Você está na página 1de 226

História da América II

Prof.a Brigitte Grossmann Cairus


Prof. Roberto Henrique Wolter
Prof. Thiago Rodrigo da Silva

Indaial – 2020
1a Edição
Copyright © UNIASSELVI 2020

Elaboração:
Prof.a Brigitte Grossmann Cairus
Prof. Roberto Henrique Wolter
Prof. Thiago Rodrigo da Silva

Revisão, Diagramação e Produção:


Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri


UNIASSELVI – Indaial.

C136h

Cairus, Brigitte Grossmann

História da América II. / Brigitte Grossmann Cairus; Roberto


Henrique Wolter; Thiago Rodrigo da Silva. – Indaial: UNIASSELVI, 2020.

216 p.; il.

ISBN 978-65-5663-018-2

1. América - História. - Brasil. I. Cairus, Brigitte Grossmann.


II. Wolter, Roberto Henrique. III. Silva, Thiago Rodrigo da. IV. Centro
Universitário Leonardo Da Vinci.

CDD 970

Impresso por:
Apresentação
Caro acadêmico! Como podemos refletir acerca das transformações
históricas ocorridas na América Latina nos últimos cinco séculos a partir
de um viés cultural, social, político, religioso e de gênero? Quais seriam
as principais especificidades dessas categorias na América espanhola e
portuguesa e suas influências ibéricas, africanas, nativas e alhures?

Na primeira unidade deste livro, conheceremos as raízes históricas da


arte pré-colombiana, as semelhanças e diferenças entre a arte maia, asteca e
inca, as principais características da arte barroca tanto na América espanhola
quanto portuguesa e compreender acerca da eclosão do modernismo tanto
na América de língua espanhola quanto o movimento modernista no Brasil.

Na segunda unidade, compreenderemos a influência das teorias


feministas na produção historiográfica, conheceremos os embates envolvidos
na constituição do gênero como uma categoria de análise histórica,
identificaremos elementos da história das mulheres e das relações de gênero
na América pré-colombiana e na América colonial e reconheceremos a
multiplicidade de vivências femininas na história do continente americano.

Na terceira unidade, observaremos por meio de uma perspectiva


histórica, o lugar social das instituições latino-americanas para a compreensão
das dinâmicas políticas, culturais e religiosas da América Latina e refletiremos
acerca da organização burocrática das instituições da igreja, do estado e da
educação das quais pertenceram os principais personagens da vida cultural,
política e econômica da América Latina nos seus cinco séculos de História.

Bons estudos e ótimas descobertas!

Prof.a Brigitte Grossmann Cairus


Prof. Roberto Henrique Wolter
Prof. Thiago Rodrigo da Silva

III
NOTA

Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para
você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há
novidades em nosso material.

Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é


o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um
formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura.

O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova
diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também
contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo.

Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente,


apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade
de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador.
 
Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para
apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto
em questão.

Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas
institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa
continuar seus estudos com um material de qualidade.

Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de


Desempenho de Estudantes – ENADE.
 
Bons estudos!

IV
V
LEMBRETE

Olá, acadêmico! Iniciamos agora mais uma disciplina e com ela


um novo conhecimento.

Com o objetivo de enriquecer seu conhecimento, construímos, além do livro


que está em suas mãos, uma rica trilha de aprendizagem, por meio dela você terá
contato com o vídeo da disciplina, o objeto de aprendizagem, materiais complementares,
entre outros, todos pensados e construídos na intenção de auxiliar seu crescimento.

Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo.

Conte conosco, estaremos juntos nesta caminhada!

VI
Sumário
UNIDADE 1 – ARTE E HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA............................................................1

TÓPICO 1 – ARTE PRÉ-COLOMBIANA...............................................................................................3


1 INTRODUÇÃO........................................................................................................................................3
2 CARACTERÍSTICAS GEOGRÁFICAS, CULTURAIS E ARTÍSTICAS
DA ARTE PRÉ-COLOMBIANA...........................................................................................................3
3 ARTE NA CIVILIZAÇÃO MAIA.......................................................................................................10
4 ARTE NA CIVILIZAÇÃO ASTECA..................................................................................................13
5 ARTE NA CIVILIZAÇÃO INCA........................................................................................................18
RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................22
AUTOATIVIDADE..................................................................................................................................23

TÓPICO 2 – ARTE COLONIAL BARROCA.......................................................................................25


1 INTRODUÇÃO......................................................................................................................................25
2 ASPECTOS HISTÓRICOS DA ARTE COLONIAL BARROCA..................................................25
3 O BARROCO..........................................................................................................................................26
4 O BARROCO NO MÉXICO, EQUADOR, COLÔMBIA, BOLÍVIA E PERU.............................30
4.1 TEMAS BARROCOS NA AMÉRICA ESPANHOLA...................................................................33
4.2 O ESTILO MESTIÇO........................................................................................................................35
5 O BARROCO NO BRASIL..................................................................................................................37
RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................38
AUTOATIVIDADE..................................................................................................................................39

TÓPICO 3 – O MODERNISMO LATINO-AMERICANO...............................................................41


1 INTRODUÇÃO......................................................................................................................................41
2 O MODERNISMO NA AMÉRICA ESPANHOLA..........................................................................41
3 O MODERNISMO NO BRASIL ........................................................................................................45
LEITURA COMPLEMENTAR................................................................................................................51
RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................57
AUTOATIVIDADE..................................................................................................................................58

UNIDADE 2 – AMÉRICA: HISTÓRIA DAS MULHERES E GÊNERO.........................................59

TÓPICO 1 – FEMINISMO, GÊNERO E HISTÓRIA DAS MULHERES........................................61


1 INTRODUÇÃO......................................................................................................................................61
2 INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO FEMINISTA........................................................................62
3 AS ONDAS DO FEMINISMO............................................................................................................63
3.1 PRIMEIRA ONDA DO FEMINISMO............................................................................................63
3.2 SEGUNDA ONDA DO FEMINISMO............................................................................................64
3.3 TERCEIRA ONDA DO FEMINISMO............................................................................................66
4 HISTÓRIA DAS MULHERES ............................................................................................................68
5 GÊNERO E HISTÓRIA.........................................................................................................................71
5.1 A CATEGORIA DE ANÁLISE GÊNERO NO BRASIL................................................................76
RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................79
AUTOATIVIDADE..................................................................................................................................82

VII
TÓPICO 2 – MULHERES INDÍGENAS E EUROPEIAS NA AMÉRICA PRÉ-COLONIAL
E COLONIAL......................................................................................................................85
1 INTRODUÇÃO......................................................................................................................................85
2 MULHERES NA AMÉRICA PRÉ-COLOMBIANA........................................................................86
2.1 CASAMENTO...................................................................................................................................87
2.2 HERANÇAS E PROPRIEDADES...................................................................................................89
2.3 TRABALHO.......................................................................................................................................90
2.4 RELIGIOSIDADE . ...........................................................................................................................90
3 COLONIZAÇÃO E GÊNERO.............................................................................................................93
3.1 OS PRIMEIROS ANOS DE COLONIZAÇÃO..............................................................................94
3.2 MAIAS E COLONIZADORES ESPANHÓIS................................................................................96
3.3 MULHERES INDÍGENAS: OBJETO DE TROCA, DE DOAÇÃO OU DE ESPÓLIO.............97
3.4 HERNÁN CORTÉS, MALINCHE E A CONQUISTA DE TENOCHTITLÁN.........................98
3.5 MULHERES INDÍGENAS E EUROPEUS: OUTROS ELEMENTOS DA RELAÇÃO...........100
3.6 OS IMPACTOS DA CHEGADA DE MULHERES EUROPEIAS À AMÉRICA COLONIAL......101
3.7 MULHERES INDÍGENAS: O TRABALHO APÓS A CONQUISTA ESPANHOLA.............102
3.8 IMPACTOS DA COLONIZAÇÃO NA DISTRIBUIÇÃO POPULACIONAL........................103
3.9 IGREJA CATÓLICA E AS MISSÕES............................................................................................104
4 AMÉRICA DO NORTE: COLONIZAÇÃO, GÊNERO E RELIGIÃO .......................................106
4.1 CANADÁ: OS INDÍGENAS HURONS-WENDATS..................................................................108
4.2 ESTADOS UNIDOS: SIOUX E CHEROKEES.............................................................................110
RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................113
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................116

TÓPICO 3 – MULHERES INDÍGENAS, EUROPEIAS E AFRICANAS NA AMÉRICA


COLONIAL.......................................................................................................................117
1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................................117
2 AS ETNIAS DA AMÉRICA COLONIAL........................................................................................118
3 TRABALHO..........................................................................................................................................118
4 PROSTITUIÇÃO..................................................................................................................................122
5 CONTROLE E VIOLÊNCIA..............................................................................................................122
6 VIVÊNCIAS FEMININAS EM MINAS GERAIS: CHICA DA SILVA.....................................123
7 MATRIMÔNIO E MATERNIDADE................................................................................................125
8 ALFORRIA............................................................................................................................................126
9 RESISTÊNCIA......................................................................................................................................127
10 RELIGIÃO E RELIGIOSIDADE.....................................................................................................128
11 RELAÇÕES DE GÊNERO NOS ENGENHOS DE AÇÚCAR....................................................128
12 COLONIZAÇÃO DA AMÉRICA DO NORTE............................................................................131
12.1 MULHERES E O PURITANISMO: O CASO DE ANNE HUTCHINSON............................133
12.2 BRUXARIA NAS TREZE COLÔNIAS: AS BRUXAS DE SALEM.........................................133
LEITURA COMPLEMENTAR..............................................................................................................136
RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................138
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................140

UNIDADE 3 – AS INSTITUIÇÕES LATINO-AMERICANAS......................................................143

TÓPICO 1 – AS INSTITUIÇÕES RELIGIOSAS CRISTÃS...........................................................145


1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................................145
2 AS INSTITUIÇÕES RELIGIOSAS CRISTÃS................................................................................146
RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................162
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................163

VIII
TÓPICO 2 – O ESTADO NA AMÉRICA LATINA...........................................................................165
1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................................165
2 O ESTADO NA AMÉRICA LATINA...............................................................................................165
RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................179
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................180

TÓPICO 3 – AS INSTITUIÇÕES DE ENSINO NA AMÉRICA....................................................181


1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................................181
2 AS INSTITUIÇÕES DE ENSINO NA AMÉRICA ........................................................................182
RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................191
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................192

TÓPICO 4 – A HISTORIOGRAFIA SOBRE A AMÉRICA.............................................................193


1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................................193
2 A HISTORIOGRAFIA SOBRE A AMÉRICA.................................................................................193
LEITURA COMPLEMENTAR..............................................................................................................201
RESUMO DO TÓPICO 4......................................................................................................................209
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................210

REFERÊNCIAS........................................................................................................................................211

IX
X
UNIDADE 1

ARTE E HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• conhecer as raízes históricas da arte pré-colombiana;

• conhecer as semelhanças e diferenças entre a arte maia, asteca e inca,


no que tange à arquitetura, à pintura, à escultura e à arte têxtil destas
civilizações;

• conhecer as principais características da arte barroca tanto na América


espanhola quanto portuguesa e identificar os temas barrocos e o estilo
mestiço desta arte no período colonial;

• compreender acerca da eclosão do modernismo tanto na América de


língua espanhola quanto o movimento modernista no Brasil; identificar
os legados culturais deixados na literatura, na arte, arquitetura, fotografia
e música, e as ligações entre a arte moderna, a política e a história cultural
e social latino-americana.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. Em cada um deles, você encontrará
autoatividades que o ajudarão a fixar os conhecimentos adquiridos.

TÓPICO 1 – ARTE PRÉ-COLOMBIANA

TÓPICO 2 – ARTE COLONIAL BARROCA

TÓPICO 3 – ARTE MODERNA LATINO-AMERICANA

CHAMADA

Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos


em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá
melhor as informações.

1
2
UNIDADE 1
TÓPICO 1

ARTE PRÉ-COLOMBIANA

1 INTRODUÇÃO
A arte pré-colombiana latino-americana possui qualidades estéticas,
funções sociais, técnicas e estilos bastante distintos de arte europeia e se
desenvolveu em um conjunto de civilizações cujas realizações intelectual e
artística seria capaz de rivalizar com os da antiga China, Índia, Mesopotâmia e
do mundo mediterrâneo. Ela engloba todos os itens de arte criados por distintos
povos indígenas ou nativos antes da vinda de Colombo e da influência espanhola
e portuguesa. Além disso, não há uma única arte pré-colombiana, como veremos
durante este tópico, as diferentes obras de arte das culturas pré-colombianas
são caracterizadas pela grande riqueza e variedade. A arte pré-colombiana é
determinada por um grupo de representações intelectuais e artísticas como a
escultura, arquitetura, arte rupestre, pintura, cerâmica, metais e têxteis, que foram
criadas no continente sul americano em fase pré-colombiana e oferecem um acesso
privilegiado para o conhecimento das culturas que os criaram (CAUSIL, 2016).

2 CARACTERÍSTICAS GEOGRÁFICAS, CULTURAIS E


ARTÍSTICAS DA ARTE PRÉ-COLOMBIANA
Essa forma de arte permite que tenhamos mais informação e conhecimento
a respeito das antigas civilizações pré-colombianas, como, por exemplo, da
capacidade de modificar o ambiente ou o nível de desenvolvimento que tinham,
suas características estéticas, funções sociais técnicas e estilos próprios, o que
fornece às obras das diferentes culturas pré-colombianas uma grande riqueza e
diversidade extraordinária. A arte pré-colombiana é destacada pelas obras em
ouro das culturas indígenas que foram consideradas as melhores do continente.
No período de conquista havia uma grande variedade de culturas que usavam
ouro, nelas podemos observar a técnica similar que eles usaram, mas poderemos
também conferir os diferentes estilos. O ouro foi usado em muitos objetos desde
enfeites para o nariz até oferendas para cerimônias. Elaborada pelos Muísca, que se
estabeleceram em uma das quatro grandes civilizações nas Américas no Altiplano
Cundiboyacense, localizado nas cordilheiras orientais dos Andes colombianos,
vemos a seguir um dos mais apreciados objetos em ouro pré-colombiano: a
famosa Balsa Muísca ou Balsa El Dorado, uma figura pré-colombiana artística
e votiva de ouro (LONDOÑO, 2013). A peça é exibida no Museu do Ouro, em
Bogotá. Estima-se que a figura foi criada entre 600 e 1600 DC:

3
UNIDADE 1 | ARTE E HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

FIGURA 1 – A BALSA MUÍSCA – ARTE VOTIVA EM OURO

FONTE: <https://www.pagina3.com.br/imagens/colunas/upload/Balsa%20Muisca.jpg>.
Acesso em: 28 jan. 2020.

• Âmbito Geográfico: segundo Taborga (2017, p. 77, tradução nossa):

[...] as culturas pré-colombianas são agrupadas por arqueólogos e


historiadores culturais por área geográfica. A divisão geográfica
básica mais aceita concebe a zona da Mesoamérica, uma das regiões
culturais mais importantes, com os atuais países do México, Belize,
Guatemala Honduras e El Salvador. A outra região cultural de grande
importância é o Peru e a Bolívia, que formam a área central dos Andes.
A zona intermediária é composta pela parte sul da América Central
e a parte norte dos seguintes países da América do Sul: Venezuela,
Colômbia e Equador. A zona periférica inclui o resto da América do
Sul e as ilhas do Caribe.

FIGURA 2 – ÂMBITO GEOGRÁFICO DAS CIVILIZAÇÕES MAIA, ASTECA E INCA

FONTE: <https://escolaeducacao.com.br/wp-content/uploads/2018/07/
localiza%C3%A7%C3%A3o-dos-incas-maias-e-astecas.jpg>. Acesso em: 14 abril 2019.

4
TÓPICO 1 | ARTE PRÉ-COLOMBIANA

• Origem da Arte pré-colombiana: o adjetivo pré-colombiano é utilizado para


nomear o que sucedeu ou existiu na América antes das expedições de Cristóvão
Colombo. Pode-se observar, então, que o período pré-colombiano inicia com
o desenvolvimento dos primeiros assentamentos humanos no continente e se
estende até a conquista europeia. A América pré-colombiana, dessa forma,
existiu por milhares de anos, a partir de da vinda dos primeiros imigrantes
asiáticos até 1492, quando Colombo e seus homens desembarcaram no
continente para começar o processo de conquista. É característico mencionar
aqueles que estavam em solo americano no momento em que os europeus
chegaram como povos pré-colombianos (PORTO; MERINO, 2013).

E
IMPORTANT

Segundo Porto e Merino (2013), antes de determinamos o significado do


termo pré-colombiano, é necessário que saibamos sua origem etimológica. Nesse sentido,
podemos dizer que deriva do latim, já que é composto de elementos desta língua:

• O prefixo “pré-”, que significa “antes”.


• “Colombus”, que é sinónimo de “Colombo”.
• O sufixo “-iano”, usado para indicar “pertencente” ou “origem”.

As culturas pré-colombianas foram criadas longe umas das outras,


mas isso mudou quando o período clássico (250 d.C. – 900 d.C.) iniciou como
uma dinâmica de influências e trocas mútuas, como as duas principais áreas
da civilização, Andes e Mesoamérica. É por isso que você pode observar várias
coincidências na exibição de alguns mitos, alguns costumes e em algumas
palavras similares. Portanto, concluiu-se que, após o período clássico, as diferentes
civilizações possuíam contatos que não eram ocasionais. Os incas, por exemplo,
são considerados uma das civilizações pré-colombianas mais importantes. Seu
império se estendeu por várias regiões do Peru, Bolívia, Equador, Colômbia, Chile
e Argentina. Entre seus legados destaca-se a cidade de Machu Picchu, construída
no Século XV no Peru (PORTO; MERINO, 2013).

5
UNIDADE 1 | ARTE E HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

FIGURA 3 – MACHU PICCHU, INCAS, PERU

FONTE: <http://www.mayuc.com/wp-content/uploads/2018/02/machupicchu-1.jpg>.
Acesso em: 14 abr. 2019.

Dentre outros importantes povos pré-colombianos, os maias se


estabeleceram em áreas do México, Guatemala, Honduras, Belize e El Salvador,
desenvolvendo edificações arquitetônicas impressionantes, como a cidade de
Chichén Itzá (PORTO; MERINO, 2013).

FIGURA 4 – CHICHEN ITZA, MAIAS, MÈXICO

FONTE: <https://cache-graphicslib.viator.com/graphicslib/media/6a/-photo_31782506-674x446.jpg>.
Acesso em: 13 out. 2019.

• Traços culturais: o cultivo de milho tornou-se o mantimento essencial na


Mesoamérica, assim como a batata na zona andina do Peru e da Bolívia. Assim,
pode-se afirmar que as civilizações pré-colombianas eram especialmente
agrícolas. A religião era crucial na conformação e desenvolvimento da cultura
pré-colombiana, até a ocasional secularização ocorrida no período pós-clássico.
Não obstante, as crenças e ritos religiosos eram altamente condicionados
por preocupações relacionadas à fecundidade da terra e à produtividade
das culturas que tendem a regular as sociedades agrícolas. Por esse motivo,
muita da arte pré-colombiana está relacionada à astronomia, por meio da

6
TÓPICO 1 | ARTE PRÉ-COLOMBIANA

qual os nativos americanos estabeleceram os períodos mais adequados para


o plantio e a colheita. Como tipologias urbanas desenvolvidas, uma era o
centro cerimonial, com uma estrutura complexa consistindo especialmente
de edifícios religiosos e administrativos que eram construídos ao redor de
praças e careciam de casas e ruas. Acredita-se que nesses centros somente os
governantes seculares e religiosos viviam com seus tribunais, enquanto a maior
parte dos indivíduos residia em pequenas fazendas em um setor suburbano
circundante. A outra tipologia, similar ao que conhecemos hoje como cidades,
tinha ruas que separavam as residências dos distintos estratos sociais, além
de templos e prédios administrativos voltados para a praça central (RINCÓN
DEL VAGO, [20--]).

Os recentes projetos arqueológicos que estudam os vestígios em sítios


arqueológicos mesoamericanos mostram que o que se acreditava serem centros
cerimoniais abrigavam populações plebeias, assemelhando-se a cidades
verdadeiras. Tanto os complexos cerimoniais como as cidades reais serviram como
centros religiosos, governamentais e comerciais. O comércio não era importante
apenas para o fornecimento de bens necessários e supérfluos, mas também como
meio de transmitir ideias e técnicas, bem como formas e motivos artísticos.

• A função da arte: como sugere Frederick Dockstader (2014), o próprio uso


da palavra arte revela uma das diferenças básicas entre conceitos europeus
ou derivados da Europa e dos povos indígenas sul americanos. Não havia,
nas línguas nativas, um termo que significasse “arte” ou “artista”. Se alguém
quisesse aludir a um lindo cesto ou uma estatuária bem esculpida, era
usualmente preciso comunicar em termos como “bem realizado” ou “eficaz”. E
o conceito de artista era mais atribuído a uma pessoa que realizava um trabalho
de modo mais primoroso que outra.

Ainda que os indígenas possam não ter considerado a destreza artística


em termos de habilidade, a diferença entre um cesto bem tecido e uma peça de
trabalho descuidada, ou um entalhe especialmente bem projetado e um mal
projetado, não passava despercebida. O fino acabamento de uma peça exigia um
reconhecimento muito antes do contato europeu e, com o advento do sistema
monetário, foi ainda mais valorizado.

Em cada lugar da América Latina, cada povoado, grupo étnico, tribo e


nação deixava de uma maneira ou de outra a maneira de ver a vida, suas crenças,
esperanças, realizações marcadas em seus artefatos e em sua arte. Um elemento da
maior importância na vida pré-colombiana era a religião, que era animista, uma
vez que deificou forças naturais, lugares sagrados e alguns objetos. Muitas dessas
forças eram contrárias, mas em qualquer caso complementares entre si, uma vez que
a religião emanava de uma concepção de dualidade. Práticas de culto na América
Central e do Sul apresentam elementos comuns, apesar de sua diferenciação parcial,
e revelam a influência mútua simbólica e religiosa entre as duas regiões.

7
UNIDADE 1 | ARTE E HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

As civilizações astecas e incas refletem a cultura guerreira reinante em suas


artes. Vários itens de arte indígena são, sobretudo, destinados a elaborar um trabalho
para servir como um recipiente ou como um objeto de culto. A maneira utilitarista
singular que as artes nativas americanas adotam reflete a disposição social das
culturas envolvidas. As sociedades políticas e militares parecem ter achado suas
principais formas de arte no mundo do armamento, da regalia e da panóplia. As
culturas em que a vida era vigorosamente regida pela religião tendiam a um nível
maior de arte cerimonial que aquelas em que a vida era pouco ritualizada. Todas as
expressões estéticas que vieram dos maias, por exemplo, inegavelmente refletem o
peso considerável da teocracia que existia em seu mundo.

A melhor das obras de arte indígenas pré-colombianas era aplicada


àqueles itens destinados a aprazer uma divindade, amainar deuses irados,
apaziguar ou amedrontar os espíritos malignos e honorificar os recém-nascidos
ou recém-falecidos. Através desses recursos, os nativos americanos procuravam
governar o meio ambiente e os seres humanos ou sobrenaturais que os cercavam
ou ameaçavam (DOCKSTADER, 2014).

FIGURA 5 – SACRIFÍCIO RITUAL ASTECA

FONTE: <https://i.pinimg.com/236x/07/4a/62/074a62f28c0218d211c9239a558a162b--aztec-
art-inca.jpg>. Acesso em: 14 abr. 2019.

Alguns artigos específicos foram reservados somente para necessidades


seculares, enquanto outros foram reservados somente para usos religiosos. O
ornamento nem sempre oferece uma pista sobre esses usos. Alguns dos artigos
religiosos mais reverenciados são totalmente desprovidos de ornamentação —
na verdade, são capazes de ser muito “feios” — enquanto outros são altamente
embelezados. Alguns povos usavam tigelas simples para elaboração de alimentos,
enquanto outros usavam tigelas policromadas para o mesmo objetivo. Vários
itens tinham uma utilidade dupla: geralmente, eles eram usados para propósitos
domésticos cotidianos, porém sob um conjunto distinto de circunstâncias eles
poderiam realizar uma função religiosa. Sob a superfície, havia uma “magia” em
ação e, em mãos iniciadas, um objeto mundano seria capaz de liberar seu poder
mágico, invocando forças invisíveis para auxiliar seu dono. Esse poder pode ser
visualmente perceptível na forma ou no ornamento do objeto, não importando
qual seja o estado físico ou a aparência do objeto (DOCKSTADER, 2014).

8
TÓPICO 1 | ARTE PRÉ-COLOMBIANA

O objetivo do artista indígena não era meramente estabelecer registros


realistas, mas criar os projetos semimágicos tão comuns na arte das culturas
não ocidentais. Ele rapidamente percebeu que não podia desenhar uma árvore
tão perfeitamente quanto poderia ser feito pelo Criador; então, com bom senso,
ele não tentou. Em vez disso, ele buscou o espírito ou a essência da árvore e
representou isso em seu design. Esculturas, pinturas, efígies ou retratos realistas
não são simplesmente imagens de pessoas ou objetos; eles também incorporam a
essência desse assunto específico.

Nem toda arte pré-colombiana, no entanto, era religiosa ou política. Havia


também uma quantidade considerável de arte mundana, humorística e até mesmo
profana produzida pela maioria das culturas. Embora muito do erotismo tenha
desaparecido nos incêndios intolerantes dos europeus durante a colonização
das Américas, exemplos suficientes permanecem dos tempos pré-históricos e
recentes para indicar uma liberdade de expressão totalmente relaxada, refletindo
uma perspectiva naturalista (UNIVERSALIUM, 2010).

FIGURA 6 – CERÂMICA MOCHE, PERU

FONTE: <https://assets.catawiki.nl/assets/2018/4/30/1/e/f/1ef4ea31-2b28-4699-8c08-
1ef2dc004776.jpg>. Acesso em: 14 abr. 2019.

• O valor do mito nas sociedades pré-espanholas: segundo Oswaldo Guamán


Romero (2015, p. 25, tradução nossa):

[...] existia nas sociedades americanas pré-colombianas antigas um


sistema sócio-político, religioso, econômico e cultural, relacionado,
especialmente, a um senso mítico, que se formou historicamente
por meio da relação entre a sociedade e a natureza”. Visto que
todos os eventos da vida, a partir de sua origem até os eventos da
vida cotidiana eram vistos como o trabalho de um mundo natural
originado por entidades sagradas, esse intento foi predisposto a uma
maneira singular de analisar o mundo. Esse mundo era em si era
uma construção, no qual o próprio corpo de suas divindades entrava
em jogo. Compreendemos assim que, para essas civilizações pré-
hispânicas, uma correlação valiosa e significativa foi firmada com o
mundo natural, no qual suas divindades eram apresentadas em cada
espaço de seu ambiente. Assim, a mitificação ou deificação de cada

9
UNIDADE 1 | ARTE E HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

componente ou fenômeno que era utilitário e eficaz em suas atividades


diárias foi constituída pelo valor próprio, as raízes e significado que as
culturas pré-colombianas atribuíram ao denominado mundo natural.
Nesse intuito, certos animais, ervas ou elementos naturais, como a
lua, o sol e a chuva, entre outros, atingiram um nível alegórico e de
veneração bem significativo para aquelas culturas. Esses seres naturais
foram nomeados como entidades mitológicas, aos quais se deviam
agradecer por meio de cerimônias, ritos, sacrifícios, cantos e danças,
e que estavam representados na arquitetura, nos itens cerimoniais,
na cerâmica (frascos, jarros, tigelas), na joalheria, na tecelagem, nas
esculturas, pinturas etc.

A seguir, estudaremos alguns exemplos da arte pré-colombiana na


Mesoamérica e na América do Sul existentes em algumas de suas principais
civilizações, como a Maia, Asteca e Inca e analisaremos suas especificidades
estéticas existentes na arquitetura, escultura, pintura, cerâmica, joalheria e
produção têxtil.

3 ARTE NA CIVILIZAÇÃO MAIA


A expressão artística tem sido uma das maiores dádivas herdadas das
culturas pré-hispânicas, pois a partir dela podemos conhecer não apenas seus
costumes, mas também suas formas de vida cotidiana. Uma das formas mais
peculiares de expressão pré-hispânica é a cultura maia, desenvolvida nos
territórios do atual México, Guatemala e Belize.

Segundo Nicolás Careta et al. (2009, p.15), a civilização maia se desenvolveu


ao longo um espaço de cerca de três milênios. Ao longo desse tempo, a disposição
política e social, o compartilhamento de assentamentos e as qualidades estilísticas
da construção e da arte tiveram desenvolvimentos que tornaram a civilização maia
uma das mais famosas de toda a Mesoamérica. Na cronologia maia distinguem-se três
períodos: o pré-clássico (2500 a.C.-250 d.C.), o clássico (250-1000 d.C.), considerado
a época áurea e o pós-clássico (1000-1519 d.C.).A civilização maia ocupou, ao
longo desses três períodos, distintas áreas: nos tempos mais antigos, as principais
cidades florescem nas regiões costeiras do Pacífico e do Belize e nas Terras Altas da
Guatemala; subsequentemente as regiões do norte da Guatemala e do sul do estado
de Campeche (Terras Baixas do Sul ) desempenham um papel proeminente. No
período clássico, as Terras Baixas registraram o maior desenvolvimento urbano e,
sucessivamente, em diversos centros do Yucatán. Na época da conquista espanhola,
as áreas mais vitais são as Terras Altas da Guatemala.

Através da utilização do calcário, tanto na cerâmica quanto na pintura, a arte


maia contribuiu em muito para a arte pré-colombiana na escultura. Na representação
de cenas religiosas e guerreiras os maias costumavam utilizar a técnica do relevo.
Dentre outras características, utilizavam a monumentalidade no tratamento
dos temas, a utilização da cor no acabamento externo, a submissão do campo
arquitetônico, a miríade de signos caligráficos e ornamentais, a relevância das linhas
curvas e a natureza de composição variada e cenográfica (TIPOS DE ARTE, 2017).

10
TÓPICO 1 | ARTE PRÉ-COLOMBIANA

• Na arquitetura: os maias tinham, como a maior parte das culturas, distintas


formas de expressão artística. O que chama a atenção, à primeira vista, é, sem
dúvida, suas impressionantes edificações. A pedra foi certamente o material
predileto juntamente com misturas de água, pó de cal e resinas de árvores, que
permitia-lhes desenvolver templos, palácios, estradas e tanques de água. Cada
uma dessas construções tinha sua própria marca, que variava dependendo
da região. Em geral, vale realçar que sua arquitetura seguiu certas regras de
construção; os palácios, por exemplo, eram edifícios retangulares e alongados
que contrastavam com a verticalidade de seus templos. O planejamento dos
centros cerimoniais, por outro lado, seguiu a topografia e as condições do
terreno, o que determinou as distintas formas e estruturas dos edifícios. A
construção maia desenvolveu diversos estilos conhecidos como “estilo Petén”
e “estilo Puuc” em Uxmal; o “estilo Usumacinta” em Palenque, entre outros.
Neles, a pintura foi integrada de modo fundamental à construção e evidenciou
uma miríade de desenhos geométricos, como treliças e cobras (CHASS, 2006).

FIGURA 7 – ARQUITETURA MAIA

FONTE: <https://www.crystalinks.com/mayatemple1.jpg>. Acesso em: 14 abril 2019.

• Na escultura: caracterizada por sua ornamentação, a qualidade de suas


obras coloca-a em um nível superior. Os escultores foram colaboradores
indispensáveis dos arquitetos, criando uma ornamentação harmoniosa e
relevos de uma qualidade insuperada (TIPOS DE ARTE, 2017).

FIGURA 8 – ESCULTURA MAIA

FONTE: <https://image.freepik.com/foto-gratis/escultura-maya_65844-103.jpg>.
Acesso em: 14 abr. 2019.

11
UNIDADE 1 | ARTE E HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

• Na pintura: a pintura não foi menor. O gênero e a posição social eram expressos,
em cores distintas, dentro de cada representação pictórica. As cenas se referiam
a sacrifícios humanos ou hostilidades entre povos vizinhos, servindo de
fonte de informação de suas relações diplomáticas, guerreiras, hierárquicas,
cerimoniais e judiciais (CHASS, 2006).

FIGURA 9 – PINTURA MAIA, MURAL DE BONAMPAK

FONTE: <https://i.pinimg.com/564x/c7/18/d1/c718d1e8e4fc9d753382e40b272157b5.jpg>.
Acesso em: 14 abr. 2019.

• Na cerâmica e pedra: exibe-se um refinamento estético e uma policromia


notáveis nesse aspecto cultural. Os de vasos de barro eram feitos em formas de
animais e humanas. As cerâmicas, relacionadas ao mundo funerário, mostravam
em suas composições, cenas mitológicas e da corte. A cerâmica, geralmente
produzida pelas mulheres, tinha representações da visão do mundo maia e seus
personagens ou deuses em sua passagem pelas trevas. De grande valor eram
a escultura de pedras semipreciosas, especialmente jade, material predileto
para a manufatura de objetos ritualísticos. Lindas máscaras mortuárias foram
produzidas nesta pedra para cobrir os rostos dos nobres após sua morte. A
seguir, veremos uma máscara mortuária feita de mosaico de jade de K'inich
Janaab 'Pakal, que governou no período maia clássico de Palenque por sessenta
e oito anos até sua morte em 23 de agosto de 683 d.C., aos 80 anos de idade.

FIGURA 10 – MÁSCARA MORTUARIA DE PAKAL, MAIA

FONTE: <https://traffickingculture.org/app/uploads/2012/08/Pakal-Mask-Source-Unknown-
300x199.jpg>. Acesso em: 14 abr. 2019.

12
TÓPICO 1 | ARTE PRÉ-COLOMBIANA

4 ARTE NA CIVILIZAÇÃO ASTECA


O estágio final, conhecido como o período pós-clássico, ocorreu com o
desenvolvimento mesoamericano, do oitavo ao décimo quarto século. Como
entidade política de grande destaque na época, o Império Asteca remonta a
uma coligação militar conhecida como a Tríplice Aliança que ligava três estados
emergentes: o Asteca-Mexica, cuja capital foi na atual Cidade do México-
Tenochtitlán, famosa cidade do seu tempo; o Acolhua com Texcoco como cidade
primordial, considerado o centro cultural por excelência; e Tlacopan, que reuniu
os sobreviventes do antigo feudo que dominou o Vale do México (SOLÍS, 2005).

FIGURA 11 – A CAPITAL TENOCHTITLÁN

FONTE: <https://www.ancient-origins.net/sites/default/files/field/image/TENOCHTITLAN-map.jpg>.
Acesso em: 14 abr. 2019.

Com o apoio de aliados, o império asteca estendeu-se até as margens Oceano


Pacífico e do Golfo do México. Através de um sistema rígido de tributação, eles
adquiriram grande riqueza e poder. Com a vinda dos espanhóis no início do Século
XVI, sua capital era considerada a cidade mais relevante e magnífica de sua época.
O idioma reinante entre os aliados foi Nahuatl, que se tornou a “língua franca”
de grande parte da Mesoamérica. Ao mesmo tempo, o Império Tarasco, também
chamado de Purepecha, cuja principal cidade era Tzintzuntzan, que, no final do seu
período histórico funcionou como sua capital política, impôs o seu domínio militar
sobre uma grande área, que incluiu centro-norte e Oeste do México. A língua
dessa cidade era o porhe ou tarasco, fundamentalmente distinta do náuatle e não
relacionado a qualquer outro idioma do México antigo (SOLÍS, 2005).

FIGURA 12 – RUÍNAS DE TZINTZUNTZAN

FONTE: <https://static1-directoriodehote.netdna-ssl.com/files/atractivos/1064/A5_1064.jpg>.
Acesso em: 14 abr. 2019.

13
UNIDADE 1 | ARTE E HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

A arte asteca serve ao Estado como linguagem utilizada pela sociedade


para transmitir sua visão de mundo, reforçando sua própria identidade em
oposição a das culturas estrangeiras. Tem uma forte marca político-religiosa,
contudo, é fundamentalmente religiosa, dedicada ao culto de suas divindades,
expressando-se através da música, literatura, arquitetura e escultura. Para isso,
usaram instrumentos musicais, penas, papel, cerâmica ou pedra dependendo do
tipo de arte que eles gostariam de fazer. O que mais chama a atenção da arte
asteca pré-colombiana é a semelhança com as artes tradicionais anteriores e o
sinal pessoal que colocam em suas representações como marca do artista, sendo
uma arte violenta e rude, mas com uma sensibilidade e complexidade que se
observa em sua riqueza simbólica. A estética asteca tinha um cânone de beleza
muito diferente do clássico (TIPOS DE ARTE, 2017).

• Na arquitetura: a arquitetura asteca reflete os valores civilizatórios de


um império, e o estudo de sua arquitetura é fundamental para podermos
compreender a história dos astecas, incluindo a sua migração através do
México e representação dos rituais religiosos. A melhor maneira de descrever
a arquitetura asteca é dizer que é monumental. Sua finalidade era manifestar
poder, ao mesmo tempo em que aderia a fortes crenças religiosas. Isso é evidente
no desenho dos templos, santuários, palácios e casas das pessoas comuns. A
capital do império asteca era Tenochtitlán, localizada onde hoje é a moderna
cidade do México. Tenochtitlán era uma cidade monumental, construída em
pequenas ilhas e terras pantanosas. Foi a terceira maior cidade do mundo,
depois de Constantinopla e Paris, e, em seu auge, abrigou 200.000 habitantes.
Tenochtitlán foi a cidade em que foi encontrada a mais impressionante e
monumental arquitetura asteca. Depois da conquista espanhola, a cidade foi
saqueada, destruída e seus materiais usados para construir a moderna cidade
do México. De vários documentos arqueológicos e históricos, como as crônicas
espanholas e códices escritos pelos frades, indígenas e outros historiadores, é
possível desvendar o alcance e a importância da arquitetura asteca. Embora
Tenochtitlán fosse a mais impressionante das cidades astecas, havia outras
cidades e sítios arqueológicos que representavam a arquitetura, a vida cotidiana
e os rituais astecas. Os astecas tinham uma longa história de migração, no decurso
da qual se separaram várias vezes. As pessoas que fundaram Tenochtitlán, no
entanto, permaneceram unidas e se dedicaram à veneração de Huitzilopochtli,
o deus do sol e da guerra. Como os astecas migraram por várias centenas de
anos e se separaram várias vezes, adotaram diferentes deuses, costumes, estilos
arquitetônicos e técnicas. A separação migratória final ocorreu em Coatepec
(nas proximidades de Tula), em que, Huitzilopochtli, uma das mais importantes
divindades astecas, nasceu. Metade do Grande Templo de Tenochtitlán foi
construída em sua homenagem. O Grande Templo de Tenochtitlán contém
toda a história da Huitzilopochtli narrada em esculturas. O Templo Mayor era
o lugar sagrado onde os astecas adoravam Huitzilopochtli e sacrificavam seres
humanos para aplacá-lo (AGUILAR-MORENO, [20--]).

14
TÓPICO 1 | ARTE PRÉ-COLOMBIANA

FIGURA 13 – TEMPLO MAYOR E COMPLEXO ARQUITETÔNICO

FONTE: <https://tuul.tv/cultura/asi-fue-como-bernal-diaz-del-castillo-describio-el-templo-mayor>.
Acesso em: 14 abr. 2019.

A fim de entender completamente a arquitetura asteca, um exame


abrangente da cosmologia, mitologia e cultura asteca é necessário, uma vez que a
maioria das estruturas astecas carregava um fardo religioso. Isso é evidente nos
diferentes templos e santuários que foram construídos para adorar as divindades
astecas e oferecer-lhes sacrifícios humanos. A arquitetura asteca foi fortemente
influenciada pelos toltecas de Colhuacan, tepanecas de azcapotzalco e pelos
acolhua de Tetzcoco. Como o império asteca foi construído através da conquista,
os astecas tiveram que encontrar uma maneira de integrar os vários grupos
étnicos sob seu controle. Dessa forma, eles se voltaram para sua arquitetura e
materiais gráficos para promover sua visão do mundo. As estruturas gigantescas
refletiam o poderio militar do império.

• Na cerâmica: os astecas faziam vários objetos de barro funcionais e cerimoniais:


queimadores de incenso, pratos, vasos de ritual e urnas fúnebres. Os
incensários, por exemplo, tinham formato de grandes vasos com mais de um
metro de altura, adornado com imagens em alto relevo. As xícaras de cerâmica
vermelha eram feitas artesanalmente para beber pulque nas festas. Muitos
desses objetos de argila foram decorados, mas geralmente não mostravam o
elaborado significado iconográfico que caracterizava a escultura monumental
e os manuscritos pintados.

FIGURA 14 – CERÂMICA ASTECA

FONTE: <https://culturesnclay.files.wordpress.com/2009/04/rain-deity.jpg?w=700&h=>.
Acesso em: 14 abr. 2019

15
UNIDADE 1 | ARTE E HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

NOTA

Pulque é uma bebida alcoólica feita do suco fermentado do agave, consumida


tradicionalmente na Mesoamérica. Embora seja tida popularmente como uma cerveja, o
principal carboidrato da bebida é uma forma complexa da frutose e não o amido.

• Na escultura: a escultura asteca não foi o resultado de uma inspiração aleatória,


mas sim uma síntese monumental de conceitos religiosos e culturais. Uma
característica importante da escultura asteca é a abstração de imagens completas
que retêm detalhes realistas e concretos. As esculturas representavam seus
mitos, seus sonhos e suas ilusões de vida e morte. A monumentalidade foi
outra tendência importante da escultura asteca. No entanto, a arte monumental
não era simplesmente a representação de algo enorme; era o símbolo visual da
força de uma ideia, simplesmente executada e manifestada na relação entre
dimensões. A monumentalidade asteca dominou e amedrontou o espectador, e
impôs uma impressão manipulada de poder que o Estado investiu na totalidade
da arte asteca (AGUILAR-MORENO, [20--]).

FIGURA 15 – ESCULTURA ASTECA

FONTE: <https://cdn.kastatic.org/ka-perseus-images/4363cb475d7f019850c0737c38ddd367049
88a60.jpg>. Acesso em: 14 abr. 2019.

• Na arte da plumagem: entre a grande variedade de meios utilizados pelos


artesãos e artistas astecas, seu trabalho com penas e plumas é menos conhecido
hoje. Os astecas se tornaram mestres na arte de trabalhar com penas antes da
chegada dos espanhóis, e tinham desenvolvido métodos altamente sofisticados
para recolher penas em todo o seu território, incorporando objeto de um
impacto visual impressionante e de longa durabilidade. Os artistas da aldeia de
Amatlan (um distrito de Tenochtitlan) eram excepcionalmente conhecidos por
seu trabalho com penas. Sendo exclusivo dos astecas, esta forma de arte persistiu
após a conquista na forma de pequenos ícones emplumados, e, posteriormente,
desapareceu quase que completamente (AGUILAR-MORENO, [20--]).

16
TÓPICO 1 | ARTE PRÉ-COLOMBIANA

FIGURA 16 – ARTE PLUMÁRIA ASTECA

FONTE: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/d/dd/Feather_headdress_
Moctezuma_II.JPG/350px-Feather_headdress_Moctezuma_II.JPG>. Acesso em: 14 abr. 2019.

• Na lapidação de pedras: os astecas tinham uma forte atração por pedras preciosas
de todos os tipos. Uma vez que a cultura asteca era neolítica, as ferramentas eram
predominantemente feitas de pedra e cobre. Obsidiana e pederneira eram usadas
para fazer facas sacrificiais, tão valiosas para os rituais, a obsidiana também foi
usada como raspador e para fazer outros utensílios domésticos para cortar. Os
mexicanos eram particularmente hábeis em esculpir pedras duras de diferentes
cores e superfícies brilhantes, como pedra verde, pórfiro, obsidiana, cristal de
rocha, turquesa e ônix. Uma grande variedade de esculturas, vasos e peças
de joalheria foram criadas com estas pedras. Na arte lapidar, os astecas faziam
peças elaboradas de cristal de rocha, ametista, jade, turquesa e obsidiana, entre
outras pedras importantes, além de madrepérola. Eles organizaram pequenos
pedaços de pedra com os quais formaram mosaicos brilhantes sobre um fundo
de osso, estuque e madeira, feitos a partir de instrumentos de cana, areia e esmeril
(AGUILAR-MORENO, [20--]).

FIGURA 17 – FACA SACRIFICIAL ASTECA

FONTE: <https://cdn.kastatic.org/ka-perseus-images/
b9bd72b989c4bdcf2dcbac651033156ae14ba60f.jpg>. Acesso em: 14 abr. 2019

17
UNIDADE 1 | ARTE E HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

5 ARTE NA CIVILIZAÇÃO INCA


Na antiguidade da zona central andina da América do Sul, uma das áreas
mais ricas em vestígios de importantes civilizações antigas em todo o mundo,
existiam várias culturas altamente desenvolvidas, muito antes da chegada dos
espanhóis. Essas culturas apareceram e desapareceram deixando legados que
foram sobrepostos e absorvidos por uma das civilizações pré-colombianas mais
importantes de todos os tempos: o império inca. A partir do ano 1200 a.C., as
primeiras culturas na área da costa norte do atual Peru começaram a desenvolver.
É nesse momento que surgiram os primeiros sinais do nascimento de núcleos
populacionais, pequenas aldeias que constituem os primeiros antecedentes do
urbanismo andino. Os centros religiosos foram transformados, ao longo dos
anos, em centros urbanos populosos que abrigam residências, mercados e órgãos
administrativos, políticos e religiosos. Enquanto a manutenção específica dos
órgãos de poder residia em um sistema de tributação de pessoas que incluiria não só
a contribuição de matérias-primas, mas também da prestação de trabalho em obras
públicas, ou prestação de serviços às classes dominantes, a economia desses centros
foi baseada principalmente no desenvolvimento e controle de grandes extensões de
terras dedicadas à economia agrícola e pecuária. Como fato comprovado com os
achados arqueológicos, especialmente os túmulos dos senhores da cultura moche,
estima-se que essas classes passaram a ter extraordinária riqueza. Essa cultura foi
uma das mais importantes da era pré-inca, tendo iniciado nos vales de Chicama
e Moche, por volta do ano 200 a.C., quando começou a se expandir para outros
vales. Do norte do Peru até a atual Bolívia outras civilizações começaram a aparecer
em diferentes áreas que ao longo dos séculos desenvolveria as bases da cultura
Inca. Povos como a civilização Moche, Tiwanaku, Nazca e Chimu deixaram todo
seu contexto cultural como herança a quem seria responsável para preencher seu
espaço e desenvolver uma cultura que tomaria o lugar, política e territorial, de todos
eles, tornando-se em uma das civilizações mais importantes de todos os tempos, a
civilização Inca (FAVALE, [19--]).

• Na arquitetura: usando pedra, palha e madeira, respeitando o relevo geográfico,


os incas foram caracterizados por serem grandes construtores de seus templos
e casas. Caracterizada por apresentar um encaixe de complicados ângulos
irregulares em blocos de pedra com formas desiguais, a arquitetura imperial
se tornou notória: todos os blocos se encaixam uns com os outros com precisão
surpreendente e desta maneira não havia a necessidade de argamassa para
construção (CUTIRI; RONALD, 2017).

18
TÓPICO 1 | ARTE PRÉ-COLOMBIANA

FIGURA 18 – PEDRA DOS DOZE ÂNGULOS, CUSCO, PERÚ

FONTE: <http://www.oarquivo.com.br/images/thumbnails/images/Geral_22/apedraan-fill-
458x254.jpg>. Acesso em: 14 abr. 2019.

Reconhecidos por terem recintos retangulares com uma fileira de portas


em um dos lados principais, e ao centro uma parede ou fileira de colunas, os
templos eram os edifícios incas mais importantes. Os palácios e edifícios civis estão
dispostos em torno de pátios ou “tribunais”. Templos, palácios e casas se adaptam
à topografia do lugar, às vezes terminando em paredes curvas. As fortalezas têm
paredes duplas ou triplas, com piso dentado. Como exemplo mais representativo
desses recursos arquitetônicos, na cidade de Cusco podemos citar como exemplo
o Templo do Sol ou Qoricancha. O telhado do Qoricancha era feito de madeira
e palha, e parte de suas paredes estava coberta de folhas de ouro. Em 1534, os
espanhóis encontraram o disco solar que era desse metal (CUTIRI; RONALD, 2017).

FIGURA 19 – TEMPLO DO SOL: CORINCANCHA, CUSCO, PERU

FONTE: <https://1.bp.blogspot.com/-AB7MG3P8t0k/WTQybXa1EQI/AAAAAAAA06A/
FKx41i8FBRU7maB2b12s4A5MhDb3aT3-gCLcB/s640/Cusco%2B-%2BPeru%2B%25286%2529.JPG>.
Acesso em: 14 abr. 2019.

19
UNIDADE 1 | ARTE E HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

• Na escultura: a pedra, assim como na arquitetura monumental, era o principal


material da escultura Inca. Os Incas demonstraram grande habilidade, tanto
nas construções arquitetônicas quanto nas esculturas e em grandes e pequenos
objetos escultóricos criados como objetos rituais e de uso cerimonial. Estátuas
e esculturas de ouro e prata, de vários tamanhos também foram produzidas.
Muitas dessas peças foram mais tarde fundidas pelos conquistadores espanhóis
e assim, poucas amostras permanecem, exceto aquelas enterradas juntamente
com os mortos como oferendas (LOK, [20--]). A seguir, veremos uma miniatura
de lhama de 6 cm de 1500 d.C., feita de ouro martelado, teria sido oferecida
como um complemento aos sacrifícios humanos que os antigos incas tinham
feito aos seus deuses das montanhas.

FIGURA 20 – ESCULTURA DE LHAMA EM OURO, PERÚ

FONTE: <https://encrypted-tbn0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcRmZ03BLjqWUE8QAr_Z0_
IAHiI0i1K5JHp7nUZwq-4jXmngBXzX&s>. Acesso em: 28 jan. 2020.

• Na cerâmica: essas são identificadas por terem uma variedade de formas. Dentre
alguns exemplos podemos citar os vasos utilitários três pernas, usada pelos
guerreiros durante as guerras; os resistentes vasos domésticos que utilizavam o
vermelho; a enorme ânfora, com duas alças laterais. Segundo R. Ravines (2011,
p. 435, tradução nossa), “há aproximadamente 4.000 anos atrás as cerâmicas
surgiram no Peru e, desde então, houve mudanças notáveis que foram registradas
nos vários estilos de cerâmica que foram fabricados em seu território ao longo
do tempo”. Diferentes estilos podem ser reconhecidos na cerâmica peruana pré-
hispânica. Dentro dessa diversidade, doze são os que se destacam claramente por
sua originalidade, plasticidade, difusão e volume de produção. Estes estão em
ordem cronológica: Chavín, Moche, Recuay, Pucará, Paracas, Cajamarca, Nasca,
Huari/Tiahuanaco, Chimu, Chancay, Chincha e Inca.

20
TÓPICO 1 | ARTE PRÉ-COLOMBIANA

FIGURA 21 – CERAMICA INCA, PERÚ

FONTE: <https://hablemosdeculturas.com/wp-content/uploads/2017/11/cultura-
inca24-768x994.jpg>. Acesso em: 15 out. 2019.

• No tecido: o tecido andino pré-hispânico, como uma manifestação cultural,


tecnológica e artística em geral, constitui uma das realizações mais
impressionantes dos povos que habitavam os Andes antes da chegada dos
europeus. Segundo Maria Jesus Jimenez Díaz (2004, p. 1-2, tradução nossa):

[...] as produções têxteis procedentes de contextos arqueológicos, a


partir de uma visão etnocêntrica, e a produção atual dos tecelões nos
Andes, estão hoje incluídos na categoria do artesanato. Essa ideia pode
dar a impressão de que esses tecidos surgem de um tipo de impulso
produtivo “em série” e que suas cores, desenhos e técnicas são o
resultado da escolha espontânea e de alguma forma inconsciente do
tecelão. [...] Como meio de expressão por excelência, o tecido andino
era e é o meio de expressão por excelência. Como parte integrante do
cotidiano, os tecidos foram incluídos nos vários aspectos do cotidiano,
incluindo as cerimônias de sacrifício, e os ritos fúnebres, bem como
na vida cotidiana de homens e mulheres. O tecido torna-se, assim, um
objeto que atesta essas atividades, das quais muitas vezes temos, em
outros casos, poucas evidências. Seu valor como fonte de informação
e de pesquisa dessas sociedades no passado e no presente tem se
mostrado extremamente importante.

FIGURA 22 – PONCHO INCA TECIDO NO TEAR MANUAL

FONTE: <https://worldhistory.us/wp-content/uploads/2018/12/inca-tunic-696x548.jpg>.
Acesso em: 28 jan. 2020.

21
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu que:

• Todos os objetos de arte criados por diferentes povos indígenas, antes da


chegada de Colombo e da influência espanhola e portuguesa, podem ser
considerados como arte pré-colombiana latino-americana.

• Cada povoado, grupo étnico, tribo e nação da América Latina deixou marcada
suas crenças, esperanças, realizações em seus artefatos e em sua arte pré-
colombiana. A religião animista foi um elemento da maior importância na
vida pré-colombiana, uma vez que deificou forças naturais, lugares sagrados
e alguns objetos. A religião emanava de uma concepção de dualidade e assim
correspondia simbolismos contrários na arte.

• A mitificação ou deificação de cada elemento ou fenômeno que era utilitário e


eficaz em suas atividades diárias foi constituída pelo valor particular, as raízes
e significado que as culturas pré-colombianas atribuíram ao chamado mundo
natural. Assim, certos animais, plantas ou elementos naturais, como a lua, o sol
e a chuva, entre outros elementos naturais, atingiram um nível simbólico e de
veneração muito importante para aquelas culturas.

• O relevo na escultura e na arquitetura foi uma técnica muito utilizada pelos


maias e apresentavam, em sua maioria, cenas religiosas e guerreiras. Assim
como o relevo, a monumentalidade no tratamento dos temas, o uso da cor no
acabamento superficial, a dependência do campo arquitetônico, a profusão de
signos caligráficos e ornamentais, a relevância das linhas curvas e o caráter de
composição variada e cenográfica foram empregadas.

• Dedicada ao culto de suas divindades, expressando-se através da música,


literatura, arquitetura e escultura, a arte asteca serve ao Estado e tem uma forte
marca político-religiosa, sendo fundamentalmente religiosa. Instrumentos
musicais, penas, papel, cerâmica ou pedra foram utilizados para desenvolver a
estética asteca, que tinha um cânone de beleza muito diferente do clássico.

• A civilização Inca, uma das mais importantes no período pré-colombiano, foi


formada pelo legado cultural de povos das civilizações Moche, Tiwanaku,
Nazca e Chimu.

22
AUTOATIVIDADE

1 No início desta unidade, conhecemos algumas definições e características


referentes à arte pré-colombiana. Explique a relevância do uso do ouro em
muitos objetos culturais no período da conquista.

2 Localizada em duas pequenas ilhas no lago Texcoco, essa cidade foi fundada
em 1325 e tornou-se capital no fim do Século XV. Através da construção de
ilhas artificiais, ela foi aumentada e passou a cobrir uma área de mais de 13
km². Em 1519, sua população era estimada em 400.000 pessoas. A capital
tinha palácios deslumbrantes e templos no topo de pirâmides e refletia a
riqueza e o poder do Império Asteca. Os astecas construíam aquedutos para
o abastecimento de água e canais que permitiam o transporte pela cidade.
Essa cidade era chamada de:

a) ( ) Tenochtitlán.
b) ( ) Machu Picchu.
c) ( ) Chichén Itzá.
d) ( ) Cusco.

23
24
UNIDADE 1
TÓPICO 2

ARTE COLONIAL BARROCA

1 INTRODUÇÃO
A arte latino-americana, segundo John F. Scott (2018), inclui as tradições
artísticas que se desenvolveram na Mesoamérica, América Central e América
do Sul após o contato com os espanhóis e portugueses, começando em 1492 e
1500, respectivamente, e continuando até o presente. A descoberta europeia,
a conquista e a colonização das Américas, iniciada em 1492, criaram enormes
mudanças nas culturas indígenas da região. No momento em que os europeus
chegaram, especialmente da Espanha e Portugal, vieram com tradições de pintura
e escultura que remontam à antiguidade. Ao longo de séculos, os povos indígenas
americanos haviam formado civilizações com suas próprias e únicas práticas
artísticas, desde as grandes estruturas políticas dos impérios inca e asteca até a
presença mais dispersa de pequenos agrupamentos de povos nômades.

2 ASPECTOS HISTÓRICOS DA ARTE COLONIAL BARROCA


A importação de escravos africanos similarmente levou à presença de
tradições africanas de artes visuais de longa data na região. Durante as décadas
e séculos depois do contato europeu, a América Latina passou por amplas
mudanças culturais e políticas que levaram aos movimentos de independência
do Século XIX e às convulsões sociais do Século XX.

A produção de artes visuais na região refletiu essas mudanças. Os artistas


latino-americanos muitas vezes superficialmente aceitaram estilos da Europa e
dos Estados Unidos, modificando-os para refletir suas culturas e experiências
locais. Ao mesmo tempo, esses artistas muitas vezes mantiveram vários
aspectos das tradições indígenas. Como a América Latina buscou sua própria
identidade, seus artistas olharam para seu passado, sua cultura popular, sua
fé, seu ambiente político e suas imaginações pessoais para criar uma tradição
ímpar de arte latino-americana.

Os exploradores ibéricos viajaram pela primeira vez para as Américas no


final do Século XV e início do Século XVI. Os imigrantes espanhóis instalaram-
se em unidades sociopolíticas chamadas encomiendas, que eram, na prática,
concessões governamentais de terras e indivíduos dirigidos por poderosos
espanhóis. Sob o encomendero, o chefe da encomienda, os indígenas serviam em

25
UNIDADE 1 | ARTE E HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

uma diversidade de capacidades, e os escravos africanos similarmente eram


constantemente importados para seu trabalho. Os eclesiásticos foram cada vez
mais para as Américas para trabalhar dentro dessas encomiendas e converter os
povos indígenas ao cristianismo.

Os portugueses demoraram mais a envolver-se na região. Ainda que


tenham reivindicado o Brasil por várias décadas, apenas em meados da década
de 1530 eles se envolveram mais de modo direto, concedendo sesmarias, ou
concessões de terras, a indivíduos proeminentes. Como na América espanhola,
os missionários cristãos tornaram-se parte desse quadro. Muitos escravos
africanos foram importados para o Brasil, em parte devido às necessidades da
indústria açucareira e em parte por conta da falência da escravização indígena.
Com o início do período colonial, uma divisão ímpar no princípio existiu entre
artistas indígenas e imigrantes europeus. Em alguns casos, artistas indígenas
continuaram a sondar suas próprias tradições e temas sem alteração. Vários
artistas europeus similarmente adotaram estilos e temas da Europa de forma
literal, que pouco tinham que ver com a cultura latino-americana. Cada vez
mais, porém, influências recíprocas podiam ser sentidas por ambos os grupos
à medida que mais mistura cultural e étnica chegava a definir a região. Várias
dessas tradições indígenas continuaram quase que inalteradas ao longo dos
séculos. Ao mesmo tempo, à medida que os assentamentos na América Latina se
tornaram mais estabelecidos e à medida que mais artistas europeus imigraram
para a nova terra, os artistas ibéricos levaram consigo elementos dos estilos
artísticos que estavam em vigor na Europa.

3 O BARROCO
Em meados do Século XVII, o estilo barroco de pintura e escultura chegou
às Américas. Os artistas que trabalhavam nesse estilo — alguns deles mestiços e
mulatos, refletindo a crescente diversidade da região — preferiam a objetividade
e clareza realistas e rejeitavam as cores fantásticas, as proporções alongadas e as
relações espaciais ilógicas e extremas preferidas pelos artistas maneiristas. Eles se
esforçaram para fazer com que os eventos religiosos descritos em suas pinturas
parecessem realistas, fazendo com que os espectadores se sentissem participantes.
Os pintores do início do estilo barroco renderam cenas dramaticamente iluminadas
de figuras em grande escala não idealizadas, colocadas contra a frente do quadro.
Esse estilo, tornado famoso por Caravaggio na Itália, tornou-se imensamente
popular entre os artistas espanhóis ativos em Sevilha, a cidade de partida para a
maioria dos colonos latino-americanos (SCOTT, 2018).

O estilo de pintura barroca se estabeleceu no México com a obra do


imigrante espanhol Sebastián López de Arteaga. Em sua monumental tela, A
Incredulidade de São Tomás (1643), o tema está maravilhosamente sintonizado
com os objetivos do barroco: o apóstolo Tomé insere o dedo na ferida no lado de
Cristo, levando o espectador a sentir a presença de Cristo e a experimentar seu
sofrimento (SCOTT, 2018).

