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NOTA DOS EDITORES

Publicado em 1924, um período de crise econômica e atritos


políticos, Nós, romance distópico de Ievguêni Zamiátin, causou
polêmica em seu lançamento – assim como grande parte da obra
do autor. Sua primeira publicação foi feita em solo norte-
americano, após o romance ser censurado na União Soviética,
considerado “ideologicamente indesejável”. Em suas páginas, o
autor imaginou um governo totalitário chamado Estado Único
que, supostamente pelo bem da sociedade, privou a população de
direitos fundamentais como o livre-arbítrio, a individualidade, a
imaginação, a liberdade de expressão e o direito à própria vida.
Um mundo completamente mecanizado e lógico, no qual o Estado
dita os horários de trabalho, de lazer, de refeições e até de sexo.
Nós foi a distopia original. A inventividade dessa narrativa,
inteligente e irônica, foi a pedra fundamental para outros grandes
clássicos do gênero, como Admirável Mundo Novo, de Aldous
Huxley; 1984, de George Orwell; Fahrenheit 451, de Ray Bradbury;
Laranja Mecânica, de Anthony Burgess, e para distopias mais
recentes como Divergente, de Veronica Roth. Isso, por si só, já
torna esta leitura indispensável e fundamental.
Nesta edição inédita, traduzida direto do russo, o leitor
encontra duas leituras complementares. A primeira é uma
resenha do livro escrita por George Orwell, originalmente
publicada na revista londrina Tribute em 1946, na qual ele
ressalta a ousadia política da publicação e indica alguns dos
incontáveis aspectos em que Zamiátin inspirou Admirável Mundo
Novo. Há também uma comovente carta enviada pelo autor a
Stálin, solicitando permissão para abandonar a União Soviética,
onde todas as suas publicações estavam sofrendo perseguição
política.
Em tempos como os nossos – e na verdade, em qualquer época
na qual este livro existiu –, Nós traz uma reflexão necessária. O
relato escrito pelo protagonista serve de alerta para as
sociedades que o encontrarem e lerem, e nos cabe torcer para
que ele seja instrutivo para todos os seus leitores.
1ª ANOTAÇÃO

Resumo:

Uma declaração. A mais sábia


das linhas. Um poema.
Eu apenas transcrevo, palavra por palavra, o que foi publicado
hoje na Gazeta do Estado:
“Dentro de cento e vinte dias será concluída a construção da
INTEGRAL. Um grande momento histórico está próximo, quando
a primeira INTEGRAL alçará voo para o espaço. Há mil anos,
vossos heroicos antepassados submeteram todo o globo
terrestre ao poder do Estado Único. Uma façanha ainda mais
gloriosa está pela frente: integrar a infinita equação do universo
com a INTEGRAL de vidro, elétrica e que cospe fogo. Espera-se
submeter ao jugo benéfico da razão os seres desconhecidos,
habitantes de outros planetas, que possivelmente ainda se
encontrem em estado selvagem de liberdade. Se não
compreenderem que levamos a eles a felicidade
matematicamente infalível, o nosso dever é obrigá-los a serem
felizes. Mas antes de recorrermos às armas, empregaremos a
palavra.
Em nome do Benfeitor anuncia-se a todos os números do
Estado Único:
Todos aqueles que se sentirem capazes devem compor
tratados, poemas, manifestos, odes e outras obras sobre a beleza
e a grandeza do Estado Único.
Este será o primeiro carregamento que a INTEGRAL levará.
Viva o Estado Único! Vivam todos os números! Viva o
Benfeitor!”.

Enquanto escrevo isto, sinto minha face arder. Sim: integrar a


grandiosa equação do universo. Sim: dissolver a curva selvagem,
corrigindo-a numa tangente, numa assíntota, numa reta. Porque
a linha do Estado Único é a reta. A reta é grande, divina, precisa e
sábia, a mais sábia das linhas...
Eu sou D-503, o construtor da “Integral”, apenas mais um dos
matemáticos do Estado Único. Minha pena, habituada às cifras,
não tem o poder de criar músicas com assonâncias e rimas.
Apenas tentarei registrar aquilo que vejo, o que penso – ou, mais
exatamente, o que nós pensamos (precisamente: nós, e “Nós”
será o título das minhas anotações). Mas já que essas notas serão
derivadas de nossas vidas, da vida matematicamente perfeita do
Estado Único, então, para além da minha vontade, acaso não
serão por si mesmas um poema? Sim – acredito e sei que serão.
Enquanto escrevo isto, sinto minha face arder. Suponho que
esse sentimento seja semelhante ao que uma mulher experimenta
quando ouve pela primeira vez, dentro de si, o pulso de uma nova
vida, ainda pequenina e cega. Sou eu e ao mesmo tempo não sou
eu. E será preciso alimentá-la por longos meses com meu próprio
sumo, meu próprio sangue. E depois, com dor, arrancá-la de mim
e depositá-la aos pés do Estado Único.
Mas estou pronto, assim como cada um ou quase cada um de
nós. Estou pronto.
2ª ANOTAÇÃO

Resumo:

O balé. Harmonia quadrada. O


X.
Primavera. Do Muro verde, das selvagens e desconhecidas
planícies, o vento traz o néctar amarelo e melífluo das flores. Esse
néctar adocicado resseca os lábios – a cada instante é preciso
passar a língua sobre eles –, e, provavelmente, todas as mulheres
que se veem devem ter os lábios doces (e os homens também, é
claro). Isso de alguma forma atrapalha o pensamento lógico.
Mas, em compensação, o céu! Azul, imaculado, sem nenhuma
nuvem (como era selvagem o gosto dos nossos antepassados, já
que seus poetas eram capazes de tomar inspiração nesse
amontoado de vapores desajeitados, incoerentes e tolos). Eu amo
e estou certo de que não me engano se digo que nós amamos
apenas esse tipo de céu: impecável e estéril. Em dias como este, o
mundo inteiro parece fundir-se com o mesmo vidro imutável e
eterno, como o do Muro Verde e de todas as nossas construções.
Em dias como este, é visível a profundidade azul das coisas, suas
equações admiráveis, até então desconhecidas, inclusive nas
coisas mais familiares e cotidianas.
Vejamos um exemplo. Nesta manhã, encontrava-me no hangar
onde a “Integral” está sendo construída e de repente vi as
máquinas: as bolas dos reguladores giravam cegas e
inconscientes; as manivelas brilhantes oscilavam para a direta e
para a esquerda; o balanceiro movia os ombros orgulhoso; o
formão da entalhadeira batia no ritmo de uma música inaudível.
E, subitamente, percebi toda a beleza desse grandioso balé
mecânico, inundado pela suave luz azulada do sol.
Em seguida me perguntei: por que é tão belo? Por que a dança
é bela? A resposta: porque o movimento é controlado, porque
todo o sentido profundo da dança está precisamente na
subordinação estética absoluta, na ideal falta de liberdade. E se é
verdade que nossos antepassados entregavam-se à dança nos
momentos mais inspirados de suas vidas (mistérios religiosos,
paradas militares), isso significa apenas uma coisa: desde tempos
imemoriais o instinto de controle é organicamente inerente ao
homem, e nós, na nossa vida atual, apenas conscientemente...
Terei de concluir mais tarde: o interfone tocou. Levanto os
olhos: O-90, é claro. Em meio minuto ela estará aqui. Veio buscar-
me para um passeio.
Querida O! Sempre me pareceu que ela tinha a aparência do
próprio nome: era dez centímetros menor do que a Norma
Maternal e por isso possuía formas completamente
arredondadas. Um rosado O – sua boca – se abre ao encontro de
cada uma de minhas palavras. E ainda: as mãos redondas e
roliças, com dobrinhas nos pulsos como as crianças.
Quando ela entrou, a válvula da lógica ainda zumbia com toda
força dentro da minha cabeça, e por inércia comecei a falar sobre
a fórmula que acabara de determinar, em que entrávamos todos
nós, junto com as máquinas e a dança.
– É maravilhoso, não é verdade? – perguntei.
– Sim, é maravilhoso. É a primavera – O-90 lançou um sorriso
rosado.
Ora, que conveniente, a primavera... Ela fala da primavera.
Mulheres... Calei-me.
Embaixo, a avenida estava cheia: com um tempo desses,
normalmente utilizamos a Hora Pessoal após a refeição para um
passeio adicional. Como sempre, a Fábrica Musical tocava com
todas as suas trombetas a Marcha do Estado Único. Em fileiras
regulares de quatro, os números marchavam, marcando o
compasso, entusiasmados – centenas, milhares de números em
unifs[1] azulados, placas de ouro no peito com o número estatal de
cada homem e mulher. E eu era – nós quatro – uma das infinitas
ondas dessa poderosa corrente. À minha esquerda estava O-90
(se um de meus cabeludos antepassados de mil anos atrás tivesse
escrito isto, ele provavelmente a designaria com a ridícula palavra
“minha”); à direita, dois números desconhecidos, um feminino e
um masculino.
O abençoado céu azul, os minúsculos e infantis sóis em cada
uma das placas, os rostos não perturbados pela demência dos
pensamentos... Raios. Entende? Tudo era feito de uma única
matéria radiante e sorridente. O ritmo de cobre: “Tra-ta-ta-tam.
Tra-ta-ta-tam” são degraus de bronze resplandecentes ao sol, e
cada degrau eleva-nos cada vez mais alto, até o azul vertiginoso...
E, da mesma maneira que ocorrera pela manhã, no hangar, vi
novamente, como se essa fosse a primeira vez na vida, vi tudo: as
imutáveis ruas retas, o vidro das calçadas que irradiava luz, os
paralelepípedos divinos das moradias transparentes, a harmonia
quadrada das fileiras azul-claras. E me pareceu que não foram
gerações inteiras, mas eu – precisamente eu – que vencera o
antigo Deus e a antiga vida. Justamente eu criara tudo isso. Eu
era como uma torre, temia mover o cotovelo para não fazer em
pedaços as paredes, as cúpulas, as máquinas...
E depois de um instante, num salto pelos séculos, de + para −,
de repente, recordei-me (uma associação por contraste,
evidentemente) de um quadro num museu: uma das avenidas
daquela época, do século 20, uma exuberância heterogênea, um
emaranhado, um tumulto de gente, de rodas, animais, cartazes,
