Você está na página 1de 67

COLEÇÃO HUMANIDADES

Coleção coordenada pelo Núcleo de Humanidades do Centro de Ciências Humanas da


Universidade Federal do Maranhão
MARISTELA DE PAULAANDRADE

TERRA DE ÍNDIO

IDENTIDADE ÉTNICA E CONFLITO EM TERRAS DE USO COMUM

2ª Edição
São Luís - Edufma
2008
APRESENTAÇÃO DA COLEÇÃO HUMANIDADES

A singularidade das Ciências Humanas sempre se constituiu pelo desafio em


compreender o fenômeno humano, na interface de sua dimensão sócio- histórica. A natureza
do seu objeto, no entanto, manifesta necessidades e inquietações, decorrentes de profundas
mudanças sócio- político- econômicas que o determinam em seu modo de ser. Afinal, o que é
humano só se revela pelas experiências do mundo da vida, horizonte no qual existimos,
organizamos as nossas ações e projetamos nossos ideais.
Eis o que justifica a importância da construção social de um saber sobre a condição
humana, cuja complexidade renova um diálogo com a tradição, problematiza os efeitos
histórico-sociais da convivência humana e atualiza a pergunta pelo sentido da vida. Portanto,
cabe às Humanidades não apenas o empenho em conhecer o humano, mas o desafio de pensar
a sua natureza, no processo do seu reconhecimento.
Em seus quarenta anos de existência, a Universidade Federal do Maranhão ampliou
significativamente o índice de suas pesquisas nas diversas áreas do conhecimento, sobretudo
no âmbito das ciências humanas. No entanto, observa-se que a maioria da produção científica
desses professores pesquisadores continua inédita. A divulgação dos seus resultados, quando
conhecida, tem se mantido restrita a determinados núcleos de estudos, o que inibe, não apenas
a possibilidade de uma interlocução acadêmica mais abrangente, como também o estímulo a
novas demandas de investigação no tocante ao ensine, pesquisa e extensão.
Consciente desse perfil, a Coleção Humanidades apresenta como propósito a
publicação de textos científicos relativos a dissertações de mestrado, teses de doutorado,
trabalhos acadêmicos temáticos organizados por professores, resultados de pesquisas e/ou
extensão, obras de referência para a cultura maranhense (edição ou reedição), bem como
traduções de textos clássicos e modernos de reconhecida relevância acadêmica.
Assim, o Centro de Ciências Humanas, através do Núcleo de Humanidades, além de
viabilizar a divulgação de conhecimentos, busca recuperar a memória de suas produções
acadêmicas, reativando-as em uma "corrente do tempo" que não só recolhe os seus registros,
mas os atualiza naquilo que foram e se tornaram'.
Esse terceiro livro da Coleção: Terra de Índio: identidade étnica e conflito em terras de
uso comum, de autoria de Maristela de Paula Andrade, que publicamos em sua segunda
edição, trata de uma região conhecida como Baixada Maranhense, entre os municípios de Via
na, Penalva e Matinha, no Estado do Maranhão, mais especificamente denominada como
terra de índio. O livro analisa a identidade étnica e os conflitos em terras de uso comum
através de uma detalhada pesquisa de campo, da confrontação de fontes orais com
documentos de arquivos do século XVIII e XIX.

É uma obra importante e de referência para a antropologia e historiografia


maranhense.

Núcleo de Humanidades
AGRADECIMENTOS

Ao Núcleo de Humanidades do CCH/UFMA, na pessoa do Prof. Claudio Zannoni,


cujos esforços tornaram possível esta edição.

Ao vianense Sr. Pedro Mendengo da Fundação MARACU, que recuperou o texto a partir da
primeira edição.
À FAPESP e ao CNPq, que me concederam bolsa de estudo para realização do
doutorado.
À Prof. Margarida Maria Moura, que, solicitamente, aceitou assumir a orientação, muito
embora faltasse apenas um ano para a entrega da tese. Com interesse, paciência e dedicação
orientou essa etapa decisiva para a conclusão do trabalho.
Aos Prof. Dalmo de Abreu Dallari, José de Souza Martins, Aracy Lopes da Silva, Renato
Queiroz, integrantes da banca examinadora, pelas críticas e sugestões.
Aos Profs. Regina Sader, João Pacheco de Oliveira Filho e à Virgínia Valadão que,
igualmente, fizeram sugestões, a partir da leitura do relatório de qualificação.
A Alfredo Wagner Berno de Almeida, companheiro de trabalho e que, como sempre, na
prática, atuou como co- orientador, sem que seja, de nenhum modo, responsável pelas
limitações deste trabalho.
Às pessoas que auxiliaram na localização de fontes históricas, documentos, mapas e
outros materiais - Elizabeth Maria Bezerra Coelho, Márcia Anita Sprandel, Célia Maria
Corrêa, Dominique Gallois e Alfredo Wagner Berno de Almeida.
À Miriam Nobre, colega de trabalho no PROTER/PUC-SP, que criticou o capítulo V,
sugerindo modificações.
Ao Prof. Mario De Biasi, do Departamento de Geografia da USP, que orientou a
elaboração dos croquis da Terra dos Índios e do diagrama relativo ao calendário agrícola.
A Murilo Santos, que fez as fotos e os croquis, organizou a apresentação de mapas e
desenhos, filmou a festa do Belibeu, participou da coleta de informações em diferentes
períodos de campo e discutiu comigo vários aspectos do trabalho.
A Joaquim Santos e Alicia Rolla, que realizaram os desenhos.
A Crismere Gadelha Tsukioka, que procedeu à revisão, correção e formação da tese no
micro, e a Ednaldo Faria Lima, do Departamento de Pós-Graduação em Antropologia da USP,
meu "professor" de computação nos árduos tempos de digitação da tese.
Aos Professores Sérgio Figueiredo Ferretti e Benjamin Alvino de Mesquita Filho, da
Coordenação do Mestrado em Políticas Públicas e, principalmente a este último, pelos
incansáveis esforços para que o livro fosse publicado.
A Benedito Souza Filho, que colaborou na revisão dos originais, na organização das
ilustrações e na recuperação dos desenhos, por ocasião da primeira edição do livro.
Às Profs. Marília Sposito, da Faculdade de Educação da USP, e Dominique Gallois, do
Departamento de Antropologia da USP, pela solidariedade no momento exato.
Ao Monsenhor Eider Furtado, à Edith Furtado (em memória) e a Enói, pelo apoio em
Viana, durante os períodos de campo.
Especialmente ao primeiro, meu respeito e admiração por se manter fiel, até hoje, as
causas dos trabalhadores rurais.
A Cláudia Andrade e Valmir Baricelli, por terem assumido minhas crianças durante longos
períodos, enquanto eu redigia a tese.
Ao Mura, Marluce, Cacá e Dani, pela paciência.
ÍNDICE DE MAPAS E ILUSTRAÇÕES

Croqui do Estado do Maranhão assinalando a região da Baixada Maranhense.....................30


Croqui da Terra de Índios assinalando os lugares visitados..................................................30
Croqui de parte do povoado Santeiro....................................................................................54
Croqui demonstrando a disposição das moradias de um grupo de parentes........................55
Detalhe da “Carta Geral da Província do Maranhão (1810)”, com referencias aos Gamelas
selvagens e domesticados.....................................................................................................98
Carta do Império do Brasil, de 1845, com referência aos Gamelas domesticados e selvagens
(Jacob Niemayer).................................................................................................................102
Detalhe do “Mapa do Interior da Capitania do Maranham (1819)” (Domingos Monteiro), onde
aparecem três aldeias Gamelas perto de Monção.......................................................105
“Mapa da região do Rio Pindaré e Lago de Viana com as Sesmarias disputadas aos índios”.
Diogo Guilherme Boyhe......................................................................................................106
Detalhe do “Mapa Geográfico da Capitania do Maranhaão”, elaborado pelo Major Francisco
de Paula Ribeiro, (1819), apontando as três aldeias Gamela perto de
Monção.................................................................................................................................107
Detalhe de mapa de 1781, indicando o rio Laranjal e Pedras de Amolar, presentes no relato de
Bernardinho Lago como locais “infestados” de Gamelas...............................................108
Representação gráfica da descrição da “Estrada mais curta de Anadia para Viana”, feita por
Bernardinho Lago em 1820..................................................................................................114
Região vizinha aos lagos Viana e Aqury.............................................................................116
Calendário Agrícola Bi- anual da Terra dos Índios- Viana, Maranhão...............................134
SIGLAS E ABREVIATURAS

COLONE- Companhia de Colonização do Nordeste


CNBB- Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
CPT- Comissão Pastoral da Terra
FASE- Federação de Obras de Assistência Social e Educação
FETAEMA- Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Maranhão
FUNAI- Fundação Nacional do Índio
FUNRURAL- Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural
FIBGE- Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IBRA- Instituto de Reforma Agrária
INCRA- Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
ITERMA- Instituto de Terras do Maranhão
ITR- Imposto Territorial Rural
LBA- Legião Brasileira de Assistência
MA- Maranhão
MIRAD- Ministério de Reforma e do Desenvolvimento Agrário
PDRI- Projeto de Desenvolvimento Rural Integrado
PT- Partido dos Trabalhadores
SMDDH- Sociedade Maranhense de Defesa dos Direitos Humanos
ETR- Sindicato dos Trabalhadores Rurais
SUCAM- Superintendência de Campanha em Saúde Pública
USP- Universidade de São Paulo
NOTA DA AUTORA

Este trabalho foi elaborado para fins de obtenção do título de doutora em Ciências
Humanas (antropologia social), junto ao Departamento de Antropologia, da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo, em 1990.
Após muitos percalços para conseguir publicá-lo em uma primeira edição, em 1999, o
Núcleo de Humanidades do CCH/UFMA, agora, me brinda com a possibilidade de uma
segunda edição.
O trabalho aplicado, resultado de minha inserção na Caritas Brasileira/MA, iniciou-se
em 1982 e a coleta de informações para a pesquisa prolongou-se pelos anos 80, até 1990,
quando foi defendida a tese. Registrou-se, portanto, um longo período até que viessem a
público seus resultados em forma de livro. Sendo assim, alertamos o leitor para o fato de que
não foram realizadas alterações significativas no texto nem na bibliografia referida, assim
como não foram incorporadas novas informações atinentes à atual situação do grupo no
tocante ao controle sobre seu território.
Quando da primeira edição ainda mantive nomes fictícios para indicar os informantes.
Naquele momento, dado o forte clima de tensão social, acreditei que seria o melhor
procedimento. Agora, passados quase trinta anos, decidi, em comum acordo com alguns deles,
que sua verdadeira identidade poderia ser conhecida e tornei público seus primeiros nomes
nas legendas das fotografias, apresentadas no final do trabalho. Imaginei que seria uma
maneira de homenageá-los, de alguma forma, e assim procedi.
Quanto aos demais, permanecem com nomes fictícios.
SUMÁRIO

Agradecimentos 9
Índice dos mapas e ilustrações 11
Siglas utilizadas 12
Nota da autora 15
Prefácio à 1ª edição 21
Prefácio à 2ª edição 25

APRESENTAÇÃO 29
I-FACÇÕESINTERNAS, MEDIADORES EXTERNOS E CONDIÇÕES DE
OBTENÇÃO DAS INFORMAÇÕES 35
1.As unidades sociais em jogo - o trabalho aplicado 39
2.A luta pela terra e as facções internas 42
3.O Sindicato dos Trabalhadores Rurais 44
4.A pesquisadora e os agentes externos 45
5.A pesquisadora e os primeiros informantes 46
6.Os conjuntos de grupos familiares liderados por Apolônio e João Lourenço 50
7.São Belibeu e sua festa 56
8.O milagre: a nova posição da pesquisadora 64
9.O ritual religioso e a ampliação das possibilidades de interação com o grupo 66

11- TERRA DE ÍNDIO - uma caracterização preliminar 69


1. O "campesinato marginal" 76
2.O "campesinato livre comunal" 78
3.Os "sistemas de uso comum da terra" 80

III- A HISTÓRIA DA TERRA DOS ÍNDIOS SEGUNDO OS INFORMANTES 83


1.Os caboco: descendentes dos índios 83
2.O território 85
3.As visitas dos Urubu Ka'apor 87
4.Das visitas legítimas às vendas ilegítimas 91
5.Representantes do mato e encarregados 92

IV- OS GAMELA 95
1.Os Gamela na segunda metade do século XVIII 96
2.Os Gamela nas primeiras décadas do século XIX 104
3.Os Gamela de Viana e do Codó: domesticação e extermínio 110
4.Os Gamela e os caboco da Terra dos Índios 112
V- ARTICULAÇÃO ENTRE A APROPRIAÇAO FAMILIAR E O USUFRUTO
COMUM DOS RECURSOS NATURAIS 117
1.O trabalho agrícola e a organização da produção 126
2.O calendário agrícola: inverno e verão 133
3.A farinha 139
4.A pesca, a pecuária, a extração do babaçu 140
a)A pesca 140
b)A criação 142
c)A coleta e quebra do babaçu 144
5.A comercialização da produção 149

VI- GRILAGEM DA TERRA DOS ÍNDIOS 153


1.Os últimos encarregados e a guarda dos documentos antigos 153
2.O "grileiro de dentro" 155
3.Os testas 157
4.O inventário fraudulento 158
5.Terra de Índio X terra de comprador 160
6.A exclusão dos testa 163
7.Tentativas de cooptação dos contrários à venda da terra pelos testa 165
8.Os “compradores de dentro” 169
9.Os contra 170
10.A exclusão dos contra 171
11.Consequências da apropriação privada de terra em caráter permanente 172
a. A diminuição do tempo de encapoeiramento 172
b. A subordinação via aforamento 173
12.Conflitos gerados a partir da grilagem 175
13.Novas estratégias de resistência e agentes externos de mediação 177
a. A nova escritura velha 177
b. As redes de relações sociais acionadas nos conflitos 181
c. Os contrários á venda da terra e os novos aliados 183

CONCLUSÃO 185

Notas 193

Referências 199

Fotos 207
PREFÁCIO À 1ª EDIÇÃO
Terra de índio, terra dos índios, lição de campo
I
Realizado no Maranhão, eis um trabalho de campo que une, de forma especialíssima,
sujeitos da pesquisa e pesquisadora numa delicada trama humana. De um lado estão os
moradores de uma terra de uso comum, em que residem e cultivam há várias gerações,
enquanto descendentes dos índios Gamela e guardiães dos documentos antigos da área.
Do outro está Maristela, a antropóloga, a potencial assessora jurídica, a mulher que veio de
fora.
Os moradores pedem sua colaboração para reforçar, através de seus vínculos urbanos,
sua permanência na terra. Terra onde interesses privados tentam fragmentar a apropriação
comum, abrindo caminho para a grilagem. Maristela - quem sabe - poderia ser a mediadora,
perante o direito oficial atual, das provas que possuíam dos direitos antigos, que querem
preservados e assegurados.
O percurso desta interação etnográfica poderia ser como o de outras tantas pesquisas
antropológicas: descobertas da pesquisadora se entrelaçam com descobertas do grupo; e desta
partilha da palavra e da prática nasce um terreno comum que vai do conhecimento ao afeto ou
do afeto ao conhecimento. Mas ocorre mais do que isto. Surgem não somente relações de
compadrio entre ela e Leandro Lió, como Maristela adota a
menina Marluce, filha deste, levando, em corpo e alma, um ser da comunidade para seu lar
conjugal.
Ainda sem filhos biológicos, embora casada há alguns anos, a pesquisadora aprende que
o santo protetor da comunidade não somente propicia a gravidez em mulheres inférteis, como
engravida, ele próprio, tais mulheres. O santo oferta a Maristela o dom de duas gestações a
termo: filhos dele, sem dúvida, diriam pessoas da comunidade, pela grande
sintonia divina e humana que tem com seus devotos.
Cunha-se, assim, a representação de que o pai das duas crianças que vêm de nascer não é
o marido de Maristela, mas o santo, embora o tipo físico de ambas lembre o traços daquele o
tempo todo. Contradição nenhuma, pois o santo, na sua grande argúcia e sensibilidade, não
teria deixado seu tipo moreno transparecer na prole. São Belibeu não constrange a mãe que,
casada com um homem alvo, poderia ficar numa posição difícil e ambígua perante o mesmo,
com filhos tão diferentes do biótipo paterno.
Por estes acontecimentos, a pesquisadora liga-se também de forma mágica aos sujeitos
de sua pesquisa, gerando-se neste contexto intersubjetivo uma verdadeira eficácia simbólica
do seu trabalho de campo, que flui do afetivo (adoção de uma filha) ao mágico (as gestações
excepcionais). No seu trabalho de campo, vai de Shanin a Leach, num percurso corrido,
vivenciando uma autêntica Herzenbildung, no sentido de Boas.
O que estas relações de substância afetiva e de substância simbólica veiculam, cada
uma a seu modo, é uma verdadeira inserção de Maristela nos quadros do parentesco desse
grupo humano e constitui, sem dúvida, a razão oculta - mas por isso mesmo a mais importante
porque são franqueadas a ela não somente genealogias antigas e documentos jurídicos
avoengos, mas também desvelados conflitos internos à própria comunidade, que se
manifestavam por um faccionalismo violento; fatos estes que antes ficavam sombreados no
contexto da luta pela manutenção da terra comum - foco dominante das reivindicações e
representações dos moradores para os agentes de fora.
Esta estória da pesquisadora, dos pesquisados e da pesquisa nos deixa todos,
antropólogos ou não, impacientes quanto ao saldo da dívida que Maristela tem para com a
Antropologia, de esmiuçar num artigo futuro o relato feito aqui brevemente, que já seria por si
só, suficiente para apresentar seu trabalho.

II
Ocorre que seus achados etnográficos com relação às questões de terra são importantes
demais para não serem aqui ressaltados.
É no período que vai de 1750 a 1777 que se trava a disputa entre a administração
pombalina e as ordens religiosas, principalmente a dos jesuítas, época em que, no Maranhão,
se sabe ter sido feitas a cessão de terras aos índios Gamela. É também deste período a
polêmica sobre a escravidão indígena, aconselhando a administração do Marquês de Pombal
que os índios fossem livres em suas terras, em áreas que lhe fossem atribuídas e destinadas.
Depois de várias perambulações num perímetro de área bastante extenso, entre os rios
Mearim e Grajaú, os Gamela a teriam abandonado, em benefício de outra, a noroeste do Rio
Pindaré, justamente onde hoje se localiza a Terra dos Índios. É a partir da delimitação deste
contexto espacial e histórico, que a autora desta tese aponta que a escritura em poder dos
camponeses se refere a uma doação feita pela Coroa Portuguesa, um ano após o Diretório ter
sido sancionado por um Decreto Real. Trata-se de uma carta régia de data e sesmaria que, já
no início do século XIX, encontra-se nas mãos dos índios e, posteriormente, dos
representantes dos índios que são, efetivamente, seus descendentes. Neste documento, o
Príncipe Regente (que aí já é o príncipe regente Dom João, que conhecemos com Dom João
VI) confirma o anterior Decreto Real aparecendo na qualidade de transmitente e um dos
ancestrais dos atuais "descendentes dos índios", como adquirente.
Nota-se aqui o papel do velho direito português que embora não aceitando a premissa
de que os indígenas são os primitivos donos da terra, reconhece, no entanto, sua condição de
súditos privilegiados. Este selo do direito oficial da época é hoje instrumento precioso a ser
acionado nos tribunais, pois eliminou a possibilidade de comunidades camponesas, hoje
ameaçadas pela apropriação privada da terra perpetrada por grandes grupos econômicos,
serem vistas como simples desvalidas em terra de ninguém. A documentação histórica de que
Maristela se vale para fundamentar o presente caso etnográfico - Terra de Índio, Terra dos
Índios - oferece poderoso reforço de mérito e argumentação aos juristas ciosos da antiguidade
desta e outras legislações: é garantia de permanência das comunidades justamente a
proclamação de serem terras públicas, visto
que o direito português e toda jurisprudência brasileira consagram a proteção aos logradouros
e bens de uso comum, em que pese o frequente desrespeito e a frequente desobediência a estas
normas.
Contribuição ao campo da Antropologia Jurídica, é também contribuição ao campo do
Direito, pois Maristela enlaça categorias tiradas de textos que afirmam que os habitantes
"hajão, logrem, e possuão as mencionadas terras, como causa sua própria, para elles e seus
descendentes, sem função, nem tributo algum mais que o dizimo a Deus dos fructos que nela
tiverem e lavrarem, a qual concepção lhe faço não prejudicando a terceiros
nem a S. A. R. se nas ditas terras quizer mandar fundar algua vil/a", quanto categorias e
noções que o próprio grupo, ontem e hoje se vale para habitar e cultivar a referida terra,
enquanto terra de uso comum. Nesta linha
etnográfica, descreve e interpreta de que modo a totalidade aparentemente indiferenciada da
área apresenta segmentações e hierarquizações no
seio do grupo sob o controle das famílias, outros sob o controle das famílias
e ainda outros sob a guarda e utilização do grupo camponês como um todo.
A ameaça a este conjunto de práticas costumeiras vem - como de
resto ocorre em outras áreas rurais do país - através dela, a possibilidade
de fragmentar, desmembrar, comprar e vender lotes. Documentos falsos
como esse pretendem golpear simultaneamente uma doação realenga,
por um lado, e um direito local da terra de uso comum, que conforma um
modo de vida, por outro.
Esta tese de doutoramento, em boa hora transformada em livro, é
mais uma excelente contribuição ao estudo do campesinato brasileiro e se
antecipa, em sua formulação original, à expressiva produção recente, na
qual se destacam os trabalhos de Jadir de Morais Pessoa, Emilia Pietrafesa
de Godói e Renata Medeiros Pacllelto, os dois primeiros já editados e a
terceira à espera de editor.