26
TÓPICO 2 | ARTE COLONIAL BARROCA

FIGURA 23 – A INCREDULIDADE DE SÃO TOMÁS

FONTE: <http://twixar.me/hwBT>. Acesso em: 28 jan. 2020.

Os protagonistas em tamanho natural na tela são cercados por homens


idosos comuns. A esquerda, uma única fonte de luz brilhante destaca a ferida,
enfatizando a carnalidade de Cristo. Aqui “a Palavra se fez carne”, incorporando
o propósito da arte barroca católica. Um pintor anônimo conhecido como o
Mestre de São Jerônimo, baseado no tema comum de seu trabalho, empregou
o estilo de Caravaggio no Peru. Seus trabalhos incluem vários estudos de meio-
comprimento de São Jerônimo, inspirados em uma gravura italiana, que mostram
um homem idoso com uma sobrancelha realisticamente franzida, iluminado por
um holofote vindo de seu lado esquerdo para além da moldura. A imagem parece
se projetar em frente ao plano do quadro, estimulando a sensação da presença
real do santo idoso (SCOTT, 2018).

FIGURA 24 – SÂO JERÔNIMO

FONTE: <http://www.artchive.com/web_gallery/reproductions//193501-194000/193745/size1.jpg>.
Acesso em: 14 abr. 2019.

27
UNIDADE 1 | ARTE E HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

Embora suas obras não tenham data, o Mestre de São Jerônimo pode
muito bem ter sido um importante pintor inicial da escola de Cuzco, composta
principalmente de artistas indígenas e mestiços. Na fase inicial do barroco na
América Latina, a escultura em alto relevo era usada em fachadas e retábulos. Na
igreja de São Francisco em Santa Fé de Bogotá, Colômbia, por exemplo, o interior
de madeira tem um retábulo composto de representações bíblicas emolduradas,
que foram esculpidas e pintadas anonimamente em 1633. As cenas representam
figuras em um ambiente tropical rico que sugerem pertencer as paisagens
colombianas (SCOTT, 2018).

FIGURA 25 – RETÁBULO BARROCO – IGREJA DE SÃO FRANCISCO, BOGOTÁ

FONTE: <http://twixar.me/JwBT>. Acesso em: 14 abr. 2019.

Os primeiros escultores latino-americanos costumavam descrever, em


suas obras barrocas, momentos da vida de Cristo a fim de atrair pessoas comuns,
que pudessem se identificar com o sofrimento de Jesus. Essas estátuas criaram
no espectador um senso da presença física de Cristo por meio de uma imagem
em tamanho natural, geralmente vestida com vestimentas reais. Durante os dias
santos, essas grandes estátuas de madeira foram exibidas em toda a cidade em
plataformas transportadas por membros de fraternidades da igreja. Na colina
de Monserrate, com vista para Santafé de Bogotá, uma capela de peregrinação
contém a poderosa imagem barroca de Pedro de Lugo Albarracín do Senhor Caído
de Monserrate (1656), que mostra Cristo amarrado a uma estaca baixa enquanto
sangra após uma flagelação. A figura, olhando para os fiéis em sofrimento
e angústia, é ao mesmo tempo uma das maiores obras da arte barroca e uma
imagem carregada de grande poder religioso (SCOTT, 2018).

28
TÓPICO 2 | ARTE COLONIAL BARROCA

FIGURA 26 – O SENHOR CAIDO DE MONSERRATE

FONTE: <https://artecolonial.files.wordpress.com/2011/05/el-sec3b1or-de-monserrate.
jpg?w=510&h=339>. Acesso em: 14 abr. 2019.

Muitas estátuas da Virgem estavam vestidas com roupas reais na América


espanhola, e elas eram frequentemente exibidas em uma sala especial localizada
atrás do altar. O convento de El Carmen, em Quito, Equador, dedicou uma sala
inteira para uma representação escultórica em tamanho natural da morte da
Virgem, com a figura de madeira policromada da Virgem colocada em uma cama
cercada pelos discípulos de seu filho (SCOTT, 2018).

FIGURA 27 – TRÃNSITO DA VIRGEN E OS DOZE APOSTOLOS, MUSEO DEL CARMEN ALTO,


QUITO, EQUADOR

FONTE: <https://museosdmqjennifermeza.files.wordpress.
com/2015/05/14932684538_81496deca5_b.jpg?w=351&h=233>. Acesso em: 14 abr. 2019.

A inspiração mais importante para os pintores latino-americanos se tornou


o artista flamengo Peter Paul Rubens, cuja arte era conhecida nas colônias através
de cópias de gravura. Suas pinturas foram retrabalhadas em numerosas imitações
latino-americanas, desde pequenas lajes de mármore pintadas até imensas telas,
e ele criou a grande maneira usada pela nobreza latino-americana e a igreja para
propósitos propagandísticos. A escultura barroca europeia suplantou a escultura
fina e equilibrada do Renascimento do Século XVI com esculturas espaciais e

29
UNIDADE 1 | ARTE E HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

atraentes. As características da escultura barroca incluem escala em tamanho real,


tons de pele realistas (encarnação) e a simulação de peças de tapeçaria ricas em
ouro (que foi conseguida pelo estofo, ou a aplicação de tinta colorida sobre folha
de ouro). Alguns mestres barrocos espanhóis, como Juan Martínez Montañés,
enviaram suas obras para as Américas no início do Século XVII (SCOTT, 2018).

4 O BARROCO NO MÉXICO, EQUADOR, COLÔMBIA,


BOLÍVIA E PERU
À medida que o barroco se estabelecia em áreas como o México e o Peru,
as pinturas — cada vez mais inspiradas por Rubens — antes contidas dentro de
molduras arquitetônicas de retábulos, eram agora apresentadas em telas colossais
independentes. Pinturas do mexicano Cristóbal de Villalpando exemplificam
melhor essa nova escala em duas grandes catedrais do México. Na sacristia da
catedral da Cidade do México, entre 1684 e 1686, ele colou telas nas paredes e as
estabilizou com molduras arqueadas, que se encaixam bem sob as abóbadas do
teto (SCOTT, 2018).

FIGURA 28 – APOTEOSIS DE SAN MIGUEL, CRISTÓBAL DE VILLALPANDO, SACRISTIA DA


CATEDRAL DA CIDADE DO MÉXICO

FONTE: <http://twixar.me/RwBT>. Acesso em: 30 jan. 2020.

A pintura a fresco no Século XVI ocupou uma posição semelhante a esta,


mas raramente era tão grande em escala. Uma das pinturas de Villalpando na
sacristia da Cidade do México, O Triunfo da Eucaristia, é derivada de desenhos
animados de Rubens, e mostra uma carruagem puxando um papa idoso.
Villalpando foi um dos poucos artistas latino-americanos que utilizaram uma
pincelada fluida ao estilo do pintor barroco flamengo Peter Paul Rubens, que
simulava texturas e comunicava a urgência do evento representado. Ele realizou a
pintura ilusionista de teto, o programa mais barroco, em uma cúpula da Catedral
de Puebla em 1688. Ele fez toda a superfície da cúpula em uma composição de
nuvens cheias de anjos e santos, dos quais descende uma pomba representando o
espírito Santo (SCOTT, 2018).

30
TÓPICO 2 | ARTE COLONIAL BARROCA

FIGURA 29 – O TRIUNFO DA EUCARISTIA, CRISTÓBAL DE VILLALPANDO

FONTE: <https://www.flickr.com/photos/tachidin/22345358338/in/dateposted/>.
Acesso em: 14 abr. 2019.

A luz intensa da cúpula destina-se a incorporar a graça universal de


Deus. Por meio dessa maneira grandiosa, os pintores barrocos latino-americanos
tentaram capturar as emoções de seus espectadores e engajá-los ativamente na
missão da igreja (SCOTT, 2018).

Na América do Sul espanhola — ainda incluída no Vice-reinado do Peru


no início do Século XVIII —, o estilo barroco foi introduzido enfaticamente como
no México. Os pesquisadores muitas vezes desconhecem o desenvolvimento do
barroco nesta região, uma vez que muitas das obras não foram devidamente
assinadas ou porque os terremotos (como o que danificou Cuzco em 1650)
destruíram o trabalho dos primeiros artistas barrocos. Uma vez que o barroco foi
estabelecido lá depois de 1650, no entanto, oficinas informais de pintores barrocos
se fundiram em capitais regionais. Quito surgiu como o centro artístico regional
mais valorizado do mundo hispano-americano. Entre os pintores importantes
estava Miguel de Santiago, um poderoso artista mestiço que emulou mestres
espanhóis como Bartolomeu Murillo em seu retrato da Imaculada Conceição. De
especial interesse, são suas representações alegóricas seculares de assuntos como
as quatro estações do ano (SCOTT, 2018).

FIGURA 30 – A PRIMAVERA, DE MIGUEL DE SANTIAGO, MUSEU DE ARTE COLONIAL, QUITO

FONTE: <http://www.edupedia.ec/images/edupedia/arte_colonial/artecolonial40.jpg>.
Acesso em: 14 abr. 2019.

31
UNIDADE 1 | ARTE E HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

Seu sucessor, Nicolás Javier de Goríbar (1665-1740), criou ciclos completos


de retratos de profetas de pé, bem como medalhões redondos contendo reis de
Judá (SCOTT, 2018).

FIGURA 31 – PROFETA HABOC, NICOLAS JAVIER DE GORÍBAR, IGREJA DA COMPANIA,


SÉCULO XVII, QUITO

FONTE: <http://twixar.me/rwBT>. Acesso em: 14 abr. 2019.

Na escultura, o artista mestiço Bernardo de Legarda está no auge da


escola de Quito. Começando em 1734, Legarda esculpiu esculturas magistrais da
Virgem do Apocalipse que revelam a extensão espacial característica da escultura
barroca do período; porque suas figuras contorcidas exigiam mais espaço do que
as esculturas anteriores, elas não podiam mais ficar confinadas dentro de um
pequeno nicho de um retábulo (SCOTT, 2018).

FIGURA 32 – VIRGEM DO APOCALIPSE, BERNARDO DE LEGARDA, SÉCULO XVIII, QUITO

FONTE: <https://i.pinimg.com/originals/c0/e5/83/c0e5839754ef955c1614461560657d8d.jpg>.
Acesso em: 14 abr. 2019.

32
TÓPICO 2 | ARTE COLONIAL BARROCA

A cortina profundamente entalhada da figura da catedral de Popayán,


na Colômbia, por exemplo, tem grandes dobras que servem para enfatizar seu
movimento dinâmico enquanto ela mergulha seu raio na serpente que simboliza
Satanás. Legarda comandou uma oficina de muitos assistentes, que produziam
composições similares de qualidade ligeiramente inferior.

Santafé de Bogotá, na Colômbia, surgiu como outro centro do barroco na


América do Sul espanhola. Gregório Vásquez de Arce e Cevallos, o melhor pintor
da segunda metade do Século XVII, retratou uma ampla variedade de figuras
monumentais em paisagens executadas através de gravuras que ele executou
com uma mão segura em perspectiva, modelagem, anatomia e cor (SCOTT, 2018).

FIGURA 33 – O LAR DE NAZARÉ, GREGÓRIO VÁSQUEZ DE ARCE E CEBALLOS, COLÔMBIA

FONTE: <https://admin.banrepcultural.org/sites/default/files/obra-de-arte/gallery/ap4850.jpg>.
Acesso em: 28 jan. 2020.

Em Potosí (hoje na Bolívia), no final do Século XVII, Melchor Pérez de


Holguín pintou representações fluidas de personalidades bíblicas e capturou
notavelmente seus estados emocionais individuais (SCOTT, 2018).

4.1 TEMAS BARROCOS NA AMÉRICA ESPANHOLA


Enquanto os temas religiosos e alguns retratos dominavam a arte barroca
oficialmente encomendada na América Latina, os artistas nativos também começaram
a adaptar as lições do barroco para refletir interesses e temas distintamente
latino-americanos. Como os laços latino-americanos com a Europa tornaram-se
menos imediatos, isso talvez estivesse ligado ao crescente sentido dos artistas de
uma identidade latino-americana. Em Cuzco, no Peru, um artista anônimo, mas
provavelmente nativo, conhecido como o Mestre de Santa Ana, incorporou o drama
de Rubens a pinturas que comemoravam os rituais reais da América Latina. Suas
pinturas barrocas têm a cor vívida típica da arte europeia do período, mas retratam as
primeiras cenas da época de eventos latino-americanos, como a procissão de Corpus
Christi. Pinturas de procissões dos vice-reis se tornaram populares no barroco tardio.
Um trabalho notável no gênero é a pintura de Cristobal de Villalpando (1695) da
praça central da Cidade do México (SCOTT, 2018).

33
UNIDADE 1 | ARTE E HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

FIGURA 34 – A PRAÇA CENTRAL DA CIDADE DO MÉXICO, CRISTÓBAL DE VILLALPANDO, 1695

FONTE: <http://2.bp.blogspot.com/__xsw7_wF8KQ/SqzuJzKk53I/AAAAAAAAAU0/
J2Twq2JmSx4/s400/Parian+4.jpg>. Acesso em: 14 abr. 2019.

Também marcante é a pintura de 1716 de Pérez de Holguín mostrando o


centro de mineração de prata de Potosí, por ocasião da visita do arcebispo Rubio
Morcillo de Auñón (SCOTT, 2018).

FIGURA 35 – A ENTRADA DO ARCEBISPO DIEGO MORCILLO RUBIO DE AUFION EM POTOSI,


1716 MELCHOR PEREZ DE HOLGUIN, MUSEU DA AMERICA, MADRI

FONTE: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/5/50/Entrada_Virrey_
Arzobispo_Morcillo.jpg/500px-Entrada_Virrey_Arzobispo_Morcillo.jpg>. Acesso em: 28 jan. 2020.

No trabalho de ambos os artistas, a arquitetura da cidade é cuidadosamente


revelada, usando uma perspectiva exagerada através de um ponto de fuga. No
horizonte elevam-se as montanhas distintas associadas a cada cidade: os vulcões
cobertos de neve de Popocatépetl e Iztaccíhuatl no primeiro trabalho e a montanha
de prata de Potosí no segundo (SCOTT, 2018).

Momentos da história da América Latina também se tornaram temas


populares durante este período. Por exemplo, na década de 1690, o artista afro-
mexicano Juan Correa reproduziu em uma tela dobrável decorativa — um
formato introduzido através do comércio do México com o Japão — a reunião de
Hernán Cortés, explorador e conquistador espanhol e Montezuma, governante
dos astecas de Tenochtitlán.

34
TÓPICO 2 | ARTE COLONIAL BARROCA

FIGURA 36 – PINTURA EM BIOMBO, ENCONTRO ENTRE CORTÉS E MONTEZUMA, JUAN CORREA

FONTE: <https://www.milenioweb.es/wp-content/uploads/2018/02/Biombo-del-encuentro-entre-
Hern%C3%A1n-Cort%C3%A9s-y-Moctezuma.-Juan-Correa-300x178.jpg>. Acesso em: 14 abr. 2019.

Nessa imagem altamente imaginativa, Montezuma está vestido com o cocar


de penas que se tornou a iconografia padrão para as figuras alegóricas do continente
americano. Esse estilo de vestimenta foi derivado de ilustrações em xilogravura
realizadas por Hans Staden em seu livro Duas viagens ao Brasil, publicado na
Alemanha em 1557, que relata hábitos antropofágicos dos tupinambás do Brasil.
Na versão de Correa do encontro histórico, ele incluiu todos os símbolos de pompa
associados com representações do pintor barroco Peter Paul Rubens do encontro
de monarcas europeus. Esse interesse pelos temas latino-americanos ganhou força
à medida que a América Latina se aproximava da independência (SCOTT, 2018).

4.2 O ESTILO MESTIÇO


Durante a era barroca tardia, artistas em áreas provinciais dos vice-
reinados espanhóis da Nova Espanha e do Peru produziram fachadas e interiores
esculpidos que, exibindo a riqueza geral de cores e relevos típicos da arte barroca
nos centros metropolitanos, tinham uma qualidade dimensional que muitos
chamam de “mestiço”, um termo que se refere à ancestralidade culturalmente
mista dos estilos herdados. O relevo característico de dois níveis das esculturas
depende menos da modelagem escultural do que da perfuração na superfície
para criar um efeito de tela. Projetos semelhantes de relevo de dois níveis foram
criados em técnicas pré-colombianas de pedra e madeira, como as do estilo
Mixteca-Puebla do México e o estilo Tiwanaku-Huari da Bolívia e do Peru.

As áreas que produzem igrejas no estilo mestiço — as terras altas peruanas


do Sul e Alto Peru (atual Bolívia), o sul e o oeste do México e a Guatemala —
eram centros de civilizações pré-colombianas e ainda continham uma população
indígena ou mestiça espanhola. O estilo mestiço, portanto, refletia suas tradições
com mais sucesso do que uma versão literalmente copiada do barroco europeu.
A aparência mais antiga do estilo mestiço foi desenvolvida em Arequipa, em um
vale cercado pelas montanhas do sul do Peru e situado entre fortes centros pré-
colombianos perto de Nazca e do Lago Titicaca. Acima da porta lateral da igreja
jesuíta de La Compañía ergue-se um relevo (1654) de Santiago Matamouros
(“Santiago o Matador de Mouros”) (SCOTT, 2018).

35
UNIDADE 1 | ARTE E HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

FIGURA 37 – RELEVO EM PEDRA DE SANTIAGO MATAMOROS, 1654, IGREJA DA COMPANHIA,


AREQUIPA, PERU

FONTE: <http://storage.ning.com/topology/rest/1.0/file/get/2542248801?profile=original>.
Acesso em: 14 abr. 2019.

O relevo muda de escala de uma seção para outra e mantém uma


qualidade uniforme. Aludindo à Reconquista da Espanha e à expulsão dos mouros
muçulmanos, a imagem foi mentalmente e por vezes literalmente transferida para
a conquista dos índios. Na fachada frontal de Igreja da Companhia (1698), todas as
superfícies, com exceção das colunas, eram densamente decoradas com desenhos
florais planos e com figuras atlantes derivadas principalmente de decorações de
livros europeus decorados com xilogravura (SCOTT, 2018).

FIGURA 38 – ESTILO MESTIÇO NA FACHADA FRONTAL DA IGREJA DA COMPANHIA,


AREQUIPA, PERU

FONTE: <http://storage.ning.com/topology/rest/1.0/file/
get/2542252350?profile=RESIZE_1024x1024>. Acesso em: 14 abr. 2019.

36
TÓPICO 2 | ARTE COLONIAL BARROCA

5 O BARROCO NO BRASIL
O barroco no Brasil dominou, em termos artísticos, a maior parte do
período colonial e obteve solo fértil para um rico florescimento. O barroco foi
introduzido no país no início do Século XVII, através de missionários católicos,
especialmente jesuítas, que ali catequizavam e aculturavam os indígenas,
contribuindo assim para com o processo de colonização dos portugueses.
Durante o período colonial houve uma íntima ligação entre a Igreja e o
Estado. Dessa forma, compreendemos que a religião exercia forte influência
no cotidiano social e cultural, refletido principalmente na arte e na arquitetura
sacra da época através das esculturas, pintura e entalhe para decoração de
igrejas e conventos ou para culto privado. As características mais típicas do
barroco, geralmente descritas como um estilo dinâmico, narrativo, ornamental,
dramático, cultivando os contrastes e uma plasticidade sedutora, transmitem
um conteúdo programático articulado com refinamentos de retórica e grande
pragmatismo (HISOUR, [20--]).

FIGURA 39 – INTERIOR DA IGREJA E MOSTEIRO DE SÃO BENTO, RIO DE JANEIRO

FONTE: <https://arquiteturadobrasil.files.wordpress.com/2010/03/rio-saobento31.
jpg?w=300&h=198>. Acesso em: 14 abr. 2019.

A arte barroca era uma arte essencialmente funcional, que se dava muito
bem para os fins que servia: além de sua função puramente decorativa, facilitava
a absorção da doutrina católica e dos costumes tradicionais pelos neófitos, sendo
um instrumento pedagógico e catequético eficiente (HISOUR, [20--]).

Assim como na América Espanhola, percebemos também no Brasil a


forte presença de artesãos indígenas e principalmente de artesãos negros como
responsáveis por grande parte do barroco produzido em nosso país. Esses artesãos
deram ao barroco europeu características novas e originais, o que tornou o barroco
representante da formação de uma genuína arte brasileira. Conheceremos um
pouco mais a respeito do barroco brasileiro através da vida e da obra de um dos
seus mais celebrados artistas, Aleijadinho.

37
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu que:

• A arte latino-americana, que teve início em 1492 na América espanhola e em


1500, no Brasil, inclui as tradições artísticas que se desenvolveram na América
Central e na América do Sul após o contato com os espanhóis e portugueses.
A descoberta europeia, a conquista e a colonização das Américas, iniciada em
1492, criaram enormes mudanças nas culturas indígenas da região, que sofreram
influências das tradições de pintura e escultura espanhola e portuguesa.

• O estilo barroco de pintura e escultura chegou às Américas em meados do


Século XVII. Os artistas barrocos, alguns mestiços e mulatos, preferiam a
objetividade e clareza realistas e rejeitavam as cores fantásticas, as proporções
alongadas e as relações espaciais ilógicas e extremas preferidas pelos artistas
maneiristas e refletiram, assim, a crescente diversidade da região.

• Temas voltados à momentos da vida de Cristo foram descritos em muitas das


esculturas barrocas a fim de atrair pessoas comuns, que pudessem se identificar
com o sofrimento de Jesus. Essas estátuas criavam um sentido de presença
física de Cristo, feitas em tamanho natural, vestidas com roupas reais.

• O estilo barroco foi introduzido de modo enfático, na América do Sul espanhola,


tanto no México como no Peru. Muitas vezes, pesquisadores desconhecem o
desenvolvimento do barroco nessa região, uma vez que muitas das obras não
foram devidamente assinadas ou porque os terremotos destruíram o trabalho
dos primeiros artistas barrocos.

• Durante o período colonial houve uma íntima ligação entre a Igreja e o Estado
português. O barroco foi introduzido no Brasil no início do Século XVII, através
de jesuítas, que ali catequizavam e aculturavam os indígenas, contribuindo
para com o processo de colonização dos portugueses. Em termos artísticos,
podemos afirmar que o barroco dominou artisticamente, no Brasil, a maior
parte do período colonial.

38
AUTOATIVIDADE

1 Em virtude da colonização da América pela Espanha e Portugal, monarquias


centralizadas e católicas, o Barroco foi transportado para o Novo Mundo. O
Barroco nas Américas foi assim influenciado pelo gosto popular através dos
artistas e missionários católicos que migraram para as colônias e tornou-se
multiforme. Quais seriam as principais características deste barroco mestiço
que se deu nas Américas?

2 Aleijadinho (1738-1814) é considerado o maior artista do barroco mineiro,


sendo conhecido por suas esculturas em pedra-sabão, entalhes em madeira,
altares e igrejas. Considerando a biografia de Aleijadinho apresentada por
João Vicente Ganzarolli de Oliveira no final do segundo tópico, classifique
V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas:

( ) Tendo trabalhado principalmente como escultor e arquiteto, ele é a figura


chave para o desenvolvimento dos estilos barroco e rococó brasileiro.
( ) Nasceu em Vila Rica, hoje chamada de Ouro Preto, a cidade mais
representativa do chamado estilo colonial brasileiro, cuja exuberância é
inspirada no barroco europeu e no rococó.
( ) Humilhações e frustrações de todos os tipos, não devem ter sido frequentes
na vida de Aleijadinho.
( ) Aleijadinho fazia uma arte puramente religiosa, e não se importava como
as pessoas o tratavam.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) V – F – F – V.
b) ( ) F – V – F – V.
c) ( ) F – F – V – V.
d) ( ) V – F – V – F.
e) ( ) V– V – F – F.

39
40
UNIDADE 1
TÓPICO 3

O MODERNISMO LATINO-AMERICANO

1 INTRODUÇÃO
Na história intelectual latino-americana, segundo Amy A. Oliver (2016),
o modernismo é um termo que pode ser aplicado de maneira útil e precisa por
pelo menos dois movimentos intelectuais distintos: o movimento modernista na
América Latina de língua espanhola (1880-1920) e o movimento modernista no
Brasil (1922-1945). Em suas respectivas cenas, os dois os movimentos modernistas
tiveram grande impacto e representaram rupturas culturais. Podemos constatar
que esses dois movimentos tenham origens, contextos, resultados, trajetórias e
agrupamentos de pensadores um tanto distintos, bem como legados distintos de
influência e de corpo social. Apesar das diferenças históricas, sociais e culturais,
os dois deixaram legados culturais duradouros em suas respectivas regiões.
No modernismo latino-americano, isso pode ser notado através da literatura,
filosofia, arte, arquitetura, fotografia e música (OLIVER, 2016).

2 O MODERNISMO NA AMÉRICA ESPANHOLA


Iniciaremos com um fato curioso que envolve Rubén Darío, conhecido
poeta nicaraguense, que foi um agente iniciador do Modernismo latino-americano
em literatura espanhola. Dario iniciou o movimento com sua coleção de poemas e
histórias, Azul (1888), um afastamento radical das tradições anteriores. Sua obra
madura, Cantos de vida e esperança (1905), incorpora sua maior consciência dos
acontecimentos mundiais.

Com o colapso do império espanhol em 1898, Darío viajou para a Europa


como correspondente do La Nación, um jornal de Buenos Aires, e foi exposto a
perspectivas continentais sobre os desenvolvimentos políticos. Havia na época
uma forte preocupação, tanto de espanhóis quanto de latino-americanos, acerca
do imperialismo americano após a derrota da Espanha na Guerra Hispano-
Americana. Ficou evidente que os latino-americanos teriam que tomar uma
posição em relação aos Estados Unidos, um país que se tornaria conhecido por
sua diplomacia dolarizada, e sua infame Política da Boa Vizinhança.

Houve assim, por parte dos latino-americanos, uma reafirmação de sua


herança hispânica e latina pautada no classicismo greco-romano e nos poetas
barrocos espanhóis, como Luís de Góngora e Francisco de Quevedo, que em seu
poema Ode para Roosevelt, Darío revela seu pan-hispanismo ao mesmo tempo

41
UNIDADE 1 | ARTE E HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

que despreza o imperialismo e o protestantismo dos EUA. Após a revolução no


Panamá em 1903 que resultou na anexação pelos Estados Unidos de território
para o Canal do Panamá e anexação pelos Estados Unidos de território para
o Canal do Panamá, Theodore Roosevelt anunciou, em 1904, um corolário da
Doutrina Monroe que justificava o uso do exército dos EUA para policiar a
América Latina. Dessa forma, notamos a característica política do modernismo
neste momento, que fez com que inicialmente o latino-americano fosse colocado
em embate com o americano, se tornando uma oposição as políticas do Norte no
hemisfério (OLIVER, 2016).

O movimento modernista foi disseminado fortemente por Rubén Darío


durante sua permanência na Espanha, na Argentina, Chile e Cuba. Nesse
contexto hispânico, o modernismo era de natureza transatlântica, uma vez que
incluía escritores e poetas espanhóis peninsulares, especialmente os membros
da Geração de 98, que também se preocupavam com sua reasignificação latino-
americana. Alguns dos principais modernistas espanhóis foram Rosalía de Castro,
Ramón del Valle Inclán, Antonio Machado e Juan Ramón Jiménez. Podemos
então observar que a literatura tenha sido o meio mais associado ao modernismo
na América espanhola, um movimento multinacional e autoconsciente, e que se
desenvolvia paralelamente a outros movimentos como o naturalismo e realismo.

O modernismo, deliberadamente anti-burguês e anti-imperialista, foi


o primeiro movimento literário a se concentrar no Novo Mundo e anunciou-
se através de rupturas significativas com formas convencionais. Enquanto
recebia influências do parnasianismo e do simbolismo, e muitas vezes rejeitava
conscientemente o naturalismo de Émile Zola, os modernistas procuravam
frequentemente criar um estilo literário único e que mostrasse as realidades
latino-americanas.

Nesse contexto, Théophile Gautier foi uma influência parnasiana


importante que promoveu a ideia de “arte pela arte”, tendo como temas a
exaltação de forma e estilo sobre o conteúdo e um gosto pelas artes decorativas
asiáticas e paisagens exóticas. Como influência francesa, notamos o simbolismo
Stéphane Mallarmé por seu uso da metáfora; Paul Verlaine por seu senso de ritmo
em metro; e Charles Baudelaire e Arthur Rimbaud pelo uso da sinestesia, um
fenômeno no qual um tipo de sensação produz uma sensação subjetiva secundária
(por exemplo, quando se ouve música, se pensa em uma determinada cor).

Dentre os principais modernistas literários da América espanhola


podemos citar os cubanos José Martí e Julián del Casal e o mexicano Manuel
Gutiérez Nájera, o boliviano Ricardo Jaimes Freyre, o mexicano Amado Nervo,
o argentino Leopoldo Lugones e o uruguaio Julio Herrera y Reissig. Além da
poesia e o do conto, vemos surgir o romance latino-americano, especialmente o
romance regionalista. Um dos livros de Martí, Versos Sencillos, foi musicado na
popular canção cubana Guantanamera, que inicia:

42
TÓPICO 3 | O MODERNISMO LATINO-AMERICANO

Yo soy un hombre sincero


De donde crece la palma
Y antes de morir yo quiero
Echar mis versos del alma

Eu sou um homem sincero


De onde cresce a palmeira
E antes de morrer eu quero
Lançar meus versos da alma

Tendências parnasianas como o culto à beleza, uma preocupação com


temas históricos e um foco em períodos anteriores da história foram adotadas
pelos modernistas latino-americanos. Havia uma presença liberal de cores
(especialmente tons de joias), animais exóticos, uma obsessão com a forma,
sentimentos anticlericais e uso liberal de vocabulário relativamente obscuro
nas obras modernistas do período. Como exemplo de conto modernista, temos
em Azul de Darío A Morte da Imperatriz da China. Ao mesmo tempo, periódicos
modernistas começaram a ser publicados no México: La Revista Azul (1894-1896)
e La Revista Moderna (1898-1911).

Apresentada por figuras como Henri Bergson, na filosofia, o modernismo


reagiu contra o positivismo. O pensador e ensaísta uruguaio José Enrique Rodó
é autor de uma obra seminal modernista intitulada Ariel (1900), posteriormente
publicada em várias línguas em mais de 60 edições. Essa obra foi publicada
apenas dois anos após a Guerra Hispano-Americana, quando as memórias se
prolongaram em episódios imperialistas anteriores, como a Guerra Mexicano-
Americana e a anexação do Texas.

Como comentado anteriormente, havia uma forte preocupação com as


ambições norte americanas na América Latina e ao mesmo tempo, um fascínio.
Após 1900, os latino-americanos se empenharam reconstrução de seu continente,
que se perdera sob a influência de políticas econômicas e políticas que ameaçavam
sua soberania.

O mexicano Manuel Álvarez inovou com o modernismo na fotografia.


Ele ficou conhecido por explorar a estética moderna após explorar o cubismo
e todas as possibilidades oferecidas pela abstração. Mesmo que os habitantes
óbvios nem sempre estivessem presentes, suas fotografias geralmente envolviam
o espaço habitado. Seu trabalho foi influente em outras partes da América Latina
por ter proposto uma insistência em uma dimensão ética na fotografia, unindo o
documentário ao poético.

Por sua vez, a arquitetura mexicana pode ser observada nos edifícios e
terrenos da Universidade Nacional Autônoma do México na Cidade do México,
projetada por Carlos Lazo, Enrique Del Moral e Mario Pani, e construída em 1950.

43
UNIDADE 1 | ARTE E HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

Sua arquitetura é famosa por incluir famosos muralistas mexicanos, como Diego
Rivera e David Alfaro Siqueiros. Ao retratar a história da cultura mexicana, o
grande mural em mosaico de pedra natural do arquiteto Juan O'Gorman enfeita
o exterior da biblioteca da universidade e serve como um marco visual na Cidade
do México (OLIVER, 2016).

FIGURA 42 – MURAL DA BIBLIOTECA CENTRAL DA UNAM, JUAN O’GORMAN, MÉXICO

FONTE: <http://1.bp.blogspot.com/-cDWFgLEvxn4/TkxF50jTAuI/AAAAAAAAAC8/KjdVAX5jCcg/
s400/goorman.jpg>. Acesso em: 14 abr. 2019

Nascido em Guadalajara, Luis Barragán foi um dos arquitetos modernistas


mais criativos do México. Seus componentes favoritos de composição eram a luz,
a água, formas geométricas primárias e cores vivas. Embora exposto à obra de Le
Corbusier e à arquitetura paisagista de Ferdinand Bac durante uma viagem à
Exposição das Artes-Decorativas em Paris em 1925, ele somente desenvolveu seu
estilo modernista nos anos 1930 após estabelecer vínculos de amizade com o muralista
mexicano José Clemente Orozco, que se encontrava em exílio em Nova York.

FIGURA 43 – PROJETO ARQUITETÔNICO DE LUIS BARRAGAN, MÉXICO

FONTE: <http://angiehranowsky.com/wp-content/uploads/2015/06/Luis_Barragan_
Mexico_City_0.jpg>. Acesso em: 28 jan. 2020.

44
TÓPICO 3 | O MODERNISMO LATINO-AMERICANO

Uma vez vivendo na Cidade do México, onde a maioria de seus projetos


modernistas foi construída, Barragán não recebeu muita atenção internacional
até o final de sua carreira, quando o Museu de Arte Moderna de Nova York
organizou uma exposição em 1977. Em 1980 ele recebeu o Prêmio Pritzker.

Muitos dos vestígios do modernismo na América espanhola permanecem,


apesar desse movimento formal ter terminado por volta de 1920 devido a morte
de seus praticantes. Muitos dos autores de prosa de ficção do boom dos anos 1960
e 1970, como os famosos Jorge Luís Borges e Gabriel García Márquez, utilizaram
imagens cromáticas, imagens de animais exóticos, histórias elaboradas e formas
não ortodoxas, o que demonstra a forte influência do modernismo na adoção da
valorização autóctone, autoconfiante da cultura latino-americana, e a abertura de
novos caminhos para a expressão artística (OLIVER, 2016).

3 O MODERNISMO NO BRASIL
No Brasil, o modernismo serviu como uma ruptura perante influências
europeias que dominaram as artes no Brasil, e perante a eclosão da Primeira
Guerra Mundial. Considerado o “papa” do modernismo, Mário de Andrade,
concebia o movimento como um estado de espírito rebelde e revolucionário. Se
o modernismo hispano-americano visava primariamente a inovação poética e
literária na tradição latino-americana, o modernismo na América Latina de língua
portuguesa era um tipo essencialmente diferente de movimento.

Em terras brasileiras, o movimento modernista surgiu mais tarde do que


em seus vizinhos latino-americanos (durante 1922-1930) e acrescentou novas
tradições a culturas locais e internacionais antigas e criativas. Após um Século da
independência política em 1822, o modernismo entrou em cena de modo enfático
em fevereiro de 1922, quando intelectuais de vanguarda e artistas comemoraram
a Semana de Arte Moderna no Teatro Municipal de São Paulo.

Através de obras de pintura e escultura, literatura e poesia, os modernistas


brasileiros adaptaram ideias e linguagem que vivenciaram em Paris nos anos 20,
aplicando temas de vanguarda europeus à sua própria arte nativista (OLIVER, 2016).

FIGURA 44 – PÔSTER DA SEMANA DE ARTE MODERNA DE 1922

<https://www.diariodepernambuco.com.br/static/app/noticia_
127983242361/2016/02/11/626480/20160211154238388129o.jpg>. Acesso em: 14 abr. 2019.

45
UNIDADE 1 | ARTE E HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

Através da exposição de pinturas de Anita Malfatti e Tarsila do Amaral,


e leituras de poesia que incluíram deliberadamente o uso experimental e
intencionalmente não gramatical da língua portuguesa, leituras de manifesto e
concertos, a Semana da Arte Moderna tornou-se célebre.

O compositor clássico Heitor Villa-Lobos acrescentou a percussão e a


música folclórica às obras tradicionais. Um resultado aparente do festival foi
retirar a arte da academia e das instituições privilegiadas e aproximá-la de mais
grupos sociais, tudo de maneira mais popular e acessível.

Constituindo-se de figuras-chave associadas ao festival e com o objetivo de


unir uma lacuna percebida entre a metrópole e o meio rural, o Grupo Modernista
dos Cinco foi constituído por Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Menotti da
Picchia, Mário de Andrade e Oswald de Andrade. Outros modernistas brasileiros
influentes incluem os poetas Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade,
os pintores Emiliano di Cavalcanti e Lasar Segall e o ensaísta Sérgio Buarque de
Holanda, autor de estudos-chave da história cultural brasileira como Raízes do
Brasil (1936) e Caminhos e Fronteiras (1957).

Ao combinar a modernidade industrializada de São Paulo com o pitoresco


e exuberante ambiente tropical do subúrbio e do Brasil rural em EFCB e o Morro
da Favela de 1924, Tarsila do Amaral representou o movimento nativista chamado
Pau-Brasil. Emiliano di Cavalcanti, em estilo cubista, exibiu suas obras Samba
(1925) e Cinco Moças de Guaratinguetá (1930) (OLIVER, 2016).

FIGURA 45 – PINTURA CUBISTA CINCO MOÇAS DE GUARATINGUETÁ, DI CAVALCANTI, 1930

FONTE: <https://d3swacfcujrr1g.cloudfront.net/img/uploads/2000/01/011530001019.jpg>.
Acesso em: 14 abr. 2020.

Como observado em Bananal (1927), Lasar Segall mudou do expressionismo


alemão para um estilo cubista. O nacionalismo, por sua vez, se expandiu na arte
brasileira, durante a década de 1920, e o estilo Pau-Brasil, de Tarsila do Amaral,
transformou-se no movimento Antropofagia, no qual os artistas assimilaram
as influências estrangeiras, ao mesmo tempo que mantiveram fortemente uma

46
TÓPICO 3 | O MODERNISMO LATINO-AMERICANO

postura independente e brasileira. Em 1930, a Depressão devastou a indústria


de café do Brasil, e a revolução política de Getúlio Vargas alterou seu clima
político. Tais eventos afetaram o mundo das artes e se combinaram para encerrar
a primeira fase do modernismo.

Na segunda fase do modernismo brasileiro, que ocorreu entre 1931 e


1945, houve um maior interesse pela arte social, mantendo técnicas estilísticas
modernistas. Dois grupos primários de pintores nesse período foram o Grupo
Santa Helena e a Família Artística Paulista. Ambos os grupos enfatizaram a
perfeição da técnica. Cândido Portinari foi o pintor mais conhecido deste período.
Seu modernismo foi influenciado pelo muralismo e pelo cubismo mexicano. Suas
pinturas de trabalhadores incorporaram muitos dos recursos naturais do Brasil,
como café, minerais e algodão (OLIVER, 2016).

FIGURA 46 – O CAFÉ, CÃNDIDO PORTINARI, 1935

FONTE: <http://s2.glbimg.com/ZK4uHeqKDotCRwsSxCZbDtak2Ls=/e.glbimg.com/og/ed/f/
original/2016/10/24/tela_cafe_candido_portinari.jpg>. Acesso em: 28 jan. 2020.

O governo brasileiro encomendou seus murais em prédios públicos e


governamentais. Portinari também pintou murais na Sala de Leitura Hispânica da
Biblioteca do Congresso, em Washington, DC, e no prédio das Nações Unidas, em
Nova York. Em junho de 1931, um grupo de artistas que eram alunos da Escola
Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro formou o Núcleo Bernadelli para nutrir
a expressão artística livre e afastar-se da tradição acadêmica. Entre esses artistas
estavam Bruno Lechowski, Manoel Santiago, José Pancetti, Quirino Campofiorito,
Bustamante Sá, João José Rescala e Milton Dacosta. Embora a produção de pinturas
predominantemente modernistas tenha diminuído por volta de 1945, o acesso a
uma visão geral do movimento estava apenas se tornando possível nessa época.

Museus de arte moderna abriram para o público em geral depois de 1945,


como o Museu de Arte de São Paulo, o Museu de Arte Moderna de São Paulo
e o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Estes reuniram muitas pinturas
que estiveram em coleções particulares e as tornaram acessíveis à população em
geral. Na década de 1950, o modernismo se espalhou pelo Brasil, com exposições
em outras cidades como Ceará, Salvador e Recife. Por sua vez, centros de arte
mais modernos foram estabelecidos.
47
UNIDADE 1 | ARTE E HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

O modernismo representava, no contexto brasileiro, uma ruptura de


posturas voltadas principalmente para a França e ocasionalmente para Portugal
no sentido estético cultural, e muitas vezes envolvia decisões para “canibalizar”
os elementos da estética europeia como o cubismo francês e o futurismo italiano,
no sentido simbólico de digerir e transformar ou adaptar ao contexto brasileiro,
acrescentando alguns componentes nativos africanos, indígenas e rurais, para
criar um novo estilo brasileiro autentico e moderno.

O Manifesto Antropófago do poeta Oswald de Andrade, de 1928,


desenvolveu este conceito de canibalismo cultural. Nessa nova direção, algumas
características salientes do modernismo brasileiro são capturadas dentro de
uma apreciação dos elementos indígenas e negros. Apesar do existente racismo,
havia uma forte insistência na aceitação da diversidade étnica e cultural da
população e o reconhecimento de que elas representavam uma fonte potencial de
enriquecimento cultural.

Contraditoriamente, o modernismo brasileiro manteve componentes


aristocráticos em que havia movimentos cuidadosos e autoconscientes da elite
branca para apropriar e nacionalizar o modernismo, de modo a continuar
controlando o curso dos desenvolvimentos culturais. Para abrandar a distinção entre
tradição e modernismo, e entre o nacional e o cosmopolita, um certo hibridismo
cultural destacava-se como característica modernista. Ao reter certos elementos
do legado colonial do país, bem como adaptar algumas doutrinas europeias sem
serem dominadas por elas, modernistas brasileiros celebraram inovações nativas,
tropicais e pós-coloniais sem cair no nacionalismo (OLIVER, 2016).

A primeira fase do modernismo viu, na literatura, ideologias artísticas e


políticas concorrentes, tendo Oswald de Andrade um representante da esquerda
política. Algumas tendências nacionalistas limitantes, como o “verdemarelismo”,
praticadas pelo romancista e fascista Plínio Salgado e pelo poeta-historiador
Cassiano Ricardo, foram superadas. A poesia visual de Cassiano Ricardo, um
gênero no qual o arranjo tipográfico de palavras em formas transmite significado
tanto quanto componentes poéticos tradicionais como palavras, ritmo e rima,
fazia parte da poesia concreta e tinha, como singularidade, o debate nacional.

Na segunda fase, ao contrário de poetas e pintores, os modernistas eram


em sua maioria romancistas e arquitetos. Canaviais, selva, sertão, plantações de
cacau e gaúchos no Sul tornaram-se características dos romancistas regionais
como José Lins de Rego, Raquel de Queiroz e José Américo de Almeida, que
escreveram romances que retratavam o nordeste do Brasil em declínio devido
à seca, banditismo, fraude eleitoral e outros problemas sociais (OLIVER, 2016).

Entre os romancistas estão Graciliano Ramos, Erico Veríssimo e Jorge


Amado. Amado retratou as subclasses da Bahia em mais de 20 romances como
Jubiabá (1935), A Terra Violenta (1943), Gabriela, Cravo e Canela (1958), Dona Flor e
Seus Dois Maridos (1966), e Tenda dos Milagres (1969). Talvez o romancista mais

48
TÓPICO 3 | O MODERNISMO LATINO-AMERICANO

conceituado do período, no entanto, seja Graciliano Ramos, que foi menos um


escritor regionalista do que um realista psicológico e um inovador estilístico cujos
romances aconteceram no nordeste árido. Muitos de seus melhores romances
estão disponíveis na tradução inglesa, como São Bernardo (1934), Angústia (1936)
e Barren Lives (1938).

Entre os romancistas urbanos destacam-se Dionélio Machado, Lúcio


Cardoso e Érico Veríssimo. Machado foi um psiquiatra que escreveu onze
romances, entre eles Os Ratos (1935), que cobre um dia na vida de um protagonista
da classe média baixa. Crônica da Casa Assassinada (1959), de Cardoso, é um retrato
psicológico da decadência em uma família rica e poderosa. Veríssimo escreveu 16
romances sobre os gaúchos da classe média baixa no Rio Grande do Sul, no sul do
Brasil, como a obra de quatro volumes intitulada O Tempo e o Vento (1949-1961).

Mário de Andrade, por sua vez, encarnava o movimento tão bem porque
praticava em muitas das disciplinas associadas ao modernismo paulistano:
era poeta, romancista, musicólogo, historiador da arte e fotógrafo. Seu ensaio
informativo, O movimento modernista, de Andrade (1942), foi uma reminiscência
e análise da Semana de Arte Modernista vinte anos após o evento, digna de
nota pela valorização da diversidade cultural e racial brasileira (rural, africana
e indígena). Enquanto a Semana da Arte Modernista em 1922 foi crucial para
a explosão modernista da literatura, música e pintura, ela teve pouco efeito
na arquitetura, que chegou ao modernismo mais de uma década depois e foi
encorajada pelo Presidente Getúlio Vargas.

Em 1935, Lúcio Costa aceitou uma comissão para projetar o prédio do


Ministério da Educação e Saúde no Rio de Janeiro. Costa acrescentou a sua equipe
Oscar Niemeyer e Affonso Eduardo Reidy e depois Le Corbusier, que lecionou no
Rio de Janeiro em 1929. O concreto reforçado tornou-se um material de assinatura
da arquitetura modernista curvilínea do Brasil, em parte por seu valor estético de
plasticidade escultural, baixo custo e adaptabilidade aos ambientes tropicais, mas
também porque o aço estrutural tornou-se escasso durante a Segunda Guerra
Mundial (OLIVER, 2016).

Lucio Costa, quando venceu a competição pelo projeto de uma nova


capital do Brasil, Brasília, aproveitou uma oportunidade rara e única. O
Presidente Juscelino Kubitschek havia anunciado a competição em 1955 e
apoiado incondicionalmente o projeto de Costa com fundos ilimitados e uma
ampla liberdade de design. Niemeyer, que não gostava dos ângulos retos e das
linhas retas da arquitetura tradicional, projetou muitos dos prédios públicos e
governamentais, cheios de curvas dobradas de concreto, para a capital. Juntos,
Costa e Niemeyer criaram Brasília na forma de um avião, apresentando duas
avenidas largas e perpendiculares que definem a cidade, plenas de estruturas
modernistas. Talvez a mais impressionante seja a Catedral Metropolitana de
Nossa Senhora Aparecida, que consiste em 18 colunas de concreto em forma de
bumerangue com vitrais entre elas.

49
UNIDADE 1 | ARTE E HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

FIGURA 47 – CATEDRAL METROPOLITANA NOSSA SENHORA APARECIDA, BRASILIA,


OSCAR NIEMEYER, 1960

FONTE: <https://cdn.culturagenial.com/imagens/catedral-de-brasilia-cke.jpg>.
Acesso em: 14 abr. 2020.

Para entrar na catedral, os visitantes descem abaixo do solo e, em seguida,


sobem para o santuário, o que aumenta o efeito da luz que vem através dos vitrais e
atrai o olhar para cima para um efeito dramático. Com fortes tendências tropicais,
a arquitetura modernista tornou-se exclusivamente brasileira. As características
principais são evidenciadas através de componentes funcionalistas, como o
quebra-sol e as paredes feitas totalmente de vidro. A cidade futurista recebeu
atenção internacional e se tornou a obra arquitetônica mais famosa do Brasil.
A influência de Niemeyer nas gerações subsequentes de arquitetos continuou
inabalável ao longo da década de 1950 e na década de 1960.

O movimento modernista contribuiu para um sentimento comum de que


o Brasil é a terra do futuro, onde o amanhã nunca chega, uma nação em que tudo
ainda está para ser feito. O Brasil moderno se propôs a construir sua civilização
hibrida com uma visão futurista, apropriada para o seu contexto histórico, ao
mesmo tempo em que conservava os elementos desejados de seu passado
colonial. Na América espanhola, os modernistas defendiam uma espécie de
pan-hispanismo que abrisse o caminho para os latino-americanos serem latino-
americanos a sua maneira e em seus próprios termos. Inicialmente, os modernistas
hispano-americanos afastaram-se de uma ênfase consciente na identidade latino-
americana e voltaram-se para a imaginação e criatividade dos artistas.

Tanto os modernistas brasileiros quanto seus vizinhos latino-americanos


procuraram conservar elementos valiosos do patrimônio e da tradição e, ao mesmo
tempo, criaram um estilo único que levou em consideração fundamentos autóctones
e definiu um caminho estético para o futuro. Emprestando dos parnasianos e
simbolistas franceses na América espanhola e, no caso brasileiro, “canibalizando”
as contribuições artísticas europeias, tanto os modernistas hispano-americanos
quanto os brasileiros adaptaram essas influências internacionais de maneiras que
se tornaram distintamente latino-americanas (OLIVER, 2016).

50
TÓPICO 3 | O MODERNISMO LATINO-AMERICANO

LEITURA COMPLEMENTAR

ARTE LATINO-AMERICANA: POLÍTICA, HISTÓRIA E ESTÉTICA

Autor: Tom Cummins


Tradução: Brigitte G. Cairus

Como historiador da arte, acho difícil acreditar que possa haver muitos
lugares no mundo hoje onde há mais coisas em jogo sobre a arte do que na
América Latina. De fato, a América Latina, desde seu início em 1492, tem sido
uma região caracterizada pela luta de imagens, sejam elas lícitas ou ilícitas,
próprias ou impróprias, ortodoxas ou heterodoxas, desejadas ou não. Nunca se
pode ficar muito longe da intensidade política, religiosa, econômica e cultural
que circula em torno das imagens, em particular no que diz respeito à sua criação
ou destruição. Colombo, é claro, nunca se convenceu de que o que ele havia visto
era diferente de seu próprio mundo. Mas, mesmo depois da revelação de que
as Américas representavam um mundo novo e, portanto, desconhecido, elas se
tornaram parte do Velho Mundo (a Europa), conhecido por pressagiar e depois
espelhar a grande iconoclastia da reforma da Europa.

Em 1519, pouco mais de um ano e meio antes dos primeiros atos da


iconoclastia protestante em Zurique, Cortés em sua marcha de Veracruz à
Tenochitlan parou no caminho para derrubar e destruir as imagens e esculturas
religiosas mexicanas, de modo a colocar em seu lugar pinturas e esculturas de
Cristo e da Virgem Maria. As ações de Cortés marcaram uma iconoclastia muito
diferente daquela exigida por Ulrico Zuínglio e outros protestantes. Para a
Espanha católica no Novo Mundo pagão, as imagens não eram em si mesmas
um problema, mas sim o que e como representavam o problema. A disputa que
Cortés iniciou no continente estabeleceu um debate decisivo na América Latina,
uma distinção entre o que era uma imagem verídica (cristã) e uma imagem falsa
(satânica), a distinção entre latria e idolatria.

Assim, novas imagens substituíram ou competiram com as antigas,


dando origem a notáveis obras de arte de artistas nativos cujas habilidades foram
comparadas às de Michelangelo e Berruguete pelo cronista soldado Bernal Díaz
del Castillo. Basta olhar para uma pintura feita com filetes de penas sobre madeira,
a Missa de São Gregório, na Cidade do México em 1539, como um presente para o
papa Paulo III, para entender o que Bernal Díaz estava se referindo.

51
UNIDADE 1 | ARTE E HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

A MISSA DE SÃO GREGÓRIO, CIDADE DO MÉXICO, 1539

Aqui observamos os talentos e a arte do México pré-colombiano voltados


para a criação de uma imagem que reconhecia explicitamente a capacidade dos
astecas de reconhecer o mistério fundamental da transubstanciação (a crença de
que o pão e o vinho se transformam no corpo e no sangue de Cristo durante a
missa). De modo análogo podemos apontar para os artistas andinos, treinados
em técnicas europeias, que pintavam retratos dos reis incas que foram enviados
ao rei espanhol Filipe II, e que tiveram suas obras penduradas em uma câmara
real ao lado do grande retrato de Carlos V de Ticiano. Ao mesmo tempo,
pensamos nas fogueiras feitas na praça principal da Cidade do México, a mando
do primeiro bispo da cidade, que consumiram numerosas pinturas astecas feitas
sobre casca de madeira e pele de animal, que retratavam o conhecimento sagrado
e histórico asteca. Ou, a peça inca de ouro do deus sol Inti que foi capturada pelo
sobrinho-neto de Ignácio de Loyola e enviada para a Espanha, onde parece ter
sido derretida, para ajudar talvez a financiar outras guerras mais locais.

INTI EM OURO

Por sua vez, os grandes monumentos de ouro e joias em forma de sol


estavam nos altares ou eram levados em procissão pelas ruas das grandes cidades
barrocas do Peru e do México.

52
TÓPICO 3 | O MODERNISMO LATINO-AMERICANO

Um sentido dessa história, como esboçado anteriormente em anedotas,


é necessário para entender por que a América Latina tem um legado artístico
tão notável e variado, mas conflituoso, um legado que hoje muitas vezes está no
centro da política internacional, da luta étnica, da política pública, da identidade
nacional e repleto de religiosidade. O patrimônio cultural, por exemplo, é uma
questão atual no Peru, Colômbia, México, Guatemala, Bolívia e muitas outras
nações, que frequentemente gira em torno de obras de arte pré-colombianas e
coloniais. O reconhecimento da importância pública para essas obras de arte
representa, no entanto, mais do que apenas uma noção abstrata sobre a guarda
do tesouro nacional no mercado internacional de antiguidades, embora também
seja isso. Basta visitar um sítio arqueológico saqueado para perceber quanta
informação está irremediavelmente perdida como resultado da busca por um
belo pote maia ou uma peça têxtil de Paracas para o mercado, colocando não
apenas o arqueólogo e o colecionador numa situação de conflito, mas também
o historiador. No entanto, as condições econômicas frequentemente colocam os
povos locais em situações em que o saque é um meio crítico de sobrevivência.

TAPEÇARIA DE PARACAS

Obras pré-colombianas e coloniais, no entanto, podem representar algo


muito mais relevante do que apenas uma fonte de renda, e esse valor traz tradições
e crenças locais em conflito com as forças do mercado de arte. Em comunidades
para as quais as imagens têm um lugar honrado de veneração, sua perda não
é apenas sobre patrimônio, uma transgressão da nação. É uma perda de aura
que não pode ser substituída, e tal perda fere gravemente o senso de identidade,
que leva a uma erosão da integridade da própria comunidade local. Lembro-
me de experimentar essa angústia em primeira mão. Eu estava sozinho, sentado
no arquivo do bispo em Cuzco durante o começo da tarde de um dia de verão
andino. Focado na leitura de um documento sobre o comissionamento de uma
pintura do Século XVII, mal dei atenção ao barulho de subir escadas, quando
me dei conta da presença de dois homens que invadiram a sala solicitando ajuda
urgente ao bispo em uma mistura de quéchua e espanhol. Até então eu nunca
havia visto o bispo e não tinha ideia de onde ele estava. A triste história se revelou

53
UNIDADE 1 | ARTE E HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

em palavras de pesar, que a principal pintura da capela da cidade havia sido


roubada (certamente por alguém da própria comunidade) e eles precisavam
relatar sua perda ao bispo, que certamente ajudaria. A pintura protegera a
comunidade, provavelmente durante séculos, muito parecida com a pintura
sobre a qual eu estava lendo, através de sua miraculosa intercessão e agora ela
havia desaparecido. Eles não tinham fotos da obra e só podiam descrever em
termos vagos como era. As chances de recuperação foram pequenas e, de fato,
a pintura nunca mais foi encontrada. A pintura tinha entrado agora em outro
campo de valor, no qual sua aura passou, de longa e venerada patrona de uma
pequena vila andina, para uma pintura original da escola de Cuzco, em alguma
galeria de arte em Lima ou alhures.

Histórias como essa são comuns nos Andes e em outros lugares, mas não
são apenas nas pequenas comunidades onde as obras de arte se encontram no
coração da comunidade. Muitos países latino-americanos modernos abraçaram
seus artistas, pedindo-lhes que articulem visualmente as aspirações, a história e
os sonhos da nação. O México é certamente o exemplo mais importante. Diego
Rivera, José Orozco e David Siqueiros deram ao México um rico acervo de
pinturas murais e a óleo que expressam suas lutas históricas e triunfos.

MURAL DA REVOLUÇÃO MEXICANA DE DIEGO RIVERA

Colocado em edifícios públicos, os murais também expressam uma forte


adesão aos objetivos ideológicos da Revolução Mexicana e do PRI, o Partido
Revolucionário Institucional. A relação entre política, história e estética tem sido,
de fato, uma grande preocupação em toda a arte latino-americana do Século XX,
como crítica, protesto ou afirmação ideológica. Além disso, essa relação não se
manifesta apenas no tipo de realismo implantado pelo muralista mexicano, mas
em muitas formas e estilos diferentes, como no Brasil por Oswald de Andrade e
o movimento Antropofágico, ou no Uruguai, na reformulação de motivos pré-
colombianos andinos por Torres Garcia ou mais recentemente na Colômbia, com
Doris Salcedo e suas recentes peças conceituais assombradas que articulam os
aspectos cotidianos de la Violencia.

54
TÓPICO 3 | O MODERNISMO LATINO-AMERICANO

MANIFESTO ANTROPÓFAGO

A relação entre o estado-nação e o artista nem sempre é fácil, especialmente


quando o estado encomenda uma obra. Muitas vezes, o conflito suscita um
debate público aberto sobre a relação entre o indivíduo e o estado. Lembro-me
muito bem da discussão que surgiu em 1988 em Quito sobre um mural pintado
por Oswaldo Guayasamín (1919-1999), principal artista do Equador. Guayasamín
havia sido contratado para pintar murais nos Palácios do Governo e do Legislativo,
representando a história do Equador desde os tempos pré-colombianos até o
presente. O estilo de pintura de Guayasamín é fortemente influenciado pelos
muralistas mexicanos e por Pablo Picasso, especialmente o trabalho de Picasso
nos anos trinta.

Como Picasso e Rivera, Guayasamín estava intimamente afiliado ao partido


comunista. Muitas das pinturas de Guayasamín lidam tematicamente com as causas
sociais da dor e do sofrimento humano, concentrando-se nos gestos das mãos e dos
rostos para alcançar um estilo expressivo elevado. Pode-se facilmente lembrar a
Guernica de Picasso ao olhar para muitas das pinturas de Guayasamín. Essa filiação
era sabida quando ele foi selecionado para pintar os murais em dois prédios do
governo. Por isso, não foi surpresa que suas composições enfatizassem as lutas
étnicas, de classe, nacionais e internacionais. Um segmento do mural provocou
discussão nacional e descontentamento internacional. Este mostrava uma cabeça
esquelética usando um capacete similar ao capacete alemão da Segunda Guerra
Mundial, com as letras CIA incorporadas à imagem, deixando claro o significado
iconológico da mensagem. Já controversa no Equador, essa imagem se tornou o
centro de uma tempestade política quando foi noticiado que o secretário de Estado
dos Estados Unidos exigiu sua remoção do mural antes de aceitar um convite para
participar da posse de Rodrigo Borja, novo presidente do Equador.

55
UNIDADE 1 | ARTE E HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

MURAL DE OSWALDO GUAYASAMÍN

É evidente que a imagem foi criada com um intuito crítico e que alguns
equatorianos ficaram cativados com ela. Ao mesmo tempo, porém, era difícil
refutar a intervenção da CIA na soberania do Equador, dadas as revelações
de Philip Agee em Inside the Company: Diário da CIA, publicado em 1975. Mas
o que realmente veio a ser o foco do debate não foi tanto o fato polêmico em
si, mas se o Estado, uma vez patrono do artista, devesse agir com censura em
relação à expressão própria daquele artista. Um programa de televisão chamado
Libertad de Expresión ofereceu um debate público sobre a questão, assim como os
editoriais dos jornais. O sentimento geral girou em torno da questão da tolerância
em relação à expressão política, especialmente de visões de oposição, mesmo em
lugares públicos e pagos por verbas públicas.

Como a pintura religiosa da pequena aldeia andina, o mural Guayasamín


tornou-se o centro das atenções do público, definindo em certo sentido aos seus
valores centrais. A decisão final de manter o mural tal qual era não refletiu o fato
de ter obtido aprovação política, mas a ideia de liberdade de expressão através dele
representada. Ora, não sou tão ingênuo a ponto de sugerir que algum momento
utópico da democracia fora alcançado, nem que não houvesse uma necessidade
política que demonstrasse a possibilidade de resistir à pressão dos EUA, mesmo
que fosse simbólica. Mas o que é em parte interessante para mim é como a pintura
e a escultura são centrais aos debates culturais e políticos na América Latina e da
importância do papel que os artistas tiveram e que continuam a ter nestes debates.

