se ao movimento denominado virada espacial, a qual descreve em
sua obra Spaciality de 2013. Segundo esse autor, a virada começou com o fim da Segunda
Guerra Mundial quando surgiram diversos processos políticos, sociais e econômicos que
colocaram o espaço em maior evidencia. Temos como algumas das causas desse processo a
descolonização, sobre tudo, na Ásia e na África a rápida industrialização do terceiro mundo e
as novas tecnologias de comunicação e transporte. Tais perspectivas impactaram
profundamente as noções de continuidade e manutenção de paradigmas e isso acabou por
refletir-se na arte e na filosofia, com os pós modernismos e com o pós estruturalismo. Temos
com isso um importante movimento que tem seus efeitos duradouros para ramos do saber que
lidam com a produção intelectual, dentre eles a própria história, logo para Tally:
A virada espacial na crítica e teoria literária moderna e pós-moderna é um
reconhecimento do grau em que as questões de espaço, lugar e mapeamento
foram sub representas na literatura crítica do passado. Os escritores, críticos e
teóricos cujo trabalho se envolveu direta ou indiretamente com tais questões
nos últimos anos tentam não apenas remediar esse antigo descuido, mas
propor novas maneiras de ver um mundo em que muitas das certezas
anteriores se tornaram, no exato momento menos, incerto. A virada espacial
é, portanto, uma virada para o próprio mundo, para uma compreensão de
nossas vidas como situadas em um arranjo móvel de relações sociais e
espaciais que, de uma forma ou de outra, precisam ser mapeadas “texto
traduzido” (TALLY, 2013.p. 16-17, tradução nossa).

Portando, este estudo se coloca ao lado desta perspectiva, e compartilha da


preocupação de investigar as múltiplas formas de relação com as espacialidades que se dão no
fluxo da vida humana, atendendo a preocupações horas pessoais, hora sociais ou mesmo
político ideológicas.
Para discutir essa temática, sobre tudo como ela se apresenta nas percepções e relações
entre Mauro Mota e os espaços, é importante pensar nos conceitos de Yi Fu - Tuan, espaço,
lugar e experiência. De modo geral, ele faz uma análise acerca da maneira como o ser humano
se relaciona com os diferentes ambientes nos quais vai sendo inserido ao longo da vida. Para
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Tuan, os conceitos de espaço e lugar ganham significado a partir da experiência. Assim, o que
começa como um espaço indiferenciado se transforma em um lugar na medida em que o
conhecemos melhor e o dotamos de valores. Os lugares evocam sentimentos de pertencimento,
segurança e estabilidade, enquanto os espaços podem nos trazer aversão, liberdade e ameaça
em sua amplitude.
Experiência, espaço e o lugar formam uma tríade de conceitos do pensamento de Tuan
acerca das interações entre o homem e o meio ambiente. Seu modo de enxergar esses conceitos
entende que as variadas formas de se conhecer e se relacionar com um meio podem ser
entendidas como o resultado da sensibilidade humana, que se manifesta nos sentidos,
sentimentos e por meio de conhecimento adquirido. Nesse sentido, Tuan investiga os
mecanismos que atuam na experiência, elegendo o sentimento e o pensamento como
componentes fundamentais. O sentimento, aqui, é visto como uma junção entre os sentidos
básicos do ser humano, como o tato, olfato e a visão, além de nossas capacidades mentais de
memorização e intuição. O pensamento entra nesta análise como a nossa capacidade racional
de adquirir conhecimentos.
O conceito de lugar e suas nuances foi também investigado por Eduard Relph em seu
Place and Placelessness (1977) no qual entre outras coisas o autor irá discutir as essências do
lugar, ou seja, o que determina de fato a relação dos seres humanos com seus lugares. Para isso,
o autor elege pontos de interesse. O primeiro deles diz respeito a questão da localização ou o
lugar e suas características físicas especificas. Relph observa que não é esta uma característica
fundamental, e que mesmo sociedades nômades ou muito dinâmicas podem apresentar relações
de lugares. No, no mesmo sentido então Relph falará da paisagem, ou seja, o aspecto visual do
lugar.
Em suma, o espirito de um lugar está em sua paisagem. Em uma veia
semelhante, embora menos extrema, Rene Dubos (1972) sugere que há uma
‘persistência do lugar’ - ou uma continuidade na aparência e no espirito dos
lugares; assim, como a individualidade e a distinção da aparência de qualquer
pessoa perduram desde a infância até a velhice, a identidade de um lugar
particular pode persistir através de muitas mudanças externas por que existe
uma força interior oculta – “um deus interior”. Se esse argumento um tanto
místico é atraente ou não a importância de associações particulares de
características físicas, tanto naturais como artificiai, na definição do lugar não
pode ser negada. Texto traduzido (RELPH, 1977.p. tradução nossa).

Ao afirmar esse espirito do lugar, Relph tem o cuidado de observar que tal visão pode
ser predominantemente individual ou seja, trata-se de uma perspectiva. Logo é evidente que o
vislumbre de uma mesma paisagem pode não ter esse mesmo efeito sobre todos, pois isso
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dependerá de outro aspecto que tanto Relph quanto Tuan reconheceram como importantes, o
tempo.
Nos estudos de Tuan, tempo e espaço são categorias inseparáveis. No processo de
experiência é a passagem do tempo que leva o indivíduo a desenvolver atitudes e valores que
por fim levam a constituição de um lugar. Relph também reconhece essa importância, mas
acrescenta outros aspectos a relação de tempo e lugar. Para ele, é inevitável que com o tempo
determinados lugares possam sofrer alterações, ou seja, a relação com o lugar não se determina
por sua imutabilidade, mas pela força das relações que os indivíduos mantem para com seus
lugares, assim, no caso de uma cidade, que tem como característica comum as modificações
constantes, o sentimento de lugar é mantido através de tradições, da história e das memorias
daquela população que se reconectam constantemente, mesmo diante das mudanças.
Dessa forma, entendemos que a comunidade é também uma relação poderosa. Para
Relph a comunidade reforça a identidade do lugar e vice e versa. É quanto mais forte é o sentido
dessa comunidade mais ela terá a capacidade de manter ou cuidar dos lugares com os quais se
identificam. Em um sentido mais estreito é também uma fonte de memorias, a vizinhança, o
povoado, a aldeia é um grande componente das memórias que em última análise compõem a
nossa relação com os nossos lugares fundamentais.
No caso de Mota, isso fica bem evidente na sua relação como Recife. Sabemos que
uma cidade não um ente uniforme, mas uma unidade composta de lugares, formas e estruturas
distintas. Logo, quando vamos falar da experiência de Mota com esse lugar, estamos tratando
de lugares específicos, ruas bairros e lugares públicos como praças. Tais lugares, são habitados
por comunidades que dão sentidos a estes ambientes. Uma comunidade importante para Mota,
é a intelectual, especialmente aquela em torno da Faculdade de Direito do Recife, do Diário de
Pernambuco e da Fundação Joaquim Nabuco. Elas não são apenas instituições, são lugares,
espaços físicos preenchidos de memorias e trajetórias.
Por fim, ao mesmo tempo em que evocam sentimentos de nostalgia e pertencimento,
os espaços também podem ser fontes de medo, angústia ou, mesmo, de aversão. A partir dessa
constatação, Tuan discute em seu livro Paisagens do medo (2005).
O que são paisagens do medo? São as quase infinitas manifestações das forças
do caos, naturais e humanas. Sendo as forças que produzem caos onipresentes,
as tentativas humanas para controlá-las são também onipresentes. De certa
forma, toda construção humana – mental ou material – é um componente na
paisagem do medo, porque existe para controlar o caos. Consequentemente os
contos de fadas infantis, bem como as lendas dos adultos, os mitos
cosmológicos e certamente os sistemas filosóficos são refúgios construídos
pela mente nos quais os homens podem descansar, pelo menos
temporariamente, do assédio de experiências novas e da dúvida. Além disso,
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as paisagens materiais de casas, campos de cultivo e cidades controlam o caos.


Cada moradia é uma fortaleza construída para defender seus ocupantes
humanos dos elementos; é uma lembrança constante da vulnerabilidade
humana. Todo campo de cultivo é arrebatado da natureza, que procurará
destruí-lo se não houver um incessante esforço humano. De modo geral, todas
as fronteiras construídas pelo homem na superfície terrestre - cerca viva no
jardim, muralha na cidade, ou proteção do radar - são uma tentativa de manter
controladas as forças hostis. (TUAN, 2005.p. 13).

Assim os elementos que mais levam ao medo entre o homem e o meio é a percepção
da natureza selvagem incontrolável. As imagens de uma seca ou de uma enchente ou de um
terremoto nos causam pavor, não só pelo fato de trazerem riscos a vida e a propriedade, mas
por demonstrarem a fragilidade da vida e da organização humana perante as forças naturais.
No seu capitulo sobre Violência e medo no campo, Tuan discute como ao longo dos
séculos esse meio ambiente foi sendo construído como um espaço de harmonia, segurança e
tranquilidade, tal visão é, notadamente eurocêntrica, influenciada por uma paisagística que
entre seus vetores importantes esteve movimentos como o Romantismo do século XIX. Mas
em inúmeras ocasiões essa imagem do campo pode ser uma generalização grosseira, não faltam
exemplos em que o meio ambiente do campo pode ser marcado por um clima de violência e
insegurança. Tuan cita como exemplos os casos históricos dos próprios campos europeus
durante o medievo, dos assaltos em estradas as violentas brigas entre famílias.
Tuan associa essa violência, a pobreza e a miséria que constantemente assolava essas
populações, com secas, chuvas torrenciais e ou invernos rigorosos era muito comum que pela
necessidade fossem cometidos muitos crimes contra a propriedade. Outro elemento que
favorecia ao crime era a falta de controle estatal, nos rincões afastados dos centros urbanos
dificilmente a ordem e a lei se fazia valer.
Elencados estes pontos, será possível relacionar a ideia da paisagem do medo com o
pensamento de Mauro Mota sobre os sertões. A paisagem sertaneja é encarada com aversão
por ser marcada, sobretudo, pelo evento climático da seca. Ter nascido no Recife e passando
grande parte de sua infância no município litorâneo de Nazaré da Mata fez com que Mota tenha
se acostumado a uma vida de água e verde em abundância, deste ponto de vista a visão de uma
terra ressequida e esturricada pelo sol pode parecer realmente assustador. Além disso, tal estado
de coisas leva a constituição de um cenário de pobreza onde reina a subsistência e a
sobrevivência, a doença e morte de animais, plantas e de seres humanos. São condições telúricas
de uma natureza dura e impetuosa diante das necessidades humanas.
Em Mota também podemos somar ao cenário calamitoso das secas ao medo da
natureza humana. Sua opinião sobre os sertanejos é calcada na ideia de um povo rustico,
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agressivo e pouco evoluído, marcado pela violência da natureza, ele facilmente de envolve em
brigas.
Por meio destes conceitos e perspectivas, podemos determinar como o Recife foi tão
relevante para Mauro Mota, aparecendo abundantemente em sua escrita. Dentro da grande
variedade e quantidade de escritos de Mauro Mota, selecionamos escritos que são considerados
dentro de sua bibliografia como estudos sociais, são obras que refletem por um lado, sobre os
costumes, a história e memória dos lugares investigados. Por outro lado, há também uma
preocupação em delimitar as questões e problemas referentes as espacialidades, em um sentido
diagnostico. Optamos por analisar as obras em dois focos, primeiro, falamos a respeito do
Recife, o litoral úmido, depois falaremos sobre as obras que discutem o Sertão, a seca e a sua
sociedade.

4 MOURO MOTA E O RECIFE, ASPECTOS DE UMA RELAÇÃO DE AMOR E


ADMIRAÇÃO PELA CIDADE

Para começar a discutir a relação de Mauro Mota com o Recife é preciso primeiro
ouvir dele qual era sua visão sobre ela. Muitas foram as declarações do autor para essa cidade,
em formas de poesia, romance e prosa, mas a que reúne em menos palavras e de forma mais
completa o seu pensamento é esta, escrita na introdução do livro Be – a- Bá de Pernambuco:
Pernambuco é o Recife. O que é o Recife com seus bairros talássico-fluviais?
Metrópole regional e econômica pela importância do centro urbano e dos
novos polos industriais da periferia, moradia da história; casa matriz de cultura
com as quatro universidades e a sesquicentenária Faculdade de direito, onde
rebentaram os gênios de Tobias e Castro Alves, o sesquicentenário Diário de
Pernambuco, o sesquicentenário Ginásio Pernambucano, o quase
sesquicentenário Teatro Santa Izabel; é a arte colonial das igrejas: a de São
Pedro dos Clérigos, a Conceição dos Militares, a Capela Dourada, a Basílica
do Carmo. O Recife é ainda Arruda Câmara, botânico e teórico de 1817, Dom
Vital, Abreu e Lima Padre Lopes Gama, Nunes Machado, Maciel Monteiro, o
Marquês de Olinda, o Conde de Boa Vista, Vauhier, Antônio Pedro, de
Figueiredo, Martins Júnior, Vicente do Rego Monteiro, Manuel Bandeira,
Joaquim Cardozo, Gilberto Freyre, Correia Picanço e Mario Schemberg. O
Recife é o Cais do Apolo, o campo das Princesas, a Praça do Chora Menino.
É esta luz do meio –dia que não se repete em nenhum outro lugar. É o bruaá
de avenidas e o silencio noturno dos sítios suburbanos, onde a gente só ouve
o rumor das frutas mudando do verde em maduro. MOTA, 1991.p. 49).