Margarida Maria Moura


Departamento de Antropologia-USP
PREFÁCIO À 2a EDIÇÃO

O trabalho de Maristela de Paula Andrade é exemplo de atividade


profissional bem feita nas Ciências Sociais que, por isso mesmo, como outros trabalhos
importantes nesse campo de conhecimento, demorou a ser realizado e a chegar ao público.
Tenho acompanhado há longos anos o empenho da autora em divulgar esta obra. Na
periferia do ambiente acadêmico brasileiro é muito árduo o esforço para resgatar o
resultado da pesquisa científica, par que não durma eternamente nas prateleiras das
universidades, onde são apresentadas e defendidas nossas teses, dissertações, monografias
e ensaios. É preciso perambular em gabinetes burocráticos, acompanhar de perto a
impressão e até mesmo carregar volumes, quando se acredita que aquilo que produzimos
deva chegar a bibliotecas, livrarias e aos leitores. Isso tudo só pode ser feito por quem se
identifica e tem grande amor pelo objeto que estuda.
Este livro é muito importante pelos contatos que a autora teve a rara felicidade de
desenvolver em uma comunidade camponesa do Maranhão, onde ela analisa, com apoio
teórico adequado, a problemática da identidade étnica e do conflito em terras de uso
comum. Aí temos a sabedoria ancestral transmitida pelos mais velhos da boca ao ouvido, a
quem merece toda a confiança, que a autora confronta documentos de arquivos e
bibliotecas, ilustra com mapas dos séculos XVIII e XIX e enriquece com calendário
agrícola, croquis, fotos e outros testemunhos atuais.
Maristela de Paula Andrade traz à luz documentos de ilustres "descobridores" do
Maranhão no século XIX, como Raymundo Jozé de Sousa Gayoso, engenheiro Bernardino
Pereira do lago, Major Francisco Paula Ribeiro, Frei Francisco de Nossa Senhora dos
Prazeres, Diogo Guilherme Bohye, César Augusto Marques, falando dos índios Gamela no
fim dos setecentos e durante os oitocentos. Utiliza informações mais recentes de
importantes pesquisadores da região, entre outros, Kurt Nimuendaju, Serafim leite, Herbert
Baldus, Marcos Carneiro de Mendonça, Carlos Moreira Neto e Oscar Beozzo. Atualiza a
história, narrando a guarda de documentos antigos apesar da atuação de grileiros e
compradores, os conflitos gerados com a grilagem mais recente e as estratégias de
resistência. Mostra o lugar do sagrado no imaginário e na vida social, descrevendo a
incrível festa de São Belibeu, uma das chaves de abertura deste mistério da sabedoria do
campesinato maranhense.

São Luís, julho de 2008.

Sergio Figueiredo Ferretti


Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da UFMA
"A terra é comum porque foi doada por D. Pedro I pros índios. Agora, os índios não
gozam ela porque moram aí pras aldeias, mas tem os descendentes que são os caboco,
caboco lavrador, que vive na terra e cultiva ela, os trabalhadores (...) esta terra
devoluta, isto é uma terra comum, é da comunidade, do pessoal".

"É comum porque não tem propriedade, quer dizer que o dono
não existe propriedade, quer dizer que existe assim porque todo
mundo se goza, né? Mas não tem quem comprasse, pra dizer:
'aqui é meu'. Não tem proprietário ... quer dizer, que a terra é comum porque os índios
vinham e nunca foi vendida pra seu ninguém, quer dizer que aí é comum, se dá o nome de
comum, né ... quer dizer, que todo mundo pode roçar, pode trabalhar ... "

[Excertos de depoimento de José Antônio. Centro dos Bata. Terra dos Índios. Viana.
Maranhão]

"Eles dizem: é rapaz, isso era naquele tempo que era terra de índio... hoje não é mais terra
de índio, hoje é terra de comprador... e, com isto, vai acabando os direitos da terra dos
índios aqui pra nós..."

[Excertos de depoimento de João Lourenço. Santeiro. Terra dos Índios. Viana. Maranhão]
APRESENTAÇÃO

Este livro trata de uma situação reconhecida pelos informantes e


pelos que os cercam, como terra de índio, tal como observada na região
denominada Terra dos Índios. Este grande território localiza-se em sua
maior parte no município de Via na, mas também nos municípios de Matinha
e Penalva, todos na Baixada Maranhense1, em uma região de transição de
campos inundados para floresta equatorial (Andrade, 1984).
A coleta de dados, para efeito da pesquisa, incidiu em apenas um setor desse
território, compreendido pelos povoados- Santeiro e Taquaritiua, a doze km da sede do
município de Viana. No decorrer do trabalho de assessoria jurídica, no entanto, foram
visitados outros povoados, como Prequeú, Centro dos Bata e São Raimundo dos Cavacos.
Segundo levantamento realizado junto a informantes mais idosos de Santeiro, a
partir de dados da SUCAM (1989), foi possível identificar como constituindo a Terra dos
Índios, as seguintes localidades, que serão chamadas, aqui, de povoados.
Na época da realização da pesquisa, optei pela utilização das informações da
SUCAM por julgar que este órgão registrava, com maior precisão, a
existência de localidades, por mais recônditas que fossem. Como o objetivo
era apenas identificar os povoados que, segundo os informantes, constituem
o território, sem maior preocupação com os dados demográficos em si, utilizei-
me de mapas e relações de povoados por município, tais como emitidos por
aquela instituição. U essas listas aos mais velhos e assinalei aqueles que eram
apontados por eles como pertencendo à chamada Terra dos Índios. A seguir,
além das localidades registradas pela então SUCAM, sempre a partir dos de-
poimentos, inventariei outras, no município de Viana: Olho d'Água, Nova Vila,
Tarumã, Igarapé do Rumo. Não foi possível, a partir dos depoimentos, precisar
o número de casas e habitantes desses outros povoados. De qualquer modo,
a confrontação dos dados da SUCAM e das informações obtidas em campo,
permite perceber que, certamente, o número de povoados apontados por
aquele órgão, por mais preciso que possa ser, é inferior ao real. A julgar por
essas informações, o território em questão seria, naquela ocasião, integrado,
no mínimo, por 35 povoados, 1.930 casas e 6.777 habitantes.
ESTADO DO MARANHÃO ASSINALANDO A REGIÃO DA BAIXADA
MARANHENSE (SEGUNDO CLASSIFICAÇÃO DA FIBGE)

VIANA
Povoados Casas Habitantes
Baías 40 141
Barreiro 74 260
Cambutes 26 92
Canidé 01 04
Carpina 50 176
Caru 157 653
Cavaco 13 46
Centro dos Bata 70 246
Curva da Formiga 50 176
Cutias 12 42
Enseadado Prequeú 16 56
Estrada de Rafael 90 316
Estrela 39 137
Laranjal 70 246
Macaxeira 50 176
Maracassumé 38 134
Piraí 59 207
Porto Velho 17 70
Ricoa 36 127
Retiro 30 106
Samambaia 29 102
Santa Luzia 13 46
Santa Clara 17 60
Santeiro 209 737
São Cristóvão 45 158
Taquaritua 139 489
PENALVA
Povoados Casas Habitantes
Baía 04 13
Cambute 57 186
Cutias 83 270
São Sapé 20 65
Timbiras 78 253
MATINHA
Povoados Casas Habitantes
Aquiri 103 309
Jabara 68 197
Meia Légua 150 455
Piraí 09 26
Total 1.930 6.777
A FIBGE, por outro lado, não dispunha de dados demográficos relativos aos
povoados em questão, tendo sido informada por alguns de seus funcionários que, no
momento, estavam utilizando, igualmente, as informações da SUCAM.
Não foi possível, até aqui, precisar a área da região conhecida como Terra dos Índios,
a partir das informações constantes na escritura antiga. O ITERMA, órgão de terras do
Estado do Maranhão, também não dispõe dessa informação, apesar de estar, na época,
realizando ações discriminatórias nos municípios de Viana, Matinha e Penalva. Essas
ações iniciadas em 1988, a partir da Portaria ITERMA/GP Nº 051/88, estiveram
paralisadas durante o ano de 1989 em razão de alegada falta de verbas. A determinação da
área do território em questão deveria ser um dos primeiros resultados da ação daquele
órgão, o que, até o momento, ainda não foi conseguido. De qualquer modo, a partir das
informações contidas nos documentos antigos, pode- se estimar a área do território em,
aproximadamente 10.000 ha. Esta medida corresponde ao módulo segundo o qual eram
concedidas as terras durante o regime de sesmarias, ou seja, três léguas de comprido e uma
de largura, aproximadamente (Maia, 1952: 152). Esta área foi calculada com base nas
medidas apresentadas no memorial descritivo constante das escrituras e a partir da análise
dos mapas do território que serão citados no decorrer deste trabalho.
O Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Viana planejava, no momento da
elaboração deste trabalho, proceder a uma ação de autodemarcação de território, o que não
chegou a realizar, o que teria permitido, a partir dos dados dos documentos antigos e do
depoimento dos próprios autodenominados cabocos, assessorados por um topógrafo,
chegar a estabelecer a área do território, tal como reconhecido por eles.
Neste trabalho levanta-se a hipótese de ter esta área sido concedida aos Gamela,
uma nação indígena extinta, por meio de uma carta régia de Data e Sesmaria, no período
Pombalino, na segunda metade do século XVIII.
No início do século XIX, um descendente de certos indígenas, que se está supondo
tenham sido os Gamela, aparece na escritura em mão dos denominados descendentes com
“representante dos índios”. Nesses documentos, ainda, o Príncipe Regente aparece como
“transmitente” e o referido “representante”, como “adquirente”.
Em 1967, ocorreu um processo de inventário, após adulteração das escrituras
antigas, em que toda a extensão da região conhecida como Terra dos Índios foi considerada
como espólio de certos antepassados de membros de grupo. A partir de então, instaurou- se
na região um acelerado processo de compra e venda de terras, assim como um clima de
forte tensão entre certa facção do grupo – contrária à partilha e venda de porções do
território – e os chamados comprador da terra. Segundo integrantes daquela facção, passa a
ter vigência um novo tempo- o da terra de comprador – em oposição àquela da terra de
índio. Passa a ter lugar, também, nesse momento, um forte acirramento das tensões entre
facções internas, já que os que vendem as terras, muito embora ligados a agentes externos,
são elementos do próprio grupo.
Para efeito de exposição, o livro foi dividido em seis partes. Na parte I, procuro
explicitar as condições de obtenção das informações, a partir da análise das diferentes
posições que pude ocupar, enquanto mediador externo, face ao grupo estudado. Ao
proceder a essa análise, ainda nesta Parte I, procuro apresentar elementos para o
entendimento de aspectos da organização social do grupo, com o objetivo de fornecer ao
leitor condições de perceber como se deu a inserção junto àquele. Ao descrever a festa de
Belibeu, não foi outro o meu objetivo e, por esta razão, não encontrará, ali, uma análise do
ritual em si. Assim, nesta Parte I, são apresentadas as facções internas, nas quais se
alinham os integrantes do grupo, a partir de diferentes interesses relativos à apropriação
dos recursos básicos. São apresentadas, também, as redes de relações externas acionadas
nos conflitos de terra. A dinâmica das relações entre facções internas e agentes externos de
mediação, no entanto, será apresentada somente na Parte VI.
A seguir, na Parte II, procedo a uma primeira delimitação do objeto de estudo,
esboçando uma caracterização sociológica do grupo, em caráter preliminar, já que somente
a apresentação dos dados etnográficos permitirá atingir esse objetivo.
Prosseguindo em direção à delimitação do objeto, ainda na Parte II, busco
confrontar a situação estudada com o que, comumente, se entende por “comunalismo”,
“coletivismo”, procurando revisar os conceitos de “campesinato marginal”, “campesinato
livre comunal”, “sistemas de uso comum da terra”, tal como desenvolvidos por diferentes
autores.
Na Parte III, é apresentada a história da região estudada, a partir de dados de
memória social e, na Parte IV, a história dos Gamela segundo as fontes históricas. A ordem
de apresentação dessas duas partes contraria, propositalmente, aquela segundo a qual,
costumeiramente, têm sido apresentados s dados obtidos via fontes históricas. Por outro
lado, é mais condizente com os procedimentos metodológicos adotados na pesquisa, em
que a volta ao passado foi determinada e condicionada pelos dados obtidos junto aos
informantes, no presente.
Os dados etnográficos, propriamente ditos, são apresentados na Parte V,
ressaltando a questão da articulação entre a apropriação individual- familiar e o usufruto
comum dos recursos da natureza. Sem pretender realizar um estudo de comunidade que
abrangesse todos os aspectos da vida social do grupo, procuro enfatizar aqueles que melhor
permitem apreender aquela articulação.
Finalmente, na Parte VI, procedo a uma análise de como se processa a grilagem na
região, caracterizando os atores envolvidos; as redes internas e externas, a articulação entre
elas nos momentos de conflito em torno das formas de apropriação da terra, a resistência à
venda de porções do território.
Ressalto, ainda, que os nomes reais dos informantes foram substituídos por
pseudônimos.

I
FACÇÕES INTERNAS, MEDIADORES EXTERNOS E CONDIÇÕES DE
OBTENÇÃO DAS INFORMAÇÕES
O primeiro contato com o grupo estudado data de 1982, durante a Semana do Índio,
quando fui procurada por uma comissão de cinco dos auto- denominados cabocos, na
Cáritas Brasileira, instituição católica onde trabalhava, em São Luís. Vinham da chamada
Terra dos Índios; orientados por Eider Furtado, um padre de Viana, à procura de assessoria
jurídica para melhor enfrentar as pressões dos grileiros.
Devo esclarecer que, enquanto funcionária daquela instituição, aquele primeiro
contato, assim como a assessoria jurídica que se seguiu, inscreveram-se em um quadro pré-
dado de mediação entre os camponeses e a sociedade abrangente, tal como exercida pela
Igreja Católica. Essa mediação, no caso de Via na, passara por grandes transformações em
um período imediatamente anterior. O bispo daquela Diocese - D. Hélio Campos-
considerado como pertencente à chama ala progressista da Igreja Católica, fora substituído
por um clérigo reconhecido nos meios eclesiais como conservador, D. Adalberto Paulo da
Silva, em 1975. Integrantes do clero local, que vinham desenvolvendo uma série de
atividades pastorais junto aos camponeses, apesar da repressão que os atingira na década
de 70, orientavam-se por princípios que os afastavam dos interesses dos grandes
proprietários rurais (MARTINS, 1989, p. 25-57). A sagração de D. Adalberto da Silva se
dera no mesmo período em que se realizavam exercícios da Décima Região Militar do
MA, na sede do município. Esses atos podem ser interpretados como fazendo parte de uma
certa demonstração de força desse bispo, que enfrentava a oposição daqueles elementos
tidos como progressistas. Estes, depois da sagração, retiraram-se para outras Dioceses e os
que permaneceram passaram a ser pressionados pelo bispo a abandonar a postura de apoio
aos camponeses. Em alguns casos, a pressão chegou até à excomunhão, como foi o caso do
padre citado.
A Cáritas, por outro lado, naquele período, em função de uma coordenação sensível
às questões afetas aos camponeses, tentava percorrer o caminho inverso. Da ação
marcadamente assistencialista e desenvolvimentista (MARTINS, 1989: 25-57), por meio
de assistência técnica e do crédito aos pequenos produtores, tentava voltar-se ao apoio da
organização sindical dos trabalhadores rurais. Seus quadros, até então integrados apenas
por agrônomos e técnicos agrícolas, puderam absorver, também, advogados, economistas,
educadores, antropólogos, assistentes sociais e psicólogos. Os projetos de desenvolvimento
econômico perderam a exclusividade, passando a conviver com aqueles de assessoria
jurídica e sindical e, até mesmo com os de pesquisa, visando a produção de conhecimentos
localizados sobre situações envolvendo camponeses, em diferentes regiões do Maranhão.
Data desse período a elaboração de relatórios de pesquisa, como os de Celecina Salles e de
Marluze Santos'.
A tentativa de realizar um trabalho nos moldes daquele desenvolvido pela CPT
teve curta duração, esbarrando, desde logo, com a oposição dos bispos que determinavam a
linha de atuação da entidade em nível nacional. Uma ação voltada à organização sindical
dos trabalhadores rurais, com vistas a apoiá-los contra grileiros e grandes proprietários de
terra, não cabia naquela linha, que privilegiava o assistencialismo, via implantação de
projetos econômicos a longo prazo ou mesmo por meio do atendimento de situações
emergenciais, tais como secas e enchentes. A orientação desse bispo foi endossada por D.
Paulo Ponte, assim que assumiu a Arquidiocese de São Luís, em 1984, e culminou,
posteriormente, com o afastamento daquela coordenação.
Os projetos de assessoria jurídica, de pesquisa e de apoio direto à organização dos
camponeses, no contexto da atuação da Cáritas, já nascia, por assim dizer, naufragado,
como os acontecimentos posteriores vieram a confirmar. Foi nesse contexto, enquanto
antropóloga da entidade, que fui procurada por aquela comissão, a conselho do padre
citado. Ressalte-se que, apesar de "excomungado" pelo bispo, não deixara de manter laços
de amizade e de solidariedade com os camponeses. Natural do próprio município,
com vários de seus antepassados, esses laços eram dados por relações estabelecidas muito
antes de sua ordenação como padre e não puderam ser abalados pelos atos do superior
hierárquico. Foram essas sólidas relações lhe permitiram, apesar de afastado de suas
funções como clérigo, prosseguir mediando as relações dos camponeses com a sociedade
mais ampla, mormente naquelas situações de conflito de terra.
A instituição referida funcionava no Arcebispado, edifício de imponentes
escadarias, vitrais e grandes salas. A comissão, por outro lado, era integrada por
camponeses que, em sua maioria, nunca tinham ido a capital. A recordação daquele
primeiro encontro, da solenidade do momento, dos temores deles, do tratamento que me
dispensaram imaginando- me uma religiosa, ainda hoje lhes provoca risos. Por outro lado,
sua atitude
naquele momento deixa entrever a crença depositada na mediação exercida por esse tipo de
entidade confessional.
A apresentação do grupo ficara a cargo de Leandro Lió que, por sua história de
vida, se especializara em contatos com o mundo externo. Fora Sub- Delegado de Polícia,
cabo eleitoral de políticos de Viana e, além disso, possuía várias filhas casadas, residentes
em São Luís, onde vinha com frequência. Quanto aos demais, tinham sido escolhidos entre
os mais velhos moradores de Taquaritiua - uma espécie de "núcleo indígena do território.
Segundo os auto-denominados cabocos é ali que se encontra o que denominam de raça de
índio e onde residiam os descendentes dos chamados encarregados, os guardiões dos
documentos antigos. Honório, um dos integrantes daquela comissão é bisneto de
Maximino Antonio da Costa, que aparece nos documentos antigos como "representante
dos índios" (Vide Parte VI). Taquaritiua é, também, o local onde passaram a se concentrar
as atividades dos chamados comprador e vendedor de terra, após a realização do
inventário fraudulento.
As pessoas escolhidas para viajar à capital, o fato de não terem procurado a
hierarquia da Igreja Católica na pessoa do Arcebispo, e de isto ter ocorrido durante a
Semana do Índio, indicam o tipo de expectativa que nutriam naquele momento.
Apresentavam-se enquanto descendentes dos índios exatamente na semana em que,
usualmente, os indígenas são objeto de' diferentes eventos promovidos por instituições
oficiais, civis
religiosas. Deste modo, aproveitavam o momento para reafirmar, na capital, sua
ascendência indígena, como aliás, já fizera Honório, em 1979, ao tentar apoio junto à
FUNAI.
O fato de terem procurado a Igreja Católica em São Luís, também é significativo.
Buscavam mediadores junto a uma entidade confessional na capital, já que em Viana o
grileiro tinha o controle sobre o Juiz, o Promotor, o Delegado, o Agente do FUNRURAL e
o Bispo.
Naquele encontro primeiro, Leandro Lió abrira o diálogo invocando repetidamente
o nome de "Nosso Senhor Jesus Cristo" e da "Virgem Maria” de modo que, somente
depois de minutos de conversa, pude perceber o que desejavam realmente. Vinham em
busca de assessoria jurídica e na esperança de, na Semana do Índio, chamarem a atenção
para a ameaça de perderem a terra que sua condição de descendentes dos índios,
até então, lhes assegurara.
Naquela ocasião, tive oportunidade de acompanhá-los aos jornais
locais, onde fizeram denúncias, comprometendo-me a envolver a instituição em seu apoio,
prestando-lhes assessoria jurídica. Teve início, assim
um longo relacionamento entre nós, que ainda hoje perdura, implicando,
inicialmente, no acompanhamento dos conflitos em que o grupo se via
envolvido. Esse acompanhamento significou o desenvolvimento de uma
série de atividades que envolveram idas constantes aos povoados para
reuniões; aplicações de questionários para levantamento das benfeitorias;
visitas às famílias mais diretamente atingidas pelos grileiros, assim como a
assessoria, na capital, para contatos com imprensa, Secretaria de Segurança Pública e
outros órgãos oficiais. O conjunto dessas diferentes atividades, diretamente ligadas à
assessoria jurídica estarão sendo chamadas, aqui, de trabalho aplicado.
Além desses contatos, no campo, resultado das necessidades colocadas pelo próprio
desenvolvimento do trabalho aplicado e pelo desempenho de minha função na instituição
referida, havia aqueles outros, informais, em minha casa, em São Luís. Constituíam-se de
visitas cordiais que os informantes me faziam, por ocasião de sua estada na capital, para
visitar os filhos ou se submeter a tratamento médico.
O contato com o grupo resultou, assim, na construção de sólidas amizades, no
estabelecimento de relações de compadrio e na adoção de uma filha. O desenvolvimento
desses laços, para além daquele trabalho aplicado, redundaram, posteriormente, em
acreditarem ter sido eu "engravidada" por um santo e, finalmente, na elaboração de uma
tese. O conjunto dessas várias modalidades de interação social com os pesquisados,
mantidas desde 1982 até os dias atuais, resultaram tanto do trabalho aplicado, como da
pesquisa propriamente dita. A explicitação das condições em que foram obtidas as
informações, por isto mesmo, se faz muito mais necessária, já que este trabalho não
representa, apenas, o resultado de um projeto acadêmico.
Nesta parte pretendo reconstruir, portanto, como se deram aquelas relações,
tentando separar os diferentes momentos e as variadas modalidades de inserção que
marcaram tanto o trabalho aplicado como a pesquisa. Ao fazê-lo, procurei,
concomitantemente, fornecer indicações para a compreensão de aspectos da organização
social do grupo estudado, mormente aqueles relativos às facções internas em jogo e às
redes de relações sociais acionadas em função dos conflitos.
Procurei, ainda, destacar os diferentes tempos da pesquisa, levando em conta os
recursos metodológicos que circunscreveram a posição de “quem fala” (FOUCALT, 1972,
p. 65- 68), ou seja, a minha própria enquanto observadora, os “lugares institucionais”
(FOUCAULT, 1972, p. 65- 68) de onde realizei a observação e pude produzir determinado
tipo de conhecimento e, finalmente, a posição ocupada pelos auto- denominados cabocos
que tive como informantes, em relação ao grupo estudado como um todo. A intenção foi a
de fornecer elementos para o entendimento de como se configuram, de um ponto de vista
estrutural, as redes de relações entre agrupamentos internos ao grupo estudado. Procurei
destacar, ainda, do mesmo ponto de vista, a existência de diferentes redes externas,
constituídas por facções do poder local, com as quais se relacionam diferentes facções do
grupo. A análise de como são acionadas essas redes, mormente naquelas situações de
conflito, será realizada na Parte VI.