NOTA

Tom Cummins é professor associado do Departamento de História da Arte e


diretor do Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Chicago. Ele foi professor
visitante no Departamento de Arte e Arquitetura da Universidade de Harvard em 2000.

FONTE: CUMMINS, T. Latin American Art: Politics, History and Aesthetics. Revista: Harvard Review
of Latin America. 2000. Disponível em: https://revista.drclas.harvard.edu/book/latin-american-art.
Acesso em 26 mar. 2019.

56
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu que:

• Na América Latina de língua espanhola o modernismo ocorreu entre 1880 e 1920


e o no Brasil entre 1922 e 1945. Ambos movimentos modernistas constituíram
rupturas culturais e tiveram forte impacto. O modernismo, na América do Sul,
deixou sua marca através da arte, literatura, arquitetura, fotografia e música.

• Como particularidade do modernismo latino-americano, que recebia


influências do parnasianismo e do simbolismo, podemos salientar a criação de
um estilo literário distinto que mostrasse as realidades latino-americanas.

• Como exemplo da influência do modernismo na arquitetura mexicana,


podemos citar a Universidade Nacional Autônoma do México na Cidade
do México, projetada por Carlos Lazo, Enrique Del Moral e Mario Pani, e
construída em 1950. Esta arquitetura é notável por sua inclusão da arte dos
famosos muralistas mexicanos Diego Rivera e David Alfaro Siqueiros.

• Ao comparar o modernismo hispano-americano com o português-americano,


podemos considerar que o primeiro abrangia primariamente a inovação
poética e literária na forma e na tradição latino-americana, enquanto o segundo
acrescentou novas tradições a culturas locais e internacionais antigas e criativas,
e juntou-se à cultura popular com culturas de alto nível.

• Como destaque da Semana da Arte Moderna de 1922, temos as pinturas de Anita


Malfatti e Tarsila do Amaral, e leituras de poesia que incluíram deliberadamente
o uso experimental e intencionalmente não gramatical da língua portuguesa,
leituras de manifesto e concertos. Já o compositor clássico Heitor Villa-Lobos
acrescentou a percussão e a música folclórica às obras tradicionais.

• Como característica comum do modernismo na América do Sul, tanto para


os modernistas brasileiros quanto seus vizinhos latino-americanos, podemos
enfatizar a conservação dos elementos valiosos do patrimônio e da tradição
e, ao mesmo tempo, a criação de um estilo único que levou em consideração
fundamentos autóctones e definiu um caminho estético para o futuro.

CHAMADA

Ficou alguma dúvida? Construímos uma trilha de aprendizagem


pensando em facilitar sua compreensão. Acesse o QR Code, que levará ao
AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo.

57
AUTOATIVIDADE

1 Compare os movimentos modernistas ocorridos na América hispânica e no


Brasil em termos de periodização histórica, características artísticas gerais
comuns e estilo mestiço.

2 A Semana de Arte Moderna, que ocorreu em São Paulo em 1922, foi tida
como um evento modernista marcante na história da cultura brasileira.
Organizado por um grupo de intelectuais e artistas por ocasião do
Centenário da Independência, o evento estabeleceu o rompimento com
o tradicionalismo cultural associado às correntes literárias e artísticas
anteriores: o parnasianismo, o simbolismo e a arte acadêmica. Com relação
à Semana de Arte Moderna 1922, classifique V para as sentenças verdadeiras
e F para as falsas:

( ) A Semana de 1922 foi organizada em três festivais: pintura e escultura,


literatura e poesia e música.
( ) Muitos dos modernistas brasileiros adaptaram ideias e linguagem
que vivenciaram no México nos anos 20, aplicando temas de arte pré-
colombiana à sua própria arte nativista.
( ) O compositor clássico Heitor Villa-Lobos manteve um repertorio
conservador pautado na música clássica europeia.
( ) A semana de 1922 não aproximou a arte moderna brasileira dos grupos
sociais, mantendo-a como projeto burguês e de elite.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) V – F – F – F.
b) ( ) F – F – V – V.
c) ( ) V – F – V – F.
d) ( ) V– V – F – F.

58
UNIDADE 2

AMÉRICA: HISTÓRIA DAS


MULHERES E GÊNERO
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• compreender a influência das teorias feministas na produção


historiográfica;
• conhecer as causas, os objetivos e as noções de gênero de cada uma das
três ondas do feminismo;
• entender como ocorreu o alargamento das possibilidades teóricas da
historiografia com a legitimidade da história das mulheres como campo de
saber e da constituição do gênero como uma categoria de análise histórica;
• identificar elementos da história das mulheres e das relações de gênero na
América pré-colombiana e na América colonial;
• perceber a influência da introdução das tradições europeias, marcadamente
cristãs, nas organizações sociais das civilizações americanas;
• reconhecer a multiplicidade de vivências femininas na história do
continente americano, especialmente as relacionadas ao trabalho, aos
costumes e à religiosidade;
• compreender a existência de diversas restrições e regulamentações
que buscaram delimitar a participação política, econômica e social das
mulheres na América colonial.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. Ao final de cada tópico, você
encontrará autoatividades que objetivam auxiliar na sua compreensão dos
temas abordados.

TÓPICO 1 – FEMINISMO, GÊNERO E HISTÓRIA DAS MULHERES


TÓPICO 2 – MULHERES INDÍGENAS E EUROPEIAS NA AMÉRICA PRÉ-
COLONIAL E COLONIAL
TÓPICO 3 – MULHERES INDÍGENAS, EUROPEIAS E AFRICANAS NA
AMÉRICA COLONIAL

CHAMADA

Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos


em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá
melhor as informações.

59
60
UNIDADE 2
TÓPICO 1

FEMINISMO, GÊNERO E HISTÓRIA DAS MULHERES

1 INTRODUÇÃO
Caro acadêmico, neste tópico, estudaremos temas relacionados à história das
mulheres e das relações de gênero na América. Para que possamos fazer uma leitura
acurada destes temas, é fundamental que tenhamos, no presente, o conhecimento
das diversas ferramentas teóricas que possibilitam ao historiador, ou ao professor de
História, compreender o seu objeto de estudo. Nesse sentido, o Tópico 1, intitulado
Feminismo, gênero e história das mulheres, abordará a América através da participação
das mulheres nas ondas feministas, no pensamento feminista, e na constituição
do campo de saber da história das mulheres e das relações de gênero. Iniciaremos
os nossos estudos pelo Século XX, para que, nos próximos dois tópicos, possamos
compreender a América pré-colonial e colonial através das lentes das pesquisas
sobre a história das mulheres e das relações de gênero.

No Tópico 2, Mulheres indígenas e europeias na América pré-colonial e


colonial, as relações de gênero serão abordadas através de temas do cotidiano,
como o casamento, o direito as heranças e à propriedade de terras, o trabalho e
a religiosidade. Na sequência deste tópico serão focalizados os primeiros anos
de contato entre europeus e nativos americanos, os relacionamentos, parcerias
e desafetos, bem como as alterações políticas, econômicas e sociais ocorridas no
continente americano. Episódios como a vínculo amoroso entre o conquistador
espanhol Hernán Cortés e a indígena Malinche evidenciam a complexidade das
relações que marcaram a colonização europeia da América. O tópico é finalizado
com a apresentação de elementos referentes às relações de gênero presentes em
povos nativos da América do Norte, sendo eles os hurons-wendats, no Canadá, e
os sioux e cherokees nos Estados Unidos.

O Tópico 3, Mulheres indígenas, europeias e africanas na América colonial, às


relações de gênero na América são acrescidas as questões de etnicidade e da divisão
sexual do trabalho. Abordaremos alguns dos principais aspectos que marcaram a
colonização europeia e, em especial, a vivência das mulheres. Elas serão evidenciadas
ao falarmos sobre o trabalho, com destaque para o efetuado nas regiões das minas
gerais e nos engenhos, na prática da prostituição, no controle sobre seus corpos
e condutas, e nas violências sofridas. O tópico destaca formas de resistência aos
maus tratos e a luta pela alforria de mulheres escravizadas. Por fim, as questões de
gênero serão apresentadas através de dois casos ocorridos na América do Norte.
O primeiro se refere ao banimento da pregadora puritana Anne Hutchinson da
Colônia da Baía de Massachusetts. O segundo, trata das supostas bruxas de Salem.
Esperamos que você aprecie a leitura desta unidade. Bons estudos!

61
UNIDADE 2 | AMÉRICA: HISTÓRIA DAS MULHERES E GÊNERO

2 INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO FEMINISTA


É comum, nas ciências humanas e sociais, que novas teorias sejam criticadas
com base nos modelos até então estabelecidos como dominantes no que se refere à
verdade. Contudo, o nosso contato com a História e com a historiografia evidencia
que as formas de validação e, por vezes, de imposição de verdades, mudam ao
longo da trajetória humana e da sucessão das gerações teóricas (KETZER, 2017).

Nesse sentido, é importante lembrarmos que as teorias do conhecimento,


ou epistemologias, do grego epistéme (ciência) e logos (estudo, discurso), são
constituídas e validadas por pessoas e grupos com uma visão de mundo
compartilhada. Constituir uma epistemologia é, portanto, dar respostas sobre o
que é o conhecimento, como ele pode ser validado, e quais os tipos de conhecimento
possíveis de serem validados (KETZER, 2017).

As etapas para a validação do conhecimento foram apresentadas pelo


método cartesiano, proposto por René Descartes (1596-1650). Nesse método,
o pesquisador busca a verdade na razão, objetivando o progresso científico e
a análise meticulosa da produção de conhecimento. A dúvida, para o método
cartesiano, evitaria que o pesquisador, o ser pensante, ou ainda, o cogito cartesiano,
fosse influenciado por crenças sem fundamento empírico (KETZER, 2017).

Na década de 1970, no interior dos movimentos feministas, inicia-se um


processo de contestação ao modelo hegemônico de teorização do conhecimento.
Em seus estudos, teóricas feministas evidenciam a influência de fatores sociais na
produção do conhecimento, o que, como vimos, romperia com uma das premissas
fundamentais do modelo cartesiano. Desses estudos e questionamentos foram
formulados os princípios da epistemologia social e, com base nesta, surgem as
epistemologias feministas (KETZER, 2017).

Os estudos e os movimentos feministas foram, e continuam sendo,


fundamentais para as lutas das mulheres. A partir dessas formas de entender
o mundo, as teóricas desvelaram o caráter androcêntrico, ou seja, centrado no
homem, das noções de conhecimento, as quais vinculavam as mulheres à natureza
e os homens à cultura (RAGO, 1998).

Surgem novos estudos, com novos objetos e metodologias. A produção


de saberes ganha novas perspectivas. Ocorre a desconstrução e a construção
de conceitos e categorias, assim como a formulação de uma nova linguagem
que contemplasse as experiências femininas. É nesse sentido que são efetuadas
críticas à noção de cultura dominante, centrada apenas na figura do homem como
um modelo universal (RAGO, 1998b).

62
TÓPICO 1 | FEMINISMO, GÊNERO E HISTÓRIA DAS MULHERES

3 AS ONDAS DO FEMINISMO
Historicamente, o pioneirismo nos estudos de gênero está relacionado ao
movimento feminista. No entanto, caro acadêmico, o termo gênero aparecerá nas
pesquisas acadêmicas apenas na segunda onda do feminismo. Por isso, antes de
nos aprofundarmos sobre o termo, ou categoria gênero, é relevante recordarmos
o que são as ondas do feminismo.

3.1 PRIMEIRA ONDA DO FEMINISMO


A primeira onda do feminismo teve início na segunda metade do Século
XIX em países da Europa e nos Estados Unidos. Foi nesse período que surgiu,
no Reino Unido, o primeiro movimento de mulheres organizado em prol de
mudanças sociais e políticas. As sufragistas são símbolo da primeira onda
feminista, principalmente por defenderem o voto feminino. Vale destacar que as
sufragistas também defenderam causas como a inserção das mulheres no mercado
de trabalho, na política, na educação, na ciência, na economia, bem como uma
valorização maior dos afazeres domésticos (LOURO, 1997).

NOTA

Caro acadêmico, as discussões levantadas pelas feministas da primeira onda


estiveram, em grande medida, amparadas em produções e reivindicações de mulheres
que viveram antes do Século XIX. Entre essas produções, podemos citar O livro da cidade
de senhoras (1405), de Cristina de Pisano (1363-1430); A igualdade de homens e mulheres
(1622), de Marie de Gournay (1565-1645); Declaração dos direitos da mulher e da cidadã
(1791), de Olympe de Gouges, pseudônimo de Marie Gouze (1748-1793); Reivindicação dos
direitos da mulher (1792), de Mary Wollstonecraft (1759-1797); e, já no final do Século XIX
e início do Século XX, os escritos de Virginia Woolf (1882-1941) tiveram grande impacto no
pensamento feminista.

FIGURA 1 – SUFRAGISTAS, ESTADOS UNIDOS, 1920

FONTE: <https://a.scpr.org/i/6b451c2db769c0675003152857fc18e6/5389-full.jpg>.
Acesso em: 10 jan. 2020.

63
UNIDADE 2 | AMÉRICA: HISTÓRIA DAS MULHERES E GÊNERO

Por mais abrangente que possa parecer, a primeira onda do feminismo


possuía um modelo de mulher, sendo ele constituído pela mulher branca, de
classe média, da Europa e dos Estados Unidos. Durante a primeira onda do
feminismo, não ocorreu a constituição de uma epistemologia própria, o que fez
com que a defesa das causas fosse limitada às mulheres que estivessem sob o
modelo descrito, sendo inexistente a intensão de expandir as conquistas a todas
as mulheres (LOURO, 1997).

3.2 SEGUNDA ONDA DO FEMINISMO


A segunda onda do feminismo teve início na década de 1960, mais
precisamente após o maio de 1968, com o interesse e com as práticas de mulheres
dispostas a ingressarem tanto na academia, como participar das formulações
teóricas. Nesse cenário, surgem as primeiras discussões envolvendo o conceito
de gênero.

NOTA

Caro acadêmico, a segunda onda do feminismo produziu uma vasta literatura


sobre a condição feminina. Entre os clássicos que influenciaram, ou que foram produzidos
pela segunda onda, estão: O segundo sexo (1949), de Simone Beauvoir, A mística feminina
(1963), de Betty Friedman e Política sexual (1969), de Kate Millett (LOURO, 1997).

A segunda onda teve como alguns de seus temas de teorização a sexualidade


feminina e a maternidade. Temas que receberam destaque após o surgimento da
pílula contraceptiva na segunda metade da década de 1960. Ao publicarem seus
estudos e participarem das discussões, as mulheres dissolveram a hegemonia
masculina nas universidades, ao mesmo tempo que buscaram representatividade
na vida pública e a valorização da vida privada. O reconhecimento entre os
pesquisadores das ciências humanas e sociais, com destaque para a História,
demandou grande esforço para as pesquisadoras, visto que estes eram campos
do saber resistentes a reestruturações paradigmáticas (LOURO, 1997).

Essa segunda onda se estendeu até à década de 1970, e foi composta,


principalmente, por três teorias: o feminismo liberal, o feminismo socialista e o
feminismo radical. Essas teorias defendiam as causas feministas, mas divergiam
quanto às causas da dominação masculina. Para as feministas liberais, a
subordinação das mulheres era causada principalmente pelo sexismo, ou seja, o
preconceito ou a discriminação com base no sexo ou no gênero. Para as feministas
socialistas, apoiadas no marxismo, a subordinação era decorrente da luta de

64
TÓPICO 1 | FEMINISMO, GÊNERO E HISTÓRIA DAS MULHERES

classes. E, para as feministas radicais, a subordinação era causada pela estrutura


patriarcal da reprodução, que percebia as mulheres como seres destinados às
imposições de seu sexo, como a procriação e a amamentação (HARDING, 1993).

E
IMPORTANT

Ao falarmos das causas e bandeiras feministas, é relevante lembrarmos de que


não existe apenas uma agenda a ser defendida pelos movimentos feministas. Em Cuba,
por exemplo, a tradicional dominação masculina não se converteu na principal bandeira
defendida pelas feministas, as quais estiveram mais preocupadas com as reformas sociais
em áreas da saúde, bem-estar e prosperidade. As mulheres cubanas se perceberam como
fundamentais no progresso social (SAMARA, 2001).

Outras teorias provenientes da segunda onda do feminismo foram


o feminismo perspectivista, ou feminist standpoint em inglês, inspirado na
epistemologia marxista, a qual privilegia o ponto de vista das mulheres, e a
epistemologia empirista defendida por Sandra Harding, filósofa e pesquisadora
estadunidense. As novas teorias subvertem categorias e conceitos, desvelando
a suposta neutralidade de teorias totalizantes como o marxismo, o liberalismo,
a hermenêutica, o estruturalismo, o funcionalismo e o desconstrutivismo
(SARDENBERG, 2002; HARDING, 1993).

A análise do discurso de perspectiva foucaultiana passa a ser utilizada em


estudos que evidenciam o caráter social e discursivo de caraterísticas fundantes,
consideradas até então como naturais, a exemplo da interpretação do homem
como ser potente, criador, dominante, vinculado à cultura, e da mulher como
passiva, reprodutora, submissa e ligada aos aspectos naturais (LOURO, 1997).

Os estudos feministas da segunda onda também causaram impacto na


historiografia. Na década de 1970, a corrente historiográfica denominada de
Nova História, correspondente à terceira geração da Escola dos Annales, eleva as
mulheres à condição de sujeitos da História. Nesse momento, a historiografia
se une a campos do saber como a literatura, a antropologia e a psicanálise,
produzindo estudos sobre o cotidiano e o mundo privado, que salientaram
temas como a sexualidade, a bruxaria, a maternidade, a loucura, a prostituição e
os sentimentos (RAGO, 1998b). Nesses estudos, novas fontes históricas passam
a ser privilegiadas, como cartas, diários íntimos, objetos domésticos e pessoais,
fotografias do cotidiano, entre outras (LOURO, 1997).

65
UNIDADE 2 | AMÉRICA: HISTÓRIA DAS MULHERES E GÊNERO

NOTA

Caro acadêmico, atualmente, a maternidade e a criação dos filhos permanecem


sendo entraves à participação política das mulheres? Reflita sobre como são divididas as
atribuições vinculadas à criação dos filhos e sobre o adiamento da gravidez por diversas
mulheres/casais na atualidade.

Próximo do fim dessa segunda onda, as próprias epistemologias e teorias


feministas passam a ser alvo de contestação por uma parcela dos movimentos
feministas. Percebeu-se que, ao renegar o modelo de homem universal fundado
na ciência moderna, muitas teóricas estariam se aproximando da formulação
de um, ou vários padrões de mulher. Como vimos, as afirmações de modelos
rígidos de comportamento foram combatidas desde o início dos movimentos
feministas. Diversas críticas foram desferidas por mulheres negras, moradoras
de periferia, lésbicas, entre outras, visto que as teorias propostas ainda eram, em
grande medida, condizentes com os padrões da mulher branca, de classe média,
ocidental e heterossexual (LOURO, 1997).

Com esses questionamentos em debate, passou-se a defender a ideia de


substituir a categoria mulher pela categoria mulheres, mais abrangente, ou menos
excludente. As reformulações dentro dos movimentos feministas trouxeram à
tona a necessidade de se considerar as experiências masculinas na produção do
conhecimento. Nesse momento, a categoria relacional gênero passa a ser utilizada
por pesquisadoras e pesquisadores que “deixam o olhar exclusivo sobre as
mulheres para examinar as relações de gênero e, em consequência, passam a
incorporar explicitamente em suas análises os homens e a produção social das
masculinidades” (LOURO, 1997, p. 157).

3.3 TERCEIRA ONDA DO FEMINISMO


A terceira onda do feminismo tem início na década de 1990, envolta pelos
impasses da segunda onda, e se estende até os dias atuais. O marco fundante desta
terceira onda é o lançamento do livro Problemas de gênero: feminismo e subversão da
identidade (1990), da filósofa estadunidense Judith Butler. As teóricas da terceira
onda do feminismo buscam a eliminação das categorias mulher e mulheres,
percebidas como totalizantes e não condizentes com a realidade multifacetada
das existências. Inicia-se assim um movimento de aproximação das teóricas
feministas com pesquisadoras e pesquisadores dos estudos de gênero, culturas,
negros, ecológicos, teológicos, do terceiro mundo, da periferia, entre outros
(LOURO, 1997).

66
TÓPICO 1 | FEMINISMO, GÊNERO E HISTÓRIA DAS MULHERES

NOTA

Caro acadêmico, a categoria gênero ganhou destaque na terceira onda


do feminismo. Neste subtópico, falaremos sobre essa categoria e sua utilização pela
historiografia.

A fragmentação das identidades, antes compreendidas como absolutas,


e a atenção às relações de poder, são as bases para as epistemologias e estudos
feministas neste momento (LOURO, 1997). Com relação aos aportes teóricos, as
feministas passaram a utilizar com maior ênfase os estudos de autores críticos do
modernismo e de autores considerados pós-estruturalistas, tais como Friedrich
Nietzsche, Ludwig Wittgenstein, Michel Foucault, Jacques Derrida, Jacques
Lacan, Jean-François Lyotard, Paul Feyerabend, Richard Rorty e Hans-George
Gadamer (HARDING, 1993).

DICAS

Para conhecer mais sobre o pensamento feminista, assista ao vídeo do Café


Filosófico CPFL intitulado Da insubmissão feminista na atualidade – Margareth Rago,
disponível no endereço: https://www.youtube.com/watch?v=gh67t3a9Mjs. A historiadora
Margareth Rago é um dos principais nomes da historiografia brasileira no que se refere aos
estudos sobre história das mulheres e das relações de gênero, bem como na utilização e
reflexão das ferramentas teóricas de Michel Foucault.

Com base nesses teóricos, as feministas evidenciam a instabilidade de


noções como feminino e masculino e homem e mulher, buscando, principalmente
nas formações discursivas, revelar o caráter social dos elementos que constituem
os padrões atuais de gênero. Por entenderem que as noções de poder, e a própria
convivência humana são instáveis, as teóricas feministas rejeitam trabalhar com
estruturas e categorias prontas, bem como compreendem os próprios estudos
como certezas provisórias (LOURO, 1997).

67
UNIDADE 2 | AMÉRICA: HISTÓRIA DAS MULHERES E GÊNERO

ATENCAO

Algumas teóricas feministas apontam para a existência de uma quarta onda


do feminismo. Iniciada por volta do ano de 2012, essa quarta onda tem nas mídias sociais
(Facebook, Twitter, YouTube, Instagram etc.) o principal meio propagador das causas e de
solidariedade entre as mulheres e outros gêneros.

4 HISTÓRIA DAS MULHERES


Acadêmico, quando falamos nas produções historiográficas denominadas
como história das mulheres, estamos nos referindo a um olhar sobre a História
que é herdeiro das lutas feministas. Com o aumento da inserção de mulheres no
mercado de trabalho e nas universidades a partir do final da década de 1960 e,
em maior número a partir da década de 1970, as pesquisas historiográficas, antes
realizadas apenas por homens, passam a ser creditadas também às mulheres.
Essas historiadoras compreendem as mulheres em suas múltiplas existências,
como sujeitos históricos marcados por categorias e conceitos como classe, raça/
etnia, gênero, religião e faixa etária (SOIHET, 1997).

E
IMPORTANT

Acadêmico, sugerimos aqui uma reflexão que tem, em algumas indagações,


o ponto de partida. Na História ensinada em sala de aula, há espaço para as abordagens
que tratam das mulheres em sua complexidade de elementos constitutivos? E os materiais
didáticos, em especial o livro didático, evidenciam a presença das mulheres em diversos
períodos da História? Quando as mulheres aparecem nos livros didáticos, a narrativa
pertence ao texto principal ou a quadros e textos complementares? É comum a abordagem
de temas que privilegiem os ambientes privados e as fontes históricas tradicionalmente
relacionadas às mulheres? As mulheres, quando mencionadas nas aulas de História, as são
devido a excepcionalidade, como é o caso das narrativas sobre as heroínas?

Se pensarmos nas mulheres americanas e, mais especificamente, nas


mulheres latino-americanas, perceberemos a impossibilidade de formular um
padrão de mulher. Isso porque, ao estudarmos as histórias de brasileiras, peruanas,
mexicanas ou guatemaltecas, nos depararemos com fatores que divergem muito
no tempo e no espaço, e conforme a classe, a raça/etnia, a idade, a demografia
e a economia da região, e as relações de gênero que envolvem cada uma das
mulheres do nosso estudo. Sobre esta questão, Samara (2001, p. 192, grifos da
autora) comenta que:

68
TÓPICO 1 | FEMINISMO, GÊNERO E HISTÓRIA DAS MULHERES

[...] é preciso ressaltar que apesar das tradições culturais comuns é


impossível traçar um perfil único para a mulher latino-americana.
Sendo assim, é necessário, nas pesquisas sobre gênero, estar atento
às “diferenças”, tendo, também, sensibilidade para entender as
semelhanças. Um exemplo disso é o próprio feminismo latino-
americano que difere do norte-americano e está atrelado aos conceitos
de feminilidade e maternidade. Além disso, é preciso entender as
condições históricas em que se deu esse movimento na América
Latina, o que gera o contraponto e a diferença.

NOTA

Ao nos depararmos e refletirmos sobre as múltiplas formas de ser mulher,


estaremos nos distanciando da formulação ou disseminação de estereótipos (SAMARA,
2001). Caro acadêmico, esses apontamentos também são válidos para outras configurações
de gênero estabelecidos aos homens.

Embora muitas pesquisas tenham utilizado, e continuem utilizando a


categoria mulher, as teóricas são enfáticas ao afirmar que não existe um modelo
universal de mulher a ser seguido. O que a realidade lhes mostrou foi a pluralidade
nas formas de ser mulher. Para chegar nessa conclusão, as historiadoras pesquisaram
os ambientes nos quais as mulheres estiveram presentes ao longo da história.
Muitos desses ambientes, a exemplo do doméstico, foram invisibilizados pela
historiografia tradicional, mais interessada nos ambientes públicos e nos grandes
feitos e personagens. Decorre dessas escolhas a falsa noção de que, ou as mulheres
não teriam história, ou a história das mulheres seria desinteressante (PERROT, 2007).

E
IMPORTANT

Caro acadêmico, é importante destacar que os estudos historiográficos com


base na categoria relacional gênero não excluíram as produções referentes à história
das mulheres. Gênero e história das mulheres são, desse modo, campos colaborativos. E
estamos destacando os estudos realizados por mulheres pois, nos primeiros anos do campo
história das mulheres, a quase totalidade das pesquisas foram realizadas por mulheres.

69
UNIDADE 2 | AMÉRICA: HISTÓRIA DAS MULHERES E GÊNERO

Na década de 1970, a participação política das mulheres na América


Latina foi objeto de importantes publicações, como as coletâneas Female and Male
in Latin America (Feminino e Masculino na América Latina, em tradução livre, 1973),
da historiadora estadunidense Ann Pescatello, Latin American Women: Historical
Perspectives (Mulheres latino-americanas: perspectivas históricas, em tradução livre, 1978),
da historiadora cubana Asunción Lavrin, e o livro Supermadre: Women in Politics in
Latin America (Supermadre: Mulheres na Política na América Latina, em tradução livre,
1979), da pesquisadora estadunidense Elsa Chaney (SAMARA, 2001).

Nesta mesma década, foram publicadas duas obras que se tornaram
basilares para as pesquisas sobre mulheres e trabalho. O primeiro livro aborda
fundamentalmente o trabalho doméstico não remunerado. Trata-se de Woman's
work: the housewife, past and present (O trabalho da mulher: a dona de casa, passado e
presente, em tradução livre, 1975), da socióloga britânica Ann Oakley. O segundo
livro tem como tema principal o trabalho mal remunerado exercido pelas mulheres
nas indústrias inglesas e francesas entre os anos de 1700 e 1950. Estamos nos
referindo ao livro, amplamente utilizado nas pesquisas sobre o trabalho feminino
na América Latina, intitulado Women, work and family (Mulheres, trabalho e família,
em tradução livre, 1978), das historiadoras estadunidenses Louise A. Tilly e Joan
W. Scott (SAMARA, 2001).

Na década de 1980, novos estudos sobre a história das mulheres buscaram


evidenciar a participação social das mulheres, a resistência à dominação
masculina, capitalista e classista (RAGO, 1995). Nesse cenário, destacam-se as
obras de historiadoras brasileiras, tais como Quotidiano e poder em São Paulo no
Século XIX (1984), de Maria Odila Leite da Silva Dias, Do cabaré ao lar: a utopia
da cidade disciplinar (1985), de Margareth Rago e Condição feminina e formas de
violência: mulheres pobres e ordem urbana (1989), de Rachel Soihet. Diversas outras
historiadoras de renome dedicaram esforços na pesquisa sobre a história das
mulheres a partir desse período, entre elas estão Eni de Mesquita Samara, Laura
de Mello e Souza, Leila Mezan Algranti, Magali Engel, Maria Beatriz Nizza da
Silva, Maria Clementina Pereira Cunha, Martha de Abreu Esteves, Mary Del
Priore e Miriam Moreira Leite.

Próximo do final da década de 1980, muitas historiadoras passam a


integrar os estudos que utilizam o gênero, considerada uma categoria menos
política do que a história das mulheres, percebida como vinculada ao feminismo.
No entanto, os estudos de gênero se mantiveram atentos às produções feministas.
E mesmo muitas das historiadoras que utilizam a categoria gênero se consideram
como teóricas feministas (SCOTT, 1992).

70
TÓPICO 1 | FEMINISMO, GÊNERO E HISTÓRIA DAS MULHERES

5 GÊNERO E HISTÓRIA
Como vimos, foi na transição entre a segunda e a terceira onda do
feminismo que os estudos de gênero passaram a ocupar um lugar de destaque
entre os estudos feministas. É neste período, mais especificamente na segunda
metade da década de 1980, que a categoria gênero encontra considerável
espaço nas pesquisas das ciências humanas e sociais. Por serem áreas ainda
predominantemente masculinas, e amplamente ligadas aos temas tradicionais,
as tentativas iniciais de inserção do gênero nas pesquisas desencadeou uma série
de debates e acarretou filiações e discordâncias. De todo modo, assim como a
utilização das categorias raça/etnia e classe, as perspectivas analíticas centradas
na categoria gênero ampliaram o campo de estudo de diversas ciências humanas
e sociais, com destaque para a História (SOIHET; PEDRO, 2007).

Publicado em dezembro de 1986 no periódico The American Historical


Review, o artigo da historiadora estadunidense Joan Wallach Scott, intitulado
Gender: A Useful Category of Historical Analysis, é considerado pelos historiadores
como indispensável para o entendimento da categoria gênero e para sua inclusão
nas pesquisas históricas. Em 1990, o artigo foi traduzido da versão em francês para
o português, sendo publicado na revista Educação & Realidade com o título Gênero:
uma categoria útil de análise histórica. No ano de 1995, a revista publicou uma nova
tradução, com consulta ao original em inglês. Embora existam outras traduções do
artigo de Joan Scott, é esta versão da revista Educação & Realidade a mais utilizada
por acadêmicos e outros estudiosos brasileiros (SOIHET; PEDRO, 2007).

DICAS

Acadêmico, acesse o link https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/


view/71721/40667 para ler o excelente artigo de Joan Scott, Gênero: uma categoria útil de
análise histórica.

Para Scott (1995), os estudos referentes à história das mulheres, em sua


maioria realizados apenas por mulheres, ainda eram percebidos como uma
história à parte, sem interferência nos grandes temas da historiografia tradicional.
Com base nas feministas estadunidenses, a palavra gênero é percebida como um
marcador social e como atributo que tem, nas relações culturais entre os sexos os
seus fundamentos.

71
UNIDADE 2 | AMÉRICA: HISTÓRIA DAS MULHERES E GÊNERO

Nesse entendimento, as identidades de homem e mulher são socialmente e


discursivamente construídas. Desse modo, para Joan Scott, as identidades binárias,
como homem e mulher, cultura e natureza, razão e sentimento, comumente
vinculadas aos sexos, também poderiam ser criticadas e descontruídas (SCOTT,
1995). Ao teorizar sobre gênero, Scott (1995, p. 86) relata que:

Minha definição de gênero tem duas partes e diversos subconjuntos,


que estão interrelacionados, mas devem ser analiticamente
diferenciados. O núcleo da definição repousa numa conexão integral
entre duas proposições: (1) o gênero é um elemento constitutivo de
relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e
(2) o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de
poder. As mudanças na organização das relações sociais correspondem
sempre a mudanças nas representações do poder, mas a mudança não
é unidirecional.

Entende-se que, para Joan Scott (1995), as mudanças sociais estão vinculadas
às relações de poder, e que essas relações devem ser analisadas historicamente,
em cada contexto, verificando quais os discursos que fundamentam e validam as
diferenciações sociais, entre elas as diferenças de gênero. O gênero ocupa, nessa
configuração, posição de centralidade na produção de saberes amparados nas
diferenças sociais fundamentadas no sexo.

Em seu artigo, Scott apresenta teóricos que passaram a utilizar a noção


de gênero em suas pesquisas. Entre os nomes citados está a historiadora
estadunidense Caroline Bynum, a historiadora canadense-estadunidense Natalie
Davis, a teórica indiana Gayatri Chakravorty Spivak e o filósofo e sociólogo
francês Pierre Bourdieu (SCOTT, 1995).

NOTA

Caro acadêmico, na historiografia, o gênero como categoria de análise histórica


abriu o caminho para uma profusão de pesquisas que ampliaram o saber histórico. Novas
abordagens e olhares revelaram o caráter arbitrário de diversos conceitos e categorias tidas
até então como naturais, como homem e mulher e masculino e feminino. As análises
históricas, com base nas relações de gênero, também desestruturaram, e continuam
desestruturando, as identidades tradicionalmente atribuídas aos sujeitos.

72
TÓPICO 1 | FEMINISMO, GÊNERO E HISTÓRIA DAS MULHERES

DICAS

No capítulo intitulado Gênero,


integrante do livro Novos temas nas aulas de
história, a historiadora Carla Bassanezi Pinsky nos
apresenta possibilidades e reflexões referentes à
utilização da categoria gênero nas aulas de História.
O capítulo também aborda elementos referentes à
utilização do gênero pela historiografia. Vale muito
a pena conferir!

FONTE:  PINSKY, C. B. Gênero. In: PINSKY, C. B.


(Org.). Novos temas nas aulas de história. 2. ed. São FONTE: <http://twixar.me/v5BT>.
Paulo: Contexto, 2009. p. 29-54. Acesso em: 29 jan. 2020.

Os estudos de gênero realizados na América Latina estão inter-relacionados


com os de outros locais do mundo. Historicamente, a tônica desses estudos é a
reivindicação de direitos para grupos que estiveram à margem das decisões e
práticas políticas, econômicas, religiosas, científicas e nos assuntos relacionados
à sexualidade. Ao focalizar os estudos de gênero latino-americanos, pode-se
evidenciar as características próprias da região e que, invariavelmente, diferem do
que é costumeiramente chamado de mundo ocidental. Tanto nas Américas, como
em outras regiões, os estudos de gênero passaram a figurar nas universidades
com maior notoriedade a partir da década de 1970 (DUTRA, BANDEIRA, 2015).

E
IMPORTANT

Academicamente, os estudos de gênero são vinculados às disciplinas das


ciências humanas e sociais. No entanto, na atualidade, proliferam estudos multi, inter e
transdisciplinares que ampliam e reconfiguram diversos campos do saber, como a biologia
e a medicina. Caro acadêmico, para os estudiosos do gênero, ele é compreendido como um
operador semântico que ativa ordenações, classificações e a hierarquização das relações
sociais. Conforme Dutra e Bandeira (2015, p. 2), “o gênero — entendido como conceito,
categoria, instrumento ou ferramenta analítica, estratégia, ideologia etc. — conseguiu
colocar na pauta dos debates acadêmicos questões que evidenciam o carácter antagônico
e assimétrico das relações sociais e humanas”.

73
UNIDADE 2 | AMÉRICA: HISTÓRIA DAS MULHERES E GÊNERO

Vale lembrar que, nos estudos de gênero, com base nos teóricos pós-
estruturalistas, o sujeito é descentralizado, despossuído de uma identidade
universal, tal como o homem do humanismo, que possa ser elevado ao posto
de representante de toda a humanidade, ou de uma parcela dela. Para os pós-
estruturalistas os atributos do homem do humanismo, o mesmo adotado pelo
Iluminismo, não encontravam respaldo na realidade, esta fragmentada e
permeada por múltiplas identidades (RAGO, 1998a).

A própria noção de identidade seria colocada em descrédito pelos pós-


estruturalistas, com destaque para Michel Foucault, os quais, por meio das
análises de elementos discursivos e não discursivos, evidenciaram a necessidade
de se historicizar as identidades e os discursos fundantes que estavam na base
de condutas e nos atributos dos sujeitos pretensamente ligados ao homem do
humanismo, entendido como unitário, racional, androcêntrico, burguês e trans-
histórico, homem este característico do Século XVIII, mas amplamente presente a
partir do Século XIX (RAGO, 1998a).

Esse modelo excluía da história não apenas as mulheres, e sim os homens


de estratos menos privilegiados, tais como os camponeses, operários, artesãos,
entre outros, os quais seriam inseridos nos estudos sobre as masculinidades.
A análise das subjetividades evidenciou que elas são construções históricas,
imersas em relações de poder e naturalizadas, ao invés de naturais ou portadoras
de uma essência. Os próprios papéis sociais deixaram de ser alocados conforme a
pretensão de um destino biológico. A participação de homens e mulheres dentro
da sociedade, da cultura e dos assuntos relacionados à sexualidade receberam
novos enfoques (RAGO, 1998a).

A utilização da categoria gênero em detrimento da nomenclatura história


das mulheres concedeu aos estudos sobre as mulheres certo grau de neutralidade
e cientificidade, visto que era comum que boa parcela da academia considerasse
as pesquisas sobre a história das mulheres realizadas por feministas como
perpassadas por reivindicações (SCOTT, 1995). Em seu renomado artigo, Scott
(1995, p. 75) informa que:

Os livros e artigos de todos os tipos que tinham como tema a história


das mulheres substituíram, nos últimos anos, nos seus títulos o termo
“mulheres” por “gênero”. Em alguns casos, mesmo que essa utilização
se refira vagamente a certos conceitos analíticos, ela visa, de fato,
obter o reconhecimento político deste campo de pesquisas. Nessas
circunstâncias, o uso do termo “gênero” visa sugerir a erudição e a
seriedade de um trabalho, pois “gênero” tem uma conotação mais
objetiva e neutra do que “mulheres”. “Gênero” parece se ajustar à
terminologia científica das ciências sociais, dissociando-se, assim, da
política (supostamente ruidosa) do feminismo. Nessa utilização, o
termo “gênero” não implica necessariamente uma tomada de posição
sobre a desigualdade ou o poder, nem tampouco designa a parte
lesada (e até hoje invisível). Enquanto o termo “história das mulheres”
proclama sua posição política ao afirmar (contrariamente às práticas
habituais) que as mulheres são sujeitos históricos válidos, o termo
“gênero” inclui as mulheres, sem lhes nomear, e parece, assim, não
constituir uma forte ameaça.

74
TÓPICO 1 | FEMINISMO, GÊNERO E HISTÓRIA DAS MULHERES

NOTA

Acadêmico, Joan Scott fala da constituição de uma ameaça com a utilização


do termo história das mulheres. Mas quem ou o que estaria sob ameaça? No contexto da
década de 1980 nos Estados Unidos, e de 1990, no Brasil e em outros países da América
Latina, o prestígio acadêmico das ciências humanas e sociais estava centrado nos estudos
com base em duas categorias de análise: classe e raça/etnia. Desse modo, o que estava
sob ameaça eram os pesquisadores e os estudos que utilizavam estas categorias sem
destacarem a presença das mulheres, ou mesmo sem levarem em conta os aspectos
relacionais presentes na categoria gênero.

A aceitação da categoria de análise gênero, mesmo que atravessada por


discussões, não deve ser entendida como um abandono das pesquisas sobre
a história das mulheres. A proliferação de seminários, revistas cientificas,
monografias, dissertações, teses e livros sobre a história das mulheres atesta, na
atualidade, o interesse pelo campo de estudo. Evidenciando que as mulheres
possuem crenças, simbolismos, maneiras diversas de ver o mundo, bem como
epistemologias — ou teorias do conhecimento — próprias e/ou complementares
aos padrões tradicionais, que buscam formas discursivas, e mesmo uma
linguagem própria que não estaria contemplada nas pesquisas das ciências
humanas e sociais.

E
IMPORTANT

Os estudos históricos com a abordagem de gênero trouxeram à luz uma


diversidade de documentações, um mosaico de pequenas referências esparsas, que vão
desde a legislação repressiva, fontes policiais, ocorrências, processos-crimes, ações de
divórcios, até canções, provérbios, literatura, cronistas, memorialistas e folcloristas, sem
esquecer as correspondências, memórias, manifestos, diários, materiais iconográficos e fontes
eclesiásticas. Os jornais, a documentação oficial, cartorial e censos não são descartados, bem
como a história oral, que vem sendo utilizada intensamente e de maneira inovadora.

FONTE: MATOS, M. I. História das Mulheres e Gênero: usos e perspectivas. In: MELO, H. P.
de et al. (Org.). Olhares feministas. Brasília: Ministério da Educação, 2007. p. 286. Disponível
em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=639-
vol10feministas-pdf&Itemid=30192. Acesso em: 20 dez. 2019.

75
UNIDADE 2 | AMÉRICA: HISTÓRIA DAS MULHERES E GÊNERO

5.1 A CATEGORIA DE ANÁLISE GÊNERO NO BRASIL


No Brasil, a inserção da categoria gênero, e com ela os estudos de gênero,
ocorreu na década de 1990. No início dessa década foi criado um grupo de estudos
pelas teóricas Margareth Rago, Mariza Corrêa, Adriana Piscitelli e Elisabeth Lobo.
Um dos marcos iniciais das discussões foi o seminário Uma Questão de Gênero,
realizado em São Paulo, e que contou com a presença de intelectuais feministas
do Brasil e de outros países. Teóricas como Margareth Rago, Albertina de Oliveira
Costa, Heleieth Saffioti, Elisabeth Lobo, Cristina Bruschini, Celi Pinto, Eleonora
Menicucci de Oliveira, Maria Luiza Heilborn e Eva Blay discutiram novas
abordagens epistemológicas do feminismo (RAGO, 1998a).

Em 1991, diversas dessas teóricas participam da criação do Núcleo de Estudos
de Gênero Pagu, sediado na UNICAMP —- Universidade Estadual de Campinas,
em São Paulo. O nome escolhido para o núcleo de estudos é uma homenagem à
Pagu, pseudônimo de Patrícia Rehder Galvão que, entre outras atividades, foi
militante política e escritora, lançou, em 1933, o livro Parque Industrial utilizando
o pseudônimo Mara Lobo.

DICAS

Caro acadêmico, Parque Industrial, livro


que Pagu assinou como Mara Lobo, é considerado
o primeiro romance proletário da literatura brasileira.
O livro é uma excelente fonte de pesquisa sobre a
condição operária brasileira, em especial a paulistana,
na década de 1930. Boa leitura!

FONTE: GALVÃO, P. Parque Industrial. São Paulo:


Linha A Linha, 2018. 191 p.
FONTE: <http://twixar.me/WZ2T>.
Acesso em: 29 jan. 2020.

O núcleo de estudos foi responsável por organizar palestras, discussões e


seminários que inicialmente discutiram temas relacionados à feminilidade e, com
a presença de teóricas como a antropóloga Suely Koffes e a socióloga Ana Maria
Goldani, iniciaram-se os estudos sobre à masculinidade. O Núcleo de Estudos
de Gênero Pagu é responsável pela publicação da renomada revista acadêmica
Cadernos Pagu. Importante periódico reconhecido internacionalmente, aborda
temas relacionados aos estudos de gênero (RAGO, 1998a).

76
TÓPICO 1 | FEMINISMO, GÊNERO E HISTÓRIA DAS MULHERES

DICAS

Acesse o site da revista Cadernos Pagu pelo endereço https://www.pagu.


unicamp.br/pt-br/cadernos-pagu, e conheça mais sobre as pesquisas realizadas sob as
óticas do feminismo, da história das mulheres e das relações de gênero.

Margareth Rago (1998, p. 89) comenta que o gênero foi definido como a
“construção social e cultural das diferenças sexuais” e que o desconhecimento
sobre esta categoria analítica trouxe desconforto para historiadoras e historiadores.
Contribuiu para esse desconforto o fato de a categoria gênero ser uma categoria
aberta, não delineada, ao contrário de conceitos acabados com o de classe, este
amplamente utilizado pelas teóricas feministas brasileiras. A desconfiança na
categoria de análise histórica gênero não se circunscreveu às Américas. Na França,
a incorporação da categoria gênero encontrou resistência até mesmo entre em
uma parcela considerável de feministas (RAGO, 1998a).

E
IMPORTANT

Nos Estados Unidos, na década de 1990, as discussões entre as perspectivas


dos estudos das relações de gênero e a história das mulheres estavam praticamente
encerradas. Gênero passava a ser a categoria analítica mais utilizada nos estudos sobre as
mulheres/feminilidades e, em decorrência do caráter relacional da categoria, nos incipientes
estudos sobre as masculinidades (RAGO, 1998b). No entanto, caro acadêmico, as categorias,
modelos e discussões não são facilmente descolados de seus contextos originais sem
que ocorram debates sobre sua inclusão em outros contextos. Para o pesquisador, e mais
especificamente o historiador, é fundamental compreender que os saberes produzidos pela
pesquisa devem ser localizados, isto é, precisam partir da própria realidade analisada. Desse
modo, a inserção dos estudos das relações de gênero no Brasil acarretou embates dentro
e fora da academia.

Tanto na América, como na França, a leitura dos textos da historiadora


Joan Scott, evidentemente com ênfase no artigo Gênero: uma categoria útil de
análise histórica (1986), tornou-se essencial para se pensar em abordagens com a
categoria relacional. Por ser uma historiadora prestigiada pelos estudos na área
dos movimentos sociais e do trabalho, Joan Scott encontrou menos resistência
dentro dos meios acadêmicos masculinos quando da publicação de seu artigo
mais popular (RAGO, 1998).

77
UNIDADE 2 | AMÉRICA: HISTÓRIA DAS MULHERES E GÊNERO

No Brasil, a passagem da história das mulheres para os estudos das relações


de gênero ganha forma nas décadas de 1980 e 1990. Teóricos pós-estruturalistas
como Michel Foucault e Jacques Derrida são elevados à base teórica fundamental
das feministas que pesquisam gênero, enquanto as feministas marxistas buscam
integrar o gênero em suas pesquisas com a categoria classe.

NOTA

Caro acadêmico, o feminismo de orientação marxista estava centrado na


existência do sujeito mulher, ou mulheres, isto é, uma identidade compartilhada que
serviria de amálgama para lutas e reivindicações.

A categoria de análise histórica de gênero foi, portanto, amplamente


debatida e teve boa recepção, principalmente entre as teóricas. No Brasil, algumas
das historiadoras que utilizam a categoria gênero em suas pesquisas são: Aurea
Tomatis Petersen, Carla Bassanezi Pinsky, Cleci Eulália Favaro, Cristina Scheibe
Wolff, Joana Maria Pedro, Margareth Rago, Maria Bernardete Ramos Flores,
Maria Izilda Santos de Matos, Maria Odila Leite da Silva Dias, Marlene de Fáveri,
Miriam Pillar Grossi, Rachel Soihet, Roselane Neckel e Tânia Navarro Swain.
Entre os teóricos, destacam-se os estudos de Durval Muniz de Albuquerque Júnior
(SOIHET; PEDRO, 2007). Esses e outros historiadores, ao aderirem à categoria
relacional gênero, passaram a privilegiar novas perspectivas e fontes históricas.

78
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu que:

• Na década de 1970, com um maior número de mulheres ingressando no


mercado de trabalho e nas universidades, ocorre a contestação dos modelos
vigentes de validação do conhecimento.

• As epistemologias feministas buscaram novas formas de conceber a realidade


e os saberes. Formas essas que evidenciassem as existências femininas.

• O feminismo é costumeiramente dividido em três ondas.

• A primeira onda do feminismo teve início na segunda metade do Século XIX


em países da Europa e nos Estados Unidos. As sufragistas foram as principais
representantes desta primeira onda.

• As feministas da primeira onda não se limitaram a reivindicar o voto para as


mulheres. Elas defenderam a inserção das mulheres no mercado de trabalho,
na política, na educação, na ciência, na economia, além da valorização dos
afazeres domésticos.

• A primeira onda do feminismo possuía um modelo de mulher. Esse modelo


era constituído pela mulher branca, de classe média, da Europa ou dos Estados
Unidos.

• A segunda onda do feminismo teve início em meados da década de 1960, e foi


influenciada por maio de 1968 e por autoras como Simone Beauvoir.

• Os principais temas abordados pela segunda onda foram a sexualidade


feminina e a maternidade.

• A segunda onda se estendeu até a década de 1970, tendo como principais


teorias o feminismo liberal, o feminismo socialista e o feminismo radical.

• Teorias como o marxismo, o liberalismo, a hermenêutica, o estruturalismo, o


funcionalismo e o desconstrutivismo são questionadas, ao passo que novas
influências recebem aceitação pelas teóricas feministas.

• Os estudos feministas influenciam a historiografia. Novos temas e fontes se


tornam privilegiados pela pesquisa histórica.

79
• Ao final dessa segunda onda, mulheres negras, moradoras de periferia,
lésbicas, entre outras, passam a criticar a permanência de um modelo de mulher
condizente com os padrões da mulher branca, de classe média, ocidental e
heterossexual.

• As teóricas feministas iniciam a utilização da categoria mulheres em suas


pesquisas.

• No e, no final da segunda onda, surgem os primeiros estudos utilizando o


gênero como categoria de análise.

• A terceira onda do feminismo teve início na década de 1990, e teve como marco
fundante o livro Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade (1990),
da filósofa estadunidense Judith Butler.

• As teóricas da terceira onda buscaram a substituição das categorias mulher e


mulheres.

• As feministas passam a utilizar as teorias de críticos do modernismo, como


Friedrich Nietzsche, e teóricos pós-estruturalistas, a exemplo de Michel
Foucault e Jacques Derrida.

• A história das mulheres é um campo de pesquisa herdeiro das lutas feministas.

• Na década de 1980, diversas pesquisas buscaram evidenciar a participação


histórica das mulheres. Nessa mesma década, muitas historiadoras que
utilizavam a categoria história das mulheres, aderem à categoria gênero.

• O artigo Gênero: uma categoria útil de análise histórica, é indispensável para o


entendimento do gênero na pesquisa histórica.

• A categoria gênero ampliou o campo de estudos de diversas ciências humanas


e sociais, com destaque para a História. No entanto, sua introdução foi
acompanhada por discussões.

• A categoria gênero é útil na análise das relações de poder e dos discursos.

• Os teóricos pós-estruturalistas foram amplamente utilizados nos estudos de


gênero.

• Os teóricos e teóricas de gênero entendem as identidades como discursivamente


construídas. As identidades e os papéis de gênero são passíveis de desconstrução.

80
• Originalmente, gênero foi uma categoria considerada mais neutra do que
mulher, mulheres, ou história das mulheres, percebidas como vinculadas à
politização do feminismo. No entanto, entende-se que história das mulheres e
estudos de gênero são campos complementares.

• História das mulheres e estudos de gênero são campos complementares.

• Um dos principais nomes responsáveis pela introdução da categoria gênero


no Brasil foi a historiadora Margareth Rago, uma das fundadoras do Núcleo de
Estudos de Gênero Pagu.

• Nas décadas de 1980 e 1990, os estudos de gênero na História passam a ser


produzidos em maior número no Brasil.

81
AUTOATIVIDADE

1 A terceira onda do feminismo teve como marco inicial a publicação do livro


Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade (1990), da filósofa
estadunidense Judith Butler. Para grande parte do movimento feminista,
a terceira onda permanece até os dias atuais. No entanto, não há consenso
sobre o tema. Uma parcela dos movimentos feministas defende a ideia
de que já estamos vivendo uma quarta onda. Sobre a terceira onda do
feminismo, analise as sentenças e assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) A terceira onda do feminismo iniciou, em meados do Século XIX, em


países da Europa e nos Estados Unidos.
b) ( ) As teóricas feministas da terceira onda se recusam a trabalhar com
estruturas e categorias prontas, e compreendem os próprios estudos
como certezas provisórias.
c) ( ) A terceira onda do feminismo possuía um modelo de mulher, a saber,
a mulher branca, de classe média, da Europa e dos Estados Unidos.
d) ( ) A terceira onda do feminismo foi dividida em feminismo radical,
feminismo socialista e feminismo liberal.

2 Sobre o caráter relacional da categoria de análise histórica gênero, Scott


(1995, p. 75) comenta que: “o termo ‘gênero’, além de um substituto para o
termo mulheres, é também utilizado para sugerir que qualquer informação
sobre as mulheres é necessariamente informação sobre os homens, que um
implica o estudo do outro. Essa utilização enfatiza o fato de que o mundo
das mulheres faz parte do mundo dos homens, que ele é criado nesse e por
esse mundo masculino. Esse uso rejeita a validade interpretativa da ideia
de esferas separadas e sustenta que estudar as mulheres de maneira isolada
perpetua o mito de que uma esfera, a experiência de um sexo, tenha muito
pouco ou nada a ver com o outro sexo”.

FONTE: SCOTT, J. W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação &


Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 71-99, 1995. jul./dez. Disponível em: https://seer.ufrgs.
br/educacaoerealidade/article/view/71721/40667. Acesso em: 15 dez. 2019.

Sobre a categoria gênero, analise as sentenças a seguir:

I- O artigo de Joan Scott, Gênero: uma categoria útil de análise histórica, é


considerado um dos escritos fundantes do processo de disseminação das
pesquisas sobre gênero na História.
II- Ao contrário do que ocorreu com as categorias raça e classe, a inserção do
gênero nas pesquisas históricas não ampliou o campo de estudos.

82
III- A utilização da categoria gênero pelos historiadores trouxe à tona fontes
até então desconsideradas pela historiografia, como os documentos oficiais
e os ambientes públicos.
IV- No Brasil, a inserção da categoria relacional gênero e dos estudos de
gênero ocorreu nas décadas de 1980 e 1990.

Assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) As alternativas II e III estão corretas.
b) ( ) Apenas a alternativa II está correta.
c) ( ) As alternativas I, III e IV estão corretas.
d) ( ) As alternativas I e IV estão corretas.

83
84
UNIDADE 2 TÓPICO 2

MULHERES INDÍGENAS E EUROPEIAS NA AMÉRICA


PRÉ-COLONIAL E COLONIAL

1 INTRODUÇÃO
Embora os povos originários tenham vivido na América milhares de
anos antes da chegada de Cristóvão Colombo, os registros documentais pré-
colombianos relacionados às mulheres são escassos. Sabemos que, antes do
contato com os europeus, diversas civilizações floresceram e desapareceram na
região que viria a ser chamada de América. Em muitas dessas sociedades era
comum ocorrer a troca ou a adesão a sistemas políticos, econômicos, sociais e
religiosos de outros povos. Algumas cidades-estado desenvolveram culturas
complexas, sendo que, em parte delas, os elementos religiosos motivaram a
construção de grandes edificações de pedra, sendo que parte delas perduram até
os dias atuais (SOCOLOW, 2015).

E
IMPORTANT

Nomenclatura

A expressão genérica povos indígenas refere-se a grupos humanos espalhados


por todo o mundo, e que são bastante diferentes entre si. É apenas o uso corrente da
linguagem que faz com que, em nosso país e em outros, fale-se em povos indígenas, ao
passo que, na Austrália, por exemplo, a forma genérica para designá-los seja aborígine.

Indígena ou aborígine, como ensina o dicionário, quer dizer ‘originário de


determinado país, região ou localidade; nativo’. Aliás, nativos e autóctones são outras
expressões usadas, ao redor do mundo, para denominar esses povos.

FONTE: <https://www.portaldasmissoes.com.br/noticias/view/id/2563/america-e-sua-populacao
-indigena-.html>. Acesso em: 7 jan. 2020.

Neste Tópico 2, abordaremos a história das mulheres e das relações de


gênero nas sociedades pré-colombianas, tais como a maia, a inca e a asteca. Também
serão apresentadas as formas de organização social, cultural, religiosa e de gênero
antes e durante a colonização portuguesa e espanhola. Entre formas de dominação,
resistência e assimilação, mulheres e homens, tanto indígenas como espanhóis,
reconfiguraram o continente europeu nos Séculos XVI, XVII e XVIII. Boa leitura!
85
UNIDADE 2 | AMÉRICA: HISTÓRIA DAS MULHERES E GÊNERO

2 MULHERES NA AMÉRICA PRÉ-COLOMBIANA


Grande parte das informações sobre as mulheres da América pré-
colombiana que chegaram até nós está fragmentada e, normalmente, refere-se
às mulheres da elite. Pesquisas antropológicas revisaram as evidências físicas e,
no caso do México e de regiões da América Central, analisaram estelas e códices
do início do período clássico dos zapotecas (ano 200 a.C. ao 600), dos trezentos
últimos anos do período clássico dos maias (ano 600 ao 900) e do período pós-
clássico dos mixtecas (ano 900 ao 1200). Essas pesquisas sugerem que algumas
mulheres da elite desfrutavam de privilégios, elevado status social, chegando a
governar cidades-estado (SOCOLOW, 2015).

E
IMPORTANT

Códice: termo derivado do latim cauda (‘tronco de árvore’), que identifica um


manuscrito formado de folhas reunidas como um livro, opondo-se, assim, aos manuscritos
sob forma de rolo ou ao cilindro. Os códices bíblicos são particularmente importantes [...].
Outros códices não menos valiosos foram encontrados em vários lugares, inclusive os
procedentes das civilizações pré-colombianas ou os que se situam no período posterior
à conquista espanhola. Muitos desses códices americanos perderam-se, devido à guerra
ou por autodestruição, e, ainda, pela ação dos missionários que, vendo neles objetos
idólatras, não hesitaram em queimá-los. Os códices formam uma documentação das mais
importantes para a memória histórica.

FONTE: AZEVEDO, A. C. do A. Dicionário de nomes, termos e conceitos históricos. 4. ed.


Rio de Janeiro: Lexikon, 2012. 464 p.

Um dos códices mixtecas preservados contém o registro da história de uma


governante que, durante uma peregrinação religiosa, foi ofendida pelo governante
de uma cidade próxima. Ao retornar para sua cidade após a peregrinação, a
governante se vestiu como guerreira, foi até a cidade do governante que a havia
insultado, o capturou e o matou arrancando o coração (SOCOLOW, 2015).

Na sociedade maia, as mulheres foram representadas em diversos glifos,


nos quais elas são apresentadas executando atividades do cotidiano. As mulheres
aparecem também nos glifos-emblemas, uma espécie de título de realeza. A
Figura 2 corresponde ao glifo-emblema de Yohl Ik'na, rainha de Palenque, cidade-
estado maia que esteve localizada nas terras ao sul do atual México. Yohl Ik'na é
considerada a primeira mulher governante da história maia (SOCOLOW, 2015).

86
TÓPICO 2 | MULHERES INDÍGENAS E EUROPEIAS NA AMÉRICA PRÉ-COLONIAL E COLONIAL

FIGURA 2 – GLIFO-EMBLEMA DA RAINHA YOHL IK'NAL

FONTE: <https://en.wikipedia.org/wiki/Yohl_Ik%CA%BCnal#/media/File:Yohl_Ik'nal.svg>.
Acesso em: 24 nov. 2019.

Na cultura moche, que perdurou entre os anos 100 a.C. e 800 nos territórios
do norte do atual Peru, as mulheres aparecem, embora raramente, retratadas em
pinturas na cerâmica. Nessas pinturas, as mulheres são representadas tecendo ou
praticando relações sexuais (SOCOLOW, 2015).

2.1 CASAMENTO
Em outras evidências materiais, pode-se constatar que a presença feminina
no poder, e mesmo em funções militares, foi importante para a manutenção de
alianças dinásticas e para a criação de linhagens reais. Na sociedade maia, assim
como nas sociedades inca e asteca, era comum que líderes políticos casassem suas
filhas com governantes de outras cidades-estado. Desse modo, nessas sociedades,
o casamento dos membros das elites políticas esteve mais ligado ao poder do que
à sentimentos amorosos (SOCOLOW, 2015; FAVRE, 2004).