Esse trecho, traz em si uma serie de significados importantes. Inicialmente a ideia de


lugar que se vê presente pelos elogios emocionados a natureza única da cidade, Recife, não é
como as outras cidades, ela única e especial. Podemos tomar aqui a assertiva de Tuan ao dizer
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que o indivíduo enxerga em seu lugar o centro do mundo e que além disso, diante de seu lugar
outras paragens tornam-se menos ou nada atrativas.
Outra questão importante que surge aqui é a compreensão de que a cidade é também
seu povo, nesse caso particular, seus intelectuais e suas figuras históricas de renome. Essa é
uma noção importante para se compreender a relação de Mota com os espaços, pois, ela é
sempre mediada por sua relação com a intelectualidade, seja por que ela compunha grande parte
de seu círculo social e de amizade seja pelo fato de que ele, enquanto membro dessa classe,
buscava a cada texto fortalecer esse grupo, saldando suas conquistas e suas virtudes.
A partir de agora passamos a mapear algumas das obras de Mota, a primeira delas é
Votos e ex-votos: Aspectos da Vida Social do Nordeste de 1968. Essa obra foi publicada por
meio da imprensa universitária da Universidade Federal de Pernambuco. Formada por oito
capítulos, cada um sendo dedicado a um tema. O que chama atenção ao longo da leitura é que
embora seu título verse sobre uma pretendida analise na vida social do Nordeste, a esmagadora
maioria dos capítulos são destinados a tratar de temas sobre o Recife ou, quando muito de
Pernambuco.
No contexto de publicação deste livro, Mota desempenhava diversas funções tanto
administrativas quanto intelectuais. A principal delas era de diretor do Instituto Joaquim
Nabuco de pesquisas sociais, papel que o permitiu um grande transito entre os intelectuais e
suas temáticas, sobretudo aquelas relacionadas aos estudos sobre o Nordeste encabeçadas por
Gilberto Freyre. Uma outra função de Mauro Mota, que está diretamente relacionada com a
publicação de Votos e ex votos é a sua participação no Seminário de tropicalogia, um grupo de
estudos fundado dentro da Universidade Federal de Pernambuco em 1966 por Gilberto Freyre.
Esse ambiente, pensado por Freyre para discutir o tema da vida do homem nos trópicos,
especialmente no tropico Brasileiro, em uma abordagem interdisciplinar (CUNHA; GASPAR;
SILVA, 2001).
Mota adentra no seminário já em seu primeiro ano dando uma conferência cujo o título
foi, Culinária, doçaria e Trópico, tal conferencia ocorreu na reunião ordinária de número oito
de 28 de novembro de 1966. O primeiro capitulo traz quase o mesmo nome, Culinária e doçaria,
nele Mota tem como argumento inicial discutir aspectos da alimentação nordestina, mas logo
passa a discussão sobre a relação entre alimentação e a natureza no Nordeste, como numa
espécie de discurso ecológico, Mota associa o desaparecimento de uma cultura de doces e
compotas feitos de frutas a predação das matas nativas do litoral, o domínio da cana de açúcar,
acabou, de forma um tanto irônica, deixando o litoral mais amargo. Já não se via mais nas ruas
do Recife as cores e aromas dos tabuleiros, cheios de goiabadas, cocadas e compotas dos mais
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variados tipos além das frutas miúdas, como a pitomba, o cajá e a jabuticaba. Assim, temos
aqui a constituição de uma paisagem olfativa e gustativa do Recife.
A pretensão em retratar o Recife como uma cidade que mistura diversas
temporalidades em seus espaços é constante na escrita de Mota. Neste sentido, ao andar pelas
ruas da cidade parece haver uma sobreposição da cidade colonial com seus casarões
portugueses e holandeses, com a cidade do século XIX com as praças e cafés além da solene
vida intelectual das universidades, do movimento abolicionista, dos jornais engajados. Há ainda
a vida urbana dos primeiros anos do século XX, com a Belle Époque as reformas urbanas
redesenhando as avenidas, o ambiente de agitação cultural dos jornais, e as reuniões nos cafés.
Essa compreensão não é exclusiva de Mota, podemos dizer que pensar desse modo, é algo
comum na experiência com o lugar. Tanto para Tuan (1980) quanto para Relph (1973) a
história, ou o passado é um elemento importante da relação do indivíduo com os lugares,
especialmente nas cidades, que possuem, segundo Tuan, uma noção de trajetória mais
organizada. A cidade como um indivíduo tem suas origens, crescimentos, modificações e crises.
Essas ideias são evidenciadas em dois capítulos de Votos e ex-votos (1968). Em
Sociologia dos rótulos de cigarro, Mota estabelece a discussão de como através destes vestígios
é possível enxergar a vida e os modos das pessoas de uma época. O ponto mais importante
desse estudo é quando ele fala a respeito do café Lafayette, localizado entre a Rua do Imperador
com a Primeiro de Março, o que começou como um deposito para cigarros:

Depois instalou no local um Café, já agora com Letra maiúscula, o mais


importante do Recife até hoje. Café sentado, como se dizia, desses que foram
abolidos porque, mais do que dinheiro no caixa, rendiam conversa fiada aos
proprietários. Eram, no caso do Lafayette, dezenas de mesas cercadas de
cadeiras distribuídas no grande salão com portas largas para duas frentes,
mesas e cadeiras que transbordavam pela calçada larga da Rua do Imperador,
que levavam ao Café quase para o meio da rua. Aí durante anos e anos,
discutiram-se, da manhã á noite entre cafezinhos e baforadas, problemas
pernambucanos de toda espécie. Negócios de compra e venda, acerto ou
desacertos de casos políticos. O Lafayette era frequentado também pelos
graúdos da Região, diretores de Jornais, deputados, senadores, governadores
de estado, literatos estudantes, jornalistas. Muitos rábulas pagavam, quando
não deixavam essa missão ao cliente, um tostão ou dois tostões diários, o preço
do cafezinho, pelo aluguel diário do escritório: tinham o escritório no
Lafayette. (MOTA, 1968.p. 39).

Este local, além de sua importância histórica e social, dada por Mota, também foi um
lugar de experiência pessoal para ele. Como estudante da faculdade de Direito, e como redator
do Diário de Pernambuco, Mota foi um frequentador assíduo desse café nos anos de 1930 a
1940. Nilo Pereira serve de testemunha dessa presença em sua biografia Mauro Mota e o seu
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tempo (1987, p. 127). Vemos esse rastro de experiência também através de sua descrição do
café, em seus detalhes, sua proximidade com aquele ambiente. Mais à frente em seu texto Mota
o descreve “a esquina do Lafayette continuou a ser a esquina de nosso mundo urbano” (Mota,
1968.p. 40).
No capítulo, A casa, Mota assume a posição de que no Recife, como em nenhum outro
lugar, natureza e arquitetura se misturaram. Seja nos mocambos dos alagados feitos de lama,
palhas de coco ou de cana seja nas casas dos senhores de engenho cujas vigas, caibros e moveis
se faziam das madeiras de lei das matas litorâneas. A casa é um centro de cuidado e conforto,
afirmação que Mota concorda em sua escrita.
Mas além disso as casas, os sobrados do Recife, têm o poder de evocar o tempo, esse
é o seu sentimento diante de uma exposição museologia sobre a arquitetura do Recife. Embora
fraturados e depredados pela ação dos remodelamentos urbanos uma mínima parte deles faz
surgir o todo de uma cena, e ele se vê transportado:
A exposição do Museu do IJNPS vai assim muito além do que ver plantas, nas
fotografias, nas maquetes, nas madeiras, nas ferragens, nas cerâmicas. Há, no
meio de tudo isso, está melancolia: o material suburbano reflete a mudança da
política habitacional: foi recolhido em demolições. Mas aqui é como se as
peças se reintegrassem nos corpos primitivos. É como se de uma delas, os
restos de uma janela de sobrado de subúrbio recifense, ainda viesse um aceno
da moça para o estudante. Para o estudante da história da habitação em
Pernambuco. (MOTA, 1968.p. 141-142).

A persistência do lugar é mantida através de um ato de memória, os museus e suas


exposições trazem aqui à tona, para aqueles que tem com a cidade uma forte relação de
pertencimento. Deste modo pouco importa a deterioração, as mudanças, embora tristes. Sujeitos
como Mota se reconectam facilmente através dos fragmentos.
Ainda na questão das memorias e da experiência temos um pequeno texto escrito em
1947 para o Diário de Pernambuco que apresenta, não apenas em partes, mas em toda sua
extensão todo o sentimento que discutimos acima. A ideia das reminiscências, o sentido da
experiência, a sensação de pertencer ao local e se integrar aquela comunidade. Há ainda a
mescla de tempos sobrepostos. Este texto, denominado Fantasmas da Rua Real. Mota começa
seu texto afirmando novamente o caráter único do Recife dotando-o de um aspecto desejável a
feminilidade de seu contexto:

O encanado do Recife não aparece à primeira vista. O Recife não e uma cidade
oferecida e só se entrega depois de longa intimidade (...) Não sejais somente
um simples transeunte dos bairros novos, nem gasteis os vossos pés na Ponte
Duarte Coelho, nas edificações ou nos passeios de Santo Antônio. Guardai um
pouco o olhar, alguns passos e toda a sensibilidade para certas ruas de subúrbio
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que envelheceram virgens como “certas mulheres magras, morenas e tímidas”


que tiveram namorados românticos, mas não casaram. (MOTA, 2001, p. 80).

Mais a diante em sua escrita, surgem mais claros aspectos de uma cartografia
sentimental, as ruas, lugares de seu bem querer.

Podeis escolher Apipucos, Casa Forte, Dois Irmãos, Várzea. Se quiserdes ficar
mais perto, saltareis na Torre, na Rua Real, exatamente no ponto onde o bonde
e o ônibus fazem a volta para a Conde de Irajá. Desprezando o que ficou para
trás, penetrai no segundo trecho da Rua Real, logo e inviolado trecho, que ai
morrer lá longe no rio. Estareis num doce sitio familiar que refletes em dúvida
o Recife de há um século. Certamente será uma tarde de Domingo e não tereis
pressa. Desprezareis as velhas calçadas e seguireis pelo centro da rua, pelas
áreas que guardam as marcas sem volta dos pés dos homens, moças e das
crianças de outrora. (MOTA, 2001.p 80).

Assim, por esta exploração especifica de algumas das obras de Mauro Mota
entendemos que o Recife surge em sua escrita como uma cidade para a qual ele despensa grande
apego emocional, essa força transcende ao tempo e as transformações superficiais. Ela se ancora
no poder das memorias da juventude como estudante e como jovem jornalista. Esta cidade,
surge em sua escrita como única, um lugar como nenhum outro no mundo e nesse sentido ela
dá colorido emocional a vida deste homem.

5 O DESERTO EM COMBUSTÃO, O SERTÃO SEVICIADO E VICIOSO PELO


OLHAR DE MAURO MOTA

O Sertão é uma espacialidade que chama atenção de Mota desde de seus primeiros
escritos. Na apresentação do acervo de Mauro Mota na fundação Joaquim Nabuco, Rita de
Cássia Barbosa de Araújo, descreve um poema chamado Nordestinismo de 1929 escrito para o
Timbaúba Jornal. Nesse texto, Mota usa das imagens da seca, da fome e da sede para
representar aquele Nordeste de seu contexto, marcado pelas imagens, constantes nos jornais, de
grandes levas de retirantes e flagelos produzidos pela estiagem. Assim, logo cedo em sua
carreira intelectual o Sertão surge como uma paisagem dramática e drástica.
Mais tarde, nos anos de 1950 a 1951, ele integra uma expedição do Departamento
Federal de obras contra a seca como jornalista. As notas de viagem compuseram um escrito
chamado Roteiro do Cariri de 1951 para a Revista do Arquivo Público. Acessamos esse texto
através de sua inserção na obra Imagens do Nordeste de 1961.
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Por se tratar de notas de viagem, podemos alcançar aqui o aspecto das impressões e
sentimentos do autor perante a paisagem que se desdobra a sua frente. Por outro lado, por se
tratar de uma viagem dinâmica, podemos entender o porquê que em suas observações o autor é
tão rígido com a região, são impressões de um estranho, não existe tempo para entender, há
apenas o olhar rápido que somando uma vida de experiências litorâneas, uma formação cultural
especifica e um sentimento profundamente humano, geram um panorama assustador e
profundamente incomodo.
Logo nos primeiros momentos do texto, Mota se dedica a reclamar das más condições
locais. Ao pernoitar em um hotel, um funcionário informa que os lençóis estavam limpos pois,
apenas dois hospedes haviam os utilizados naquela semana. Com o passar de uma noite
desconfortável Mota passa a construir seu panorama da região através de um pensamento que
alia a precariedade das condições materiais, as condições climáticas.
É claro que não nos deitamos nos lençóis onde outros corpos tinham deitado
o cansaço, a poeira dos longos caminhos de área e os sonhos agitados pelas
grandes caminhadas. É esta também a nossa verdadeira carga, cujo peso quase
nos vence dentro da noite sertaneja sem lua e sem serenata. Lavando o rosto
com uma garrafa de água, imaginamos os desesperos da população fixa numa
região que parece gemer em estado de permanentes queimaduras de terceiro
grau. A água das cacimbas ou dos rios foi sugada até a última gota. É um
milagre encontra-la para as necessidades mais urgentes, não digo dos campos
desolados, mas dos próprios indivíduos. O banheiro é aqui um templo onde
próprios indivíduos. O banheiro é aqui um templo onde se penetra depois de
exaustivos rituais. A própria luz doméstica, nesta paisagem arrasada pelo fogo
do céu, brota hesitante de um pequeno lampião de querosene pendente de um
arame no telhado do alpendre. (MOTA, 1961.p, 29).

Da mesma forma como temos em Tuan a ideia de uma topofilia, um apego ao lugar,
que pode se manifestar repentinamente, em um vislumbre, aqui temos algo semelhante, mas em
sentido oposto. Com apenas algumas horas de interação Mauro Mota se dá conta de um espaço
opressivo, totalmente dispare de seus lugares de apego. Essa ideia de uma natureza hostil se
esclarece para ele de forma súbita, e o faz expressar que “os livros não podem estabelecer com
exatidão a amplitude desta realidade causticante” (MOTA, 1961.p. 29).
Surge em outro livro de Mota, Paisagem das secas (1958) um outro aspecto
amedrontador da natureza sertaneja, as chuvas diluviais e as cheias dos rios temporários. Essa
obra foi escrita sob encomenda do Comandante do Estado maior e Comando das Forças
Armadas que propôs como tema “as condições da população nordestina, particularmente a
sertaneja, em face das hostilidades da natureza e das medidas para atenua-las” (MOTA,1958,
p. 11).
P á g i n a | 71

Assim, Mota estabelece que embora seja marcado pelas secas o Sertão também pode
padecer pelas chuvas. Quando surgem no horizonte as pesadas nuvens do inverno o sertanejo
enche-se de esperança, mas também de medo, sobretudo pela torrente das águas que podem
levar a pouca terra agricultável, além disso, a cheia dos rios ou o rompimento de barragens e
açudes geravam grande preocupação dos habitantes que temiam por suas casas, terras e
criações. Tendo um conhecimento desta perspectiva Mota nos narra a imagem dessa
devastação:
Em breve, reboam as trovoadas de repulsão ao deserto. Coriscos chicoteiam e
dilaceram as nuvens rígidas. Viola-se o cárcere inviolável das águas
prisioneiras. As chuvas afogam as horas continuas, ensopam o dia e a noite,
solapam e desagregam os blocos das encostas, arrancam os troncos
ressequido, lançam-nos contra os animais colhidos nas suas violências
pluviais. Todo esse amalgama dos três reinos precipita-se no tumulo dos rios
temporários. Deles só restam mesmo as longas covas brancas e sinuosas,
desrespeitadas pelos trânsitos de gente e de veículos e da cultura de vazante
em cima do sono das energias aquáticas. [...] E as águas fizeram-se, mas ainda
selvagens e audazes, com as disciplinas flutuantes no meio dos destroços.
Fizeram-se as águas para invadir os territórios alheios, para cobrir toda a
várzea, fecundadoras e assassinas, trazendo a vida nos limos e eliminando os
restos de vida no itinerário. (MOTA, 1958, p.82).