1. AS UNIDADES SOCIAIS EM JOGO: O trabalho aplicado

Em primeiro lugar, convém destacar que as categorias de auto definição utilizadas


pelos informantes são caboco e descendente dos índios, que serão analisadas em diferentes
tópicos. Em alguns contextos, como se perceberá no decorrer da citação dos depoimentos,
os informantes se auto referem, também, como morador, lavrador, trabalhador, sendo que
as categorias caboco e descendente dos índios, são essenciais para a auto definição do
grupo.
Estarei utilizando os conceitos de unidade domestica, grupo doméstico, unidade
familiar, grupo familiar, para indicar a unidade de produção camponesa referida a uma
casa (household). Ou seja, o grupo doméstico é constituído, no caso, pela família nuclear e
adotados - parentes ligados consanguineamente a um dos elementos do casal. Em nenhum
caso observei a existência de agregados de outro tipo, ou seja, que não estivessem ligados
ao casal por laços de sangue. Por unidade de produção camponesa estou entendendo
aquela que se baseia no trabalho familiar, onde a compra de trabalho de terceiro e a venda
daquela de seus membros, quando ocorre, é apenas esporádica.
O conceito de grupo de parentes será utilizado para indicar o conjunto
de unidades domésticas ligadas por laços de parentesco. Estas podem reunir,
verticalmente, diferentes gerações - pais, filhos, cônjuges e netos - chefia-
das por um ancião ou, horizontalmente, membros de uma mesma geração
(irmandade) - irmãos, cônjuges e filhos - liderados pelo irmão mais velho. Os
conjuntos de grupos de parentes se referem à reunião de diferentes grupos de
parentes, remetendo à noção de povoado.
O primeiro momento das relações com os pesquisados esteve marcado pela
mobilização de diferentes conjuntos de grupos familiares, de povoados diversos, contra a
grilagem em Santeiro e São Raimundo dos Cavacos. Naquela ocasião, em função da
assessoria jurídica, eu e o advogado comparecíamos a grandes reuniões, promovidas por
aqueles que se colocavam contra a venda das terras. Essas, costumavam reunir até duzentas
pessoas e tinham lugar em diferentes povoados dentro da área
conhecida como Terra de Índios.
Costumávamos nos hospedar em casa de dois integrantes do grupo,
que serão a seguir apresentados, de onde rumávamos, à pé ou à cavalo,
para os locais de reunião. Nessas, procedíamos à orientação jurídica, procurando, ao
mesmo tempo, colher informações que auxiliassem na compreensão da organização social
do grupo. Deste modo, fomos apreendendo os significados da expressão terra comum, ou
seja, foi sendo possível compreender que o apossamento não se realizava individualmente
pelas unidades domésticas, em caráter permanente, mas que combinavam a apropriação
privada (familiar) e o usufruto comum da terra e de outros recursos básicos.
Em determinada reunião, o advogado sugeriu que cada família delimitasse sua
posse, conservando avivados os chamados rumos e plantando árvores frutíferas, ao que
uma mulher respondeu: "assim, doutor, só se for para dar morte". É que nos casos de terras
de uso comum, orientações desse tipo, visando a proteção de posses individuais, não se
aplicam, indo de encontro a regras que combinam a apropriação familiar e a
utilização comum dos recursos naturais, como foi-nos permitido perceber ao longo do
trabalho de assessoria.
Naquele momento, apesar dos atos de parcelamento e venda da terra incidirem
apenas sobre os povoados Santeiro e São Raimundo dos Cavacos, a mobilização dos
contrários à partilha do território e à venda das terras envolvia a participação de membros
de, praticamente, todos os povoados que compõem a região conhecida como Terra dos
Índios. Eles se reuniam em diferentes povoados e planejavam a ação conjunta, a ser
realizada no local onde estava incidindo a grilagem. O que fazia com que esses
autodenominados cabocos, de diferentes locais, se sentissem ameaçados, muito embora
não estivessem sendo diretamente atingidos? O que levava moradores de diferentes
povoados a se conceberem como grupo e a defenderem, em conjunto, a integridade de
determinado território?
A resposta a estas questões depende do esclarecimento prévio acerca de como estão
organizados diferentes conjuntos de unidades domésticas sobre extensões aqui também
denominadas de povoados.
O termo povoado raramente é utilizado pelos informantes, que denominam as áreas
espacialmente delimitadas dentro do território de trecho, parte, setor. Tais termos são
utilizados para apontar o que chamam de separação de trabalho, ou seja, para designar
regiões, dentro do território, integradas por diferentes áreas de cultivo e de moradia,
apropriadas por grupos familiares e que recebem diferentes nomes: Santeiro, Taquaritiua,
Estrela, Laranjal, Prequeú e assim por diante.
Quando desejam referir-se a seu lugar de moradia e cultivo, lançam mão das
expressões: "nós trabalha aqui na parte de Santeiro... ", "aquele setor que a gente mora... ",
o que deixa entrever que estão operando, todo o tempo, com a noção de território, com o
todo, do qual esses chamados setor, trecho, fazem parte.
Essas unidades sociais, aqui chamadas de povoados, e por eles denominadas de
parte, setor, trecho, representam um dos planos da organização social do grupo, em que as
pessoas são agrupadas ou mantidas à parte (GEERTZ, 1967), a partir das relações que
estabelecem entre si, ao cultivarem a terra.
Tomando a relação das unidades domésticas com as áreas de cultivo como "tema
organizacional" (GEERTZ, 1967), cada setor ou parte tem suas próprias regras e critérios
de afiliação. Deste modo, fazer uma casa e implantar um roçado em outro povoado que não
o seu, implica em ultrapassar a chamada separação de trabalho, estabelecendo laços com
os moradores do local. Esse plano de organização determina, assim, limites espaciais
relativamente fixos entre diferentes povoados. Outros planos, como o das festas, da
organização sindical, das relações de compadrio, conformariam outras fronteiras,
desenhando círculos mais amplos ou mais restritos, conforme o caso, dentro do mesmo
território. A festa do Belileu, como se verá, agrupa moradores de Santeiro, Taquaritiua e
povoados próximos, enquanto os bailes de São Gonçalo, as brincadeiras de bumba-meu-
boi, percorrem praticamente todo o território conhecido como Terra dos Índios.
Esses círculos, reunindo diferentes conjuntos de grupos domésticos, ligados ou não
por laços de parentesco, conforme o plano de organização e, dentro deste, de acordo com
cada "tema organizacional", também poderiam ser pensados a partir do conceito de
“segmentação vertical” (SHANIN, 1983, p. 246- 248). Ou seja, seriam agrupamentos que
se definiriam para além da estratificação econômica, em torno, por exemplo, de um ancião,
depositário de autoridade moral ou religiosa.
Essas diferentes conformações, resultado do cruzamento do espaço geográfico e de
relações sociais, permitiriam uma representação gráfica, em forma de círculos ou de outras
figuras geométricas que se interceptam. Os grupos de parentes, por exemplo, extrapolariam
as fronteiras espaciais impostas pela chamada separação de trabalho, abrangendo áreas que
recaem em diferentes povoados, simultaneamente. Do mesmo modo, conforme se
verificará, a questão da luta pela terra envolve agrupamentos que se distribuem para além
dos limites espaciais entre povoados.
Para dentro daqueles, por outro lado, existiriam círculos mais restritos: unidades
domésticas, que abrangem não só a família nuclear, mas adotados, os grupos de parentes,
que reúnem diferentes unidades domesticas, os conjuntos de unidades domésticas, ligados
ou não por laços de consanguinidade, que se reúnem para cultivar, os grupos de parentes
que cultivam juntos.
Ligando todas essas unidades sociais, das mais restritas, ao nível do povoado, as
mais amplas, no nível da região conhecida como Terra dos Índios, estaria o sentimento de
pertencerem a um mesmo grupo sobre determinado território. Essas unidades maiores,
reunindo conjuntos de grupos familiares, habitando áreas chamadas por eles de trecho,
setor, são reconhecidas como partes de um mesmo território: “é a mesma terra da estrada
para cá é do lado da velha [Guardiana], dos caboco”.
Esses autodenominados cabocos percebem- se ligados á índia Guardiana, a cujos
descendentes, segundo dados de memória social, e de acordo com as escrituras, teriam sido
doadas as terras. O sentimento de pertencimento ao grupo tem por fundamentoa noção de
descendente dos índios. A unidade é dada pela noção terra de índio, entendida como terra
comum, aberta a todos os integrantes do grupo, que se consideram descendentes dos
índios, conforme tentarei demonstrar.

2. A LUTA PELA TERRA E AS FACÇÕES INTERNAS


Era a ameaça à integridade do território como um todo que levava os outros
autodenominados cabocos da região por eles identificada como Terra dos Índios, naquele
momento, a participar de mutirões para a derrubada de cercas dos grileiros, muito embora
os afetados fossem apenas alguns povoados. Certamente, porém, como foi possível
perceber no decorrer da assessoria jurídica, os moradores de todos os povoados não se
movimentavam em bloco, não constituíam um grupo uno, homogêneo. Existiam facções,
interesses opostos, divergências em jogo. De um lado, havia aqueles que tinham sido
constituídos, por meio de fraude cartorária, em chamados herdeiros de todo o território.
Estes, denominados pelos outros de testa e/ou vendedor de terra, tinham passado a assumir
legalmente a alienação de porções do território. De outro lado, agrupavam-se os contrários
ao parcelamento e à alienação das terras, movimentando-se no sentido de contestar o
inventário fraudulento e de obstruir atos de compra e venda. Aliados aos primeiros e
opondo-se a ação destes últimos, achavam-se
os contra, que são definidos pelo segundo grupo como "aqueles que não querem ser a
favor dos que são contra". Ou seja, esses contra, são aliados dos que vendem as terras,
recusando-se a apoiar as ações dos contrários à venda (Vide Parte VI).
Os chamados vendedor de terra, após a realização do inventário fraudulento,
tinham passado a alienar porções do território, não apenas a elementos externos, como aos
próprios integrantes do grupo. Registrava- se, assim, a existência de uma outra facção, por
mim classificada de compradores de dentro. Estes, em alguns casos, passaram a cobrar
aluguel das terras que consideram como suas, mesmo sem terem procedido à demarcação.
Por este motivo, os contrários à venda costumam afirmar que "eles não compraram terra,
compraram uma escritura, mas não sabe aonde é a
terra deles".
Por trás da aparente unidade dos contrários à venda, que transparecia nas ações
conjuntas de resistência aos grileiros, logo foi possível perceber, também entre eles,
divergências, cisões, separações. Um dos integrantes desse grupo - Honório -anteriormente
referido, disputava a liderança das mobilizações contra o grileiro. Fora ele quem se dirigira
à FUNAI, tentando invalidar o inventário e, por isso, reivindicava
para si a liderança das mobilizações. Esta tensão interna acabou sendo atravessada por uma
cisão provocada externamente como resultado da disputa pela mediação, via assessoria
jurídica, após meu rompimento com o advogado.
O rompimento com o advogado deveu-se, inicialmente, ao fato de aquele
profissional nunca ter entrado com nenhum tipo de ação judicial, apostando somente no
confronto direto entre os cabocos e os grileiros, de modo a provocar, assim, a interferência
oficial. Com o tempo, aquele profissional passou a entrar com ações de usucapião em
nome de apenas alguns integrantes do grupo, abandonando a postura inicial de ênfase na
resistência em bloco. Passou a requerer a usucapião para comerciantes do povoado, além
de aceitar causas de políticos e comerciantes, vistos
como antagonistas pelo grupo ou por facções do grupo.
Após o rompimento, os que se agrupavam em torno de Honório, terminaram se
aglutinando junto ao advogado, enquanto aqueles ligados a Leandro Lió permaneceram
vinculados à pesquisadora, ao padre e àqueles que vieram a integrar, a partir de 1985, a
Diretoria do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Viana.
A partir do período de maior mobilização contra os grileiros, passou a existir uma
outra facção, formada por dissidentes daqueles contrários à venda das terras. Declarando-
se desiludidos com o desenrolar daquela mobilização, optaram por soluções individuais,
como a movimentação de ações de usucapião. Esta facção, também vinculada à figura do
advogado, de quem seus integrantes se tornaram clientes, passou, além disso, a apoiar os
chamados comprador de terra e a tentar, a partir daquelas ações, cobrar foro de seus
companheiros. Passavam, assim, a tentar impor uma diferenciação econômica sobre os
demais.

3. O SINDICATO DOS TRABALHADORES RURAIS


Integrantes do grupo dos contrários a venda das terras assumiram, a partir de 1986,
a Diretoria do STR e, alguns destes, foram reeleitos em 1989.
Uma das ênfases da direção do STR, nos anos 80, foi o fortalecimento das
delegacias sindicais, em diferentes povoados do município. Uma delas, abrange os
povoados Santeiro e Taquaritiua e seu delegado participou ativamente das movimentações
das chamadas agrupação. Nestas, integrantes da facção que reúne os contrários à venda
das terras vêm impedindo o cercamento de áreas já "compradas" (Vide Parte VI).
A partir da realização da ação discriminatória, o STR passou a ocupar papel
importante no sentido de representar os integrantes do grupo perante o Estado.
Recentemente, a diretoria promoveu reuniões com estes para discutir a possibilidade de
uma autodemarcação do território. Foram feitas, ainda, viagens à capital, quando
representantes da diretoria e dos moradores da chamada Terra dos Índios se fizeram ouvir
pelo Presidente do ITERMA.
4. A PESQUISADORA E OS AGENTES EXTERNOS
Interagindo com essas redes de solidariedade internas ao grupo, registram-se outras,
externas, estabeleci das no nível do próprio povoado, da sede municipal e da capital. São
elas integradas por frações do poder local- comerciantes, políticos, proprietários de
cartórios, tabeliões, funcionários do aparelho judiciário. Embora sejam acionados em
diferentes situações envolvendo membros do grupo, é nas questões relativas ao
parcelamento e venda das terras que será possível observar, com maior clareza, sua
existência. Neste domínio, diferentes frações do poder local disputam o monopólio das
relações com os autodenominados cabocos.
Outras redes de mediação externa são constituídas por religiosos "nativos", opostos
à cúpula da hierarquia da Igreja Católica, assim como por entidades confessionais
subordinadas à CNBB. Há, ainda, entidades civis de apoio aos camponeses, como a
SMDDH e a FASE.
Todas essas diferentes redes externas - entidades civis, confessionais, frações do
poder local - se colocam em disputa pela mediação entre os camponeses e a sociedade
abrangente- e, em algumas conjunturas, podem estabelecer alianças entre si.
Existe, ainda, uma outra rede de agentes externos, constituída por funcionários de
órgãos da burocracia estatal - INCRA, ITERMA, POLONORDESTE, LBA. Muito embora
a presença do Estado, por meio de seus diferentes aparatos, não tenha sido marcante nos
últimos dez anos, alguns projetos oficiais, como o PDRI, vêm alcançado a região. Esse
projeto, por meio de recursos do Banco Mundial, visaria o loteamento e titulação das terras
da região, aí incluída aquela conhecida como Terra dos Índios'.
A realização da ação discriminatória passa a colocar como central a questão da
interferência oficial na região. Nos anos 1986, 1987, 1988, sobretudo, os funcionários do
ITERMA passaram a promover reuniões em diferentes pontos da denominada Terra dos
Índios, com a finalidade de expor à população os planos do Estado para a região.
Segundo o relato dos informantes, uma dessas funcionárias, exatamente a que preside a
comissão encarregada de proceder à discriminatória, teria dito: "aqui não existe mais terra
de índio". Esse tipo de afirmação deixa bem entrever os tipos de pressão às quais o
grupo passou a estar submetido, ao prevalecer à orientação de parcelamento e de titulação
das terras.

5. A PESQUISADORA E OS PRIMEIROS INFORMANTES


Ao me colocar, portanto, naquele momento, enquanto integrante de uma dessas
redes de mediadores externos, interagindo com eles no plano da luta pela terra, passei a
ocupar uma posição mais restritiva face ao grupo como todo. Eu me colocava ao lado de
uma facção interna - a dos contrários à venda da terra. Além disso, entrava numa rota de
rivalidades internas aos mediadores confessionais, o que tinha consequências para dentro
dessa mesma facção. Ou seja, estava duplamente colocada no plano do
que separa - a divergência em relação às formas de apropriação da terra.
Nesse primeiro momento, os principais informantes foram Leandro Lió e João
Mucura, em casa de quem o advogado e eu costumávamos nos hospedar, os quais passam a
ser apresentados a seguir.
Leandro Lió e Dica possuem seis filhas, quatro das quais casadas, e dois filhos
menores. A partir de 1983, assumi legalmente a guarda e responsabilidade de uma de suas
filhas, então com dez anos, e que passou a residir em São Luís. As filhas casadas, com
exceção de uma, também residem na capital, pois Leandro Lió adotou, desde cedo, a
estratégia de mandar as filhas para estudar na sede do município ou mesmo na capital.
Nessa estratégia, foram estabelecidos ou reforçados laços com políticos e comerciantes
locais, alguns dos quais se tornaram seus "compadres de alma".
Leandro Lió é apontado pelos demais como aquele que detém o saber sobre a
chamada escritura velha. É ele quem recita longos trechos desses documentos antigos,
tendo aprendido a conhecer os limites do território e constituindo-se, assim, numa espécie
de guardião da memória do grupo. A seu respeito, João Lourenço, um outro informante, do
qual se falará a seguir, assim se manifesta:
(...) "eu acho que aí quem sabe mais esse negócio aí, que sempre ele conta que ele olhava essas
escrituras lá em casa desse velho é compadre Leandro (...) compadre Leandro destrincha isso tudinho, por
onde passa [a terra) por onde não passa ... Piricaua, ele fala um bando de nome ... a Sesmaria da Conceição,
ele sabe um bando de nome por onde ela [a terra] passa".

Ressalta a importância da oralidade para a manutenção da identidade do grupo e


percebe-se que todo o apego aos documentos, chamados por eles de escritura velha, só se
manifesta a partir do conflito pela terra. Até então, bastava ao grupo o testemunho dos
mais velhos, daqueles que eram os guardiões de sua memória e que a faziam passar de
geração a geração. Durante dois séculos a tradição oral foi suficiente para sustentar a
unidade do grupo, mantendo as tensões internas sob controle. Os documentos passam a ter
importância justamente no momento em que o grupo é levado a buscar instâncias externas,
no caso, o sistema judiciário, para dirimir dissensões internas.
Leandro Lió exerce uma série de atividades no povoado, prestando serviços como
aplicar injeções, encaminhar pessoas à sede do município para tratamento médico ou
obtenção de documentos. Além disso, desenvolve uma série de ofícios, como o de
barbeiro.
Para suprir as próprias necessidades também exerce o oficio de carpina
(carpinteiro), sabendo trabalhar a madeira para construção de casas. Atualmente, exerce o
ofício de magarefe (açougueiro) matando e cortando bois para certo comerciante em
Viana, trabalho este remunerado em espécie. Além de ter carne garantida todos os dias, o
patrão está se comprometendo a auxiliá-lo na obtenção da chamada carteira de matotagem,
para que possa legalizar o exercício da atividade. Esse ofício o tem afasta-
do, nos últimos dois anos, das atividades de cultivo, muito embora ele insista em afirmar
que esta é uma situação provisória. Atualmente, sobrevive dos rendimentos garantidos pela
aposentadoria, do ofício de magarefe e dos recursos oriundos da casa de forno. Os demais
costumam afirmar, ainda, que ele recebe uma ajuda substancial de suas filhas casadas e de
um irmão solteiro que cultiva no denominado centro, em uma área fora da chamada Terra
dos Índios.
Leandro Lió possui uma ampla rede de aliados e sua capacidade de mobilizar os
companheiros pode ser percebida pelo relato do seguinte episódio. Certa ocasião, em 1987,
ele foi auxiliado por um grupo de companheiros a derrubar a cerca edificada por uma
comerciante, sua vizinha que, segundo ele, estava açabarcando um trecho da área do seu
quintal (Vide Parte V). Chamado à delegacia, fez- se acompanhar do grupo de homens que
havia participado da ação e que se ofereceram para prestar- lhe solidariedade. Conforme
orientação de Leandro Lió, no entanto, combinaram afirmar ao delegado que tinham sido
pagos para realizar o serviço. No decorrer da audiência, aquela autoridade o teria
ameaçado de prisão, diante do que a própria comerciante teria dito: “não faça isso seu
delegado, porque amanhã tem cem homens dentro da minha casa”.
Esse episódio deixa entrever sua capacidade de mobilizar aliados, o que também
pode ser verificado pela utilização constante de sua casa de forno, que é como denunciam a
unidade de beneficiamento da mandioca. Aí, diariamente, há pessoas produzindo farinha, o
que lhe garante uma fonte segura de recursos, já que os demais costumam pagar em
espécie, para utilizá-la (Vide Parte V).
Leandro Lió desempenhou um importante papel nas mobilizações dos contrários à
venda contra o grileiro, traçando estratégias e cuidando da segurança, sendo tido pelos
demais como um sujeito de nervo, que é como denominam quem não foge a uma briga. No
decorrer da mobilização contra o grileiro, cujo tio é o representante do FUNRURAL no
município, Leandro Lió, segundo os companheiros, teria aceitado uma aposentadoria, em
troca de afastar-se da liderança.