Embora com percepções diferentes, a questão do casamento foi central


em todas as civilizações pré-colombianas. Diversas regras foram formuladas
para definir com quem uma pessoa poderia ou não se casar. Na sociedade maia,
por exemplo, era proibido o casamento entre parentes. Já os astecas realizavam
o casamento endogâmico e o exogâmico, isto é, casavam-se com pessoas de seu
grupo de parentes, bem como de fora dele (SOCOLOW, 2015).

Para a grande maioria das civilizações pré-colombianas, após a puberdade,


as mulheres deveriam se casar. Na sociedade asteca, por exemplo, cerca de 95%
das mulheres eram casadas. Como nessa sociedade o número de filhos gerados
atribuía prestígio aos pais, com destaque para as mães, algumas meninas se
casavam aos dez anos, sendo mais comum o casamento próximo aos 16 anos de
idade (SOCOLOW, 2015).

87
UNIDADE 2 | AMÉRICA: HISTÓRIA DAS MULHERES E GÊNERO

A poligamia também foi um traço marcante destas sociedades. No entanto,


somente aos homens da elite eram permitidos os relacionamentos poligâmicos
(FRAVRE, 2004). Entre os incas e astecas, os homens nobres e governantes
poderiam ter mais do que uma esposa. Para os maias, essa condição estava
reservada ao rei. Mas era permitido que os homens da elite maia tivessem, além
de suas esposas, diversas concubinas. Em sociedades guerreiras como as citadas,
a poligamia era vista como uma forma de manter a população em crescimento e,
principalmente, um número elevado de guerreiros disponíveis. Nesse cenário,
tem-se a formulação de dois padrões sexuais dominantes. Um que vincula os
homens à poligamia e outro que liga as mulheres à monogamia (SOCOLOW,
2015; SOUSTELLE, 2002).

Na sociedade asteca, as leis que regulavam as práticas sexuais eram muito


mais duras para com as mulheres. Por exemplo, a punição para uma mulher
que cometesse o adultério era a morte. Para esse povo, o adultério feminino era
considerado uma das piores ofensas. As mulheres também poderiam receber a
pena de morte caso abortassem. Do mesmo modo, a homossexualidade, feminina
e masculina, era punida com a morte entre os astecas (SOCOLOW, 2015).

DICAS

Caro acadêmico, o casamento entre os


astecas é tematizado no livro A civilização asteca, do
antropólogo francês Jacques Soustelle. A obra é uma
excelente introdução a diversos aspectos deste povo,
abordando as origens, a constituição da sociedade
e dos governos, a vida cotidiana, a religião, as artes,
a literatura e a queda do Império após os embates
contra Hernán Cortés, seus soldados e aliados.

FONTE: SOUSTELLE, J. A civilização asteca. Rio


de Janeiro: Zahar, 2002. 104 p. (Civilizações Pré- FONTE: <http://twixar.me/HSBT>.
Colombianas). Acesso em: 29 jan. 2020.

No interior de sociedades guerreiras, como as pré-colombianas, a


expectativa de vida de um homem era de apenas 34 anos. Como resultado da
poligamia, e das constantes mortes de homens em guerras e em longas viagens, o
número de viúvas nessas sociedades era significativamente alto. Algumas dessas
sociedades, a exemplo da asteca, prestaram algum tipo de assistência às mulheres
viúvas, lhes provendo o mínimo para a sobrevivência. No quadro geral, as viúvas
buscaram amparo passando a viver com algum homem da família (SOCOLOW,
2015), ou se casando com algum irmão do marido falecido (SOUSTELLE, 2002).

88
TÓPICO 2 | MULHERES INDÍGENAS E EUROPEIAS NA AMÉRICA PRÉ-COLONIAL E COLONIAL

DICAS

Filme: Apocalypto

Nas guerras, os povos conquistadores
capturavam homens e mulheres, os quais serviriam
de sacrifício ou seriam expostos e vendidos como
escravos nas principais cidades pré-colombianas.
No filme Apocalypto (2006), uma narrativa situada
em um período muito próximo à chegada dos
espanhóis à América, são apresentados esses e
outros elementos da civilização maia.

FONTE: APOCALYPTO. Direção de Mel Gibson.


Roteiro: Mel Gibson, Farhad Safinia. EUA: Touchstone
Pictures, Icon Productions, 2006. (138 min.), DVD, FONTE: <http://twixar.me/fXBT>.
son., color. Legendado/Dublado. Acesso em: 29 jan. 2020.

As mulheres costumavam ter uma vida mais longa caso sobrevivessem ao


ciclo das inúmeras gravidezes e partos. Com base nos relatos dos espanhóis, muitos
acreditavam que as mulheres idosas possuíam poderes sobrenaturais, como o de
falar com os demônios. Porém, a vinculação dessas mulheres à bruxaria poderia ter
como fundamento as noções europeias de religiosidade (SOCOLOW, 2015).

2.2 HERANÇAS E PROPRIEDADES


A questão da propriedade e da herança de terras nessas sociedades
também estava estritamente vinculada aos homens. Embora variasse no tempo e
no espaço, a propriedade da terra era comumente baseada na linhagem masculina.
Na sociedade maia, as mulheres poderiam manter a posse e herdar objetos e
animais domésticos, colmeias e peças de vestuário. Nas sociedades andinas, uma
mulher poderia requerer o uso de uma terra comum se a sua mãe já a tivesse
recebido (SOCOLOW, 2015).

Na sociedade asteca, terras, residências e outras propriedades poderiam


ser herdadas tanto por homens, como por mulheres. Porém, as propriedades
herdadas por uma mulher seriam protegidas e administradas por um irmão, ou
outro membro mais velho da família. Entre as mulheres nobres, a posse da terra
poderia ser concedida na forma de dote, mas este era transferido ao seu marido,
que se tornava, a partir de então, responsável pela terra (SOCOLOW, 2015).

89
UNIDADE 2 | AMÉRICA: HISTÓRIA DAS MULHERES E GÊNERO

2.3 TRABALHO
A divisão sexual do trabalho é uma das constantes em todas as sociedades
pré-colombianas. A definição de quais trabalhos podem ser realizados por
homens, e quais podem ser realizados por mulheres variaram de sociedade
para sociedade. Um exemplo dessa variação pode ser encontrado nos afazeres
relacionados à agricultura (SOCOLOW, 2015).

As mulheres maias estiveram afastadas da agricultura, enquanto as


mulheres incas auxiliavam na preparação das terras, no plantio e na colheita,
mas não aravam o solo. Com base na divisão sexual do trabalho, as atividades
realizadas pelas mulheres eram percebidas como menos importantes, cabendo
aos homens a execução das atividades de maior prestígio social, como caçar e
realizar guerras (SOCOLOW, 2015).

Para as sociedades pré-colombianas, o trabalho pesado esteve fortemente


associado às mulheres, assim como o trabalho doméstico, a realização de
partos, o cuidado dos filhos, a fiação e a tecelagem. Fiar e tecer eram atividades
importantes, sendo que, confeccionar roupas para a família era uma promessa
que muitas mulheres faziam ao se casarem (SOCOLOW, 2015).

No âmbito religioso, o trabalho das tecelãs podia ser visto nos adornos
e vestimentas dos sacerdotes e nas tapeçarias que decoravam as paredes dos
templos. Os tecidos também constituíram uma forma de pagamento de impostos
ao Estado asteca. Estima-se em três milhões o número de peças de tecido
requeridas pelo Estado em um ano (SOCOLOW, 2015).

2.4 RELIGIOSIDADE
Assim como na divisão sexual do trabalho, na política e na guerra, a
participação das mulheres nos assuntos ligados à religião era secundária. O caso
mais conhecido que envolve as mulheres às práticas religiosas é o das Virgens do
Sol, também chamadas de as escolhidas (acllas, em quéchua) (SOCOLOW, 2015).

Recrutadas com cerca de oito a dez anos de idade, as meninas incas


eram enviadas ao acllahuasi, uma espécie de convento, onde aprendiam diversas
atividades, como a tecelagem e a produção da chicha, uma bebida fermentada a
base de milho que era consumida pela nobreza. A escolha das virgens era realizada
apenas por homens e, embora fosse uma honra ser escolhida, as mulheres
passariam o restante de suas vidas sob constante vigilância (SOCOLOW, 2015;
FAVRE, 2004).

90
TÓPICO 2 | MULHERES INDÍGENAS E EUROPEIAS NA AMÉRICA PRÉ-COLONIAL E COLONIAL

O futuro de cada uma das escolhidas era demarcado conforme


sua beleza física e posição social de origem. As mais bonitas estavam destinadas
a serem esposas secundárias do imperador Inca. Outras, bem-nascidas, seriam
oferecidas em casamentos, consolidando alianças com povos que fossem de
interesse do Império Inca. Já as escolhidas de origem nobre poderiam dedicar a
vida às questões religiosas, tornando-se esposas virgens do Sol, ou acllas do Deus
Sol, também chamado de Inti (SOCOLOW, 2015; FAVRE, 2004).

DICAS

As acllas foram tema de diversas crônicas escritas por espanhóis que chegaram
ao continente americano no Século XVI. No artigo As sacerdotisas do sol: imagens sagradas
e profanas do feminino nas crônicas espanholas do Século XVI, a historiadora Susane
Rodrigues de Oliveira analisa as representações de gênero e de religiosidade, bem como as
concepções de civilização e barbárie em três crônicas. Os autores dessas crônicas são: um
missionário jesuíta, um funcionário da coroa e um frei mercedário. Boa leitura!

FONTE: <http://www.scielo.br/pdf/cpa/n19/n19a07.pdf>. Acesso em: 26 dez. 2019.

Para as escolhidas de origem humilde, e que fossem fisicamente


desinteressantes, restava a posição de servas, podendo também, e não raramente,
tornarem-se vítimas de sacrifícios religiosos. A pena de morte também era
atribuída às mulheres que descumprissem a obrigação de permanecerem virgens
no período em que estivessem no acllahuasi (SOCOLOW, 2015). Conforme aponta
Oliveira (2002, p. 150, grifos do original):

Essa hierarquia, pautada nos critérios de beleza, nobreza e castidade


entre as acllas, está em consonância com a estabelecida entre os deuses.
As “escolhidas” que serviam ao Sol - divindade suprema - eram
investidas de características sagradas, detinham poderes e privilégios,
sendo, por isso, frequentemente reverenciadas por toda a sociedade.
Aquelas associadas aos cultos de divindades menores do panteão
estavam sujeitas à destituição de seu caráter sagrado, podendo, por
mandato do Inca, se tornar suas esposas ou de outros homens. Trata-
se de uma estruturação e de direcionamentos prescritos para estas
mulheres presididos por conceitos de gênero, posição social, idade,
parentesco, origem familiar, beleza física, sexualidade e moralidade,
instituidores das identidades prescritas para as acllas, que as
distinguiam das demais mulheres do Império.

Outro aspecto que vinculava as mulheres à religiosidade na América pré-


colombiana é a existência de diversas divindades femininas. Presentes em toda a
região, essas divindades normalmente estiveram ligadas a atividades e assuntos
considerados femininos, como a fertilidade, a maternidade, a sexualidade, o
erotismo e os afazeres domésticos (SOCOLOW, 2015).

91
UNIDADE 2 | AMÉRICA: HISTÓRIA DAS MULHERES E GÊNERO

Os temas da maternidade e da fertilidade eram tão relevantes ao ponto de


a principal divindade feminina para muitas civilizações ser uma deusa-mãe, ou
Mãe Terra, em alusão à fertilidade e à produção de alimentos provida pela terra.
Essas divindades eram muito cultuadas pelas mulheres em geral e, em casos mais
específicos, por sacerdotisas (SOCOLOW, 2015).

Para os maias, Ixchel era a deusa da lua, da medicina, dos partos, da fiação
e da tecelagem. Nas civilizações andinas, com destaque para a inca, as mulheres
eram descendentes de uma divindade feminina, e vários dos seres sagrados eram
do sexo feminino. A Mãe Terra, entre esses povos, era Pacha Mama ou Pachamama
(SOCOLOW, 2015).

Entre os astecas, as divindades femininas eram relacionadas ao sal, ao


agave, à terra, à água e ao fogo. Chicomecóatl (Sete-serpentes ou Deusa das Sete
Espigas) era a principal deusa do milho, e Coatlicue (Saia de Serpente), protetora
dos floristas, era a deusa asteca da terra, simbolizando a criação e a destruição. Mãe
de deuses e humanos, foi também a deusa das dualidades, como bem representa
seu rosto constituído por duas serpentes com presas (Figura 3) (SOCOLOW, 2015;
SOUSTELLE, 2002).

FIGURA 3 – DEUSA ASTECA COATLICUE­– MUSEU NACIONAL DE ANTROPOLOGIA, MÉXICO

FONTE: <https://cdn.britannica.com/s:700x500/00/155700-050-92D0DBD7/Coatlicue-stone-
sculpture-National-Museum-of-Anthropology.jpg>. Acesso em: 26 dez. 2019.

Caro acadêmico, vimos que são escassos os registros sobre a presença


feminina e os papéis sociais desempenhados pelas mulheres na América Central
e do Norte no período pré-colombiano. Na América do Sul, a quantidade de
registros é ainda menor. O principal fator para esta ausência é a inexistência
de sistemas de escrita pelos povos da região (SOCOLOW, 2015). Acrescenta-
se a este ponto, o fato de que a maior parte das informações que chegaram até
os dias atuais sobre os povos originários da América do Sul foram registradas
por observadores europeus, podendo, deste modo, carregar os estereótipos
produzidos pela sociedade europeia.

92
TÓPICO 2 | MULHERES INDÍGENAS E EUROPEIAS NA AMÉRICA PRÉ-COLONIAL E COLONIAL

3 COLONIZAÇÃO E GÊNERO
Após a descoberta da América pelo navegador genovês Cristóvão
Colombo (1452-1516), em 12 de outubro de 1492, e com a divisão entre
portugueses e espanhóis dos territórios pelo Tratado de Tordesilhas (7 de
junho de 1494), a presença europeia na região nos séculos seguintes pode
ser compreendida através da sua divisão em dois períodos: colonialismo e
imperialismo. Ambos os períodos têm como marca a interferência estrangeira
no território e, evidentemente, na vida dos povos que, na visão colonialista,
foram denominados de pré-colombianos e americanos.

E
IMPORTANT

Vale ressaltar, caro acadêmico, que, com base na historiografia tradicional,


Colombo, ao chegar ao território da atual América, não julgou se tratar de um novo
continente. Essa constatação seria realizada pelo navegador italiano Américo Vespúcio
(1454-1512) em 1501, quando, ao navegar a serviço da coroa portuguesa de D. Manuel I
(1469-1521), afirmou que as terras que avistara não poderiam pertencer à costa indiana,
como se supunha até então. Um novo continente era descoberto pelos europeus. O nome
América é, portanto, uma homenagem àquele que primeiramente considerou os territórios
encontrados pelos europeus como um novo continente

A expansão e o domínio dos europeus não se circunscreveram ao


continente americano. Pouco depois da chegada no novo continente, as expedições
continuaram a demarcar terras para suas coroas na Ásia, principalmente no Sul e
no Sudeste, na África e na Oceania. A dominação estrangeira nesses continentes
tinha como principais propósitos os fatores econômicos (STEARNS, 2012).

O relacionamento entre os colonizadores vindos da metrópole e os


nativos das colônias foi marcado pelos contrastes de tradições, costumes, crenças,
organizações sociais, papéis sociais e por diferenças quanto à sexualidade
(STEARNS, 2012). Em seu livro História das relações de gênero, o historiador Peter
N. Stearns (2012, p. 103) comenta que “os europeus tinham visões bem definidas
sobre o que era certo e errado com respeito a gênero, e não se intimidavam em
julgar os outros ou insistir em mudanças”.

Os conquistadores espanhóis, por exemplo, após uma vitória, exigiam


como espólio de guerra, além de mercadorias e alimentos, mulheres dos povos
vencidos. Outra prática realizada pelos espanhóis era focalizar a conversão nos
homens, como ocorreu com os astecas. Essa prioridade estava centrada na ideia
de que, após a conversão do homem, ele comandaria a conversão das mulheres a
ele subordinadas (STEARNS, 2012).

93
UNIDADE 2 | AMÉRICA: HISTÓRIA DAS MULHERES E GÊNERO

DICAS

No livro A conquista da América: a


questão do outro, Tzvetan Todorov nos apresenta
as impressões que os primeiros europeus tiveram ao
chegar na América. Temas abordados nesta unidade,
como a sexualidade, o contato dos espanhóis com
Montezuma II, a escravidão, o colonialismo, entre
outros, fazem parte desta importante obra sobre o
período.

FONTE: TODOROV, T. A conquista da América: a


questão do outro. 2. ed. Trad. de Beatriz Perrone- FONTE: <http://twixar.me/xXBT>.
Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2019. 400 p. Acesso em: 29 jan. 2020.

3.1 OS PRIMEIROS ANOS DE COLONIZAÇÃO


O início da conquista da América pelos europeus foi um período de extrema
violência, alterações sociais profundas, redução demográfica dos povos originários,
devido a guerras ou por doenças, como a varíola e a gripe. Em algumas regiões, a
redução no número de indígenas chegou a 90% da população anterior à chegada dos
europeus. O mundo dos povos originários foi fragmentado e reelaborado conforme
os interesses dos conquistadores. Caro acadêmico, vale destacar que os indígenas
resistiram à dominação europeia de diversas formas e, entre os europeus, ocorreram
assimilações de elementos das culturas locais (SOCOLOW, 2015).

NOTA

Acadêmico, é comum que, ao entrarmos em contato com a história das


indígenas, nos deparemos com diversas noções estereotipadas. Leia a passagem a seguir e
perceba a ênfase dada por Gilberto Freyre a aspectos como a sexualidade e a sensualidade
das indígenas.

“O ambiente em que começou a vida brasileira foi de quase intoxicação sexual. O


europeu saltava em terra escorregando em índia nua; os próprios padres da Companhia
precisavam descer com cuidado, senão atolavam o pé em carne. Muitos clérigos, dos outros,
deixaram-se contaminar pela devassidão. As mulheres eram as primeiras a se entregarem
aos brancos, as mais ardentes indo esfregar-se nas pernas desses que supunham deuses.
Davam-se ao europeu por um pente ou um caco de espelho” (FREYRE, 2003, p. 161).

94
TÓPICO 2 | MULHERES INDÍGENAS E EUROPEIAS NA AMÉRICA PRÉ-COLONIAL E COLONIAL

Por não possuírem legitimidade para participar das guerras, as mulheres


morreram em um número menor do que os homens, no entanto, elas foram as que
mais sentiram os efeitos da colonização imposta pelos europeus. Muitas foram
escravizadas, enquanto outras buscaram a integração nas comunidades europeias
que se instalavam na região. Resultante dessas assimilações, as mudanças nos
papéis sociais das mulheres foram acompanhas por alterações na religião, nos
hábitos e nos costumes dos povos originários, com maior impacto para a primeira
geração que teve contato com os europeus (SOCOLOW, 2015).

Nos primeiros anos de colonização, um número reduzido de mulheres


europeias veio para a América. Nas décadas seguintes, o número de mulheres
que imigraram aumentou, sendo que, por volta da metade do Século XVI, o
embarque de mulheres espanholas correspondeu a um quarto do total. Mesmo
com este acréscimo, “as mulheres espanholas sempre foram [...] muito mais
escassas do que os homens de sua estirpe na América” (SÁNCHEZ-ALBORNOZ,
1990, tradução nossa).

A falta de mulheres europeias não produziu nos homens europeus o


entendimento de que a viagem para o Novo Mundo seria uma experiência
celibatária. E de fato não foi, visto que, em lugares tão distintos quanto as ilhas do
Caribe, o México asteca, o Peru inca, ou o Brasil, as mulheres indígenas passaram
a ser percebidas como parceiras sexuais. Espancadas, abusadas e estupradas,
as mulheres buscaram formas de se defender da lascívia europeia. Até mesmo
Cristóvão Colombo, que, em 1492, escreveu sobre a beleza das mulheres indígenas,
pouco tempo depois relatava que as mulheres faziam de tudo para fugir da vista
dos espanhóis, os quais, ao buscarem batizar as mulheres indígenas, muitas vezes
estiveram mais interessados na possibilidade de obter acesso aos prazeres carnais
sem a oposição da Igreja, do que na propagação do cristianismo (SOCOLOW,
2015; PRADO; PELLEGRINO, 2016).

DICAS

Baseado no livro homônimo de Ana Miranda, o filme Desmundo narra a


história das órfãs portuguesas que, em 1570, foram enviadas ao Brasil para se casarem com
os colonizadores. Sob o apoio da Igreja, o Estado português pretendia que os colonos
tivessem casamentos ‘brancos e cristãos’ reduzindo, assim, o nascimento de crianças
mestiças oriundas das relações com índias e negras.

Oribela é uma destas órfãs. Após ser obrigada a se casar e viver um cotidiano
de violência doméstica em um engenho de açúcar, Oribela decide fugir. Durante a sua
fuga são apresentados novos personagens e temas relevantes da história do Brasil colonial.
Alguns dos temas são: a religiosidade no Brasil da época, a situação das mulheres em
Portugal e na colônia americana no Século XVI, o matrimônio, o cotidiano do período no
Brasil, o relacionamento entre indígenas e europeus, entre outros.

95
UNIDADE 2 | AMÉRICA: HISTÓRIA DAS MULHERES E GÊNERO

FONTE: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/pt/5/5c/Desmundo_%282002%29
_Film_Poster.jpg>. Acesso em: 29 jan. 2020.

DESMUNDO. Direção de Alain Fresnot. Intérpretes: Simone Spoladore, Osmar Prado, Caco
Ciocler. Roteiro: Sabina Anzuategui, Anna Muylaert, Alain Fresnot. Música: John Neschling.
Brasil: Columbia Pictures do Brasil, 2003. (100 min.), DVD, son., color.

FONTE: DOMINGUES, J. E. Desmundo, o Brasil do séc. XVI. 2015. Disponível em: https://


ensinarhistoriajoelza.com.br/desmundo-o-brasil-do-sec-xvi/. Acesso em: 8 jan. 2020.

3.2 MAIAS E COLONIZADORES ESPANHÓIS


O contato com os espanhóis foi sentido de forma intensa pelo povo maia,
que vivia nos territórios das atuais Guatemala e Península de Iucatã. Para os maias,
as mulheres eram consideradas como inferiores, tendo direitos tolhidos, entre
eles o de possuir propriedades. O choque entre as sociedades no que se refere
à sexualidade pode ser entendido pelo teor trágico sentido pelos maias quanto
ao sequestro de mulheres e, por outro lado, a escandalização dos espanhóis ao
observarem a nudez de meninas e meninos se banhando juntos (STEARNS, 2012).

Com o passar das décadas, a necessidade de pacificação e convívio


tornou as relações menos tensas entre os povos nativos e os europeus. Passou-
se a considerar que as mulheres possuíam uma alma tão boa quanto a do
homem, sendo que, por vezes, a figura feminina das Américas Central e do
Sul foi associada à virgem Maria. As meninas puderam se juntar aos meninos
para receberem a parca educação que visava a doutrinação. Em alguns locais,
como na sociedade maia, as mulheres passaram a ter um papel relevante a ser
desenvolvido: a fabricação dos tecidos que fariam parte dos impostos cobrados
pelos espanhóis. Esse tipo de trabalho, além de elevar as mulheres aos postos
visíveis da conturbada sociedade que emergia, também garantia o sustento das
famílias (STEARNS, 2012).

Ainda sobre a sociedade maia, a imposição do casamento cristão abalou


as relações afetivas e os laços de parentesco, acarretando novas restrições às
mulheres. Para os missionários cristãos espanhóis, era importante conter e, se

96
TÓPICO 2 | MULHERES INDÍGENAS E EUROPEIAS NA AMÉRICA PRÉ-COLONIAL E COLONIAL

possível, acabar com as famílias compostas por grandes grupos. Ao se separarem


da família após o casamento, as mulheres se distanciavam umas das outras,
impossibilitando assim a formulação de redes de solidariedade. Com a pressão
patriarcal e religiosa, ficava também mais difícil para as mulheres deixarem seus
companheiros e voltarem para suas famílias. Sobre este contexto, Stearns (2012,
p. 115) comenta que:

O resultado foi a soma do pior dos dois mundos patriarcais: dos maias
e dos espanhóis. Apesar das sinceras conversões ao cristianismo, as
implicações religiosas sobre a igualdade das almas não tiveram um
impacto profundo sobre a igualdade de gênero na sociedade maia.
Ao mesmo tempo, algumas proteções e oportunidades que a tradição
proporcionava para as mulheres foram reduzidas. Houve uma fusão
cultural, uma forma de sincretismo, mas que com poucos ganhos
para as mulheres.

A existência de uma organização social patriarcal se constitui em fator


de similaridade entre a América colonial portuguesa e a espanhola. Tanto na
América, como na Europa, existiu uma hierarquia sexual que colocava os homens
em um patamar superior ao das mulheres. Essa hierarquia passou a ser validada
e reiterada por leis e tradições, as quais justificavam a hegemonia da presença
masculina na tomada de decisão diante de assuntos de governo, religião, cultura,
entre outros (SOCOLOW, 2015).

Nas sociedades patriarcais, o sexo biológico era o principal fator de


diferenciação e de status social entre os indivíduos, sendo seguido pelas categorias
de raça e classe. Essa afirmação apresenta uma explicação para o baixo número
de documentos do período colonial que abordam as categorias de raça e classe
ao falar das mulheres. No entanto, são mais recorrentes os documentos que
relacionam as mulheres ao sexo ou gênero (SOCOLOW, 2015).

3.3 MULHERES INDÍGENAS: OBJETO DE TROCA, DE


DOAÇÃO OU DE ESPÓLIO
As mulheres indígenas também foram utilizadas como moeda de troca
ou como garantia nos acordos entre os chefes tribais e os europeus. Percebe-se a
permanência do padrão pré-colombiano de oferecer filhas ou irmãs aos aliados,
uma prática que era considerada aceitável aos olhos das mulheres indígenas
da época. Caso não recebessem mulheres dessa forma, os conquistadores, com
destaque para os espanhóis, capturavam as mulheres em suas comunidades, ou
as reivindicavam como espólios de guerra. A exemplo do conquistador Giménez
de Quesada (1509-1579) que, após vencer uma batalha na região da atual
Colômbia, capturou cerca de trezentas indígenas, as quais foram oferecidas como
companheiras aos servos do conquistador (SOCOLOW, 2015).

97
UNIDADE 2 | AMÉRICA: HISTÓRIA DAS MULHERES E GÊNERO

No Século XVII, os europeus continuaram adentrando nos territórios


americanos. Contudo, a prática de trocar esposas por alianças se mostrou presente
na América Central e no Brasil, onde mulheres eram oferecidas como sinal de
hospitalidade ou na troca por objetos. Outra prática comum, principalmente
em regiões de fronteiras, era o sequestro e o aprisionamento de mulheres, o que
ocasionava o esvaziamento de diversas tribos, visto que, sem as mulheres, a
capacidade reprodutiva das comunidades era afetada (SOCOLOW, 2015).

Os homens mantiveram a posição de dominador também nos


relacionamentos. Não são raros os relatos de abusos e de abandono de mulheres
indígenas pelos europeus. Conforme a historiadora Asunción Lavrin (1990, p. 120)
“durante a conquista, o estupro de mulheres indígenas foi frequente e denunciado,
mas raramente condenado”. Por outro lado, existiram relacionamentos
duradouros com certa aceitação pelas indígenas, as quais já haviam introjetado
a prática do casamento arranjado por homens, fossem eles seus pais ou irmãos
(SOCOLOW, 2015).

3.4 HERNÁN CORTÉS, MALINCHE E A CONQUISTA DE


TENOCHTITLÁN
A mais renomada das relações duradouras entre espanhóis e mulheres
nativas foi a do conquistador espanhol Hernán Cortés (1485-1547) com a indígena
Malinche (Malintzin ou Doña Marina, 1496-1529?). Em 1519, ao aportar em
Tabasco, estado do atual México, a expedição de Cortés recebeu dos indígenas
locais, entre outros presentes de boas-vindas, vinte mulheres que haviam sido
capturadas e escravizadas (SOCOLOW, 2015).

Entre elas estava Malinche, provavelmente uma mulher nascida em


uma família proeminente da tribo Nahua, que falava os idiomas maia e asteca,
habilidade essa que fez dela a intérprete da expedição e conselheira pessoal de
Cortés. Ela teve papel fundamental na descoberta da localização de Tenochtitlán,
capital do Império Asteca pelos espanhóis (SOCOLOW, 2015). Tenochtitlán
era uma “cidade de 200 ou 300 mil habitantes, comparável a grandes capitais
imperiais como foram Roma e Constantinopla” (PRADO; PELLEGRINO, 2016).

FIGURA 4 – DETALHE DO MURAL LA GRAN TENOCHTITLÁN, DE DIEGO RIVERA, 1945

FONTE: <https://cdn.britannica.com/87/132487-004-258FAA03.jpg>. Acesso em: 7 jan. 2020.

98
TÓPICO 2 | MULHERES INDÍGENAS E EUROPEIAS NA AMÉRICA PRÉ-COLONIAL E COLONIAL

Os espanhóis adentraram Tenochtitlán no dia 8 de novembro de 1519,


instalando-se no antigo palácio de Axayácatl, ex-tlatoani (governante) da capital
asteca. Após uma boa receptividade e de um breve período de convívio amigável, os
espanhóis tomam Montezuma II, o tlatoani na época, como prisioneiro. O imperador
asteca morreria em batalha no dia 29 de junho de 1520 e, no dia 13 de agosto de 1521,
Tenochtitlán é conquistada por Cortés e seus homens (SOCOLOW, 2015).

Neste período, Malinche e Cortés se tornaram próximos, ao ponto do


espanhol a considerar sua concubina. Em 1522, tiveram um filho, Martín Cortés,
conhecido como o mestiço. Em 1524, decidido de que um casamento legítimo seria
mais adequado para Malinche, Cortés a aproxima de Juan Jaramillo de Salvatierra.
Também conhecido como Don Juan Xamarillo, Juan Jaramillo de Salvatierra era
um soldado espanhol de confiança de Cortés e proprietário de concessões da coroa
espanhola no Novo Mundo. Neste casamento, Malinche teve uma filha.

FIGURA 5 – CORTÉS E MALINCHE CONHECEM MONTEZUMA II

FONTE: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/f/fe/Cortez_%26_La_
Malinche.jpg/440px-Cortez_%26_La_Malinche.jpg>. Acesso em: 7 jan. 2020.

Sobre a participação de Malinche na história asteca e mexicana, o linguista


e filósofo búlgaro Tzvetan Todorov (1993, p. 98) escreveu, em A conquista da
América: a questão do outro, que:

Os mexicanos pós-independência geralmente desprezaram e


acusaram a Malinche, que se tornou a encarnação da traição dos
valores autóctones, da submissão servil à cultura e ao poder dos
europeus. É verdade que a conquista do México teria sido impossível
sem ela (ou outra pessoa que desempenhasse o mesmo papel), e
que ela é, portanto, responsável pelo que aconteceu. Quanto a mim,
vejo-a sob outra luz: ela é, para começar, o primeiro exemplo, e por
isso mesmo o símbolo, da mestiçagem das culturas; anuncia assim o
Estado mexicano moderno e, mais ainda, o estado atual de todos nós,
que, apesar de nem sempre sermos bilíngues, somos inevitavelmente
bi ou triculturais.

99
UNIDADE 2 | AMÉRICA: HISTÓRIA DAS MULHERES E GÊNERO

Percebe-se que Malinche é uma personagem que divide opiniões. Por ter
sido mãe de uma menina e de um menino mestiços, ela é considerada por muitos
a mãe da nação mexicana. Para outros, é percebida como traidora dos povos
indígenas, pelo seu envolvimento com Cortés, e por ter participado da conquista
espanhola que decorreu na decadência da civilização asteca (SOCOLOW, 2015).

3.5 MULHERES INDÍGENAS E EUROPEUS: OUTROS


ELEMENTOS DA RELAÇÃO
Os casos de relacionamentos afetuosos entre espanhóis e mulheres
indígenas foram comuns durante os primeiros anos da conquista espanhola.
Essas mulheres passaram a acompanhar as tropas espanholas, preparando
comida, cuidando dos doentes, carregando artefatos e bagagens, traduzindo
conversas e gestando os primeiros mestiços. Como podemos imaginar, o interesse
dos espanhóis pelas mulheres do Novo Mundo, principalmente as da nobreza,
afetou também os homens nativos, os quais possuíam promessas e compromissos
matrimoniais com diversas das mulheres que vieram a se relacionar com os
espanhóis (SOCOLOW, 2015).

O relacionamento entre a princesa inca Quispe Sisa ou Inés Huaylas
Yupanqui (1518-1559) e o conquistador do Peru, Francisco Pizarro (1478-1541),
exemplifica a reconfiguração das estruturas sociais e culturais na região. Francisca
Pizarro Yupanqui (1534-1598), filha do casal e a primeira mestiça nobre do Peru,
recebeu educação formal antes de ser enviada à Espanha, onde se casaria com
o seu tio paterno, o conquistador Hernando Pizarro (1504-1578), um homem
aproximadamente trinta anos mais velho do que ela (SOCOLOW, 2015).

DICAS

Caro acadêmico, o documentário


Francisca Pizarro, em espanhol, conta com
a participação de diversos historiadores, os
quais discutem aspectos relacionados à vida
de Francisca e de seus pais, tendo como
contexto a conquista espanhola do Peru.

FONTE: SUCEDIÓ en el Perú - Francisca


Pizarro. Peru: Tvperú, 2016. (51 min.), son.,
color. Idioma: Espanhol. Disponível em: https://
www.youtube.com/watch?v=WF3L8EGF6QY. FONTE: <http://twixar.me/3h2T>.
Acesso em: 30 dez. 2019. Acesso em: 29 jan. 2020.

100
TÓPICO 2 | MULHERES INDÍGENAS E EUROPEIAS NA AMÉRICA PRÉ-COLONIAL E COLONIAL

3.6 OS IMPACTOS DA CHEGADA DE MULHERES


EUROPEIAS À AMÉRICA COLONIAL
A partir de 1560, muitas mulheres europeias passam a aportar na
América, fato que irá reconfigurar os parâmetros dos relacionamentos na região.
No caso da América espanhola, as mulheres europeias se tornaram as preferidas
dos colonizadores, ficando as mulheres mestiças, antes muito cobiçadas, em
segundo plano. Com o passar dos anos, e com o aumento do número de mestiças,
os espanhóis começaram a vincular a miscigenação aos valores negativos,
dificultando a integração de mulheres mestiças na sociedade espanhola em
expansão na América (SOCOLOW, 2015).

Já a Igreja Católica teve atitudes brandas frente às imoralidades efetuadas
pelos espanhóis contra os povos nativos. Para a Igreja, os pecados cometidos pelos
europeus eram percebidos como um mal menor, frente às atitudes degradantes
praticadas pelos indígenas, entre elas o incesto. Tanto a coroa espanhola como
a Igreja buscaram formas de diminuir o relacionamento entre espanhóis com as
mulheres indígenas (SOCOLOW, 2015).

FIGURA 8 – ESPANHOL E INDÍGENA COM FILHO MESTIÇO, 1770

FONTE: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/5/5e/Mestiso_1770.
jpg/200px-Mestiso_1770.jpg>. Acesso em: 8 jan. 2020.

A preocupação chegou ao ponto de a coroa permitir a imigração para a


América apenas para os homens casados que fossem acompanhados das esposas.
Embora a coroa e a Igreja tenham tentado apertar o cerco, a imigração de homens
desacompanhados e o concubinato com as indígenas perdurou até o final do
período colonial, principalmente quando havia alguma possibilidade de herdar
terras ou de interferir na governança local (SOCOLOW, 2015).

101
UNIDADE 2 | AMÉRICA: HISTÓRIA DAS MULHERES E GÊNERO

3.7 MULHERES INDÍGENAS: O TRABALHO APÓS A


CONQUISTA ESPANHOLA
Com o passar do tempo e a ampliação das cidades, muitas indígenas
se viram forçadas ou impelidas a saírem de suas comunidades tribais. Nessas
cidades, elas trabalharam como empregadas domésticas, enfermeiras, cozinheiras,
fabricantes de bebidas, curandeiras, vendedoras ambulantes e no comércio.
Algumas indígenas foram proeminentes comerciantes, acumulando consideráveis
quantias e poder local, demonstrando que assimilaram habilidosamente as noções
comerciais dos europeus (SOCOLOW, 2015).

No continente americano, os Séculos XVI e XVII foram marcados pelo


processo de aculturação dos indígenas, os quais, em níveis diferentes conforme
a região e o contexto, foram assimilando os idiomas e os costumes europeus,
ao passo que as tradições indígenas ficavam em segundo plano. A aculturação
decorreu da combinação, em diferentes modos, de elementos introduzidos pelos
europeus em áreas como a política, a economia e a religião. Cabe destacar que
os europeus também assimilaram diversos costumes dos povos originários da
América (SOCOLOW, 2015; LAVRIN, 1990).

Na América Central e do Sul, os missionários buscaram alterar as relações


que envolviam as atividades no interior das comunidades dos povos indígenas.
Na perspectiva missionária, às mulheres estariam reservadas às funções de
procriadora e realizadora das atividades domésticas, visto que eram consideradas
irracionais e problemáticas, portanto, inaptas para serem inseridas em outras
atividades. Por outro lado, embora pouco consideradas pelos missionários, as
mulheres viriam a ser as principais e mais regradas adeptas do cristianismo na
região (STEARNS, 2012).

A divisão sexual do trabalho passou por reformulações. Embora algumas


atividades permanecessem relacionadas às mulheres, como a tecelagem no
México, em outras regiões do continente ocorreram mudanças profundas.
No Brasil, os missionários e padres jesuítas, imbuídos dos valores europeus,
destinaram a agricultura para os homens. No entanto, essa era uma atividade
tradicionalmente feminina entre os indígenas, a exemplo dos tupis (SOCOLOW,
2015; HEMMING, 1990).

Conforme o historiador John Hemming (1990, p. 198, tradução nossa),


“nas sociedades indígenas, os homens eram tradicionalmente os responsáveis
pela limpeza da selva, caça e pesca; mas a agricultura era trabalho de mulheres”.
Em regiões da América do Norte, missionários transferiram para os homens o
trabalho na construção de edifícios, anteriormente realizado pelas mulheres. As
perdas não se limitaram às ocupações. As mudanças causaram a decadência do
prestígio e do status social das mulheres (SOCOLOW, 2015; HEMMING, 1990).

102
TÓPICO 2 | MULHERES INDÍGENAS E EUROPEIAS NA AMÉRICA PRÉ-COLONIAL E COLONIAL

Buscando interiorizar os interesses econômicos ao nível doméstico,


a coroa espanhola iniciou a cobrança de tributos sobre os casais, sendo que a
responsabilidade de pagamento cabia ao marido. Embora pudessem ser pagos
em serviços, dinheiro ou produtos, o fruto do trabalho das mulheres indígenas
foi largamente utilizado no pagamento dos tributos. Os principais itens utilizados
por elas nos pagamentos de tributos foram os tecidos de algodão, as galinhas,
o mel e a cera de abelha. Nas regiões rurais do Peru e em partes do México,
por exemplo, as mulheres se tornarem as principais produtoras de tecido para o
pagamento de tributos (SOCOLOW, 2015).

Na Nicarágua, as mulheres se viram forçadas a trabalhar nas plantações


de índigo, que seria utilizado na produção de corantes. O trabalho exaustivo
nestas plantações acarretou a morte de muitas mulheres. Na Bolívia, as indígenas
fiavam e teciam os produtos que seriam utilizados como pagamento dos tributos.
No Chile, até o Século XVII, as mulheres indígenas tiveram que trabalhar como
amamentadoras ou prestar serviços domésticos aos espanhóis. Os abusos sexuais,
físicos e psicológicos eram constantes, principalmente nas regiões rurais e nos
casos em que a indígena morava na residência do patrão (SOCOLOW, 2015).

Os trabalhos pesados e exaustivos prejudicaram as mulheres indígenas de


diversas formas. Provavelmente decorreu na diminuição da taxa de fecundidade
das mulheres, causada também pelo afastamento dos casais devido às longas
rotinas de trabalho. As péssimas condições físicas e psicológicas dos trabalhos
realizados pelas mulheres resultaram em suicídios, depressão e desespero, tanto
é que foram comuns as acusações de assassinatos de bebês praticados pelas
próprias mães (SOCOLOW, 2015).

3.8 IMPACTOS DA COLONIZAÇÃO NA DISTRIBUIÇÃO


POPULACIONAL
Com o extermínio de centenas de milhares de indígenas, seja por epidemias
ou por guerras, uma grande quantidade de terras passou a estar disponível a
partir de meados do Século XVI. Desse modo controverso, em algumas regiões,
como as do México Central, ficou relativamente mais acessível a posse de terras
pelas mulheres indígenas (SOCOLOW, 2015).

Algumas indígenas maias conseguiram acumular riquezas, sendo as viúvas


do Vale do Toluca, no México, as que conseguiram maior independência financeira,
em grande parte proveniente da posse de terras. Nas primeiras décadas da conquista
espanhola, caso fizesse parte da tradição local, as mulheres também permaneceram
recebendo as heranças financeiras, políticas e religiosas (SOCOLOW, 2015).

Mais comum, no entanto, foi a migração de homens e mulheres


indígenas para as fazendas de gado, minas de exploração de metais e plantações,
especialmente as de tabaco. Nesses locais, as mulheres tinham como principais
funções o carregamento de produtos e suprimentos, bem como o auxílio no
trabalho masculino (SOCOLOW, 2015).
103
UNIDADE 2 | AMÉRICA: HISTÓRIA DAS MULHERES E GÊNERO

3.9 IGREJA CATÓLICA E AS MISSÕES


A tarefa de governar as condutas não esteve destinada apenas aos
conquistadores e colonizadores. Tradicionalmente, após garantida a posse de um
território, as coroas espanholas e portuguesas, em parceria com a Igreja Católica,
enviavam expedições missionárias ao local (STEARNS, 2012). Na América do
Norte, a presença de missionários reformadores teve maior impacto do que nas
colônias ibéricas.

Na esfera religiosa, as autoridades europeias e a Igreja Católica passaram


a forçar a conversão dos indígenas à fé cristã. As mulheres foram, em muitos
casos, as primeiras a se converterem. Como vimos, os povos indígenas tinham
como prática corrente, mas não hegemônica, a exclusão das mulheres dos ritos e
dos principais postos na hierarquia espiritual. Nesse contexto, a religião cristã se
apresentou como mais aberta à presença de mulheres em celebrações religiosas
e nas confrarias destinadas à adoração de diversas santas e santos. Inseridas em
redes de solidariedade, as indígenas cristianizadas auxiliavam nos funerais e na
disseminação dos atos de caridade (SOCOLOW, 2015; LAVRIN, 1990).

Para os europeus, a imagem de superioridade frente aos nativos,


amparada em justificativas ora bíblicas, ora provenientes do senso comum,
delineou as relações humanas entre esses grupos, sendo constante a intolerância às
diferenças. Para os missionários cristãos, a conversão dos nativos ao cristianismo
era fundamental para a expansão e manutenção do poder terreno e espiritual
da Igreja Católica. Ao inserirem e imporem a fé cristã, missionários, autoridades
coloniais e colonizadores também transportaram para as colônias os estereótipos
de gênero europeus, como a autoridade masculina no casamento e a inferioridade
da mulher justificada pelo pecado original (STEARNS, 2012).

Exemplificam esses estereótipos as profundas alterações acarretadas pelo


patriarcado de base cristã nas relações entre homens e mulheres de sociedades
regionais nas quais a divisão sexual do trabalho não era percebida como uma
forma de subjugar as mulheres, ou em culturas que valorizavam a figura feminina
em suas crenças. Em outras culturas, a influência cristã reforçaria a autoridade
masculina já existente antes da presença europeia (STEARNS, 2012).

Caro acadêmico, entendemos que os padrões de gênero, assim como


outros elementos formadores das tradições, se alteraram ao passar dos séculos
e conforme o lugar. As características anteriormente descritas são mais bem
vinculadas aos Séculos XVI e XVII e, no caso da influência da Igreja Católica, nos
países pertencentes à América Latina e no Caribe (STEARNS, 2012).

De todo o modo, as tentativas de conversão dos povos nativos para a fé


cristã, bem como para os sistemas de gênero europeus, nem sempre foram bem-
sucedidas. Sobre esse assunto, Stearns (2012, p. 107) comenta que “os grupos se
misturavam e se ajustavam, aceitando alguns componentes europeus e rejeitando
outros, na melhor forma sincrética”.

104
TÓPICO 2 | MULHERES INDÍGENAS E EUROPEIAS NA AMÉRICA PRÉ-COLONIAL E COLONIAL

Se o processo de conversão à nova fé não ocorreu de forma tranquila


como desejavam os missionários, quando ocorria, por vezes era marcado pelo
sincretismo religioso. Como no caso de civilizações nas quais as mulheres
desempenhavam papéis relevantes em ritos, celebrações artísticas, cerimônias
religiosas do grupo e nos ambientes domésticos, sendo também responsáveis
pela fabricação de vestimentas e adornos utilizados nas estátuas dos deuses locais
(STEARNS, 2012).

Ao serem convertidas à fé cristã, essas mulheres passaram a realizar as


mesmas atividades, em escala reduzida, nas festividades da Igreja Católica. Nos
demais assuntos religiosos, as mulheres deveriam estar subordinadas ao poder
patriarcal. Não tardou para que, com ênfase nos domínios espanhóis, as mulheres
deixassem de fazer parte das decisões que envolviam o grande grupo. Com a
instalação de uma burocracia patriarcal, aos moldes da que existia na Espanha,
os cargos importantes passaram a ser destinados quase que exclusivamente aos
homens (STEARNS, 2012).

Com o passar do tempo, a Igreja buscou alterar as relações familiares,


incentivando a criação de famílias nucleares, em oposição à família extensa, na qual
diversas gerações viviam em uma mesma residência. Se essa nova configuração
limitava as mulheres a viverem apenas com seus maridos e filhos, as afastando
do contato com outras mulheres, também possibilitou às indígenas um modo de
vida com maior privacidade, maior controle sobre os filhos, e a exclusividade do
marido no casamento, pois não teria que competir com outras esposas. Como
resultado da Contrarreforma, ou Reforma Católica, a interferência nos assuntos
matrimoniais e amorosos seria intensificada com a chegada, na América, do Santo
Ofício da Inquisição (SOCOLOW, 2015; LAVRIN, 1990).

E
IMPORTANT

Contrarreforma ou Reforma Católica

Termo empregado para caracterizar a restauração e reconquista da Igreja católica,


cujo poder e prestígio foram contestados no Século XVI e mesmo abalados com a Reforma
protestante do monge alemão Martinho Lutero (1483-1546).

FONTE: AZEVEDO, A. C. do A. Dicionário de nomes, termos e conceitos históricos. 4. ed.


Rio de Janeiro: Lexikon, 2012. 464 p.

105
UNIDADE 2 | AMÉRICA: HISTÓRIA DAS MULHERES E GÊNERO

Com a entrada maciça de missionários e lideranças cristãs nos territórios


da América Latina, multiplicaram as observações e interdições quanto às práticas
sexuais dos nativos, com destaque às condutas das mulheres. As missões tinham
como principais objetivos a conversão dos indígenas à fé católica e a assimilação
dos nativos aos costumes europeus, considerados como mais civilizados. Condutas
consideradas imorais foram combatidas. Entre elas estava a nudez excessiva, a
prática do sexo antes do casamento, a poligamia e o adultério. As tentativas de
alteração de condutas envolveram a exigência de uso de roupas pelos indígenas,
mesmo em locais de clima quente e úmido, a separação física entre jovens do
sexo oposto, a interferência na escolha dos parceiros de casamento, entre outras
práticas tradicionais (STEARNS, 2012).

Em decorrência das imposições e da rotina religiosa e de trabalho,


um elevado número de indígenas abandonou as missões e outras regiões
administradas pelas autoridades católicas, embora pertencer a uma missão era
uma das poucas garantias de que o indígena não seria escravizado e não teria
que entrar em conflitos contra os europeus (SOCOLOW, 2015; STEARNS, 2012).

Nas regiões de fronteira, como a entre o Brasil dominado por portugueses


e os territórios dos povos nativos, ocorreu a captura de mulheres portuguesas
e espanholas pelos indígenas. Muitas delas passaram a viver nas comunidades
indígenas, aprendendo a cultura local e se tornando esposas e concubinas de
indígenas (SOCOLOW, 2015).

Até o final do Século XVII e início do XVIII, em regiões fora das fronteiras
e, por isso mesmo distantes das missões, ocorreu a continuidade de conflitos entre
os povos indígenas e os europeus. Exemplos dessas regiões são os territórios do
interior do Brasil e da América Central, o norte do México e o Chaco, na América
do Sul (SOCOLOW, 2015).

4 AMÉRICA DO NORTE: COLONIZAÇÃO,


GÊNERO E RELIGIÃO
América do Norte, a influência protestante viria a ser mais intensa
nos anos que se seguiram às reformas religiosas. Podemos citar como as mais
intensas, e que tiveram maior influência na comunidade cristã, a Reforma
Luterana, iniciada na Alemanha em 31 de outubro de 1517 pelo monge
agostiniano Martinho Lutero; e a Reforma Anglicana, promulgada pelo rei
Henrique VIII da Inglaterra, em 1534.

106
TÓPICO 2 | MULHERES INDÍGENAS E EUROPEIAS NA AMÉRICA PRÉ-COLONIAL E COLONIAL

E
IMPORTANT

Outros eventos históricos também afetaram os planos da colonização


europeia do continente americano, bem como a supremacia da Igreja Católica na região.
Como exemplo, temos a promulgação do Édito de Nantes pelo rei francês Henrique IV,
em 30 de abril de 1598. O Édito de Nantes pretendia reestabelecer a paz entre católicos
e huguenotes, como eram chamados os protestantes franceses, majoritariamente
calvinistas, após o Massacre da Noite de São Bartolomeu ocorrido na noite do dia 24 de
agosto, dia de São Bartolomeu, e na madrugada do dia 25 de agosto de 1572. No contexto
da Contrarreforma, a coroa francesa, católica, ordenou a perseguição a milhares de
huguenotes. As perseguições com mortes ocorreram até outubro daquele ano. Porém,
ao tratar do número de huguenotes mortos, as estimativas variam drasticamente, com
números que partem de 2 mil e chegam a 70 mil (ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA, 2017).

Seja pela força das armas de fogo aliadas a conflitos entre sociedades
locais, ou pela falta de imunidade às doenças trazidas para a América do Velho
Mundo, como a varíola e a gripe, responsáveis por milhões de mortes, ou ainda
uma combinação desses e outros fatores, o homem europeu passou a dominar e
a controlar boa parte das sociedades e economias locais. Em uma perspectiva de
gênero, os homens nativos perderam seus privilégios, muitos desses vinculados
à virilidade e a própria condição de homem (STEARNS, 2012).

A subordinação de homens nativos aos padrões de gênero europeus


foi mais presente em sociedades que passaram de caçadoras e coletoras para
economias agrícolas, o que ocorreu em maior número na América do Norte,
decorrente em boa medida dos rígidos juízos sobre sexualidade de vertentes
do protestantismo, tais como o puritanismo. No entanto, os homens nativos
buscaram novas formas de afirmar sua masculinidade, as quais ocasionaram
maior subjugação das mulheres (STEARNS, 2012).

Na América do Norte, o contato com os europeus justapôs sistemas


que combinavam caça e agricultura, nos quais as divisões relativas
aos gêneros eram agudas, mas sem grandes desigualdades, com
as presunções do patriarcalismo europeu. Nos principais casos da
América Latina, o contato justapôs sistemas patriarcais diferentes, em
que a desigualdade já era marcante antes da chegada dos europeus.
Aqui, os resultados do contato foram também notáveis, mas em geral
mais sutis do que as deteriorações na América do Norte (STEARNS,
2012, p. 111).

A colonização europeia aliada ao protestantismo, em especial ao


puritanismo, ocorreu principalmente nos territórios do atual Estados Unidos.
Nos fins do Século XVIII, a conversão dos nativos à nova fé era acompanhada
de noções de gênero, como a vinculação da mulher aos afazeres domésticos e ao
lar, no que chegou a ser constituído e percebido como “o ritual da verdadeira
feminilidade” (STEARNS, 2012, p. 111).

107
UNIDADE 2 | AMÉRICA: HISTÓRIA DAS MULHERES E GÊNERO

Em algumas tentativas de civilizar os povos nativos, as consequências


foram imprevisíveis para os europeus. Como exemplo, tem-se a alteração de
técnicas e da divisão sexual do trabalho na agricultura e o constante afastamento
dos homens das práticas guerreiras. Inesperadamente, a violência que era
desprendida pelos homens na caça e na guerra se voltou para o próprio grupo
social, sendo as mulheres as principais vítimas de violências (STEARNS, 2012).

4.1 CANADÁ: OS INDÍGENAS HURONS-WENDATS


No Canadá, os missionários jesuítas seguiram as rotas traçadas pelos
exploradores franceses e pelos caçadores de peles. Assim como na América
Central e do Sul, os missionários se depararam com arranjos de gênero, os quais
deveriam ser modificados para que a inserção da fé cristã encontrasse terreno
fértil. Ao contrário do que ocorreu na América Latina, em regiões localizadas
próximas dos Grandes Lagos, e da atual província de Quebec, onde viviam os
indígenas hurons-wendats e tribos a eles vinculadas, não havia um sistema de
gênero patriarcal desenvolvido antes da chegada dos europeus.

NOTA

As palavras huron, hurões, wendat, huronianos e wyandot são utilizadas para


se referenciar ao mesmo povo indígena da América do Norte. A palavra “huron” deriva da
palavra francesa hure, que significa “brutamontes”, ou “cabeça de javali”, em referência ao
corte de cabelo dos homens. Já a denominação wendat, que significa algo como “povo da
ilha” é uma denominação própria dos indígenas.

Caro acadêmico, desse modo, temos duas denominações recorrentemente


utilizadas por historiadores e demais pesquisadores. Uma denominação pertence
à perspectiva eurocêntrica, e a outra autóctone, isto é, criada pelo próprio povo.
Buscando dar visibilidade às duas denominações, seguiremos o exemplo do
historiador Georges E. Sioui (1999), grafando o nome do povo da seguinte forma:
huron-wendat (THE CANADIAN ENCYCLOPEDIA, 2018).

Os hurons-wendats, assim como outros povos indígenas da América do


Norte, estruturavam suas famílias pela descendência materna, constituindo assim
sociedades matriarcais, nas quais as mulheres possuíam elevado prestígio e poder.
Eram elas as responsáveis por manter a união e a segurança familiar durante
os meses de verão, momento em que os homens deixavam as comunidades em
busca de caça e outros suprimentos (STEARNS, 2012).

108
TÓPICO 2 | MULHERES INDÍGENAS E EUROPEIAS NA AMÉRICA PRÉ-COLONIAL E COLONIAL

O historiador canadense Georges E. Sioui, ele próprio um horun-wendat,


ao falar sobre as mulheres, nos informa que: “As linhas familiares e a genealogia
foram traçadas através das mulheres, como era na ‘nobreza’. Elas exerciam
autoridade efetiva, sendo responsáveis pela terra, pelos campos e pelas colheitas”
(SIOUI, 1999, p. 120, tradução nossa).

FIGURA 7 – VILA (ALDEIA) HURON-WENDAT

FONTE: <http://www.firemuseumcanada.com/wp-content/uploads/2016/06/Huron-Village.jpg>.
Acesso em: 08 jan. 2020.

Para os missionários cristãos, acostumados com o sistema patriarcal


europeu, a liberdade e participação social das mulheres em rituais religiosos, ritos
de cura e na magia eram aspectos que dificultaram a aculturação. A proeminência
feminina entre os hurons-wendats era tal que “se uma menina nascia, havia mais
celebração do que no nascimento de um menino” (STEARNS, 2012, p. 116). Ao
serem confrontadas com a conversão, as mulheres resistiram frente a falta de
vantagens oferecidas pelo novo credo e pelos padrões de gênero apresentados.

Quanto aos homens, a recusa em seguir as orientações e decisões das


mulheres poderia provocar a exclusão nas consultas realizadas no interior das
famílias e na desobediência por parte das mulheres. Como era de se supor,
“os jesuítas, por sua vez, consideravam ‘megeras’ e ‘diabólicas’ as mulheres
tradicionalistas” (STEARNS, 2012, p. 117). A vinculação das mulheres com
figuras diabólicas, como já mencionado, fazia parte do imaginário cristão
europeu, que imputava a todas as mulheres a herança da fatídica atitude de
Eva no Jardim do Éden.

Nesse cenário, constituído por interesses da coroa francesa, dos


exploradores, colonizadores e comerciantes, os jesuítas recorreram ao sacramento
do casamento cristão como forma de frear o prestígio feminino no interior das
comunidades hurons-wendats. Com o casamento oficializado pelos jesuítas, o
poder familiar seria mais facilmente adquirido e justificado pelos homens, os

109
UNIDADE 2 | AMÉRICA: HISTÓRIA DAS MULHERES E GÊNERO

quais, não raramente recorriam à violência contra suas esposas na tentativa de


manterem a nova configuração conjugal. Tanto a violência, como a repreensão
sexual de meninas e mulheres, eram práticas recomendadas e colocadas em
funcionamento pelos jesuítas (STEARNS, 2012).

Mulheres que tinham abandonado os maridos, o que era um direito


seu na sociedade huron, eram surradas e aprisionadas se pegas, e
os homens hurons juntavam-se aos missionários nessa punição. Os
homens hurons, por sua vez, saudavam a oportunidade de tornar
mais dóceis as mulheres (STEARNS, 2012, p. 118).

Assim como ocorreu com o domínio espanhol, com o controle francês dos
territórios na América do Norte, as guerras, torturas e até mesmo a canibalização
de prisioneiros se tornaram práticas inadequadas aos novos modelos sociais.
Como consequência, boa parte da violência que era exaurida em batalha passou
a ser aplicada no interior das comunidades, tendo nas mulheres o principal
destino das agressões. Com a conversão e com as inversões no espectro das
relações de gênero, as mulheres introjetaram muitas das imposições a elas
destinadas. Muitas passaram a se ver como pecadoras e merecedoras da
dominação masculina (STEARNS, 2012).

4.2 ESTADOS UNIDOS: SIOUX E CHEROKEES


O processo de colonização dos territórios do atual Estados Unidos
compartilha muitos dos elementos da colonização da América Latina e do Canadá.
No caso dos Estados Unidos, adicionou-se as mudanças nas relações de gênero
em curso na Europa, muitas delas decorrentes da Revolução Industrial. Quanto
à participação dos missionários protestantes, as preocupações permaneciam
pouco alteradas. Era necessária a atenção à sexualidade e as relações de poder
(STEARNS, 2012).

Em meados do Século XIX, a inserção da fé cristã europeia representou


um relativo ganho para as mulheres indígenas da tribo sioux. Em uma parcela
desse grupo de povos nativos americanos, localizada nos territórios do atual
estado estadunidense de Iowa, a condição social das mulheres no Século XIX
era de inferioridade. Desse modo, as alterações propostas pela conversão ao
cristianismo, incluindo as relações de gênero, foram benéficas às mulheres,
que se converteram em maior número do que os homens. Como o comando
das celebrações e rituais era um papel masculino, e a religião cristã apresentou
oportunidades para as mulheres expressarem a espiritualidade, ambos os gêneros
puderam desempenhar papéis nas práticas religiosas, sem que, no entanto,
houvesse algum tipo de degradação da figura masculina na tradição do povo
sioux (STEARNS, 2012).

110
TÓPICO 2 | MULHERES INDÍGENAS E EUROPEIAS NA AMÉRICA PRÉ-COLONIAL E COLONIAL

A influência dos grupos protestantes nas relações de gênero também pode


ser percebida com a alocação das funções que cada gênero deveria desempenhar.
As meninas de povos como o sioux ou o shawnee, ao frequentarem as escolas
missionárias, aprendiam a cozinhar, limpar a casa e a costurar. Estas seriam as
atividades atribuídas às mulheres. No entanto, as alterações pretendidas pelos
missionários causaram instabilidade na divisão sexual do trabalho existente entre
os indígenas. Stearns (2012, p. 119), relata que:

Pela tradição indígena, [...] organizar uma casa e cultivar o solo era
considerado trabalho feminino, e um homem que cortava uma árvore
para uma casa ou usava um arado era ridicularizado e considerado
afeminado. Em contraste, para pessoas de origem euroamericana, os
homens deveriam liberar as mulheres de arar os campos, trabalho
considerado “inadequado para esse sexo”.