Os rios sertanejos, narrados nessa escrita de Mauro Mota, surgem entes selvagens
imprevisíveis e ferozes muito diferentes daquele rio do Recife, o Capibaribe, que mesmo com
as outrora “fúrias ocasionais” passou a ser ‘amansado’ pelos desvios de curso e pela construção
da barragem de Góiá em 1978 (MOTA, 1991.p.57). Assim, ao comparar a natureza transitória
desses rios e sua violenta aparição com a placidez e doçura do rio recifense, Mota também
compreende essa noção do medo que vem de uma natureza indomável e imprevisível.
Para Mota, natureza não é a única coisa hostil no Sertão, os seres humanos também
são. A paisagem desolada pelo clima soma-se, nos beirais das estradas, diversas cruzes. Elas
são memoriais para aqueles que morreram, por acidentes ou pela ação de outros indivíduos.
Seja por bala ou por faca, as estradas sertanejas se apresentam encharcadas de sangue diante de
Mota que horrorizado contempla.
As cruzes são plantadas nas estradas e, em certos trechos, com tão pequenos
intervalos uma de outra, que dão ideia de cemitérios marginais. De certo
modo, constituem uma recompensa para aqueles sacrificados sob o ímpeto de
paixões que refletem ainda o vergonhoso primitivismo dominando certos
núcleos da população brasileira. (MOTA, 1961.p. 49).

O medo do povo sertanejo vai muito além de sua agressividade, quando fogem das
secas, os grupos de retirantes passam a ser massas indesejadas e as vezes perturbadoras para os
habitantes das capitais nordestinas. Com Recife não era diferente, a cidade, uma das mais
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importantes capitais da região, teve que lidar, ao logo sobretudo das décadas de 1930 a 1940
com grandes fluxos migratórios vindos do sertão. Sobre esse tema, Mota vai discutir tanto em
Votos e ex votos quanto em Paisagem das secas. Para ele, isso constituiu graves efeitos sobre a
paisagem recifense como o desmatamento para construção de habitações precárias, os
Mocambos, além de uma sobrecarga nos sistemas de saúde, educação entre outros. Assim o
excesso de população leva as doenças e a proliferação de diversos tipos de parasitas, para Mota,
uma chaga na linda face da cidade.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste estudo escolhemos abordar uma pequena parcela da obra do escritor


pernambucano Mauro Mota sob o viés de uma história dos espaços, mais especificamente, uma
história que busca entender as relações entre humanidade e espacialidades ao longo do tempo.
Estivemos lidando aqui com a perspectiva de um indivíduo historicamente localizado entre as
primeiras décadas de 1910 a 1980 do século XX, um sujeito que vivenciou uma serie de
transformações na sociedade e na cultura, mas também com relação aos espaços. Ele viu sua
cidade amada, o Recife, sendo modificada pelas transformações urbanistas, já a vida sertaneja
é vista como uma constante, embora a construção de açudes tenha vindo amenizar as durezas
do clima, a vida nestes territórios ainda aparece sob o signo da precariedade.
Vimos aqui que os espaços podem ser fontes tanto de apego quanto de aversão e que
neste sentido, dos dois lados, a experiência é um fator importante. Embora o tempo que se passa
em um lugar possa ser determinante para a intensidade do apego por ele, experiências de
repulsão pelos espaços podem acontecer de forma súbita, sobretudo se suas impressões de tais
espaços já forem previamente construídas através de histórias e relatos.
Uma outra conclusão a que chegamos no final deste estudo é que o papel social de
intelectual exercido por Mauro Mota durante sua vida é de fundamental importância para
compreender o entendimento dele para com esses dois espaços. Assim, seu apego ao Recife não
vem apenas dos aspectos materiais da cidade, mas também do significado que eles têm dentro
de um repertorio intelectual do autor, ou seja, não são apenas ruas, são lugares por onde
passaram grandes homens, literatos, políticos, artistas. O Recife é uma cidade vivida, de fato,
mas é também uma cidade dotada de um valor intelectual pela atuação dessa classe.
Já a experiência com o Sertão, além de breve e superficial não apresenta o mesmo
esplendor. A vida sertaneja é nesse pensamento eximida de pujança intelectual, seria uma vida
mais dura, marcada por uma luta laboral entre homem e meio, não haveria, em sua perspectiva,
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poesia nesse cotidiano. Além disso, o Sertão é visto de forma generalizada, ele é o mesmo em
toda parte. Pensar dessa forma tem tudo a ver com a posição do autor com relação ao espaço.
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P á g i n a | 75

O espaço como configuração humana: migração, biopoder e necropolítica no processo


de modernização em Crato, Ceará.

Ronald de Figueiredo e Albuquerque Filho41

Introdução

No presente artigo pretendo trabalhar aspectos relevantes à migração do homem e da


mulher do campo em direção à cidade que se urbanizava entre as últimas décadas do século
XIX e primeira metade do século XX no estado do Ceará, sobretudo no que se refere ao que
leva esses trabalhadores e trabalhadoras à sua retirada até a chegada, recepção por parte dos
citadinos, dos meios de comunicação e as políticas de Estado em relação a estas pessoas, além
de como as mesmas vão usar o próprio espaço em seu favor ou como meio de resistência ou
como meio de barganha. Cabe ressaltar o destaque que será dado à comunidade do Caldeirão
da Santa Cruz do Deserto e ao Campo de Concentração do Burity, além da cidade do Crato em
si e da capital do estado do Ceará, Fortaleza, como espaços onde estes emigrantes irão se situar
seja por vontade própria, seja pela imposição disfarçada de política de assistência ao “flagelo”.
O roteiro que me leva a análise que por ora apresento tem como pano de fundo dois
espaços distintos, mas que também se relacionam: o campo e a cidade. Não pretendo expor as
características físicas e suas diferenças, mas historicamente ambientar esses dois espaços,
mostrando a configuração de ambos a partir das relações sociais e ações políticas, econômicas
e culturais que nelas são estabelecidas por sujeitos históricos no período acima destacado.
Durante o século XIX o capitalismo se consolida como principal sistema econômico na
Europa, passa por sua primeira grande crise na década de 1860, e posterior a isso, momento que
estabelece a chamada segunda revolução industrial, percebe-se a ampliação do alcance do
sistema capitalista em regiões externas à Europa. Esse alcance do sistema capitalista está longe
de ser um fenômeno natural, menos ainda inocente. A necessidade de ampliação de mercado,
exploração dos recursos naturais, bem como da mão de obra, a qual cada vez mais passa a ser
de um operariado urbano e assalariado se dá conforme as necessidades das potências capitalistas
de estabelecerem seus interesses de mercado. O presente artigo não trata especificamente desse
fenômeno, mas perpassa sem dúvidas por ele, até porque o Brasil adentra nesse contexto, ora
por sua relação comercial de exportação de matéria prima com estas grandes potências, ora pela
mentalidade capitalista advinda destas últimas como via de regra para a evolução de uma

41
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da UFRN. Email: ronaldhisfaf@gmail.com
P á g i n a | 76

sociedade. Estas grandes potências se impõem como modelo de sociedade e de humanidade


perfeitas. Para o sociólogo estadunidense, Immanuel Wallerstein
A história do sistema-mundo moderno tem sido, em grande parte, a história da
expansão dos povos e dos Estados europeus pelo resto do mundo. Essa é a parte
essencial para a construção da economia-mundo capitalista. Na maioria das regiões
do mundo, essa expansão envolveu conquista militar, exploração econômica e
injustiças em massa. Os que lideraram e mais lucraram com ela justificaram-na a seus
olhos e aos do mundo com base no bem maior que representou para todos os povos.
O argumento mais comum é que tal expansão disseminou algo invariavelmente
chamado de civilização, crescimento e desenvolvimento econômico ou progresso
(WALLERSTEIN, 2007, p. 29).

Esse modelo de desenvolvimento do sistema europeu que se universaliza não ocorre de


maneira natural, mas é estabelecido como única maneira possível de atingir a “perfeição”. Esse
discurso em favor do sistema europeu se dá de formas distintas, como observa o próprio
Wallerstein, seja pelas armas, seja pelo saber/conhecimento que gera verdades, seja de maneira
mais sutil, porém eficaz, capaz de obter aceitação coletiva e universal como algo natural que se
estabelece sem força, porém continuamente. Como aponta os estudos de Edward W. Said

Assim, um grande número de escritores, entre os quais poetas, romancistas, filósofos,


teóricos políticos, economistas e administradores imperiais, tem aceitado a distinção
básica entre Leste e Oeste como ponto de partida para teorias elaboradas, epopeias,
romances, descrições sociais e relatos políticos a respeito do Oriente, seus povos,
costumes, ‘mentalidade’, destino e assim por diante (SAID, 2007, p. 29).

Na obra Orientalismo: o oriente como invenção do Ocidente, Edward Said, investe seus
estudos em como o Ocidente europeu estabelece uma “verdade” sobre o Oriente investindo em
uma série de produções as quais constroem uma ideia de Oriente a partir do Ocidente. Dentro
desse saber estabelecido pelo europeu sobre o outro temos uma relação de poder. De acordo
com Michel Foucault

A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele
produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade,
sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz
funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir
os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como sanciona uns e outros; as
técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o
estatuto daqueles que tem o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro
(FOUCAULT, 2007, p. 12).

Dessa maneira, entendo que a prática discursiva é uma prática inserida nas relações de
poder, impondo verdades, conceitos, tornando o conhecimento um aliado ao desejo da
dominação e do controle sobre o outro. Como bem coloca Said

Comecei a suposição de que o Oriente não é um fato inerte da natureza. Ele não está
meramente ali, assim como o próprio Ocidente tampouco está apenas ali. Devemos
levar a sério a grande observação de Vico de que os homens fazem a sua história, de
que só podem conhecer o que eles mesmos fizeram, e estendê-la à geografia; como
entidades geográficas e culturais – para não falar de entidades históricas -, tais lugares,
P á g i n a | 77

regiões, setores geográficos, como ‘Oriente’ e o ‘Ocidente’, são criados pelo homem
(SAID, 2007, p. 31).

Assim, temos um discurso que não é inocente, mas que está dentro de uma lógica que
se quer aceitável para favorecer o processo de dominação e controle, em que àquele que exerce
o poder hegemônico está em posição de estabelecer critérios de verdade sobre àquilo ou àquele
que supõe conhecer. Nesses termos, o europeu que busca expandir não só seu mercado e seu
sistema em favor próprio, quer também construir conceitos e verdades a partir de si, construindo
o outro e a si mesmo de acordo com seus interesses, como sugere Foucault

Suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo


controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de
procedimentos que tem por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu
acontecimento aleatório e esquivar sua pesada e temível materialidade. Em uma
sociedade como a nossa, conhecemos, é certo, procedimentos de exclusão
(FOUCAULT, 2012, p. 09).

Essas construções imagéticas discursivas, as quais estabelecem verdades aceitáveis


sobre o outro, são procedimentos de exclusão, pois são capazes de classificar o que é certo, o
que é errado, o que é verdadeiro, o que é falso, boas condutas, más condutas, o aceitável, o
inaceitável, o civilizado, o incivilizado, o ser, o bárbaro, determinam a maneira certa de se viver
contrapondo à outra maneira que é a errada e dessa forma o que se estabelece contrário a forma
padrão de vida passa a ser vista como nociva a mesma, sendo necessário fabricar corpos que
sejam úteis para a vida em sociedade forjada por interesses não naturais ou inocentemente
justaposta para um bom convívio em que alguns tem que ceder para que outros possam manter
seus privilégios. Caso não obtenha êxito na busca desta sociedade padrão, excluir ou aniquilar
esse organismo nocivo se faz necessário para o bom andamento desta sociedade.

Nas linhas que seguem irei expor com mais detalhes esses elementos aqui destacados, a
partir do objeto de pesquisa que por ora analiso, pois ao meu entender, as transformações
ocorridas no Brasil na virada do século XIX para o XX e as práticas envolvidas entre os
diferentes segmentos da sociedade estão inseridos nesse contexto maior. O espaço em disputa,
construído e reconstruído historicamente, as narrativas discursivas concorrentes, bem como as
ações políticas, econômicas, sociais e culturais que coloco em foco, mostra a dinâmica e a
complexidade, ora estabelecidos num contexto mais geral, ora com suas singularidades.

Migração e biopolítica

No Brasil, em 1850, antes mesmo da conferência de Berlim (1884/85) que fatia o mundo
para a exploração das grandes potências capitalistas, se tem a Lei de Terra, que é a valorização
da mesma para um viés mercadológico. Com essa lei, as terras que outrora serviam para o
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usufruto dos trabalhadores e trabalhadoras rurais, passam a servir àqueles que podem comprá-
las, sendo úteis para a produção em alta escala de um mesmo produto que servirá de matéria
prima para a indústria, principalmente a estrangeira, modificando as relações que se tem, até
então, com este espaço, a exemplo disso temos no Ceará a larga produção do algodão. Frederico
de Castro Neves afirma

Esse avanço de uma agricultura comercial, sedentária que buscava um excedente


mercantil, tornou subitamente impossível a ‘retirada’ dos moradores para as terras
mais úmidas durante os períodos de irregularidade de chuvas, pois elas não estavam
mais ‘disponíveis’ para isso, ocupadas agora com a cultura do algodão e valorizadas
monetariamente (NEVES, 2004. p. 79).

A relação que os agora proprietários das terras têm com a mesma é de mercado e não
mais de simples subsistência, busca-se com isso gerar capital com o excedente da produção - a
preocupação não está mais na segurança alimentar -, esse mesmo capital passa a ser investido
na urbanização e modernização de algumas cidades à exemplo de Fortaleza.