Apesar do choque causado aos companheiros no momento do que foi considerado


como "deserção" da resistência, e de ter sido bastante criticado por eles, parece nunca ter
sido visto como um "traidor". Nunca recebeu, por exemplo, a designação de contra, as
alusões se dando mais sentido de ter sido "amansado", pelo grileiro. Isto talvez possa ser
compreendido do ângulo da importância que assume, para essas unidades domésticas, a
entrada fixa em dinheiro, possibilitada pela aposentadoria.
Naquele momento, pelo fato de ir diariamente à sede municipal, encarregava-se de
trazer notícias sobre a movimentação dos chamados comprador de terra, o que reforçava a
impressão de ter abandonado apenas a posição de líder mais explícito da resistência. Em
1987, conseguiu junto ao outro Cartório de Via na uma nova escritura velha, ou seja, o
documento antigo sem adulterações por meio das quais se procedeu à fraude cartorária. De
posse desse documento, os grupos domésticos que integram a facção dos contrários a
venda vêm obstruindo atos de compra e de demarcação de terras, assim como impedindo a
construção de cercas, conforme será relatado na Parte VI.
João Mucura, por sua vez, tem uma família pequena, constituída da esposa e de uma
sobrinha desta que ambos adotaram. A esposa, ex- viúva, aposentada, veio de um local fora
da denominada Terra dos Índios, indicada para casar-se com ele pela família da
comerciante referida, que o criara. Como ele não possui irmãos e a esposa é forasteira, ao
contrário do outro não, possui uma grande rede familiar e nem uma capacidade
significativa de mobilizar aliados. Apesar de também possuir casa de fomo, não se
observam ali muitas pessoas a utilizá-la.
Durante a mobilização contra o grileiro, João Mucura participou muito ativamente,
tendo sido, inclusive, sequestrado e espancado por ele e seus capangas. Depois disso,
alegando falta de solidariedade dos companheiros, decidiu optar pela entrada de uma ação
de usucapião, tornando- se cliente particular do referido advogado. A partir de então,
passou a tentar vender "sua" área, para mudar-se para São Luís. Durante o último
período de campo ele estava, realmente, construindo uma casa em uma das chamadas
invasões, no bairro Cidade Operária, na capital. Além de procurar vender a área, passou a
tentar cobrar foro dos companheiros que cultivam em terras consideradas por ele como
suas, o que tem gerado uma série de atritos e lhe valido a designação de contra. Esta
posição se reafirmou quando ele, recentemente, passou a poiar compradores de fora em
suas tentativas de demarcar porções de terra (Vide Parte VI).
Apesar da animosidade que sempre existiu entre ambos e que se reforçou após o
episódio da aposentadoria de um e das recentes posturas do outro, isto não os impede de se
visitar mutuamente e, inclusive, que tenham se tornado compadres. Por ocasião de uma de
minhas estadas na área, durante uma das chamadas desobrigas do padre, João Mucura
solicitou que eu e Leandro Lió fôssemos padrinhos de consagração de sua filha. Receosa
de estabelecer este tipo de relação assimétrica, visto ser eu um elemento externo ao grupo,
tentei me esquivar, mas o próprio Leandro Lió insistiu muito para que eu aceitasse.
Percebi, depois, que o estabelecimento dessa relação entre os dois, da qual eu passava a
fazer parte, contribuía para atenuar as tensões entre eles.
Para melhor entendimento desse tipo de relações estabelecidas entre os próprios
camponeses e, por vezes com elementos externos, recorde-se o estudo realizado por Prado
(1972) no município de Bequimão, na Baixada Maranhense. A autora procedeu à análise
das relações de parentesco e de compadrio entre camponeses autodenominados da terra da
santa, distinguindo várias modalidades dessas últimas - o compadrio
de alma (batismo), de consagração (crisma), de fogueira (festas junina:), de encruzamento
(iniciação do pajé), de tratamento ou de simples apelação.
Essas diferentes modalidades seriam apresentadas pelos próprios informantes nesta
ordem e o compadrio originado no batismo de uma criança representaria o paradigma
dessas relações (Prado, 1972: 75). Nesses contratos bilaterais entre pessoas, os compadres
"devem ajudar-se mutuamente; (... ) não podem se atacar ou dissolidarizar- se" (PRADO,
1972, p. 80).
No tocante às relações padrinho-afilhado, os primeiros mereceriam a mesma
consideração e respeito que os pais. Os padrinhos, por outro lado, dividiriam com estes a
responsabilidade pela criança, tal como socialmente definida pelo grupo.
Tentando esclarecer a relação mantida entre mim, João Mucura e Leandro Lió, acrescento
que, conforme explicou- me recentemente o padre já citado, a consagração foi uma
cerimônia "inventada" por alguns religiosos, com vistas à arrecadação de fundos. Ela não
se refere à crisma e não significa, como o batismo, a aplicação de sacramentos, tais como
definidos pela Igreja Católica. De qualquer forma, passou a ser um ritual vivido pelos
camponeses como do mesmo nível que os demais, muito embora permaneça a importância
por eles conferida aos chamados compadres de alma.
O estabelecimento de uma relação de compadrio entre mim, Leandro Lió e João
Mucura se, por um lado, os obrigava a um tratamento respeitoso e solidário, por outro,
representava, também, o resultado de uma disputa em torno do controle sobre um mediador
externo. Isto tornou- se evidente, nos anos que se seguiram, quando sempre me vi
compelida a distribuir equitativamente as visitas em casa de um e de outro. Como a
residência de Leandro Lió localizava- se à beira da estrada, onde estacionam ônibus e
caminhões que transportam pessoas, sempre que eu chegava e ela me dirigia quase que
imediatamente, ele encarregava um menino de inteirar João Mucura da minha chegada.
Prontamente, a esposa daquele, minha comadre Biá, se apresentava e, então,
combinávamos o calendário de visitas e estadia em casa de um e de outro. Em geral, esta
comadre e a afilhada me acompanhavam durante as visitas às outras casas, mesmo na
daqueles que consideravam João Mucura um contra.
6. OS CONJUNTOS DE GRUPOS FAMILIARES LIDERADOS POR
APOLÔNIO E JOÃO LOURENCO
Por volta do início de 1983, embora ainda vinculada à Cáritas, decidi,
propositalmente, afastar-me da área, ao menos no que tocava à assessoria jurídica. Passei a
realizar apenas visitas cordiais esporádicas, motivadas pelas relações de amizade já
estabelecidas. O objetivo era distanciar-me do envolvimento direto com as facções que se
defrontavam em função do problema da terra. O advogado, por seu lado, continuara a
manter relações com os integrantes do grupo, de seu escritório particular, em São Luís.
Eu procurava redefinir minha posição enquanto mediador externo e reapropriar- me
do objeto de estudo via outro tipo de inserção junto ao grupo. Esta possibilidade
apresentou-se quando entrei em contato com o grupo familiar de Apolônio, a quem passo a
apresentar.
Apolônio, na época com oitenta anos, é apontado pelos demais como um dos mais
cabocos, ou seja, mais próximo dos ancestrais indígenas não só por seu aspecto físico,
como também por sua maneira de viver. Diferentemente dos outros dois, cujas casas
localizam-se à beira
das estradas que levam à Matinha e a São Bento (Vide desenhos), sua moradia fica distante
destas, longe da luz elétrica, dos comércios, do asfalto, e ele assim o deseja. Seu modo de
vestir-se - calças brancas de algodão até o meio das canelas, pés descalços, um pequeno
cajado sempre à mão - lembra uma ligação com um tempo passado.
A ascendência indígena é ressaltada por ele ao discorrer sobre seus ancestrais:
Minha bisavó era uma velha por nome Antônia carvalho... era caboca índia, mas eu não
conheci (...) meu avô, zé Pedro, nasceu de Cândida carvalho, era índia, mãe de meu avô era
índia legítima, foi pegada garota.

A mesma ênfase na ascendência indígena é dada por outros famili-


ares de Apolônio quando se refere aos ancestrais, como é o caso de uma
de suas noras ao explicar que a esposa de Apolônio, Mocinha, é filha de
uma irmã da mãe daquele:
Essa família de índio é muito grande (...) somos tudo de uma família só e moramos num
trecho só. Aqui é como se diz: somos a aldeia dos indígena.

Em 1985, a FUNAI enviou uma comissão para verificar se havia, realmente, índios
na área. Naquela ocasião, os funcionários daquele órgão teriam perguntado a Apolônio se
ele se considerava índio e ele lhes teria respondido: "eu digo pra vossuncês que eu sou
índio". Ainda segundo o relato dele próprio aqueles funcionários teriam respondido: "pois
nós viemos de lá pro senhor confirmar todo o tempo esse dito".
Por várias vezes, depois que passei a me hospedar mais frequentemente em sua
casa, Biá, a esposa de Mucura, me perguntava se na casa de Apolônio se usava sal ou se a
comida tinha tempero. Evidentemente, tais perguntas faziam parte das disputas em torno de
quem
melhor hospedava a "comadre de fora", mas eu as entendi, também, como aludindo a
imaginados costumes indígenas, que julgava serem compartilhados por aquele grupo
familiar. O próprio Apolônio se refere ao seu quintal, jocosamente, como "nossa aldeia" ou
"nossa colônia", pelo fato de reunir várias casas e pequenos abrigos para animais, dispostos
como que em círculo.
Apolônio está ligado por laços de parentesco e de relações de reciprocidade a um
grande conjunto de grupos domésticos, integrado pela família de seus três filhos, duas
filhas e três netos, todos casados. Em relação a essas diferentes unidades domésticas,
Apolônio se percebe enquanto administrador de uma série de atividades econômicas
conforme uma certa divisão interna do trabalho.
Inté na hora de colher é junto... temos casa de fomo aí, eu tenho fomo e aí eu vou comprando
tudo, porque o Z. é vaqueiro, o M. é pescador, o Z. A. era dono [mantinha sob cuidado ] dessas
cabras, agora esse rebanho de cabra é desse pequeno, meu neto. Bem, assim, cada qual tem
seu emprego, ta vendo? quem trabalha com gado, trabalha, quem trabalha com cabra,
trabalha; quem trabalha pescaria, trabalha ... e quem fica de fora planando um jeito pros
outros, né ... aí eu fico de fora, eu fico lutando no meio servindo de guia, viu? fico mandando
a turma.

Os integrantes dessas diferentes unidades domésticas, chefiadas por seus filhos e


netos casados, participam das várias etapas do trabalho agrícola, relativas aos diferentes
roçados anuais, implantados contiguamente dentro de grandes cercados comuns. Apesar
disso, cada uma delas detém o controle sobre os resultados da produção das lavouras
familiares, funcionando autonomamente enquanto unidades de produção e de consumo.

A unidade doméstica chefiada por Apolônio é constituída por ele, sua esposa e uma
neta, por eles adotada, que auxilia na implantação dos roçados, realizando mesmo aquelas
tarefas que, normalmente, não são executadas por mulheres. Muito embora ela seja a única
efetivamente adotada, a casa de Apolônio está sempre repleta de netos, que chamam os
avós de pai velho e mãe velha e onde a maioria se alimenta durante o dia. É em sua casa
que é tirado o leite, pela manhã, e distribuído para as outras; é ele quem provê a
manutenção da casa de forno e quem adquire o material para fabricação das redes de
pesca. Recentemente, um búfalo destruiu a canoa utilizada por seu filho mais velho e o pai,
prontamente, adquiriu outra. Em contrapartida, esse filho supre de peixe a casa do pai que,
em situações de maus resultados da colheita, pode vir a receber arroz da casa de seus filhos
ou filhas casadas.

A aposentadoria lhe garante uma entrada fixa de dinheiro, o que lhe permite
transferir recursos para os filhos quando necessário. De qualquer modo, as relações entre
eles se fundam em um esquema de reciprocidade positiva cujos resultados nem sempre
podem ser quantificados. As crianças, por exemplo, constituem um tipo de grupo de
trabalho importante, realizando um grande número de tarefas. Elas costumam ser adotadas
por irmãos casados sem filhos ou com filhos bebê, por tios e avós, sendo distribuídas pelas
diferentes casas, onde sua presença torna-se fundamental para o funcionamento da unidade
doméstica. Esse seria um dos elementos do esquema de reciprocidade em que se baseiam
as relações entre diferentes unidades domésticas, que dificilmente poderia ser medido e
traduzido em números. Os netos, mesmo aqueles que não foram adotados, são alimentados
pelo avô, em casa de quem costumam passar o dia. Por outro lado, lhes prestam uma série
de pequenos serviços, fundamentais para o funcionamento de sua casa.
Os desenhos, a seguir apresentados, permitem visualizar a disposição das casas
dessas diferentes unidades domésticas em relação à de Apolônio e também aquelas da
chamada irmandade de irmão, liderada por João Lourenço, casado com uma de suas filhas.

João Lourenço é filho da irmã da esposa de Apolônio e casado com uma das filhas
deste. Sua casa localiza-se, juntamente com a de seus sete irmãos, a aproximadamente um
quilômetro e meio daquela de seu sogro, do outro lado da referida estrada. Eis como ele
descreve o conjunto de unidades domésticas que compõem sua autodenominada irmandade
de irmão.

Nós trabalha mesmo lá em casa, nós somos uma irmandade, um grupozinho que nós somos. Tem ano que
nós somos oito companheiros, tem anos que nós somos seis, junto, ta vendo? agora, nós somos mesmo oito,
do trabalho da comunidade, ta vendo? do grupo. Agora, quando nós trabalha só num lugar, aí nós faz só
uma roça e quando não dá, ar roça um pra um lado e outro pra outro.

Deste modo, esses dois conjuntos de grupos domésticos, ligados entre si por laços de
consanguinidade, se organizam verticalmente, congregando diferentes gerações (caso
Apolônio) ou horizontalmente, reunindo diferentes unidades domésticas de uma mesma
geração (João Lourenço e irmãos). Em julho de 89 eles eram constituídos por 17 homens
casados, 26 mulheres casadas ou sós, e 78 crianças, sendo que estas últimas estão incluídas
as moças e os rapazes solteiros. João Lourenço mantém, anualmente, um de seus dois
roçados (Vide Parte V) juntamente com seu sogro, enquanto o outro é realizado em
conjunto com seu irmão.

Embora não seja o irmão mais velho, João Lourenço é o chefe da autodenominada
irmandade, ocupando em relação a ela uma posição semelhante àquela do seu tio Apolônio
em relação ao outro conjunto de unidades domesticas. Dos dois conjuntos, Apolônio se
sobressai como reconhecida autoridade moral.

Além de ser a autoridade central desses dois conjuntos de grupos domésticos,


Apolônio mantém uma série de relações externas ao povoado que vão desde a sede
municipal, até São Luís. Integradas por inúmeros compadres, entre políticos e
comerciantes, essas redes são acionadas em diferentes situações, como as descritas e
seguir.

O filho caçula de Apolônio, já falecido, necessitou submeter-se a tratamento


médico em São Luís, onde os dois ficaram hospedados em casa de uma comadre que
trabalhava na LBA e que será citada por ele mais a frente. Em outra ocasião, Apolônio
comprou, sem o saber, um boi roubado, tendo sido detido pela polícia. Em seu socorro
vieram aqueles que ele denomina de compadres fortes, em Viana:

Lá fomos pela polícia, virou, torceu, e tal... eu tinha uns compadre forte também, os compadre foram em riba
do cara [ do que vendera] mas eu ainda fui preso uma noite.

Recentemente, o filho de Apolônio -Mariano - que matou um búfalo que destruiu


sua canoa foi, igualmente, chamado à delegacia. Não respondeu ao processo graças à
interferência de um medico do PT, filho de um comerciante, compadre de Apolônio.
Enfim, são inúmeros os exemplos de acionamento dessas redes externas, conforme tentarei
aprofundar na Parte VI, quando serão tratadas, especificamente, as implicações do
inventário fraudulento. Tais situações indicam de que modo essas autoridades internas ao
povoado, como Apolônio e Leandro Lió, estão relacionadas a mediadores externos, o que
também reforça sua autoridade “para dentro”.

Além das fontes de autoridade de Apolônio, dadas pelas relações de parentesco,


pelos laços com mediadores externos, ainda um outro, baseada em sua posição enquanto
grande festeiro. Conforme ele costuma afirmar:

Tenho feito tambor de crioula, tenho feito baile de São Gonçalo e tenho mandado fazer desobrigas e tenho
feito bumba- meu- boi e tenho feito baile de orquestra.

Enfim, como ele costuma dizer, de “caixa e tambor”, já promoveu todas as festas e,
entre estas, a de São Belibeu, sobre a qual passarei a discorrer.

Antes de proceder a uma descrição da Festa de Belibeu e de analisar as


implicações, para a pesquisa, de minha inserção no plano religioso, convém esclarecer que
não procedi a uma análise do ritual. Este entrou apenas como elemento contrastante, no
sentido de esclarecer como se comportam as facções internas em outros planos, que não o
da discussão acerca das formas de apropriação da terra.

7. SÃO BELIBEU E SUA FESTA

Santo Horácio, apelidado de Belebreu, pelo fato de ser, como dizem, pretinho, é
chamado, também, Belibeu ou simplesmente, Bilico. Tem toda a aparência de um ex- voto:
de madeira preta, tosca, tem os pés móveis, não lhe faltando nem mesmo os genitais,
cuidadosamente esculpidos.

Vestido sempre como homem- calça comprida, camisa, boné, sapatos- dentro de um
pequeno caixão funerário, encontra-se ao lado de imagens de Cristo, São Benedito,
crucifixos e rosários, dispostos sobre uma pequena mesa, em casa de Apolônio. Á
tardezinha, quando o sol se põe e as crianças entram todas casa à dentro dando boa noite e
pedindo bênção aos mais velhos, não faltam aí velas, doadas pelos devotos.

Quando estive pela primeira vez em casa de Apolônio, em outubro de 1982,


especialmente para ser "apresentada" a "São Belibeu, as piadas e brincadeiras haviam
começado muito antes. Leandro Lió dizia: "cuidado com Bilico, ele é muito namorista, é
muito gaiato, gosta de mulher alheia". Que santo era aquele tão íntima e jocosamente
tratado?

Andando os cerca de mil metros que separam a casa de Apolônio daquela de


Leandro Lió, eu me enchia de expectativa. Por aquele tempo, já ouvira contar dos milagres
de São Belibeu. Os informantes lhe faziam promessas para salvar animais adoentados,
encontrar gado perdido no campo, mas as estórias mais frequentes diziam respeito a
mulheres que pediam para ter leite e, assim, alimentar seus filhos. Outras pediam para
curar-se de doenças das mamas. Como pagamentos às promessas atendidas costumavam
amamenta - Ia ritualmente. Outros lhe ofereciam porcos, cabras, galinhas, patos, que
Apolônio mantinha no quintal, para oferecer aos presentes durante a festa.

Em casa de Apolônio, naquela primeira vez em que vi o santo, pude ouvir


novamente algumas dessas estórias de mulheres que faziam promessas a Belibeu:

Ela teve a criança e o peito não deu leite. Ela foi pro Maranhão [São Luís], tomou todo
medicamento, veio pra Viana, tomando medicamento ... não deu positivo ( ... ) aí o marido
disse pra ela: 'vai lá em casa de seu Apolônio e pede o santo pra fazer o milagre pra ti'. Aí ela
pediu, pediu que ele desse leite no peito pra amamentar o menino dela, que ela dava uma
caixa de vela pra ele e vinha dar de mamar pra ele, das seis às doze.

Prosseguindo em sua explicação acerca dos tipos de promessas ao santo, seu


Apolônio narrou uma feita por ele próprio:

Eu tinha um boi aqui e não sabia por donde é que tava. Já tava fazendo um mês que eu caçava
o boi e ... digo: 'já comeram o boi' ... Aí eu digo: 'vou falar com Belibeu~ Aí eu disse: 'Belibeu, vós fazei-me
como vós me mostre meu bot, se tá vivo, amanhã pra eu dormir hoje e sonhar aonde é que tá esse boi. Vós
me leve aonde é que tá este boi'. Aí eu me peguei com ele, e dormi. Quando eu dormi, ali umas horas eu tava
sonhando, que um pretinho na minha frente foi e diz: 'quando tu chegar aqui em cima encostado dumas
mangueiras que tem, tu olha pra fora, é a primeira coisa que tu vê: teu boi deitado na beira do igarapé'.
Ora, o boi nunca na vida tinha ido pra esse lado do Prequeú, nunca no mundo ( ... ) quando eu cheguei lá
encostado debaixo das mangueiras (. .. ) olhei pra fora, o boi deitado.

Posteriormente, outras estórias acerca dos milagres do santo foram narradas por
outras pessoas, como Cizino, irmão de João Lourenço:

Marcelino tinha uma porca que caiu pra morrer ... o mal tava dando nas porcas, deu mal
beirada toda ... nós botava comê assim perto da boca dela e ela não queria ... com quatro dias
que ela tava mesmo assim estiradinha, morta, ai ele foi e disse assim pra ele: 'Belibeu, se vós fizer que mina
porca não morra, quando ela pegar cria, que parir, eu tiro o leitão pra vós’. Com dois dias que ela tava
mesmo assim estiradinha Maria foi botar cumê pra ela e ela comeu, comeu... e aí nós fiquemos com cuidado
com ela. Com uns quatro dias, cinco, ela alevantou tombando e aí foi depressa pra ela se endireitar... ela
pegou cria, quando ela pariu, ele tirou um pra ele, tá vendo?

Comparando as promessas feitas a outros santos como São João São Gonçalo,
Filuca, filha de Apolônio e esposa de João Lourenço, ressalte o fato de que, no caso de
Belibeu só se oferecem pequenos animais m a em grande quantidade. Ou seja, no caso
daqueles outros santos, é comum oferecerem animais maiores, como bois e porcos já
criados mas a frequência com que isto ocorre é menor:

São Gonçalo, São João é só essas coisas maior, é porco, é boi ... e pra Belibeu não ... é galinha, pato, é
porco ... pra esse outro é só assim essas coisas maior, mas é mais pouco, né. E Belibeu não... eles fazem
uma promessinha é uma galinha é um frango é um galo...

São esses animais que, preparados durante a festa, são distribuídos? todos os
participantes. Alguns são entregues antecipadamente a Apolônio ou a outro promotor da
festa, para que os criem em seu quintal ate aquela data. Outros são apanhados no dia da
festa mesmo, pelos
chamados cachorros, conforme se verá a seguir.

Além de, no caso das mulheres, amamentarem ritualmente o santo e de oferecerem


pequenos animais (aves, porcos, cabras), os promesseiros também dão-lhe velas e roupas.
No último período do trabalho de campo, Mocinha, a esposa de Apolônio, pediu-me uma
pequena mala, para que pudesse guardar todas as roupas ganhas por Belibeu. Apolônio fala
a esse respeito:

Tem muita vestimenta aí que eles traz ... é branco, é preto, é caboco, tudo traz roupa pra ele:
chapeuzinho, sapatinho, faz promessa e traz ...

Filuca, sua filha, complementa:

Aí faz a promessa: é vestido, é calça ... ele não usa só de um jeito, porque ele usa vestido, ele
usa calça ... ( ... ) é porque eles prometem, não é? mesmo que pruma criancinha eles fazem vestido, levam e
ele veste, né? veste ele...