Os atributos de pureza e docilidade das mulheres europeias entram em


conflito com a noção pouco edificante do feminino na cultura sioux. Para esse
povo, alguns tipos de trabalho, como arar e cultivar a terra, eram destinados às
mulheres. Desse modo, os homens estariam livres para as atividades como a guerra,
a caça e as decisões que regiam a tribo. As tentativas de traduzir, para povo sioux,
noções que, por vezes circularam há Séculos na Europa, não tiveram o resultado
pretendido pelos missionários. Mesmo em situações em que a conversão ocorreu,
a instabilidade gerada na hierarquia social e, no interior desta, na hierarquia de
gênero, dificultava a expansão da cristianização (STEARNS, 2012).

Ao contrário dos sioux, em alguns dos povos nativos do sul do atual Estados
Unidos, com destaque para os cherokees, a posição social das mulheres era mais
bem equalizada com a dos homens. As mulheres estavam inseridas em atividades
reconhecidas pela tribo, como a agricultura e, em decorrência disto, eram elas
as responsáveis pelas celebrações em honra às colheitas. A caça, atividade de
alta relevância, como é recorrente nas tradições indígenas, permaneceu sendo
realizada pelos homens (STEARNS, 2012).

NOTA

Caro acadêmico, as mulheres cherokees compartilhavam de algumas


características com as mulheres hurons-wendats. A principal delas é linhagem matriarcal
presente nas genealogias dos cherokees. As mulheres estavam inseridas nas atividades
políticas das tribos e não possuíam amarras quanto às questões ligadas à sexualidade
(STEARNS, 2012).

111
UNIDADE 2 | AMÉRICA: HISTÓRIA DAS MULHERES E GÊNERO

No Século XVIII, a chegada na região de missionários e fazendeiros


euroamericanos, estes em busca de terras para o plantio, afetou as relações de
trabalho e de gênero entre os cherokees. As mulheres, responsáveis pelo cultivo,
logo se interessaram pelas novas técnicas trazidas pelos europeus. Lideranças
cherokees, incluindo homens e mulheres, viram na adoção dos novos métodos
agrícolas a possibilidade de avanço na produtividade e, até mesmo, melhorias nas
questões vinculadas à organização social. Porém, os euroamericanos julgavam
como pecaminosas ou degradantes algumas das práticas cherokees, como a
participação das mulheres nos trabalhos braçais e a elevada importância dada à
caça pelos homens (STEARNS, 2012).

Nos primeiros anos do Século XIX, foram instaladas escolas pelos


euroamericanos. A intenção era a de disseminar os valores europeus de civilização
e fé, o que acabaria interferindo nas tradições locais. Os euroamericanos investiram
contra a poligamia, a permanência de meninos e meninas juntos e o modo de
se vestir das mulheres. Não menos incisivas foram as tentativas de deslocar as
mulheres do trabalho agrícola para o doméstico, o que, para muitas cherokees, foi
percebido como um modo de realçar o poder das mulheres no interior dos lares
(STEARNS, 2012).

Essas e outras alterações propostas pelos euroamericanos levaram muito


tempo para serem assimiladas pelas tribos, sendo que, em algumas, nem chegaram
a ser adotadas. O principal impacto se deu na chefia das tribos. Com a recorrente
saída das mulheres das práticas agrícolas para os serviços domésticos, os homens
começam a desempenhar os papéis centrais nas tribos cherokees. Nessas tribos, as
descendências passaram a seguir o lado paterno, a participação das mulheres nas
decisões políticas deixou de existir, e as mulheres cherokees se afastaram umas das
outras, principalmente devido à distância entre as fazendas, as quais se tornaram
o elemento central do novo modelo agrícola. Mesmo nesse cenário, em algumas
tribos, as mulheres cherokees viram, nas novas ordenações sociais e de gênero,
uma maneira de se distanciarem da selvageria (STEARNS, 2012).

Caro acadêmico, ao analisarmos a relação entre os povos indígenas


nativos da América e os europeus, podemos perceber as diversas nuances que,
por vezes se inter-relacionam, em outras, entram em conflito. Processo este que
se estendeu pelo Século XIX e boa parte do Século XX. Como vimos, as mudanças
apresentadas, e por vezes impostas pelos europeus aos povos indígenas, abalaram
diversas tradições locais, em esferas como o trabalho, a religião, a sexualidade,
a política e em outras relações de poder. Consensualmente, podemos afirmar
que as noções de gênero trazidas pelos europeus reconfiguraram os padrões de
masculinidade e feminilidade dos povos nativos (STEARNS, 2012).

112
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu que:

• Os registros documentais pré-colombianos relacionados às mulheres são


escassos, sendo que, as fontes existentes costumam versar sobre as mulheres
da elite.

• A presença das mulheres na América pré-colombiana pode ser verificada em


glifos, glifos-emblemas, estelas, esculturas, pinturas e códices.

• Nas sociedades pré-colombianas, o casamento esteve mais ligado ao poder do


que aos sentimentos amorosos. Nessas sociedades, a exemplo da maia, foram
criadas diversas regras referentes ao casamento.

• A poligamia é uma das características marcantes das sociedades pré-colombianas,


embora, na maioria das vezes, fosse permitida apenas para os homens da
nobreza. Na sociedade asteca, o adultério feminino era punido com a morte.

• Os homens morriam principalmente em guerras e durante as longas viagens. A


expectativa de vida de um homem nas sociedades guerreiras pré-colombianas
era de 34 anos. As mulheres costumavam ter uma vida mais longa, se
sobrevivessem ao ciclo das inúmeras gravidezes e partos.

• A herança nessas sociedades normalmente era destinada aos homens.

• Nas sociedades pré-colombianas havia a divisão sexual do trabalho.

• As mulheres maias estiveram afastadas da agricultura. As mulheres incas


auxiliavam na preparação das terras, no plantio e na colheita, mas não aravam
o solo. As atividades exercidas pelas mulheres eram consideradas menos
importantes em relação às atividades masculinas, como a caça e a guerra.

• As mulheres costumavam estar presentes na execução de trabalhos pesados,


na fiação e na tecelagem.

• A participação das mulheres nos assuntos ligados à religião era secundária,


sendo o caso das acllas, ou Virgens do Sol, o de maior renome. As acllas eram
escolhidas por homens, e seus destinos dependiam da origem social e da beleza
física.

113
• A América pré-colombiana foi permeada por divindades femininas. Entre elas
estão Ixchel, Pacha Mama ou Pachamama (Mãe Terra), Chicomecóatl e Coatlicue.

• Como os povos indígenas da América do Sul pré-colombiana não desenvolveram


sistemas de escrita, os registros que evidenciam as vivências femininas são
praticamente inexistentes.

• Após uma vitória, os conquistadores espanhóis exigiam mulheres como espólio


de guerra.

• A colonização europeia causou mudanças profundas nas sociedades indígenas.

• Os europeus se relacionaram com as mulheres indígenas, constituindo as


primeiras gerações de mestiços.

• Embora a Igreja Católica fosse contrária ao concubinato, essa prática foi


amplamente praticada pelos europeus.

• O casamento com base na família nuclear trouxe benefícios para as mulheres


indígenas, mas também as separou do convívio com outras mulheres.

• A relação entre o conquistador Hernán Cortés com a indígena Malinche é


sintomática das concepções culturais, sociais e de gênero na América pré-
colombiana. Malinche, ao ser tradutora de Cortés, desempenhou um papel
fundamental na descoberta de Tenochtitlán, capital do Império Asteca.

• Em decorrência da descoberta de Tenochtitlán, o imperador Montezuma II é


sequestrado pelos espanhóis, morrendo em batalha poucos meses depois. Em
13 de agosto de 1521, Tenochtitlán é conquistada.

• Na atualidade, Malinche é vista por parte da população mexicana como


traidora dos indígenas. Mas para outra parte da população ela é percebida
como a mãe da nação mexicana.

• Poucas mulheres europeias vieram para a América nos primeiros anos de


colonização.

• Após a conquista espanhola, as mulheres indígenas trabalharam como


empregadas domésticas, enfermeiras, cozinheiras, fabricantes de bebidas,
curandeiras, vendedoras ambulantes e no comércio.

• A aculturação dos indígenas aos costumes europeus teve impacto nas tradições,
na organização social, na religião, nas relações de gênero e na divisão sexual do
trabalho.

114
• Em regiões do Peru e do México, as mulheres se tornaram as principais
produtoras de tecido para o pagamento de tributos.

• As missões jesuíticas tiveram papel fundamental na conversão dos indígenas à


fé cristã e aos costumes europeus. A conversão dos indígenas à fé cristã se deu
por meio do sincretismo religioso.

• Na América do Norte, os grupos indígenas abordados no texto foram os hurons-


wendats, os sioux e os cherokees.

115
AUTOATIVIDADE

1 Antes mesmo da chegada dos europeus na América, muitos dos povos


indígenas já se organizavam em sociedades marcadamente patriarcais.
Algumas das características do patriarcado estão presentes nas regulações
sobre o casamento, na prática da poligamia e na divisão sexual do trabalho.
Sobre as mulheres nas sociedades patriarcais pré-colombianas, analise as
sentenças e assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) As mulheres foram representadas na escrita asteca em diversos


hieróglifos, nos quais elas são apresentadas como governantes.
b) ( ) Ao contrário das sociedades europeias, as mulheres incas, maias e
astecas possuíam a liberdade de escolher seus maridos.
c) ( ) A poligamia era comum nas sociedades pré-colombianas, mas ela era
permitida apenas para homens e mulheres da nobreza.
d) ( ) Para a sociedade asteca, o adultério feminino era uma grande ofensa, e
a punição para a mulher era a morte.

2 O contato dos conquistadores espanhóis com os povos indígenas privilegiou


a suposta superioridade da cultura europeia. Os espanhóis, além de riquezas,
buscaram, ao lado dos missionários, a conversão dos nativos ao cristianismo.
Sobre o aspecto cultural, Todorov (2003, p. 183), escreve que “Cortez compreende
relativamente bem o mundo asteca que se descobre diante de seus olhos,
certamente melhor do que Montezuma compreende as realidades espanholas.
E, contudo, essa compreensão superior não impede os conquistadores de
destruir a civilização e a sociedade mexicanas; muito pelo contrário, tem-se a
impressão de que é justamente graças a ela que a destruição se torna possível”.

FONTE: TODOROV, T. A conquista da América: a questão do outro. 3. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.

Sobre os primeiros anos da conquista espanhola da América, classifique V para


as sentenças VERDADEIRAS, e F para as sentenças FALSAS:

( ) Após uma vitória, as mulheres indígenas eram o único espólio de guerra


tomado pelos espanhóis.
( ) No início da colonização, poucas mulheres europeias vieram para a América.
( ) A indígena Malinche foi tradutora e concubina de Hernán Cortés, e o
auxiliou na descoberta de Tenochtitlán.
( ) A Igreja Católica buscou punir severamente os atos imorais cometidos
pelos espanhóis contra os povos indígenas.

Agora, assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) V, V, F, F.
b) ( ) F, F, V, V.
c) ( ) F, V, V, F.
d) ( ) V, F, F, F.

116
UNIDADE 2 TÓPICO 3

MULHERES INDÍGENAS, EUROPEIAS E AFRICANAS NA


AMÉRICA COLONIAL

1 INTRODUÇÃO
Caro acadêmico, neste Tópico 3 adicionaremos às discussões sobre as
mulheres indígenas e europeias, as mulheres africanas. Sabe-se que, durante o
período do tráfico negreiro, algo em torno de 8 a 11 milhões de africanos foram
escravizados e trazidos para as Américas (SCHWARCZ; STARLING, 2015). As
mulheres corresponderam à cerca de 30 ou 40 porcento deste total (SOCOLOW, 2015).

Em território americano, os africanos escravizados tiveram dificuldades


em manter suas tradições, sendo que, diversos costumes foram perdidos. As
identidades étnicas também ficaram sob ameaça, pois nem sempre era possível
para um africano encontrar alguém de sua etnia disponível para se casar, ter
filhos e dar continuidade às identidades tribais e étnicas.

DICAS

Caro acadêmico, utilizamos a palavra escravizado pois entendemos se tratar


de uma condição imposta a alguém. Já a palavra escravo passou a se aproximar de
uma possível identidade, ou essência do sujeito. No entanto, dependendo do contexto,
mantemos o uso da palavra escravo.

Que tal ler mais sobre essa discussão? O conteúdo a seguir certamente será útil
em seus estudos e nas aulas que você ministrará sobre o tema. Acesse: https://novaescola.
org.br/plano-de-aula/5978/escravo-ou-escravizado#.

A busca pela manutenção dos costumes era uma forma de ligação com a
vida no continente africano e com seus antepassados. As mulheres, por exemplo,
buscaram preservar a prática, presente na África Ocidental, da amamentação
prolongada, além dos dois anos de idade da criança. Símbolo do trabalho
árduo nas fazendas e nas cidades, as africanas também foram responsáveis pela
introdução de diversas palavras no vocabulário brasileiro, pela preservação de
músicas, danças, comidas, crenças e costumes, que reformularam tradições e
ajudaram a formar o Brasil atual.

117
UNIDADE 2 | AMÉRICA: HISTÓRIA DAS MULHERES E GÊNERO

2 AS ETNIAS DA AMÉRICA COLONIAL


A partir da metade do Século XVI, três povos culturalmente e etnicamente
diferentes passaram a conviver na América Latina. As relações entre os povos
originários — também denominados como povos indígenas —, europeus, com
destaque para os ibéricos, e africanos escravizados, fazem da América Latina um
objeto de estudo complexo. Ainda mais por sabermos que a questão racial foi
determinante nas relações sociais da região (SOCOLOW, 2015).

A complexidade dos elementos sociais envolvendo indígenas, brancos e


negros, expandiu com as novas categorias raciais que surgiram após os contatos
sexuais entre estas três etnias. Mulatos, caboclos, cafuzos, mestiços e mamelucos
são algumas das nomenclaturas criadas para denominar as novas categorias
raciais. Vale destacar que, na sociedade colonial, os papéis sociais estavam ligados
à cor/raça do indivíduo. Desse modo, pode-se concluir que, para as mulheres,
além da limitação de oportunidades por causa do gênero, elas também poderiam
ser preteridas socialmente devido aos estereótipos raciais e à posição no interior
das hierarquias de classe (SOCOLOW, 2015).

No entanto, é consenso, entre historiadores, o entendimento referente à


imposição, por parte dos europeus, de sua cultura como a dominante na região.
Atualmente, aspectos como os idiomas, a religião predominantemente cristã, além
de diversos costumes europeus presentes no dia a dia dos latino-americanos, atesta
a permanência das imposições efetuadas no período colonial (SOCOLOW, 2015).

3 TRABALHO
O gênero do escravizado influenciou diretamente na destinação prevista
para ele em solo americano. Os homens eram direcionados, em sua maioria,
às zonas rurais. Por sua vez, nas cidades da América Latina, o número de
mulheres era significativamente maior do que o de homens. Nas cidades, as
mulheres escravizadas trabalhavam, em maior número, nos afazeres domésticos,
limpando, cozinhando, lavando e costurando para suas senhoras e seus senhores.
Elas também faziam companhia as suas senhoras, ou, sinhás, como também eram
denominadas (SOCOLOW, 2015).

As mulheres da elite, sinhás ou sinhás-moças, costumavam ter duas ou


três mucamas como damas de companhia em seus passeios pela cidade, idas aos
mercados e às missas, o que era um símbolo de status social, até mesmo para as
escravizadas escolhidas para serem as damas de companhia (FREYRE, 2003).

Nas cidades onde a circulação de produtos era consideravelmente maior


do que nas zonas rurais, destacou-se a presença de escravos de ganho. Esses
escravizados prestavam serviços para terceiros e, ao receberem o pagamento,
poderiam ficar com uma parte do valor, devendo remeter o restante ao seu
proprietário. Nessas condições, entre outras atividades, as escravizadas
trabalhavam como costureiras, lavadeiras ou vendedoras (SOCOLOW, 2015).

118
TÓPICO 3 | MULHERES INDÍGENAS, EUROPEIAS E AFRICANAS NA AMÉRICA COLONIAL

A venda de produtos em tabuleiros pelas escravizadas foi comum em


diversas regiões da América Latina, mas, no Brasil, constituiu uma das principais
marcas da presença africana no país. As negras de tabuleiro, também chamadas
de quitandeiras, vendiam uma variedade de produtos, alguns com certa
exclusividade. Por exemplo, a venda de peixes (Figura 10) esteve estreitamente
vinculada a estas escravizadas (SOCOLOW, 2015).

FIGURA 8 – NEGRAS VENDEDORAS, DE CARLOS JULIÃO, SÉCULO XVIII

FONTE: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Juliao09.JPG>. Acesso em: 2 jan. 2020.

A venda dos produtos pelas quitandeiras rendia bons jornais, isto é, a


quantia cobrada pelos proprietários de escravos por dia de trabalho. No contexto
das sociedades hierárquicas da América Latina, as vendedoras conseguiram
acumular certa quantia, além de disporem de alguma liberdade e até mesmo
privilégio frente aos demais escravizados (SOCOLOW, 2015). Com os ganhos
provenientes dos tabuleiros, muitas escravizadas conseguiram comprar suas
cartas de alforria (PAIVA, 2018).

Por estarem frequentemente em contato com diversos segmentos


da sociedade colonial, as quitandeiras eram, constantemente, alvos de
regulamentações das autoridades. Conforme o historiador Luciano Figueiredo
(1993, p. 34), as:

[...] negras de tabuleiro e vendeiras tornaram-se, em Minas Gerais


colonial, agentes pródigos na trama da desordem social, excessiva
e cotidianamente latente no transcurso daquele intranquilo século.
Temidas, assim como o contrabando de ouro e diamantes, os
quilombolas e os quilombos, os becos e as vielas escuras, e as armas
e a aguardente em mãos e bocas de negros e mulatos, despertariam
incessantes 72 medidas punitivas da administração colonial e
metropolitana, legitimadas sempre na suposta imoralidade decorrente
da presença feminina nessas tarefas, assim como nos danos causados à
propriedade particular e ao Estado.

119
UNIDADE 2 | AMÉRICA: HISTÓRIA DAS MULHERES E GÊNERO

DICAS

Caro acadêmico, você sabia que a tradição das negras de tabuleiro permanece
viva na atualidade? No artigo, As baianas do acarajé, de Carolina Cantarino, disponível no
site do IPHAN, pelo endereço http://www.labjor.unicamp.br/patrimonio/materia.php?id=65,
são apresentados elementos que relacionam a venda de produtos pelas negras de tabuleiro
no Brasil colonial às atuais vendedoras de acarajé. Boa leitura!

Outra função amplamente desempenhada pelas escravizadas foi a de ama


de leite. A amamentação realizada pelas amas de leite foi essencial na criação
dos filhos dos senhores, bem como se tornou um negócio lucrativo. Era comum
que proprietários de escravos publicassem anúncios em jornais oferecendo os
serviços das amas de leite, as quais, em muitos casos, precisaram abandonar a
amamentação de seus próprios filhos para atender aos interesses comerciais de
seus senhores (SOCOLOW, 2015; TELLES, 2018). A historiadora Lorena Féres da
Silva Telles (2018, p. 100), ao falar sobre as amas de leite, destaca que:

Transplantando para as Américas os padrões de criação de filhos entre


as aristocracias europeias, que empregavam mulheres empobrecidas
como amas de leite, as mulheres brancas das elites delegaram o
aleitamento de seus bebês a suas cativas, prática comum a todas as
sociedades escravistas do Atlântico. A crença na fragilidade das mães
brancas e de seu leite, considerado fraco em oposição ao mito da
robustez e da abundância de leite entre as mulheres negras e africanas,
concorreu para a adoção da prática que se tornou disseminada nas
fazendas e centros urbanos da Colônia e do Império.

O destino dos filhos das amas de leite dependia das condições financeiras
e dos interesses de seus senhores. A criança poderia permanecer na casa do senhor
de escravo, ser vendida, doada para algum familiar ou entregue aos cuidados
de outras mulheres, as amas de criação, que cobravam pelo serviço. O bebê
ainda poderia ser abandonado em escadarias de igrejas, praças e outros locais
movimentados. O mais comum era o abandono de bebês nas rodas dos expostos,
ou enjeitados, para serem recolhidos e amparados pela Igreja (TELLES, 2018).

120
TÓPICO 3 | MULHERES INDÍGENAS, EUROPEIAS E AFRICANAS NA AMÉRICA COLONIAL

FIGURA 9 – ABANDONO DE BEBÊ NA RODA DOS EXPOSTOS

FONTE: Venâncio (2017, p. 195)

DICAS

Sobre a temática da maternidade, recomendamos a leitura do capítulo


intitulado Maternidade negada, escrito pelo historiador Renato Pinto Venâncio. No texto,
são abordadas as motivações para o abandono, a frequência em que ocorriam, o cuidado
que os bebês receberiam após o abandono, bem como as diversas formas de maternidade
e noções de amor materno.

Recomendamos também a leitura dos demais capítulos do livro História das mulheres no
Brasil, primorosa obra organizada pela historiadora Mary Del Priore. Boa leitura!

FONTE: <https://images-na.ssl-images-amazon.com/images/I/510SZdIV3CL._SX258_
BO1,204,203,200_.jpg>. Acesso em: 29 jan. 2020.

FONTE: VENÂNCIO, R. P. Maternidade negada. In: DEL PRIORE, M. (Org.). História das


mulheres no Brasil. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2017. p. 189-222.

121
UNIDADE 2 | AMÉRICA: HISTÓRIA DAS MULHERES E GÊNERO

4 PROSTITUIÇÃO
Consideradas propriedades de seus senhores, as escravizadas foram
vítimas de diversos abusos, incluindo o sexual. Também era comum que senhores
e sinhás obrigassem suas escravas a se prostituírem, visto que a procura por
mulheres negras e mulatas pelos homens brancos era constante e crescente. Embora
a prostituição fosse marcada pela violência, exploração e contato com diversas
doenças sexualmente transmissíveis, ela proveu bons rendimentos para senhores
e escravizadas. Muitas mulheres conseguiram a própria liberdade, e de pessoas
próximas, com o dinheiro proveniente da prostituição (SOCOLOW, 2015).

Paradoxalmente, foi a prostituição de mulheres negras, pardas e brancas


pobres que possibilitou a manutenção da castidade pelas mulheres da elite
(FIGUEIREDO, 1993). Conforme a historiadora Mary Del Priore (1993, p. 157), criou-
se uma dualidade entre a mulher branca, “a mãe condenada a gerar, a dobrar-se ao
peso dos trabalhos para a criação dos filhos, excluída de qualquer rotina de prazer
erótico [...]” e, no outro lado, “[...] a prostituta estéril à força de abortivos, condenada
a não ter prole, amalgamada a uma concepção que condenava a esterilidade a ser
vivida como uma tara, uma anormalidade, uma maldição”.

5 CONTROLE E VIOLÊNCIA
Os escravizados eram constantemente vigiados pelas autoridades,
que até mesmo delimitavam os locais das cidades nos quais os escravizados
poderiam circular. Acusações de vadiagem, embriaguez, bruxaria, brigas e furtos
eram frequentemente punidas com violência. O lundu, uma dança praticada
por escravizados, pessoas livres e libertas, chegou a ser proibido, acusado de
ser profano e lascivo em excesso. De todo o modo, a violência mais extremada
era infligida aos escravizados e às escravizadas que tivessem fracassado na
fuga. Nas punições não havia diferenciação por gênero, o fator que conferia a
punição era a falta cometida pelo escravizado (SOCOLOW, 2015). Outras formas
de violência não eram aplicadas em decorrência de alguma prática indevida
realizada pelo escravizado, e sim como resultado de uma sociedade patriarcal
hierarquicamente estabelecida.

Exemplo disso, a violência sexual esteve amparada na ausência, ou na


inaplicabilidade de leis que protegessem as mulheres escravizadas vítimas de
abuso, e possibilitava aos senhores as tomarem como concubinas. Em muitos
casos, de forma controversa, ao introjetarem os ideais raciais dos europeus
presentes na colônia, as escravizadas que tivessem relacionamentos com
homens brancos eram tidas como privilegiadas, ainda mais se destas relações
fossem geradas crianças embranquecidas (SOCOLOW, 2015). Nesse contexto, o
relacionamento mais debatido pela historiografia foi o de Chica da Silva com
João Fernandes de Oliveira.

122
TÓPICO 3 | MULHERES INDÍGENAS, EUROPEIAS E AFRICANAS NA AMÉRICA COLONIAL

6 VIVÊNCIAS FEMININAS EM MINAS GERAIS: CHICA DA SILVA


Francisca da Silva nasceu em alguma data entre os anos de 1731 e 1735,
nas redondezas do arraial do Tijuco, atual Diamantina, em Minas Gerais. Sabe-se
que sua mãe se chamava Maria da Costa, e era uma negra escravizada trazida
da Costa da Mina, seu pai, Antônio Caetano de Sá, era português. Chica da Silva
nasceu escravizada, e, ainda na juventude, foi vendida a Manuel Pires Sardinha,
médico e proprietário de lavras para exploração de diamantes no Tijuco, de quem
se tornou concubina. Em 1751, nasceu o primeiro filho da relação, de nome Simão
Pires Sardinha (FURTADO, 2003; 2013).

Dois anos depois, em 1753, chegou ao arraial do Tijuco o contratador de


diamantes João Fernandes de Oliveira. Nascido em Mariana no ano de 1727, filho
do sargento-mor de mesmo nome e de Maria de São José, João Fernandes de
Oliveira estudou em Coimbra e chegava à região das minas com a intenção de
fazer fortuna. Pouco tempo depois, conheceu Chica da Silva, e se apaixonou pela
jovem e bonita mulata clara (FURTADO, 2003; 2013).

João Fernandes de Oliveira compra a escravizada Chica da Silva de Manuel


Pires Sardinha e, em seguida, a alforria. Nesse ponto, é relevante que saibamos,
como nos fala a historiadora Júnia Ferreira Furtado (2003, p. 23), que, “em vez
de ponto de partida para a constituição afirmativa de uma identidade negra,
a alforria foi muitas vezes o início do processo de aceitação de valores da elite
branca, de forma a inserir-se, assim como a seus descendentes, nessa sociedade”.

Em 1755, nasceu a primeira filha do casal, Francisca de Paula. No registro


de nascimento, pela primeira vez, aparece o nome de Chica como Francisca da
Silva de Oliveira, adicionando o sobrenome de João Fernandes. O nome do pai
não foi incluído, pois o concubinato não era aceito nos registros de nascimento
(FURTADO, 2013). De todo modo, é importante destacar que “o concubinato
com homens brancos oferecia por um lado algumas vantagens às mulheres
negras, pois, uma vez livres, viam diminuir o estigma da cor e da escravidão”
(FURTADO, 2003, p. 108). No total, o casal teve treze filhos, os quais receberam a
melhor educação formal.

Chica, interiorizando os valores e preconceitos de sua época, buscou


formas de contornar o seu passado de ex-escravizada e sua cor de pele parda
(FURTADO, 2013). Ela participou das principais irmandades da região, acumulou
posses e foi senhora de escravos, contradição que, segundo Furtado (2013, p.
387), revela que, “sob o manto de pretensa democracia racial, sutil e veladamente
uma sociedade mestiça procurava branquear-se e escapar por variados recursos,
inclusive a dissimulação, da fria exclusão sociorracial”.

João Fernandes de Oliveira, que havia ido para Portugal em 1770 resolver
assuntos referentes ao testamento de seu pai, faleceu em Lisboa no ano de 1779.
Chica da Silva faleceu em casa, no dia 16 de fevereiro de 1796. Símbolo da ascensão
social, foi enterrada na igreja da Irmandade de São Francisco de Assis, frequentada

123
UNIDADE 2 | AMÉRICA: HISTÓRIA DAS MULHERES E GÊNERO

pela elite branca. Anos depois, o corpo de Chica da Silva foi transferido para uma
sepultura na parte externa da igreja. Nos Séculos XIX e XX ocorre a redescoberta
de Chica da Silva, e sua memória persiste na ficção que a mistifica, assim como na
historiografia que busca compreendê-la (FURTADO, 2003; 2013).

A história de Chica da Silva apareceu pela primeira vez nas páginas do


livro Memórias do distrito Diamantino, escrito por Joaquim Felício dos Santos e
publicado em 1868. Nos anos seguintes, ela seria tema de romances, poesias, filmes
e novela. Chica foi personagem no Romanceiro da Inconfidência (1953) de Cecília
Meireles. Foi interpretada por Zezé Motta no filme Xica da Silva (1976) do diretor
Cacá Diegues. E, vinte anos depois, na novela homônima de Walcyr Carrasco,
Chica foi interpretada pela atriz Taís Araújo. Entendemos, caro acadêmico, que
cada uma destas obras reflete os valores e os interesses de sua época.

DICAS

Em Chica da Silva e o contratador dos diamantes: o outro lado do mito (2003),


a historiadora Júnia Ferreira Furtado nos apresenta a Chica da Silva histórica, ao passo que
compreendemos o contexto e as mais diversas formas de existência presentes no Século
XVIII na região das minas.

FONTE: <http://twixar.me/JHBT>. Acesso em: 29 jan. 2020.

FONTE: FURTADO, J. F. Chica da Silva e o contratador de diamantes: o outro lado do mito.


São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 440 p.

124
TÓPICO 3 | MULHERES INDÍGENAS, EUROPEIAS E AFRICANAS NA AMÉRICA COLONIAL

7 MATRIMÔNIO E MATERNIDADE
Juntamente com conversão à fé cristã, as coroas ibéricas e a Igreja Católica
defendiam o casamento religioso entre os escravizados. Por outro lado, os
senhores de escravos eram contra a prática, pois a venda de escravos por casal
era mais complicada do que a venda de escravos solteiros. Para os escravizados,
o casamento possibilitava a formulação de uma família, embora o medo da venda
de parceiros e filhos fosse constante. Outra vantagem proveniente do matrimônio
era a ampliação dos contatos sociais e da possibilidade de conseguir a alforria
(SOCOLOW, 2015).

Em outros casos, devido ao abandono de mulheres grávidas, ou à morte


dos maridos, não raramente as escravizadas trabalhavam e cuidavam dos filhos
sozinhas. Elas costumavam possuir baixas taxas de fertilidade. Normalmente,
uma mulher escravizada tinha no máximo quatro filhos durante a vida, o que era
pouco para alguns proprietários, que as viam como um investimento. Os motivos
para a baixa fertilidade são diversos, como a má nutrição das mães, a menarca
tardia, a lactação prolongada, o trabalho pesado, os maus tratos e a expectativa
de vida relativamente baixa entre as escravizadas, embora as mulheres vivessem
mais do que os homens (SOCOLOW, 2015). Para Schwarcz e Starling (2015, p. 90):

A baixa fecundidade e a alta mortalidade infantil desaconselhavam


a “criação de escravos” como ocorria nos EUA. Vários motivos
explicavam a baixa fecundidade: a subnutrição, que costuma retardar
a menarca; o trabalho excessivo, e a desproporção numérica entre os
sexos. Há também explicações culturais. Entre os iorubás vigorava a
abstinência sexual no pós-parto e a convicção de que a saúde da criança
estaria ameaçada diante de nova gravidez. É no mínimo paradoxal
pensar que, em vez da propalada ideia da “promiscuidade sexual”
vigente entre escravos, imperasse uma quase ausência deliberada de
relações sexuais.

Além da baixa taxa de fertilidade, entre os escravizados, era alta a taxa de


mortalidade infantil. Estima-se que uma em cada quatro crianças nascidas morriam
antes de completar um ano de idade. Se somarmos a taxa de mortalidade, ao
número de natimortos e ao de abortos realizados pelas escravizadas, perceberemos
que, embora a criança nascida de uma escravizada automaticamente se tornasse
também uma escravizada, para manter o ritmo acelerado de trabalho nas lavouras,
nas residências ou nas cidades, era preciso que os senhores constantemente
adquirissem escravos adultos (SOCOLOW, 2015).

De todo o modo, a maternidade se tornou o âmbito de excelência das


mulheres no Brasil colonial. Segundo Del Priore (1993, p. 334), “a identidade feminina
fazia-se a partir da maternidade, independentemente de a mulher pertencer à casa-
grande, à senzala ou à palhoça bandeirista”. Aqui, novamente, vemos a internalização
do ideal de mulher como reprodutora e perpetuadora da espécie.

125
UNIDADE 2 | AMÉRICA: HISTÓRIA DAS MULHERES E GÊNERO

8 ALFORRIA
A liberdade poderia ser conseguida através do pagamento da carta de
alforria, conferida pelo proprietário em vida ou como parte de seu testamento.
Embora as senhoras possuíssem menos escravos, em números relativos, foram
elas as que mais concederam a liberdade. Por outro lado, alguns proprietários
manipulavam os escravizados com promessas de liberdade que eram
constantemente preteridas. Também os termos e os valores acordados para
a alforria poderiam ser alterados pelos senhores, embora fosse uma prática
repreendida até mesmo pelas autoridades legais (SOCOLOW, 2015).

Mesmo após a conquista da liberdade, uma mulher negra, ou mulata,


principalmente se fosse jovem, que tivesse perdido a documentação que atestasse
sua alforria, poderia ser novamente escravizada. Na maioria das vezes, a mulher
liberta permanecia realizando as mesmas atividades, com o diferencial de não ter
que pagar os jornais para os senhores. Algumas dessas mulheres negras investiram
suas economias em negócios, como tabernas, armazéns de secos e molhados,
celeiros e pousadas (SOCOLOW, 2015; SCHWARCZ; STARLING, 2015).

DICAS

Para compreender a história das formas de alforria, e como ela foi utilizada no
interior da sociedade escravocrata brasileira, recomendamos a leitura do capítulo intitulado
Alforrias, escrito pelo historiador Eduardo França Paiva, texto integrante do livro Dicionário
da escravidão e liberdade: 50 textos críticos, organizado pela historiadora Lilia Moritz
Schwarcz e pelo historiador Flávio dos Santos Gomes. Aproveitamos também para sugerir
a leitura dos outros 49 textos presentes na obra.

FONTE: <https://images-na.ssl-images-amazon.com/images/I/51czdvR4mbL.jpg>.
Acesso em: 29 jan. 2020.

FONTE: PAIVA, E. F. Alforrias. In: SCHWARCZ, L. M.; GOMES, F. dos S. (Orgs.). Dicionário da


escravidão e liberdade: 50 textos críticos. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 92-98.

126
TÓPICO 3 | MULHERES INDÍGENAS, EUROPEIAS E AFRICANAS NA AMÉRICA COLONIAL

Nas regiões das minas, no Brasil, as autoridades locais realizavam


incursões constantes a estes locais, devido à suspeita de que as proprietárias
vendiam produtos contrabandeados e acobertavam escravizados fugitivos ou
que estariam planejando fugas para os quilombos da região. Principalmente
as tabernas eram percebidas como um lugar de degenerescência, onde os
escravizados gastariam sua potência física e dinheiro com jogos, prostitutas e
bebidas (SOCOLOW, 2015). Em casos mais isolados, ex-escravizadas conseguiram
adquirir pequenas propriedades, residências e até mesmo comprar seus próprios
escravos (SOCOLOW, 2015).

E
IMPORTANT

Sobre a concessão de alforrias, as historiadoras Heloisa Maria Murgel Starling e


Lilia Moritz Schwarcz escreveram que:

Houve uma especificidade no modelo brasileiro de escravidão, que foi a brecha da


alforria. As manumissões relacionavam-se ao bom comportamento, mas também à compra
da liberdade por parte do escravo. Na colônia, permitia-se que este acumulasse um pecúlio,
e não poucas vezes mulatos que exerciam funções especializadas podiam ter a esperança de
um dia serem livres. A alforria existiu em toda a história da nossa escravidão (apesar de não
estar incluída em nenhuma lei civil ou religiosa). Ela poderia ainda constar de testamentos, ou
ser utilizada como recompensa por lealdade ou afeição pessoal. Mulheres, crianças e cativos
especializados eram mais alforriados que homens adultos, e na Bahia mulatos receberam 45%
das alforrias. Não obstante, o número absoluto de alforrias era pequeno, não ultrapassando
1% ao ano durante os Séculos XVI e XVII. Já as possibilidades de reescravização eram das
mais altas. Todas as manumissões poderiam ser revogadas e dependiam do comportamento
tido como adequado para os ex-escravos. Consideravam-se suficientes para pôr fim à alforria
casos de deslealdade por parte dos libertos, assim como se apreendiam sem dificuldade
negros em viagem, e anulavam-se seus passaportes e registros.

FONTE: SCHWARCZ, L. M.; STARLING, H. Brasil: Uma Biografia. São Paulo: Companhia das
Letras, 2015. p. 95.

9 RESISTÊNCIA
Em todas as regiões da América houve resistência por parte dos
escravizados, fossem eles indígenas ou africanos. As mulheres africanas
engendraram diversas formas de resistência, sendo as mais comuns o corpo mole
no trabalho, as sabotagens, a fuga para os quilombos, a participação nas revoltas,
o aborto, e até mesmo o suicídio. Por terem um vasto conhecimento sobre as
propriedades de diversas ervas e outras plantas, as escravizadas fabricaram
diversos venenos, fato que as tornavam temidas por seus senhores e por suas
senhoras (SOCOLOW, 2015).

127
UNIDADE 2 | AMÉRICA: HISTÓRIA DAS MULHERES E GÊNERO

NOTA

A resistência escrava deu origem a mocambos ou quilombos guerreiros,


surgidos na América portuguesa a partir do Século XVI. A palavra ‘mocambo’ significa
‘esconderijo’; já ‘quilombo’ foi o termo utilizado em algumas regiões do continente
africano, especialmente em Angola, para caracterizar um tipo de acampamento fortificado
e militarizado, composto de guerreiros que passavam por rituais de iniciação, adotavam
uma dura disciplina e praticavam a magia. O uso de ‘quilombo’ para designar agrupamentos
de cativos fugidos se generalizou depois de Palmares [...].

FONTE: SCHWARCZ, L. M.; STARLING, H. Brasil: Uma Biografia. São Paulo: Companhia das
Letras, 2015. p. 98.

Mulheres escravizadas ou ex-escravizadas participaram ativamente de


atos de resistência, tais como a formação de quilombos, a organização de fugas
e a difusão dos ideais abolicionistas. Entre estas mulheres estão nomes como
Acotirene, Adelina, Anastácia, Aqualtune, Dandara dos Palmares, Esperança
Garcia, Eva Maria de Bonsucesso, Felipa Maria Aranha, Luísa Mahin, Mariana
Crioula, Maria Felipa de Oliveira, Teresa do Quariterê, Tereza de Benguela, Tia
Simoa, Zacimba Gaba e Zeferina.

10 RELIGIÃO E RELIGIOSIDADE
Forçados a renegar as tradições africanas em nome da fé cristã, os
escravizados buscaram formas de manter suas tradições mesmo sob os olhos
atentos de missionários e padres. Como resultado do sincretismo religioso, tanto
na América espanhola, quanto na portuguesa, diversos santos católicos receberam
caraterísticas de crenças africanas (SOCOLOW, 2015; REIS, 2012).

A adoração de determinados santos e santas foi estimulada pela criação de


confrarias, que passaram a reunir um grande número de escravizados e, por esse
motivo, fez com que as autoridades levantassem a suspeita de que fossem reuniões
de adoração profana, planejamento de fugas, ou outras atividades ilícitas, muitas
delas realizadas nos terreiros de candomblé (SOCOLOW, 2015; REIS, 2012).

11 RELAÇÕES DE GÊNERO NOS ENGENHOS DE AÇÚCAR


Se nas cidades coloniais portuguesas e espanholas o número de mulheres
era maior do que o de homens, nas zonas rurais, onde predominavam as grandes
fazendas e plantações, ocorreu o inverso. Estima-se que, nessas regiões, havia
cerca de dois ou três homens para cada mulher (SOCOLOW, 2015).

128
TÓPICO 3 | MULHERES INDÍGENAS, EUROPEIAS E AFRICANAS NA AMÉRICA COLONIAL

NOTA

Caro acadêmico, este não é um padrão para toda a América, visto que
a proporção sofreria influência do tamanho e do tipo de plantação para qual estariam
alocados estes escravizados.

Nas fazendas, a maior parte das escravizadas trabalhava nas plantações,


enquanto um número reduzido era destinado aos afazeres domésticos. Aquelas
destinadas às plantações normalmente realizavam as mesmas atividades que os
homens, isto é, preparar o solo, plantar e colher, seja o cacau, a cana-de-açúcar, o
café e, mais especificamente na América espanhola, o índigo. Algumas atividades
eram realizadas apenas pelos homens escravizados, como o corte de árvores e
o carregamento de itens pesados. Trabalhando a mesma quantidade de horas
diárias, cerca de dezoito, as mulheres apenas seriam destinadas a atividades
menos exaustivas caso estivessem grávidas ou amamentando (SOCOLOW, 2015).

Nos engenhos de cana-de-açúcar, as mulheres escravizadas trabalharam


em todo o processo de produção do açúcar e da aguardente. Além do trabalho nos
canaviais, as mulheres estiveram envolvidas no corte de madeira, na alimentação
das fornalhas, na perigosa tarefa de moer a cana, na casa de purgar, na separação
e na pesagem do açúcar. Porém, às mulheres não foi dado acesso às funções mais
especializadas, como a de mestre do açúcar, tanoeiro, carpinteiro ou qualquer
outro tipo de trabalho artesanal. Elas também estiveram afastadas das atividades
administrativas e do transporte de produtos (SOCOLOW, 2015).

FIGURA 10 – MULHERES E HOMENS ESCRAVIZADOS TRABALHANDO EM ENGENHO


DE AÇÚCAR, POR HENRY KOSTER, 1816

FONTE: <https://i.pinimg.com/originals/2e/ec/4e/2eec4eb25df1eac721533787acea3228.jpg>.
Acesso em: 29 jan. 2020.

129
UNIDADE 2 | AMÉRICA: HISTÓRIA DAS MULHERES E GÊNERO

As atividades realizadas pelas mulheres nos engenhos costumavam ser


perigosas, como relata o padre italiano André João Antonil em seu livro Cultura
e opulência do Brasil, por suas drogas e minas, publicado em Lisboa no ano de 1711.
Em território brasileiro, Antonil constatou que, na longa e cansativa jornada
de trabalho nos engenhos, algumas mulheres escravizadas chegavam a dormir
durante o processo de moagem de cana, sendo que este era o mais perigoso de
todos os processos envolvidos na produção do açúcar e da aguardente (ANTONIL,
1982). Em uma das passagens de seu livro, Antonil relata que:

O feitor da moenda chama a seu tempo as escravas, recebe a cana e a


manda vir e meter bem nos eixos e tirar o bagaço, atentando que as
negras não durmam, pelo perigo que há de ficarem presas e moídas, se
lhes não cortarem as mãos, quando isto suceda, e mandando juntamente
divertir [sic] a água da roda, para que pare (ANTONIL, 1982, p. 34).

E
IMPORTANT

De acordo com o historiador Stuart B. Schwartz (2004, p. 350-351):

Durante a safra, o ritmo de trabalho era exaustivo. Os engenhos começavam


a operar às quatro horas da tarde e continuavam até as dez horas da manhã seguinte,
momento em que o equipamento era limpo e consertado. Após um descanso de quatro
horas, o processo recomeçava. As mulheres escravas passavam as canas através dos rolos
da prensa, que desse modo extraíam a garapa. Essa era depois transferida para uma série de
caldeiras de cobre, onde era progressivamente fervida, escumada e purgada. Era uma das
etapas mais delicadas do processo e dependia da habilidade e da experiência do mestre do
açúcar e dos homens que cuidavam de cada caldeirão. A tarefa de alimentar as fornalhas
sob os seis caldeirões era particularmente trabalhosa e às vezes atribuída, como castigo,
aos escravos mais recalcitrantes e rebeldes.

Depois de esfriar, o xarope de cana era despejado em fôrmas cônicas de cerâmica,


as quais eram colocadas em prateleiras na casa de purga. Lá, sob a direção do purgador, as
mulheres escravas preparavam os potes de açúcar para drenar os melaços, que poderiam
ser reprocessados para produzir açúcar de qualidade inferior ou destilados para a fabricação
da cachaça. O açúcar remanescente na fôrma cristalizava e, depois de dois meses, era
desenformado e colocado para secar numa grande plataforma elevada. Sob a supervisão
de duas escravas, as ‘mães do balcão’, eram separados os pães de açúcar. O açúcar branco,
de melhor qualidade, era separado do mais escuro, o muscavado, de qualidade inferior. No
Brasil, os engenhos maiores em geral produziam duas a três vezes mais a quantidade de
açúcar branco em relação ao mascavo. O açúcar era em seguida encaixotado sob o olho
atento do ‘caixeiro’, que também retirava o dízimo e, quando necessário, dividia o açúcar
entre o engenho e os lavradores de cana. As caixas eram depois timbradas com marcas que
indicavam o peso, a qualidade e a procedência antes de serem transportadas por barco ou
carro de boi para o porto marítimo mais próximo.

SCHWARTZ, S. B. O Brasil Colonial, c. 1580-c. 1750: As grandes lavouras e a periferia. In:


BETHELL, L. (Org.). História da América Latina: Volume II: América Latina Colonial. São
Paulo: EDUSP; Brasília: FUNAG, 2004. p. 339-421.

130
TÓPICO 3 | MULHERES INDÍGENAS, EUROPEIAS E AFRICANAS NA AMÉRICA COLONIAL

Nas fazendas, o trabalho doméstico realizado pelas escravizadas envolvia


atividades como limpar, cozinhar, lavar, costurar, realizar partos e cuidar das
crianças de seus senhores. A presença na casa-grande oferecia ganhos nas
condições de vida das escravizadas, as quais tinham acesso a melhores roupas,
boa alimentação e, principalmente em regiões como o nordeste brasileiro, a
proteção contra o trabalho exposto a elevadas temperaturas (SOCOLOW, 2015).

No entanto, independentemente de qual função a escravizada


desempenhasse, caso ela fosse pega tentando fugir ou cometendo alguma falta,
ela seria punida. Novamente, homens e mulheres eram igualmente punidos. Em
casos reincidentes, era comum que o escravizado, ou a escravizada utilizasse
ferros e correntes nas pernas, entre outras formas de violência física e disciplinar
(SOCOLOW, 2015).

E
IMPORTANT

Caro acadêmico, para compreender com maior propriedade a dominação e o


uso da violência pelos senhores, leia o que escreveu a historiadora Keila Grinberg (2018, p. 145):

Durante todo o período colonial, os castigos infligidos aos escravos eram


prerrogativa dos senhores, praticamente uma obrigação, reconhecida e corroborada pelos
costumes e pelas leis. Assim, o castigo deveria ser ‘justo’, só executado quando houvesse
motivos e de maneira corretiva, para evitar a reincidência. Se o domínio mais amplo sobre
a ordem escravista era mantido pelas autoridades coloniais, que reprimiam as fugas e a
formação de quilombos, a continuidade da dominação dos senhores sobre seus escravos
cabia aos próprios senhores. A ação do poder real se dava fora da unidade produtiva,
fora da casa do senhor. Fosse executado pelas autoridades ou pelo senhor, o controle
dos comportamentos seguia a mesma lógica: a punição deveria ser pública, exemplar,
reafirmando o poder do senhor ou do soberano.

FONTE: GRINBERG, K. Alforrias. In: SCHWARCZ, L. M.; GOMES, F. dos S. (Orgs.). Dicionário da


escravidão e liberdade: 50 textos críticos. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 144-148.

12 COLONIZAÇÃO DA AMÉRICA DO NORTE


O primeiro assentamento britânico a prosperar na América foi o de
Jamestown, na Virgínia. Fundada em 14 de maio de 1607 por colonos ingleses,
a colônia receberia as primeiras mulheres apenas em 1619. No ano seguinte,
chegaram, a bordo do navio Mayflower, os primeiros peregrinos a Massachusetts,
sendo que foi uma jovem de doze anos, chamada Mary Chilton, a primeira pessoa a
pisar em Plymouth. Em 1630, desembarcaram, na Colônia da Baía de Massachusetts,
os primeiros puritanos liderados pelo advogado John Winthrop (1588-1649).

131
UNIDADE 2 | AMÉRICA: HISTÓRIA DAS MULHERES E GÊNERO

FIGURA 11 – LENDÁRIO DESEMBARQUE DE MARY CHILTON EM PLYMOUTH, 1620

FONTE: <https://womensmuseum.files.wordpress.com/2017/11/mary_chilton_winslow_on_
plymouth_rock_ma_from_mayflower.png>. Acesso em: 05 jan. 2020.

Logo nos primeiros anos de colonização o tabaco se apresentou como o


principal produto de cultivo e, em 1620, tornou-se a unidade padrão da moeda
na Virgínia. Como vimos, a falta de mulheres na colônia era um problema para
a coroa britânica e para os colonos. Para resolver essa situação, a Companhia da
Virgínia buscou oferecer as oportunidades de vida no Novo Mundo para mais
mulheres. Aquelas que aceitassem, chegariam na colônia e seriam vendidas a
algum homem que havia enriquecido com a produção de tabaco. Curiosamente,
o preço pela esposa era de 150 libras de tabaco, mercadoria apreciada e facilmente
vendida na Europa (GRANT, 2012).

FIGURA 12 – COMPRA DE UMA ESPOSA

FONTE: Grant (2012, p. 43)

132
TÓPICO 3 | MULHERES INDÍGENAS, EUROPEIAS E AFRICANAS NA AMÉRICA COLONIAL

12.1 MULHERES E O PURITANISMO: O CASO DE ANNE


HUTCHINSON
Na perspectiva da época, as mulheres também causaram problemas nas
colônias britânicas. Em 1637, a pregadora puritana Anne Hutchinson (1591-1643)
foi julgada pela suspeita de antinomianismo, isto é, a prática de desconsiderar
elementos canônicos de uma religião em favor da revelação e da espontaneidade
da fé. Anne também duvidava de certos ensinamentos repassados pelos clérigos.
Outro ponto considerado no julgamento pelas autoridades puritanas estava
relacionado às reuniões religiosas que Anne promovia, nas quais, mulheres e
homens ficavam próximos em um mesmo ambiente (GRANT, 2012 ).

FIGURA 13 – ANNE HUTCHINSON

FONTE: <https://cdn.britannica.com/s:300x300/29/164529-050-3821CD58/Anne-Hutchinson.jpg>.
Acesso em: 3 jan. 2020.

Em 1638, Anne é banida da Colônia da Baía de Massachusetts e decide


ir com o seu grupo para a colônia de Rhode Island. Cerca de quatro anos depois,
Anne e algumas pessoas de seu grupo mudam para a colônia de Nova Iorque,
onde é morta, em 1643, em um ataque de indígenas (GRANT, 2012).

12.2 BRUXARIA NAS TREZE COLÔNIAS: AS BRUXAS DE SALEM


Nas Treze Colônias, as mulheres também foram estreitamente vinculadas
à bruxaria. O evento mais conhecido é o que envolve o julgamento das bruxas da
vila de Salem, atual Danvers, cidade do condado de Essex, em Massachusetts.
Em um contexto marcado por discussões dogmáticas entre os puritanos e o breve
reinado do católico Jaime II (1633-1701) na Inglaterra, coroado em fevereiro de
1685 e deposto pela Revolução Gloriosa em 1688, a crença no ocultismo, e em
especial na bruxaria, se alastrava tanto na Grã-Bretanha como nas colônias na
América (GRANT, 2012; ROSENTHAL, 1993).

133
UNIDADE 2 | AMÉRICA: HISTÓRIA DAS MULHERES E GÊNERO

No ano de 1688, em Boston, ocorreu a última execução de uma suposta


bruxa. Seu nome era Ann Glover. Pouco tempo depois, na vila de Salem, uma
escravizada chamada Tituba seria acusada de bruxaria e de realizar práticas
satânicas. Os casos de bruxaria em Salem iniciaram com a história das primas
Abigail Williams (11-12 anos) e Elizabeth Parris (9 anos) que, após adoecerem,
passaram a ter convulsões e a apresentar comportamentos estranhos. Pressionadas
por familiares e religiosos locais, as meninas admitiram que Tituba, Sarah Good
e Sarah Osborne eram bruxas e as responsáveis por deixá-las doentes. Julgadas e
condenadas, Tituba e Sarah Osborne foram presas, Sarah Good foi enforcada em
29 de julho de 1692 (GRANT, 2012; ROSENTHAL, 1993).

FIGURA 14 – JULGAMENTO DE UMA ACUSADA DE BRUXARIA, 1692

FONTE: <https://aventurasnahistoria.uol.com.br/media/uploads/4-salem-witch-trial-1692-
granger.jpg>. Acesso em: 04 jan. 2020.

A partir desse momento, disputas de perspectivas dentro do puritanismo,


antigas rivalidades entre famílias, com destaque para as famílias Putnam e Porter, e os
constantes embates contra os indígenas, que eram percebidos como seres diabólicos,
criaram um cenário de histeria, no qual as suspeitas e acusações de bruxaria se
multiplicaram. Durante o período de fevereiro de 1692 a maio de 1693, aproximadamente
150 pessoas foram presas, sendo que, era comum a prática da confissão forçada e a
atribuição de sentenças com base em fatores essencialmente subjetivos, a exemplo das
evidências espectrais. No total, foram executadas quatorze mulheres e cinco homens pela
prática de bruxaria (GRANT, 2012; ROSENTHAL, 1993).

Os julgamentos cessaram apenas quando o governador da Província da


Baía de Massachusetts, William Phips (1651-1695), dissolveu o tribunal que julgava
as acusações de bruxaria. Phips havia sido aconselhado pelo pai do ministro
puritano Cotton Mather (1663-1728), o clérigo puritano e presidente do Harvard
College, Increase Mather (1639-1723), sobre a fragilidade das evidências espectrais.
Para Increase Mather, a condenação de dez pessoas efetivamente culpadas, não
justificaria a morte de uma pessoa inocente (GRANT, 2012; ROSENTHAL, 1993).

134
TÓPICO 3 | MULHERES INDÍGENAS, EUROPEIAS E AFRICANAS NA AMÉRICA COLONIAL

NOTA

O próprio direito estadunidense teve, no episódio das bruxas de Salem, o início


das discussões envolvendo a presunção da inocência, princípio jurídico que estabelece que
uma pessoa, caso seja acusada de cometer um crime, será considerada inocente até que
seja provado o contrário.

Caro acadêmico, conforme vimos neste Tópico 3, as mulheres indígenas,


africanas e europeias exerceram um papel relevante na constituição dos diversos
costumes, tradições e etnias que constituem a América na atualidade. Temas
como prostituição, violência, controle, matrimônio, maternidade, alforria e
resistência foram destacados no intuito de relacionar as questões individuais com
o cenário mais amplo das sociedades em formação na América. Nesse sentido,
entendemos que relatos como o de Chica da Silva, de Anne Hutchinson e das
supostas bruxas de Salem auxiliam no entendimento das relações de gênero no
continente americano.

Ao chegarmos ao final desta Unidade 2, podemos perceber que,


juntamente com as questões de gênero, o processo de colonização da América
foi marcado por questões de raça e classe. Neste contexto, compreendemos que
conhecer as vivências de mulheres da América pré-colonial e colonial, suas formas
de subsistência e de resistência, constitui um alargamento das possibilidades
historiográficas e das abordagens da América nas aulas de História. Esperamos
que você tenha apreciado a leitura. Para nós foi prazeroso acompanhá-lo nesta
Unidade 2.

Aproveite este momento para conferir a Leitura Complementar, ler o


Resumo do Tópico 3 e realizar as autoatividades. Bons estudos!

135
UNIDADE 2 | AMÉRICA: HISTÓRIA DAS MULHERES E GÊNERO

LEITURA COMPLEMENTAR

QUEM TEM MEDO DO FEMINISMO NEGRO?

Djamila Ribeiro

O feminismo negro começou a ganhar força a partir da segunda onda do


feminismo, entre 1960 e 1980, por conta da fundação da National Black Feminist,
nos Estados Unidos, em 1973, e porque feministas negras passaram a escrever
sobre o tema, criando uma literatura feminista negra. Porém, gosto de dizer que,
bem antes disso, mulheres negras já desafiavam o sujeito mulher determinado
pelo feminismo.

Em 1851, Sojourner Truth, ex-escrava que se tornou oradora, fez seu


famoso discurso intitulado “E não sou eu uma mulher?” na Convenção dos
Direitos das Mulheres em Ohio, em que dizia:

Aquele homem ali diz que é preciso ajudar as mulheres a subir numa
carruagem, é preciso carregá-las quando atravessam um lamaçal, e elas devem
ocupar sempre os melhores lugares. Nunca ninguém me ajuda a subir numa
carruagem, a passar por cima da lama ou me cede o melhor lugar! E não sou eu
uma mulher? Olhem para mim! Olhem para meu braço! Eu capinei, eu plantei,
juntei palha nos celeiros, e homem nenhum conseguiu me superar! E não sou
eu uma mulher? Consegui trabalhar e comer tanto quanto um homem - quando
tinha o que comer - e aguentei as chicotadas! Não sou eu uma mulher? Pari cinco
filhos, e a maioria deles foi vendida como escravos. Quando manifestei minha
dor de mãe, ninguém, a não ser Jesus, me ouviu! E não sou eu uma mulher?

Ou seja, ela já anunciava que a situação da mulher negra era radicalmente


diferente da situação da mulher branca. Enquanto àquela época mulheres brancas
lutavam pelo direito ao voto e ao trabalho, mulheres negras lutavam para ser
consideradas pessoas.

No Brasil, o feminismo negro começou a ganhar força nos anos 1980.


Segundo a socióloga Núbia Moreira:

A relação das mulheres negras com o movimento feminista se estabelece


a partir do III Encontro Feminista Latino-Americano ocorrido em
Bertioga em 1985, de onde emerge a organização atual de mulheres
negras com expressão coletiva com o intuito de adquirir visibilidade
política no campo feminista. A partir daí, surgem os primeiros
coletivos de mulheres negras, época em que aconteceram alguns
encontros estaduais e nacionais de mulheres negras. Em momentos
anteriores, porém, há vestígios de participação de mulheres negras
no Encontro Nacional de Mulheres, realizado em março de 1979. No
entanto, a nossa compreensão é que, a partir do encontro ocorrido em
Bertioga, se consolida entre as mulheres negras um discurso feminista,
uma vez que em décadas anteriores havia uma rejeição por parte de
algumas mulheres negras em aceitar a identidade feminista.

136
TÓPICO 3 | MULHERES INDÍGENAS, EUROPEIAS E AFRICANAS NA AMÉRICA COLONIAL

Existe ainda, por parte de muitas feministas brancas, uma resistência muito
grande em perceber que, apesar do gênero nos unir, há outras especificidades que
nos separam e afastam. Enquanto feministas brancas tratarem a questão racial
como birra e disputa, em vez de reconhecer seus privilégios, o movimento não vai
avançar, só reproduzir as velhas e conhecidas lógicas de opressão. Em O segundo
sexo, Beauvoir diz: “Se a ‘questão feminina’ é tão absurda é porque a arrogância
masculina fez dela uma ‘querela’, e quando as pessoas querelam não raciocinam
bem”. E eu atualizo isso para a questão das mulheres negras: se a questão das
mulheres negras é tão absurda é porque a arrogância do feminismo branco fez
dela uma querela, e quando as pessoas querelam não raciocinam bem.

Em obras sobre feminismo no Brasil é muito comum não encontrarmos


nada falando sobre feminismo negro. Isso é sintomático. Para quem é esse
feminismo então? É necessário entender de uma vez por todas que existem várias
mulheres contidas nesse ser mulher e romper com a tentação da universalidade,
que só exclui. Há grandes estudiosas e pensadoras brasileiras ou estrangeiras já
publicadas por aqui, como Sueli Carneiro, Jurema Werneck, Núbia Moreira, Lélia
Gonzalez, Beatriz Nascimento, Luiza Bairros Cristiano Rodrigues, Audre Lorde,
Patricia Hill Collins e Bell Hooks, que produziram e produzem grandes obras e
reflexões. Nunca é tarde para começar a lê-las.

FONTE: RIBEIRO, D. Quem tem medo do feminismo negro? São Paulo: Companhia das Letras,
2018. 152 p.

CHAMADA

Ficou alguma dúvida? Construímos uma trilha de aprendizagem


pensando em facilitar sua compreensão. Acesse o QR Code, que levará ao
AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo.

137
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu que:

• Em solo americano, as mulheres escravizadas buscaram preservar a prática,


presente na África Ocidental, da amamentação prolongada.