No Ceará, os períodos de estiagem eram constantes, e, após a seca de 1845, cria-se a


ideia de que este período de irregularidade de chuvas ocorre nesse estado a cada vinte anos, de
acordo com Tanísio Vieira “após a seca de 1845, a ideia da existência de um ciclo de secas que
assolaria o Ceará a cada vinte anos, foi paulatinamente consolidada entre os círculos intelectuais
provincianos” (VIEIRA, 2002, p. 17). Quando em 1865 não se estabelece o tal ciclo, há na
sociedade certa confiança na natureza e de que os períodos de estiagem não voltariam. Nesse
mesmo período a incerteza está em outro lugar, não por questões climáticas, mas por conflitos
civis. Os EUA, maiores exportadores de algodão do mundo, passou por uma crise, que
beneficiou, de certa maneira, o Brasil, sobretudo a província do Ceará.
Com a Guerra de Secessão nos Estados Unidos, o Ceará se tornou grande exportador de
algodão, as terras passaram a ter maior valor monetário e a produção em alta escala que
necessitava de uma parcela maior da propriedade, fez com que muitos empregados perdessem
suas terras, uma vez que estas agora também faziam parte do monopólio do patrão, que buscava
produzir o máximo possível para atender a demanda exterior. A partir de 1865, temos então
dois fatores importantes que contribuíram para um maior desenvolvimento urbano na província
do Ceará: 1) A confiança na natureza que não seguira com o ciclo de que a cada vinte anos
ocorreria um período de estiagem; 2) a substituição dos EUA no mercado do algodão, tornando-
se a grande exportadora dessa matéria prima.
Se na Europa a transição para o capitalismo “liberta” o trabalhador dos laços de
costumes e lealdade que antes o prendiam tanto social como espacialmente, no Brasil esses
laços de dependência são fortalecidos por uma estrutura cada vez mais engessada pela
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necessidade de sobrevivência do trabalhador e da trabalhadora do campo, que se veem presos


a essa estrutura e obrigados a persistir nela se quiserem subsistir, ou migrar para outras
localidades. As relações entre trabalhadores e trabalhadoras do campo e seus patrões
estabelecidas através da dependência e lealdade, características do clientelismo e paternalismo 42
que compõem as relações de poder na sociedade rural passam a ser insuficientes diante dos
novos usos da terra. Com a seca de 1877, a migração para a cidade foi intensa. Fortaleza que
na época possuía cerca de 30 mil habitantes, se vê ocupada por cerca de cem mil indivíduos que
se retiravam das mais diversas localidades da província tendo como destino a cidade que se
modernizava.
Se entre os anos de 1845 e 1877 foram de intenso crescimento urbano em algumas
cidades brasileiras, em 1877 com a chamada “grande seca”, houve certa ruptura desse
desenvolvimento, uma vez que a seca neste ano teve proporções distintas de outras estiagens
anteriores, não por sua intensidade, mas principalmente por não ter atingido apenas a zona rural,
mas também a cidade. Como algumas cidades se desenvolviam urbanisticamente e novas
relações com o espaço citadino surgia, a cidade passou a ser ponto de chegada de vários
trabalhadores e trabalhadoras rurais que não tinham mais possibilidades de se manter nas
fazendas, uma vez que agora a grande propriedade estava voltada para o comércio e a pequena
propriedade era facilmente atingida pela escassez.

Outro fator importante para aumentar ainda mais a repercussão da seca e que foi
fundamental para criar no imaginário a ideia de 1877 ser considerado o ano da “grande seca”,
foi a imprensa que cada vez mais tinha maior importância no seio da sociedade. No jornal O
Cearense de 1877 em sua edição 27 afirma “atravessamos uma seca assoladora e uma fome
horrível ameaça aniquilar a população destes sertões destituídos de todos os recursos” 43 (O
Cearense, 29 de março de 1877). Já o jornal Pedro II do mesmo ano em sua edição 46 expõe o
discurso da seca como aspecto natural que assola sobretudo o Ceará e o cearense, que vítima
deste infortúnio natural necessita da “caridade” e dos “favores” para “salvar” essa gente

42
No caso da sociedade local, o paternalismo funciona como instrumento essencial para o esquema de legitimação
dos coronéis. Em primeiro lugar, porque apresenta-se como mecanismo eficaz na consolidação das relações de
dependência que subordinam os trabalhadores aos caciques locais, tanto ao nível econômico (via endividamentos
eternos resultantes do sistema de “adiantamentos” que historicamente funciona como financiamentos à pequena
produção) como social (cia relações de compadrio, que unem, de forma subordinada, minifundiários a
latifundiários). Em segundo lugar, e como decorrência lógica, essa dependência irá refletir-se no nível político,
onde os poderosos locais sempre lograram impor sua vontade, desde a época colonial – quando possuíam
prorrogativas de justiça e militar – passando pelo império – quando eram nomeados coronéis da Guarda Nacional
-, até o período republicano – quando a forma de subordinação do trabalho ao capital no campo permite a
emergência do voto de cabresto e dos currais eleitorais (BURSZTYN, 1984. P. 21).
43
Secca. O cearense, Fortaleza, 29 de março de 1877. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=709506&Pesq=seca%20de%201877&pagfis=11621
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“flagelada”: “as companhias de navegação a vapor do Amazonas e de Marajó, offereceram-se


para transportarem gratuitamente em seus vapores para qualquer ponto do interior da província,
os emigrantes cearenses, que os rigores da seca arrojaram para longe de suas terras”44 (Pedro
II, 14 de Junho de 1877).
Além das páginas de jornais, a seca de 1877 também foi temática constante de romances
como por exemplo A Fome de Rodolfo Teófilo, no qual o autor inicia sua obra dizendo
O mês de dezembro é sempre quente nas províncias do Brasil mais próximas do
equador. Mesmo no litoral, que é bafejado pelas brisas do mar, os dias são calmosos,
a temperatura, à sombra, chega às vezes, a 33º centigrados. Foi na tarde de um desses
dias, no ano de 1877, o ano da fome, que na Jacarencanga, um dos arrabaldes de
Fortaleza, arranchava-se à sombra de um cajueiro uma família de retirantes, que,
depois, das torturas de uma viagem de cem léguas, vinham aumentar a onda de
famintos (TEÓFILO, 1979, p. 4).

Na obra citada, o autor expõe cenas que eram costumeiramente visíveis e noticiadas,
levando alguns comentaristas de seu romance escreverem que a sua obra “reflete a vida
cearense”45. De acordo com Durval Muniz de Albuquerque Júnior

A transformação da seca em problema nos apareceu, então, como um processo


conflituoso, em que diferentes práticas e discursos se defrontaram, fazendo emergir
este novo objeto de saber e poder: “a seca do Norte”, cuja invenção deve ser apagada,
remetendo-o para o reino da natureza, ocorrendo, portanto, no final do século XIX,
uma mudança na imagem e no uso do fenômeno da seca (ALBUQUERQUE JR.,
1994, p. 112).

Com a consolidação do sistema capitalista e o desenvolvimento das cidades pelo Brasil


ganhando ares da modernidade, a paisagem do campo e da sociedade rural começa a ter novos
significados. Constrói-se, assim, uma ideia sobre o Nordeste, ou melhor, um conceito, no qual
ao se falar a palavra Nordeste temos em nosso imaginário todo um arsenal de imagens
representativas desse espaço do qual se configura pelo discurso como uma paisagem rural, seca,
miserável, de pessoas famintas, que vivem em retirada de suas moradias para cidades em busca
de sobrevivência, e, nessa migração, esses sujeitos tornam-se flagelados. Àquilo que remetia
ao rural era visto como sinal de atraso, de arcaico, retrocesso e rústico; já a cidade, vista como
moderna, conotava desenvolvimento, evolução, civilização e progresso. A cidade significava o
novo, enquanto que o campo denotava o velho. Segundo, Sebastião Rogério Ponte

Tais anseios por modernização começaram a se materializar ainda naquele final de


século. A partir mesmo das décadas de 60 e 70, o perfil da cidade principia a sofrer
alterações. Na década de 60, por exemplo surgem o Lazareto da Lagoa Funda e a
Santa Casa de Misericórdia para zelarem pela saúde pública, pois, como ressaltava o

44
Revista do Norte. Pedro II, Fortaleza, 14 de junho de 1877. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=216828&pasta=ano%20187&pesq=%22os%20emigrantes
%20cearenses%22&pagfis=7748
45
Ver ALMEIDA, Fenelon. As vozes da seca. Fortaleza, ACI, 1978.
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saber médico social então em constituição, sem homens sadios para o trabalho não
haveria produção de riqueza e progresso (PONTE, 2004, p. 164).

Mesmo com a gradual urbanização que se faz no Brasil a partir da segunda metade do
século XIX e a modernização que se dá nas principais cidades brasileiras no início do século
XX, a relação de subordinação do trabalhador é mantida. A tal “benevolência” dos proprietários
de terra que doam remédios, roupas, comida, quem sabe até um pequeno espaço para cultivar
ou até mesmo a possibilidade de alfabetizar os filhos dos trabalhadores, gera dessa maneira a
obrigatoriedade de um retorno, gerando subserviência por parte dos trabalhadores e o controle
sobre estes por parte do patrão. Essa estrutura que se estabelece na sociedade rural migra junto
com os trabalhadores e trabalhadoras para a sociedade urbana, uma vez que a tal relação
paternalista outrora estabelecida entre patrão e empregado no campo, agora se faz entre donos
de indústrias – “o capitalista social cristão” - e o migrante do campo. Kênia Sousa Rios afirma

O emprego dos sertanejos nas indústrias de Fortaleza também recebia a conotação de


amparo. Inspiradas no catolicismo, as classes dominantes definiam a exploração da
força de trabalho como caridade. Conforme a pesquisa de Geraldo Nobre sobre a
industrialização no Ceará, o arcebispado de Fortaleza criava sociedades operárias que
deveriam funcionar sob o controle da burguesia católica. A figura de ‘São José
Operário’ passa a ser largamente utilizada para fortalecer os laços entre trabalhadores
e cristianismo (RIOS, 2002, p. 112).

Assim, cabe destacar o trabalho como mecanismo de disciplina, como instrumento


pedagógico na formação de sujeitos hábeis para o trabalho e dóceis, ou seja, úteis e sob controle.
De acordo com Foucault
O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo
humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco
aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o
torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. Forma-se então uma
política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada
de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra
numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma
“anatomia política”, que é também igualmente uma “mecânica do poder”, está
nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não
simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com
as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim
corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis” (FOUCAULT, 2013, p. 133).

Durante os períodos de estiagem, como já foi visto, era comum a migração de parte da
população rural para a cidade. Esta migração faz romper, de certa forma, um processo de
modernização, desestrutura aspectos da “normalidade” do espaço citadino, levando desconforto
aos habitantes da urbe, que agora se veem misturados com indivíduos que são indesejados nos
espaços urbanos. Para Yi-Fu Tuan

O medo recorrente sentido pelos governantes, funcionários e cidadãos era da


desordem pública e violência em uma escala que pudesse levar à revolução e anarquia.
A visão de multidões de pessoas aglomeradas em um só lugar, a maioria delas pobres
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e sem evidentes laços familiares e de riqueza, despertava ansiedade” (TUAN, 2007,


p. 259).

No reconhecimento desse indivíduo que vem de fora, o qual não faz parte do tipo
padronizado da cidade, na identificação desse sujeito, impõe-se um olhar, uma vigilância, um
saber, que ao decorrer do tempo gera técnicas capazes de sujeita-lo. Como afirma Foucault

Este biopoder sem a menor dúvida, foi elemento indispensável ao desenvolvimento


do capitalismo, que só pode ser garantido à custa da inserção controlada dos corpos
no aparelho de produção e por meio de um ajustamento dos fenômenos de população
aos processos econômicos. Mas, o capitalismo exigiu mais do que isso; foi-lhe
necessário o crescimento tanto do seu reforço tanto da sua utilizabilidade e sua
docilidade; foram necessários métodos de poder capazes de majorar as forças, as
aptidões, a vida em geral, sem por isso torna-las mais difíceis de sujeitar; se o
desenvolvimento dos grandes aparelhos de Estado, como as instituições de poder,
garantiu a manutenção das relações de produção, os rudimentos de anátomo e bio-
política, inventados no século XVIII como técnicas de poder presente em todos os
níveis do corpo social e utilizada por instituições diversas (a família, o Exército, a
escola, a polícia, a medicina individual ou a administração das coletividades), agiram
no nível dos processos econômicos, do seu desenrolar, das forças que estão em ação
e os sustentam; operaram, também, como fatores de segregação e de hierarquização
social, agindo sobre as forças respectivas tanto de uns como de outros, garantindo
relações de dominação e efeitos de hegemonia. (FOUCAULT, 2010, p. 153-154).

Assim, a institucionalização desse biopoder, tem por característica o controle dos


corpos, fazendo deles úteis para o trabalho e dóceis no sentido de evitar manifestações
transgressoras, tornando esses corpos disciplinados e sujeitados.

Paisagem e cidade em perspectiva

Quando falamos em paisagem é comum vir em nossa mente um lugar estagnado, algo
no campo da visão e do imaginário, pensamos um espaço parado, retirado de uma totalidade,
ou seja, uma parte do todo que pode ser analisada de forma isolada. Essa percepção simplista
sobre a paisagem negligencia a ação humana no ambiente, ou melhor, negligencia a interação
humana com o espaço. Os seres humanos estão inseridos no espaço, portanto, se queremos
analisar a dinâmica deste e sua complexidade, não podemos omitir a participação humana. Para
o geógrafo Denis Cosgrove

In geographical usage landscape is an imprecise and ambiguous concept whose


meaning has defied the many attempts to define it with the specificity generally
expected of a science. While landscape obviously refers to the surface of the earth, or
a part thereof, and thus to the chosen field of geographical enquiry, it incorporates far
more than merely the visual and functional arrangement of natural and human
phenomena which the discipline can identify, classify, map and analyse
(COSGROVE, 1998, p. 13)
P á g i n a | 83