árvores, cores, pássaros... E dizem que isso tudo realmente
existiu. Pode ser. Pareceu-me tão inverossímil, tão absurdo, que
não me contive e rapidamente caí na gargalhada.
Imediatamente ouvi, à direita, um eco, uma risada. Virei-me: vi
dentes pontiagudos e brancos, extraordinariamente brancos, um
rosto feminino e desconhecido.
– Desculpe-me – ela disse –, mas você olhava tudo ao redor
com tanta inspiração, como um deus mítico no sétimo dia da
criação. Parece-me que você está seguro de que foi você quem me
criou também, e ninguém mais. Fico muito lisonjeada...
Disse tudo isso sem nenhum sorriso, e eu até diria que com
algum respeito (talvez ela soubesse que eu era o construtor da
“Integral”). Mas não sei, nos olhos ou na sobrancelha, havia algo
como um X estranho e irritante, e de modo algum consegui
apreendê-lo ou transformá-lo numa expressão numérica.
Por alguma razão fiquei perturbado e, confundindo-me um
pouco, comecei a justificar-lhe o meu riso de maneira lógica. É
evidente que esse contraste, esse abismo intransponível entre o
presente e o passado...
– Mas por que intransponível? (Como são brancos os dentes!)
Pode-se construir uma ponte sobre o abismo. Pense um pouco:
tambores, batalhões, fileiras, pois tudo isso já existiu, portanto...
– Sim, mas é claro! – exclamou (que assombroso cruzamento
de ideias: ela quase repetia com minhas próprias palavras aquilo
que eu havia escrito antes do passeio).
– Você compreende até as ideias. Isto porque ninguém é “um”,
mas sim “um dos”. Somos tão semelhantes...
Ela:
– Você tem certeza?
Percebi que suas sobrancelhas levantadas formavam um
ângulo agudo até as têmporas, como as pernas pontiagudas do X.
Por alguma razão fiquei confuso de novo; olhei para a direita, para
a esquerda – e...
À minha direita, esbelta, intensa, obstinada e flexível como um
chicote, I-330 (agora vejo seu número); à esquerda, O,
completamente diferente, toda arredondada, com as dobrinhas
infantis no punho; e na nossa extremidade um quarto número
masculino que eu não conhecia, meio que duplamente encurvado,
como a letra S. Éramos todos diferentes...
Aquela à direita, I-330, aparentemente interceptara o meu
olhar desconcertado e, com um suspiro, disse:
– Sim... Infelizmente!
Na realidade, esse “infelizmente” foi muito oportuno. Mas de
novo alguma coisa no seu rosto ou na voz...
Com um tom que me é incomum, eu disse bruscamente:
– Não existe infelizmente. A ciência se desenvolve e é evidente
que, senão agora, dentro de cinquenta, cem anos...
– Até os narizes de todos...
– Sim, os narizes – quase gritei. – Afinal, se houver alguma
razão para inveja... Eu tenho um nariz como um botão, mas outro
tem...
– Bem, o seu nariz pode ser “clássico”, como se dizia
antigamente, mas olhe as mãos... Não, mostre, mostre as mãos!
Não suporto quando olham para as minhas mãos: peludas e
desgrenhadas, um atavismo ridículo. Estendi as mãos e, com a voz
o mais indiferente possível, disse:
– Mãos de macaco.
Ela examinou minhas mãos, depois meu rosto:
– Sim, uma combinação curiosa – ela me avaliava como se fosse
uma balança, de novo surgiram as pernas do X nos cantos das
sobrancelhas.
– Ele está registrado comigo – O-90 abriu a boca alegre e
rosada.
Seria melhor se tivesse ficado calada, aquilo fora
absolutamente inoportuno. Em geral, a querida O... Como dizer...
A velocidade de sua língua era mal calculada. Essa velocidade
deve estar sempre um segundo atrás da velocidade do
pensamento, nunca o contrário.
No final da avenida, na Torre Acumuladora, o sino bateu
anunciando as dezessete horas. A hora pessoal havia terminado.
I-330 foi embora junto com aquele número masculino em formato
de S. Ele tinha algo que inspirava respeito e agora o vejo como um
rosto conhecido. Eu já o encontrara em algum lugar, mas não me
lembro onde.
Ao se despedir, I sorriu para mim com o mesmo rosto em X:
– Depois de amanhã passe pelo auditório 112.
Dei de ombros:
– Se eu for convocado para esse auditório em particular que
você citou...
Com uma segurança inexplicável, ela disse:
– Será.
Essa mulher me afetava da mesma maneira desagradável que
um termo irracional e irredutível que se intromete ao acaso numa
equação. Fiquei feliz de passar algum tempo a sós com a querida
O.
De mãos dadas, passamos quatro avenidas. Na esquina, ela
teve de virar à direita, e eu, à esquerda.
– Hoje eu gostaria muito de ir para casa com você e fechar as
cortinas. Hoje, agora mesmo... – O-90 levantou timidamente para
mim os olhos redondos, de um azul cristalino.
Graciosa. Mas o que eu poderia dizer? Ela havia estado em
minha casa ainda ontem e sabia tão bem quanto eu que nosso
próximo dia sexual seria depois de amanhã. Esse era
simplesmente mais um caso de seu “pensamento antecipado”,
como acontece (e às vezes é prejudicial) com uma faísca
antecipada num motor.
Ao despedir-nos, duas... Não, serei preciso, três vezes beijei
seus maravilhosos olhos azuis, não maculados por nenhuma
nuvem.