• Os relacionamentos entre indígenas, negros e brancos resultaram na formação


de sociedades miscigenadas. Mulatos, caboclos, cafuzos, mestiços e mamelucos
são algumas das nomenclaturas criadas para denominar as novas categorias
raciais.

• Mesmo com a chegada de africanos escravizados à América, a divisão sexual


do trabalho foi mantida.

• Nas cidades coloniais, as mulheres escravizadas trabalharam nos afazeres


domésticos, limpando, cozinhando, lavando, costurando e fazendo companhia
às suas senhoras.

• As escravas de ganho foram costureiras, lavadeiras, amas de leite e vendedoras.


Entre as vendedoras, as de maior destaque foram as negras do tabuleiro, ou
quitandeiras.

• Muitas escravizadas conseguiram juntar as quantias necessárias para obter sua


alforria e a de familiares.

• O abandono de bebês nas rodas dos expostos por mulheres que trabalhavam
como amas de leite era incentivado pelos senhores, pois assim as amas poderiam
continuar trabalhando.

• A prostituição forçada foi outra forma de violência contra as mulheres


escravizadas.

• A violência mais extremada era destinada aos escravizados que tivessem


fracassado na fuga.

• Ao introjetarem os valores europeus, diversos escravizados, ou libertos, viram,


no relacionamento com os europeus, uma forma de elevar o status social, ao
passo que ocorreria o embranquecimento da população.

• Chica da Silva é uma personagem sintomática dos discursos e práticas que


circulavam no Brasil colônia.

138
• As mulheres escravizadas possuíam reduzidas taxas de fertilidade. Já a taxa de
mortalidade infantil era alta entre os grupos escravizados.

• A alforria poderia ser dada pelo proprietário em vida, ou integrar o seu


testamento. Muitas escravizadas conseguiram obter a alforria com os
rendimentos de seus trabalhos.

• A resistência à escravidão permeou a sociedade colonial. Entre as mulheres, as


principais formas de resistência foram o corpo mole no trabalho, as sabotagens,
a fuga para os quilombos, a participação nas revoltas, o aborto e o suicídio.

• O conhecimento das africanas na manipulação de ervas e na fabricação de


venenos era um constante temor entre os senhores e as sinhás.

• Entre os escravizados, a conversão à fé cristã não foi sinônimo de abandono


das crenças africanas.

• Ao contrário do que ocorreu nas cidades coloniais, nas regiões rurais, o número
de homens era maior do que o de mulheres.

• Nos engenhos de cana-de-açúcar, as mulheres escravizadas trabalharam em


todo o processo de produção do açúcar e da aguardente.

• Nas regiões rurais, as mulheres escravizadas desempenharam atividades


domésticas, como limpar, cozinhar, lavar, costurar, realizar partos e cuidar das
crianças de seus senhores.

• No ano de 1620, o navio Mayflower trouxe os primeiros peregrinos à


Massachusetts. Mary Chilton, uma garota de 12 anos, foi a primeira pessoa a
pisar em Plymouth, Massachusetts.

• Nos primeiros anos de colonização da América do Norte, as mulheres europeias


poderiam ser vendidas pela Companhia da Virgínia. O preço de uma esposa
era de 150 libras de tabaco.

• A pregadora puritana Anne Hutchinson foi banida da Colônia da Baía de


Massachusetts devido às acusações de antinomianismo, por duvidar dos
ensinamentos repassados pelos clérigos e por organizar reuniões nas quais
homens e mulheres dividiam o mesmo ambiente, atitude esta considerada
inapropriada pelos puritanos.

• O episódio das bruxas de Salem evidenciou diversos estereótipos de gênero.


No total, foram executadas quatorze mulheres e cinco homens pela prática de
bruxaria.

139
AUTOATIVIDADE

1 No Brasil colonial, as escravizadas africanas foram destinadas aos mais


diversos tipos de trabalho. Desde a venda de produtos nas cidades, à
extenuante moagem de cana nos engenhos, o sonho da alforria serviu de
sustentação frente às violências sofridas. E, de fato, após anos de trabalho,
muitas conseguiram comprar a alforria, para si mesmas e para seus
familiares. Sobre as atividades realizadas pelas africanas escravizadas,
analise as sentenças a seguir:

I- Em muitos casos, as amas de leite tiveram que negar a maternidade em


prol dos interesses de seus senhores e sinhás.
II- A prostituição de escravizadas rendeu boas quantias aos senhores, e muitas
escravizadas conseguiram a alforria com os rendimentos provenientes da
prostituição.
III- As quitandeiras se estabeleceram nos engenhos de açúcar do nordeste,
fato que impossibilitou a aquisição de cartas de alforria.
IV- Nos engenhos, as mulheres participavam de todas as etapas da produção do
açúcar e da aguardente. Algumas alcançaram o posto de mestres do açúcar.

Assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) As alternativas I e II estão corretas.
b) ( ) As alternativas I, II e III estão corretas.
c) ( ) As alternativas III e IV estão corretas.
d) ( ) Apenas a alternativa II está correta.

2 A colonização britânica da América do Norte teve início com a prosperidade


de Jamestown, assentamento fundado em 14 de maio de 1607, na Virgínia.
Anteriormente, outras tentativas de colonização haviam fracassado,
a exemplo do projeto de Sir Walter Raleight. Sobre essa tentativa de
colonização, Karnal (2007, p. 40) nos fala que: “Ignorando as pretensões
de outros soberanos, a rainha Elizabeth I concedeu permissão a sir Walter
Raleight para que iniciasse a colonização da América. Sir Walter estabeleceu
– em 1584, 1585 e 1587 – expedições à terra que batizou de Virgínia, em
homenagem a Elizabeth, a rainha virgem. Em agosto de 1587, nascia
também Virgínia, a primeira criança inglesa na América do Norte, filha de
Ananias e Ellinor Dare”.

FONTE: KARNAL, L. A formação da nação. In: KARNAL, L. (Org.). História dos Estados


Unidos: das origens ao Século XXI. São Paulo: Contexto, 2007. p. 23-97.

140
Sobre os eventos referentes à colonização da América do Norte, classifique V
para as sentenças VERDADEIRAS, e F para as sentenças FALSAS:

( ) Em 1619, chegaram as primeiras mulheres vindas da Inglaterra para as


Treze Colônias. Em 1620, a bordo do navio Mayflower, aportaram os
primeiros peregrinos em Plymouth, Massachusetts.
( ) Durante os primeiros anos de colonização da Virgínia, o tabaco foi
amplamente cultivado, chegando a ser a unidade padrão da moeda. Este
produto foi utilizado na compra de esposas.
( ) Em 1638, Anne Hutchinson decide ir com alguns de seus seguidores para
a colônia de Rhode Island. Em 1643, a pregadora puritana é morta em um
ataque de indígenas na colônia de Nova Iorque.
( ) Tituba, Sarah Osborne e Sarah Good foram as três primeiras mulheres a
serem acusadas de bruxaria em Salém. Fatores como o puritanismo, as
rivalidades entre famílias e os ataques de indígenas fizeram com que as
denúncias relacionadas à prática de bruxaria proliferassem.

Agora, assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) V, V, V, V.
b) ( ) V, F, F, V.
c) ( ) F, F, V, F.
d) ( ) V, V, F, V.

141
142
UNIDADE 3

AS INSTITUIÇÕES LATINO-AMERICANAS

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• entender a formação histórica das instituições americanas.

• analisar a presença das instituições religiosas na América.

• compreender as dinâmicas estatais na América Latina em suas instituições


civis e militares;

• perceber os elementos envolvidos na constituição da América Latina


como tema para a historiografia.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em quatro tópicos. No decorrer da unidade
você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo
apresentado.

TÓPICO 1 – AS INSTITUIÇÕES RELIGIOSAS CRISTÃS

TÓPICO 2 – O ESTADO NA AMÉRICA LATINA

TÓPICO 3 – AS INSTITUIÇÕES DE ENSINO NA AMÉRICA

TÓPICO 4 – A HISTORIOGRAFIA SOBRE A AMÉRICA

CHAMADA

Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos


em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá
melhor as informações.

143
144
UNIDADE 3
TÓPICO 1

AS INSTITUIÇÕES RELIGIOSAS CRISTÃS

1 INTRODUÇÃO
Nesta terceira unidade, observaremos, em uma perspectiva histórica, a
presença das instituições como um importante lócus social para a compreensão
das dinâmicas políticas, culturais e religiosas da América Latina. As instituições
podem ser compreendidas como organismos que possuem funções específicas
no corpo social, e que possuem legitimidade em sua ação. Ou seja, as instituições
possuem, como principal característica, uma forte presença no corpo social,
podendo, através dele, impor condutas e estimular o pensamento sobre diferentes
esferas sociais (BERGER; LUCKMANN, 2004).

Enquanto exemplos de instituições, neste tópico, pensamos a presença


da Igreja, do Estado e das Instituições Educacionais. Quando tratarmos da
presença das Universidades nos países latino-americanos, observaremos também
a presença da historiografia. Pois, a escrita da História possuiu uma relação
umbilical com o conhecimento produzido pelas instituições de ensino superior
presentes na América.

A História Institucional busca ser uma possibilidade de compreensão


aprofundada das temáticas trabalhadas nas duas disciplinas de História da
América. Assim, recapitularemos, em grande parte, as diferentes temáticas já
abordadas, porém, pensando na organização burocrática das instituições das quais
pertenceram os principais personagens da vida cultural, política e econômica da
América Latina nos seus cinco Séculos de História. Neste sentido, trata-se de uma
visão panorâmica, na qual buscamos apresentar possibilidades de interpretação
aos condicionantes institucionais do continente.

O primeiro tópico da Unidade 3 propõe uma possibilidade de


compreensão do fenômeno religioso. Uma das questões que estamos pensando
ao escrever sobre a presença das instituições religiosas é a de sua relevância
para a compreensão da História da América Latina, cujo passado é difícil de ser
compreendido se não conhecermos em profundidade a importância que a Igreja
Católica possui para o continente.

145
UNIDADE 3 | AS INSTITUIÇÕES LATINO-AMERICANAS

2 AS INSTITUIÇÕES RELIGIOSAS CRISTÃS


Utilizamos como possibilidade analítica a abordagem desenvolvida pelo
sociólogo Peter Berger (1985), da Universidade de Boston, denominada Ateísmo
Metodológico, a qual busca compreender respeitosamente a fé dos indivíduos que
estão ligados a denominações religiosas.

Todavia, devemos olhar para elas não como resultante de elementos


puramente transcendentais, mas como parte integrante das relações humanas.

Assim, independentemente se o professor de História, que leciona


cotidianamente na sala de aula, for ateu, católico, evangélico, espírita, segue
alguma religião oriental ou afro; ele deve ter um profundo conhecimento sobre
a religião majoritária da América Latina, cujas características estão vinculadas à
história do continente. Portanto, nem o proselitismo religioso, nem a pregação do
ateísmo deve ser a tônica do professor em sala de aula. Melhor seria pensar em
termos de como o conhecimento sobre a vida religiosa pode contribuir para uma
maior e mais aprofundada compreensão da História da América.

Como instituição de maior abrangência e mais antiga em nosso continente,


começaremos a nossa narrativa refletindo sobre a Igreja Católica Apostólica
Romana, pois, a formação das instituições na América Latina perpassa alguns
dos valores propostos por essa que é uma das mais tradicionais instituições
latino-americanas. Para tanto, começaremos pela origem etimológica, isto é, pelo
significado do termo Igreja Católica Apostólica Romana.

O termo “igreja” provém do grego, Eclésia, e significava o grupo dos


primeiros cristãos que seguiram o cristianismo. Uma tradução literal do termo
seria a de ¨chamados para fora¨, isto é, chamados para pregar as boas novas
estabelecidas por Jesus no Evangelho. O termo “católico” significa universal e
está vinculado a uma forma de pensamento no qual se afirma ser o “kerigma”, ou
seja, o anúncio do evangelho, como uma mensagem que deve ser encaminhada
para todos os povos do mundo.

Desde o início do processo colonizador, a presença dos sacerdotes foi de


fundamental importância. Pois, nos séculos iniciais da colonização da América
pelos povos europeus, para ocidentalizar o nativo americano, foi indispensável
(ou até fundamental) a presença das instituições religiosas.

Algumas das principais questões ligadas ao cotidiano atual do continente


latino-americano se relacionam com a vivência religiosa herdada do período
colonial. Muitas das cidades na América Latina possuem nomes que têm referência
direta a devoções a santos e demais ritos religiosos oriundos do catolicismo.
Alguns exemplos podem ser rememorados, como a capital do Chile, Santiago,
ou a cidade mais populosa da América do Sul, São Paulo. Também podemos
pensar que muitos dos hábitos têm relação com o comprometimento de milhões
de latino-americanos com a presença do cristianismo como ponto alto da vida

146
TÓPICO 1 | AS INSTITUIÇÕES RELIGIOSAS CRISTÃS

social. Em cidades do interior da América Latina é comum observar que o centro


é composto por uma praça que se encontra defronte à igreja matriz. Também
expressões vocabulares latino-americanas estão relacionadas à forte presença do
catolicismo na região.

Uma das principais questões relativas à religiosidade e à vida cultural na


América Latina é a forte influência do legado do catolicismo vivido no período da
Baixa Idade Média, período comumente compreendido entre os Séculos XIII e XV,
na Península Ibérica (RUCQUOI, 2007). Durante grande parte do denominado
Período Medieval, Séculos V ao XV, a Península Ibérica, onde se encontram os
atuais países Portugal e Espanha, não pertencia a denominada Cristandade
Latina, isto é, região do globo na qual o Papa, que dirigia administrativamente a
Igreja Católica no Vaticano, era o chefe do poder temporal e espiritual. Durante
séculos, a Península Ibérica foi uma região na qual os habitantes eram árabes.
Com a expansão do Islã, ao longo do Século VII, o líder Tárique ibne Ziade (ou
Tariq ibn Ziyad) (670- 719) foi um dos responsáveis, ao lado de seus homens, pela
conquista da Ibéria, até aquele momento dominada pelos visigodos. Decorrente
disso, durante séculos, a Península Ibérica foi uma região na qual os habitantes
eram árabes.

Os muçulmanos tiveram uma postura de grande tolerância para os


adeptos de religiões que não a revelada pelo anjo Gabriel ao profeta Maomé
(POLIAKOV, 1984). Assim, tivemos uma grande presença de judeus e cristãos
habitando a península ibérica sob dominação muçulmana. Ao longo da dominação
muçulmana, em seu apogeu, a Ibéria formou uma unidade política com certa
autonomia, o denominado Califado de Córdova. Com a decadência do Califado,
foram formados os Reinos de Taifas.

NOTA

Grande parte da arte nordestina, em especial a pernambucana, revela a


importância do legado mourisco para a vida cultural. Grande parte da obra de Ariano
Suassuna contém estas influências, assim como a discografia de Alceu Valença, que chegou
a compor um álbum de título Sertão Mourisco.

Na Península Ibérica, como contrapartida da presença muçulmana,


tivemos um processo que durou séculos e que foi denominado Reconquista. Por
esse nome, é designado o processo de expulsão, por via armada, com forte cunho
militar, dos habitantes muçulmanos da Península Ibérica, denominados mouros
pelos cristãos.

147
UNIDADE 3 | AS INSTITUIÇÕES LATINO-AMERICANAS

A religiosidade católica da Reconquista, portanto, possuiu um forte cunho


militar e guerreiro. Assim, tivemos na Península Ibérica Medieval uma devoção
específica relacionada a esse processo: o Culto a São Tiago, também grafado como
Santiago. Esse culto está profundamente vinculado à tradição do cristianismo
peninsular. Pois, uma tradição afirma que Tiago (personagem relatado nos textos
bíblicos) teria morrido na cidade espanhola de Compostela, sendo que nesta
cidade formou-se um centro de peregrinação destinado para a sua devoção. No
início do Século XIII, essa figura religiosa passou a ser militarizada e relacionada
à luta dos cristãos contra os muçulmanos por territórios no sul europeu. Assim, a
devoção a Santiago estava relacionada à luta contra os mouros, sendo considerado
o padroeiro da Espanha com o título de Santiago Matamouros.

FIGURA 1 – IMAGEM DE SANTIAGO MATAMOUROS

FONTE: <www.museonavalmadrid.com.es>. Acesso em: 24 out. 2019

Para compreendermos esta devoção religiosa, devemos observar a vivência da


religiosidade ibérica medieval tinha na oralidade o principal difusor das mensagens
religiosas. Depreende-se então que, a leitura dos textos bíblicos era pouco difundida,
um livro de difícil acesso, sendo sua principal versão a Vulgata Latina, elaborada por
São Jerônimo, na transição dos Séculos IV e V. A tradição oral do catolicismo ibérico
foi preservada ao ser compilada e publicada com o nome de Cantigas de Santa Maria.
As devoções marianas faziam parte do cotidiano devocional de grande parte dos
ibéricos. Assim, temos uma relação de devoção à Virgem não apenas instituída pela
Igreja Católica, mas vivenciada por grande parte da população ibérica de diversas
formas sendo as Cantigas de Santa Maria compiladas por Afonso X, “O Sábio”, as
principais fontes do período (MENDES, 2018).

O processo de reconquista foi marcado pela expressiva violência por parte


dos cristãos contra os muçulmanos. As imposições e os exclusivismos religiosos,
étnicos e culturais se tornaram a tônica das relações entre os ibéricos cristãos e os
ibéricos muçulmanos. Deste modo, podemos compreender que a maior parcela
dos habitantes da Península Ibérica deixou de ser muçulmana e passou a ser
composta por famílias cristãs.

148
TÓPICO 1 | AS INSTITUIÇÕES RELIGIOSAS CRISTÃS

Com grupos presentes na Ibéria e uma temporalidade que deve ser


computada em Séculos, os judeus eram também parte integrante das populações
dos reinos da Ibéria Medieval. Todavia, eles passaram a ser concentrados em
guetos nas cidades ibéricas, denominados de judiarias. As judiarias, por sua vez,
também passaram a sofrer sanções, além de preconceitos por sua origem religiosa.

E
IMPORTANT

Uma das maiores especialistas brasileiras sobre a História Judaica é a historiadora


Anita Novinsky, professora Livre Docente da Universidade de São Paulo, é válido entrar em
contato com a sua produção historiográfica. Em especial, sobre os sefaraditas, isto é, sobre
os judeus que habitavam a Península Ibérica.

O ano de 1492 é um marco histórico de influências múltiplas em relação


à presença da Espanha no desenvolvimento da História Global sendo o final de
um processo de violência cristã para com os outros grupos monoteístas. Pois,
naquele ano, tivemos a Queda de Granada, A Expulsão ou Conversão Forçada
dos Judeus, A Descoberta da América e a publicação da Gramática da Língua
Castelhana, de Antonio de Nebrija, iniciando o denominado Siglo de Oro, isto é,
o Século de Ouro Espanhol.

Uma das questões importantes ao pensarmos na constituição da


Espanha, como país, é que se formou ao longo dos séculos tendo como uma de
suas principais características uma pluralidade cultural cristã. Catalães, Bascos
e demais grupos culturais coexistem até o presente na Espanha, por vezes
questionando a unidade espanhola. Neste sentido, uma possibilidade de união
entre os diferentes grupos linguísticos culturais era pensar em uma união através
da imposição de condicionantes culturais: a presença de uma única religião, a
cristã católica; e a presença de uma única expressão idiomática, a castelhana.

Como podemos observar, destacou-se a presença de um Estado que foi


se formando com o princípio de não pensar em variedades culturais, mas no
exclusivismo cultural como possibilidade de manutenção do poder. Pois, foi neste tipo
de mentalidade que se formou o pensamento católico na América Ibérica.

A relação entre Igreja e Estado era de total sintonia, pois existiu um


regimento jurídico denominado Padroado Espanhol. O padroado foi uma das
formas de relação entre o poder político dos reis espanhóis e o papado, o qual
determinava que, nas novas terras descobertas pelo rei espanhol, o bispo era
designado pelo rei e não diretamente pelo papa, o que significava, na prática,
uma relação de dominação da igreja por parte do poder real.

149
UNIDADE 3 | AS INSTITUIÇÕES LATINO-AMERICANAS

Dentre as instituições católicas que possuem grande importância para o


processo de evangelização da América estão as ordens religiosas católicas. No
catolicismo, os religiosos são divididos em clero regular e clero secular (BOXER,
2007). O regular é aquele ligado a uma ordem religiosa, no qual os indivíduos
que aderem à instituição acabam por ter uma vida contemplativa, ligado a um
monastério ou convento. Por sua vez, o clero secular é composto por padres que
atuam em dioceses, estas comandadas por um bispo. Que cuidam de paróquias e
estabelecem maior relação com os leigos.

Uma das estratégias de conquista, estabelecida pelos portugueses


e espanhóis na América, foi que, no processo da evangelização, deveriam
primeiro enviar os missionários ligados às ordens religiosas, para, depois de
uma póvoa (pequena povoação) já estabelecida e composta por espanhóis e
nativos convertidos, transformá-la em área de jurisdição do clero regular. Dentre
as ordens religiosas que participaram da colonização da América, com maior
destaque, estão presentes: a Ordem Beneditina, a Agostiniana, a Dominicana, a
Franciscana e a Companhia de Jesus, entre outras de menor tradição.

A Ordem de São Bento é uma das mais importantes ordens religiosas


ligadas à história do cristianismo. Teve como seu fundador São Bento de Núrsia,
nos primeiros séculos da era cristã, que foi o pioneiro na forma de se estabelecer
uma regra para a vida comum dos homens no interior dos mosteiros e conventos,
sendo a Regra Beneditina a mais antiga e a ordem de São Bento a mais antiga
entre as ordens religiosas católicas.

Também importante instituição da vida monástica é a Ordem de Santo


Agostinho. Os agostinianos possuem essa nomenclatura pois são oriundos do
fundador da ordem, o teólogo Aurélio Agostinho, também chamado de Santo
Agostinho ou Agostinho de Hipona. Agostinho foi um dos principais teólogos do
denominado período patrístico, que corresponde aos primeiros séculos da história
da Igreja Cristã. Agostinho escreveu uma regra de vida comum, a denominada
Regra de Santo Agostinho, sendo os agostinianos uma ordem que possui grande
presença no cristianismo católico do ocidente. Entre os que seguem as regras
agostinianas, temos algumas instituições, em especial os agostinianos recoletos
(Castela) e os agostinianos de Malta.

Uma ordem que segue comentários da Regra de Santo Agostinho é a


Ordem dos Pregadores, denominada Ordem Dominicana, fundada por Domingos
de Gusmão, na França, no ano de 1216. Os dominicanos são importantes para a
compreensão das dinâmicas internas da instituição católica ao longo da história,
pois foram os dominicanos os principais responsáveis pela Inquisição. Isso porque
a instituição teve destacada presença no combate aos Cátaros, uma heresia (falsa
doutrina) que existiu no cristianismo ao longo do período medieval, sendo assim
denominados domini canis, ou seja, “os cães do senhor”, os responsáveis por
guardar a verdadeira doutrina de Jesus Cristo (COMBY, 1993).

150
TÓPICO 1 | AS INSTITUIÇÕES RELIGIOSAS CRISTÃS

Os dominicanos têm como principal carisma, quer dizer, sua característica


especial, a pregação do evangelho, por isso denominada OP (Ordem dos Pregadores).
No caso da presença na América Latina, a Ordem Dominicana teve uma participação
destacada na história da Igreja nas Américas. Dentre os vários exemplos de ação dos
dominicanos, é possível lembrar que foi oriundo desta ordem um dos principais
líderes religiosos do primeiro século de colonização espanhola, o Frei Bartolomeu
de Las Casas, personagem que abordaremos por sua singularidade na compreensão
da importância da conversão dos nativos americanos

Entre as ordens religiosas cristãs, outra de destaque presente na história


do continente americano foi a Ordem Franciscana. São Francisco foi um homem
que viveu no Século XII e início do XIII, na cidade de Assis, na Península Itálica.
Ele recebeu um chamado espiritual diferenciado, acabou por ter uma legião de
seguidores ao pregar o amor ao próximo e a caridade. Os religiosos franciscanos
possuem alguns símbolos, como a cruz denominada TAU, um crucifixo de três
pontas que simboliza os votos realizados pelos seguidores da ordem: castidade,
pobreza e obediência. A presença de franciscanos na América esteve vinculada a
muitas áreas do continente no qual eles foram os pioneiros e desbravadores de
terras não habitadas por europeus, com isso, os seguidores dos passos de São
Francisco de Assis foram os primeiros a ter um relacionamento humano com os
indígenas e os primeiros mandatários das terras americanas.

Por fim, uma ordem surgida no Século XVI foi a de maior destaque
dentre os trabalhadores vinculados a obra de cristianização realizada pela Igreja
Católica, A companhia de Jesus, cujos membros são conhecidos como Jesuítas. A
ordem da Companhia de Jesus foi fundada em 1534 e teve como seu fundador
um basco de nome Inácio de Loyola, canonizado santo pelo Vaticano. Loyola era
um cavaleiro, isto é, um militar ligado às ordens de cavalaria, que eram presentes
no mundo medieval, mas que estavam entrando em decadência no alvorecer da
modernidade. Ao ser ferido em um combate, Inácio foi recolhido em um mosteiro,
para poder reestabelecer sua saúde. Como não tinha ocupação no tempo em que se
reabilitava, Santo Inácio solicitou livros de cavalaria, para que pudesse se inspirar
em sua profissão militar. Todavia, o local possuía apenas literatura religiosa.
Ao entrar em contato com esta literatura, acabou por se sentir chamado para a
pregação do evangelho. Como líder e possuidor de grande carisma, formou uma
nova ordem religiosa, inspirada nos princípios de disciplina e hierarquia comum
entre os militares, sendo a ordem batizada, como já visto, pelo nome de Companhia
de Jesus. Ao pensar que companhia era um termo utilizado para denominar uma
reunião de soldados, os jesuítas têm como abreviação a sigla SJ (Soldados de Jesus).

Essas instituições religiosas foram o principal local, no qual tivemos os


principais articuladores das doutrinas teológicas e dos trabalhos de evangelização
realizados por portugueses e espanhóis nos primeiros séculos de presença entre
os nativos americanos. A influência dessas ordens foi maior do que a do próprio
clero secular, este vinculado aos bispos. Assim, temos como compreender que a
Igreja, através de suas ordens monásticas, fora uma das principais instituições no
interior da América Latina.

151
UNIDADE 3 | AS INSTITUIÇÕES LATINO-AMERICANAS

QUADRO 1 – ORDENS RELIGIOSAS QUE ATUARAM NA AMÉRICA LATINA

Ordem Fundador Sigla Regra


Ordem de São Bento São Bento OSB Regra Beneditina
Ordem Agostiniana Santo Agostinho OSA Regra de Santo Agostinho
Ordem dos Padres Pregadores São Domingos OP Regra de Santo Agostinho
Ordem Franciscana São Francisco de Assis OSF Regra Franciscana
Companhia de Jesus Santo Inácio de Loyola SJ Regra Jesuítica

FONTE: O autor

Dentre as estratégias de colonização utilizadas pelos jesuítas estavam as


reduções, também chamadas missões jesuíticas, cujo principal destaque foram
as reduções realizadas na América do Sul, em regiões onde estão alguns países e
locais como o Paraguai, interior do Uruguai, da Argentina e em partes do Brasil
meridional, mais especificamente no interior do Rio Grande do Sul. Como forma
de lidar com a evangelização, os jesuítas tiveram grande interesse em descobrir
o modo de vida dos indígenas, muitas vezes utilizando do idioma nativo em
seu processo de catequese. Os dominicanos e franciscanos também se utilizavam
de expedientes semelhantes para conseguir atingir os nativos, buscando os
cristianizar. Essa relação entre religiosos e indígenas foi presente e constante no
decorrer dos Séculos da história da América Latina. Os religiosos que atuaram na
catequese das populações nativas da América não apenas apresentaram ações de
catequese, mas buscaram de alguma forma refletir sobre as suas práticas, tendo
como inspiração teológica o pensamento Escolástico.

Por Escolástica temos uma das principais teologias católicas surgidas ao


longo da Idade Média. O termo escolástica provém do substantivo “escola” e é
como se nomeia a filosofia e a teologia da segunda metade da Idade Média, que
tem como uma de suas principais características uma junção do pensamento de
Aristóteles com os ensinamentos cristãos, sendo o principal nome da escolástica
o dominicano São Tomás de Aquino (1225-1274), autor de, entre vários escritos,
dois grandes textos teológicos: A Suma Contra os Gentios, no qual argumentava
contrário ao pensamento dos islâmicos; e a Suma Teológica, livro composto por
vários tomos, no qual São Tomás buscou estabelecer, com influência de Aristóteles,
uma nova forma de pensar a fé cristã. Até Agostinho, se pensava que era preciso
“crer para compreender”. Com São Tomás, o axioma se inverte, e passa a pensar
que é necessário “compreender para crer”, tendo São Tomás estabelecido as
“cinco vias que levam para Deus”.

Essa base escolástica foi utilizada pelo Frei Bartolomeu de Las Casas
(BRUIT, 1995), um dos mais brilhantes religiosos católicos do Século XVI, visando
proteger, do ponto de vista legal, os indígenas de serem escravizados e dizimados
pelos colonizadores espanhóis. Sua argumentação, partindo de princípios
aristotélicos, pensava ser uma das mais importantes questões religiosas cristãs
a de querer converter o indígena a verdadeira fé cristã, demonstrando a ele

152
TÓPICO 1 | AS INSTITUIÇÕES RELIGIOSAS CRISTÃS

apreço por ser criado por Deus. Las Casas teve contato com os povos indígenas,
tendo sido nomeado bispo da cidade de Chiapas, no México. Assim, podemos
compreender que seu pensamento teve como principal inspiração seu trabalho
pastoral, enquanto missionário cristão no “novo mundo” que os europeus até
então desconheciam.

Na cidade de Valladolid, na Espanha, no ano de 1550, ocorreu um célebre


debate no Real e Supremo Conselho das Índias, entre o frei Bartolomeu de Las
Casas e o filósofo Juan Ginés de Sepúlveda, sobre a probidade ou improbidade
de se escravizar os indígenas americanos para os utilizar como mão de obra nas
minas exploradoras de metais nobres e nas haciendas (fazendas) produtoras de
produtos tropicais para o mercado europeu.

Juan Ginés de Sepúlveda escreveu Democrates Alter Sive de Justis Belli


Causis Apud Indios, como também o Tratado de las Justas Causas de la Guerra
Contra los Indios, obras nas quais buscou, aplicando as teorias de guerra justa
do pensamento aristotélico-tomista, a partir da questão 40 da suma teológica
(Sobre a Guerra), afirmar ser correta a escravização dos indígenas, por considerar
que as mesma era realizada devido a um processo de guerra justa contra povos
pagãos. Por sua vez, Las Casas publicou o texto Aquí se contiene una disputa o
controversia entre el obispo fray Bartolomé de Las Casas o Casaus, o bispo que fue de
la Ciudad Real de Chiapas que es en Las Indias, parte de la Nueva España, y el doctor
Ginés de Sepúlveda, coronista del Emperador nuestro señor, no qual buscou relatar o
debate com Sepúlveda e refutar os argumentos dos que se mostravam favoráveis
a escravização dos nativos da américa.

FIGURA 2 – LAS CASAS E SEPÚLVEDA

FONTE: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/d/db/Bartolomedelascasas.
jpg/200px-Bartolomedelascasas.jpg>; <https://www.buscabiografias.com/img/people/Juan-
Gin%C3%A9s.jpg>. Acesso em: 10 jun. 2019.

153
UNIDADE 3 | AS INSTITUIÇÕES LATINO-AMERICANAS

Uma das questões fundamentais para a compreensão da obra de Las Casas,


é da polêmica que envolve o seu legado no trabalho com os indígenas. Pode ser
considerado santo ou herói por ter uma postura desfavorável à escravização de
indígenas. Também pode ser considerado como vilão, ao não respeitar as religiões
nativas e realizar o proselitismo da religião do invasor europeu no continente
americano (HOFFNER, 1977).

Independentemente dos julgamentos contrários e favoráveis à sua


conduta, o que podemos compreender é que as principais questões que
envolviam a legalidade das ações humanas no novo mundo passavam pelo crivo
da moralidade cristã. Neste sentido, a pergunta principal a ser respondida, para
que alguma questão fosse considerada justa ou injusta, era a de ser correta ou
incorreta para um cristão.

Por isso, uma das instituições presentes na história espanhola e hispano-


americana é a Inquisição. Esta instituição formada no catolicismo medieval, teve
grande importância no estabelecimento de condutas no espaço eclesiástico latino-
americano ao longo dos séculos de colonização. Uma das principais funções da
inquisição espanhola era a de punir atos que fossem considerados como bruxaria
ou judaizantes.

Uma das principais diferenças entre a Inquisição espanhola para a


portuguesa é que foram instalados Tribunais da Inquisição na América Espanhola,
não ocorrendo o mesmo na América Portuguesa, assim, o Brasil recebeu
visitações inquisitoriais e a América Hispânica instalou tribunais inquisitoriais
no México, na Colômbia e no Peru, sendo abolidos apenas após a independência
dos países latino-americanos. Um dos principais pontos tratados pelos tribunais
inquisitoriais foi a perseguição à conduta considerada desviante pela moralidade
da época (adultério, sodomia) assim como uma perseguição a práticas religiosas
consideradas heréticas. Assim, tivemos vários indivíduos que foram perseguidos
pelo Tribunal do Santo Ofício.

A Igreja Católica não se portou apenas como uma instituição repressora


ao longo do período colonial, mas foi ela a promotora de uma nova religiosidade.
Também foram presentes milagres, devoções religiosas e procissões com as mais
variadas características. Um dos primeiros milagres está vinculado a uma devoção
mexicana, a de Nossa Senhora de Guadalupe, que significa na linguagem nativa
“virgem puríssima”. Conta-se que a Virgem Maria teria aparecido para o indígena
Juan Diego, sendo a mesma considerada a protetora da América Latina. Uma
catedral em sua honra foi erguida na Cidade do México, e faz parte da cultura
religiosa daquele país. Também característica das devoções marianas no espaço
ibero-americano, temos a presença de Nossa Senhora de Copacabana, devoção
que surgiu no Lago Titicaca, localizado nas regiões andinas, sendo considerada a
Padroeira da Bolívia. Seu nome significa “lugar luminoso”.

154
TÓPICO 1 | AS INSTITUIÇÕES RELIGIOSAS CRISTÃS

A Igreja Católica também se fez presente entre os negros africanos


escravizados. Com esta população, os padres tiveram uma relação diferente,
pois a maior parte da Igreja se mostrou favorável a escravidão negra. Para tanto,
utilizou de expedientes teológicos de pouca plausibilidade, como vincular os
negros à maldição de Cam, um dos filhos de Noé, que tinha sido amaldiçoado
pelo próprio pai, como o último escravo de seus irmãos. Todavia, o discurso dos
padres em geral era o de se opor à violência da qual grande parte dos escravos
eram tratados nas colônias espanholas e portuguesas, como demonstram a série
dos Sermões do Rosário, pregados pelo padre jesuíta Antônio Vieira.

As igrejas de Nossa Senhora do Rosário formam uma bonita história da


religiosidade latino-americana. Visto que foram, em grande parte, os escravos,
os principais entusiastas desta devoção mariana. Em muitos locais da América,
existem igrejas e irmandades de Nossa Senhora do Rosário construídas por
escravos, de forma voluntária, após a sua jornada de trabalho compulsório.

As ordens terceiras também são instituições importantes para a


compreensão da religiosidade colonial latino-americana. Em grande parte dedicadas
a algum santo, as ordens terceiras da divina misericórdia, em especial na América
Portuguesa, se vinculavam, além da ajuda mútua, à caridade pública, com destaque
para as fundações de instituições hospitalares, vinculadas à saúde pública.

A importância da Igreja Católica enquanto instituição constituidora da


identidade cultural latino-americana pode ser medida na participação do clero
em alguns processos de emancipação política nas antigas colônias, ocorridas no
final do Século XVIII e início do Século XIX, sendo o principal exemplo, o caso
do antigo Vice-Reinado de Nova Espanha (México), cuja independência ocorreu
por liderança de dois sacerdotes, os padres Morelos e Idalgo. Também no Brasil,
a participação política de sacerdotes foi presente, como o caso do Padre Feijó, que
foi um dos líderes do denominado Período Regencial Brasileiro.

Esse legado cultural da Igreja Católica, presente em diversos campos


culturais, que perpassam desde a política, as artes e os campos do saber, foi tema
de reflexão no interior da Igreja ao longo dos Séculos XIX e XX. Em especial,
pelo fato da Igreja, em meados do Século XIX e início do Século XX, passar por
um processo de “romanização”. Por esse conceito, podemos compreender a
relação da Igreja Católica com o legado do catolicismo ibérico, em grande parte
combatido no interior do catolicismo no final do Século XIX e início do Século XX
pelos padres ultramontanos.

Neste período, a Igreja Romana buscou ofertar assistência religiosa


para os europeus não ibéricos na América. Sendo que grande parte de filhos de
imigrantes alemães e italianos acabaram por seguir o chamado vocacional sendo
presente em muitos países latino-americanos bispos e arcebispos oriundos de
famílias de colonizadores ítalo-americanos e teuto-americanos. Como exemplo,
o antigo arcebispo da arquidiocese de Buenos Aires, Jorge Mário Bergoglio é o
primeiro papa latino-americano da história do Catolicismo Romano, com o nome
de Papa Francisco.

155
UNIDADE 3 | AS INSTITUIÇÕES LATINO-AMERICANAS

Este legado histórico da Igreja Católica como instituição na América


Latina é de grande relevância. Podemos observar a presença de várias instituições
que, no presente, atuam na sociedade latino-americana e que são diretamente
vinculados à Igreja Católica, como hospitais, asilos, escolas e universidades que
possuem como proprietários a Igreja Católica Apostólica Romana. O legado
também foi o tema de profundas reflexões de teólogos da América Latina, com
destaque para aqueles vinculados à denominada Teologia da Libertação. Por este
termo se compreende um movimento teológico presente na Igreja Católica da
América Latina e que buscou realizar uma teologia vinculada à população pobre
do continente. Teve como seus principais idealizadores o padre peruano Gustavo
Gutierrez, o padre jesuíta Juan Luis Segundo, no Uruguai e demais países platinos
e, no Brasil, os irmãos Leonardo Boff e Clodovis Boff.

Dentre as organizações que foram formadas para fortalecer a presença


da Igreja Católica como vetor político importante na América Latina, temos a
presença do Conselho Episcopal Latino Americano (CELAM), cuja primeira
reunião ocorreu na cidade do Rio de Janeiro, em 1955, mas as mais recordadas são
as que ocorreram em Puebla, no México, por ter sido um dos marcos, na América
Latina, de um novo posicionamento católico perante a sociedade, traduzida
pelo lema “opção preferencial pelos pobres”, frase que apontou para uma nova
perspectiva da Igreja, ligada ao Concílio Vaticano II.

Um dos aspectos polêmicos existentes na Teologia da Libertação foi a


sua grande ligação com aspectos vinculados ao marxismo. Isto é, os teólogos
da libertação tiveram um grande diálogo em sua teologia com categorias de
análise social desenvolvidas por Karl Marx, como também por intelectuais de
linha marxista, como o italiano Antônio Gramsci e o sociólogo marxista brasileiro
Florestan Fernandes, que fora professor da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo no período final da Ditadura Militar.

Além da Teologia da Libertação, a América Latina observa no presente um


novo movimento religioso, a denominada Renovação Carismática Católica (RCC).
Este, surgido nos Estados Unidos, porém amplamente divulgado nos países
da América Latina, possui um caráter conservador nos costumes, entretanto,
renovador na liturgia, pois propõe missas mais animadas, com maior presença
de elementos culturais latino-americanos nas celebrações religiosas. A presença
de novas vocações nos seminários católicos, nas últimas décadas, é composta por
jovens oriundos de comunidades nas quais a RCC é predominante.

A presença do protestantismo na América Latina está profundamente


relacionada à vivência da religiosidade nos Estados Unidos da América. Pois,
foram os estadunidenses os principais missionários que divulgaram as ideias
protestantes na parte ibérica da América. Também foram vetores de presença de
protestantes no continente latino-americano os imigrantes não ibéricos, como os
alemães luteranos.

156
TÓPICO 1 | AS INSTITUIÇÕES RELIGIOSAS CRISTÃS

Na América Anglo-Saxônica, a vida religiosa também teve grande


influência na formação dos países que estão presentes nesta região do continente
americano, composto pelo Canadá e pelos Estados Unidos da América (SEED,
1999). Pois, assim como a América Latina foi profundamente influenciada pelas
ordenações da Escolástica Ibérica, a sociedade norte-americana foi influenciada
pela Reforma Protestante. Um conceito fundamental para a compreensão da
religião nos Estados Unidos é o de denominação. Este aponta que o campo religioso
americano não é formado por uma dicotomia entre igrejas institucionalmente
constituídas (como a católica) e seitas independentes e de pouca força institucional
(como igrejas pentecostais autônomas). No caso americano, a pluralidade em
matéria religiosa sempre foi uma tônica.

Enquanto o Brasil tem como o “descobrimento” realizado pela esquadra de


Pedro Álvares Cabral como marco simbólico do surgimento do país, nos Estados
Unidos, o marco equivalente tem profunda conotação religiosa protestante, ao
ser o marco os Peregrinos de Mayflower, um navio que trouxe para o continente
americano refugiados ingleses que eram perseguidos na Inglaterra por suas
convicções religiosas. Em parte, o mito fundador explica a pluralidade em
matéria religiosa vivida nos Estados Unidos. Pois, perseguir alguém por crença
não condiz com o “espírito nacional”, já que a nação foi formada por pessoas que
ansiavam liberdade de culto e crença. A pluralidade religiosa norte-americana
tem como uma de suas principais bases as diferentes igrejas protestantes.

A Reforma Protestante foi um movimento religioso iniciado no Século XVI


e que teve como marco o dia 31 de outubro de 1517, quando o monge agostiniano
Martinho Lutero afixou na igreja de Wittenberg as 95 teses que criticavam o
ensino sobre o cristianismo ministrado pela Igreja Católica Apostólica Romana
(DELUMEAU, 1989). Todavia, não foi o luteranismo o principal grupo protestante
a se relacionar com a vivência religiosa norte-americana, apesar de serem os
luteranos um grupo religioso presente nos Estados Unidos. Os anglicanos,
calvinistas presbiterianos e metodistas armínio-wesleyanos formam os principais
grupos religiosos dos Estados Unidos da América.

Os Estados Unidos e o Canadá tiveram influências da colonização inglesa,


sendo a Igreja Anglicana a igreja oficial do Estado Inglês. Esta foi fundada como
uma dissidência oficial do Rei Henrique VIII a Roma. Uma das alegações era a do
direito do cristão se divorciar. Pois, para o protestantismo o casamento não é um
sacramento, sendo possível para a maior parcela das denominações protestantes
o divórcio. Os anglicanos formaram uma igreja que se manteve presente na
sociedade da américa do norte mesmo após a independência, denominada nos
Estados Unidos como Igreja Episcopal (OLSON, 2001).

O Calvinismo também foi presente na América do Norte em sua formação


histórica através do presbiterianismo. A igreja Presbiteriana possui este nome
porque os dirigentes da igreja não são os pastores, que se relacionam mais a
pregação e ensino religioso, sendo a função administrativa composta por um

157
UNIDADE 3 | AS INSTITUIÇÕES LATINO-AMERICANAS

grupo de leigos denominados presbíteros. Sua base teológica são os ensinos


do reformador João Calvino e mais especialmente do reformador escocês John
Knox, líder da Reforma na Escócia. Uma das bases do pensamento calvinista é
a total depravação humana e a necessidade da graça divina para a possibilidade
da vida eterna. Uma teologia que é considerada antagônica ao calvinismo é o
denominado arminianismo, doutrina religiosa que tem como base o pensamento
de Jacó Armínio, um teólogo holandês (que viveu entre 1560 e 1609) e que foi
muito influente no denominado movimento metodista.

O metodismo foi um movimento religioso de avivamento espiritual no


interior da Igreja Anglicana, liderado pelos irmãos Charles Wesley e John Wesley.
O nome metodista surgiu devido aos membros da Igreja Anglicana liderados pelos
irmãos Wesley serem considerados muito metódicos. Os seguidores de Wesley, ao
migrarem para os Estados Unidos, acabaram por abandonar a comunhão anglicana
e se estabeleceram como uma denominação independente dos bispos anglicanos.

Além dos metodistas, os batistas tiveram profunda influência na


constituição dos Estados Unidos enquanto nação. Uma das principais características
do movimento batista é a recusa dos mesmos em batizar as crianças, sendo a
ordenança bíblica do batismo considerada válida apenas para pessoas que possuem
consciência da importância do batismo como ação no qual o homem se afirma um
pecador que necessita da graça divina para a sua salvação (OLSON, 2001).

Três grandes movimentos religiosos são importantes para a compreensão


das instituições religiosas norte-americanas. O puritanismo, os avivamentos e o
fundamentalismo. O puritanismo foi uma das principais bases da formação das
principais instituições religiosas na América do Norte. Pode ser compreendido
como uma postura religiosa de forte caráter bíblico, na qual as proposições morais
cotidianas eram baseadas em ensinamentos do evangelho. Uma das principais
questões que envolveram a religiosidade americana em fins do Século XVIII e
grande parte do Século XIX foi um despertar religioso na América do Norte que
recebeu o título de Grandes Avivamentos. Este tipo de ação social de caráter
religioso teve como principal característica a pregação em locais públicos, sendo
muitas vezes construídas tendas para estas concentrações religiosas. Por fim, um
terceiro e importante movimento para a compreensão das dinâmicas religiosas
da América no Norte foi o fundamentalismo. Nascido como uma proposição de
teólogos de várias denominações protestantes que afirmavam o protestantismo
estava se afastando dos verdadeiros ensinamentos cristãos. Sendo o movimento
uma tentativa de se voltar aos fundamentos da fé cristã.

Uma das questões que, na atualidade, está alterando o campo religioso


na América Latina é a presença das Igrejas Evangélicas. Nas últimas décadas,
a presença do catolicismo está, em grande parte, diminuindo, frente à presença
de igrejas ligadas ao pentecostalismo, um tipo específico de igreja protestante,
também genericamente denominadas como igrejas evangélicas. Esse movimento
religioso também será estudado neste tópico, pensando ser as instituições religiosas
importantes para uma compreensão aprofundada das relações humanas e sociais.

158
TÓPICO 1 | AS INSTITUIÇÕES RELIGIOSAS CRISTÃS

As igrejas protestantes estão presentes no cenário latino-americano há,


aproximadamente, dois séculos. Uma primeira presença de denominações
protestantes nesse cenário ocorreu a partir da vinda de imigrantes ingleses
e alemães, no início do Século XIX. Um protestantismo denominado pelos
historiadores e sociólogos como “protestantismo de imigração”, no qual
os principais grupos foram os anglicanos ingleses e os luteranos alemães
(MENDONÇA, 1994). Em grande parte, os clérigos e leigos destas instituições
religiosas não realizavam trabalho de evangelização entre os nativos latino-
americanos, tendo os pastores luteranos e padres anglicanos muito mais uma
postura de capelães dos súditos ingleses e membros dos principados e reinos
alemães nos países da América Ibérica.

Um segundo movimento, concomitante a presença de anglicanos e


luteranos, também ocorreu ao longo do Século XIX, foi a presença de missionários,
ligados às igrejas protestantes da Inglaterra e dos Estados Unidos, que vieram
para os países latino-americanos com vistas a evangelizar as populações
hispânicas. Grupos ligados a igrejas como as presbiterianas, metodistas, batistas,
congregacionais e adventistas buscaram vir para a América Latina, acreditando
que as proposições da teologia e da vivência de fé do protestantismo pudessem
ser úteis para a vida dos latino-americanos.

Ao percorrer um grande período, iniciado no Século XIX, e que esteve


presente até a década de 1970, a presença protestante na América Latina foi
minoritária e vinculada a uma estratégia de evangelização que tinha na presença
da pregação para as populações mais pobres e na oferta da educação de qualidade,
formando amplos sistemas educacionais, a principal marca da permanência de
protestantes no cenário religioso continental. Assim, foram fundadas muitas
escolas batistas, metodistas, presbiterianas e luteranas nos países latinos.

Este cenário começou a ser alterado graças a um movimento de renovação


espiritual que surgiu na Igreja Batista dos Estados Unidos da América e que foi
denominado pentecostalismo. O mesmo surgiu graças ao milagre da Rua Azusa,
no qual um afro-americano, Seymour, afirmou ter sido “batizado com o espírito
santo”, e passado por uma forte experiência espiritual, falando em línguas
estranhas, um tipo de devoção religiosa chamada pelos cientistas da religião pelo
termo “glossolalia”, ocorrido no ano de 1906.

Logo nas primeiras décadas, missionários evangélicos passaram a percorrer


as cidades latino-americanas divulgando o evangelho e tendo esse novo tipo de
religiosidade como ponto principal de sua pregação religiosa. O pentecostalismo,
porém, teve seu grande impulso na segunda metade do Século XX, em especial
com as transformações sociais ocorridas nos países latino-americanos no pós-
Segunda Guerra Mundial, na qual o sistema capitalista de produção passou para
um novo patamar, gerando reconfigurações novas nas relações sociais.

159
UNIDADE 3 | AS INSTITUIÇÕES LATINO-AMERICANAS

O pós-Segunda Guerra foi um período no qual as populações urbanas


e rurais do continente foram apresentadas a diversas inovações tecnológicas.
Enquanto as inovações da técnica ficavam restritas a poucos nas primeiras décadas
do Século XX, a segunda metade apresentou uma alteração profunda de cenário,
no qual rádios de pilha, televisores, ônibus, caminhões e automóveis passaram a
fazer parte do cotidiano de uma maior quantidade de pessoas. Alguns países, mais
notadamente o Brasil, a Argentina e o México passaram por êxodo rural, grande
e acelerada industrialização, gerando uma anomia social. O pentecostalismo,
com seu extremado moralismo e rigor nos costumes, apresentou para multidões
possibilidades de uma nova vida e esperança para a difícil luta cotidiana.

Com um discurso fortemente anticatólico, as igrejas evangélicas ligadas


ao pentecostalismo conquistaram grande número de adeptos em um primeiro
momento, entre as populações marginalizadas do continente, em especial, as
pessoas com disfunções familiares como o alcoolismo, o tabagismo e o consumo
de entorpecentes, no qual a socialização realizada pelos membros das igrejas
pentecostais acabava por possibilitar o aumento de autoestima a indivíduos
que eram adictos, na sua maioria homens. O discurso e as práticas pentecostais
apresentavam para muitos a possibilidade de uma nova vida familiar. Em
especial pelos membros das igrejas pentecostais serem incentivados a possuir
uma paternidade responsável e uma vida doméstica atuante, algo incomum no
continente latino-americano, marcado por machismo e violência.

A presença de pentecostais na América Latina segue alguns princípios


da Reforma Protestante, em especial uma radicalização da ideia de sacerdócio de
todos os crentes, possibilitando que muitos indivíduos que não possuíam formação
teológica formal se intitulassem pastores e realizassem obras de pregação.

Dentre os países latino-americanos de maior presença evangélica


pentecostal, o de maior destaque é a Guatemala. Um país de tradição colonial
católica, mas que, na atualidade, já possui maioria populacional evangélica.
Em grande parte, essa maior parcela da população ser evangélica pode ser
compreendida, além dos aspectos de sociologia da religião já apontados pelas
comunidades evangélicas apresentarem comunidades “congregacionais
soteriológicas”, isto é, comunidades de ajuda mútua que possibilitam melhorar
as relações cotidianas.

Outro aspecto é o político. A Guatemala sofreu interversões do governo


norte-americano, como em 1954, na qual a CIA incentivou a deposição do
presidente nacionalista Juan Jacobo Arbenz Guzmán e, nos anos 1980, quando
ascendeu ao poder um militar evangélico, José Efraín Ríos Montt, que pertencia a
uma igreja batista fundamentalista.

Uma das principais questões que envolvem a presença de evangélicos


no continente latino-americano é compreender suas semelhanças e diferenças
com o protestantismo tradicional. O protestantismo do Século XVI tinha como
uma de suas principais bases um culto ao estudo bíblico, a disciplina, além de

160
TÓPICO 1 | AS INSTITUIÇÕES RELIGIOSAS CRISTÃS

uma oposição radical às hierarquias eclesiásticas. Algumas dessas características


poderão ter uma configuração diferente do que as experimentadas pelos países
tradicionalmente protestantes.

As igrejas protestantes tradicionais, na América Latina, apresentaram


movimentos de integração entre as denominações. Os teólogos Rubem Alves,
Washington Padilla, Renê Padilla e José Míguez Bonino, apresentaram uma
proposta de nova teologia latino-americana. Alves e Bonino, ligados às ideias
de uma teologia da libertação evangélica, não relacionada ao marxismo, mas
denunciando as injustiças sociais no continente latino-americano. Renê Padilla,
apresentando a ideia de uma Teologia da Missão Integral, ligada ao Congresso
Mundial de Evangelização de Lausanne, na Suíça, em 1974, um dos principais
encontros realizados pelas igrejas protestantes e que repensou a ação social dos
evangélicos na sociedade. Porém, suas ideias foram grandemente contestadas
pelas instituições religiosas, em grande parte por não serem compreendidas em
suas potencialidades e confundidas com a teoria marxista, entendidas por grande
parte dos evangélicos pentecostais e tradicionais como incompatíveis com os
ensinamentos de Jesus, por ser o marxismo uma filosofia materialista.

Uma das questões para a compreensão da importância destes teólogos


foi sua ação ecumênica, em especial com a fundação de instituições, como a
Igreja e Sociedade na América Latina (ISAL) e a posterior Fraternidade Teológica
Latino-Americana, fundada pelo teólogo latino-americano Samuel Escobar, que
tinha uma postura evangelical, isto é, equidistante tanto da teologia da libertação
quanto do fundamentalismo.

Além das instituições cristãs, católicas e evangélicas, podemos também


compreender a existência de religiosidades indígenas e africanas presentes no
continente latino-americano. Porém, os aspectos de rotinização do carisma religioso
e da consequente burocratização das relações religiosas não são presentes nestas
formas de vivência de fé. Todavia, algumas lideranças destas religiões apresentam
grande relevância e carisma e lutam pelo respeito das suas expressões de fé perante a
sociedade civil e os principais representantes do poder do Estado.

A força institucional da Igreja Católica no continente latino-americano


ainda é de grande relevância para a compreensão das dinâmicas políticas,
econômicas, sociais e culturais nos diversos países latino-americanos. Certas
questões que envolvem a moralidade pública e que estão vinculadas à dogmática
católica, como o aborto, o divórcio, a utilização de métodos contraceptivos e o
preservativo para relações sexuais, que impedem a transmissão de doenças
sexualmente transmissíveis, tem como principal opositora a Igreja Católica, o que
revela a força que a instituição possui nas relações sociais e políticas do continente.

O panorama religioso no continente apresenta transformações com o


aumento dos evangélicos pentecostais. Porém, ainda não sabemos quais serão as
próximas etapas da vivência religiosa do continente, mas com a certeza de que as
igrejas cristãs, enquanto instituição social, possuem grande importância para a
compreensão das dinâmicas sociais do continente.

161
RESUMO DO TÓPICO 1

Neste tópico, você aprendeu que:

• A Igreja Católica é uma importante instituição latino-americana.

• As ordens religiosas foram as principais instituições católicas nos primeiros


Séculos de colonização.

• No final do Século XIX e início do Século XX, a Igreja passou por um processo
de romanização, no qual a vivência da religiosidade foi alterada.

• Na segunda metade do Século XX, a Teologia da Libertação buscou ser uma


proposta de transformação social no continente.

• No final do Século XX e início do Século XXI, a Renovação Carismática Católica


foi e permanece como um dos principais movimentos religiosos do continente.

• As igrejas evangélicas estão presentes no cenário latino-americano desde o


Século XIX.

• O pentecostalismo é hoje o principal grupo cristão a crescer no continente.

162
AUTOATIVIDADE

1 Por que a compreensão do catolicismo medieval ibérico é importante para


um conhecimento aprofundado da esfera religiosa latino-americana?

2 Por que o catolicismo é uma instituição importante no continente americano?

3 Explique o pentecostalismo.

163
164
UNIDADE 3
TÓPICO 2

O ESTADO NA AMÉRICA LATINA

1 INTRODUÇÃO
O Estado é uma das principais instituições a regulamentar a vida dos
indivíduos no ocidente. As principais ações individuais, como o nascimento,
o casamento, a morte, o trabalho, as relações econômicas, políticas e sociais,
são mediadas por leis que são elaboradas por agentes estatais. Neste sentido,
compreender a formação do Estado na América Latina é uma das principais
questões a serem aprendidas pelos diferentes profissionais das ciências humanas.
Em especial aos professores de História, que possuem a missão de ensinar a
formação das diferentes sociedades, ter uma compreensão aprofundada do
Estado se faz necessária.

A América Latina vivenciou diversos golpes de Estado, em geral realizado


por membros das forças armadas. Ao contrário da América do Norte, que vivencia
uma sociedade democrática com instituições sólidas, se observa, na América
Latina, uma grande instabilidade política e institucional, na qual muitas vezes
os agentes do Estado, ao invés de serem considerados pela população em geral
como autoridades que proporcionam a paz e o bem público, são encarados como
forças corruptas os desviadas.

Como possibilidade de compreensão do Estado nos países da América


Ibérica, observamos a formação do mesmo tendo como principal influência
analítica os conceitos desenvolvidos pelo sociólogo alemão Max Weber, como
patrimonialismo, estamento e carisma. Esta abordagem analítica possibilita aos
estudiosos da História e das demais Ciências Humanas compreender, de uma
forma crítica, as dificuldades dos países latinos em ter instituições sólidas que
garantam a paz e o bem-estar comum da população ibero-americana

2 O ESTADO NA AMÉRICA LATINA


Neste segundo tópico da terceira unidade, buscaremos entender o Estado
como instituição fundamental para a compreensão da organização social e política
no continente latino-americano. Para tanto, temos que compreender o que pode
ser definido como Estado.

165
UNIDADE 3 | AS INSTITUIÇÕES LATINO-AMERICANAS

A palavra Estado provém do termo status. Pode-se compreender como


Estado uma instituição que tem como uma de suas mais importantes características
o monopólio do uso da violência física sobre o território determinado por suas
fronteiras (WEBER, 1982). Deste modo, o Estado pode ser compreendido como
instituição que possuiu um aparato de burocratas que o administram. Nas
monarquias despóticas dos séculos do Antigo Regime (América Colonial), a
administração era voltada para o aumento do poder real. Nas democracias
modernas (América Independente), a principal função da administração estatal
é, pelo menos em tese, a garantia de direitos que visem o bem comum.

Dentro da administração do Estado, temos a divisão entre funcionários


civis, militares e eclesiásticos. Nos Estados que não possuem religião oficial, os
eclesiásticos não fazem parte do aparato da burocracia estatal. A Igreja Católica
tradicionalmente possui nos principais países latino-americanos relações com o
Estado que podem ser consideradas especiais, por sua importância continental,
porém, em geral, os Estados tendem a ser laicos, isto é, sem uma religião determinada.

Buscamos compreender a formação do Estado na América Latina, tendo


como pressuposto o conceito desenvolvido pelo sociólogo alemão Max Weber:
o patrimonialismo (KUPER, 2015). Por patrimonialismo se compreende uma
forma de organização social e estatal na qual a divisão entre a esfera pública e
a esfera privada não é muito clara. Neste sentido, temos na América Latina uma
relação entre os agentes do Estado para com a população nas quais os interesses
particulares, muitas das vezes, sobrepõem os interesses da coletividade.

Em grande parte, as relações de dominação na América Latina seguem a


tradição dos estamentos, não de uma disputa de classes. Por estamento, podemos
compreender grupos sociais garantidos por convenções e leis, que se mantêm
através da honra social e de um estilo de vida diferenciado. Neste sentido,
funcionários públicos civis e militares, assim como os religiosos, não formam
uma classe que está vinculada à posição do indivíduo na cadeia produtiva.

As raízes do patrimonialismo estão ligadas às formas pelas quais os países


da América Latina viveram o colonialismo. Em especial na forma de organização
da administração dos países ibéricos na América. Essa forma de organização
permitia que funcionários estatais tivessem os seus poderes não regulados por
leis impessoais, dadas pelas Ordenações Reais, isto é, não dadas pelos conjuntos
das leis, mas sim por laços de compadrio.