Cosgrove afirma que embora se busque uma definição objetiva, técnica, que possibilite
o caráter científico, no sentido de dar uma resposta precisa e verdadeira sobre esse fragmento
recortado para a investigação geográfica, a paisagem não é só um dado concreto visual e
funcional dos fenômenos naturais e humanos que a disciplina cientificista pode identificar,
classificar, mapear e analisar. Segundo o autor, a paisagem incorpora aspectos subjetivos da
experiência humana. Cosgrove vai trazer uma concepção da paisagem mais ampla que leva em
consideração aspectos históricos, culturais, sociais e econômicos, criticando, dessa maneira, a
percepção da geografia predominantemente fisiográfica. De acordo com este autor, “landscape
is not merely the world we see, it is a construction, a composition of that world. Landscape is a
way of seeing the world.” (COSGROVE, 1998, p. 13).
Assim, a paisagem que vemos sendo modificada nas cidades do Brasil na virada do
século XIX para o subsequente, se dá a partir dessa relação que os seres humanos têm com o
espaço, e não é uma relação inocente, mas nela acompanha elementos ideológicos, políticos e
culturais que são fundamentais para forjar um tipo de cidade específico e alinhado com os
interesses de uma classe hegemônica.
No final de século XIX e nas primeiras décadas do século XX, as cidades brasileiras se
modernizavam buscando, principalmente na Europa, sobretudo em Paris, um modelo para o
desenvolvimento. Passeios públicos, lojas, cafés, ruas largas, cinemas, praças, enfim, todo um
aparato material, concreto, visível, foi se estabelecendo com o objetivo de trazer ao Brasil e a
suas principais cidades a modernização.
Walter Benjamin, em seu texto Paris, capital do século XIX, expressa as modificações
pelas quais Paris passou no decorrer deste século. Ao tratar sobre as galerias “os primeiros
estabelecimentos a manterem grandes estoques de mercadorias” (BENJAMIN, 1982, 31), o
autor demonstra a mudança na paisagem de Paris associada aos interesses de uma burguesia em
ascensão, uma cidade que ao longo do século vai se configurando com características
eminentemente urbanas que já tem passado por revoluções burguesas como a de 1789, 1830 e
1848, a qual está redefinindo padrões nos espaços públicos e privados, a partir de uma lógica
burguesa cada vez mais vigente e determinante nos anseios do Estado e das classes dominantes
de um capitalismo em ascensão. Essas galerias que simbolizam o momento de transição para
uma sociedade dita moderna, sociedade esta que vislumbra aquelas mercadorias presentes nas
vitrines das galerias, pois consumir aqueles objetos em exposição dava a ideia de “elevar” o
modo de vida dos cidadãos para aquilo que vai se definindo como civilizado, passam a ser
objetos de desejos de estrangeiros que veem as transformações urbanísticas e o modelo de vida
dessa Paris como o exemplo a ser seguido. As galerias com uma estrutura arquitetônica de vidro
P á g i n a | 84

e ferro, possibilita que os andantes, seja em tempo chuvoso ou não, possam seguir visualizando
as mercadorias e desejando obtê-las, para a satisfação dos comerciantes e sobretudo da
burguesia têxtil que ao tempo que é um fator condicional da origem dessas galerias é também
beneficiada por ela. É necessário chegar a esse nível de progresso. É essa a verdade que
devemos aceitar. Essa transição, onde vários elementos coexistem entre o novo e um passado
remoto, inclusive ainda hegemônico, se dá de forma violenta no sentido em que aquilo que
remete ao antiquado é percebido como algo a ser instinto, aniquilado, ultrapassado.
Essa ideia de “progresso”, de “civilização”, de sociedade “nova” passa a ser objeto de
desejo, de sonho, onde parece ser um caminho unívoco a ser seguido para uma história em que
todos são felizes para sempre. No entanto, o que Benjamin faz é uma crítica dialética desse
progresso, que de maneira alguma consegue camuflar as contradições dessa ficção que se pensa
um movimento contínuo, linear, mesmo que se queira esconder suas imoralidades, elas
aparecem escandalosamente. Enquanto temos os lucros comerciais advindos dos excedentes
estocados nas galerias, temos por outro lado o desenvolvimento do atraso seja na própria Paris,
ou em territórios outros que foram neocolonizados para gerar mercadorias e consequentemente
lucro para alguns em detrimento da pobreza e miséria dos outros. Para concretizar essa fantasia
criada a partir da ideia do novo e do progresso, temos o desenvolvimento da miséria, da
exploração e da pobreza. A ânsia por mostrar o “belo” – que seria tudo aquilo que remetemos
ao moderno, ao novo -, faz-se da necessidade de tentar esconder o seu contrário, aquilo que não
segue o padrão, o que é definido como feio, ou que faz parte do passado, ou como disse Belchior
“uma roupa que não nos serve mais”.
No início do século XX, as transformações pelas quais passava Fortaleza eram visíveis
e não demorou para as comparações com tempos remotos surgissem, de tal modo que havia
repúdio aos aspectos da paisagem que remetia a tempos não tão longínquos. No momento da
chamada Belle Époque em Fortaleza o historiador Paulino Nogueira enaltece aspectos da
materialidade urbana da “nova” Fortaleza
Passeio público, praças arborizadas, templos majestosos edifícios elegantes, tantas e
tantas ruas alinhadas, calçamento, iluminação a gás, linhas de bondes, carros de
aluguel, hotéis, quiosques, clubes, prado, corrida de touros, à cavalo e à bicicleta,
quermesses, bazar e demais novidades (NOGUEIRA apud PONTE, 2004, p. 162).

A medida que Fortaleza se modernizava, a ideia era cada vez mais de certo
distanciamento em relação ao passado nem tão distante assim no tempo. A paisagem citadina
que estava sendo forjada a partir dos ideais capitalistas que se pretende homogênea e em
harmonia com os interesses burgueses da época, dando ar de dominação em relação a
insegurança atribuída à natureza. De acordo com Yi-Fu Tuan
P á g i n a | 85

A cidade representa a maior aspiração da humanidade em relação a uma ordem


perfeita e harmônica, tanto em sua estrutura arquitetônica como nos laços sociais (...).
Correspondendo a este desejo de perfeição física estava o anseio por uma sociedade
estável e harmoniosa (TUAN, 2007, p. 231).

Não bastava modernizar a cidade com aparatos físicos, era necessário construir corpos
que harmonizassem com esse novo espaço, assim, ara fundamental civilizar a população,
padronizar um tipo de cidadão que se queria na cidade. Desse modo, se por um lado a cidade
representava segurança, por outro a um temor sobre a diversidade de pensamentos, ideias,
interesses antagônicos, há um medo da multidão, que esta não opere da maneira que se deseja,
da transgressão, da não aceitação das condutas impostas como boas, de tal forma que aqueles
corpos hostis, os quais representam uma ameaça para a saúde da sociedade, tais corpos
indesejados são reprimidos, se caso não aderissem ao comportamento e condutas impostas. São
forjados espaços para cada grupo social, pessoas são fabricadas a agir conforme a regra
estabelecida. É necessário docilizar os corpos e tornar úteis os indesejados.

Crato, uma comunidade imaginada

Não era apenas a capital do estado do Ceará que buscava se modernizar, as elites das
cidades do interior buscavam demonstrar como estas cidades davam passos largos no processo
de urbanização e desenvolvimento em termos capitalistas. A cidade do Crato, localizada na
região sul desse estado – o Cariri cearense -, era uma dessas cidades. De acordo com Irineu
Pinheiro em seu livro “O Cariri”, o jornal “O Araripe” teve como objetivo maior efetivar a
região do Cariri como província. Em seu número 46 de 31 de maio de 1856 expõe
Infra transcrevemos um artigo do Diário do Rio de Janeiro, brilhante publicação
jornalística do nosso distinto patrício, o Sr. Dr. José M. de Alencar. Em nome do
público cratense protestamos-lhe o nosso conhecimento pelo valioso serviço que
presta à causa da criação da província do Cariri, serviço tanto mais profícuo quanto
esse atleta da imprensa pode levar à convicção do corpo legislativo essa verdade que
achou sua demonstração no espírito lúcido do venerando nosso caro amigo, Sr.
senador Alencar, e no dos seus ilustrados e respeitáveis colegas, Paranaguá,
Vasconcelos e S. Leopoldo. O Sr. Dr. Alencar, prestando à sua terra serviço tão
valioso, não faria debalde um apelo à generosidade do bom povo cratense quando
chegasse o dia de lhe poder dar uma prova da nossa sincera gratidão: a nova província
do Crato (O ARARIPE apud PINHEIRO, 2010, p. 31).

Existia em segmentos da sociedade local e dos meios de comunicação que os


representava o desejo de desmembramento da região do Cariri em relação ao estado do Ceará
e assim tornar a cidade de Crato a capital dessa nova província, como segue em nossa fonte

Contando com uma população de mais de 200 mil almas, é esta a comarca melhor
povoada da província do Ceará, e o Crato o povoado mais importante dos confins das
províncias limítrofes. Sua população é mais de 6 mil almas, e a pequena distância
ficam 3 vilas, 8 povoações e um sem número de arraiais. Consignando o ilustre
senador (Alencar) a ideia de que o Crato fosse a sede da nova província, teve em
mente por sem dúvida estas conveniências, a que cumpre atender, e se mostrou prático
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e conhecedor das localidades e suas proporções. O ponto central não foi mesmo
desprezado para assento do governo (O ARARIPE apud PINHEIRO, 2010, p. 34).

A cidade do Crato é posta como uma cidade que atrai pessoas, que fascina, conhecida
por seus apelidos, “Princesa do Cariri”, “Oasis do Cariri”, notamos um desejo inspirador em
torno desta cidade no sentido de coloca-la como cidade em desenvolvimento desde a segunda
metade do século XIX e nas primeiras décadas do século seguinte. Não foi, pois, sem razão que
a edilidade gravou na coluna da Hora-Cristo Redentor – em frente a antiga Estação Via-Férrea,
este convite: seja bem-vindo, aqui há lugar para todas as pessoas de boa vontade” (BORGES,
2008).
“Se eu fosse podre de rico
Não morava no mato
Iria morar com Laurinda
Lá nas ruas do Crato”.
“Crato muito te amo
Muito te quero
Não só pelos teus belos rincões
Mas pelos arrancos cívicos
Dos teus grandes filhos
Alencares e Tristões”.

Havia um desejo enorme por parte das elites intelectuais locais, bem como de políticos
em fazer com que a cidade do Crato adentrasse na modernidade que já havia chegado em outras
cidades. O Crato segue como uma comunidade imaginada por seus intelectuais, que buscam,
principalmente, por meio da imprensa, demonstrar sua importância na região e seu
desenvolvimento comercial, além de buscar eventos históricos como algo que a legitime como
vanguarda em movimentos emancipatórios como a Revolução de 1817, em que teve Bárbara
de Alencar, uma pernambucana da cidade de Exu, mas radicada em Crato, como uma
importante liderança, e que depois seus filhos José Martiniano de Alencar e Tristão Gonçalves,
como nomes importantes de outro momento emancipador de grande relevância na história do
Brasil, a Confederação do Equador de 1824. Dessa forma, busca-se forjar uma cidade
importante no cenário não só estadual, mas nacional. Seguindo o raciocínio de Benedict
Anderson46 ao tratar sobre o capitalismo editorial, é por meio do material impresso que a nação
se converte numa comunidade sólida, recorrendo constantemente a uma história previamente
selecionada, assim, podemos ver o escrito de memorialistas e literaturas diversas com o intuito
de massificar os desejos necessários e importantes para concretizar a comunidade imaginada.
Como sugiro na minha dissertação de mestrado
Os intelectuais têm importância extrema na construção de uma ideia que se quer
efetivar, identificando os tipos de seus habitantes, qualificando-os – ou

46
Ver Anderson Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São
Paulo: Companhia das Letras, 2008.
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desqualificando-os – e classificando-os, mostrando os personagens históricos, os


feitos dignos de serem exaltados, enfim (ALBUQUERQUE FILHO, 2015, p. 43).

Sempre buscando enaltecer grandes fatos e personagens “dignos” da história, tentando


mostrar a importância desta cidade, e não só isso, mas construindo um imaginário sobre a
mesma, selecionando personagens e tornando o tipo padrão do citadino cratense, enaltecendo
fatos históricos – já apontados anteriormente – e aspectos naturais que a coloca como um espaço
diferente nessa região, pois é o “oásis do Cariri”, contemplado pela chapada do Araripe e suas
diversas nascentes. Coloca-se o Crato como cidade de chegada e não de partida 47. A ideia é que
pessoas que vem de outras cidades e estados, ao chegarem nessa cidade, buscam se fixar nela.
Essa questão é vista como algo de relevância, porém, quando o migrante que vem não é o da
cidade, mas sim o do campo fugindo da seca a percepção é outra, ora como vítima da natureza
cruel, ora como elemento desarticulador dos bons fluidos da cidade, àquele denominado
retirante entra pelas linhas das escritas da imprensa ou dos intelectuais locais, não com tanto
esmero e enaltecimento.

Necropolítica: o Caldeirão da Santa Cruz do Deserto e o Campo de Concentração do


Burity.
Desde o final do século XIX, a cidade do Crato recebe pessoas ligadas ao catolicismo
popular chegadas de diversas cidades, com o objetivo de conhecer o Padre Cícero, o qual as
histórias dos milagres do tal padre começaram a ser disseminadas e levadas para outros estados
do país. De acordo com Francisco Regis Lopes Ramos
Em 1889, Padre Cícero começou a ficar conhecido em outros lugares. Para muitos
habitantes do sertão, eram verdadeiras as notícias sobre a hóstia transformada em
sangue na boca da beata Maria de Araújo durante a missa celebrada pelo Padre Cícero.
Seduzidos pelo desejo de entrar em contato com o tão extraordinário acontecimento,
vários devotos fizeram de Juazeiro o grande centro de romarias (RAMOS, 2004, p.
348).

O conhecido “milagre de Juazeiro”, ocorreu pela primeira vez em público em 1889,


quando a hóstia recebida pela beata Maria de Araújo sangrava. Esse acontecimento se deu em
missa celebrada pelo Padre Cícero em um pequeno vilarejo pertencente ao município do Crato,
o qual mais tarde, em 1911, veio a se tornar a cidade Juazeiro do Norte. Após esse
acontecimento, o número de pessoas que buscavam conhecer o “Padim Ciço” só crescia, a
população do vilarejo começou a se desenvolver com esses emigrantes, sua economia também