1. Provavelmente derivado da antiga palavra “uniforme”. [N. do A.]


3ª ANOTAÇÃO

Resumo:

O casaco.
A parede.
A tabela.
Revi tudo o que escrevi ontem e percebi que não escrevi com
clareza o suficiente. Ou seja, isso tudo é muito evidente para
qualquer um de nós. Mas como posso saber: é possível que vocês,
desconhecidos, a quem a “Integral” levará as minhas anotações,
tenham lido o grande livro da civilização apenas até a página que
descreve nossos antepassados de 900 anos atrás. É possível que
vocês nem conheçam a Tábua das Horas, a Hora Pessoal, a Norma
Maternal, o Muro Verde, o Benfeitor. É risível e ao mesmo tempo
muito difícil falar sobre tudo isso. É como se algum escritor,
digamos, do século 20 tivesse que explicar em seu romance o que
significam “casaco”, “apartamento”, “esposa”. Entretanto, se o
seu romance fosse traduzido para os selvagens, seria possível
dispensar notas explicativas a respeito de “casaco”?
Estou certo de que um selvagem olharia para um “casaco” e
pensaria: “Para que serve isso? É apenas um fardo”. Acredito que
vocês terão exatamente o mesmo pensamento quando lhes disser
que nenhum de nós esteve além do Muro Verde desde a Guerra
dos Duzentos Anos.
Mas, meus queridos leitores, é preciso pensar um pouco, isso
ajuda muito. É evidente que toda a história da humanidade, pelo
que sabemos dela, é uma história de transição de uma forma de
vida nômade para outra, cada vez mais sedentária. Será que não
se deduz disso que a forma de vida mais sedentária (a nossa) é ao
mesmo tempo a mais perfeita (a nossa)? As pessoas se moviam
pela terra de um extremo a outro apenas na época pré-histórica,
quando havia nações, guerras, comércio, descobertas de
diferentes Américas. Mas para que alguém precisa disso agora?
Admito que o hábito dessa vida sedentária não se realizou sem
esforço e nem de uma só vez. Durante a Guerra dos Duzentos
Anos, todas as estradas foram destruídas e tomadas pelo mato; a
princípio, deve ter sido muito incômodo viver em cidades
separadas umas das outras por uma mata densa e verde. Mas e
depois? Depois que o homem perdeu sua cauda, provavelmente
não foi de uma vez só que ele aprendeu a espantar as moscas sem
a ajuda desta. Sem dúvida, no início entristeceu-se pela falta da
cauda. Mas agora vocês conseguem se imaginar com uma cauda?
Ou: vocês conseguem se imaginar na rua nus, sem “casaco”
(talvez vocês ainda andem por aí de “casacos”). Pois aqui é da
mesma forma: não consigo imaginar a cidade sem estar revestida
pelo Muro Verde, não consigo imaginar uma vida não envolta pelo
manto numérico da Tábua.
A Tábua... Agora mesmo, as cifras púrpuras sobre um fundo
dourado na parede do meu quarto olham-me diretamente nos
olhos, ao mesmo tempo com severidade e ternura.
Involuntariamente recordei-me daquilo que os antigos chamavam
de “ícone”. Eu gostaria de compor versos ou orações (algo
equivalente). Ah, por que não sou poeta para cantar como és
digna, oh Tábua, oh coração e pulso do Estado Único?!
Nós todos (talvez vocês também), quando crianças, líamos na
escola o maior monumento literário legado pelos antigos: Horário
das estradas de ferro. Mas, mesmo que o coloque ao lado da
Tábua, vocês verão o grafite e o diamante lado a lado e ambos são
constituídos do mesmo C, o carbono, mas como o diamante é
transparente, eterno, e como brilha! Quem não fica sem ar
quando passa de maneira rápida e estrondosa pelas páginas do
Horário. Mas a Tábua das Horas converteu cada um de nós em
verdadeiros heróis de seis rodas de aço, heróis do grande poema.
Todas as manhãs, com exatamente seis rodas, precisamente na
mesma hora, precisamente no mesmo minuto, nós, os milhões,
levantamos como um só. Exatamente na mesma hora, unimilhões
começamos a trabalhar e, na mesma hora, unimilhões,
terminamos o trabalho. E fundidos num único corpo com milhões
de mãos, exatamente na mesma hora determinada pela Tábua, no
mesmo segundo, levamos a colher à boca e, no mesmo segundo,
saímos para passear, vamos ao auditório, ao ginásio de exercícios
de Taylor, adormecemos...
Serei totalmente sincero: ainda não encontramos uma solução
absolutamente exata para a felicidade – duas vezes por dia, das 16
às 17 horas e das 21 às 22 horas, nosso poderoso e único
organismo se divide em células isoladas: essas são as Horas
Pessoais estabelecidas pela Tábua das Horas. Nesses horários
observam-se as cortinas castamente fechadas nos quartos de
alguns; outros percorrem ritmadamente as avenidas, como se
subissem os degraus de cobre da Marcha; outros, ainda, assim
como eu, estão sentados à escrivaninha. Mas creio firmemente –
chamem-me de idealista e sonhador –, creio que, cedo ou tarde,
algum dia também encontraremos um lugar para essas horas na
fórmula geral, algum dia todos os 86.400 segundos entrarão na
Tábua das Horas.
Fui obrigado a ler e ouvir muitas coisas incríveis sobre a época
em que as pessoas ainda viviam livres, isto é, num estado de
desorganização selvagem. Mas o que sempre me pareceu ser mais
incrível é exatamente isto: como pôde o poder estatal daquela
época – ainda que fosse embrionário – permitir que as pessoas
vivessem sem algo parecido com a nossa Tábua, sem os passeios
obrigatórios, sem regulamentação exata dos horários das
refeições? Levantavam-se e deitavam-se para dormir quando lhes
desse na cabeça. Alguns historiadores dizem, inclusive, que
naquele tempo as ruas ficavam iluminadas durante a noite
inteira, e as pessoas caminhavam e dirigiam a noite inteira.
Isso eu não consigo compreender de maneira nenhuma. Afinal,
por mais limitada que fosse sua inteligência, eles deveriam,
apesar disso, entender que esse tipo de vida era um verdadeiro
assassinato em massa, cometido aos poucos, dia após dia. O
Estado (humanitário) proibia matar um indivíduo, mas não
proibia que se matassem milhões aos poucos. Matar alguém, isto
é, diminuir a soma das vidas humanas em cinquenta anos é um
crime, mas diminuir a soma das vidas em 50 milhões de anos não
é. Isso não é engraçado? Qualquer número de dez anos de idade é
capaz de resolver esse problema matemático e moral em meio
minuto, mas eles não conseguiram fazê-lo mesmo com todos os
seus Kants juntos (porque nenhum de seus Kants descobriu como
construir um sistema de ética científica, isto é, um sistema
baseado em subtração, adição, divisão e multiplicação).
E não era um absurdo que o Estado (que se atrevia a chamar-
se de Estado!) permitisse a vida sexual sem qualquer controle?
Quem, quando e quantas vezes quisessem... Completamente
anticientífico, como os animais. E procriavam assim como os
animais, às cegas. Não é risível que soubessem horticultura,
avicultura, piscicultura (temos dados precisos de que eles
conheciam tudo isso) e, ainda assim, não conseguissem alcançar o
último degrau dessa escada lógica: a puericultura? Não pensaram
a ponto de atingir as Normas Maternal e Paternal.
É tão engraçado, tão inverossímil que tenho medo do que
escrevi: de repente vocês, leitores desconhecidos, podem me
tomar por um piadista perverso. Podem pensar, de repente, que
eu simplesmente queira zombar e que, com um ar de seriedade,
esteja contando completos disparates.
Mas, em primeiro lugar: não sou capaz de fazer piadas – em
toda piada há uma mentira como função implícita. Segundo: a
Ciência do Estado Único afirma que exatamente assim viviam os
antigos, e a Ciência do Estado Único não pode estar errada. Além
do mais, de onde, então, tirariam uma lógica governamental
quando as pessoas viviam em estado de liberdade, isto é, como
feras, macacos, como rebanhos. O que podemos esperar deles se,
de vez em quando, inclusive em nosso tempo, ainda se ouve, do
fundo de alguma densa profundeza, o eco selvagem dos macacos.
Felizmente, é apenas de vez em quando. Felizmente, são
apenas pequenos incidentes que podem ser facilmente
consertados, sem interromper o eterno e grandioso movimento
de toda a Máquina. E para arrancar um parafuso torto temos a
mão hábil e pesada do Benfeitor, temos o olhar experiente dos
Guardiões...
A propósito, agora me lembro: aquele de ontem, o duplamente
encurvado como um S, parece-me tê-lo visto saindo do Escritório
dos Guardiões. Agora me lembro por que tive uma sensação
instintiva de respeito para com ele e um certo embaraço quando
aquela estranha I o acompanhou... Tenho que reconhecer que
essa I...
Soou a hora de dormir: 22h30. Até amanhã.
4ª ANOTAÇÃO

Resumo:

O selvagem e
o barômetro. Epilepsia. Se.
Até agora, tudo na vida tem sido claro (não é em vão que
tenho, ao que parece, certa propensão pela própria palavra
“claro”). Mas hoje... Não a compreendo.
Primeiro: recebi realmente a tarefa de estar exatamente no
auditório 112, como ela havia me dito. Embora a probabilidade
fosse 1.500/10.000.000 = 3/20.000 (1.500 sendo o número de
auditórios, e 10.000.000, o de números). Segundo... Aliás, melhor
que seja na ordem.
O auditório. Um enorme hemisfério de vidros maciços,
ensolarado de ponta a ponta. Fileiras circulares de cabeças
nobres, esféricas e raspadas rente. Com o coração levemente
apertado, olhei ao redor. Acho que procurava ver se não brilhava
sobre as ondas de unifs azulados uma foice rosada, os gentis
lábios de O. E ali estavam os dentes extraordinariamente brancos
e pontiagudos de alguém, parecidos... não, não aqueles. Hoje à
noite, às 21 horas, O virá à minha casa – o desejo de vê-la aqui é
completamente natural.
Soa a campainha. Levantamos, cantamos o Hino do Estado
Único. No palco, o fonolector resplandeceu espirituoso com seu
alto-falante dourado.
“Prezados números! Há pouco tempo, arqueólogos
desenterraram um livro do século 20. Nele, o irônico autor relata
a história de um selvagem e um barômetro. O selvagem percebeu
que todas as vezes que o barômetro marcava ‘chuva’, realmente
chovia. E como o selvagem desejava que chovesse, então ele
extraiu a quantidade necessária de mercúrio para que o nível
parasse em ‘chuva’ (na tela havia um selvagem de plumas tirando
o mercúrio. Risos). Riam: mas não lhes parece que o europeu
daquela época é muito mais digno de riso? Assim como o
selvagem, o europeu queria ‘chuva’ – chuva com letra maiúscula,
chuva algébrica. Mas ele ficava em frente ao barômetro como uma
galinha molhada. Os selvagens pelo menos tinham mais coragem,
energia e – ainda que selvagens – lógica: ele pôde estabelecer uma
conexão entre causa e consequência. Ao tirar o mercúrio, ele foi
capaz de dar o primeiro passo para o longo caminho em que...”
Nesse momento (repito: escrevo sem ocultar nada), nesse
momento, fiquei como que temporariamente impermeável às
torrentes vivificantes derramadas pelos alto-falantes. De
repente, pareceu-me que eu havia me dirigido para lá em vão (por
que “em vão”? Como poderia deixar de vir, uma vez que a ordem
me fora dada?); pareceu-me que tudo estava vazio, que era
apenas uma casca. E, com dificuldade, prestei atenção apenas
quando o fonolector já havia passado para o tema principal: a
nossa música, a composição matemática (o matemático é a causa;
a música, a consequência), a descrição do recentemente
inventado musicômetro.
“... Apenas girando esta manivela, qualquer um de vocês
produzirá até três sonatas em uma hora. Mas isso era difícil para
os nossos antepassados. Eles podiam criar apenas conduzindo a
si próprios a um acesso de ‘inspiração’, uma forma desconhecida
de epilepsia. E aí vocês têm uma ilustração divertida de seus
resultados, a música de Scriábin do século 20. Essa caixa preta
(no palco a cortina se abriu e lá estava o antigo instrumento
deles), essa caixa a que eles chamavam de ‘piano de cauda’ ou
‘piano’, que mais uma vez demonstra o quanto toda sua música...”
Em seguida, novamente não me lembro, muito provavelmente
porque... Bom, então falarei diretamente: porque foi ela, I-330,
que se aproximou da caixa “piano”. É possível que eu tenha
simplesmente ficado estupefato com a sua inesperada aparição
no palco.
Ela usava um fantástico traje de época: um vestido preto
muito justo que destacava bem a brancura dos ombros e colo
desnudos, uma cálida sombra ondulava pela respiração entre... E
os dentes ofuscantes, quase perversos...
O sorriso-mordida para cá, embaixo. Sentou-se e começou a
tocar. Era selvagem, convulsivo, multicolorido, como tudo na vida
deles naqueles tempos – nem uma sombra do racionalismo
mecânico. E, é claro, aqueles ao meu redor estavam certos: todos
riam. Apenas uns poucos... Mas por que eu também?
Sim, a epilepsia é uma enfermidade mental, uma dor. Uma dor
lenta e doce – uma mordida – e quanto mais profunda, mais
dolorosa. Então, lentamente surge o sol. Não é o nosso, não é o sol
azul cristalino que atravessa uniformemente os tijolos de vidro,
não: é um sol selvagem, flutuante e ardente, expelindo tudo de si,
tudo em pedacinhos.
O número sentado ao meu lado olhou de soslaio para a
esquerda – para mim – e deu uma risada. Por algum motivo, com
muita clareza, ficou gravado em minha memória: vi que de sua
boca saltou uma microscópica bolha de saliva que se rompeu.
Essa pequena bolha me fez voltar a mim. Eu era eu novamente.
Como todos os outros, eu ouvia apenas o ridículo e inquieto
matraquear das cordas. Ri. Ficou fácil e simples. O talentoso
fonolector havia representado para nós de maneira demasiado
vívida aquela época selvagem – isso é tudo.
Com que prazer escutei em seguida a nossa música
contemporânea (ela fora demonstrada no final para o contraste).
Graus cristalinos e cromáticos que convergiam e divergiam em
séries infinitas, os acordes totalizantes das fórmulas de Taylor e
McLaurin; os movimentos de tom inteiro, dos quadrados do
teorema de Pitágoras; melodias tristes de extinções vibratórias
do movimento; as linhas de Fraunhofer que transformavam as
cadências vívidas – uma análise espectral do planeta... Que
grandiosidade! Que regularidade imutável! E que lamentável é a
voluntariosa e limitada música dos antigos, nada além de
fantasias selvagens...
Como de costume, alinhados em filas de quatro, todos saíram
pelas largas portas do auditório. Passou rapidamente por mim a
conhecida figura duplamente encurvada. Saudei-o
respeitosamente.
Dentro de uma hora a querida O deveria chegar. Sentia-me
agitado de maneira útil e agradável. Em casa, fui rapidamente ao
departamento, entreguei à plantonista meu bilhete rosa e recebi
a autorização que me dava direito a fechar as cortinas. Apenas
temos esse direito nos dias sexuais. Assim, entre nossas paredes
transparentes, como se fossem tecidas de ar brilhante, vivemos
sempre em plena vista, eternamente banhados pela luz. Não
temos nada a esconder uns dos outros. Além do mais, isso alivia a
pesada e elevada tarefa dos Guardiões. De outro modo, quem
sabe o que poderia acontecer? É possível que tenham sido
exatamente as moradas estranhas e não transparentes dos
antigos que engendraram essa sua lamentável psicologia celular:
“Minha (sic!) casa é minha fortaleza”. Era realmente necessário
pensar melhor nisso!
Às 21 horas, fechei as cortinas, e no mesmo minuto O entrou
um pouco sem fôlego. Ela estendeu para mim sua boca rosada e o
bilhete rosa. Arranquei o recibo e não pude me desprender da sua
boca rosada até o último momento: 22h15.
Depois mostrei-lhe minhas “anotações” e falei – parece que
muito bem – sobre a beleza do quadrado, do cubo, da reta. Ela me
ouvia de uma maneira rosada e encantadora, mas, de repente, dos
seus olhos azuis brotou uma lágrima, e outra, uma terceira, e
caíram diretamente sobre a página aberta (a página 22). A tinta
borrou. Pois bem, terei que reescrevê-la.
– Querido D, se você apenas, se você...
Mas que “se você”? “Se você” o quê? De novo a sua velha
canção: um filho. Ou pode ser que alguma coisa nova, a respeito...
a respeito da outra? Seria então como se... Não, isso seria ridículo
demais.
5ª ANOTAÇÃO