A festa é realizada na terça-feira de carnaval. A data é justificada pelos informantes,


pois, segundo eles, trata-se de uma festa de entrudo, ou seja, uma situação em que as
pessoas se molham, pintam-se com carvão e tentam sujar as demais.

P - E essa festa de entrude, qual é?

É a do Belibeu, que a gente brinca todo encaretado, todo preto, todo molhado.

P - Fala entrude porque encareta, é?

É porque a gente se tisma todo e aí se molha.

Três dias antes da festa implantam o mastro, afixando nele frutas e garrafas de
bebidas. Desde o domingo, as mulheres se reúnem para assar bolos de tapioca e preparar a
cozinha onde será feita a comida. O chamado barracão, onde transcorrerá o baile, a partir
de segunda-feira, assim como a barraca que servirá de botequim, tudo estará sendo
preparado.

Em outros pontos do povoado, desde sábado, realizam-se bailes de carnaval, com


radiolas e apresentação de blocos. No amanhecer de terça- feira, um grupo de cinquenta ou
sessenta homens, incluindo crianças, se prepara para representar o papel de cachorro.
Desde a noite anterior, já estão de calção, molhados e tentando molhar os casais que se
encontram
dançando no chamado barracão. Na casa de Apolônio, o baile é animado apenas por uma
rabeca, violões e bateria, enquanto que na de outros, por radiola. Apolônio prefere o
pauzinho do mato, que é como chama a rabeca ou, no máximo, a orquestra, como
denominam o conjunto de instrumentos de sopro. As novas gerações, no entanto, preferem
as radiolas.

Por volta das quatro da manhã de terça-feira, eles se dirigem à casa de fomo, onde
pintam o rosto, o peito e os braços com carvão, ou segundo eles, se tisnam (vide fotos). A
seguir, apresentam-se no terreiro, rodeiam a casa do festeiro e o barracão do baile, sempre
imitando latidos e tentando aproximar-se das pessoas, que fogem, temendo ser pintadas
com carvão também. Em seguida, reúnem-se no terreiro, onde está implantado o mastro e o
denominado dono dos cachorros procede à chamada de um por um, pelos nomes
respectivos. São cachorros, cadelas, todos batizados com termos e expressões locais
alusivos aos genitais masculinos e femininos, como "pomba chata", "três nós", "pau
comprido" e outros. Da primeira vez em que participei da festa, o chamado dono dos
cachorros dirigiu-se a mim e ao meu marido, antes de proceder à chamada dos cachorros e
explicou que os nomes "eram pesados", indagando se não haveria problema, de nossa
parte, em ouvi-los.

Acocorados, deitados no terreiro, brincando, imitando latidos e gemidos, fingindo


morder-se mutuamente, a chamada de seus nomes ocorre em meio a muitos risos e
brincadeiras.

Além do denominado dono dos cachorros, estão presentes também o chamado


cachorro mestre, que comandará os demais, dois caçadores e Um bagageiro. Os
primeiros, armados de cartucheiras e paramentados como se fossem à caça, devem
perseguir a onça e o gato maracajá, duas figuras representadas no ritual. O segundo,
munido de um cesto às costas, trará os animais para serem preparados e servidos durante a
festa (galinhas, patos, porcos e outros.

No primeiro ano em que tive a oportunidade de participar da festa, em 1988, Apolônio


realizou-a, propositalmente, para que eu pudesse conhece - Ia e também com o objetivo de
ensina - Ia aos mais novos. Achando-se velho e cansado, acreditava ser um dos últimos
anos que comandava o ritual. De fato, a festa exige do dono da casa que permaneça
acordado durante, pelo menos, dois dias e duas noites seguidas, cuidando em manter a
ordem, em receber e alimentar os visitantes.

Naquele ano, o chamado cachorro mestre escolhido por Apolônio foi Ribamar, um
de seus netos. Este acabara de chegar de um garimpo e passava a assumir a chefia de sua
unidade doméstica, construída por sua mãe doente, abandonada pelo marido, e duas irmãs
menores. Ele mostrava visível nervosismo, preocupado em apreender tudo que o avô
ensinava acerca do papel do cachorro mestre, uma função importante dentro do ritual.

Apolônio chamava a atenção para a ordem, o respeito que deveria imperar entre
eles e os moradores, durante todo o trajeto que percorressem. Apelava para que não
houvesse brigas e chamava a atenção para o fato de que havia pessoas "de fora" e,
inclusive, filmando.

Depois de reunidos os chamados cachorros, o dono da festa solta uma ave,


geralmente um pato ou um galo, para que a apanhem. O cachorro mestre deve mata - Ia,
arrancar seu pescoço e coloca- lo na boca, trazendo-o assim até o final do dia (vide fotos).
A seguir, eles deverão percorrer as casas dos chamados irmãos que têm algum animal ou
garrafa de cachaça para oferecer a Belibeu. Cizino, irmão de João Lourenço, fala acerca
dos requisitos exigidos da pessoa que é escolhido para representar esse papel:
Muitas pessoa não dá pro serviço, porque pro cachorro garrar a criação pra arrancar o
pescoço e botar na boca, não é todo estômago que aguenta tá vendo?

Ribamar parecia, portanto, estar se submetendo a um ritual de iniciação, em que


deveria demonstrar autocontrole, exatamente no momento em que, mesmo sem ter se
casado, assumia a chefia da casa de sua mãe.

As pessoas que se apresentam espontaneamente para o papel de cachorro, onça,


gato maracajá, também são escolhidos pelo dono da festa. Isto porque o seu desempenho
depende de destreza, já que terão que subir em árvores e se deixar cair de lá para baixo,
conforme explica Cizino:

Olha, a onça, o cachorro mestre e o maracajá, esse é escolhido ( ... ) por acaso, você quer ser ...
quer brincar ... aí eles lhe olham seu jeito e diz: seu Murilo, você não quer ser uma onça da
brincadeira? Se você se achar com físico de trepar como bicho e cair de lá pra baixo, diz: 'eu
vou'.

O dono dos cachorros tem o roteiro das casas cujos chefes oferecem as chamadas
caças ao santo. Essas residências passam a ser visitadas durante todo o dia, os cachorros
percorrendo longas distâncias, sob o sol sempre correndo e imitando latidos.

Depois da salda dos cachorros, o dono da festa oferece café com bolo, no barracão, a
todos os presentes, enquanto aqueles estarão rumando para os locais previamente
combinados.

Ao chegarem às casas, sempre "latindo" e se comportando como se fossem cães,


penetram em seu interior, até os fundos e, em seguida, dão a volta, fazendo um círculo em
sua frente. Muitos simulam relações sexuais com as "fêmeas", colocando uma corda entre
as pernas, para se manterem agarrados, como se fosse impossível se soltarem. Quanto aos
demais, permanecem em volta, "rosnando" e "latindo", rolando-se pelo chão e sendo
"admoestados" por seu "dono".

A seguir, o proprietário ou proprietária da casa oferece a caça - galinha, porco, pato


ou outra - soltando-a viva no terreiro. A onça e o maracajá se adiantam, ambos tentam
pega -Ia antes dos cachorros e sobem na árvore mais próxima. Os cachorros procuram
alcançá-los, enquanto os caçadores atiram para cima, simulando mata - Ios. Eles caem da
árvore, soltando a caça, que é apreendida pelos cachorros. Morta, ela é entregue ao
bagageiro que, com um cesto de palha às costas, denominado cofo, vai levá-Ia às
cozinheiras. O dono da casa que está sendo visitada oferece café com farinha ou arroz com
carne aos cachorros, conforme o horário. Essas refeições, segundo os informantes, não são
bem aproveitadas, pois, representando o papel de cachorros há disputas pela comida, há
brincadeiras, simulação de atos sexuais, o que os faz desperdiçar o alimento.

Na casa onde a chamada caça é a cachaça, o dono da casa enterra uma ou mais
garrafas no terreiro e os chamados cachorros terão que, imitando esses animais, descobrir
pelo faro onde elas se encontram. Arranham o chão, fazem buracos, farejam e, muitas
vezes, conseguem localizar onde está oculta. O dono dos cachorros lhes oferece bebidas de
quando em vez, para que possam, segundo eles, suportar o longo esforço que perdura todo
um dia.

Voltando à casa da festa, no final do dia, os homens que assumiram o papel de


cachorros recebem uma refeição denominada comida de cachorro - arroz, asas e pés de
aves - que lhes é oferecida em folhas de bananeira, no chão. A seguir, juntamente com os
caçadores, perseguem a onça e o maracajá, matando-os e amarrando-os em um pau.
Depois, os dois são levados para dentro do barracão do baile, onde simulam tirar- lhes o
couro, encerrando-se o que denominam de brincadeira. Em segui- da, vão todos se banhar
e vestir-se e, então, recebem um jantar com as melhores iguarias que as cozinheiras
tiverem preparado para a festa - arroz com carne de porco, de pato e de gado assadas e
cozidas, com bastante gordura. Quanto mais gorduroso, ou nos seus termos, gorda, mais
apreciada a comida.

Enquanto os cachorros estiverem à procura das chamadas caças, o baile


prossegue, normalmente, ao som da rabeca. Belibeu permanece todo o tempo no barracão
do baile, que só é interrompido para a reza de uma ladainha, em uma língua que se
assemelha ao latim das antigas missas, cantada por um rezador e acompanhada por homens
e mulheres.

Durante todo o dia os participantes são servidos de comida, conforme explica


Apolônio:
P - Mas a comida, todo mundo come?

Come. Chegou, procurou, comeu. Todo mundo. O cumê é pra dar, não é pra ficar, porque é do santo...
Vamos comer inté acabar ...quando acabar, cabou mesmo ...assim que é feito ... mas não sal só de mim
também, sal dos outros Irmãos todos.

Em fevereiro de 1990, Apolônio ligou para minha casa, então em São Paulo, para
confirmar a promoção da festa e saber se estaríamos presentes. Nessa ocasião, disse que a
festa se realizaria de qualquer modo, pois os irmãos já haviam oferecido muitos animais,
para a comida. Ou seja, há um momento em que o excedente representado por esse "fundo
cerimonial" (Wolf, 1976) precisa, obrigatoriamente, ser distribuído.

Os irmãos são todos os que participam mais diretamente da promoção da festa,


contribuindo com gêneros destinados à alimentação e com trabalho. Leandro Lió, por
exemplo, costuma cuidar da comida, administrando a cozinha, quando a festa se realiza na
casa de seu compadre Apolônio.

Depois do jantar oferecido àqueles que desempenham o papel de cachorros, o dono


da casa enterra um galo ou um pato no terreiro, próximo ao mastro, deixando-o apenas
com o pescoço para fora, de modo que homens, rapazes e meninos tentarão, de olhos
vendados, cortar o pescoço da ave com um facão. Com os participantes da festa se
acotovelando para assistir, todos empreendem suas tentativas, até que um deles acerta,
ganhando a ave.

O baile prossegue normalmente e, enquanto isto, o santo, que estivera presente


durante todo o dia no barracão, no dizer dos trabalhadores, adoece. Aqueles que
desempenham o papel de seus parentes: "mãe", "pai", “irmãos”, "padrinhos" "primos,
"mães de leite", se apressam em minorar-lhe o sofrimento. Durante seguidas horas, numa
casa afastada do chamado barracão, onde o baile prossegue, tentando reanimar o santo,
tido como “filho”, “irmão”, “afilhado”, e assim por diante. As “mães de leite”, que se
apresentam espontaneamente naquele momento, vêm amamentar o santo que, segundo
elas “está com febre” e, portanto, “com sede”. Sendo mulheres que se encontram, como
dizem, criando, ou seja, realmente amamentando crianças, literalmente esguicham leite no
rosto do santo, molhando- o todo (Vide fotos).

As brincadeiras, sempre alusivas ao intercurso sexual, se sucedem. Colocado em


uma esteira, no chão, ou numa rede, os genitais de Bilico são apalpados por várias pessoas.
A brincadeira é sempre a mesma: aquele que a está liderando, apresentando-se como seu
"pai" ou sua "mãe", chama os presentes a darem sua opinião sobre o estado de saúde do
"doente", perguntando se o mesmo não está "inchado". Repetidamente as pessoas apalpam
o santo, para divertimento de todos. Para um observador externo, essas duas ou três horas
já começam a se tomar longas demais, mas ninguém parece se enfadar com as brincadeiras
e piadas repetidas, todos em pé ou sentados pelo chão, após um dia de danças, comidas e
bebidas.
Enquanto a família ritual de Belibeu, integrada pelas pessoas mais próximas ao
festeiro, prossegue tentando reanimar o santo, os demais se revezam entre participar das
piadas e brincadeiras e em dançar. A encenação continua e, apesar de todos os "esforços",
o santo vem a "falecer", para tristeza geral. SimuIam- se prantos e ataques nervosos.
"Morto", farão a "sentinela", prosseguindo às brincadeiras até o momento do "funeral".
Então, interrompe-se o baile e os músicos são chamados para acompanhar o "corpo". A
rabeca tocando, todos seguem em cortejo até uma pequena cova, aberta próxima ao mastro.
Alguns dos chamados irmãos se aproxima, com lamparinas à mão, cobrindo a ação dos
outros, que simulam enterrar o santo em seu pequeno caixão. Neste momento, apagam-se
abruptamente as luzes e alguém tira o caixão, escondendo-o em uma das casas próximas ao
barracão. Aos demais, é como se o santo, realmente, tivesse sido enterrado.
Cizino assim relata suas impressões a respeito:

P - Mas todo mundo sabe quem tirou o santo?

- Sabe, porque, olha, de premere me fazia uma contusêo, tá vendo? as primeiras brincadeiras,
quando eu não sabia como era ... aí eles dizia: '0 Belibeu tá mal, mal, mal ... ' era mais quem
chorava, mais quem gritava ...

P - Só na molecagem?

Só na molecagem. Aí eu digo: será que ele vai morrer mesmo? Aí quando ele morria eles iam fazer sentinela
pra ele. 'Ali, vamos cavar o buraco ... ' aí eles cavam ... a gente tava lá olhando mesmo de olhos fitadinho em
cima, né? eles traziam, aquele grupo de gente trazia ele: 'vamos embora botar ele na cova' era mais quem
chorava daqui, mais quem chorava dacolá aí eles fupe! Pagavam a luz ... pronto, aí, 'bota terra, bota terra!'
quando acendia a luz, já tava tudo entupidinho ... digo: 'pra mim eles enterraram mesmo'. Quando passava
quatro, cinco dias que eu ia em casa de meu tio Apolônio, lá está Belibeu! 'quer dizer que eles tomaram tirar
ele do buraco?

Depois do "enterro", entram todos para o barracão e o dono da festa torna a oferecer
café com bolo de tapioca para os presentes, prosseguindo o baile até quarta-feira pela
manhã. Neste dia, os chamados irmãos vêm proceder ao que denominam de barrimento de
casa. Cada qual com um arbusto na mão, penetra na casa do festeiro e simula estar
varrendo-a. Este gesto simboliza que vieram buscar o alimento restante da festa, já que
nada deve ser apropriado privadamente pelo dono da casa. Em seguida, este lhes oferece a
chamada bóia, constituída do que, porventura, tenha sobrado, conforme explica Apolônio:

Tem a bóia ...tem cabeça de porco, tem fuçura [tripas e outras partes das entranhas de boi ou porco], ainda
ficou bastante pato, ali vai se fazer bóia ...agora, depois que acabar isso tudo, vamos derrubar o mastro.

Os tocadores, que permaneceram na casa da festa, tocarão para a derrubada do mastro,


cujas frutas e bandeirinha ficarão para o irmão que se compromete, publicamente, a
auxiliar na preparação da festa no ano próximo.

8. O MILAGRE: a nova posição da pesquisadora

Naquela ocasião em que fui "apresentada" a Belibeu, após ouvir as estórias de


promessas feitas a ele, fui instada por Leandro Lió, Apolônio e pela esposa de João
Mucura a fazer, eu também, um pedido. Mais tarde, ao banhar-me no poço em companhia
daquela comadre, ela insistira para conhecer meu pedido e segredei-lhe que pedira para
engravidar e que, caso atendida, participaria da festa durante três anos seguidos. Exatos
nove meses depois tive uma menina, depois de sete anos sem filhos, o que por si só já
chamava bastante a atenção do grupo. Um casal sem filhos é algo considerado
completamente estranho pelos camponeses. Desde então, minha inserção junto ao grupo
sofreu uma mudança qualitativa. Eu passara a ser classificada a de partir seu sistema de
crenças - meu caso, um vez mais, lhes comprovava a capacidade milagrosa do santo.

Do ponto de vista da pesquisa, por outro lado, Belibeu me permitira um novo tipo de
inserção junto ao grupo, agora sem o peso do desenvolvimento direto nas questões de terra.
Em julho de 89, quando lá estive com toda a família, o filho da comerciante, anteriormente
referida, como de praxe, teria perguntado a um neto de Apolônio o que eu fora fazer ali, e
ele lhe teria respondido que eu ali estava por causa de Belibeu, da promessa que havia
feito. Belibeu me concedia mais esta graça, a de comparecer ao povoado sem tantos
constrangimentos, apoiada nas relações de amizade com alguns grupos familiares e não
mais, apenas, como a "mulher que persegue Evilázio" (o grileiro), conforme costumavam
afirmar membros da família dessa comerciante.

Estive com eles no nono mês de gravidez, pois desejavam ver de perto os efeitos do
que consideravam um milagre. A menina, depois de nascida, passou a ser conhecida como
a "filha de Belibeu" e cada vez que me hospedava na casa de Apolônio, brincavam: "ela
agora só quer ficar perto do marido". Eram frequentes as perguntas acerca da cor da pele
da menina, pois desejavam saber se era "alvinha" ou "roxinha", que é como denominam as
pessoas de cabelo liso e pele escura. Depois de tê-Ia conhecido, muitos diziam: "Belibeu
não fez certo ... tinha que sair ao menos roxinha".

Quando a menina, então com um ano e meio foi, como disseram, "visitar o pai", e
tomou-o no colo, beijando-o muito, todos se admiraram, desta vez sem tom de brincadeira,
que ela o "reconhecesse". Ainda hoje, esse episódio é narrado aos demais, como uma
confirmação do que entendem por milagre.

Quando estive com o pais dos meus filhos, pela primeira vez na área, em 1988, para
filmar a festa do Belibeu, Leonardo Lió conduziu-o para ser, como disse "apresentado" ao
santo. Essa ocasião também foi objeto de muitas brincadeiras, com alusões aos "ciúmes"
do meu marido. Pediam que ele "tivesse paciência" e que "não brigassem". Diziam que
Belibeu fora "esperto" em fazer a menina "alvinha": "ele fez certo, assim não teve
desconfiança nem nada, foi esperto, espertinho".

Em novembro de 1985, estive na área novamente e, em agosto de 1986, portanto


nove meses depois, após vários anos sem engravidar, tive um menino. Novas brincadeiras,
novas piadas. Ao saudarem o menino, em 1989, perguntavam: "mas Bilico não tem parte
neste, tem?" Outros perguntavam: "esses é que são os filhos do Belibeu?" E ao menino,
que estava bastante resfriado, naquela ocasião, aconselhavam: "pede a teu pai pra te dar
saúde". Outros, diziam: "você que é a filha do Belibeu? Então eu sou seu tio, porque sou
irmão dele... "Filuca, filha de Apolônio, também se apresentou à minha filha como sua
"irmã" e, frequentemente, lhe mandava bananas ou outras frutas, dizendo: "trouxe isto pra
minha irmã". Enfim mesmo que a promessa tenha ocorrido somente no caso da menina, eu'
ela e o menino, a partir de então, passávamos a fazer parte de uma espécie de "família".
Ainda que de forma jocosa, essas pessoas nos estavam dizendo que, ao integrarmos o
conjunto de devotos, passávamos a nos relacionar com toda uma rede de pessoas e que
tínhamos, apesar da assimetria dessas relações, em certo sentido, sido "adotados" por elas.

9. O RITUAL RELIGIOSO E A AMPLIAÇÃO DAS POSSIBILIDADES DE


INTERAÇAO COM O GRUPO

Minha inserção no plano do ritual religioso ampliou grandemente as possibilidades de


contato com outras redes internas aos povoados de Santeiro e Taquaritiua. Nesse domínio,
deixam de sobressair as diferenças e dissensões que, em outros momentos, colocam umas e
outras facções como antagonistas em relação às formas de apropriação da terra. Aqui,
facções contrárias e de interesses opostos tornam-se coparticipantes na realização do
mesmo ritual. Tanto é assim que, não somente a imagem do santo é cedida por seu
guardião para que os chamados contra realizem a festa, como, em princípio, qualquer um
pode participar dela como cachorro ou outra figura - onça, maracajá - mesmo que o ritual
seja realizado na casa do opositor. Deste modo, fica claro o fato de ter sido o ritual
realizado, em 1989, na casa de Zezinho, um dos denominados contra, como é referido por
Apolônio: "Zezinho é contra. Ele e metade da família dele á a favor do grileiro".

Em 1988, os papéis de bagageiro, dono dos cachorros e caçadores foram


desempenhados por parentes, compadres e vizinhos de Apolônio, todos contrários à venda.
Em 1989, na casa de Zezinho, as mesmas pessoas desempenharam os mesmos papéis.
Leandro Lió, por outro lado, que havia comandado as brincadeiras em torno da "doença" e
da "morte" do santo, no ano anterior, não quis assumir esse papel, pois, segundo ele, o
dono da festa não o convidara com antecedência. Ou seja, se tivesse sido convidado talvez
tivesse desempenhado o papel.

Os netos de Apolônio, que haviam sido cachorros no ano anterior, voltaram a


participar da festa em 1989, desempenhando o mesmo papel na casa do chamado contra.
Ou seja, neste domínio, laços mais gerais de solidariedade e lealdade não são abalados pela
oposição manifesta ao nível de discussão das formas de apropriação da terra, do mesmo
modo como o compadrio pode igualar pessoas que se opõem politicamente, envolvendo- as
em compromissos recíprocos de solidariedade. Nesses momentos de agregação (VAN
GENNEP, 1969, p. 1-18) falam mais alto que aqueles da separação.