47
Ver VIANA, José Ítalo Bezerra. O Instituto Cultural do Cariri e o centenário do Crato: Memória, escrita da
história e representações da cidade. 2011. 181 f. Dissertação (mestrado em história) – Universidade Federal do
Ceará. Fortaleza, junho, 2011.
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crescera. O Padre Cícero se tornou o primeiro prefeito de Juazeiro e cada vez mais ganhava
adeptos das camadas populares e coronéis apoiadores. O caso de Juazeiro ficou conhecido como
um ato de fanatismo religioso. O próprio bispo do Ceará, dom Joaquim Vieira, “lançou vários
protestos contra o ‘fanatismo dos sertanejos’” (RAMOS, 2004, p. 345).
Em uma dessas romarias (1890), o paraibano José Lourenço chega a Juazeiro passando
a se dedicar ao trabalho missionário e cada vez mais se aproximava do Padre Cícero, se tornando
amigo do padre. O beato José Lourenço era um trabalhador rural, e buscava construir uma
comunidade rural baseada na ajuda mútua, no trabalho coletivo de camponeses os quais
poderiam novamente viver da terra, porém sem as relações de dependência que tinham antes
com os proprietários das mesmas, apesar de haver relações de poder na comunidade, pois o
beato José Lourenço era o seu líder.
Primeiro surgiu a comunidade da Baixa Danta, localizada numa propriedade em Crato,
pertencente a um amigo do Padre Cícero, João Brito. A tal propriedade era vista como imprópria
para o cultivo e não havia exploração dessa terra que gerasse lucro ao seu dono. Após alguns
anos na propriedade, o beato, junto a camponeses e camponesas que lá estavam, fizeram dela
um lugar extremamente fértil e passaram a produzir e negociar esta produção com outras
propriedades, até que o proprietário da terra exigiu a posse da mesma.
Em negociação com o Padre Cícero, o beato José Lourenço conseguiu a posse de outra
terra, também no Crato, mas dessa vez a propriedade pertencia ao próprio Padre Cícero. Foi
criada a comunidade do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto em 1926, com o mesmo intuito da
comunidade da Baixa Danta, os trabalhadores e trabalhadoras conseguiram emergir uma
propriedade fértil, baseada na caridade cristã, no trabalho e na solidariedade, pois a comunidade
aceitava emigrantes de outras localidades que chegavam à região. As vielas da comunidade
possuíam o nome dos estados para facilitar a construção de moradias e que pessoas do mesmo
estado pudessem ficar próximas.
O Caldeirão da Santa Cruz cresceu a ponto de ter cerca de três a cinco mil moradores.
O trabalho era coletivo, o usufruto do trabalho também. Havia uma capela para a oração,
trabalhos com artesanato, na agricultura, enfim, o objetivo da produção não era mercadológico,
mas a sobrevivência. A ideia de liberdade em relação às opressões exercidas pelos antigos
patrões fez com que a comunidade se desenvolvesse cada vez mais.
Com o fim da chamada “República Velha” e o início da “Era Vargas”, entre os anos de
1930 e 1945, a busca pelo “progresso”, ideias de modernização e civilização, ganhavam cada
vez mais adeptos. O antagonismo entre “novo” e “velho”, “civilizado” e “incivilizado”, era
cada vez mais presente no governo e na sociedade citadina, e não demorou para que a partir
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desse discurso pudessem estabelecer a comunidade do Caldeirão como um local de fanáticos


religiosos, inimigos da civilização e do progresso. Seria o Caldeirão uma nova Canudos? Era
essa a questão posta.
De acordo com o relatório feito pelo Tenente José Góes de Campos Barros “Canudos,
Contestado e Joazeiro, lembram retrocesso e sangue. O governo, inteligente e bem intencionado
que, atualmente, é responsável pela produtiva tranquilidade do povo cearense, viu e impediu a
formação de uma tragédia futura, no sertão exausto e sofredor” (BARROS, 1941, p. 09)48. Aqui,
verifica-se que as autoridades remetem a esse tipo de movimento, o qual tem como
característica a religiosidade popular como retrocesso, visto que nesse período o Brasil buscava
aderir as ideias liberais, “modernas”, o que remete ao popular, ao campo e ao rural como algo
obsoleto e ultrapassado, um obstáculo para o progresso e o desenvolvimento.
Outra justificativa elaborada era que a comunidade abrigava comunistas da Aliança
Nacional Libertadora (ANL), que era oposição ao governo de Getúlio Vargas e que em
novembro de 1935 tinha entrado em conflito com as tropas varguistas, em Natal, Recife e Rio
de Janeiro (HOLANDA, 1983). Um fato não pode ser ignorado: Severino Tavares, Beato muito
próximo de José Lourenço e que vivia no Caldeirão, era natural do Rio Grande do Norte e não
demorou para ser associado ao movimento de 1935. Com a instauração do Estado Novo (1937),
a Lei de Segurança Nacional foi reformulada e o país passou para um estado de guerra, fazendo
com que todos que eram vistos como uma ameaça para o governo, fossem perseguidos e presos.
Naquele momento, o espaço do Caldeirão entrava em disputa. O Estado queria exercer seu
poder naquele território. As casas foram incendiadas e sua população foi expulsa pelas
autoridades. Sebastião Vargas Netto, ao tratar sobre as lutas sociais no campo, afirma que “os
sertanejos, mesmo adotando um discurso religioso de defesa da ‘santa religião’, que se
converteu na linguagem usual da rebelião, tinha clareza quanto a força com as quais estavam
lutando” (VARGAS NETTO, 2007, p. 223).
A comunidade liderada pelo beato José Lourenço passa a entrar em disputa narrativa,
política e espacial. Acabar com àquela comunidade independente, autônoma, campesina, se
fazia necessário, era também uma demonstração de poder. Com a morte do Padre Cícero, em
1934, as investidas foram cada vez maiores. Como o Padre Cícero, tinha deixado suas
propriedades para a ordem dos Salesianos, estes reivindicaram as terras do Caldeirão, com a
resistência dos moradores desta, foi mais uma justificativa para o Estado agir de forma violenta
com o intuito de acabar com a tal comunidade. O Tenente José Góes de Campos Barros, em

48
Ordem dos Penitentes: exposição - Relatório do Tenente José Góes de Campos Barros, então Delegado da
Ordem, Política e Social (DOPS), publicado em 7 de julho de 1941, pelo Centro Regional de Publicidade.
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1941, justificava a destruição do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto (1939), afirmando que
“em pleno século vinte, quando a humanidade parece prestes a chegar a ordenada máxima
civilização, esta forma grotesca de expansão mística deve, forçosamente, classificar-se no
passado, entre os fenômenos mortos da evolução humana” (BARROS, 1941, p. 02).
Concomitante a esse processo do Caldeirão temos um outro evento que demonstra o
temor das classes dominantes e do Estado que a representa, com a multidão indesejada, com a
aglomeração destes em um espaço que se quer uno, homogêneo, para as pessoas “civilizadas”.
O Campo de Concentração do Burity é um espaço de confinamento de trabalhadores e
trabalhadoras que buscavam sair da situação de dependência e miséria da qual vivenciavam na
fazenda do patrão e da qual fora agravada com a estiagem de 1932. É importante que se diga
que esse campo de concentração foi um dos sete construídos no Ceará durante a estiagem de
1932. Os campos de concentração no Ceará seguiam a lógica da estação ferroviária de Baturité
– exceto o campo localizado na cidade de Ipú -, como segue no mapa abaixo

Mapa que mostra as cidades onde foram instalados os Campos de Concentração na seca de 1932 no
Ceará.

Existem duas situações importantes associadas ao campo de concentração do Burity:


primeiro que o campo serviu para “limpar” o corpo da cidade/sociedade, de organismos que
poderiam pôr a sociedade em “risco”, nesse caso isolar o corpo estranho e nocivo, seria um caso
de proteger o todo (cidade/sociedade). Tendo em vista os campos nazistas, temos a seguinte
observação do filósofo Achille Mbembe
P á g i n a | 91

Como é sabido, o conceito de estado de exceção tem sido frequentemente discutido


em relação ao nazismo, totalitarismo e campos de concentração/extermínio. Os
campos da morte em particular têm sido interpretados de diversas maneiras, como a
metáfora central para a violência soberana e destrutiva, e como o último sinal do poder
absoluto do negativo. Em razão de seus ocupantes serem desprovidos de status
político e reduzidos a seus corpos biológicos, o campo é, para Giorgio Agamben, ‘o
lugar onde a mais absoluta conditio inumana se realizou na Terra’. Na estrutura
político-jurídica do campo, acrescenta, ‘o estado de exceção deixa de ser uma
suspensão temporal do estado de direito’. De acordo com Agamben, ele adquire um
arranjo espacial permanente, que se mantém continuamente fora do estado normal da
lei (MBEMBE, 2016, p.124).

Achille Mbembe faz uma relação entre os conceitos de estado de exceção a partir da
perspectiva de Giorgio Agamben e o conceito de biopolítica de Michel Foucault. Giorgio
Agamben, autor que vai se debruçar sobre a questão do estado de exceção – período
determinado de emergência em que os direitos de indivíduos são destituídos temporariamente
- afirma que na contemporaneidade o estado de exceção se torna permanente. Michel Foucault
afirma que a biopolítica é a forma encontrada para se estabelecer a vida. A sociedade é como
um organismo que em certas medidas precisa expulsar algo que esteja colocando em risco a sua
existência, assim, por um lado temos certa relação positiva com a morte, a morte do ser
degenerado, do “anormal”, o aniquilamento do corpo estranho que põe em risco a existência do
todo é necessário para dar a garantia à existência. Fazendo uma relação entre o conceito de
estado de exceção e a biopolítica, podemos entender que a prática do estado de exceção é posta
em vigor quando a sociedade corre algum risco de desordem ou de ruptura. Em certo sentido,
o estado de exceção seria um mecanismo, uma forma de biopoder para evitar a degola do status
quo. Os campos de concentração nazistas seriam o exemplo em que o biopoder e o estado de
exceção estariam atuando para a manutenção da política nazista, para a proteção da nação e da
raça ariana. Nesse caso, as pessoas que foram concentradas eram vistas como uma ameaça para
a saúde da nação e da raça.
A soberania de Estado se ver na condição e detentora de direitos para, em nome da
existência, excluir àqueles que põe em risco a vida. Em outras palavras, a soberania de Estado
permite ditar quem não deve viver. Destituídos de seus direitos políticos e existindo apenas em
seu corpo biológico, os confinados nos campos de concentração vão viver no estado de exceção
permanente, ou seja, o estado de exceção não vai se dar por um período determinado e de
situação emergente, mas vai se configurar de uma maneira constante. O estado de exceção vai
se tornar um mecanismo político permanente para evitar o risco da perda de privilégios e evitar
o desmoronamento da sociedade vigente, que se busca manter dominante.
No caso referente aos campos de concentração no Ceará, instituídos durante a seca de
1932, temos uma prática semelhante, mas com o discurso distinto. O discurso do governo para
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confinar pessoas em um campo de concentração era o do assistencialismo, um discurso da


salvação. Para salvar aquela massa de “flagelados” se fazia necessário concentrá-los em um
espaço que favoreceria o atendimento a estes “pobres coitados”, como podemos observar no
próprio pronunciamento do então presidente Getúlio Vargas feito em Fortaleza no dia
18/09/1933: “organizaram-se, neste Estado, campos de concentração, por onde transitou mais
de um milhão de pessoas, atendidas com serviços profícuos de higiene e assistência” (FREYRE,
1933, p. 169).
O discurso feito pela elite citadina bem como o governo era que teriam, os campos de
concentração, um olhar mais detalhado, um cuidado maior sobre a higiene dos que seriam
concentrados. A prática dos campos de concentração era posta em pauta como sendo algo
necessário. Ao fim do mês de abril do ano de 1932, o governador do estado do Ceará, Roberto
Carneiro de Mendonça, apresenta o projeto dos campos de concentração. Em relatório oficial
temos a seguinte justificativa para a criação de tais campos
Para atender com eficiência os serviços de socorro aos flagelados, e evitar o
deslocamento deveras temível para a saúde e tranquilidade públicas das populações
sertanejas que emigravam para diversos pontos, principalmente para a capital, a
interventoria tomou urgentes providências... Tratou o governo de concentrar os
flagelados em pontos diversos, afim de socorre-los com eficiência e no tempo
oportuno. Foram criadas, sob a fiscalização do Departamento das Secas, sete
concentrações: Burity, no município do Crato; Quixeramobim, no município do
mesmo nome; Patu, no município de Senador Pompeu; Cariús, no município de São
Matheus; Ipú, no município de mesmo nome; Urubu e Otávio Bonfim, no município
de Fortaleza (apud Rios, 2006, p. 42-43).

A sociedade moderna se caracteriza pela implantação de técnicas disciplinares que seja


simultaneamente econômica e política, ou seja, que esses dispositivos disciplinares sejam
estabelecidos na sociedade de forma enrijecida, com baixo custo e elementar, fazendo
engendrar nela de forma sutil, mas não inocente, normas de convívio e de controle, onde cada
indivíduo seria reconhecido e classificado. Sem máscaras, possam ser facilmente identificados,
para que assim o enquadramento social seja estabelecido, cada um ocupando seu devido lugar.
Como afirma Michel Foucault
Houve em torno da peste uma ficção literária da festa: as leis suspensas, os interditos
levantados, o frenesi do tempo que passa, os corpos se misturando sem respeito, os
indivíduos que se mascaram, que abandonam sua identidade estatutária e a figura sob
a qual eram reconhecidos, deixando aparecer uma verdade totalmente diversa. Mas
houve também um sonho político da peste, que era exatamente o contrário: não a festa
coletiva, mas as divisões estritas; não as leis transgredidas, mas a penetração do
regulamento até os mais finos detalhes da existência e por meio de uma hierarquia
completa que realiza o funcionamento capilar do poder; não as máscaras que se
colocam e se retiram, mas a determinação de cada um do seu “verdadeiro” nome, de
seu “verdadeiro” lugar, de seu “verdadeiro” corpo e da “verdadeira” doença. A peste
como forma real e, ao mesmo tempo, imaginária da desordem tem a disciplina como
correlato médico e político. Atrás dos dispositivos disciplinares se lê o terror dos
“contágios”, da peste, das revoltas, dos crimes, da vagabundagem, das deserções, das
P á g i n a | 93

pessoas que aparecem e desaparecem, vivem e morrem na desordem (FOUCAULT,


2013, p. 188).

Tendo em vista essa compreensão da sociedade moderna como uma sociedade do


controle e da vigilância, pode-se verificar que na virada do século XIX para o XX, as cidades
brasileiras sobretudo as capitais, estão sempre inserindo ou querendo instituir um tipo padrão
de indivíduo que possa circular nos espaços citadinos. A análise e a classificação de cada
sujeito, leva a um saber sobre o outro capaz de julgar e determinar os espaços que este pode ou
não ocupar. No reconhecimento desse indivíduo que vem de fora, o qual não faz parte do tipo
padronizado da cidade, na identificação desse sujeito, impõe-se um olhar, uma vigilância, um saber,
que ao decorrer do tempo gera técnicas capazes de sujeita-lo.
O Campo de Concentração do Burity então passa a ser esse lugar de confinamento de
pessoas indesejadas, de organismos que põem a sociedade em risco, tendo dessa forma o mesmo
princípio dos campos nazistas como foi posto acima. Os corpos que ameaçam a sociedade que está
sendo forjada a partir de certos interesses de uma determinada classe hegemônica não podem
conviver nos mesmos espaços destes, pois poria em risco o bom andamento da dada sociedade,
sendo assim considerados um organismo altamente nocivo. Em entrevista a nós concedida, José
Alves afirma:
A vida era ruim. José Américo trazia comida para o povo comer duas vezes por dia,
só dava para comer uma vez e era pouco. O povo que juntaram lá adoeceram, a maior
parte morreu. Morreu gente demais lá. Eu me lembro. Andava os carregador de gente
morto, rua arriba, rua abaixo com a rede e pegando os mortos para botar dentro dos
valados.49

Se de um lado, o campo de concentração possibilitou a vida na cidade, excluindo o


organismo estranho, do outro gerou a morte de pessoas que lutavam contra a miséria gerada
não pela estiagem, mas pelo capitalismo que tomava forma a partir das relações no espaço rural
até chegar a sua forma no espaço urbano. De acordo com Achille Mbembe em seu texto sobre
política da inimizade,
A ideia segundo a qual a vida em democracia é, no seu fundamento, pacífica e
desprovida de violência (nomeadamente sob a forma da guerra e da devastação) não
nos convence. É verdade que a emergência e a consolidação da democracia vêm a par
de imensas tentativas de controlar a violência individual, de a regulamentar e reduzir,
suprindo nomeadamente as manifestações mais espetaculares e mais abjectas por
reprovação moral ou por sanções jurídicas. Mas a brutalidade das democracias nunca
foi senão abafadas. Desde as suas origens, as democracias modernas mostraram
tolerância perante uma certa violência política, inclusivamente ilegal (MBEMBE,
2017, p. 33).