Durante os séculos de vida colonial a organização dos espaços territoriais


estava vinculada ao movimento de se observar que os proprietários rurais possuíam
grande poder, além dos homens ligados à exploração das minas de metais preciosos.
O conceito de patrimonialismo pensa ser um tipo de formação de Estado na
América Latina no qual os burocratas, que deveriam ser agentes imparciais, agem
em benefício de seus interesses privados. Tal conceito é de utilização polêmica, mas
pode ser útil para caracterizar as diferentes formas de relação do Estado para com a
sociedade na América Latina, e pode ser uma ferramenta teórica para compreender
a história da formação do estado latino-americano.

166
TÓPICO 2 | O ESTADO NA AMÉRICA LATINA

A compreensão do Estado na América Latina perpassa a compreensão


de sua formação durante o Período Colonial. Uma primeira questão é pensar as
relações estatais do Antigo Regime. A monarquia espanhola, formada no processo
de Reconquista, pode ser considerada uma monarquia na qual o principal agente
de poder estava vinculado à figura do rei.

Desta forma, o rei tinha funções específicas em um aspecto profundamente


funcional, sendo a monarquia a principal forma de se legitimar as relações sociais.
Deste modo, nos impérios espanhol e português, o rei possuía funções específicas:

• Ouvidor-mor, isto é, aquele que ouve os reclames do povo e exerce a justiça.


• Capitão-mor, aquele que lidera as funções militares.
• Provedor-mor, aquele que é responsável pelas questões econômicas.
• Vigário de Cristo, aquele que lidera a Igreja Católica.

Neste sentido, podemos compreender que as principais funções


desempenhadas pelo Estado Colonial Espanhol na América estavam ligadas a
estas funções: eclesiástica, militar, econômica e jurídica.

Deste modo, estabeleceremos algumas das características das instituições


estatais no período colonial, como possibilidade de compreender melhor o Estado
conforme instituição latino-americana.

Ao pensar que a noção de território é fundamental para a compreensão que


os administradores coloniais espanhóis tiveram uma forma de divisão territorial,
buscando assim melhor gestar a administração colonial. Deste modo, foram
formados os vice-reinados, que tinham função de se estabelecer como enclaves
da administração reinol. Assim sendo, foram fundados o Vice-Reinado do Prata,
o Vice-Reinado de Nova Espanha, o Vice-Reinado de Nova Granada e o Vice-
Reinado do Peru, contando ainda com as capitanias gerais de Santiago e de Cuba.

As questões jurídicas no período colonial são importantes para


compreendermos a relação do Estado com a sociedade. Uma das primeiras e
importantes questões está relacionada ao denominado Direito Colonial Espanhol
que deveria verificar as especificidades das Ordenações (Conjunto de Leis do
Antigo Regime). Isto é, a formação do aparelho burocrático no período colonial
estava profundamente relacionada à forma como o Estado compreendia a relação
com os súditos. Porém, em um continente de enormes dimensões territoriais,
os agentes da lei não eram numerosos. Assim, o poder local, simbolizado pelos
caudilhos, apresentou grande influência. Pois, os grandes proprietários rurais,
dotados de escravos, terras e armas, possuíam poder nas relações sociais, um
poder de fato maior que os poderes instituídos pelo governo central.

Com o processo de independência latino-americana, tivemos uma nova


relação com a sociedade, na qual os caudilhos passaram a ser os principais
membros do oficialato das Forças Armadas, compartilhando, neste ínterim, uma
diferença com a formação brasileira das instituições militares.

167
UNIDADE 3 | AS INSTITUIÇÕES LATINO-AMERICANAS

No Brasil, as Forças Armadas, tradicionalmente, era uma das carreiras


cujos principais interessados eram filhos de militares ou membros das camadas
médias urbanas do extrato social. Porém, nos países espanhófonos, tivemos uma
forma diferente de formação das elites militares, oriundas das classes sociais
privilegiadas dentre as elites civis.

Uma das diferenças entre as elites militares e as elites civis é a formação


educacional. Pois, enquanto as elites militares tiverem sua socialização em uma
instituição total, as escolas militares, os civis, em geral, escolhiam as carreiras
liberais da engenharia, do direito ou da medicina. Assim, as principais questões
ligadas aos grupos políticos que se formaram na América Latina estavam
vinculadas às possibilidades de compreendermos as formas de socialização a qual
o indivíduo está sujeito ao adentrar nas instituições escolares e universitárias.

As instituições do poder civil na América Latina estão vinculadas a uma


transformação das relações sociais advindas com o Iluminismo e o Positivismo.
No Antigo Regime, como apontamos anteriormente, as funções da organização
estatal estavam profundamente vinculadas à figura do rei, como provedor,
ouvidor, capitão e vigário de Cristo. Todavia, essas relações entre os diferentes
aspectos da organização estatal foram alteradas com novas ideias, surgidas na
França, no denominado período iluminista, como ficaram conhecidas as reflexões
filosóficas realizadas ao longo do Século XVIII. Dentre as várias propostas
representadas pelo Iluminismo, algumas delas foram importantes para as novas
dinâmicas políticas instituídas pelas casas reais Ibéricas, no sentido de observar
uma nova forma de legitimação das relações sociais e políticas no reino europeu
e nos domínios ultramarinos dos países ibéricos.

Uma das primeiras questões observadas com o incremento de novas ideias


políticas no cenário intelectual europeu foi o “despotismo esclarecido” (FALCON,
1986). Por este conceito se buscam relacionar as tentativas de novas e mais
modernas formas de legitimação das relações políticas na Europa monárquica
dos Séculos XVIII e XIX. No caso português, o denominado Período Pombalino,
e no caso espanhol as denominadas Reformas Bourbônicas, representaram
tentativas de se modernizar os Estados, visando um maior e mais proveitoso
desenvolvimento econômico. Visto que, da França proveram novas ideias
de legitimação das relações políticas, da Inglaterra se proveio uma Revolução
Industrial, que tornou obsoleta as práticas mercantilistas, não adiantava apenas
ser uma nação com grande quantidade de ouro ou prata, mas as nações deveriam
ter também possibilidades de inovação tecnológica, agregando valor aos produtos
que produziam, como possibilidade de se obter riqueza.

As Reformas Bourbônicas foram estabelecidas ao longo do Século XVIII


e tiveram especial destaque durante o reinado de Carlos III (reinou entre 1759-
1788), que foi reconhecido como um déspota esclarecido. Neste reinado, assim
como ao longo da segunda metade do Século XVIII as principais ações realizadas
pelos agentes estatais do governo espanhol na América visavam reestabelecer
as antigas características do Antigo Sistema Colonial Europeu. Isto é, visavam

168
TÓPICO 2 | O ESTADO NA AMÉRICA LATINA

em grande parte, estabelecer impostos sobre produtos exportados das colônias


espanholas para a Europa, ao mesmo tempo em que tivemos uma nova forma de
se estabelecer uma dinâmica econômica colonial na América Latina, ao permitir o
livre comércio entre as colônias.

Todavia, esses incrementos reformistas utilizados pelos Estados ibéricos


não foram vitoriosos na tentativa de os modernizar. Na corrida pelo poder global,
eles acabaram por ficar para trás na corrida do desenvolvimento, tendo algumas
nações como a Inglaterra, a França e a Holanda, que participaram do Antigo
Sistema Colonial, como coadjuvantes frente a Portugal e Espanha, acabaram
ultrapassando os Países Ibéricos nos principais índices de desenvolvimento
político, econômico e social.

O Século XVIII é importante para a compreensão da organização do Estado


na América Latina não apenas pelas Reformas Bourbônicas e pombalinas, mas
também pelas questões ligadas às grandes transformações sociais deste período,
batizadas pelo historiador francês, Jacques Godechot (1989), como Revoluções
Atlânticas, cujos marcos foram O Iluminismo, A Revolução Industrial, a Revolução
Francesa e a Independência dos Estados Unidos da América.

As ideias iluministas tiveram grande repercussão em novas formas de


organização estatais, como apresentamos nas reformas Boubônicas. Porém, uma
das principais questões que envolviam o Iluminismo foi a sua influência na
Revolução Francesa e na Independência das Treze Colônias Inglesas na América,
que levaram a uma nova forma de percepção social sobre os indívíduos.

Ao observarmos o pensamento escolástico, que pautou a mentalidade


ibérica em sua colonização e em grande parte do pensamento do mundo
ocidental, os indivúduos teriam uma natureza desigual. Isto é, uma das principais
questões é que os indívíduos seriam por essência diferentes. Assim, o corpus
legal dos Estados Nacionais deveria pautar uma nova forma de pensamento e
ação em que as diferenças, em geral marcadas pela família em que se nascia,
e no caso americano, além deste dado, havia as diferenciações sociais pautadas
pelas diferenças étnicas, cuja dicotomia chapetones (espanhóis nativos) e criollos
(filhos de espanhóis nascidos na América), era acompanhada de outras formas de
diferenciação, na qual estavam as outras etnias, como os escravos e os indígenas.

Uma das principais questões ligadas ao Iluminismo, à Revolução Francesa


e à Independência Americana era um novo ideário social, no qual a principal
questão do ponto de vista jurídico era a da igualdade de todos perante a lei.
Deste modo, os indivíduos deveriam ter uma nova forma de relacionamento
para com o Estado. Pois, se todos eram iguais perante as leis, os indivíduos
deveriam ser portadores dos mesmos direitos e deveres. Contudo, este novo
ideário social levou quase um século para ser implantado do ponto de vista
jurídico e social nos principais países do mundo. Processo de transformação
que ocorreu ao longo do Século XIX, e que estava vinculado às lutas sociais das
camadas subalternas da população.

169
UNIDADE 3 | AS INSTITUIÇÕES LATINO-AMERICANAS

No caso latino-americano, podemos observar a presença de uma nova


forma de organização Estatal, que ocorreu após a malograda tentativa de reformas
por parte dos legisladores e consequente processo de independência dos países
latino-americanos, que contou com o apoio norte-americano e inglês: a formação
de repúblicas constitucionais.

A alteração da formação dos Estados nacionais na América Latina foi


vicenciada com o processo de independência, quando as antigas monarquias
se tranformaram em repúblicas, o que possibilitou a formação de países
constitucionais, que, em geral, buscaram implamentar as ideias de Montesquieu.
Isto é, implementar o ideal do pensador iluminista, autor de um clássico da filosofia
do direito denominado O Espírito das Leis. Uma das questões propostas era a de
que o poder na sociedade deveria ser dividido de forma tripartite — Executivo,
Legislativo e Judiciário —, cada qual contando com autonomia e independência.

Assim, os países latino-americanos foram, ao longo do Século XIX,


formando suas instituições jurídicas e legislativas, apontando também uma grande
importância que as repúblicas que nasceram no processo de independência,
tiveram no contexto latino-americano. Uma das singularidades do processo de
formação do Estado Nacional na América Latina é o fato de que a independência
não ocorreu através de uma insurreição do povo contra as elites coloniais, mas
uma disputa de setores das elites coloniais, os chapetones e os criollos. Com isso,
podemos observar que os principais efeitos da política na América Latina é o fato
dela, em grande parte, ter o povo, as camadas subalternas da população, com
pouca representatividade política ao longo dos séculos de História da América
Latina Independente.

Neste sentido, o conceito weberiano de patrimonialismo se completa a


outro conceito da sociologia compreensiva, o denominado “carisma”. Isto é, Max
Weber apontou em um texto denominado A política como vocação, que três são
os tipos ideiais da dominação política. A dominação tradicional, que ocorre nas
monarquias; a dominação racional legal, que ocorre nas diferentes democracias
parlamentares; e a dominação carismática, que busca explicar a presença de
lideranças políticas e religiosas. Isto é, por vezes, as coletividades seguem líderes
que buscam ser os porta-vozes dos anseios das populações.

Neste sentido, podemos compreender a presença de diversas lideranças


na América Latina cuja principal forma de legitimação do poder não foi a
hereditariedade de pertencimento a uma casa real ou aos votos conquistados
pela sua presença em um partido político, mas sim por sua postura como porta-
voz das massas oprimidas da América Latina. Uma das primeiras manifestações
deste tipo de forma de política carismática ocorreu no processo de emancipação
política do poder colonial espanhol.

O conceito de carisma político é importante para a compreensão de


alguns movimentos políticos, muito deles envolvendo as massas populacionais
empobrecidas do continente, que correspondem a uma ampla maioria

170
TÓPICO 2 | O ESTADO NA AMÉRICA LATINA

populacional. Porém, no Século XIX, essas massas não tinham acesso direto ao
voto. Com isso, muitos deles foram representados por um tipo de líder político
específico: o caudilho.

Líderes carismáticos estavam presentes no processo de emancipação


política dos países latino-americanos, com destaque para Simón Bolívar e
José de San Martín, considerados os primeiros caudilhos. Uma das principais
características do sistema caudilhesco da política latino-americana é a da violência
política, em geral acompanhada por instabilidades insitucionais e a presença de
golpes de Estado.

Uma das principais questões do descompasso político da relação Estado


e Povo na América Latina se deve às caracteríticas do Liberalismo Político do
Século XIX, que se manteve como ideal político dos Estados Nacionais até a
Crise Econômica de 1929, no que se refere à representação política. Pois, em
geral, apenas poderiam votar e serem votados os homens maiores de 21 anos
e alfabetizados. Essas condições excluíam a maior parcela da população latino-
americana do jogo político institucional, na maioria das vezes, porque a população
era majoritariamente analfabeta.

O auge do sistema caudilhista como forma das relações políticas na América


Latina ocorreu durante as denominadas Repúblicas Liberais Oligárquicas, entre
meados do Século XIX e início do Século XX, no qual as principais lideranças
políticas do continente eram homens oriundos das oligarquias rurais e que
tinham na política uma possibilidade de aferir maiores lucros aos seus negócios.
Esse período representou um tempo na História Latino-americana marcada por
um tipo de divisão internacional das relações de troca no qual os países latino-
americanos eram os principais produtores de matérias-primas para os produtos
industrializados europeus. Em grande parte, marca também um período no qual
a Inglaterra era o principal país gerador de produtos industrializados do mundo,
sendo a moeda inglesa, a libra esterlina, a moeda padrão das trocas internacionais.

Esse sistema social, no qual os caudilhos eram os principais líderes


políticos carismáticos, representam uma forma excludente de relação social. Visto
que a grande massa da pulação latino-americana não estava apenas excluída do
jogo político ao não ter o direito de voto por ser analfabeta, como também não
tinham condições dignas de vida. Naquele tempo, devido ao fato dos países
latino-americanos não serem produtores de artigos industrializados, mas sim
exportadores de matérias-primas, que possuem menor valor nas relações de troca,
as balanças comerciais dos países da América Latina viviam em uma relação
de desigualdade negativa em relação aos países industrializados da Europa, o
que fazia com que os balanços de pagamento dos países fossem negativos, não
permitindo aos Estados Nacionais dispor de verbas para a infraestrutura básica
das cidades e propor bem-estar para a população, o que ocasionava péssimos
índices de qualidade de vida para a população latino-americana.

Neste sentido, ao ser um continente composto por nações não


industrilizadas, as possibilidades das camadas médias urbanas em abraçar
profissões liberais era possível apenas
171 nas cidades portuárias litorâneas do
continente, como Montevidéu e Buenos Aires ou em tradicionais centros não
UNIDADE 3 | AS INSTITUIÇÕES LATINO-AMERICANAS

Paulo, pensando no caso do Brasil. Deste modo, ao se expandir, no final do Século


XIX e início do Século XX, uma classe média urbana formada por pequenos
comerciantes, profissionais liberais, como médicos e bacharéis em direito,
além de funcionários dos estamentos burocráticos, como servidores públicos
ligados à justiça, aos ministérios da administração dos estados nacionais, como
os ministérios do interior e da agricultura, além dos funcionários militares,
possibilitava a essa classe obter algum espaço social. Todavia, era uma classe
numericamente diminuta.

Essa pequena classe média teve importância para uma alteração na relação
entre os cidadãos das repúblicas latino-americanas e os Estados Nacionais, ao
observarmos que os bacharéis em direito foram figuras importantes, em especial
ao figurarem como representantes públicos, membros das câmaras legislativas
dos países da América Latina. Todavia, parte destes bacharéis em direito tinham
ligações pessoais com os latifundiários rurais latino-americanos.

A Grande Crise Mundial do Capitalismo, que teve como um dos principais


marcos a quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque, em 1929, acarretou
transformação nas relações sociais do continente, por parte dos líderes políticos
ligados às oligarquias, terem sofrido um forte baque econômico. A desvalorização
da moeda, associada a uma transformação geral, ligada ao capitalismo, possibilitou
o surgimento de novos líderes na região latino-americana. Porém, se o marco
econômico das tranformações foi a crise econômica, as disputas em relação às
questões políticas e sociais estavam vinculadas já no início do Século XX, em
especial na segunda década do século, ao observarmos, em 1910, a Revolução
Mexicana. Com ela, podemos observar uma alteração na formação das relações
políticas na América Lanita do Século XX.

A Revolução Mexicana teve como personagens principais, os líderes,


Pancho Villa e Emiliano Zapata. Uma das principais questões que motivou o
processo revolucionário no México foi a extrema pobreza que vivia a população.
Assim, uma grande questão a ser analisada é a relação entre os líderes populistas
e a estrutura social injusta dos países latino-americanos. Com a Revolução
Mexicana, um segundo tipo de relação foi estabelecido entre os latino-americanos
com o Estado. Pois, a partir deste momento, os líderes carismáticos não eram
apenas os caudilhos, ligados aos grandes potentados rurais, como também os
denominados líderes populistas.

O populismo foi um outro conceito utilizado para denominar as relações


estabelecidas entre os líderes populares com o Estado na América Latina. O
populista era um líder político de caracteríticas peculiares, ao propor para as
massas empobrecidas do continente melhores condições de vida e trabalho,
apontando uma maior dignidade para a vida da população.

Dentre os principais líderes populistas, são lembrados Getúlio Vargas,


no Brasil, e Juan Domingos Perón, na Argentina. Por algumas vezes, Lázaro
Cárdenas del Río, no México, também foi arrolado como um dos principais

172
TÓPICO 2 | O ESTADO NA AMÉRICA LATINA

líderes latino-americanos com características populistas. O populismo é um dos


conceitos polêmicos utilizados pelos politicólogos na América Latina. Visto que,
por muitas vezes, as caracteríticas carismáticas presentes nos líderes classificados
como populista são consideradas como demagógicas por diversos setores da
sociedade, em geral aos opositores dos líderes populistas.

E
IMPORTANT

Em relação ao populismo na América Latina, e em especial no Brasil, existe


uma grande produção cinemátográfica. O cineasta Sylvio Back apresentou filmes que
retratam este período no Brasil, como os filmes: Revolução de 1930 e Rádio Auriverde. Até
mesmo o cinema americano retratou esse período ao lançar o filme Evita, sobre a esposa
de Perón, filme que foi estrelado por Madonna.

Em grande parte, o populismo esteve relacionado a um dos principais


aspectos do Estado, em alguns países da América Latina, após a crise de 1929.
Um vetor para o desenvolvimento da economia seria uma perpsectiva presente
dentre os líderes populistas, que tiveram, como principal ponto de vista na gestão
econômica, um grande protecionismo alfandegário, como meio de expandir a
economia nacional.

Uma das principais questões levantadas pelo populismo latino-americano


foi o seu exarcerbado nacionalismo. Este nacionalismo estava envolto não apenas
na gestão da economia, como também em discursos que buscavam legitimar
as ações dos líderes populistas. Porém, o populismo teve como substituto as
ditaduras de segurança nacional. As ditaduras de segurança nacional foram um
dos capítulos da relação do Estado com a população latino-americana através de
seu braço militar.

As Forças Armadas latino-americanas se comportam como uma instituição


com posturas diferentes do que nos países centrais do ocidente, que possuem forte
tradição de liberalismo político, no qual as Forças Armadas são um dos baluartes
das democracias de países como os Estados Unidos, França ou Inglaterra. Ou
seja, enquanto nos ditos países de Primeiro Mundo as Forças Armadas, enquanto
instituição, não participam diretamente das ações políticas ou de ações cívicos-
sociais, se restringido aos papéis tipicamente militares, como manobras em
tempos de paz e operações reais nos teatros de operações das guerras modernas,
nos países da América Latina, os militares se comportam como um dos agentes
políticos principais na prática efetiva do poder.

173
UNIDADE 3 | AS INSTITUIÇÕES LATINO-AMERICANAS

As Forças Armadas, na América Latina, eram tradicionalmente compostas


pelas marinhas e exércitos, tendo este panorama modificado com as Guerras
Mundiais do Século XX, cujo estrondoso avanço tecnológico foi materializado
com o surgimento das Forças Aéreas nos mais ricos e industrializados países do
mundo, fato que foi imitado pelos países da América Ibérica. Ao retornarmos
no tempo, observamos que as Forças Armadas na América Latina possuem
alguns momentos específicos. Primeiramente, os tercios militares, unidade
militar dos exércitos de Hispânia do Período Colonial. Posteriormente, iremos
analisar a presença das Forças Armadas no processo de Independência e, com
este consolidado, das Forças Armadas como força política dos Estados Nacionais,
capazes de protagonizarem diversos Golpes de Estado (CAMPOS, 2000).

As Forças Armadas dos países ibéricos seguem uma tradição militar


oriunda do Período Colonial. Uma das principais questões que envolviam as forças
militares espanholas nos Séculos XVI e XVII era a de sua extrema eficiência em
terra e mar. A Armada Espanhola era denominada como Invincible Armada, cujos
principais navios de combate, os galeões, eram considerados os de maior poder
de fogo do mundo. Também as forças de terra, os exércitos, possuíam uma das
mais temidas infantarias do mundo. No que tange ao exército, as forças militares
espanholas eram organizadas em um modo de disciplina militar denominada
tercios militares. Sendo os militares espanhóis um dos pioneiros na utilização da
pólvora como instrumento tático nas batalhas, devido a este fato, a granada —
armamento bélico — foi batizada com o nome de uma cidade espanhola.

Essas forças militares foram utilizadas em guerras no sul da Europa, no


combate aos principados protestantes na Alemanha e na América, no combate aos
nativos indígenas, assim como aos piratas ingleses e espanhóis, como também,
aos invasores holandeses. Em relação às disputas entre holandeses e espanhóis,
tratou-se de uma das primeiras guerras globais, ao se apresentar combates em
vários mares que banham os diferentes continentes do globo terrestre.

Como uma das mais sólidas instituições do Antigo Sistema Colonial


Espanhol, as forças militares de terra e mar acabaram por ter grande destaque
na formação dos Estados Nacionais latino-americanos. Sem uma adesão dos
setores armados, dificilmente o idealismo de homens, como Simón Bolívar, seria
efetivado como realidade política. Neste sentido, as Forças Armadas acabaram
por se tornarem protagonistas ao longo do Século XIX, em especial por sua
participação nas guerras de Independência. Na segunda metade do Século
XIX algumas guerras foram marcos históricos continentais: a Guerra Hispano-
Americana, a Guerra do Paraguai e a Guerra do Pacífico.

O protagonismo das Forças Armadas enquanto instituição, revela de um


ponto de vista contraditório, logo nas Guerras de Independência, uma nova relação
de dependência dos militares da América Latina para com as forças militares que
possuem maior acesso a novas técnicas de guerra. Quando os militares latino-
americanos estavam lutando contra as forças legalistas que estavam resistindo
à possiblidade de independência para com a Espanha e Portugal, a Marinha

174
TÓPICO 2 | O ESTADO NA AMÉRICA LATINA

Real Inglesa disponibilizou um mercenário, isto é, um soldado que luta apenas


pelo soldo (salário, dinheiro) e não por patriotismo. O nome do mercenário era
Lord Cochrane, almirante nascido na Escócia e que tivera participação em lutas
da Independência no antigo Vice-Reinado de Nova Granada e no Brasil. Lord
Cochane atuou no Peru, ao vencer forças militares espanholas em 1822, e no ano
seguinte, 1823, em Salvador, libertando a Bahia das forças militares do brigadeiro
Inácio Luís Madeira de Melo, que se mantiveram fiéis a Portugal.

Com a independência concretizada na primeira metade do Século XIX,


as Forças Armadas dos diferentes países latino-americanos passaram por um
longo processo de formação. Ao mesmo tempo, o Século XIX assistiu a uma
profissionalização da carreira militar entre os oficiais e ao recrutamento militar
compulsório para a população masculina. Na América Latina, este processo de
profissionalização também foi vivenciado, com a fundação de Escolas Militares
para a formação de oficiais para os Exércitos e as Armadas. Dentre as tradicionais
instituições militares que estão presentes na latino-américa, podemos lembrar
do Heroico Colégio Militar, do exército mexicano, assim como também do Colégio
Militar de La Nación, onde são formados os oficiais do Exército Argentino.

FIGURA 3 – HEROICO COLEGIO MILITAR (HERÁLDICA) E COLÉGIO MILITAR DE LA NACION

FONTE: <http://twixar.me/b1RT> e <http://twixar.me/g1RT>. Acesso em: 10 jun. 2019.

O Século XIX foi um tempo no qual muitas guerras assolaram o continente.


Algumas foram emblemáticas. A Guerra do Paraguai e a Guerra do Pacífico
podem ser consideradas importantes como exemplo de conflitos que revelaram
as profundas rivalidades entre os países latino-americanos.

Uma das principais guerras que mostraram os Estados Unidos como


protagonista militar foi a Guerra Hispano-Americana, na qual os Estados
Unidos do México perderam para os Estados Unidos da América parte
considerável de seu território. A Guerra do Paraguai teve como principal motivo
as rivalidades entre os países envolvidos pelo domínio da navegação no Rio da
Prata, importante escoadouro de produtos agrícolas ao longo do Século XIX.
Brasil, Uruguai e Argentina se uniram contra o Paraguai, liderado por Francisco

175
UNIDADE 3 | AS INSTITUIÇÕES LATINO-AMERICANAS

Solano López sendo os países aliados os vitoriosos. A Guerra do Pacífico, por


sua vez, teve como beligerantes as Forças Armadas da Chile contra a Bolívia e o
Peru. O Chile saiu como nação vitoriosa, ocupando a antiga região costeira da
Bolívia, hoje norte chileno. A Guerra do Pacífico também foi um destaque para
a História Militar porque ela foi uma das primeiras a utilizar as tecnologias
navais e terrestres que foram, posteriormente, utilizadas de uma forma ampla
na Primeira Guerra Mundial.

No Século XX, século de duas grandes guerras mundiais, infelizmente, os


países da América Latina também vivenciaram conflitos militares, como a Guerra
do Chaco, no qual Bolívia e Paraguai foram os contendores, até a mais singular,
a Guerra do Futebol, que teve como irrupção as disputas entre El Salvador e
Honduras nas eliminatórias para a Copa do Mundo de 1970. Guerra que não
possuiu vencedores, sendo resolvida por uma instituição específica no continente,
A Organização dos Estados Americanos, conhecida pela sigla OEA. Fundada em
1948, em Bogotá, com a denominada Carta da OEA, a Organização dos Estados
Americanos busca ser uma instituição a preservar a independência e unidade dos
Estados do continente americano.

Uma das questões polêmicas que envolvem os militares também envolve


as relações entre os Estados Unidos da América e os países da América Latina,
por vezes exemplificadas nas invasões realizadas pelo governo norte-americano
em países da América Central. Tal posicionamento teve como símbolo a ação
da política do Big Stick, isto é, do “grande porrete”, instituída pelo governo
de Theodore Roosevelt, no início do Século XX. Durante todo o Século XX,
os governos norte-americanos agiram de modo violento para com os países
da América Latina, com destaque para os países de América Central. Pode-se
observar que independentemente do espectro político, como o democrata John F.
Kennedy, que buscou invadir Cuba, ou o Republicano George Bush, que invadiu
o Panamá, observa-se a presença de militares norte-americanos interferindo na
vida política latino-americana.

As instituições militares são importantes de se compreender, não apenas


por seu legado nas guerras, mas principalmente por sua participação política
como estamento ligado ao Estado Nacional enquanto instituição latino-americana.
Uma das principais questões que envolvem os Estados na América Latina está
vinculada a grande presença de militares nas lides políticas, ao compararmos os
países latinos com os Estados Unidos ou com as nações da Europa Ocidental.

Uma das principais razões de um certo protagonismo militar ao pensarmos


as relações políticas nos países latino-americanos está relacionado ao fato de as
Forças Armadas, em especial os Exércitos, serem instituições perenes, com base
legal calcada nas constituições dos diferentes estados latino-americanos, sendo
ao mesmo tempo uma das poucas instituições (ao lado da Igreja Católica) nos
diferentes países latinos que possuem presença em todo o território nacional.
Assim, uma das principais questões levantadas é a de uma base institucional de
grande abrangência.

176
TÓPICO 2 | O ESTADO NA AMÉRICA LATINA

Duas foram as principais formas de intepretação da participação


militar na política, como apontou o sociólogo Edmundo Campos Coelho: uma
interpretação instrumental e uma interpretação organizacional (COELHO, 2000).
A interpretação instrumental pesa as ações dos militares na esfera política na
balança de outros grupos sociais. Isto é, os militares ao agirem na esfera pública,
estariam defendendo os interesses das oligarquias agrárias, das burguesias
nacionais ou estrangeiras, ou ainda das classes médias urbanas. A posição
defendida por Edmundo Campos Coelho pensa as relações entre os militares
e a sociedade civil, em especial a participação política dos militares de modo
organizacional. Isto é, os militares na América Latina, ao atuarem como agentes
políticos, apresentam uma defesa dos interesses da organização a qual pertencem.
Essa possibilidade de compreensão se mostra mais coerente com os eventos da
história latino-americana quando se observa as posturas empreendidas pelos
militares latino-americanos na esfera política.

Uma outra questão que explica o protagonismo do estamento militar é


a da sua organização hierárquica rígida, porém calcada em um grande espírito
coorporativo. Esse espírito de corpo da organização militar aponta uma importante
relação da legitimação da presença do estamento militar na vida pública. Pois,
estavam relacionados a uma possibilidade de justificar sua existência perante
a sociedade através de valores como o patriotismo e a eficiência na gestão dos
recursos públicos.

Assim, podemos compreender que esses recursos de legitimação foram


importantes para a presença dos generais como líderes organizacionais que
conquistaram o poder político através de sua presença no interior da organização
militar. Pois, em grande parte, os militares tiveram um discurso e práticas de defesa
do Estado Nacional como instituição. Um aspecto importante para compreender
as relações dos militares na América Latina com o comunismo, sendo por muitas
vezes a doutrina comunista rechaçada pelas organizações castrenses é a da ideia
dos militares como os defensores do Estado Nacional e de suas instituições. O texto
mais difundido de Karl Marx e Friedrich Engels, O Manifesto do Partido Comunista
apresenta uma pregação do fim do Estado Nacional. Neste sentido, o comunismo
seria uma doutrina que teria como pregação indireta o fim da profissão militar, que
não mais faria sentido sem a presença de um Estado Nacional. Assim, durante a
Guerra Fria, que significou uma disputa indireta ao poder global capitaneada pelos
Estados Unidos, como defensor do bloco capitalista e pela União Soviética, defensor
do bloco socialista, os militares latino-americanos, em sua maioria, apresentaram
uma defesa dos estadunidenses.

Uma das principais questões foi a da manutenção dos interesses norte-


americanos no continente ao longo da Guerra Fria. Os militares dos países latino-
americanos possuíam grande intercâmbio com os militares dos Estados Unidos
da América. Pois, uma das formas dos países latinos conseguirem modernizar
suas Forças Armadas era a de promover missões militares com países cujas Forças
Armadas possuíssem maior relevância tecnológica, sendo os Estados Unidos e os

177
UNIDADE 3 | AS INSTITUIÇÕES LATINO-AMERICANAS

países europeus como a França e a Alemanha, os principais polos de influência


dos militares na América Latina. Assim, muitos dos principais líderes militares
latino-americanos tiveram grande relação com os países do ocidente.

Durante a Guerra Fria os exércitos da maior parcela dos países latino-


americanos tomaram o poder através de Golpes Militares, no qual governos
populistas foram substituídos por Ditaduras de Segurança Nacional. Deste
modo, muitos dos militares do continente acabaram sendo chefes de Estado e do
Governo dos países latino-americanos.

Com o processo do final da Guerra Fria, novamente, as ideias liberais se


apresentaram como os fatores legitimadores das relações sociais. Isso porque,
tanto no período populista quanto no período de ditaduras militares, o Estado
na América Latina buscou se portar como um agente do desenvolvimento
econômico, em uma política que alguns países vivenciaram, como a Argentina, o
Brasil e o México, que foi denominada de substituição de importações.

Os Estados nacionais protegiam as indústrias de seus respectivos países


através de pesadas tarifas para os produtos importados, possibilitando, deste
modo, uma melhor competitividade de preços para os produtos locais. Também
os Estados destes países buscaram estabelecer empresas estatais, dirigidas
diretamente pelos governos, bem como multinacionais, visando desenvolver o
parque industrial destes Estados Nacionais. Todavia, após os anos 1990, tendo
como símbolo o governo de Carlos Menem na Argentina, os países da América
Latina passaram por novas configurações, no qual o Estado Nacional foi aos
poucos modificando sua postura. De um Estado interventor na economia, para
um Estado que dita as regras e normas utilizadas na esfera econômica.

A relação patrimonialista entre os agentes estatais e a população latino-


americana foi uma constante nos cinco séculos de história do continente. Isto é
presente, ao pensarmos que são os estamentos os principais grupos de poder.
Quando da época colonial, os estamentos patrimoniais, ligados à terra. Durante
o Século XX, os estamentos burocráticos civis e militares. Na atualidade, os
estamentos gerenciais, ligados à administração das empresas multinacionais.
Assim, podemos observar, ao contemplar o Estado na América Latina e sua
relação com a população, que temos relações de poder ainda não baseadas em
uma noção de igualdade dos indivíduos perante as leis, mas composto por grupos
que mantêm status diferenciado no que se refere aos deveres e direitos legais.

178
RESUMO DO TÓPICO 2

Neste tópico, você aprendeu que:

• As relações entre Estado e sociedade, na América Latina, podem ser explicadas


à luz do conceito de patrimonialismo.

• As relações de dominação na América Latina não são apenas ligadas às classes


sociais, mas aos estamentos.

• A composição patrimonialista da sociedade e do Estado estão vinculados à


herança colonial.

• A presença de líderes carismáticos é uma constante na história da América Latina.

• Os militares formam uma força política importante nas dinâmicas políticas dos
países ibero-americanos.

179
AUTOATIVIDADE

1 O que é patrimonialismo?

2 Por que a América Latina pode ser considerada um local do mundo no qual
o patrimonialismo é uma constante das relações sociais?

a) ( ) Porque se observa grupos se utilizando das instituições do Estado para


interesses privados.
b) ( ) Porque o continente foi colonizado por europeus.
c) ( ) Porque se observa uma relação de grande ética por parte dos agentes
públicos e privados, o que garante a paz e a prosperidade do continente.
d) ( ) Porque observamos uma moral ilibada da maior parte dos políticos e
militares latinos.

3 O que é estamento?

180
UNIDADE 3
TÓPICO 3

AS INSTITUIÇÕES DE ENSINO NA AMÉRICA

1 INTRODUÇÃO
No presente tópico, você, caro acadêmico, terá uma visão panorâmica
sobre dois modelos educacionais presentes no continente americano, os
observando de um ponto de vista histórico e sociológico. A relação entre a
educação e a formação dos diferentes estamentos sociais foi amplamente
estudada por sociólogos da educação, com destaque para o teórico franco-
argelino Pierre Bourdieu, autor de trabalhos empíricos que revelam esta relação
entre o capital cultural acumulado pelos indivíduos e as diferentes trajetórias
individuais, que apontam a relação entre a vivência biográfica e seu diálogo
com a sociedade na qual se vive.

As diferentes relações entre as sociedades surgidas na América, um


sul católico e latino, em contraste com um norte protestante e anglo-saxão, se
revelam em diversos aspectos da vida americana. Um destes aspectos, com
certeza, é a educação. Quando dos séculos primeiros do contato entre europeus,
indígenas e africanos, as presenças de dois modelos diferentes de educação se
colocaram perante as distintas sociedades. De um lado o modelo protestante
de educação, que tendia a ser mais ampla, confrontando de outro, um modelo
católico, que tendia a ser mais elitista. Neste sentido, tanto na América do Norte
como na América Latina, a Educação esteve vinculada às cosmovisões cristãs
de ambos os lugares. Assim, podemos observar que as cosmovisões eram muito
diferentes e se refletiram no que tange as diferentes relações entre a fé e suas
expressões na vida cotidiana.

Com o processo de laicização vivenciado pelas sociedades latino-


americanas ao longo do Século XIX, a educação passou por um processo
de aumento da presença do Estado na gestão educacional. Todavia, como
observaremos, os grupos religiosos protestantes fundamentalistas e católicos
conservadores buscaram intervir no ensino público, causando por vezes tensões
que revelam que o processo de laicização das sociedades na América ainda é um
processo sendo realizado.

181
UNIDADE 3 | AS INSTITUIÇÕES LATINO-AMERICANAS

2 AS INSTITUIÇÕES DE ENSINO NA AMÉRICA


Na América do Norte, muitos dos imigrantes tiveram como uma de suas
motivações para a migração para um novo continente a perseguição religiosa que
sofriam na Inglaterra. Pois, a religião oficial do Império Inglês era o Anglicanismo.
Todavia, o calvinismo, e posteriormente o metodismo, fizeram parte do campo
religioso inglês durante e denominada Idade Moderna (Séculos XV –XVIII).
Assim, aqueles grupos de indivíduos que migraram da Inglaterra para as Treze
Colônias acabaram por ter uma motivação não apenas econômica para a sua
migração continental, mas sim ter um ambiente no qual pudessem realizar suas
práticas religiosas cotidianas com liberdade.

A reforma teve como um de seus pilares uma doutrina religiosa


denominada Sola Scriptura. Segundo essa doutrina religiosa, a Bíblia deve ser a
única regra para basear as doutrinas teológicas dos cristãos professos, assim como
também deve ser as sagradas escrituras um lume a guiar as condutas individuais.
Tal inspiração dos imigrantes da velha Inglaterra para os Estados Unidos eram as
doutrinas desenvolvidas por João Calvino e divulgados no Reino Unido através
da pregação do escocês John Knox. Por isso, os Calvinistas de língua Inglesa
eram denominados puritanos. Pois, buscavam aliar as doutrinas religiosas, de
profunda inspiração bíblica, com as condutas individuais cotidianas, também
inspiradas na Bíblia.

Para uma rotinização do carisma religioso, isto é, para que as novidades


empreendidas como doutrina de fé pelos reformadores pudessem ser reproduzidas
pelo organismo social, a educação básica teve um aspecto fundamental para
as diferentes denominações protestantes nos Estados Unidos da América.
Assim, grupos batistas, metodistas e presbiterianos, principais denominações
protestantes ao lado dos anglicanos, que se portavam como religião de Estado,
tinham na alfabetização uma de suas principais preocupações religiosas.

Para os grupos batistas, que realizam o batismo apenas de adultos, os


catecúmenos, ou seja, os que ainda não tinham adentrado ao grêmio religioso
cristão através do batismo, deveriam ter conhecimentos bíblicos satisfatórios para
poderem ser considerados cristãos professos. Em grêmios religiosos que utilizam
o batismo infantil, como no caso dos presbiterianos, era comum que quando a
criança fosse batizada, um dos juramentos realizados por pais e padrinhos era o
de se alfabetizar a criança para que, quando atingisse condições de compreensão
e razão autônoma, pudesse ler a bíblia com desenvoltura.

Importante salientar que esse processo de incentivo religioso da educação


de face protestante foi um processo que demorou séculos. Lutero apontou em seus
escritos, ainda no Século XVI que os príncipes deveriam incentivar a educação.
Isso não significou que todos logo no início do processo histórico-religioso da
reforma foram alfabetizados e em larga escala. Mas isso revela que a população
civil dos países que passaram pela reforma religiosa teve maior preocupação com
a alfabetização que os países católicos.

182
TÓPICO 3 | AS INSTITUIÇÕES DE ENSINO NA AMÉRICA

Deste modo, nas Treze Colônias Inglesas na América do Norte, a vivência


da religião foi materializada de modo diferente do que se observa na América
Latina. Ao invés de suntuosas igrejas, repletas de metais preciosos como ouro
e prata, além de pedras preciosas, em homenagem a algum santo, com grande
destaque para o culto mariano (isto é, a devoção à Virgem Santíssima), muitas
igrejas eram simplórias construções de madeira.

FIGURA 4 – ESCOLA DE MADEIRA DE SANTO AGOSTINHO, NA FLORIDA, A MAIS ANTIGA


ESCOLA NORTE-AMERICANA AINDA EXISTENTE (PATRIMÔNIO CULTURAL DATADO DO
SÉCULO XVIII)

FONTE: <https://www.theoceangallery.com/wp-content/uploads/2019/03/The-Oldest-Wooden-
Schoolhouse.jpg>. Acesso em: 25 out. 2019.

Como no protestantismo, os templos não são considerados como lugares


envoltos de mistérios sagrados, mas sim um local de reunião pública para se
poder aprender mais sobre a fé. Em muitas localidades na América do Norte
colonial, comunidades levantavam construções nas quais, ao longo da semana,
eram utilizadas como escolas de primeiras letras e durante o domingo, a mesma
edificação era utilizada como local da realização do culto. Sendo comum, em
muitas comunidades, a família pastoral (ou seja, o pastor, sua esposa e sua prole)
exercer a função de professores das escolas das comunidades espalhadas pelos
mais longínquos rincões dos Estados Unidos da América quando estes ainda
eram compostos por Treze Colônias que deveriam obediência à Coroa Britânica.

Uma diferença ocorreu em relação à Educação na América do Norte


Colonial e que estava envolta a forma de organização social. Pois, a escravidão
foi uma marca nas colônias americanas. Todavia, se nas colônias do Norte, que
tinham como principais características serem colônias de imigração existiam
até mesmo escravos alfabetizados por motivações religiosas, no Sul, que eram
colônias de exploração, a escravidão era uma marca que apontava para um certo
descaso dos proprietários para com a alfabetização dos escravos. Porém, as
populações negras também tiveram acesso à educação na América do Norte, não
apenas por questões religiosas, mas principalmente após o Século XIX, quando a
educação, assim como diversos outros campos da sociedade, (como a medicina
e a justiça) que tinham inspirações teológicas passam por um amplo processo de
secularização e racionalização.

183
UNIDADE 3 | AS INSTITUIÇÕES LATINO-AMERICANAS

Esse processo pode ser compreendido no histórico da vida universitária


dos Estados Unidos da América e do Canadá. Pois, as principais Universidades
dos Estados Unidos, quando em sua fundação nos séculos no qual o país era
uma colônia inglesa, foram pensadas como escola para formação de teólogos,
médicos e juristas. Isso porque as Universidades poderiam formar profissionais
que ocupariam funções de estamentos médios da população, não vinculados
ideologicamente com a Inglaterra, pois não seriam formados na Europa. Assim,
pastores que liderariam comunidades nas diferentes cidades americanas,
advogados, promotores e juízes, importantes para a lisura dos negócios e como
mediadores de rivalidades entre grupos e indivíduos, além dos médicos, de
relevante importância para o bem-estar social, tiveram sua formação durante os
anos da Idade Moderna nos Estados Unidos vinculados a sua formação como líderes
de uma sociedade marcada pelo cristianismo como principal ideologia social.

Quando a Idade Moderna finda e temos o início da denominada


Idade Contemporânea após as denominadas Revoluções Atlânticas do Século
XVIII (GODECHOT, 1989), temos uma disputa entre as elites eclesiásticas
e os grupos leigos pelo controle da educação. Ao longo do Século XIX, após a
denominada Segunda Revolução Industrial, com a ampliação das indústrias
de base metalmecânicas, a educação deixou de ser uma preocupação ligada a
valores religiosos e passou a ser uma preocupação econômica. Pois, novas
máquinas exigiram operários com maior qualificação educacional. Assim, os
principais líderes sociais advindos do campo econômico, como líderes sindicais
e empresários passaram a considerar a educação não apenas uma reivindicação
legítima devido a preocupações religiosas, como também pautadas em interesses
pragmáticos do mundo econômico.

Deste modo, as paisagens das cidades americanas foram contempladas


não apenas com escolas paroquiais, como também com escolas públicas, com
professores contratados pelo Estado. Neste novo período da História Americana, a
separação entre a Igreja e o Estado, o denominado modelo de laicidade americano,
excluiu a presença de religiosos nas escolas básicas bancadas com o dinheiro dos
impostos recolhidos dos cidadãos. Deste modo, orações e demais ritos religiosos
não são permitidos em escolas públicas, sendo restringidos estes devocionais aos
templos e demais espaços sociais de pregação de ideias religiosas.

Todavia, em muitos estados americanos, no qual a presença de indivíduos


que possuem valores religiosos cristãos de linha fundamentalista é de grande
número, muitos professores sofrem censuras ao buscar ensinar. Assim, uma
das principais questões em muitos estados, nos quais a presença de cidadãos
conservadores apresentava grande número foi (e por vezes ainda continua sendo)
a de promover ações de censuras a se ensinar nas escolas públicas do ensino
primário temas que se opõem aos valores religiosos puritanos, como no caso do
ensino da sexualidade humana e da teoria da evolução das espécies formulada
por Charles Darwin.

184
TÓPICO 3 | AS INSTITUIÇÕES DE ENSINO NA AMÉRICA

No início do Século XX, em 1925 um fato vivenciado ficou célebre, o


denominado “Caso Scopes”. Nele, um professor de biologia foi protagonista de
uma grande polêmica pública. Pois, buscou ensinar a Teoria da Evolução das
Espécies, mas foi duramente criticado pelos pais, que buscaram e conseguiram
judicialmente censurar o ensino da Teoria Darwinista nas escolas públicas, sendo
o professor demitido, exonerado de suas funções como educador. O caso foi
posteriormente julgado pela suprema corte, que inocentou o professor, garantindo
assim a laicidade do ensino público na América (OLSON, 2001).

O ensino público americano do Século XX teve como um de seus


principais idealizadores o filósofo e teórico educacional John Dewey.
Uma das principais contribuições de John Dewey para a educação foi a
de se pensar a educação não ligada a valores filosóficos ou metafísicos
(religiosos), mas ligada com a vida prática e cotidiana dos indivíduos. Assim, a
sua filosofia educacional foi denominada como “Pragmatismo”.

Uma das principais características da educação americana no seu nível


básico é que ela é considerada de qualidade pela maioria da população. Em
grande parte porque a mesma conseguiu, ao longo do Século XX, cumprir o
papel de adequação do indivíduo ao meio social. Em um mundo após a Segunda
Revolução Industrial e no qual as mulheres, seja por questões de vida prática
(baixos salários dos esposos) ou por questões de mentalidade (frente de libertação
feminina) não mais estavam presentes nos lares, buscando um espaço digno no
mercado de trabalho, as escolas públicas estadunidenses ofertavam a educação
em período integral. Isto é, as crianças passaram a ficar por todo o dia nas escolas,
que passaram a ofertar não apenas o ensino das primeiras letras e do rudimento
das ciências como exigidos nos textos pré-universitários, mas também atividades
lúdicas, como o ensino da música, do teatro, da dança, assim como um amplo
incentivo aos esportes, compreendendo estas atividades tão nobres quanto as
ciências, que também costumam ser valorizadas pelas instituições educacionais.

Na atualidade, esse modelo educacional demonstra algumas limitações,


ao compreendermos que vivemos um mundo de uma sociedade pós-industrial,
no qual os valores sociais foram modificados e as angústias das novas gerações
se fazem presentes nas escolas. Uma das questões fundamentais é que as tensões
sociais se fazem presentes nas escolas, tanto na América Latina quanto na
denominada América Anglo-Saxônica. Pois, muitas das escolas norte-americanas
na atualidade são palco de tristes atentados, no qual meninos munidos com armas
de grosso calibre, como fuzis e metralhadoras, matam seus antigos companheiros
de sala de aula.

185
UNIDADE 3 | AS INSTITUIÇÕES LATINO-AMERICANAS

DICAS

As tensões que ocorrem nas escolas foram retratadas por diversos filmes,
sendo que muitos deles valem a pena serem assistidos, como A Sociedade dos Poetas
Mortos, Ao Mestre com Carinho e Um Diretor Contra Todos.

As tensões sociais também se refletiram na América no Norte do Século


XX nas Universidades. Uma das questões era que algumas instituições de nível
superior eram excluídas aos negros, como a Academia Naval da Marinha de
Guerra dos Estados Unidos, em Anápolis, que formam os oficiais da Armada e do
corpo de fuzileiros navais (Marines) da Marinha dos Estados Unidos, assim como
muitas universidades civis. Um dos marcos, nos anos 1960, da luta pelos direitos
civis foram justamente a presença de negros nas universidades americanas, assim
como um sistema de cotas, que garantiu a presença das diferentes etnias que
formaram a sociedade americana nos principais cargos de elite do Estado e do
Mercado na sociedade americana nos anos após a Segunda Guerra Mundial.

Não apenas refletem os dilemas sociais, como também as universidades


nos Estados Unidos, são tradicionalmente consideradas como um dos polos
do desenvolvimento econômico do país. Assim, grande parte de recursos das
empresas privadas são destinadas aos cientistas empregados nas principais
universidades da América, como em Princeton, Harvard e Columbia, sendo que,
além destas universidades, que têm característica de serem instituições privadas,
o governo norte-americano, em seus diferentes níveis, apresenta à população
algumas universidades públicas, mantidas por verbas estatais recolhidas dos
contribuintes.

O sistema educacional superior norte-americano possui algumas


características especiais. Pois, em geral, existe uma divisão entre as Universidades,
em geral mais prestigiadas e maiores, dos Colégios (o que diríamos em português
“faculdades”), que possuem como principal tarefa a formação de mão-de-obra
para o mercado de trabalho, que em um país de tradição liberal, é de extremada
concorrência nas mais diversas áreas de atuação.

Na América no Norte, as universidades continuaram a ter um diálogo com


as antigas instituições religiosas, em grande parte por ser a religião um símbolo
da identidade de grupos sociais. Assim, a Universidade de Notre Dame é ligada
a comunidade católica, assim como Columbia tradicionalmente é considerada
uma universidade ligada à comunidade judaica. Porém, as tradições religiosas
destas universidades não são vinculadas ao fundamentalismo. Uma tradição
nos Estados Unidos foi a manutenção dos cursos de teologia em universidades
não gerenciadas diretamente pelas corporações religiosas, mas considerando a
teologia como uma tradição e campo legítimo de presença nas universidades,
sendo presentes em muitas instituições as denominadas “Divine School”.
186
TÓPICO 3 | AS INSTITUIÇÕES DE ENSINO NA AMÉRICA

Grupos fundamentalistas também organizaram suas Universidades.


Nelas, alguns temas sensíveis aos grupos fundamentalistas norte-americanos são
interpretados tendo como principal fonte as sagradas escrituras. Em especial, a
teoria da Evolução é interpretada tendo por base a interpretação fundamentalista
das sagradas escrituras, sendo denominada Teoria da Terra Jovem, no qual ao
invés de se apresentar ao mundo sendo uma evolução de milhões de anos, se
aponta a terra tendo apenas seis mil anos.

A tradição educacional norte-americana, vista de modo breve nas


linhas que se seguiram, possui características próprias, diferentes dos modelos
vivenciados na América Latina e na Europa. Fruto de uma sociedade plural,
que enfrentou dilemas morais, políticos e sociais, podemos compreender que a
educação foi uma das principais questões sociais, porque ela esteve em grande
parte vinculada às disputas políticas e ao desenvolvimento econômico e militar
do principal país imperialista do ocidente. Imperialismo que por vezes impediu
o pleno desenvolvimento de outras partes do continente americano, em especial,
o desenvolvimento da América Latina.

Na América Latina, a Educação também tem uma relação com os corpos


religiosos institucionalizados, que buscaram formar corpos, almas e mentes na
América Colonial. Como podemos observar, no primeiro tópico da presente
unidade de Estudos, a presença da Igreja Católica no continente corresponde
não somente a uma denominação religiosa entre outras, mas a presença de uma
das principais instituições continentais. No que tange a História da Educação na
América Latina, a presença do catolicismo é de grande relevância. Em especial,
devido ao legado colonial. Quando da formação histórica dos vice-reinados, os
principais educadores eram vinculados a instituições religiosas católicas. Isto
é, a educação na América Latina esteve profundamente vinculada aos ditames
institucionais católicos.

Uma das principais doutrinas católicas é o Extra Ecclesiam Nulla Salus. Isto
é, a compreensão que fora da igreja não existe a possibilidade de salvação para o
ser humano em face de Deus. Neste sentido, a obra de evangelização realizada
pela igreja católica no período colonial pode ser compreendida como uma ação
pedagógica. Pois, os missionários buscaram cristianizar as principais nações
indígenas, ensinando a elas as boas novas cristãs. As determinações do Concílio de
Trento afirmavam uma nova forma de ensino das noções básicas do cristianismo,
ao estabelecer a catequese antes da primeira comunhão. Deste modo, o foco dos
colonizadores ao educar as populações que pertenciam às esferas mais baixas da
estratificação social era a de se ensinar os rituais católicos e não as primeiras letras.

Dentre os principais teóricos da educação na América Latina, dois


estudiosos ganharam grande destaque, não apenas no continente latino-
americano, como também em vários lugares do mundo com maior investimento
nas ciências, como nas universidades dos Estados Unidos e da Europa. Foram
eles a educadora nascida na Argentina e radicada no México Emília Ferreiro
e o educador brasileiro Paulo Freire. Um dado importante em suas trajetórias

187
UNIDADE 3 | AS INSTITUIÇÕES LATINO-AMERICANAS

intelectuais é que ambos proporcionaram novas e revolucionárias metodologias


para se trabalhar com a alfabetização. Isso é um dado de extrema importância, ao
considerar que os índices de analfabetismo na América Latina são tradicionalmente
grandes, os educadores não apenas buscaram importar modelos e os adaptar à
realidade latina, como também propuseram soluções criativas e colaboraram com
o avanço do conhecimento educacional

FIGURA 5 – PAULO FREIRE

FONTE: <https://ogimg.infoglobo.com.br/in/23602904-53d-dcc/FT1086A/652/xPaulo-Freire.jpg.
pagespeed.ic.umu-Gi5dyB.jpg>. Acesso em: 25 out. 2019.

Podemos compreender que a proposta educacional elaborada por Paulo


Freire teve como uma de suas principais características possibilitar para as
pessoas, que em suas biografias foram privadas do direito de Educação durante
a infância pudessem ser alfabetizadas durante a vida adulta. O método Paulo
Freire, como ficou internacionalmente conhecido, consistia em ensinar aos
adultos escrever tendo como metodologia de ensino não as cartilhas infantis mas
tendo como principais exemplos os instrumentos de ofício presentes na realidade
dos trabalhadores, sendo a cidade de Angicos, no interior do Rio Grande do
Norte, a primeira experiência de alfabetização que utilizou este método. Na
década de 1960, em países como o Brasil, no qual foi apoiado por políticos como
o governador de Pernambuco Miguel Arraes e no Chile, no qual foi presente
o método Paulo Freire ao longo do governo democrático do presidente Frey
(1964-1970), a maior parcela dos analfabetos eram pessoas que trabalhavam em
atividades braçais como as atividades laborais domésticas, a construção civil
e a agricultura, uma das principais formas de se ensinar as primeiras a letras
e as quatro operações matemáticas básicas (soma, adição, subtração, divisão)
era através de palavras que faziam parte do cotidiano de trabalho, como pá,
enxada, tijolo, vassoura, entre tantas outras. Esse método foi revolucionário
porque possibilitou a alfabetização de grande quantidade de adultos em um
tempo relativamente rápido. O livro Pedagogia do Oprimido foi uma das principais
contribuições de Paulo Freire ao pensamento pedagógico do ocidente, ao afirmar
sua crítica ao que foi denominado nesta obra como Ensino Bancário (ou educação
bancária), no qual o educador criticou a ideia que educar fosse apenas transmitir
conteúdo. Para Paulo Freire, a educação deveria ser uma forma de transformação
do mundo, sendo os seres humanos que passaram por uma educação libertária
os agentes da melhoria social.

188
TÓPICO 3 | AS INSTITUIÇÕES DE ENSINO NA AMÉRICA

Emília Ferreiro foi uma educadora nascida em Buenos Aires, atuante


na Universidade do México e que também possuiu grande relevância para a
compreensão da educação no cotidiano latino-americano. Uma das principais
questões levantadas por Ferreiro é uma nova proposta para a alfabetização das
crianças em idade escolar. Essa nova proposta do ensino da leitura e da escrita foi
amplamente adotada nas escolas brasileiras e é denominada como “letramento”.
Por tal compreensão metodológica de alfabetização, as crianças não devem
aprender a ler tendo como base a divisão silábica, mas tendo como pressuposto
que as crianças já são expostas a palavras escritas desde o seu nascimento, ao
viver em um contexto já “letrado”.

FIGURA 6 – EMÍLIA FERREIRO

FONTE: <https://bit.ly/2BKlD0I>. Acesso em: 25 out. 2019.

Não apenas a educação básica é presente nos países latino-americanos.


Uma das questões que envolvem a presença das universidades na América Latina
esteve envolta com o processo de laicização do continente. Pois, enquanto alguns
países latinos, como o caso da França, a laicidade se apresentou de modo radical,
sendo as universidades e o ensino primário em suas instituições radicalmente
estatizadas e laicizadas, na América de língua espanhola, a presença de instituições
católicas no ensino básico e superior se manteve como tradição. E especialmente,
na formação das elites dirigentes latino-americanas.

A vida universitária na América Latina tem como uma de suas expressões


maiores as instituições que foram formadas ao longo dos séculos de história
latino-americana. Uma das principais diferenças entre os modelos de colonização
existentes na América Portuguesa e na América Espanhola é a presença de
universidades logo no período colonial. Em 1538, foi fundada a pioneira
universidade de São Domingos. Posteriormente, algumas décadas após, foram
fundadas as pioneiras Universidade São Marcos (1551), no Peru e a Universidade
do México (1553). A formação de universidades na colônia revelava a disposição
da administração espanhola em ter na América uma elite letrada criolla, isto é,
um estamento de letrados que pudessem ter cargos na administração estatal no
continente americano.

189
UNIDADE 3 | AS INSTITUIÇÕES LATINO-AMERICANAS

No universo intelectual latino-americano tem grande destaque a UNAM


— Universidade Nacional Autônoma do México. Esta universidade tem grande
importância para o continente por ser um grande centro de produção científica,
como também um centro de produção de quadros para diversas universidades
dos países latino-americanos. Outra instituição mexicana de grande relevância é o
afamado El Colégio de México, importante centro de estudos em ciências sociais.

Além do México, outro grande centro de estudos universitários é a


Argentina, sendo duas as principais universidades daquele país. A Universidade
Nacional de Córdoba e a Universidade de Buenos Aires. A Universidade
Nacional de Córdoba teve em sua história o destaque de uma ampla revolta
estudantil vivida no início do Século XX e que possibilitou reformas estruturais
no sistema educacional.

As formações de Universidades na América Latina revelam uma situação


de descompasso entre a preocupação centenária de formar uma elite dirigente e
a educação destinada às massas. Pois, na América Latina, existe uma reprodução
das elites através da educação. Observa-se uma grande massa desprovida
do acesso à educação superior e técnica, sendo por vezes, as massas latino-
americanas a formarem um exército industrial de desempregados dos grandes
parques industriais, justamente por não terem as competências e habilidades que
a educação proporciona.

As universidades se comportaram, na América Latina, como um dos


principais locais de difusão cultural. Tradicionalmente, foi entre estudantes
universitários e pessoas oriundas das universidades os principais vetores das
letras e artes no continente, como o escritor Mario Vargas Llosa, egresso da
Universidade São Marcos, ou Gabriel García Márques, que cursou sem concluir o
curso de Direito da Universidade Nacional da Colômbia.

Também como forma de difusão de conhecimento, as editoras tiveram


uma grande importância para a divulgação de ideias culturais e científicas.
Neste sentido, se destacaram duas editoras com projeção continental: a Editora
Fondo de Cultura Económica, da Cidade do México, e a Editorial Sudamericana, de
Buenos Aires. Essas editoras tiveram grande destaque na divulgação de obras de
ciências humanas e sociais, como as traduções dos livros considerados clássicos
do pensamento das ciências humanas, como as obras de Karl Marx e Max Weber.

As editoras tiveram grande importância no desenvolvimento intelectual


da América Latina, ao lado das universidades. Esses dois polos de produção e
difusão do conhecimento histórico se vincularam ao desenvolvimento da ciência
histórica no continente. Um dos principais aspectos que podemos compreender
ao contemplarmos a História da América Latina é o da presença de importantes
historiadores, que possibilitam aos estudiosos do continente subsídios para um
conhecimento amplo da realidade social latino-americana.