No momento do ritual, o festeiro reúne em torno de si um conjunto de grupos


familiares que constituem o que chamam de irmandade. Os chamados irmãos, que a
integram, participam mais diretamente da promoção da festa, conforme explica Antônio:

É pesada, mas é boa a festa ... mas não sai de mim também, sai dos outros todos ( ... ) os
cachorros vai buscar na casa dos irmãos: um dá um porco, outro da uma banda, outro dá
dois litros de cachaça, outros dá uma quarta de farinha e assim vai.
Conforme o maior ou menor prestígio que o festeiro detenha junto aos demais, maior
ou menor será o volume das chamadas caças e, portanto, melhor a festa, de acordo com
avaliação dos participantes. Naquele ano, muitos dos aliados de Apolônio diziam ter
oferendas para o santo, mas que as deixariam para o festeiro daquele ano. Em 1989,
quando eu e meu marido nos preparávamos para filmar o ritual pela segunda vez, muitas
pessoas, muitas pessoas próximas a Apolônio diziam que a festa, naquele ano, não seria
boa, que faltava comida e haveria brigas. Seus netos, que haviam participado como
cachorros, na casa de Zezinho, em anos anteriores, insinuavam que a família deste se
apropriava indevidamente das caças, deixando de distribui -Ias a todos. A apontada
ausência de generosidade daqueles que promoviam a festa naquele ano, assim como o que
entendiam por sua falta de firmeza para manter a ordem, evitando brigas, eram ressaltadas,
contrastando com as alegadas virtudes de Apolônio.

Essas evidentes disputas pelo prestígio, no entanto, tem por base o próprio ritual, ou
seja, coloca em questão quem o realiza de forma considerada pelo grupo como ideal. Elas
têm por base, portanto, critérios de avaliação do próprio ritual - maior ou menor
generosidade, maior ou menor firmeza para conter brigas - e não interesses opostos,
antagonismos, como é o caso das divergências em relação ao parcelamento do território.
Deste modo, neste segundo momento do processo de relações com os informantes, pude
colocar-me em uma posição mais favorável à ampliação das possibilidades de interação
com um elenco mais amplo de redes internas. A partir da promessa ao santo, passei a
colocar-me não mais apenas no plano do que separa, mas também no do que junta, que
agrega, onde as dissensões se relativizam. A partir de então, inaugura-se um terceiro
momento para a pesquisa, que coincide com o abandono proposital do trabalho aplicado e
o investimento na observação dirigida, agora, da perspectiva de um projeto de
investigação.

Essa nova posição me permitiu apreender, mais claramente, as próprias facções


em jogo, o que, no primeiro momento, tornava-se impossível, dada minha colocação
mais restritiva face ao grupo como um todo. Pude, assim, mais sistematicamente,
observar diferentes aspectos das atividades produtivas e da ampla rede de
reciprocidades que ligam famílias e conjuntos de famílias dentro do povoado.

Mais recentemente, acompanhando os cachorros dois anos seguidos - um a partir


da casa de Apolônio e outro, a partir daquela de um denomina- do contra - pude ter
acesso a casas onde eu jamais tinha estado. As foto- grafias que passamos a tirar e a
devolver às pessoas, passaram a se constituir em pretexto para conversas as
maisvariadas. A nova posição assumida face ao grupo, deste modo, possibilitava a
ampliação do objeto de estudo, a partir da redefinição de minha posição enquanto
agente externo.

Isto não significa que eu tenha aberto mão, completamente, da possibilidade de


dar prosseguimento à assessoria ao grupo dos que se opõem a grilagem. Atualmente,
está em discussão, via Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Via na, a possibilidade
de obtenção de recursos para procederem a uma autodemarcação do território. Está
sendo levantada, ainda, a possibilidade de pressionarem a União no sentido da
montagem de um processo com vistas a uma ação de nulidade. Por meio desta, seriam
anulados os títulos de propriedade e a área voltaria a ser considerado patrimônio da
União. Com esta preocupação, estive recentemente no ITERMA, em São Luís,
juntamente com Célia Maria Corrêa, advogada da SMDDH, onde discutimos as
consequências, para os autodenominados cabocos, da ação discriminatória que o
Estado realiza nos municípios de Viana, Matinha e Penalva. Baseando-se em
levantamento aerofotogramétrico para cadastrar o que entendem como "posse",
técnicos daquele órgão estão considerando como tal apenas as áreas onde foram
identificadas benfeitorias, ou seja, os chamados quintais.

Conforme tentarei deixar claro, serão graves para o grupo as consequências


dessa ação discriminatória, se os técnicos oficiais insistirem em privilegiar a ideia de
"parcela", ou seja, de posse individual fixa. Neste sentido, comprometi-me em
transformar parte desta tese em um laudo a ser encaminhado pelo STR e SMDDH ao
ITERMA, no sentido de alertar para os conflitos que serão provocados, caso venham a
se concretizar as proposições de seus atuais funcionários.

Neste sentido, estava propondo exercer, em certa medida, alguns elementos de


uma mediação externa, como parte de meu ofício de etnógrafa, não mais vinculada à
ação religiosa ou outra, embora me mantendo ligada às redes montadas a partir da ação
de entidades sindicais e de defesa dos direitos humanos.

II
TERRA DE ÍNDIO

Uma caracterização preliminar

O objetivo desta parte é oferecer os primeiros elementos para uma caracterização


sociológica do grupo, já que na Parte V serão apresentados os dados etnográficos
propriamente ditos.

Em primeiro lugar, é necessário esclarecer que não se está diante de uma situação
de terra indígena, tal como definida pela Lei 6001, de 10.12.1983, o Estatuto do Índio.
Neste caso, tem- se uma situação de terra de índio que, em alguns contextos, é citada
também, por alguns autores, como terra de índios. Neste trabalho, estarei utilizando a
expressão terra de índio para indicar uma categoria que abarca um conjunto de noções
articuladas, relativas às regras que disciplinam as relações com a terra e outros recursos
naturais. A expressão Terra dos Índios será utilizada para denominar o território em
questão.

Na região conhecida como Terra dos Índios, as unidades familiares cultivam


apoiadas somente no trabalho familiar, sem vender sua própria força de trabalho e nem
comprar a de terceiros, a não ser esporadicamente. Apropriam- se da terra e dos demais
recursos naturais combinando domínios privados, representados pelas lavouras
familiares e pela área que circunda a casa, com palmeirais, babaçuais, buritizais, juçarais,
cupuzais nativos, fontes, igarapés, lagos, açudes, reservas de palha, madeira e caça.

Um dos traços marcantes das regras de apropriação dos recursos básicos e,


sobretudo da terra, de acordo com a lógica que organiza a produção desses
autodenominados cabocos, descendentes de índios é a expressa pelas categorias mato
comum e terra comum, como se verá. Os significados dessas expressões indicam o não
parcelamento do território em lotes particulares, o que permite às diversas unidades
familiares escolherem, livremente, a cada ano agrícola, onde implantar seus roçados.

Os direitos de cultivo estendem-se, deste modo, indistintamente, a todas as unidades


domésticas, mesmo naquelas áreas já cultivadas em anos anteriores - as capoeiras. O trabalho
investido em determinada área não implica, portanto, na aquisição de direitos particulares de
propriedade em caráter definitivo.

As áreas já cultivadas em anos anteriores, e é este o caso da totalidade do território, são


colocadas em repouso, atualmente, por cerca de três a quatro anos e, uma vez recomposta a
vegetação, são apropriadas indistintamente por quaisquer unidades ou grupos de unidades
domésticas.

No momento da implantação das lavouras, as diversas unidades domésticas se


organizam em grupos para escolher os locais mais apropriados. Constroem, então, uma única
cerca protegendo as diversas lavouras familiares, contíguas umas às outras, dentro dos
cercados comuns.

Estes roçados, assim implantados, são chamados roças de união, roças de junção,
roças de sociedade e as tarefas que lhes dão origem, trabalho de união. Ao justificarem esta
maneira de trabalhar, apontam para o que entendem como economia de esforços físicos e de
recursos da natureza, de modo que o acesso à terra é livre.

Para desenvolvimento das várias atividades agrícolas, diferentes unidades domésticas


estabelecem entre si diversas formas de reciprocidade (SAHLINS, 1974, p. 129-130), como
os denominados troca-dia, mutirão e putirão (no caso da quebra do coco babaçu) (Vide
Parte V).

Os fatos ligados à apropriação fraudulenta da terra vêm alterando progressivamente este


quadro de livre acesso aos recursos básicos. Pelo que se pode perceber, tais alterações são
mais evidentes nos povoados Santeiro e Taquaritiua, onde procedi à pesquisa, mais próximos
à sede de Viana e à beira das estradas que levam a São Bento, Pinheiro e Alcântara (Vide
desenhos).

Note-se que a estrada que leva a este último município é o único acesso terrestre a uma
base espacial - o Centro de Lançamento de Alcântara - implantado pelo Ministério da
Aeronáutica a partir de 1984. Esta estrada corta ao meio o povoado Santeiro e vem
provocando grandes transformações neste local, com a instalação de luz elétrica e asfalto, o
que vem contribuindo para uma alta no valor das terras da região.

O processo de apropriação fraudulenta da terra por grileiros e pelos chamados


comprador de terra, em Santeiro e Taquaritiua, tem repercutido nos demais povoados, onde
já se observam cercas e áreas tidas como de dono, conforme denominam aquelas porções
reivindicadas por particulares. Apesar disso, o território, como um todo, tem se mantido
indiviso e parte de seus ocupantes vêm reagindo, firmemente, ao processo de
grilagem instaurado a partir da década de 70.

Muito embora o choque com esses agentes externos, tenha acirrado faccionalismos
internos e abalado regras erigidas e acatadas pelo grudo para disciplinar o usufruto comum
dos recursos naturais, este ainda mantém o controle sobre a maior parte do território. Apesar
das violências sofridas e das constantes investidas dos grileiros, os autodenominados
cabocos têm insistido em se manter enquanto produtores independentes e vêm, neste
sentido, desenvolvendo uma série de novas estratégias de
assistência, que serão analisadas na Parte VI.

A autonomia deste grupo de autodenominados cabocos não se manifesta apenas do


ponto de vista do controle dos meios de produção e do
processo de trabalho, mas também no nível da circulação dos produtos de
suas lavouras. Não se observa aqui, como em outras regiões do Maranhão,
um endividamento agudo e constante das unidades domésticas, como
ocorre, por exemplo, nas regiões de fronteira agrícola, na Pré- Amazônia
Maranhense. Aí, a dependência dos camponeses de toda uma cadeia de
comerciantes, tem sido ressaltada por diferentes autores (Santos, 1982;
Musumeci, 1988). Não é o que ocorre com os autodenominados descendentes dos índios da
Terra dos Índios, não querendo isto dizer, evidente-
mente, que não se registre uma situação de extrema exploração no mo-
mento da comercialização da produção ou da compra das mercadorias de
que necessitam. Por outro lado, constatam-se ligações políticas de caráter
clientelístico com ampla rede de mediadores externos, cujas concepções
em torno das formas de apropriação da terra terminam ganhando força
dentro do grupo, conforme se verificará (Vide Partes I e VI).

Em determinado momento de sua história, as tensões latentes


extrapolam a capacidade do grupo de mantê-las sob controle e sua resolução é jogada para
instâncias externas, como o aparelho judiciário. Apesar disso, a identidade étnica se mantém,
o que permite ao grupo conservar grande margem de autonomia frente ao mundo externo.

Ainda com o objetivo de fornecer ao leitor os primeiros elementos


para uma caracterização sociológica do grupo, tentarei, agora, defini-lo
pelo que não é. Procurarei, deste modo, por meio de aproximações sucessivas, chegar a uma
conceituação do campesinato em questão.

Em primeiro lugar, não é possível confundir a situação em pauta


Com aquela que se poderia entender como "comunalismo absoluto", como
parecem ser interpretadas, ainda hoje, essas formas de organização camponesa por alguns
autores". Não se está diante de um caso em que todas as atividades produtivas são realizadas
em conjunto, com divisão igualitária dos produtos do trabalho. No caso em questão, como se
terá oportunidade de constatar, há uma articulação entre domínios privados e comuns entre
formas de apropriação familiar e usufruto comum dos recursos básicos. A área da residência,
com todas as benfeitorias recobertas pela noção de quintal, assim como, a cada ano agrícola,
as áreas das lavouras familiares, recaem permanentemente sob o controle exclusivo das
unidades domésticas. As áreas correspondentes aos plantios, no entanto, não são tidas como
de propriedade individual, nem mesmo daqueles que as trabalham, podendo vir a ser
utilizadas, em outros anos agrícolas, por quaisquer outras unidades domésticas. Cada uma
destas detém o controle sobre os resultados do seu trabalho, comercializando sua produção
independentemente, sem a ingerência de qualquer instância supra familiar.
Estas características desautorizam considerar o presente caso como um exemplo do
que se entende vulgarmente por "coletivismo" e negam as tentativas, por acaso imaginadas,
de transplante para outras situações históricas, como aquelas dos atuais assentamentos para
fins de reforma agrária. Neste sentido, convém destacar as grandes distinções entre a situação
aqui apresentada e as tentativas de coletivização da produção levadas a efeito por agências
externas aos camponeses, confessionais ou não". Muitas das experiências conhecidas como
"roças comunitárias", promovidas por essas instituições, esbarram com a impossibilidade, na
maioria dos casos não percebida por seus agentes, de socializar o processo produtivo em
todas as suas etapas. As experiências mais ou menos bem sucedidas, neste sentido, parecem
ter sido as que preservam as lavouras familiares desse processo de socialização, realizando a
experiência em outras áreas de plantio, que não as das unidades familiares, e com vistas a fins
específicos, envolvendo interesses de toda a comunidade ou de setores dela (ESTERCI,
1984). Embora tal discussão pareça distanciar-se dos objetivos propostos para o
desenvolvimento deste tópico, é importante ressaltá-la, porque está colocada para agentes
externos que, ainda hoje, tendem a assumir uma visão idílica das formas de organização
camponesa tal como a observada na Terra dos Índios. Nem sempre explicitados, os
pressupostos que subjazem àquelas interferências externas, têm por base o desconhecimento
dos princípios sobre os quais se assenta a articulação entre a apropriação individual-familiar e
o usufruto comum da terra. Ao caracterizar como se dá essa articulação, na Terra dos Índios,
tenho em mente esses interlocutores - agentes externos, ligados a instituições confessionais e
oficiais.

Na Terra dos Índios, a cada ano agrícola, cada unidade doméstica


detém o controle sobre suas áreas de cultivo, muito embora, como já ressaltei, na grande
maioria dos casos, as lavouras familiares sejam implantadas continuamente, dentro de
cercados comuns e, em diferentes momentos do ciclo agrícola, sejam acionadas regras de
ajuda mútua. Neste caso, porém, a igualdade está referida aos princípios que garantem o
acesso de todos à terra, consubstanciados em regras internas, e não impostas externamente,
como resultado de uma politica, oficial ou não. A igualdade, nestes termos, baseia- se em
regras erigidas pelo próprio grupo e por ele acatadas há gerações. E, ainda assim, não se trata
de igualitarismo a nível de todas as etapas da produção, mas de articulação entre formas de
apropriação individual- familiar e o usufruto comum dos recursos naturais.

Não estão, igualmente, diante daquelas experiências levadas a efeito em regiões de


fronteira agrícola, comumente denominadas “roças coletivas” (SADER, 1986). Aquelas
seriam experiências desenvolvidas pelos próprios camponeses, em contextos de conflito
aberto com grileiros, representando, portanto, formas de resistência a agressões externas.
Impossibilitados de abrir lavouras individuais em regiões de floresta, em contextos de
conflitos aberto com pretensos proprietários, os camponeses se unem nos chamados mutirões
e, enquanto uns trabalham em conjunto, outros permanecem em guarda. Tais formas de
organização são observadas tanto no Maranhão quanto no Pará, nos contextos apontados,
sendo impróprio, denomina- las “roças coletivas”. O termo “coletivo” remete à interferência
de agências externas aos camponeses e essas formas de organização do trabalho agrícola, em
contextos de conflito aberto com grileiros, são estratégias de resistência, engendradas
autonomamente. Por meio delas,, visam defender- se de agressões e não são, portanto,
resultado da ingerência de instituições oficiais, confessionais ou partidárias.

Não se está, igualmente, diante da situação clássica de "posse comunal". A situação


em estudo não se aproximaria, por exemplo, daquela da comuna russa do sé. XIX. Naquele
país, quando se dá a emancipação dos servos, em 1861, o campesinato é elevado à condição
de estamento, sendo reconhecida sua organização comunal (SHANIN, 1979). Os costumes
camponeses passam, então, a ser observados como leis e, para fazer cumpri-las, instalam-se
tribunais locais, compostos por magistrados camponeses. O direito consuetudinário
camponês relativo à propriedade familiar, à divisão das terras da comuna, à herança e a
outros aspectos da organização social das aldeias passa a ser tratado pelo Estado enquanto
ordenamento jurídico específico e, como tal, respeitado. Assim, esse direito resiste durante
longo período histórico, tendo as autoridades aldeãs,
Via assembleia comunal, conservado seu poder e desempenhado importante papel durante a
revolução, justamente em função do costume antigo de redistribuição das terras comunais
(SHANIN, 1983, p. 299).

É bem diferente a situação vivida pelos autodenominados caboco da Terra dos Índios,
cujas regras relativas à apropriação dos recursos básicos, por eles erigidas, colidem
frontalmente com aquelas do direito dominante, não havendo lugar, na legislação atual, para
a figura da propriedade familiar, comunal ou tribal. O direito positivo nega qualquer outra
forma de propriedade que não seja aquela entendida nos termos capita_
listas. Neste sentido, a organização social do grupo estudado se funda em regras que
contrariam aquelas do código legal vigente, relativas à propriedade da terra. Por outro lado,
esse mesmo código dominante lhes garante individualmente a condição de posseiros
(MARTINS, 1981, P 16). A proteção legal, porém, neste caso, dirige-se ao indivíduo e não
ao grupo.

Na Terra dos Índios, não há nenhuma instância supra familiar consubstanciada em


qualquer tipo de instituição como uma assembleia ou outra, que decida desde questões
relativas à distribuição das terras, à arrecadação de impostos, à administração de serviços, até
a aplicação de multas para uma variedade de delitos (SHANIN, 1983, p. 299). Isto não quer
dizer, no entanto, que as diferentes relações sociais, tal como observadas nessa situação de
terra de índio, não sejam pautadas por uma série de regras que se atualizam nos diferentes
laços de parentesco e afinidade estabelecida entre os membros do grupo (Vide Parte V).

O caso em estudo não representa, ainda, "resquício", "resto" ou "sobrevivência" de


modos de produção passados que ainda pairariam sobre os camponeses. Ao contrário, esse
tipo de organização social é resultado de desdobramentos da própria economia colonial.

Por não apresentar uma estrutura corporada formalizada, a organização social do


grupo estudado também não se enquadra dentro do tipo "comunidade camponesa corporada
fechada" ou, simplesmente, "comunidade camponesa corporada" (WOLF, 1955 e 1959).

A "comunidade corporada", estudada por antropólogos no Peru e no México,


apresentaria uma estrutura comunal, com um sistema social fechado, de limites claros entre
os "de dentro" e os "de fora". Os direitos e deveres de seus membros estariam claramente
estabelecidos e amplos segmentos do comportamento de seus membros seriam prescritos por
ela. Essas "comunidades corporadas" se localizariam em "terras marginais", onde a presença
da sociedade abrangente fosse fraca ou estivesse
ausente e seriam cultivadas por meio de uma "tecnologia tradicional". O emprego desse tipo
de tecnologia afetaria a capacidade produtiva dessas comunidades, reduzindo a possibilidade
de consumo de bens oriundos do exterior, o que resultaria numa situação de pobreza.

O controle desse tipo de comunidade sobre a terra seria bastante forte, principalmente
naquelas situações em que este recurso fosse apropriado em comum e realocado anualmente
entre seus membros. Mesmo onde já se verificasse a apropriação individual da terra,
permaneceria o tabu da venda a elementos de fora. O sistema de poder, intimamente
vinculado à dimensão religiosa, tenderia a definir as fronteiras do grupo e a agir enquanto
símbolo de unidade coletiva.

Na Terra dos Índios, durante longo período da história recente do grupo, que cobre
todo o século XX, as terras também não foram objeto da presença da sociedade abrangente.
Só recentemente agentes externos passaram a pressionar no sentido de que as terras, mantidas
indivisas e sob controle dos autodenominados cabocos, fossem dispostas no mercado. A
grilagem e a ação oficial com vistas à titulação e ao loteamento via recursos financeiros
internacionais devem ser entendidas do ângulo das pressões recentes sobre essas terras
(ALMEIDA, 1984). Em relação à vinculação atual com a sociedade abrangente, a economia
dos cabocos da Terra dos Índios não pode, porém, ser considerada marginal, uma vez que
comercializam parte expressiva do que produzem, de modo a obter recursos para adquirir as
mercadorias de que necessitam. A Baixada Ocidental Maranhense tem sido responsável pelo
abastecimento da Capital de produtos tais como arroz, farinha, ovos, aves e frutas
(MOURÃO, 1975, p. 22-39). Apesar disso, as oscilações do mercado não os atingem
diretamente, pois sua organização econômica se orienta por mecanismos internos que lhes
permitem permanecer não afetados pelas crises daquele (CHAYANOV, 1981).

Na Terra dos Índios também se observam critérios claros de inclusão e de exclusão,


baseados no reconhecimento de uma origem étnica comum sobre determinado território, nos
laços de parentesco ou de estreita afinidade. Há, assim, limites bem marcados para o acesso
aos recursos básicos. Pensando nos termos de Barth (1970, p. 09) a fronteira étnica é mantida
e defendida a indivisibilidade das terras contra antagonistas externos e internos. A convicção
de que são descendentes dos índios, a quem foram doadas as terras, é alimentada ao longo da
história do grupo, mantendo viva aquela fronteira. Fatos ligados a essa história, como a visita
anual dos índios Urubu Ka’apor, até a década de 60, serviram para reforçar o sentimento de
pertencimento a um grupo com uma origem étnica comum, compartilhando o mesmo
território. Ressalta-se, porém, que seriam os extintos Gamela e não os Urubu Ka’apor os
habitantes originários da chamada Terra dos Índios, conforme referências encontradas na
documentação histórica. Os chamados cabocos estabeleceram com os Ka’apor um contato
posterior, provavelmente quando os segundos expandiam suas fronteiras em direção ao
Maranhão.
Apesar de todos esses traços, falta à organização social dos autodenominados cabocos
da Terra dos Índios uma estrutura corporada formalizada, que permita classificá-Ia como uma
"comunidade camponesa corporada fechada". O poder político se exerceu, durante longo
tempo da história do grupo, por meio da instituição do encarregado e dos repre: sentantes do
mato (Vide Parte I1I). A função do primeiro, enquanto autoridade moral era manter sob sua
guarda os documentos antigos, garantindo o acesso livre a terra. O representante do mato,
por outro lado ainda hoje, representa uma liderança local, no nível de cada povoado e sua
função é a de impedir que recursos, como babaçuais, sejam devastados (Vide Parte I1I).