49
José Alves, quando entrevistado em 2009, residia na cidade de Jardim, cerca de 50 km de Crato. O mesmo
esteve concentrado no campo do Burity durante o ano de 1932.
P á g i n a | 94

No ensaio intitulado “Necropolítica”, o autor camaronês explana sua preocupação em


torno do poder sobre o corpo: quem detém o poder sobre o corpo do outro? O que leva ou
estabelece o direito a matar ou expor o outro à morte? De que forma se constrói o corpo
inimigo? Quais os interesses estão envolvidos na constituição desses inimigos? Qual é o corpo
inimigo? Se “a política é a guerra por outros meios”, que lugar é dado à vida, à morte e ao corpo
humano, uma vez que a guerra é um meio de alcançar a soberania e exercer a soberania é ter o
direito a matar? Assim, podemos dizer que a política é um meio para alcançar a soberania com
intuito de definir ou ditar quem deve morrer e quem pode viver?
Ao contrário de Michel Foucault, para Achille Mbembe o poder exerce relação sobre a
morte e não sobre à vida. É no aniquilar a possibilidade de existência do outro que se exerce o
controle sobre os corpos, sobre a morte e sobre a vida. Podemos perceber aqui certa inversão
na teoria da biopolítica expressada por Foucault, onde o mesmo afirma que o exercício do poder
sobre a vida é cada vez mais disciplinar e regulamentador. Em Foucault, o poder se relaciona
com o corpo pela vida, pelo controle da natalidade, e só em último caso é que se configura a
morte – quando este corpo é visto como uma ameaça a existência. Já em Mbembe, observamos
uma perspectiva diferente. Pensando a política neoliberal – fase contemporânea do capitalismo
– Mbembe propõe em sua análise que não existe a preocupação em fazer viver, ao contrário
disso, a política neoliberal caracterizada pela austeridade, pela precarização do trabalho e pelo
interesse no lucro, a vida perde valor, uma vez que a vida de uns não possibilita mais o lucro
para outros. Na impossibilidade de matar, expõe o outro à morte dificultando recursos à
existência humana, ou o aprisiona ampliando o que conhecemos como o encarceramento em
massa. Desse modo, o que vemos de acordo com Mbembe, é que existe um projeto em vigor
que naturaliza e normaliza o estado de exceção em um dado segmento da sociedade, onde tudo
é possível, inclusive tirar a vida ou as condições básicas de existência, expondo corpos à morte.
Últimas considerações

Busquei nessas linhas fazer uma relação entre as mudanças ocorridas na sociedade
brasileira, sobretudo no estado do Ceará, tendo como perspectiva as cidades de Fortaleza e
Crato, frisando aspectos que modificaram as relações no campo e transformaram a paisagem na
cidade, levando em consideração os aspectos humanos, sociais, econômicos culturais e
políticos, advindos com o processo de migração e tentativa de modernização da cidade e
civilização da população, trabalhando com os conceitos de paisagem, comunidade imaginada,
biopolítica e necropoder.
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Destaco a análise sobre o espaço citadino em transformação e segmentos de exclusão,


como o Caldeirão da Santa Cruz do Deserto e o Campo de Concentração do Burity – forjados
entre as décadas de 1920 e 1940 -, ambos localizados na cidade do Crato. Tendo como
perspectiva a análise de Mbembe, penso que a necropolítica não é um fenômeno associado
apenas ao neoliberalismo, mas que está no seio do próprio sistema capitalista. Percebo o
Caldeirão e o Campo de Concentração do Burity como esses espaços segmentados em que o
Estado pode agir para destruir – no caso do Caldeirão -, ou ocultar assistência e serviços, quer
dizer, simplesmente não operar como o faz na sociedade que se permite viver - aqui me refiro
ao campo de concentração do Burity. Desse modo, compreendo que o desejo de construir uma
sociedade associada aos privilégios de uma determinada classe hegemônica, se faz concretizar
sobre o aniquilamento daquilo que se torna obstáculo, ou para continuar no pensamento de
Mbembe, se forja um inimigo interno fazendo-o morrer.

Referências

Fontes

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http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=216828&pasta=ano%20187&pesq=%2
2os%20emigrantes%20cearenses%22&pagfis=7748.

Ordem dos Penitentes: exposição - Relatório do Tenente José Góes de Campos Barros, então
Delegado da Ordem, Política e Social (DOPS), publicado em 7 de julho de 1941, pelo Centro
Regional de Publicidade.
José Alves, entrevistado em 2009, esteve concentrado no campo do Burity durante o ano de
1932.
“Getúlio Vargas, a nova política do Brasil II: o ano de 1932 a Revolução e o Norte 1933” – da
coleção documentos brasileiros, dirigida por Gilberto Freyre.

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P á g i n a | 97

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P á g i n a | 98

O hospício como espaço de reclusão: um olhar sobre as instituições manicomiais de


Natal/RN

Thaise G. A. Rodrigues50

Em Paisagens do Medo, o geógrafo Yi-Fu Tuan analisa as diversas faces do medo e


seus significados, o medo na criança, o medo de doenças, o medo da natureza, o medo da
natureza humana, o medo nas cidades, são alguns dos aspectos explorados pelo autor ao longo
de sua obra. Esses medos, segundo Tuan, são experimentados pelos indivíduos, sendo assim
subjetivos, variando a frequência e intensidade entre diferentes espécies, variando também os
tipos de medos entre indivíduos da mesma espécie. O autor aborda a temática dessas paisagens
do medo como algo a ser explorado em si mesmo e nas elucidações que proporcionam acerca
de algumas questões como o que significa ser gente e como é viver no mundo. Além de analisar
tais questões procurando traçar laços e ressonâncias entre as diferentes paisagens do medo.
(TUAN, 2005, p. 8)

Tuan define medo como um sentimento complexo, em que se distinguem dois


componentes: o sinal de alarme e a ansiedade. “O sinal de alarme é detonado por um evento
inesperado e impeditivo no meio ambiente, e a resposta instintiva do animal é enfrentar ou fugir.
Por outro lado, a ansiedade é uma sensação difusa de medo e pressupõe uma habilidade de
antecipação”. (TUAN, 2005, p. 10) Ele afirma que essa ansiedade aparece enquanto
pressentimento de perigo quando nada existe nas proximidades que justifique o medo.

O autor salienta que

O medo existe na mente, mas, exceto nos casos patológicos, tem origem em
circunstâncias externas que são realmente ameaçadoras. “Paisagem”, como o
termo tem sido usado desde o século XVII, é uma construção da mente, assim
como uma entidade física mensurável. “Paisagens do medo” diz respeito tanto
aos estados psicológicos como ao meio ambiente real. (TUAN, 2005, p. 12)

Levando em consideração esse aspecto, Tuan define as paisagens do medo como as


quase infinitas manifestações das forças do caos, naturais e humanas, sendo essas forças
produtoras do caos onipresentes, assim como as tentativas humanas para controlá-las. O autor
ressalta que de certa maneira, toda construção humana, seja ela mental ou material, é um
componente na paisagem do medo, pois existe para controlar o caos. Dessa forma, contos de
fadas infantis, lendas dos adultos, mitos cosmológicos e sistemas filosóficos são formas de se

50
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da UFRN, atualmente pesquisa sobre o Hospital de
Alienados e o Hospital Colônia de Psicopatas de Natal. Email: thaisegab@outlook.com
P á g i n a | 99

refugiar construídas pela mente para que os homens possam descansar da inquietação causada
por experiências novas ou pela dúvida. No que diz respeito à dimensão material, Tuan afirma
que fronteiras são concebidas para tentar manter controladas as forças hostis, tais fronteiras
estão em todos os lugares afastando as ameaças que também estão em toda parte. (TUAN, 2005,
p. 12-13)

Uma dessas ameaças é o louco e uma das fronteiras erigidas para controlar tal ameaça
é o hospício. Para discutir sobre este espaço, objeto central da minha pesquisa, será utilizado o
conceito de reclusão trabalhado por Tuan. Este afirma que as sociedades complexas são
intrincados códigos de intercâmbio, sendo alguns desses códigos estabelecidos em leis e
regulamentos e uma maioria são padrões de comportamento que as instituições dominantes têm
conseguido inculcar. Todavia essas sociedades complexas nunca ficam imunes às ameaças dos
que se afastam das normas ou as subvertem. Os loucos, segundo Tuan, eram uma das ameaças
por não obedecerem a tais regras, fazendo com que os membros de sociedades estabelecidas os
vissem como pessoas instáveis, não vinculadas a um lugar, como violentas e dispostas a cometer
crimes contra a propriedade e contra outras pessoas. (TUAN, 2005, p. 297)

O autor então discute sobre o que as sociedades europeia e estadunidense fizeram para
resolver o problema que surgiam com esses elementos marginais. Anteriormente a presença
destes era tolerada, desde que não fossem violentos e tivessem meios para se manter. Mas ainda
havia ainda outros dois métodos para impor a ordem ou evitar os perigos do caos, um deles é a
reclusão, que ao isolar o indivíduo em um lugar, tornava-o inócuo. (TUAN, 2005, p. 297) Ou
seja, no caso dos loucos, ao erguer-se fronteiras, na paisagem do medo, representadas pelos
muros das instituições manicomiais, a consequente separação dos loucos resultava em um
controle do caos, isolando as ameaças da loucura do restante da sociedade.

No Rio Grande do Norte, a primeira instituição com essa função de reclusão de doentes
mentais foi o Hospital de Alienados51, fundado em 1911, onde antes era o Lazareto da
Piedade52. O Lazareto foi construído no Alecrim num momento em que essa localidade ainda
era afastada do que se considerava Natal na época. Segundo Cascudo, no século XIX, o Alecrim

51
Teve suas atividades iniciadas em 1911 e se localizava na rua Fonseca e Silva, 1129, onde hoje é o Centro de
Saúde Reprodutiva no bairro do Alecrim.
52
Fundado em 1882, o Lazareto da Piedade tinha como função isolar doentes acometidos pela varíola, sarampo,
lepra, tuberculosos e também loucos. Mas só a partir de 1911, a instituição deixou de ter a nomenclatura de
Lazareto da Piedade, passando a ser chamada de Asilo de Alienados e tendo como principal objetivo colocar em
reclusão apenas os doentes mentais. Em 1921, foi instituída uma regulamentação dos serviços da instituição, dessa
forma mudou de nomenclatura novamente, sendo então chamada de Hospício de Alienados. Por fim, com o decreto
nº 24.559 de 1934, recebeu sua denominação final como Hospital de Alienados, devido a obrigatoriedade de a
direção do estabelecimento psiquiátrico ser dada a profissionais especializados.
P á g i n a | 100

era uma região pouco povoada, “raríssimas pessoas habitavam o descampado. Era terra de
roçados de mandioca e de milho [...]. Umas quatro casinhas de taipa [...] estavam dispersas num
âmbito de légua quadrada. Quando, a 7 de setembro de 1882, o presidente Francisco de Gouveia
Barreto pôs a primeira pedra para o Lazareto da Piedade, Hospício de Alienados atualmente, o
Alecrim era uma capoeira, intercortada de tufos verdes de vegetação” (CASCUDO, 1999, p.
355).
O Lazareto foi erguido à margem da antiga estrada velha do Guarapes, com recursos
do governo e ajuda de donativos vindos de pessoas abastadas, com a intenção de isolar os
doentes e criar distância entre estes e o restante da sociedade. E esse objetivo persistiu quando
a instituição passou a centralizar seus esforços na reclusão apenas dos loucos, a partir de 1911.
Nesse momento, o Alecrim continuava a ser considerado uma região longínqua. Para ilustrar
esse afastamento do centro, traz-se aqui novamente Cascudo, afirmando que “ainda em
novembro de 1914 o Governador Ferreira Chaves fala na grande distância entre o Alecrim e o
Natal” (CASCUDO, 1999, p. 355) (grifo nosso). Sobre os motivos de reclusão e o afastamento
de indivíduos marginalizados para áreas distantes, Tuan comenta que os membros da classe
média em expansão europeia e estadunidense, toleravam cada vez menos aquilo que
consideravam vulgar e grosseiro, desejando se afastar disso ou suprimir todos os sinais externos
de vida rude e violenta, ou seja, de caos. Como isso não era viável, a segunda melhor opção era
segregar esses problemas para o mais longe quanto fosse possível dos bairros de classe média
alta e alta. (TUAN, 2005, p. 296)

Entretanto, chegou um momento em que a reclusão por si só não era mais o suficiente.
Nas décadas de 1940 e 1950, o Alecrim passou por momentos de rápido crescimento urbano e
de aumento vertiginoso da população – 50,6% da população de Natal era habitante do Alecrim
na década de 1950 (BEZERRA, 2005, p. 98) – dessa forma o Hospital de Alienados não mais
se encontrava tão isolado, tornando-se ele próprio um espaço que gerava ansiedade. Dessa
forma, o Hospital de Alienados de Natal foi alvo de uma série de críticas apresentadas em
periódicos das décadas mencionadas acima.

A exemplo disso tem-se a matéria de 1948 da revista carioca O Cruzeiro intitulada


Vida pior que a morte53 que relata um pouco da dinâmica cotidiana do Hospital de Alienados

53
Vida pior que a morte. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 15 de maio de 1948. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/docreader/003581/58866>.
P á g i n a | 101

de Natal e a sua dificuldade para manter-se em funcionamento. Com imagens estarrecedoras, a


reportagem expõe a situação em que viviam os pacientes da instituição: nus, com fome e sarna.

Colocando em reclusão um número de pacientes bem acima da capacidade máxima,


faltava verba para alimentação e medicamentos, além do orçamento para contratação de
funcionários ser ínfimo. Por ter condições de trabalho inadequadas e um salário muito baixo,
poucas pessoas de fora se arriscariam a trabalhar na instituição. Havia apenas três funcionários:
um enfermeiro (que obrigatoriamente deveria dormir no hospício, possuindo apenas um dia de
folga), um enfermeiro-chefe e uma enfermeira, responsável pela ala feminina. Todas as demais
funções eram exercidas por pacientes. As lavadeiras, as arrumadeiras, a cozinheira, e até mesmo
o porteiro, todos eram internos. Sem ter outra alternativa viável, o diretor afirmou ter
selecionado os pacientes mais tranquilos e subordinados para ocupar tais cargos. Entretanto,
essa situação acarretava alguns problemas. Quando a cozinheira/paciente entrava em crise,
ninguém comia no hospital. Além disso, o porteiro/paciente também tinha seus momentos de
crise e em um desses episódios, ele abriu os portões do hospital. A revista relata que “houve
correrias e terror no bairro do Alecrim”, e a situação só se normalizou com a chegada da polícia
que conseguiu capturá-los.54 A partir desse trecho, pode-se pensar que apesar das fronteiras da
instituição, os muros, estarem sempre firmes e erguidos, colocando em reclusão, tentando isolar
e controlar o caos, havia o perigo constante das fugas dos pacientes, causando uma ansiedade
na população do Alecrim.