Resumo:

O quadrado. Os senhores do
mundo. Uma função útil e
agradável.
Novamente não é isso. Novamente a você, meu desconhecido
leitor, falo como se... Bem, digamos, como um velho camarada, R-
13, um poeta de lábios negroides – sim, todos o conhecem.
Entretanto, você está na Lua, em Vênus, em Marte, em Mercúrio –
quem o conhece? Onde está e quem é você?
Pois bem: imagine um quadrado, um bonito quadrado vivo. E
ele precisa falar sobre si mesmo, sobre sua própria vida.
Compreenda que a última coisa que passaria pela cabeça do
quadrado seria falar que possui quatro lados iguais: isso é algo
que ele simplesmente já não vê, para ele isso é muito habitual,
cotidiano. Pois eu também, durante todo esse tempo, estou na
mesma posição desse quadrado. Bem, se falarmos dos talões cor-
de-rosa e tudo associado a eles, para mim é igual aos quatro
lados, mas para você talvez seja mais evidente do que o binômio
de Newton.
Pois bem. Um dos antigos sábios – casualmente, sem dúvida –
disse uma coisa inteligente: “O amor e a fome dominam o mundo”.
Ergo: para dominar o mundo o homem deve dominar os senhores
do mundo. Finalmente, nossos antepassados, com um alto preço,
venceram a Fome: falo sobre a Grande Guerra dos Duzentos
Anos, sobre a guerra entre a cidade e o campo. Provavelmente,
por causa dos preconceitos religiosos, os selvagens cristãos
agarraram-se obstinadamente ao seu “pão”.[2] Mas, no ano 35
antes da fundação do Estado Único, foi inventado o nosso atual
alimento à base de petróleo. É verdade que apenas 0,2% da
população do globo terrestre sobreviveu. Mas, em compensação,
com uma limpeza de mil anos de sujeira, como se tornou
resplandecente a face da Terra! E por isso esse zero ponto dois
aproveitou com deleite os cubículos do Estado Único.
Mas não está claro se o deleite e a inveja são o numerador e o
denominador da fração chamada felicidade. E qual seria o sentido
das inumeráveis vítimas da Guerra dos Duzentos Anos, se, apesar
de tudo, ainda permanecesse motivo para inveja em nossas vidas?
Mas permaneceu, porque ficaram os narizes “de botão” e os
narizes “clássicos” (nossa conversa de então no passeio), porque
alguns conseguem o amor de muitos, outros o de ninguém.
Naturalmente, tendo submetido a Fome (algebricamente = a
soma dos bens externos), o Estado Único conduziu uma ofensiva
contra outro senhor do mundo: contra o Amor. Finalmente, esse
elemento também foi vencido, isto é, organizado e matematizado,
e por volta de trezentos anos atrás foi promulgada nossa
histórica Lex Sexualis: “todo número tem direito a qualquer outro
número como produto sexual”.
Bem, o que se segue é apenas técnico. No laboratório do
Departamento Sexual examinam-nos e calculam exatamente a
composição de nossos hormônios sexuais no sangue, e produzem
para nós uma Tábua apropriada dos dias sexuais. Em seguida,
fazemos uma declaração de que queremos utilizar nossos dias
com esse ou aquele número, e recebemos o devido talão cor-de-
rosa. Isso é tudo.
Está claro: já não há motivos para a inveja, o denominador da
fração felicidade foi reduzido a zero, a fração converte-se em
magnífico infinito. E o que para os antigos era fonte de
inumeráveis e tolas tragédias em nossa sociedade foi convertido
em harmoniosas, agradáveis e úteis funções do organismo, assim
como o sono, o trabalho físico, a ingestão de alimentos, a
defecação etc. A partir daí, fica evidente como a grande força da
lógica purifica tudo o que toca. Oh, se vocês, desconhecidos,
conhecessem essa força divina, se vocês aprendessem a segui-la
até o fim.
... É estranho, hoje escrevi sobre os elevados cumes da história
da humanidade, e o tempo todo respirei o ar puro das montanhas
do pensamento, mas dentro de mim havia algo nublado, coberto
de teias de aranha, com a cruz de quatro pernas de um certo X.
Ou foram minhas patas, e tudo isso seja porque elas ficaram por
muito tempo diante de mim, minhas patas peludas. Não gosto de
falar sobre elas, não gosto delas: são o vestígio de uma época
selvagem. É possível que em meu interior realmente...
Gostaria de riscar tudo isso porque extrapola os limites do
resumo. Mas depois resolvi não riscar. Que minhas notas, como
um sensível sismógrafo, registrem a curva e, inclusive, as mais
insignificantes oscilações cerebrais: porque, às vezes,
exatamente tais oscilações servem de prenúncio...
Mas isso já é um absurdo. Isso realmente já deveria ter sido
riscado: já estabelecemos o curso de todos os elementos, não
pode haver nenhuma catástrofe.
E agora tudo ficou claro para mim: a estranha sensação no
íntimo se deve inteiramente à mesma situação do quadrado sobre
o qual eu falara no início. Não há nenhum X em mim (não é
possível), apenas tenho medo de que um X fique em vocês, meus
leitores desconhecidos. Mas acredito que não me julgarão com
severidade demais. Acredito que vocês compreendem que para
mim escrever é tão difícil como nunca foi a qualquer autor ao
longo de toda a história da humanidade: uns escreviam para seus
contemporâneos, outros para seus descendentes, mas ninguém
nunca escreveu para os antepassados ou seres semelhantes aos
seus selvagens antepassados distantes...