A instituição do chamado encarregado foi sendo redefinida, desde a morte de um dos


anciãos que desempenhava essa função, o que coincidiu com o afastamento dos índios Urubu
Ka'apor, com a realização do inventário fraudulento e com todo o processo de grilagem que
se seguiu, fatos estes que se terá oportunidade de analisar no decorrer deste trabalho. Quanto
aos chamados representantes do mato, autoridades não formal-
mente estabelecidas, continuam a existir em certos povoados, como o Centro dos Bata,
embora nem sempre atendendo por esta denominação (Vide Parte I1I).

Enfim, as instituições políticas, neste caso, assentadas na autoridade moral detida por
determinados anciãos, conferida tanto pelos laços de parentesco com os indígenas, quanto por
outros fatores, seriam muito mais flexíveis, mais fluidas e não formalmente estruturadas.

1. O "CAMPESINATO MARGINAL"

Diferentes autores têm demonstrado que, marginalmente ao sistema de plantation,


desenvolveu-se uma camada de camponeses dedicados à produção de alimentos. Esses
autores resgatam historicamente a formação dessa camada de produtores independentes
dentro e fora das grandes explorações, sem se dedicar, no entanto, especificamente, à análise
do campesinato do tipo daquele que se está estudando aqui.

Os conceitos de "camponês marginal" e de "roceiro", "esse protótipo histórico do


produtor brasileiro de alimentos" (OBERG, 1965, p. 1417), são referidos ao agregado das
grandes explorações que se transformou no posseiro, no meeiro, no trabalhador agrícola.

O conceito de "camponês marginal" é retomado por alguns para ressaltar que muitos
desses produtores independentes funcionaram como exército agrícola de reserva para a
plantation, transformando- se, depois, em pequenos produtores voltados para o mercado
interno (VELHO, 1979, p. 161-170). No auge do sistema de plantation, segundo esses
autores, fora impossível consolidar-se uma massa de camponeses livres, tanto dentro quanto
fora das grandes explorações. Apenas um "ralo campesinato marginal" (VELHO, 1979, p.
161) teria existido nas áreas periféricas às grandes explorações, onde as unidades familiares
dedicavam-se à produção de alimentos e, mais
para o interior, à criação de gado. Esses pequenos produtores independentes, não
necessariamente oriundos das grandes explorações, mas a elas ligados de certa forma,
produziriam alimentos para o mercado interno, funcionando, ainda, como reserva de mão-de-
obra. Sua pequena agricultura estaria próxima da marginalidade, uma vez que
se caracterizava enquanto uma pequena produção mercantil de uma espécie peculiar,
mantendo laços frouxos com o mercado. Esta pequena agricultura é também caracterizada
como "subordinada" e voltada para o autoconsumo, "uma forma próxima à economia de
subsistência", tendo se desenvolvido tanto dentro quanto fora do domínio físico da
plantation. Quando o sistema de plantation não absorveu mais o "excedente demográfico"
criado por ele mesmo, desenvolveu- se um "campesinato de fronteira", também denominado
de "campesinato espontâneo" (VELHO, 1979, p. 119).

No regime de colonato nas fazendas de café, antes da crise do trabalho escravo,


aponta-se a existência de trabalhadores livres, resultado da presença de uma camada de
negros, indígenas libertos, mestiços (definidos como bastardos), que vieram a ser conhecidos
como caboclos ou caipiras e que teriam sido, em geral, agregados dos grandes fazendeiros.
Esses trabalhadores teriam se constituído em posseiros e sitiantes, produzindo alimentos para
o mercado interno (no Nordeste) e sendo utilizados na abertura das fazendas de café (no Rio
de Janeiro e em São Paulo) (MARTINS, 1979, p. 12).

Há referências, ainda, àquele campesinato que se desenvolveu


na faixa entre a fronteira econômica e a fronteira demográfica, como “frente de expansão"
(MARTINS, 1975, p. 43-47; 1981, p. 109-118). Aí, esses camponeses produziriam de acordo
com uma economia voltada primordialmente à própria subsistência e, secundariamente, à
troca de produtos. Deste modo, a "frente de expansão" estaria ligada à economia de mercado
de duas maneiras: absorvendo o excedente demográfico que não pode ser contido na
fronteira econômica e produzindo excedentes que se realizam enquanto mercadorias na
economia de mercado (MARTINS, 1975, p. 46).

Refletindo sobre a situação estudada, não caberia, aqui, a ideia de uma certa marginal
idade "funcional" às grandes explorações, tal a levam a crer essas análises. Os indígenas que
ocupavam a região em questão e os grupos de ascendência indígena que se acamponesaram
não podem ser consideradas como “excedente demográfico”. Não se deslocaram para áreas
onde a presença da sociedade abrangente não se verifica e, muito menos se constituíram
muito menos se constituíram em "reserva de mão-de-obra para as grandes fazendas. Ao
contrário, toda a repressão da sociedade nacional a essas populações se deu no sentido de
ocupar seus territórios. O que se pode dizer é que, em alguns períodos de sua história, as
terras habitadas por este grupo mantiveram-se em uma posição de isolamento em relação aos
principais núcleos de desenvolvimento econômico. De qualquer modo, mesmo essa ideia de
isolamento deve ser desdobrada em relação aos diferentes momentos históricos que marcam a
constituição do grupo. A idéia de autonomia do grupo, calcada na identidade étnica é, mais
que o "isolamento" e a dependência, o aspecto que se pretende enfatizar.

2. O "CAMPESINATO LIVRE COMUNAL"

Principalmente a partir dos anos 70, os antropólogos desenvolveram uma série de


estudos localizados acerca da "lógica da produção camponesa". Entre estes, também não
aparece a preocupação específica com o campesinato de tipo "comunal", feitas as ressalvas
aos trabalhos produzidos no Maranhão por Sá (1975), Prado (1970), Salles 1984)7, alguns
dos quais passarei em revista a seguir, de modo a estabelecer semelhanças e diferenças com a
organização social dos chamados cabocos da Terra dos Índios.
Embora alguns desses autores trabalhem com campesinatos por eles definidos como
de tipo "comunal", Mourão Sá foi quem se preocupou em conceituar, para o caso do
Maranhão, o que denomina de "campesinato livre comunal". Seria um campesinato "pós
plantation" tendo suas origens na desagregação das unidades produtivas administradas pelas
Ordens Religiosas, no caso por ela estudado, a dos carmelitas.

A autora aponta a história indígena como sendo a pré- história do campesinato


naquela região, ressaltando o principio do uso comunal da terra como sendo oriundo da
organização social daquelas sociedades, que era de interesse dos religiosos, conserva (SÁ,
1975, p. 36- 37). A chamada Lei da Liberdade dos Índios (1955), regulamentada pelo
Diretório dos índios (1957), assim como a regularização do tráfico de negros, teriam marcado
o inicio do sistema camponês como setor independente da grande unidade de produção
colonial e se teria, então, no caso do Maranhão, o “campesinato livre parcelar” e o
“campesinato livre comunal”, este último egresso do sistema de reduções.

Os marcos históricos da constituição e dissolução do campesinato livre comunal",


segundo Sá (1975), seriam final do séc. XIX e década de 60 deste século, respectivamente.
Conforme se observou nos anos que se seguiram, a capacidade de resistência do grupo
mostrou ser muito mais forte do que se poderia imaginar no momento em que a autora
realizou seu trabalho.

Em vez de apresentar-se enquanto "população terminal", em função das pressões resultantes


das transformações que atingiram o campo maranhense, sobretudo nos anos 60 deste século,
o grupo dos autodenominados pretos da área identificada por eles como terras da santa,
souberam encontrar formas de resistir à expropriação.

Soares (1981) e Salles (1984), igualmente trabalharam com camponeses que podem
ser considerados como integrando esses campesinato "pós plantation". São os
autodenominados pretos que receberam a terra como doação - no primeiro caso, do seu
antigo senhor e, no outro, do Estado, em decorrência de serviços guerreiros prestados, ao que
tudo indica, durante a Balaiada. Nas duas situações, esses camponeses mantiveram as terras
indivisas e referem-se a heróis ancestrais, em torno de quem mantêm a unidade em relação ao
território.

Os autodenominados cabocos da Terra dos Índios não podem ser considerados como
integrando esse "campesinato pós plantation", uma vez que, segundo hipótese levantada neste
trabalho, sua constituição enquanto grupo teria se iniciado a partir da segunda metade do
século XVIII, quando da "domesticação" dos Gamela. Não foram escravos ou agregados das
grandes fazendas, que nelas permaneceram depois da "decadência". Não se estabeleceram à
sua "margem", funcionando como exército agrícola de reserva e como produtores de
alimentos, embora desempenhem importante função enquanto abastecedores dos mercados
regionais. Não prestaram, igualmente, serviços ao Estado, construindo estradas ou
participando de expedições guerreiras. Ao contrário, foram indígenas que reagiram à invasão
de seu território, que lutaram contra
catequese, contra as bandeiras, contra os sesmeiros, contra as tropas de linha. Foram os
escravos, não os libertos, mas aqueles que se insurgiram contra a escravidão e se auto
libertaram assinalando-se entre os Gamela. Juntos, passaram a constituir redutos que as
tropas de linha, durante o século XIX, tentaram dizimar. Os autodenominados cabocos da
Terra dos Índios se caracterizam como grupo que se destaca, não por uma "marginal idade
funcional" à economia dominante, mas pela rebeldia expressa no confronto com a sociedade
nacional, em diferentes momentos da história de sua constituição. Pelo menos desde 1751,
primeiro momento do contato dos Gamela com os Jesuítas, até as primeiras décadas do
século XIX, esses indígenas, em processo de acamponesamento, ocuparam áreas férteis,
cobiçadas pelos que aí desejavam implantar fazendas de arroz e, principalmente, de algodão.
Não ocuparam "terras marginais" e não foi sem conflitos que conseguiram se manter sobre
seu território, já que se recusavam a se subordinar ao poder dos grandes proprietários rurais,
insistindo em se manter enquanto grupo étnico (BARTH, 1970).

3. OS "SISTEMAS DE USO COMUM DA TERRA"

Apesar de diferenciadas entre si, etnológica e historicamente, as situações de terra de


preto e de terra de santo, estudadas por esses autores, guardam similitudes para com aquela
de terra de índio, aqui analisada.

O esforço para inventariar e descrever as diferentes situações nas quais ocorre o


apossamento comum da terra vem sendo recentemente desenvolvido (ALMEIDA, 1989). O
conceito de "posse comunal" vem sendo substituído por aquele outro de "uso comum da
terra", chamando-se a atenção para a ocorrência desse tipo de sistema, tanto em áreas de
colonização antiga, como naquelas de ocupação recente.

Dentro dessa perspectiva, as terras de santo, terras de preto, terras de índios, terras
de parente, terras de herança, se constituíram em sistema de usufruto comum dos recursos
básicos, notada mente da terra. Em todos esses casos, a territorialidade ganharia
proeminência enquanto "fator de identificação, defesa e força” (ALMEIDA, 1989, p. 5) e a
noção de terra comum seria central no sistema de representação sobre a terra.

Enquanto produtos de desdobramentos próprios do desenvolvimento capitalista, tais


sistemas representariam soluções encontradas por diferentes segmentos camponeses como
forma de autodefesa, notadamente em situações de conflito aberto (ALMEIDA, 1989, p. 12).
Ao se tornarem formas estáveis de acesso a terra esses “sistemas de uso comum” seriam
assimilados pela sociedade abrangente nas relações de circulação. Esses camponeses, assim
organizados sobre um território, passariam a abastecer os aglomerados urbanos de produtos
tais como farinha, arroz e feijão.

Nas áreas de colonização antiga, as situações recobertas pelas categorias, terra de


preto, terra de santo, terra de índio, seriam fundadas historicamente no processo de
desagregação e decadência das grandes explorações. Seriam resultado da fragmentação das
grandes propriedades, que foram entregues, doadas ou abandonadas por seus proprietários
face à "decadência". Esse "campesinato pós plantation" teria se mantido nessas áreas sem
proceder ao parcelamento das terras.
Como já tive oportunidade de observar, a caracterização de "campesinato pós
plantation" não caberia ao caso em estudo, pois se está diante de uma situação histórica
anterior à implantação das grandes explorações. Gostaria de reter, no entanto, a ideia de que
essas formas de usufruto comum dos recursos naturais são engendrados em
momentos de conflito e como estratégias de autodefesa. Refletindo sobre a organização
social na Terra dos Índios, essa ideia é mais plausível que a hipótese de o grupo ter
conservado, simplesmente, traços da cultura indígena. O que não quer dizer, absolutamente,
que a organização econômica das sociedades indígenas não tenha deixado qualquer marca
sobre a economia desses grupos. A meu ver, o que importa res-
saltar, no entanto, é a capacidade de resistência do grupo em se manter enquanto tal, não
apenas nos momentos de crise da economia dominante, mas também em épocas consideradas
como "idade de ouro" (ALMEIDA, 1983, p. 81), em que suas terras tornam-se fundamentais
à expansão das grandes explorações. Exatamente por isso, a meu ver, é que a indivisibilidade
da terra e a articulação entre a apropriação individual familiar e o usufruto comum dos
recursos naturais se apresentam, neste caso, como estratégias de autodefesa frente à
sociedade dominante. Em suma, o que desejo enfatizar é que o traço distintivo da
constituição e estabilização do grupo dos autodenominados descendentes dos índios sobre
determinado território é a rebeldia, a transgressão,
o confronto, que perpassam diferentes momentos de sua história. Ou seja, desejo ressaltar os
fatores supra estruturais, que reforçariam a resistência do grupo enquanto grupo étnico. No
decorrer deste trabalho espero retomar a reflexão sobre todos esses pontos.

III

A HISTÓRIA DA TERRA DOS INDIOS SEGUNDO OS INFORMANTES

1. OS CABOCOS: descendentes dos índios

Os autodenominados csbocos da chamada Terra dos Índios se consideram


descendentes dos índios, a quem foram concedidas as terras. Diferentes depoimentos
assinalam a ascendência indígena desses cabacos, também auto-identificados como morador
velho, ainda hoje os ocupantes da terra.

Foi doada pros índios [a terra], pra três família de índio. Entonce, os índios se
mudaram, sabe, foi subindo, o pessoal foi aumentando, ficou pro pessoal, pros caboco... que
quase todo esboce tem uma raça de índio. Então, ficou esses esboce como representante,
quase que como herdeiro dos índios ( ... ) os índio foram se mudando, foram subindo pra
matar, ficou os esboce roçando, os descendentes dos índios, né? (Apolônio)

Note-se que a ancianidade da ocupação, ressaltada pela expressão morador velho, está
ligada à condição de caboca, de descendente dos índios. Estes, por estar ligados a ancestrais
indígenas, segundo as representações camponesas, teriam ocupado a terra desde tempos
imemoriais. Os chamados descendentes dos índios são representados, também, como "quase
herdeiros" daqueles. Embora reconheçam que a área foi doada a certo número de famílias
indígenas, nomeadas nos documentos, os "herdeiros" da terra, segundo eles, seriam todos os
chamados ceboco, e não apenas aqueles que foram legalmente (embora de forma fraudulenta)
instituídos como tal, conforme explica Leandro Lió:

Foi data de D. Pedro pra quatro família de indescendente de índio, quatrocentos


anos, até a quarta geração. Tá em duzentos e pouco, tem cento e pouco pra resolver isso e já
eles se utilizam que são dono ... fizeram inventário falso ...

Por outro lado, a condição de descendentes dos índios não é dada pela continuidade histórica
real com relação a uma nação indígena especí-
fica, sendo que os caboco dificilmente aludem a alguma delas. Sendo as-
sim, o nome Gamela não faz nenhum sentido para eles. Há referências, no
entanto, a certos índios que estariam para os lados do Gurupi. Referem-se
a eles como tendo "subido para a mata", ou seja, para o lado oeste de
Via na, onde se encontra, realmente, hoje, a região de floresta, na direção
daquele rio. Em seguida, se terá oportunidade de observar que os camponeses estão se
referindo aos Urubu Ka'apor.

Toda a história da região é referida por eles como estando relaciona-


da à presença de fundadoras indígenas. As irmãs Ana, Ana Dias e Guardiana
deteriam, segundo eles, o controle sobre a região de Via na, de Matinha e
do território conhecido hoje como Anadia, conforme explica João Mucura:

A minha descendência desses índios, que hoje esses mesmos índios estão no Gurupi pra lá ...
eram três índias que comandavam esse terreno: era Ana, ali vivia em Viana, e Guardiana em
Matinha, minha tataravó, e Ana Dias em Vila Nova ... que é as terra que hoje tá em conjunto
também. Esse povo que são descendência dela também é nossos parentes também, né? Vive
nesse mesmo martírio que nós vivemos aqui com essa [terra] daqui.

Como se viu, a área denominada Vila Nova de Anadia é igualmente, reconhecida


como uma terra de índio. A fundadora daquela área é considerada como tendo sido irmã
daquela da Terra dos Índios e, portanto, os habitantes de ambas seriam ligados entre si por
laços de sangue. Ou seja, seriam todos considerados descendentes dos índios, não importando
a nação indígena que possa estar em questão num caso e no outro. No nível
de seu sistema de representações os informantes se consideram, portanto, como parte de um
todo correspondente a uma grande região, que extrapola o território em questão. Segundo
eles, o seu território, assim como aquele outro, limítrofe, pertence a ancestrais indígenas, que
se afastaram para regiões de floresta e os deixaram usufruindo as terras. Além disso,
ressaltam o fato de estarem enfrentando a mesma situação de pressão dos grileiros. Nos seus
termos, o "martírio" vivido pelos caboco de terra de índio é o mesmo.

Ressalte-se que a ligação da área em questão com a índia Guardiana é reconhecida


também cartorariamente, já que seu nome consta das escrituras. Ao descrever os marcos que
assinalam os limites da área, esses documentos afirmam: "na paragem de Matinha residia a
índia Guardiana” , ou seja, a residência dessa mulher indígena era, ela mesma, um referencial
que funcionava como marco. Isto demonstra, mais uma vez, o reconhecimento externo - tanto
cartorário, como judicial - da região conhecida como Terra dos Índios enquanto terra
concedida a indígenas.

Ressalte-se, finalmente, que a noção de terra comum, a ser detalhada no próximo


capítulo, está intimamente relacionada à auto definição de descendentes dos índios. A noção
de terra de índio, entendida nos termos do grupo, caracteriza uma situação em que os
recursos naturais devem ser usufruídos em comum.

A terra é comum porque foi doada por D. Pedro I pros índios e, agora, os índios não
gozam ela porque moram aí ores aldeia, mas têm os descendentes que são os caboco, caboco
lavrador, que vive na terra e cultiva ela, os trabalhador ... esta terra devo luta, isso é uma
terra comum, é da comunidade, do pessoal. (João Lourenço).

2. O TERRITÓRIO

Ao descreverem a região que identificam como Terra dos Índios, os autodenominados


caboco assinalam seus limites com grande precisão. Para tanto, invocam o depoimento dos
antepassados, de quem ouviam a leitura de papéis antigos, as chamadas escrituras velhas, e
junto com quem aprenderam a observar o mapa da área.

Inúmeras vezes foi possível ouvir Leandro Lió repetir extensos trechos desses documentos,
para minha admiração e de todos que se postavam por perto nesses momentos. Vale à pena
citar um deles, para que se observem os detalhes, a precisão da descrição, se comparada aos
documentos disponíveis:

Cansei de ver amostrar o mapa pra gente. Amostrava o mapa, amostrava as escritura,
tudinho ... e ia ler pra gente ouvir ( ... ). Ele lia e dizia: 'olha, bem assim: pedra do canto da
Terra dos índios, em Matinha, ficava perto de um poço'. Travessando pelas águas do campo
de Aquiri, subindo a parte do mato grande, travessando pelas águas do campo do
Maracassumé, ao fundo dos Cutia, a pedra. De lá, corta pra fazer canto com a pedra de São
Raimundo, vem passando por São Domingos, Santa Helena, Barreiro ... quando chega aqui
em Barreiro ele dizia: 'vizinha com as terras de Ribeiro, das Sesmaria da Conceição de
Roma, pedra de Itaqui, em Piricaua' ... fazia canto pra travessar pra outra de Matinha.

Confrontando-se essas informações com os documentos cartorários disponíveis,


percebe- se percebe- se que os limites da área são, realmente, muito próximos daqueles
assinalados em suas discrições.

Veja-se:

Freguesia do imóvel: Nossa Senhora da Conceição de Viana. Denominação de rua e número


do imóvel: Terra dos Índios. Confrontações e características do imóvel: a figura geométrica
do imóvel forma um paralelogramo de ângulos agudos. Limita-se com as terras da Sesmaria
da Fazenda Roma, com as terras conhecidas pela denominação de terras das Cotias, Com as
terras da Sesmaria da Fazenda São Raimundo, com as terras da Sesmaria Aguas Bela, com
as terras de Barreiro ( .. .). O primeiro marco está localizado no lugar Matinha e daí Corre o
travessão para o marco de Piricaua ( ... ) este marco é o da Pedra de Itaqui ...

Esses documentos remetem, ainda, aos marcos, referindo-se às mesmas pedras citadas
pelos informantes. As pedras tiveram grande importância, durante longo período histórico,
como símbolo de poder e de reconhecimento do Estado (as pedras de suplício, os
pelourinhos) e a sua colocação, no caso, representava um procedimento oficial para assinalar
limites territoriais. Aos denominados caboco, por outro lado, esses marcos,
judicialmente respeitados, passaram a simbolizar sua posse imemorial. Transformaram-se
em verdadeiros monumentos, podendo ser encontrados também em outras regiões onde se
observa a utilização comum da terra, como aquele estudado por Sá (1975)4. Enquanto a
legislação dominante passou por todo um processo de transformação ao longo do tempo, para
o direito costumeiro esses símbolos continuaram a ter importância
fundamental. As pedras, juntamente com outros sinais - acidentes geográficos, árvores, rios -
continuaram a ser utilizados para demarcar o território. Entre esses marcos, continuaram a
traçar imaginariamente os chamados rumos, estabelecendo uma divisão do espaço toda
peculiar, que colide com os critérios e procedimentos demarcatórios oficiais atuais. Note- se
que até mesmo a linguagem utilizada, com o emprego de certos termos, próprios do século
XVIII e início do XIX (como místico indicando limítrofe,
por exemplo)", denotam a antiguidade de certas noções acerca da distribuição do espaço,
assimiladas por esses autodenominados cabocos e transmitidas de geração a geração.