Outro problema presente na instituição era a nudez. 80% da população interna do


Hospital de Alienados ficava completamente nua o tempo todo, padecendo de sarna, eczema,
amarelão e fome. Somado a esses problemas, a “promiscuidade” (termo utilizado pela
população e pelos jornais para descrever a condição da instituição) era outro motivo de crítica.
A única divisão interna dos pacientes era por gênero, logo, misturavam-se adultos e crianças,
loucos furiosos e loucos mais tranquilos. O Hospital de Alienados também tinha uma parte
designada a pacientes pensionistas, entretanto sua situação não era muito melhor do que a
mencionada anteriormente. O teto da parte dos pensionistas era remendado com tábuas de
caixotes de sabão e as camas não tinham colchões. Ainda falando sobre a situação precária, a
matéria menciona que as poucas roupas da instituição eram esterilizadas por uma paciente em

54
Ibid. Disponível em: <http://memoria.bn.br/docreader/003581/58857>.
P á g i n a | 102

uma lata com água fervente colocada sobre um fogão improvisado no quintal e a sala de
curativos “é um corredor escuro, estreito e pequeno, sem iluminação suficiente”.55

A partir das descrições desse espaço feitas pela matéria, a própria instituição tornava-se
um espaço que consternava tanto os pacientes, quanto a equipe dirigente e a população que
morava nas redondezas. As autoridades do estado estavam cientes de todos esses problemas,
sendo inclusive citada na matéria da revista a fala do deputado estadual José Gonçalves que
definiu esse espaço como “depósito de homens doidos”.

No que diz respeito à medicação e tratamentos, fossem pacientes pensionistas ou


indigentes (não pagantes), todos passavam por dificuldades nesse aspecto. Segundo análise de
prontuários de pacientes da instituição nas décadas de 1940 e 1950, os tratamentos com
medicação pouco variavam em relação aos diferentes diagnósticos, consistiam principalmente
em cardiazol, insulina, cálcio, tônicos, laxantes e calmantes naturais (além de tratamentos não
medicamentosos como a balneoterapia, formação de abscessos na coxa e
eletroconvulsoterapia).

A instituição tinha muita dificuldade em tratar os pacientes devido à escassez de


medicação adequada para cada tipo de transtorno. Sendo assim, os médicos tratavam de acordo
com as condições precárias do hospício e com os conhecimentos de sua época, logo, tal
isolamento acabava apenas concretizando o objetivo inicial que consistia em segregar os
indivíduos do meio social em que provocavam ansiedade e caos, colocando-os em reclusão,
tendo uma função asilar e não terapêutica ou assistencial. Muitos desses pacientes tiveram anos
ininterruptos de internação, e alguns nunca saíram até o fim de suas vidas.

Nos prontuários do Hospital de Alienados é possível identificar casos de indivíduos que


de alguma forma geraram desordem nas cidades em que residiam56 e acabaram sendo
internados. Considerando isso, não é difícil encontrar fichas médicas de pacientes levados pela
polícia ao manicômio por embriaguez, por exemplo. Um desses casos é o do paciente J.A.O.,
33 anos, pedreiro, morador de Natal, internado três vezes, durante a década de 1940, no Hospital
de Alienados com diagnóstico de alcoolismo crônico. Quem requereu sua internação na
instituição foi o chefe de polícia. No preenchimento da anamnese no ato da internação, o
paciente conta que foi internado por ter se embriagado e em seguida decidiu deitar-se em uma

55
Idem.
56
Por ser a única instituição manicomial do Rio Grande do Norte, o Hospital de Alienados recebia pacientes de
todo o estado, e às vezes de estados vizinhos, como a Paraíba.
P á g i n a | 103

calçada. Então uns guardas que passavam no local viram-no e deram-lhe voz de prisão, levando-
o para o Hospital de Alienados.

Os psiquiatras que atuavam em Natal nas décadas de 1940 e 1950 expressavam, com
frequência, nos periódicos, os males do álcool, discursando nas “Semanas Anti-Alcóolicas”,
promovidas pela Liga Brasileira de Higiene Mental ou nas “Semanas de Higiene Mental”,
promovidas pela Sociedade de Assistência a Psicopatas de Natal. Essas exposições objetivavam
combater não só o ato de beber em si, mas também suas consequências que causavam
desajustamento social com relação ao estudo, ao casamento, a prole e ao trabalho. Ou seja, para
a psiquiatria das décadas de 1940 e 1950, a embriaguez era um sinal de transtorno mental do
indivíduo, causando mal a si e aos que estavam próximos, além da possibilidade de provocar
desordens na sociedade. Os psiquiatras colocavam em reclusão para tentar de alguma forma
consertar, curar, ordenar, os indivíduos que causavam tal desordem, e para isso, contavam com
o apoio da polícia em algumas vezes. Entretanto, devido a todos os problemas já mencionados,
a cura não parecia tão efetiva e o Hospital de Alienados acabava sendo mais um espaço de pura
reclusão do que também espaço de assistência.

Nas matérias dos periódicos potiguares, o Hospital de Alienados era concebido como
um espaço indesejável com pessoas indesejáveis, ao mesmo tempo idealizavam o projeto de
construir um novo espaço de reclusão que tratasse melhor dos pacientes e que ficasse afastado
do centro urbano, para que não mais causasse tanto caos e ansiedade à população, já que apenas
colocar em isolamento não estava mais sendo tão efetivo. Assim, enfatizavam nas matérias a
necessidade de concretizar a nova instituição de tratamento da loucura pensado pelo Dr. João
Machado (psiquiatra do Hospital de Alienados) nos moldes da psiquiatria social: o Hospital
Colônia de Psicopatas.
A construção do Hospital Colônia foi iniciada no ano de 1948, onde hoje é o Hospital
Dr. João Machado, na avenida Alm. Alexandrino de Alencar. A ideia de construir um novo
espaço de reclusão foi recebida de forma bem entusiasmada pela população e pela mídia local,
primeiramente porque, como já mencionado, o Hospital de Alienados era um espaço que
causava ansiedade, e também por causa da matéria em tom de denúncia feita pela revista O
Cruzeiro que repercutiu em todo o Brasil, gerando constrangimento para o estado potiguar.
Várias foram as matérias que depositaram altas expectativas no Hospital Colônia

No mais amplo terreno do Tirol, no sopé dos morros, em ambiente propricio


para o tratamento dos doentes, está sendo erguido um majestoso grupo de
edifícios, destinado á futura Colonia de Psicopatas. [...] A construção vai
adiantada e tudo indica que dentro em breve, o velho pardieiro do Alecrim
P á g i n a | 104

será desocupado, para satisfação de todos nós e condigna acomodação dos


doentes mentais do Rio Grande do Norte.57

Não era incomum a mídia fazer contraposições entre as duas instituições, definindo o
Hospital de Alienados como um espaço de decadência, como “depósito de doidos”, e o Hospital
Colônia de Psicopatas como local que daria um tratamento mais humano e moderno aos
pacientes. No período de construção, o bairro Tirol ainda se encontrava afastado da zona urbana
e populosa de Natal, então o Hospital Colônia acabou sendo erigido num terreno distante da
movimentação e da correria da cidade, cercado por dunas e mata atlântica.

Com relação ao espaço do Hospital Colônia, foi adquirido um terreno amplo de 20


hectares para sua construção, visando utilizar uma área extensa para prática da laborterapia,
onde os pacientes, sob supervisão, plantavam variados gêneros alimentícios e cuidavam dos
animais da pocilga e aviário, sendo estes espaços criados a partir de uma justificativa
terapêutica. Além disso, havia uma sala de aula para alfabetização dos pacientes e para oficinas
de artesanato, e uma área para prática de esportes. Tinha capacidade para acolher 200 pacientes
no pavilhão dos pensionistas e 300 pacientes na seção de indigentes, sendo esta composta por
pavilhões de delinquentes, de agitados, de calmos (para os doentes em véspera de receber alta),
de sórdidos, de crianças, além de do chamado pavilhão de intercorrência, que tinha por objetivo
tratar os pacientes acometidos por outras doenças durante o internamento. No Hospital Colônia,
diferentemente do Hospital de Alienados, não havia grades nas janelas, além de haver um
cuidado maior com os doentes do pavilhão de agitados, já que os banheiros eram do tipo “turco”
e as instalações elétricas eram todas embutidas.58

Como já mencionado acima, as obras iniciaram-se em dezembro de 1948, mas só em


1957 a instituição foi inaugurada. Ao longo de quase uma década, as obras foram paralisadas
diversas vezes por falta de verba. O descontentamento com esse atraso sempre era exposto nos
jornais locais, citando os diversos problemas do Hospital de Alienados e pedindo sua extinção.

Amonteados no que não é nada mais nada menos do que um depósito imundo
de guardar doentes mentais, uns por cima dos outros, muitos deles nús por
falta de roupas, constitui o Hospicio de Alienados para os poucos que têm
obtido permissão para presenciar aquela casa de horrores, espetáculo
deprimente para os nossos fóros de capital civilisada e uma mancha negra e
impiedosa que parece mostrar a todas as horas o nosso grau de atrazo e de

57
A próxima instalação da Colonia de Psicopatas, libertará os nossos doentes mentais da situação augustiosa em
que se encontram. Diário de Natal, Natal, 04 de junho de 1950. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/028711_01/32708>.
58
Hospital Colonia, uma obra que engrandece o Estado. O Poti, 20 de novembro de 1954. Disponível em: <
http://memoria.bn.br/DocReader/031151_01/820>.
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incapacidade para a solução dos graves problemas sociais de nossa época. [...]
A Colonia de Psicopatas deve ter a sua construção reiniciada o quanto antes.
De qualquer forma, seja porque meios fôr, e com a rapidez exigida. Não há
mais tempo a perder. Como está é que não deve continuar. Uma casa onde
quem entra tem até medo de ficar doido, e onde os doidos ficam cada vêz mais
doidos.59

Quando finalmente concluíram parte das obras do Hospital Colônia, o suficiente para
que fosse possível a transferência e instalação dos pacientes, houve entusiasmo manifestado na
mídia, tendo sido publicadas diversas matérias sobre as modernas instalações e o quanto os
pacientes se beneficiariam disso, e do clima arborizado da região, talvez já até se sentiriam
melhor só por estarem sendo transferidos de uma instituição para a outra.60 A inauguração da
instituição contou com a presença de várias autoridades, inclusive com a do então presidente
Juscelino Kubitschek.

Entretanto algumas coisas permaneceram. Assim como no Hospital de Alienados, no


Hospital Colônia também eram colocados em reclusão os indivíduos que causavam desordem,
os que transformavam a paisagem em paisagem do medo. É o caso de M.N.L, mulher, 29 anos,
solteira, parda, residente em Mossoró e internada, em 1957, com diagnóstico de esquizofrenia.
A paciente, segundo o prontuário, tinha uma vida irregular e frequentava cabarés desde os 18
anos, algo que não era condizente com uma conduta de uma mulher “respeitável”. Outro caso
é o de C.F.M., homem, 26 anos, internado, também em 1957, por ser “onanista confesso”, ato
considerado imoral na época, não sendo permitido nem para homens, nem para mulheres. Já
F.B.S., homem, 57 anos, morador de Natal, foi internado, em 1957, com o diagnóstico de
psicose exotóxica por ter se embriagado de forma exagerada, fazendo distúrbios em casa. O
Secretário de Estado de Segurança Pública mandou um ofício ao diretor do Hospital Colônia
solicitando a internação do paciente, que inicialmente foi “preso quando praticava desordens”.

Apesar de toda euforia e da visão que se tinha acerca da nova instituição de reclusão,
como moderna e mais adequada à assistência dos loucos, também houve permanências de
alguns tratamentos administrados no Hospital de Alienados e que continuaram no Hospital
Colônia. É o caso da eletroconvulsoterapia, choque insulínico e choque cardiazólico.
Entretanto, no Hospital Colônia estas formas de tratamento eram utilizadas juntamente com
barbitúricos, além de a instituição dar incentivo à laborterapia como forma de tratamento.

59
A cidade. Diário de Natal, Natal, 04 de abril de 1952. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/028711_01/36636>.
60
Hospital Colonia, um monumento para o Rio Grande do Norte. Diário de Natal, Natal, 18 de setembro de 1957.
Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/028711_01/1100>.
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Em virtude de tudo que foi mencionado, conclui-se que é possível analisar as


instituições manicomiais potiguares utilizando o conceito de reclusão trabalhado por Tuan em
Paisagens do Medo, já que estes espaços foram construídos como forma de isolar os indivíduos
que causavam caos, a fim de torná-los inócuos. Primeiramente, o Hospital de Alienados surgiu
com essa função inicial de segregar os que não se adequavam às normas sociais e de tratar as
desordens mentais, entretanto sofreu com a falta de auxílio governamental, resultando nos
diversos problemas já mencionados, e consequentes críticas da população geradas pela
ansiedade que a instituição causava. Portanto, a instituição nova recebeu todo apoio para ser
construída, apoio esse estimulado pelo desejo de extinguir o que já não era mais tão efetivo
como forma de controlar o caos. No que diz respeito ao Hospital Colônia, este foi construído
longe do centro urbano de Natal, assim como um dia havia sido o Hospital de Alienados, e
apesar de ter assumido também a tarefa de colocar em reclusão os causadores de desordem, a
instituição tinha uma preocupação mais terapêutica do que asilar com relação aos pacientes.

Referências:

Fontes :

Vida pior que a morte. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 15 de maio de 1948. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/docreader/003581/58866>.

A próxima instalação da Colonia de Psicopatas, libertará os nossos doentes mentais da situação


augustiosa em que se encontram. Diário de Natal, Natal, 04 de junho de 1950. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/028711_01/32708>.

Hospital Colonia, uma obra que engrandece o Estado. O Poti, 20 de novembro de 1954.
Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/031151_01/820>.

A cidade. Diário de Natal, Natal, 04 de abril de 1952. Disponível em:


<http://memoria.bn.br/DocReader/028711_01/36636>.

Hospital Colonia, um monumento para o Rio Grande do Norte. Diário de Natal, Natal, 18 de
setembro de 1957. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/028711_01/1100>.

Referências bibliográficas:

BEZERRA, Josué Alencar. A reafirmação do bairro: um estudo geo-histórico do bairro do


Alecrim na cidade de Natal-RN. 2005.187 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) –
Departamento de Geografia, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2005.

CASCUDO, Luís da Câmara. História da Cidade do Natal. Natal: RN Econômico, 1999.

TUAN, Yi-Fu. Paisagens do medo. São Paulo: Unesp, 2005.

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