2. Conservamos essa palavra apenas pelo aspecto de metáfora poética: desconhecemos


a composição química dessa substância. [N. do A.]
6ª ANOTAÇÃO

Resumo:

Um incidente. Maldito “é
claro”. 24 horas.
Repito: imputei-me o dever de escrever sem esconder nada.
Por isso, ainda que triste, preciso assinalar aqui que,
evidentemente, mesmo o nosso processo de solidificação e
cristalização da vida ainda não terminou. Até o ideal ainda faltam
alguns degraus. O ideal (é claro) está onde já não ocorre nada,
mas nós... Vejam, por exemplo: hoje li na Gazeta do Estado Único
que na Praça do Cubo, dentro de dois dias, será celebrado o
feriado da Justiça. Portanto, de novo, algum número perturbou a
marcha da grande Máquina Estatal, de novo aconteceu algo
imprevisto e incalculável.
E, além disso, algo me ocorreu. É bem verdade que aconteceu
durante a Hora Pessoal, isto é, durante o tempo especialmente
concedido para as circunstâncias imprevistas, mas de qualquer
maneira...
Por volta das 16 horas (faltando 10 para as 16, mais
exatamente) eu estava em casa. De repente, o telefone:
– D-503? – uma voz feminina.
– Sim.
– Você está livre?
– Sim.
– Sou eu, I-330. Estou passando aí para pegar você, vamos à
Casa Antiga. De acordo?
I-330... Essa I me irrita, me repele, quase me assusta. Mas foi
exatamente por isso que eu disse: sim.
Dentro de cinco minutos já estávamos no aero. A maiólica azul
do céu de maio, o sol suave no seu próprio aero dourado zumbia
atrás de nós, sem nos ultrapassar e tampouco ficar para trás. Mas
adiante, como uma catarata, havia uma nuvem que branquejava,
ridícula e rechonchuda como as bochechas de um antigo
“cupido”, e de alguma maneira isso me incomodou. A pequena
janela da frente estava aberta, o vento ressecava meus lábios,
fiquei lambendo-os inevitavelmente o tempo todo e o tempo todo
pensando neles.
De longe já era visível uma mancha turva e esverdeada, lá atrás
do Muro. Em seguida, sem querer, um leve aperto no coração –
para baixo, para baixo, para baixo, como se descêssemos uma
montanha escarpada. Chegamos à Casa Antiga. Era estranha,
frágil e indistinta, coberta inteiramente por uma casca de vidro:
de outra maneira, é claro, há muito tempo já teria vindo abaixo.
Ao lado da porta de vidro estava uma velha toda enrugada,
sobretudo a boca: cheia de pregas e franzida, os lábios para
dentro, como se a boca estivesse contraída, era absolutamente
incrível que ela pudesse falar. E, contudo, ela falou:
– Então, queridos, vieram dar uma olhada na minha casinha? –
as suas rugas começaram a brilhar (isto é, provavelmente,
puseram-se em forma radial, o que deu a impressão de que
“brilhavam”).
– Sim, vovó, gostaria de vê-la de novo – disse-lhe I.
As rugas resplandeceram:
– Que sol, hein? O quê, então? Ah, diabinha, ah, diabinha! Já
sei, já sei! Está bem: vão sozinhos, fico melhor aqui no sol...
Hum... Provavelmente, minha companheira era uma hóspede
frequente. Eu queria me livrar de algo que me incomodava: é
possível que aquela mesma imagem visual obsessiva: a nuvem
num céu liso de maiólica azul.
Enquanto subíamos as escadas largas e escuras, I disse:
– Eu amo aquela velha.
– Por quê?
– Não sei. Talvez por causa de sua boca. Ou talvez por nada.
Simples assim.
Dei de ombros. Ela continuou sorrindo um pouco, ou talvez
sequer tenha sorrido:
– Sinto-me muito culpada. É claro que não deve ser “amo
simplesmente”, mas sim “amo por alguma coisa”. Deve ter todos
os elementos.
– Claro... – comecei e imediatamente peguei-me dizendo essas
palavras, olhei furtivamente para I: ela percebera ou não?
Ela olhava para alguma coisa embaixo, os olhos caídos, como
cortinas.
Lembrei-me de que à noite, por volta das 22 horas, passando
pela avenida, entre células transparentes e vivamente
iluminadas, algumas estavam escuras, com as cortinas fechadas,
e lá, detrás delas... O que havia atrás das cortinas? Para que ela
me telefonou hoje? E para que tudo isso?
Abri a porta pesada, rangente e opaca, entramos em um
recinto sombrio e desordenado (o que eles chamavam de
“apartamento”). O mesmo estranho instrumento musical, o
“piano” – uma música selvagem, desorganizada e demente como a
daquela época, uma mistura de cores e formas. Uma superfície
plana e branca no alto; paredes azul-escuras; encadernações
alaranjadas, vermelhas e verdes de livros antigos; o amarelo
bronze dos candelabros e da estátua de um Buda; deformadas
pela epilepsia, as linhas dos móveis não se encaixavam em
nenhuma equação.
Tive dificuldade para suportar esse caos. Mas minha
companheira, pelo visto, tinha um organismo mais forte.
– Esse é o meu favorito – e de repente, se deu conta, abriu um
sorriso-mordida, com dentes brancos e pontiagudos. – Mais
exatamente: este é o mais ridículo de todos os “apartamentos”.
– Ou para ser mais exato: dos Estados – eu a corrigi. – Milhares
de microscópicos Estados eternamente belicosos e cruéis, como...
– Bem, é claro... – disse I, aparentemente com muita seriedade.
Passamos por um quarto onde havia pequenas camas infantis
(naquela época as crianças também eram propriedade privada). E
mais cômodos, o brilho dos espelhos, armários sombrios, sofás
insuportavelmente multicoloridos, uma gigantesca “lareira”, uma
grande cama de mogno. Nosso atual, belo, transparente e eterno
vidro apenas existia ali na forma de lamentáveis e frágeis janelas
quadradas.
– E pensar que aqui “simplesmente amavam”, consumiam-se,
atormentavam-se... (de novo fechou os olhos, como cortinas). –
Que ridículo desperdício de energia humana, não é verdade?
Ela falava como se estivesse dentro de mim, verbalizava meus
pensamentos. Mas em seu sorriso havia o tempo todo aquele X
irritante. Ali, atrás das cortinas, alguma coisa acontecia com ela.