Em 1970, quando se intensificou a grilagem em Santeiro e Taquaritiua, integrantes da


facção que a ela se opõem, saíram em busca das chamadas pedras, para se certificar que
ainda se encontravam em seus devidos lugares, conforme relata Leandro Lió:

Essa pedra aqui dos Cutia rancou-se ( ... ) reguou [recuou] com a tempestade e a pedra
sacoue o pessoal juntaram e tem ela lá dentro de casa ... eles foram nos amostrar aonde foi o
lugar que ela reguou, queria que nós colocasse lá de novo. 'Não, nós não quer colocar a
pedra. Nós só queria saber aonde ela está e pronto, abasta isso'. O dia que for preciso, a
gente vem aqui e se for pra testemunhar, nós testemunhamos. E nós deixamos a pedra lá
mesmo na casa do moço.

Note-se a grande importância conferida a esses marcos entendidos como documentos,


assim como ao testemunho daqueles que os viram e com sabem que eles existem realmente,
tal como afirmavam os antepassados. Os marcos que, topograficamente, para a legislação
dominante, só adquirem sentido se fincados exatamente nos locais condizentes com o
memorial descritivo constante das escrituras, passam a ter um valor em si, como símbolo,
como prova, como testemunho.

Recorde-se que a visita aos locais onde se encontram essas chamadas pedras deu-se
em um momento de grande tensão, em que parte do grupo estava sendo obrigada a se
defender das investidas dos grileiros. Muito embora as lutas, atualmente, não se desdobrem
no plano judicial, traduzindo-se muito mais em confrontos diretos, integrantes do grupo
sentem-se compelidos a se certificar de que as pedras, provas indiscutíveis de seus direitos,
ainda existem em seus devidos lugares. Caso isso não aconteça, é necessário se certificar de
que tenham sido resgatadas e guardadas em lugar seguro.

Ao descreverem a área correspondente ao que entendem como Terra dos Índios


chamam a atenção, ainda, para a sua unidade. Apoiando-se nos relatos dos antigos, negam
que existissem quaisquer divisões internas em seu território, correspondendo a porções
apropriadas privada mente por alguém. As áreas que aparecem hoje em nome de proprietários
particulares já seriam, no seu entender, resultado de um processo de apropriação fraudulenta.
Em suas próprias palavras:

Não tinha essas divisão aqui ... que hoje aparece terra de seu Feliciano, de uns tempos pra
cá ... Ele [seu pai de criação] nunca me falou nessas terras, mas depois apareceu seu
Feliciano, tirando essas terras aí ... (Gonzaga, do Centro dos Bata).

Uma divisão interna, no entanto, separando povoados, sempre existiu. É por isso que
se referem ao que chamam de separação de trabalho, ou seja, afirmam que as áreas de
cultivo de diferentes povoados sempre foram precisamente demarcadas. Essa delimitação do
espaço articulada a relações sociais, será melhor apreciada nos capítulos seguintes.

3. AS VISITAS DOS URUBU KA'APOR

Integrantes do grupo, hoje com cerca de oitenta anos, lembram- se da visita de certos
índios, desde quando eram crianças, que se repetiu até por volta de 1960, quando deixaram de
vir. O que faz supor que esses índios fossem os Urubu Ka’apor é o fato de diferentes
informantes assinalaram a região do Gurupi como de origem desses visitantes, além de
citarem o nome de Zé Gurupi entre eles. Zé Gurupi foi, realmente, um conhecido chefe
Urubu, tendo fundado, no atual município de Zé Doca, uma al-
deia que leva o seu nome. De fato, a região onde se localiza a denomina da Terra dos Índios
passou a ser objeto de incursões dos Urubu Ka'apor, a partir de 1860, em seu processo de
migração do Pará para o Maranhão (BALÉE,1984, p. 38). Por volta de 1900, os Urubu
encontravam-se em pleno processo de conquista de novos territórios e se expandiam até os
lagos de Viana (GUIMARÃES, 1886 apud BALÉ E, 1984, p. 38).

A reconstituição do contato dos Gamela e de outros grupos indígenas


da região em questão, como os Urubu Ka'apor, ainda está por ser realizada.
Por ora, pode-se dizer que os Gamela, já acamponesados, foram alcançados
por essas incursões Urubu, no final do século XIX, tendo se estabelecido
entre eles relações de afinidade. A partir de então, esses índios teriam passado,
sistematicamente, a visitar a Terra dos Índios, sendo recebidos pelos
autodenominados cabocos como os legítimos "proprietários" das terras.

A visita dos Urubu passou a funcionar como um reforço à identidade do grupo, à


coesão interna e à manutenção da fronteira étnica (BARTH, 1970), sinalizando aos "de fora",
no sentido de defenderem o território.
Por exemplo: quem quiser conversar com os índios, pra vim em sua casa fazer um passeio,
uma visita, uma coisa, era só ir lá no Chico Reis [o língua] e ele ia lá pra aldeia ... quando
ele vinha, já trazia os índios ...

Como se pode perceber, as relações com os Urubu Ka'apor eram, propositadamente,


cultivadas. Era importante para o grupo mantê-las e, assim, sinalizar aos "de fora" que seus
integrantes se encontravam em perfeita sintonia com os ancestrais - aqueles tidos como os
legítimos proprietários do território, a quem haviam sido doadas as terras.

Segundo os informantes, esses índios se faziam acompanhar de um intérprete, o


chamado língua”. Em um dos depoimentos, a figura desse chamado língua aparece também
como diretor, o que pode estar relacionado à função de Diretor dos índios, no final do Século
XIX.

Alguns desses denominados línguas são apontados como tendo sido índios casados
com mulheres ligadas consanguineamente aos encarregados. Deste modo, é possível supor
que a autoridade destes, enquanto guardiães dos documentos, a partir de certo período da
história do grupo, tivesse passado a ser reforçada por laços de parentescos estabelecidos com
indígenas - Urubu Ka'apor ou outros.

Sempre de acordo com informantes, da aldeia esses índio e vinham direto a


Taquaritiua, onde permaneciam durante dias, dançando e cantando. Traziam carás e batatas e
recebiam em troca, hospedagem, fumo, farinha e bebida, conforme explica Apolônio:

Eles vinham em casa desse velho alegá rio e faziam a festa deles e traziam aqueles
assentamento tecido de guarimã e quando era na hora de dançar moleca dançava que
rolava ... Homens e mulheres ... esturravam o pé no chão, lhe garanto. E quando eles vinham
traziam batata, traziam cará, traziam macaxeira, vinha tudo carregado presse velho
Olegário. Eu ainda fui lá expectar a festa deles ...

Recorde-se que Olegário Meireles foi um dos últimos dentre os chamados


encarregados que residiam em Taquaritiua. Este povoado é apontado pelos informantes
como uma espécie de núcleo indígena atual. Este local, segundo hipótese levantada neste
trabalho, é o mesmo registrado por Lago (1872, p. 417) como tendo sido uma aldeia indígena
(Vide Parte IV). Era para Taquaritiua que os Urubu se dirigiam e a festa acontecia na casa do
chamado encarregado, muito embora outros grupos familiares, de outros povoados,
mencionem ter recebido a vista dos índios, hospedando-os.

De Taquaritiua partiam para Matinha onde, segundo os informantes, iam vistoriar as


pedras, chamadas por eles de cará.

P - E o que eles vinham fazer?

Eles vinham ver se tava certo ... o velho Jorge Reis [um dos chamados línguas] dizia pro
pessoal daqui que iam visitar eles: 'eles tão afim de olhar o pé de cará, se tá certo no lugar
que eles deixaram plantado' ... e se procurava o que era o pé de cará, eles diziam que era as
pedras, aí eles iam, iam pra Matinha, olhar ( ... ) o pé de cará é a pedra que existe, por
causa disto é que iam pra Matinha.

P - Por que será que eles chamavam pé de cará?

Não sei se é porque a pedra ficava plantada só naquele lugar ... ela não podia sair ... como
não pode, s6 se tiver quem arranque ...

Os Urubu são apontados, também, como tendo desempenhado a função de conceder


licença para implantação de casas, conforme relata dona Fuloca, de São Raimundo dos
Cavacos e que dali foi expulsa pelo grileiro (Vide Parte VI):

Quem deu aqui oro Antonio [marido] foram os índios Zé Gurupi ... Antonio disse: 'olha, seu
Zé, eu quero fazer uma residência aqui, uma morada ' ele disse: 'sim, senhor, pode fazer ...
tava Zé Gurupi, Canário e Passarinho ... dado pelos índios!

Zé Gurupi é apontado, ainda, pela mesma informante, como tendo sido chamado por
seu marido para dirimir questões relativas à apropriação da terra para implantação de roçado:

Eles [os índios] saíram aqui pro lado do Caru, que é lá que Antonio foi buscar eles uma vez,
porque ele fez um roçado bem aí. Ele marcou o mato e aí botaram uma cruz, fizeram um
bando de doidice. Antônio foi, conversou com Moizinho, dos Cavaco, que morava lá. Meu
marido disse: 'compadre, a gente roçando, marcando o mato, será que os índios vão fazer
certa coisas lá?' 'Compadre, o velho Moizinho disse, isso não é coisa de índio, isso é fulano
de tal que fez isso'. Lá Raimundo Tertuliano [o língua] e o Zé Gurupi mais os companheiros
dele tudo vieram. Ele foi lá, amostrou o roçado dele. Aí eles disse [os índios] que não era
eles que fazia uma coisa dessa, que era os outros.

Interessante notar que Zé Gurupi costumava assumir essa atitude de mediador em


casos de disputas de terra entre camponeses, também da região de Zé Doca, conforme
informações prestadas pela antropóloga Virgínia Valadão, que pesquisou os Urubu Ka'apor,
no Maranhão. Segundo ela, eram inúmeros os casos, neste sentido, narrados por índios e
camponeses.

Outros episódios são referidos pelos informantes como tendo tido a interferência
direta desses índios, como a tentativa de demarcação da área a partir dos limites tradicionais.
Certa ocasião, um dos encarregados, Olegário Meireles, de Taquaritiua, teria tentado
aviventar os rumos da Terra dos Índios, fazendo-se acompanhar pelos Urubu. Segundo os
depoimentos, teriam sido impedidos por autoridades locais, que já haviam se apropriado de
partes do território. Observe-se com João Mucura relata o episódio:

Porque quando dividiu a terra de São Pedro [povoado limítrofe à Santeiro], veio uma meia
dúzia de índio lá onde Maximino tava ( ... ) quando os índios vem, que começaram a tiraro
rumo ( ... ) Didi [comerciante] mandou dizer pro Juiz que os índios tava invadindo as terras,
demarcando. Aí o juiz mandou lá um oficial de Justiça proibir o rumo. Que o rumo não
travessasse senão iam todos pro pau.
Tudo leva a crer que os Urubu desempenhavam o papel de "intermediários neutros"
(COLSON, apud OUVEIRA FILHO, 1989, p. 157), ou seja, daqueles elementos que,
compartilhando os mesmos valores da comunidade, e estando suficientemente afastados da
situação em questão, teriam condições de funcionar como "árbitros". Os Urubu
representavam, assim, aquela instância supra familiar, em que eram resolvidas as tensões
internas mais diretamente relacionadas à apropriação dos recursos básicos.

A fonte da autoridade desses "intermediários" se fundava na convicção dos


integrantes do grupo de que esses índios eram os legítimos proprietários do território, porque
a eles haviam sido concedidas as terras. No nível de seu sistema de representações, os Urubu
teriam sido os primeiros habitantes das terras, que teriam saído em busca da floresta e de seus
recursos, sem deixar, porém, de visitar o território. Para os autodenominados cabocos, esse
índios teriam interesse em deixá-los como guardiães das terras, conforme se pode depreender
do trecho de depoimento de Leandro Lió:

P - Mas esses índios que vinham visitar, mesmo a terra estando cheia de gente, tendo
os povoados, tudo situado, vocês acham que eles teriam Interesse em não deixar pessoas
entrarem? Porque é deles mas eles não estão morando mais, né? ... mesmo
assim, vocês acham que eles teriam interesse nesta área?

Eu acho que eles tinham e pode ter, porque consta que é deles, né? Eles nunca venderam,
nunca deram ... eles podem ter interesse pra entregar pra outra pessoa ficar botando reparo
pra eles, né?

P - Vocês?

É ... e era preciso que a gente chamasse eles pra dar um jeito em quem rã vendendo, pra
tomar...pois se é que as terras é deles, outro não pode garrar e vender sem a conseqüência,
né?

4. DAS VISITAS LEGÍTIMAS ÀS VENDAS ILEGÍTIMAS

O afastamento dos Urubu se dá, segundo os informantes, por volta dos anos 60 do
século XX, após a realização do inventário fraudulento. Note-se que, mesmo antes disso, já
se observavam atos de apropriação fraudulenta de porções da Terra dos Índios, como aquele
referido por João Mucura, quando da demarcação das terras de São Pedro, de propriedade do
pai da comerciante de Santeiro, já citada. Ao que parece, esses atos se constituíam em
iniciativas isoladas de comerciantes e políticos locais. Foi depois do processo de inventário
que surgiu, sistematicamente, a figura dos chamados comprador de terra, inaugurando uma
nova etapa do processo de apropriação privada da área.

Os informantes associam o afastamento dos Urubu à desordem, à transformação das


terras de índio em terras de comprador, categorias que se opõem. A este respeito, a mesma
informante citada linhas atrás se manifesta: "caboco foi embora, nunca mais ... e aí começou
a danar'. Por seu lado, os Urubu também estavam sendo atingidos por construção de estradas
e implantação de projetos de colonização, como aquele do Alto Turi, promovido pela
SUDENE. Segundo relatório do SPI, datado de 1941, (apud VALADÃO, 1979, p. 6) e, em
1870, sob a presidência do General Bandeira de Meio, a FUNAI celebrou acordo com o
COLONE para que oito aldeias Ka'apor fossem deslocadas para o oeste. O objetivo era
instituir a Reserva, cujos trabalhos de demarcação seriam financiados pelo Banco Mundial
(VALADÃO, 1978, p. 2). Deste modo, vários povoados existentes hoje, ao longo da BR-316,
antiga BR-22, foram antigas aldeias Ka'apor.

Antes de serem atingidos por todas essas transformações, enquanto ainda se


deslocavam pelas regiões dos municípios de Viana e de Penalva, esses índios entraram em
contato com os autodenominados cabocos da Terra dos Índios. A hospedagem a eles e a
vitória dos marcos em sua companhia, cumpriam o papel de reafirmar, aos de fora, a
ascendência indígena do grupo. Funcionavam como sinais, emitidos aos agentes externos que
pretendessem se assenhorear das terras, assim como aos de dentro, em momentos de conflito
interno. A visita sistemática dos Urubu reafirmava as regras regem as relações sociais em
terra de índio, enquanto terra indivisível ou, no dizer dos autodenominados descendentes,
intocável. É por isso que o afastamento dos índios é visto como significado o principio da
desordem, do que entendem por danação.

Por acreditar que as terras pertencem a esses indígenas, que visitavam seus
antepassados e cujas visitas se repetiam até época recente é que seus ocupantes, ainda hoje,
demonstram o desejo de ir até eles. Pretendem convidá-los a tomar providências no sentido
de impedir o parcelamento e a venda do território.

5. REPRESENTANTES DO MATO E ENCARREGADOS

Segundo os informantes, nos povoados que constituem a região identificada como


Terra dos Índios, havia uma autoridade, chamada de representante do mato, em geral um
ancião, cuja autoridade moral era respeitada pelo conjunto dos grupos familiares de cada
local. Uma de suas funções era impedir que os recursos florestais fossem devastados,
conforme explica dona Joana, do povoado Centro dos Bata:

No tempo do velho Mané, ninguém, ninguém torava {cacho de coco babaçu}, porque ele
vivia no mato como currupiro ... quando a gente pensava ... quando a gente tava juntando
coco, quando dava fé, ele tava pertinho da gente ...

A informante se refere à vigilância exercida por esse chamado representante, no


sentido de impedir que se cortassem os cachos de coco babaçu (Vide Parte V).

Essa função, segundo os depoimentos, era transmitida de pai para filho e, em alguns
povoados, como o Centro dos Bata, ainda hoje é desempenhada por certos homens idosos,
como Pedrinho Bata, aquele que dá o depoimento seguinte:
Era eu mais Zé Bata que era pra ficar responsável aqui, mas ele gosta de cana, então
o diretor dos índios, sabe a língua que chamam, mas o nome é diretor, o língua, ele
disse: Chancho, quem tu deixa quando tu morrer, por representante do mato como tu?

Note-se que a autoridade desses chamados representantes do mato estava assentada


em elementos tais como idade, ligação com os índios Urubu e com os antepassados – os
chamados morador velho. Recorde-se, ainda, que havia uma relação entre esses líderes locais
dos povoados e os chamados língua que, por sua vez, mediavam as relações entre os Urubu
Ka’apor e o grupo. O processo de sucessão era tema de conversa e acordo entre eles, o que
indica que eram autoridades reciprocamente reconhecidas- uns, no plano dos povoados e
outros, naquele da relação com os Urubu, representados como os donos da terra. É bastante
clara, ainda, como se pode depreender também deste depoimento, a preocupação dos
chamados representantes com a preservação dos recursos naturais.

A instituição do encarregado, por outro lado, segundo os informantes, remonta à


época imemorial, relacionada ao tempo em que a Índia Guardiana ainda era viva:

o encarregado já vem de uma tal ... esqueci o nome dela ... de uma índia velha ...
P - Guardiana?

É essa tal de Guardina, vem de lá, vem de lá ... tiraram ele pra ser chefe, ficar tomando de
conta. (Apolônio)

A função do chamado encarregado é representada pelos informantes como tendo sido


a de um líder que, nos seus termos, "incentivava o povo", principalmente naquelas situações
envolvendo o interesse comum.

“pela morte do velho {encarregado} ficou Raimundo Olegário Meireles incentivando o povo.
Quando era no tempo de abater o rumo ele convidava todo mundo..." (João Lourenço)

A autoridade do chamado encarregado, como se vê, não estava baseada na coerção,


mas na força do próprio carisma, agindo ele como incentivado r, como aquele que conduz o
grupo a ações conjuntas em função do interesse comum. Sua posição de incentivador, de
líder, não lhe conferia, no entanto, poder para alienar ou alugar qualquer porção de
terra, conforme explica Leandro Lió:

Eu quando me entendi ali no Santeiro, conheci o velho Olegário Meireles dizendo que ele
era o encarregado da Terra dos Índios, como ele cansou de dizer lá em casa pra meu pai:
'eu não sou o dono dessa terra, eu sou o encarregado, que eu tenho as escrituras, mas eu não
posso vender, não posso arrendar não posso aforar. Todo mundo pode trabalhar'.

Essa autoridade "para dentro", enquanto mantenedor da ordem estabelecida,


garantindo a todos o acesso a terra passou, em determinado período da história do grupo, a ter
uma contra partida "para fora". O encarregado passou a ser representado, também, como
aquele que devia cumprir as exigências do direito dominante, pagando o imposto territorial
rural. Os encarregados referidos pelos informantes já pertencem a esse período da história do
grupo, quando sua autoridade passou a basear-se, também, na relação com agências tais como
o IBRA e o INCRA.

Os informantes se recordam que data do início do pagamento d imposto territorial


rural a instituição do chamado agrado. Sobre pretexto de auxiliá-la a pagar o imposto
arrecadado pelos órgãos fundiários, os chefia de família passaram a contribuir por meio do
fornecimento de arroz, farinha e, mesmo, dinheiro. A esse respeito, discorre José Cândido, de
Santeiro:

Quando ele tinha esse negócio de imposto, depois que criou aquele órgão na terra de venda
dessa escritura, né, ele vinha e dizia: 'meus filhos, eu quero pagar, tal dia, uma escritura, to
aperreado ... eu ajudava ( ... ) eu cansei de dar dois alqueire de farinha, dava, dava dois
arroz ( ... ) aqui ele não vinha sem levar.

João Lourenço se refere ao mesmo tema:

Papai, quando chegava fim de ano, dizia: 'vamos levar meio alqueire de farinha, ele tomava
conta dos papel da terra, né? ( ... ) ele sempre pagava o imposto da terra, então ele pedia
uma ajuda pro pessoal'.

A arrecadação, pelo encarregado, de gêneros tais como arroz, farinha e, mesmo,


dinheiro, a partir de determinado momento da história do grupo, difere da cobrança do
aluguel da terra, já que não significa o pagamento compulsório de uma certa quantia
estabelecida via uma relação contratual mercantil. No caso do denominado agrado,
estabelecia-se uma relação entre iguais, no sentido de que obedeciam a regras erigidas pelo
próprio grupo, onde a quantia e a forma de pagamento, se é que assim se podem denominar
as ofertas ao encarregado, eram decididas por quem as fazia. A contrapartida, de parte de
quem recebia, era cumprir a função de guardar os documentos e de pagar os impostos,
garantindo, assim, o acesso igualitário a terra.

Nota-se, pelos depoimentos, por outro lado, que a função do encarregado vai
sofrendo uma transformação, a partir do momento em que exigências da legislação
dominante passam a suplantar as regras acatadas pelo grupo. Isto ocorre concomitantemente
ao processo de transformação dessas terras, de uma situação de isolamento a objeto de cobiça
de agentes sociais não camponeses. Não é de estranhar, neste sentido, que tenha sido um
dono de cartório a aconselhar um dos velhos encarregados a regularizar legalmente a
situação da área, obtendo novos documentos e passando a pagar os impostos. Não é de
estranhar, ainda, que tenha sido um advogado da região, ele mesmo de origem camponesa, a
ter sugerido e levado a cabo um processo de inventário, com o objetivo claro de apropriar-se
fraudulentamente da área, como se verá (Vide Parte VI).

É, portanto, da convergência entre as tensões internas e a interferência de mediadores


extemos que virá a deterioração do carisma do encarregado, conforme anunciado na Parte I e
aprofundado na última parte deste estudo.

Você também pode gostar