190
RESUMO DO TÓPICO 3

Neste tópico, você aprendeu que:

• A Educação na América Anglo-Saxônica sofre uma majoritária influência


protestante.

• A Alfabetização foi uma das principais preocupações das igrejas protestantes


no que se refere à educação do período colonial na América do Norte.

• A Educação da América Ibérica sofreu uma grande influência católica.

• As Universidades na América Espanhola foram fundadas logo no início do


processo de colonização.

• A Universidade Nacional Autônoma do México é uma das principais


universidades do continente.

• As editoras, como a Sudamericana e a Fondo de Cultura Económica, foram


importantes difusoras de cultura e conhecimento no continente.

191
AUTOATIVIDADE

1 Qual a diferença entre as influências religiosas na educação ofertada às


populações da América Latina e da América Anglo-Saxônica?

2 Qual a diferença da formação de universidades do Brasil e na América


Espanhola?

192
UNIDADE 3
TÓPICO 4

A HISTORIOGRAFIA SOBRE A AMÉRICA

1 INTRODUÇÃO
Neste último tópico, abordaremos algumas das principais obras da
historiografia do continente americano. A historiografia é um dos campos
importantes para se compreender de forma aprofundada as diferentes áreas de
pesquisa da História enquanto campo disciplinar do conhecimento científico.
Pois, muito do que sabemos sobre a História da América foi o fruto do trabalho
dedicado e incansável de muitos pesquisadores.

Primeiramente, analisaremos a presença de uma historiografia sobre a


América anterior a formação dos cursos de História nas universidades americanas.
Observaremos que os primeiros conquistadores do continente também foram os
primeiros a relatar, descrever e analisar as ações das sociedades pré-colombianas
e sua relação de confronto com os colonizadores espanhóis.

Uma segunda questão abordada é a da presença de uma historiografia


escrita por professores universitários no contexto latino-americano, com destaque
para a produção de historiadores ligados a diferentes instituições universitárias
e de diferentes escolas historiográficas, como a mexicana, a francesa e inglesa.
Desta forma, esperamos contribuir para uma ampliação da visão sobre a produção
científica da História da América.

2 A HISTORIOGRAFIA SOBRE A AMÉRICA


Logo nas primeiras décadas de “descoberta” da América, tivemos a
produção dos pioneiros historiadores americanistas. Já no Século XVI, tivemos as
primeiras fontes sobre a História da América produzidas pelos “descobridores”.
Cristóvão Colombo, líder da expedição que inaugura o contato entre europeus
e nativos americanos, escreveu seu diário, uma das primeiras descrições sobre
o continente americano. Todavia, importância na narrativa histórica se revela
no nome pelo qual foi batizado o novo continente, uma homenagem a Américo
Vespúcio. Pois, enquanto Colombo acreditava ter chegado em Cipango, ilha
descrita por Marco Polo, Américo Vespúcio em seus relatos apontou ter descoberto
um Novo Mundo.

193
UNIDADE 3 | AS INSTITUIÇÕES LATINO-AMERICANAS

Vários foram os escritores que ao longo dos Séculos XVI e XVII apontaram
a América como objeto de estudo histórico. Todavia, uma história ainda muito
próxima da crônica medieval, não preocupada com questões metodológicas e
científicas, mas sim em realizar uma narrativa de acontecimentos vivenciados
pelos primeiros exploradores no novo continente. Dentre estes historiadores e
cronistas, podemos citar alguns que tiveram grande destaque:

Felipe Guamán Poma de Ayala escreveu, em 1615, Nueva Corónica y Buen


Gobierno. Poma de Ayala tinha como origem social a nobreza indígena, sendo seu
escrito uma importante fonte histórica da América Colonial. O frei Bernardino de
Sahágun escreveu História Geral das Coisas da Nova Espanha, livro escrito no Século
XVI, apresenta descrições das populações nativas.

Por fim, uma das mais importantes obras de historiografia realizada ainda
nos primeiros séculos da época colonial foi escrito por Gonzalo Fernández Oviedo
y Valdés o autor de Historia general y natural de las Indias, islas y tierra-firme del mar
océano. Livro que buscou ser uma narrativa da expansão ultramarina realizada
pela nobreza espanhola. Uma das questões importantes para compreendermos
a historiografia colonial é que ela chamava a América Latina como Las Indias de
Castilla. Esse termo está, em grande parte, envolto na “confusão” de se nomear a
América como um novo continente ou uma continuação da Ásia.

A Independência dos Países Latino-americanos ocorreu ao longo do


Século XIX. Mesmo período no qual a História e a Geografia passaram a ter
conotações mais científicas, sendo utilizadas em larga escala pelos Estados
nacionais nos seus interesses ligados à política nacional interna (criação de
identidades nacionais) e de política externa (a História e a Geografia como pano
de fundo das disputas diplomáticas). Assim, durante esse período da História
Americana, se passou a um aumento na valorização das Ciências Humanas por
parte dos Estados Nacionais.

Esse movimento não foi apenas latino-americano, ocorrendo de forma


semelhante nos países da Europa e nos Estados Unidos. Em particular na
Alemanha, que ao longo da segunda metade do Século XIX estava vivenciando
os desafios de sua unificação, a História e a Geografia tiveram grande destaque.
Leopold Von Ranke, na História, e Alexander Von Humboldt, na Geografia,
figuraram entre os principais nomes da intelectualidade alemã. No que tange a
Humboldt, o mesmo em seus tradados de Geografia, citou a América Latina, em
especial o México, na sua produção geográfica.

Nos países latino-americanos as principais produções historiográficas


ficaram ao cargo de academias de História e das universidades (MALERBA, 2009).
A principal questão envolta na história que passou a ser produzida na América
Latina estava relacionada aos debates teóricos e às diferentes possibilidades de
análise da realidade social.

194
TÓPICO 4 | A HISTORIOGRAFIA SOBRE A AMÉRICA

No início do Século XX a história produzida na América Latina tinha


resquícios da história realizada no Século XIX, em especial mais interessada em
descrever os eventos que os tentar analisar utilizando de categorias analíticas
desenvolvidas por historiadores ou outros especialistas em ciências humanas,
como os sociólogos, economistas e antropólogos. Este panorama começou a ser
alterado com os intelectuais que buscaram analisar a realidade latino-americana
com base em outros paradigmas que não apenas narrar a história dos grandes
feitos realizados por clérigos e militares.

Dentre as características de inovação vividas pela historiografia da América


Latina, um destaque grande cabe ao marxismo, que foi de grande influência em
alguns círculos de intelectuais. A pioneira análise marxista realizada na América
Latina foi escrita em 1928 por José Carlos Mariátegui, autor do clássico Sete Ensaios
de Interpretação da Realidade Peruana. Além de Mariátegui, as análises marxistas
foram presentes em outros intelectuais, como o caso do equatoriano radicado no
México, Bolívar Echeverría, e do uruguaio, Eduardo Galeano.

As Veias Abertas da América Latina, de Eduardo Galeano, foi o mais


popular dos textos sobre a história do continente tendo como viés uma análise
embasada em uma perspectiva ofertada pelo materialismo histórico e dialético.
Escrito quando as nações latino-americanas estavam vivenciando as ditaduras
de segurança nacional nos anos 1970, o texto apresentou uma perspectiva de
responsabilizar as mazelas do continente à dependência econômica vivida pelos
países latino-americanos aos países centrais do modo de produção capitalista. Um
verdadeiro Best-seller entre os principais consumidores de produções intelectuais
latino-americanos. As Veias Abertas da América Latina foi um livro publicado em
um momento de uma nova visão dos latino-americanos sobre a sua identidade
cultural, no qual existiu uma grande variedade de utopias.

O marxismo teve grande repercussão nos meios universitários, em


especial nas ciências humanas no pós-guerra, no qual muitos dos intelectuais
latino-americanos passaram a utilizar categorias analíticas desenvolvidas
por Karl Marx, como modo de produção, luta de classes ou mais-valia, para
compreender a realidade sofrida das populações latino-americanas. Apesar
de alguns intelectuais não universitários apontarem uma hegemonia marxista
na historiografia brasileira e latino-americana, nos últimos trinta anos, com
o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, outras possibilidades de
compreensão da realidade social, em especial aquelas vinculadas a propostas de
raiz não marxista ganharam maior relevância no debate acadêmico.

Podemos observar que antes mesmo do fim da União Soviética, propostas


não marxistas de compreensão da realidade social já estavam presentes nas
Ciências Humanas da América Ibérica. Um dos maiores indícios e exemplos da
presença de outras abordagens foi a influência de Max Weber entre historiadores,
sociólogos e cientistas políticos do continente. A primeira impressão da principal
obra de Max Weber, Economia e Sociedade, realizada fora da Alemanha ocorreu
no México em 1946 e teve como principal responsável o nome de José Medina
Echavarría, grande sociólogo de linha weberiana.

195
UNIDADE 3 | AS INSTITUIÇÕES LATINO-AMERICANAS

Dentre as influências de Max Weber para o pensamento latino-americano,


a editora Fundo de Cultura Econômica lançou a obra coletiva Max Weber en
Iberoamérica: nuevas interpretaciones, estúdios empíricos y recepción, contando com
a colaboração de intelectuais de diversos países latino-americanos que utilizam
de categorias de análises weberianas, como carisma, dominação racional-legal e
patrimonialismo como possibilidades de compreensão da vida latino-americana.

Dentre a produção de conhecimento sobre a história econômica da


América Latina, grande destaque teve a CEPAL (Comissão Econômica para a
América Latina e o Caribe), órgão ligado à Organização das Nações Unidas e
cujos principais intelectuais foram os economistas Raúl Prebisch (argentino) e
Celso Furtado (brasileiro). Ambos eram economistas que tinham em grande conta
a importância da história econômica como vetor explicativo para a compreensão
dos dilemas latino-americanos. O exemplo de Celso Furtado é emblemático por
ter escrito a Formação Econômica do Brasil além de uma Formação Econômica da
América Latina.

A principal tese de Furtado era a Teoria do Subdesenvolvimento. Segundo


a mesma, os países latino-americanos apresentavam grande desvantagem
em suas relações com os países centrais do sistema capitalista porque eram
exportadores de matérias-primas e possuem menor valor agregado que os
produtos industrializados, produzidos pelos países centrais do sistema.

Como forma de fugir de tal relação de dependência, muitos intelectuais


ligados aos partidos comunistas do continente afirmavam que deveria existir
entre o proletariado urbano e a burguesia industrial nacionalista dos países
latinos uma aliança visando expulsar o imperialismo representado pelas empresas
multinacionais de capitais norte-americanos e europeus que se faziam presentes
no continente.

Contra essa interpretação surgiu uma das principais obras de sociologia


econômica, que teve grande repercussão entre os historiadores, sociólogos,
cientistas políticos e geógrafos econômicos, denominada Teoria da Dependência.
Produzida pelos sociólogos ligados a CEPAL, o brasileiro Fernando Henrique
Cardoso e o chileno Enzo Faletto, exposta no livro Dependência e Desenvolvimento
na América Latina: Ensaio de Interpretação Sociológica. Esses intelectuais pontuaram
que a existente relação de dependência da América Latina era em grande parte
relativa. Visto que, nos anos de 1970, esses intelectuais passaram a observar que
a maior parcela dos empresários do continente (os burgueses nas categorias
analíticas marxistas) não buscavam se opor a presença de capitais e empresas
europeias e estadunidenses nos seus respectivos países latinos, mas o que
buscavam os empresários eram modos de se associar a esses novos capitais,
desenvolvendo não uma relação de rivalidade entre uma burguesia nacional e
uma burguesia internacional, mas sim uma relação de complementação entre os
empresários latino-americanos e europeus.

196
TÓPICO 4 | A HISTORIOGRAFIA SOBRE A AMÉRICA

Não apenas nativos do continente latino-americano se interessaram pelas


questões clássicas da história deste espaço sociocultural. Também europeus e
norte-americanos têm grande produção de conhecimento sobre a História do
Continente.

Uma das primeiras questões do interesse estadunidense relacionada à


História da América Latina foi a formação de uma instituição de pesquisadores
ligados às Ciências Humanas e Sociais que visava pensar a história social do
continente, a LASA (Latin American Studies Association), a Associação de
Estudos sobre a América Latina, que tem como uma de suas principais funções
congregar pesquisadores norte-americanos e latino-americanos em seus estudos
sobre o continente.

Na Europa, as universidades espanholas, como a universidade de


Barcelona, Madrid e Salamanca possuem produção acadêmica, com pesquisas
historiográficas sobre a história latino-americana, sendo a revista Complutense
de História de América, editada pela Universidad Complutense de Madrid, um dos
mais relevantes periódicos sobre a história ibero-americana.

DICAS

Uma das principais revistas históricas ligadas ao conhecimento sobre a


América é a Revista de História da América da Universidade de Madrid. Para aqueles que
possuem noção do idioma espanhol é uma revista que vale a pena ser lida e seu site
visitado, disponível no link: https://revistas.ucm.es/index.php/RCHA.

Uma obra importante, que congregou pesquisadores europeus, norte


americanos e latino-americanos foi organizada pelo pesquisador inglês Leslie
Bethell, de título História da América Latina. Essa obra contou com o apoio da
Organização das Nações Unidas e foi um marco na divulgação de conhecimento
sobre a história continental. Outras coletâneas de História possuem também valor,
porém estão presas as suas respectivas nacionalidades, como a História Mínima
de México, publicada pelo Colégio de México, ou a História Geral da Civilização
Brasileira, publicação que contou com a coordenação do prestigiado historiador
Sérgio Buarque de Holanda.

Um dos temas em que mais temos a presença de pesquisadores de


diversas nacionalidades refletindo sobre a história da América Latina é o processo
de conquista e colonização da América empreendido pelos europeus na última
década do Século XV e ao longo do Século XVI. A História da Descoberta e
Conquista da América foi tema de diversos pesquisadores desde o Século XVI, e
que buscaram refletir sobre a Conquista da América. Com o aprimoramento das

197
UNIDADE 3 | AS INSTITUIÇÕES LATINO-AMERICANAS

técnicas de pesquisa e das teorias que possibilitam ao desenvolvimento da história


enquanto ciência humana, tivemos novas abordagens e possibilidades analíticas
para além das crônicas desenvolvidas pelos homens que foram contemporâneos
das ações sociais empreendidas ao longo do Século XVI por indígenas e europeus.

No Brasil, o autor de uma obra que fora um dos principais clássicos da


historiografia foi Sérgio Buarque de Holanda, que escreveu o livro Visão do Paraíso.
Composto para ser uma tese para se habilitar a uma cátedra na Universidade
de São Paulo nos anos 1950, Visão do Paraíso foi um dos principais clássicos
da compreensão das diferentes relações entre os europeus e os indígenas. Em
especial, Sérgio Buarque de Holanda aponta uma forte relação da mentalidade
ibérica, marcada pelo fantástico, como possibilidade de se compreender as
motivações da empreitada colonizadora. Neste livro, o intelectual brasileiro
apresentou uma diferença entre os espanhóis, mais propensos a interpretações
fantásticas, dos portugueses, em geral mais realistas nas crônicas que escreviam
sobre o processo colonizador.

Enquanto, no Brasil, Sérgio Buarque de Holanda no Brasil apontou as


relações entre o pensamento ibérico e a colonização da América, no México, foram
destaques na mesma temática, entre vários, dois historiadores: Luis Weckmann e
Edmundo O’Gorman.

FIGURA 7 – EDMUNDO O’GORMAN

FONTE: <http://www.academia.org.mx/media/zoo/images/edmundo_
ogorman_857b3640cf28509117ef20388da4997c.jpg>. Acesso em: 10 jun. 2019.

Luis Weckmann teve como sua principal tese uma relação de continuidade
entre a Idade Média Ibérica e o processo de Colonização da América. Essa sua tese
central foi exposta em algumas obras, como no artigo A Idade Média na Conquista
da América, também no livro As Raízes Medievais do Brasil. Em sua abordagem,
existiu uma continuidade entre as características da Idade Média Ibérica, que do
ponto de vista foi marcada pelo ideal da Reconquista, isto é, da expulsão dos
mouros da península, com as práticas sociais presentes na conquista, sendo a
conquista americana uma continuação da reconquista ibérica.

198
TÓPICO 4 | A HISTORIOGRAFIA SOBRE A AMÉRICA

Edmundo O’Gorman, também intelectual mexicano, apresentou como


uma de suas principais questões sobre o processo de descoberta e colonização
americana no livro A Invenção da América, no qual pontuou uma reflexão sobre o
processo de reconhecimento da América como novo continente. O que perpassa
a compreensão que a cristandade latina medieval possuía do mundo, sendo
em grande parte influenciada pela negação agostiniana dos antípodas. Isto é,
Santo Agostinho, importante intelectual cristão medieval e que afirmou, no livro
A Cidade de Deus que os antípodas eram uma fábula. Ou seja, que não existiria
vida nos trópicos ou em posições além do mundo conhecido pelos antigos
gregos e romanos. Assim, podemos compreender que os principais nomes
da intelectualidade medieval seguiam as opiniões de Agostinho, que foram
refutadas pela viagem de circunavegação de Fernão de Magalhães e Elcano, que
demonstraram a esfericidade terrestre.

Uma das questões dos primórdios da presença europeia na América foi


a da ação dos missionários católicos. Neste sentido, podemos observar que o
frei dominicano Bartolomeu de Las Casas foi um dos principais religiosos a ser
lembrado pela historiografia. Dentre os principais autores que trabalharam com
a temática, foi destaque o historiador norte-americano Lewis Hanke, autor do
livro Aristóteles e os Índios Americanos. A questão principal levantada por Lewis
Hanke foi a da presença da ideia levantada por Aristóteles no clássico livro A
Política, sobre a presença de escravos voluntários, para a compreensão do debate
de Valladolid, sobre a improbidade ou procedência da escravização dos nativos
americanos. Também o chileno radicado no Brasil e professor da Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP) Hector Bruit trabalhou com a temática no
livro Bartolomeu de las Casas e a Simulação dos Vencidos. Nele apresentou a ideia
exposta por Las Casas de simulação dos vencidos, isto é, de simulação dos indígenas
em relação ao trabalho de evangelização, sendo os mesmos, os povos vencidos
na relação de dominação apresentada entre espanhóis e indígenas. Assim, ao
simular uma conversão, os indígenas poderiam ter a proteção de uma poderosa
instituição, a Igreja, em sua luta cotidiana pela sobrevivência.

Uma outra e importante tradição historiográfica que está relacionada à


produção de conhecimento sobre a conquista da américa pelos povos europeus são
os franceses. Os mesmos possuem grande influência na historiografia produzida
na América Latina, em especial no Brasil, cuja primeira Universidade a contar
com a presença de pós-graduação em História, a Universidade de São Paulo
(USP), foi formada por uma missão francesa. Dentre os intelectuais franceses que
trabalharam com as questões concernentes à América, foram destaques, entre
vários autores os nomes de Pierre Chaunu, Frédéric Mauro e Sergei Gruzinski.

Pierre Chuanu escreveu dois volumes sobre a expansão europeia rumo


a América na coleção Nova Clio, publicação francesa traduzida e editada no
Brasil pela Universidade de São Paulo. Neles, Chuanu apontou a conquista e
colonização da América como um longo processo, iniciado ainda no Século XV,
com a busca da expansão do comércio e navegação pelos países ibéricos, tendo
como ponto culminante a descoberta dos metais preciosos nas minas mexicanas

199
UNIDADE 3 | AS INSTITUIÇÕES LATINO-AMERICANAS

e peruanas. Outro texto escrito por Chuanu com grande relevância foi Sevilha e
a América no Século XVI e XVII, no qual realizou uma pesquisa profunda tendo
utilizado variadas fontes para a compreensão da presença espanhola e portuguesa
no Atlântico nos séculos iniciais da conquista da América pelos espanhóis.

Outro autor que também foi um historiador francês que teve profunda
relevância na pesquisa sobre as relações econômicas na América Espanhola
Colonial foi Frédéric Mauro. Intelectual francês que atuou por anos como
professor na Sorbonne, Mauro apresentou teses sobre a história econômica e
social das colônias ibéricas e dos seus respectivos domínios ultramarinos. Entre os
intelectuais franceses mais recentes, é destaque Sergei Gruzinski. Autor de alguns
livros sobre a temática da presença colonial europeia na América, sendo autor
de A Colonização do Imaginário e O Pensamento Mestiço, no qual aponta análises
sobre a presença dos espanhóis na América através de um ponto de observação
dado pela denominada Nova História Cultural. Isto é, em suas pesquisas, busca
compreender a colonização americana não pelas questões econômicas, como
Mauro, mas através das questões culturais.

O polonês Tzvetan Todorov foi outro intelectual que apresentou reflexão


aprofundada sobre o problema da conquista europeia na América quinhentista.
No livro A Conquista da América: A Questão do Outro, apresentou uma problemática
central: como um indivíduo consegue reconhecer a outro indivíduo. Assim,
Todorov apresentou reflexões com base nos escritos de Américo Vespúcio,
Cristóvão Colombo e Bartolomeu de las Casas, dentre outras fontes, para
responder a sua problemática.

Observamos o quanto a historiografia sobre a América Latina é vasta,


possuindo vários temas e diferentes possibilidades analíticas. Pode-se também
observar que intelectuais ligados a outras áreas das ciências humanas, como os
sociólogos e economistas, também produziram conhecimento sobre a história
americana. Uma das questões importantes ao pensarmos a presença dos
pesquisadores sobre a história americana é a importância da História enquanto
disciplina do conhecimento humano para uma melhor compreensão das relações
sociais. Uma pluralidade de concepções, metodologias e temas formam a
composição da historiografia sobre a América em que vivemos.

200
TÓPICO 4 | A HISTORIOGRAFIA SOBRE A AMÉRICA

LEITURA COMPLEMENTAR

MARIA LIGIA COELHO PRADO: QUESTÕES ABERTAS


NA AMÉRICA LATINA

Historiadora fala sobre identidades, guerras de independência e interpretações


acerca do desenvolvimento da região

Maria Ligia Coelho Prado já era mãe de três filhos quando decidiu, aos
27 anos, cursar história na Universidade de São Paulo (USP). Supostamente
tardia, a escolha se revelaria mais do que acertada: além do “amor à primeira
vista” pela disciplina, propiciou-lhe o exercício do magistério – ofício no qual
se destacaria como poucos de seus pares. Maria Ligia deu aulas em cursos
secundários de escolas públicas e particulares. Na década de 1980, percorreu o
estado de São Paulo lecionando história da América para professores do ensino
médio. No ensino superior, antes de ser contratada pela própria Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, iniciou sua carreira como
professora de história contemporânea de futuros arquitetos.

Entre os grandes temas que se propôs a discutir em sala de aula estavam


a escravidão, o capitalismo e interpretações sobre o desenvolvimento da
América Latina. Além da bibliografia convencional, costumava apresentar aos
alunos contratos de trabalhadores, declarações de operários e programas de
partidos políticos. Ignorou fronteiras e, atendendo a convites de instituições
norte-americanas, entre 1987 e 1995 deu oito cursos nos Estados Unidos: três de
graduação e cinco de pós-graduação, em universidades como Brown, Stanford e
de Nova York.

Maria Ligia formou gerações de profissionais, na graduação e na pós-


graduação, e fez grandes amizades. Uma delas foi com a também historiadora
Maria Helena Capelato. “Defendemos a dissertação de mestrado no mesmo dia,
com a mesma banca, uma depois da outra”, conta. Depois lançaram um livro em
conjunto, O bravo matutino (Alfa Omega, 1980), com os resultados da pesquisa
que tratou do jornal O Estado de S. Paulo. Entre os livros que publicou, um deles,
o paradidático A formação das nações latino-americanas  (Atual, 1985), teve 23
edições impressas e vendeu mais de 70 mil exemplares. Atualmente prepara
novo livro com artigos já publicados e textos inéditos, entre eles um sobre os
significados da pena de morte aplicada a mulheres consideradas traidoras pela
Coroa Espanhola, durante as guerras de independência, e outro sobre o debate
a respeito do papel do Estado, da Igreja e da família na educação pública na
Colômbia do final do Século XIX.

Fundadora da Associação Nacional de Pesquisadores e Professores de


História das Américas (ANPHLAC), que presidiu entre 1998 e 2000, Maria Ligia
falou à Pesquisa FAPESP sobre América Latina, identidade, o papel do discurso
histórico e a função do conhecimento.

201
UNIDADE 3 | AS INSTITUIÇÕES LATINO-AMERICANAS

Como surgiu seu interesse pela América Latina como objeto de pesquisa?

Na minha graduação em história havia duas disciplinas que tratavam


da América: história da América colonial e história da América independente.
Concluí o curso em 1971, mas jamais estudei América independente – nunca
ultrapassamos o período do caudilhismo. Ficamos lá atrás. Como aluna, nunca
estudei nada sobre América Latina depois de 1850. Nada. Em 1975, quando
ingressei na universidade como professora, em um concurso para história da
América, tinha de dar aulas de história da América independente. Minha intenção
era mudar depois, porque eu pesquisava história do Brasil. Sou autodidata em
história da América Latina, iniciei sem referência alguma. Comecei a estudar e
fiquei fascinada.

O que causou esse fascínio?

Um exemplo: a história do México, do mundo indígena e de como se


formou o Estado mexicano. Não temos noção do que foram as comunidades
indígenas no México, depois no Peru, Bolívia, Guatemala. O que foram as
reformas liberais no México, e depois na América espanhola, que é a tentativa
de destruição da comunidade indígena. O mundo cultural, a questão da língua,
a questão da arte, o lugar da Igreja Católica. E as disputas entre o mundo laico e
o mundo religioso.

O seu aprofundamento, em questões distintas da história, se dá sempre pela


América Latina?

Sempre. Eu conheço a história de alguns países da América Latina, não


conheço a de todos porque é impossível. Conheço melhor a história do México,
da Argentina e do Chile. Quando comecei a lecionar, em plena ditadura, Cuba
era um assunto proibido, tabu. Então não se estudava. A América Latina era
um lugar de ditaduras. Por ter uma posição política à esquerda, já iniciei me
posicionando contra a ditadura. Isso contribuiu para certo encantamento que
tenho pela região. Algo que me fascinou desde os primeiros instantes foram as
aproximações históricas entre a América portuguesa e a América espanhola.
Entre elas, perspectivas de pensar o conhecimento, a religão e a arte, ao lado das
particulares relações sociais que se formam nesse espaço com marcante população
indígena e africana.

Quando surge a noção de América Latina? Quando essa região passa a ser assim
denominada? 

Considero essa questão muito interessante porque as pessoas usam o


termo sem se dar conta de seus significados. Essa é uma denominação construída
no Século XIX ao que parece, pelos franceses. Há uma longa discussão sobre
isso. Foi o economista Michel Chevalier [1806-1879] quem primeiro pensou essa
diferença, que era comum no Século XIX, entre latinos e anglo-saxões. E, como

202
TÓPICO 4 | A HISTORIOGRAFIA SOBRE A AMÉRICA

os franceses tinham interesses nas Américas, fortes interesses no México, houve


a ideia de que essa parte das Américas, que não era anglo-saxônica, era uma
parte latina que aproximava toda essa região da França. Nos textos, por exemplo,
da Revue des deux Mondes [revista francesa que circulou no Século XIX], há uma
afirmação muito clara de que a França era o principal país latino no mundo e que,
dessa maneira, essa parte das Américas se identificava com os franceses. Então,
essa é uma versão, um termo criado fora, com intenções externas, um termo de
alguma maneira imposto.

Mas há outra perspectiva, daqueles que entendem que o termo, na verdade,


nasceu na própria América Latina.

Sim, há uma discussão em torno do escritor colombiano Torres Caicedo


[1830-1889], que fez um poema em que fala de uma América Latina. Mas a questão
principal dessa disputa é um problema que nos acompanha. Isto é, se o termo
foi criado fora, pela Europa, pelo imperialismo e acabou imposto sobre nós, ou
se nasceu na própria América Ibérica para pensar uma América Latina unida,
em que havia uma aproximação entre a parte espanhola e, de alguma maneira,
a parte portuguesa, que enfrentariam as vicissitudes juntas. Ou seja, a própria
designação já traz um problema.

Como você pensa a questão da identidade latino-americana?

Vou fazer uma digressão para chegar aí, ao seu ponto. Se considerarmos
os textos de letrados – que podem ser intelectuais ou políticos –, como os de Simón
Bolívar [1783-1830], por exemplo, ele se pergunta na famosa Carta da Jamaica, de
1815: “Quem somos nós? Não somos americanos e não somos europeus”. Essa
busca de afirmação está presente muito fortemente nos textos e depois em muitas
manifestações que vão acontecer pelo Século XIX. Digo isso para destacar que a
questão da identidade nos acompanha desde a independência. Se tomarmos as
fontes a partir daquela época, há documentos e ações que mostram preocupação
com a aproximação entre as diversas partes da América colonizada pelos
espanhóis, e, posteriormente, já no Século XX, com o Brasil.

Portanto, sempre relacional.

Sim, muito. Temos os textos do intelectual e político chileno Francisco


Bilbao [1823-1865] dos anos 1850, em que ele descreve a América em perigo,
considerando o que depois vai se chamar América Latina, se contrapondo aos
Estados Unidos. O problema da identidade não é algo que os historiadores
ou os antropólogos criaram. Não é artificial, na minha maneira de interpretar.
Porém, como eu já escrevi, trabalhar com identidades é algo que precisa ser
garantido pelo espírito crítico, porque as identidades apagam as contradições.
As identidades harmonizam.

203
UNIDADE 3 | AS INSTITUIÇÕES LATINO-AMERICANAS

Pasteurizam, quase.

Pasteurizam. Todas as mulheres são iguais, todos os negros são iguais,


todos os índios são iguais, para usar uma terminologia habitual do Século XIX,
e as contradições, as tensões, os conflitos são camuflados. A identidade, que
mexe com os sentimentos, é uma construção intelectual, mas entra nos corações,
impacta a vida, as escolhas, e faz com que as diferenças e os conflitos sejam
deixados de lado. É preciso ter muito espírito crítico para trabalhar com o tema.
A identidade supõe sempre o outro – e o outro é o inimigo. É preciso escolher.
No caso dos latino-americanos, a construção do inimigo, já no Século XIX, passa
pelos Estados Unidos. Há uma data-chave, que é 1898, quando os Estados Unidos
entram na guerra de independência de Cuba ao lado dos cubanos, isto é, contra
os espanhóis, e transformam Cuba num protetorado.

Você escreveu que desde a independência de seus países, as elites latino-


americanas aspiravam consolidar sua dominação sobre a sociedade, baseadas
em uma identidade homogênea, que lhes garantisse a hegemonia política. É
possível dizer, em alguma medida, que elas não foram tão bem-sucedidas, na
América Latina?

Essa é uma pergunta que me acompanha, muito difícil de ser respondida.


O Século XIX é maravilhoso para ser estudado porque os intelectuais, os políticos
fizeram as perguntas essenciais com as quais ainda trabalhamos. O que é nação, o
que é civilização, o que é legítimo, o que é Estado? E responderam estabelecendo
padrões do que deveria ser a “civilização”. A associação estabelecida entre raça e
cultura foi um elemento central na dominação simbólica das elites, favorecendo
a discriminação e os preconceitos. Apesar de ser artifical e inverossímil, esse
discuro teve um grande poder de persuasão nas sociedades latino-americanas até
nossos dias. O discurso branco e civilizado insistia em impor sua visão sobre toda
a sociedade, tratando de marcar a distância que o separava do “outro bárbaro”.
Entretanto, nunca foi possível controlar ou anular los de abajo. Índios, escravos,
mestiços, mulheres marcam sua presença na política, na arte, na literatura e
resistem à dominação imposta pelos brancos. Enfim, creio que as elites foram bem-
sucedidas no seu projeto de dominação. Porém, é preciso reafirmar a importância
da presença dos subalternos que desempenham um papel político protagonista
sem ter sido, muitas vezes, reconhecida pela historiografia.

Houve, na história recente da América Latina, um momento em que os países


que a integram estiveram mais próximos, inclusive como objeto de estudo?

Sim, durante as ditaduras recentes, mais próximas por conta das


circunstâncias políticas de uma luta única pela democracia. Houve uma
aproximação, um interesse, um conhecimento maior. O advento da democracia
acabou nos distanciando. O Brasil novamente voltou as costas para a América
Latina e, mais uma vez, se colocou como um país diferente. Está claro que,
na história política e diplomática brasileira, o Brasil sempre quis ser o país
hegemônico da América do Sul. Isso tem repercussão no lugar da América

204
TÓPICO 4 | A HISTORIOGRAFIA SOBRE A AMÉRICA

Latina e na importância da América Latina nos estudos da história. Ao ignorá-la,


perdemos essa perspectiva de abrir janelas para compreender o próprio Brasil.
Quando acompanhamos e estudamos a história desses países, conseguimos
compreender muitas questões da história brasileira. Os historiadores estão muito
habituados a se fechar dentro das interpretações das historiografias nacionais,
ainda muito marcadas pelas construções elaboradas no Século XIX.

Você tratou dessa questão em seu livro América Latina no Século XIX: Tramas,
telas e textos (Edusp, 1999).

Em primeiro lugar, reafirmo a importância de pensar o Brasil como parte


da América Latina. Atravessar as fronteiras oferece possibilidades instigantes ao
historiador para propor novos problemas e ampliar os diálogos historiográficos.
Como se sabe, no Século XIX, depois das independências, se organizam os
Estados nacionais e se constroem as identidades nacionais. Na minha perspectiva,
a questão da nação se impunha e penetrava na variada produção política,
historiográfica e artística da época; políticos, publicistas, historiadores, mulheres
e homens letrados e artistas, nos mais diversos países da América Latina, se
dedicaram a pensar a questão nacional. Além dos problemas econômicos, das
disputas políticas, das convulsões sociais, das guerras civis, que mobilizaram as
energias das sociedades, se produziram apaixonados debates sobre a construção
da Nação e das identidades.

Isso remete também ao conceito de transculturação do sociólogo cubano


Fernando Ortiz. Poderia refletir um pouco sobre ele?

Em seu livro Contrapunto cubano del tabaco y del azúcar, publicado em


1940, Ortiz [1881-1969], ao pensar a cultura cubana, acaba por cunhar esse conceito
de transculturação, depois apropriado por muitos críticos literários, antropólogos
e historiadores. O conceito carrega uma ideia, com a qual eu concordo, muito
importante para se pensar a América Latina. Durante muito tempo se afirmou
que a cultura europeia foi imposta a nós, aos povos que aqui viviam antes dos
europeus chegarem e, depois, a aqueles que viviam nas colônias. A cultura
europeia teria sido transposta e imposta aqui. O que sobrou teria sido apenas a
aceitação. O resultado dessa aceitação seria a cópia. Ortiz disse que não se pode
pensar – e ele está falando de Cuba – em uma simples imposição de fora para
dentro, mesmo em uma sociedade estruturada em torno da escravidão. Na visão
dele, aqui e lá se criou uma cultura muito particular e os europeus não ficaram
imunes ao meio em que viviam, incluindo a cultura africana. É uma via de mão
dupla. Há uma questão de poder e a Europa ganhou a língua, a religião, mas é
preciso entender essas relações que se dão em todos os níveis, como ele diz, desde
o econômico até o sexual. Aquilo que se estuda naquele ambiente societário é
uma transculturação, sofre mutações e é repensado. Do meu ponto de vista é algo
que segue fazendo sentido.

205
UNIDADE 3 | AS INSTITUIÇÕES LATINO-AMERICANAS

Na sua visão, o discurso histórico pode ser reduzido a uma função de


conhecimento? Ou ele teria uma função social?

Se tivessem me perguntado isso em 1975 eu diria que o discurso histórico


não se reduz a uma função de conhecimento e que possui uma função social,
intervindo na realidade onde será mais ou menos útil para as forças em luta.
A compreensão do passado outorgava condições de conhecer o presente e
prognosticar o futuro. A história desempenhava, assim, papel destacado na
confrontação ideológica, e os historiadores e acadêmicos deveriam compreender
que seu trabalho não estava isolado de sua responsabilidade política. Nos dias
de hoje, os debates são de outra ordem. Tomemos a questão da “Escola sem
Partido”, que parte, sem dúvida, da ideia de que o discurso histórico tem uma
função social. Esse grupo, assumidamente de direita, ataca a esquerda porque esta
estaria instrumentalizando o saber com fins ideológicos e políticos, afirmando,
assim, que o conhecimento não é neutro. Porém, contraditoriamente, se apresenta
como imune à política e se arvora em guardiã da única “verdade”.

É possível notar mudanças na historiografia que remetam a essa função social


do conhecimento?

Especialmente durante a ditadura [1964-1985], pensávamos que o
conhecimento seria emancipador, traria democracia, propiciaria a construção
de uma sociedade mais justa. Se pensamos em uma função social é porque o
conhecimento e as ideias produzem ação. As propostas políticas que vão ser
efetivadas estão baseadas em ideias e, nesse sentido, o conhecimento da história
é fundamental. Vamos analisar, por exemplo, o lugar que o indígena tinha na
sociedade. Os antropólogos e os historiadores trabalharam para mostrar como
os indígenas foram explorados, oprimidos, humilhados. O mesmo foi feito sobre
os escravos africanos no Brasil. A historiografia brasileira, e também a cubana,
trabalhou muito para virar do lado avesso a visão estabelecida. Outra coisa que
a sua pergunta sugere é a ideia de que, no caso da história, finalmente vai se
mostrar a verdade. Os historiadores se dividem ao pensar a questão da verdade.
O que é a verdade? Eu gosto de utilizar como exemplo algo distante de nós: a
Revolução Francesa. Aqueles que escreveram sobre ela, os seus contemporâneos,
e as primeiras gerações posteriores. Como é possível escrever sobre a Revolução
Francesa [1789-1799] sem tomar partido? Qual visão um aristocrata, vamos pensar
em Alexis de Tocqueville [1805-1859], tem sobre ela? E um homem à esquerda, no
espectro político francês do Século XIX? Há alguns fatos concretos e indiscutíveis:
o rei e a rainha foram guilhotinados. Agora, como nós interpretamos os fatos?
Essa é a questão. Podemos reduzir e dizer: “Agora eu vou contar a verdade sobre
a Revolução Francesa”. Qual verdade? Isso quer dizer que estamos interpretando,
analisando documentos. É preciso ter formação teórica para compreender qual é
o papel, qual é o lugar daquele documento, o que ele expressa.

206
TÓPICO 4 | A HISTORIOGRAFIA SOBRE A AMÉRICA

A história não ensina? Ou é a humanidade que não aprende? 

Penso muito sobre isso. Não sou obcecada pela Revolução Francesa, mas
vou tomá-la como exemplo, mais uma vez. A Revolução Francesa estabeleceu que
a tortura não deve ser uma prática legal, o ser humano não pode ser violado. Não
exatamente nesses termos, mas pela primeira vez se fez essa afirmação. Antes, a
tortura era considerada absolutamente legal e legítima. Esse é um marco muito
importante na história recente da humanidade do mundo ocidental, pelo menos.
O que não significa, como bem sabemos, que a tortura foi eliminada.

Ainda é bastante desconhecido o papel da mulher nas lutas pela independência,


por exemplo, tema relevante em seus estudos. Poderia falar um pouco sobre
seus achados?

As mulheres são tratadas pela historiografia, em termos de Século XIX e


XX, como inexistentes do ponto de vista de atuação política. Já há muitos trabalhos
importantes sobre a valorização desse lugar da mulher como pensadora, escritora
e jornalista. Mas o que me interessou foi pensar a participação política das
mulheres no Século XIX. Em geral, a historiografia começa a apontar a presença
das mulheres na política com a questão do sufrágio, quando elas começam a lutar
pelo direito ao voto. Mas ainda que em número pequeno, elas tiveram participação
política na história do Brasil e da América Latina no Século XIX. Parti da seguinte
ideia: por que Maria Quitéria [1792-1853], que vivia no sertão da Bahia, se vestiu
de homem, foi ser soldado e lutar pela Independência do Brasil contra as forças
portuguesas do general Madeira? A história da Maria Quitéria é essa: ela ouviu, na
casa do pai, um emissário que estava buscando voluntários para a guerra. Como
minha cabeça sempre atravessa as fronteiras, pensei na América espanhola. Foi
quando, depois de pesquisar bastante, ler muitas biografias e um ou outro jornal
do período, descobri que as mulheres participaram da guerra – sobretudo no
caso da América espanhola, porque aqui no Brasil foi muito rápido. Na América
espanhola, durante 10, 12 anos de guerra, as mulheres participaram de maneiras
muito diversas.

Inclusive pegando em armas.

Sim, elas pegaram em armas, se vestiram de soldado e muitas foram


as chamadas “mensageiras”, isto é, aquelas que se infiltravam e assumiam
uma posição, corriam riscos. Para mim, o ponto é que elas se interessaram e
participaram, não ficaram alheias. Mesmo quando se pensa em homens, é preciso
lembrar que as guerras pela independência são de uma minoria. Apenas uma
porcentagem pequena da população participa. Temos aqueles que acreditam na
causa, pegam em armas e vão lutar para ganhar ou para perder, é um risco. Há
mulheres que foram presas, julgadas e condenadas. Um caso exemplar é o caso
da colombiana Policarpa Salavarrieta [1795-1817], fuzilada na praça de Santafé,
em Bogotá. Ela e sete homens, entre eles seu noivo. A morte da Salavarrieta foi
algo que repercutiu muito fortemente. Existem quadros de artistas anônimos
a retratando no cadafalso. Poemas foram escritos em sua homenagem, peça

207
UNIDADE 3 | AS INSTITUIÇÕES LATINO-AMERICANAS

de teatro. Como ela, outras mulheres também foram condenadas à morte ou a


castigos públicos, como ter a cabeça raspada, andar nua pela cidade. São muitas
as histórias, mas isso é absolutamente desprezado, ignorado. No entanto, é fato:
na América Latina a mulher e a política já estavam juntas no Século XIX.

Em seus textos, você também faz reflexão importante sobre as utopias.

Não resta dúvida de que, para a minha geração, que viveu sob a ditadura,
havia uma utopia socialista no horizonte, o que nos dava esperança e força para
enfrentar o cotidiano. Depois, nos anos 1980, foi muito forte a perspectiva da
importância fundamental da democracia, que também apareceu como uma
utopia na América Latina. Atualmente vivemos um momento muito difícil, de
grandes conflitos, confrontações ideológicas, de posições políticas muitas vezes
tomadas às pressas, sem maior reflexão dos significados que têm. O problema
para mim, mais contundente, é a falta de uma utopia. Nos momentos de extrema
dificuldade e desesperança, a minha geração imaginava que havia no horizonte
algo melhor, o futuro de alguma maneira nos ofereceria uma sociedade mais
justa, a democracia, menos opressão. Isso fazia com que nós, ao mesmo tempo,
suportássemos aquele período difícil e nos solidarizássemos. Hoje o mundo
parece ser tão cínico… O consumismo ganhou um espaço enorme. A ideia dos
grandes princípios que nortearam muitos dos caminhos de políticos e intelectuais,
trabalhadores do Século XX, parece que se perdeu. Tudo está muito pragmático,
imediatista. A mim, isso parece algo perturbador e perigoso. É preciso ter um
projeto de futuro para podermos suportar o cotidiano político. Precisamos ter um
horizonte. Hoje, o grande guarda-chuva que parece unir as pessoas é a ecologia,
pensar as questões ambientais, a preservação da natureza. Isso é algo que comove
e junta até aqueles com ideologias políticas diferentes, à esquerda ou à direita. Mas
não vejo uma utopia que nos diga “vamos ter um mundo com menos pobreza,
com mais igualdade”, que nos alimentou nos momentos mais difíceis do passado.
Não sou cética imaginando que as coisas não vão mudar. Acredito que mudarão,
mas será demorado.

Você diz que a dimensão da esperança como bússola foi eleita pela sua geração.
Para onde aponta a sua bússola hoje?

Até o começo dos anos 1990 eu tinha muitas certezas. Porque pertenço
a uma geração que tinha certezas em relação ao futuro, particularmente do
Brasil, da América Latina. No início dos anos 2000, perdi – para o bem, acho
– as certezas, mas mantenho o mesmo ânimo e o mesmo entusiasmo olhando
para frente. Desejo olhar para o horizonte e tentar enxergar esboços, ainda que
mal alinhavados, de utopias. É necessário refletir criticamente sobre o presente
e entender que aquilo que se vive não é “natural” e sim resultado das ações e
contradições dos indivíduos na história. E, finalmente, lembrar que é preciso
ter paciência, pois sabemos que as ideias dão frutos em tempos longos, que não
coincidem com os tempos das ações dos políticos.

FONTE: <https://revistapesquisa.fapesp.br/2017/07/18/maria-ligia-coelho-prado-questoes-abertas-
na-america-latina/>. Acesso em: 25 out. 2019.

208
RESUMO DO TÓPICO 4

Neste tópico, você aprendeu que:

• Ao longo dos Séculos de conquista e colonização da América, tivemos os


pioneiros relatos e análises sobre a história do continente.

• A historiografia está profundamente relacionada com a produção de


conhecimento realizada na universidade.

• A historiografia sobre a América Latina é múltipla, sendo vários os historiadores


que a ela se dedicaram, com destaque para os mexicanos, franceses e os autores
de língua inglesa.

CHAMADA

Ficou alguma dúvida? Construímos uma trilha de aprendizagem


pensando em facilitar sua compreensão. Acesse o QR Code, que levará ao
AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo.

209
AUTOATIVIDADE

1 Qual a frase abaixo que melhor caracteriza a historiografia sobre a América?

a) ( ) A historiografia sobre a América é monotemática, tratando apenas das


civilizações pré-colombianas.
b) ( ) A historiografia sobre a América é monotemática, tratando apenas das
civilizações ibero-americanas.
c) ( ) A historiografia sobre a América é plural, porém com grandes lacunas
temáticas.
d) ( ) A historiografia sobre a América é plural, com variadas abordagens
temáticas e teóricas.

2 Qual a diferença entre a história produzida ainda no Século XVI sobre a


conquista da américa e a historiografia contemporânea?

210
REFERÊNCIAS
AGUILAR-MORENO, M. Arte Azteca. FAMSI, [20--]. Disponível em: http://
www.famsi.org/spanish/research/aguilar/Aguilar_Art_Bib_es.pdf. Acesso em:
28 jan. 2020.

ANTONIL, A. J. Cultura e opulência do Brasil. 3. ed. Belo Horizonte: Itatiaia/


Edusp, 1982. (Coleção Reconquista do Brasil).

BERGER, P. O Dossel Sagrado: elementos para uma teoria sociológica da


religião. Petrópolis: Vozes, 1985.

BERGER, P.; LUCKMANN, T. Modernidade, Pluralismo e Crise de Sentido.


A orientação do homem moderno. Tradução de Edgar Orth. Petrópolis: Vozes,
2004.

BOXER, C. R. A Igreja Militante e a Expansão Ibérica (1440-1770). São Paulo:


Cia das Letras, 2007.

BRUIT, H. H. Bartolomé de las casas e a simulação dos vencidos: ensaio sobre


a conquista hispânica da América. São Paulo: Iluminuras; Campinas: Editora da
Unicamp, 1995.

BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 237 p.

CARETA, N. et al. Storia dell’ Arte Universale: L’Arte Maya. Firezen:


E-ducation.it, 2009. 239 p.

CAUSIL, Y. Características del arte precolombino. 2016. Disponível em: http://


yuriscausil.blogspot.com/2016/03/caracteristicas-del-arte-precolombino.html.
Acesso em: 16 out. 2019.

CHASS. Spanish Audio Gazette. El arte em la cultura maya. Toronto: University


of Toronto, 2006. Disponível em: http://lab.chass.utoronto.ca/rescentre/spanish/
Ramiro-El_Arte_En_La_Cultura_Maya.html. Acesso em: 28 jan. 2020.

COELHO, E. C. Em Busca de Identidade: o exército e a política na sociedade


brasileira. Rio de Janeiro: Record, 2000.

COMBY, J. Para ler a história da Igreja I: das origens ao século XV. São Paulo:
Loyola, 1993.

211
CUTIRI, P.; RONALD, A. Construcciones en Piedra. Arquitectura imperial
inca y moderna. Modelo arquitectónico del Templo de Qoricancha y las nuevas
propuestas de CMV Architec. Taller de Reflexión Artística III, Buenos Aires,
año XIII, v. 78, jul. 2017. p. 262.

DEL PRIORE, M. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidades e


mentalidades no Brasil Colônia. Rio de Janeiro: Edunb/José Olympio, 1993.
DELUMEAU, J. Nascimento e Afirmação da Reforma. São Paulo: Pioneira,
1989.

DÍAZ, M. J. J. Tejidos y Mundo Textil en los Andes Centrales y Centro-Sur


a través de la Colección del Museo de América de Madrid. 2004. 1020f. Tese
(Doctorado en Historia) –Departamento de Historia de América II, Universidad
Complutense de Madrid, Madrid, 2004. Disponível em: https://eprints.ucm.
es/5417/1/T27827.pdf. Acesso em: 30 jan. 2020.

DOCKSTADER, F. J. Native American Art. 2014. Disponível em: https://www.


britannica.com/art/Native-American-art. Acesso em: 28 jan. 2020.

DUTRA, D.; BANDEIRA, L. M. Estudos de gênero na América Latina:


dinâmicas epistêmicas e emancipações plurais. Revista de Estudos e Pesquisas
sobre as Américas, Brasília, v. 9, n. 2, p.1-15, 2015. Disponível em: https://
repositorio.unb.br/bitstream/10482/22894/1/ARTIGO_EstudoGeneroAmerica.
pdf. Acesso em: 18 dez. 2019.

ENCYCLOPÆDIA BRITANNICA. Massacre of St. Bartholomew's Day. 2017.


Disponível em: https://www.britannica.com/event/Massacre-of-Saint-
Bartholomews-Day. Acesso em: 15 dez. 2019.

FALCON, F. J. C. O Despotismo Esclarecido. São Paulo: Ed. Ática, 1986.

FAVALE, R. D. El Império Inca. [19--]. Disponível em: https://www.


comercioexterior.ub.edu/latinoamerica/lecturas07_08/Incas/elimperio_inca.pdf.
Acesso em: 28 jan. 2020.

FAVRE, H. A civilização inca. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. 104 p. (Civilizações


Pré-Colombianas).

FIGUEIREDO, L. O avesso da memória: cotidiano e trabalho da mulher em


Minas Gerais no século XVIII. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: Edunb,
1993. 249 p.

FREYRE, G. Casa-grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime


da economia patriarcal. 48. ed. São Paulo: Global, 2003.

212
FURTADO, J. F. Chica da Silva além do mito. In: FIGUEIREDO, L.
(Org.). História do Brasil para ocupados. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2013.
Cap. 6. p. 381-387.

FURTADO, J. F. Chica da Silva e o contratador de diamantes: o outro lado do


mito. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 440 p.

GODECHOT, J. As Revoluções-1770-1779. Cronologia Comentada 1789-1799,


Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1989.

GOMES, L. 1808: como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte


corrupta enganaram Napoleão e mudaram a história de Portugal e do Brasil.
São Paulo: Planeta do Brasil, 2007. 414 p.

GRANT, S.-M. A concise history of the United States of America. New York:


Cambridge University Press, 2012. 472 p.

HARDING, S. A instabilidade das categorias analíticas na teoria feminista.


Estudos Feministas, Florianópolis, v. 1, n. 1, p. 7-31, 1993.

HEMMING, J. Los indios y la frontera en el Brasil colonia. In: BETHELL, L.


(Ed.). Historia de América Latina: 4. América Latina Colonial: población,
sociedad y cultura. Barcelona: Editorial Crítica, 1990. Cap. 7. p. 189-226.

HISOUR. Arte Barroca no Brasil. [20--]. Disponível em: https://www.hisour.


com/pt/baroque-art-in-brazil-33838/. Acesso em: 28 jan. 2020.

HISTORIAS de ofrendas muiscas. Direção de Eduardo Londoño. Colombia:


Universidad Nacional de Colombia, 2013. (8m432). Disponível em: https://www.
youtube.com/watch?v=ZcXgRApLxfM. Acesso em: 20 out. 2019.

HOFFNER, J. Colonização e Evangelho. Rio de Janeiro: Presença, 1977.

KETZER, P. Como pensar uma epistemologia feminista? Surgimento,


repercussões e problematizações. Argumentos, Fortaleza, v. 18, p. 95-106, 2017.

KUPER, G. Z. El concepto de patrimonialismo y su aplicación al estudio


de México y América Latina. In: LAIZ, Á. M.; WEISZ, E. (eds.). Max
Weber en Iberoamérica. Nuevas interpretaciones, estudios empíricos y
recepción. México: FCE, CIDE, 2015.

LAVRIN, A. La mujer en la sociedad colonial hispanoamericana. In: BETHELL,


L. (Ed.). Historia de América Latina: 4. América Latina Colonial: población,
sociedad y cultura. Barcelona: Editorial Crítica, 1990. Cap. 4. p. 109-137.

LOK, A. Escultura inca. Academia.edu, [20--]. Disponível em: https://www.


academia.edu/21971832/Escultura_Inca. Acesso em: 28 jan. 2020.

213
LOURO, G. L. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-
estruturalista. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1997. 179 p.

MALERBA, J. A História na América Latina: Ensaio de Crítica Historiográfica.


Rio de Janeiro: FGV, 2009.

MATOS, M. I. História das mulheres e gênero: usos e perspectivas. In: MELO,


Hildete Pereira de et al. (Org.). Olhares feministas. Brasília: Ministério da
Educação, 2007. p. 277-289. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.
php?option=com_docman&view=download&alias=639-vol10feministas-
pdf&Itemid=30192. Acesso em: 20 dez. 2019.

MENDONÇA, A. G. O Celeste Porvir: a Inserção do Protestantismo no Brasil. 3.


ed. São Paulo: EDUSP, 2008.

OLIVEIRA, J. V. G. de. A. A Brief Commentary on His Life and Work.


International Journal Advances in Social Science and Humanities, v. 5, n. 2, p.
1-6, fev. 2017.

OLIVEIRA, S. R. de. As sacerdotisas do sol: imagens sagradas e profanas do


feminino nas crônicas espanholas do século XVI. Cadernos Pagu, Campinas, v.
19, p.145-169, 2002. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/cpa/n19/n19a07.
pdf. Acesso em: 26 dez. 2019.

OLIVER, A. A. Modernism in Latin America. 2016. Disponível em: https://


www.rem.routledge.com/articles/overview/modernist-intellectual-currents-in-
latin-america. Acesso em: 28 jan. 2020.

OLSON, R. História da Teologia Cristã. São Paulo: Ed. Vida, 2001.

PAIVA, E. F. Alforrias. In: SCHWARCZ, L. M.; GOMES, F. dos S.


(Orgs.). Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos. São Paulo:
Companhia das Letras, 2018. p. 92-98.

PERROT, M. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007. 190 p.

POLIAKOV, L. De Maomé aos Marranos. São Paulo: Contexto, 1984.

PORTO, J. P.; MERINO, M. Definición de precolombino. 2013. Disponível em:


https://definicion.de/precolombino/. Acesso em: 20 out. 2019.

PRADO, M. L.; PELLEGRINO, G. História da América Latina. São Paulo:


Contexto, 2016. 208 p.

RAGO, M. Descobrindo historicamente o gênero. Cadernos Pagu, Campinas, v.


11, p. 89-98, 1998. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.
php/cadpagu/article/view/8634465/2389. Acesso em: 15 dez. 2019.

214
RAGO, M. Epistemologia feminista, gênero e história. In: PEDRO, J. M.;
GROSSI, M. P. (Orgs.). Masculino, Feminino, Plural. Florianópolis: Mulheres,
1998. p. 25-37.

RAVINES, R. Estilos de Ceramica del Antiguo Peru. Boletin de Lima, Lima, n.


163-166, p. 433-456, 2011. Disponível em: http://boletindelima.com/163-166/5.
pdf. Acesso em: 30 jan. 2020.

REIS, J. J. Candomblé para todos. In: FIGUEIREDO, L. (Org.). História do Brasil


para ocupados. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2013. Cap. 1. p. 64-72.

RINCÓN DEL VAGO. Aztecas. Incas. [20--]. Disponível em: https://html.


rincondelvago.com/aztecas_incas.html. Acesso em: 28 jan. 2020.

ROMERO, O. G. La Iconografia Precolombiana y su aplicación Artistica en


el Folclore. Ecuador: Universidad Tecnica de Machala, 2015. Disponível em:
http://repositorio.utmachala.edu.ec/bitstream/48000/6753/1/53%20LA%20
ICONOGRAFIA%20PRECOLOMBINA%20Y%20SU%20APLICACION%20
ARTISTICA.pdf. Acesso em: 30 jan. 2020.

ROSENTHAL, B. Salem Story: reading the Witch Trials of 1692. Cambridge:


Cambridge University Press, 1993. 302 p.

RUCQUOI, A. História Medieval da Península Ibérica. Lisboa: Editorial


Estampa, 2007.

SAMARA, E. de M. Repensando gênero e identidade na América


Latina. Anuario IEHS: Instituto de Estudios Histórico Sociales, Buenos
Aires, v. 16, p.183-195, 2001. Disponível em: http://anuarioiehs.unicen.edu.
ar/Files/2001/010%20-%20Mesquita%20Samara,%20Eni%20de%20-%20
Repensando%20genero%20e%20identidade%20na%20am%C3%A9rica%20
latina.pdf. Acesso em: 21 dez. 2019.

SÁNCHEZ-ALBORNOZ, N. La población de la América colonial española. In:


BETHELL, L. (Ed.). Historia de América Latina: 4. América Latina Colonial:
población, sociedad y cultura. Barcelona: Editorial Crítica, 1990. Cap. 1. p. 15-38.

SARDENBERG, C. M. B. Da crítica feminista à ciência a uma ciência feminista?


In: COSTA, A. A. A.; SARDENBERG, C. M. B. (Orgs.). Feminismo, Ciência e
Tecnologia. Salvador: REDOR/NEIM-FFCH/UFBA, 2002. Cap. 6. p. 89-120.

SCHWARCZ, L. M.; STARLING, H. Brasil: uma biografia. São Paulo:


Companhia das Letras, 2015. 847 p.

SCHWARTZ, S. B. O Brasil Colonial, c. 1580-c. 1750: As grandes lavouras e


a periferia. In: BETHELL, L. (Org.). História da América Latina: Volume II:
América Latina Colonial. São Paulo: EDUSP; Brasília: FUNAG, 2004. p. 339-421.

215
SCOTT, J. F. Latin American Art. 2018. Disponível em: https://www.britannica.
com/art/Latin-American-art. Acesso em: 28 jan. 2020.

SCOTT, J. W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação &


Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p.71-99, 1995. jul./dez. Disponível em:
https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/71721/40667. Acesso em:
15 dez. 2019.

SCOTT, J. W. História das mulheres. In: BURKE, P (Org.). A escrita da história:


novas perspectivas. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992.
Cap. 3. p. 63-95.

SEED, P. Cerimônias de posse na Conquista Europeia no Novo Mundo. São


Paulo: UNESP, 1999.

SIOUI, G. F. Huron-Wendat: the heritage of the circle. Michigan: Michigan State


University Press, 1999. 258 p.

SOCOLOW, S. M. The women of colonial Latin America. 2. ed. New York:


Cambridge University Press, 2015. 271 p. (New Approaches to the Americas).

SOIHET, R. História das mulheres. In: CARDOSO, C. F.; VAINFAS, R. (Orgs.).


Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus,
1997. Cap. 12. p. 399-429.

SOIHET, R.; PEDRO, J. M. A emergência da pesquisa da História das Mulheres


e das Relações de Gênero. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 27, n. 54,
p. 281-300, 2007.

SOLÍS, F. The Aztec Empire. 2005. Disponível em: https://www.guggenheim-


bilbao.eus/en/exhibitions/the-aztec-empire. Acesso em: 22 out. 2019.

SOUSTELLE, J. A civilização asteca. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. 104 p.


(Civilizações Pré-Colombianas).

STEARNS, P. N. História das relações de gênero. 2. ed. São Paulo: Contexto,


2012. 252 p.

TABORGA, O. J. La Creación, el Continente Americano y la Cultura Cainiana -


Tomo II. California: Windmills Editions, 2017.

TIPOS DE ARTE. ¿Qué es el arte precolombino? 2017. Disponível em: https://


tiposdearte.com/que-es-el-arte-precolombino/. Acesso em: 20 out. 2019.

UNIVERSALIUM. Native American Art. 2010. Disponível em: https://


universalium.academic.ru/280641/Native_American_art. Acesso em: 20 out. 2019.

WEBER, M. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 1982.

216

Você também pode gostar