Não sei o que é que me fazia perder a paciência; queria discutir
com ela, gritar com ela (exatamente isso), mas tinha que
concordar, era impossível não concordar.
Paramos diante de um espelho. Naquele momento eu via
apenas seus olhos. Uma ideia me ocorreu: o homem é feito da
mesma forma selvagem que esses ridículos “apartamentos” – sua
cabeça é opaca, há minúsculas janelas, no interior: os olhos. Ela
como que adivinhara os meus pensamentos e se virou. “Bem, aqui
estão meus olhos. Então?” (Isso tudo em silêncio, é claro.)
Diante de mim estavam duas janelas espantosamente escuras,
e dentro delas uma vida tão desconhecida, tão estranha. Vi
apenas o fogo arder como em uma daquelas “lareiras”, e algumas
figuras, parecidas...
Isso, é claro, era natural, eu vira meu próprio reflexo. Mas era
antinatural e não se parecia comigo (evidentemente que se devia
ao desalento das circunstâncias). Senti-me verdadeiramente
preso naquela jaula selvagem. Senti-me apanhado por aquele
torvelinho da vida antiga e selvagem.
– Sabe o quê – disse I –, vá por um instante ao quarto ao lado. –
Ouvia-se sua voz lá de dentro, por detrás das janelas escuras dos
seus olhos, onde a lareira chamejava.
Entrei e me sentei. De uma prateleira na parede, quase
invisível, sorria para mim a fisionomia assimétrica e de nariz
arrebitado de um dos poetas antigos (parece que era Púchkin).
Por que estou sentado aqui aguentando obediente a esse sorriso?
E para que tudo isso? Por que estou aqui nessa situação ridícula?
Essa mulher irritante e repulsiva, seu estranho jogo...
Lá, ouvi a porta do armário bater, o roçar de seda, continha-
me com dificuldade para não ir até lá, não me lembro com
exatidão: provavelmente tive vontade de lhe dizer umas coisas
ásperas.
Mas ela já havia saído. Vestia um antigo vestido curto, de um
amarelo vivo, chapéu preto e meias pretas. O vestido era feito de
uma seda leve, eu via claramente: as meias estavam muito longas,
muito acima dos joelhos, e a abertura no colo, a sombra entre...
– Escute, é claro que você quer ser original, mas será que
você...
– É claro – I interrompeu –, ser original, isso significa destacar-
se dos outros. Portanto, ser original é romper com a igualdade... O
que na linguagem idiota dos antigos chamava-se “ser banal”, o
que para nós significa apenas cumprir o seu dever. Porque...
– Sim, sim, sim! Exatamente – não me contive. – E você não
tem, não tem nada que...
Ela se aproximou da estátua do poeta de nariz arrebitado e, ao
cobrir o brilho selvagem dos olhos com as cortinas, lá dentro, por
trás de suas janelas, ela disse, com uma voz que pareceu
totalmente séria (talvez para me acalmar), uma coisa muito
racional:
– Não considera surpreendente que em outra época as
pessoas suportavam tipos assim? E não só suportavam, como os
admiravam. Que espírito servil! Não é verdade?
– É claro... Isto é, eu queria... (esse maldito “é claro”!).
– Bem, sim, eu entendo. Pois, em essência, esses poetas eram
senhores mais poderosos que aqueles a quem coroavam. Por que
não os isolaram não os exterminaram? Em nossa...
– Sim, em nossa... – comecei. E, de repente, ela caiu na risada.
Simplesmente observei com meus próprios olhos aquela risada:
sonora, rude, flexível, elástica como uma chibata, uma risada
falsa.
Lembro-me de que tremia todo. Queria tê-la agarrado, já não
me lembro mais... Era preciso fazer alguma coisa, qualquer coisa.
Maquinalmente abri minha placa dourada, olhei para o relógio.
Faltavam 10 minutos para as 17 horas.
– Você não acha que já é hora de ir? – eu disse, do modo mais
gentil possível.
– E se eu lhe pedisse para ficar aqui comigo?
– Ouça: você se dá conta do que está falando? Dentro de dez
minutos devo estar no auditório...
– ... E todos os números são obrigados a fazer o curso
preestabelecido de arte e de ciência... – I disse, com a voz igual à
minha. Depois abriu as cortinas, levantou os olhos: através das
janelas escuras a lareira chamejava. – No Departamento de
Medicina conheço um médico, ele está inscrito comigo. Se eu
pedir, ele lhe dará um atestado médico. E então?
Compreendi. Finalmente compreendi para onde ia todo esse
jogo.
– Você perdeu a cabeça! Você sabe que eu, de fato, como todo
número honesto, devo me dirigir imediatamente ao
Departamento dos Guardiões e...
– Mas de fato, não (o sorriso-mordida penetrante). Estou
terrivelmente curiosa: você irá ou não ao Departamento?
– Você vai ficar aí? – segurei a maçaneta da porta. A maçaneta
era de cobre, e ouvi como minha voz soava igualmente metálica.
– Um minuto... Pode ser?
Ela se aproximou do telefone. Ligou para algum número, eu
estava tão agitado que não memorizei qual. Ela gritou:
– Vou esperar você na Casa Antiga. Sim, sim, sozinha...
Girei a fria maçaneta de cobre:
– Você me permite usar o aero?
– Oh, sim, certamente! Por favor...
Ali, na saída, a velha cochilava ao sol como um vegetal. Era
novamente surpreendente que ela abrisse a boca
hermeticamente fechada e que pudesse falar:
– E a sua... ela ficou lá dentro sozinha?
– Ficou sozinha.
A boca da velha se cobriu novamente. Ela balançou a cabeça.
Pelo visto, até o seu cérebro debilitado compreendeu o ridículo e
arriscado comportamento daquela mulher.
Às 17 horas em ponto eu estava na palestra. E, então, de
repente, por algum motivo, compreendi que havia mentido para a
velha: I estava lá agora, mas não sozinha. Talvez fosse exatamente
isso, ter enganado a velha sem querer, que me atormentava e me
impedia de prestar atenção. Sim, ela não estava sozinha: essa era
a questão.
Após as 21h30 eu tinha uma hora livre. Podia ter ido ao
Departamento dos Guardiões e feito uma denúncia hoje.
Mas depois dessa história estúpida eu estava muito cansado. E
depois, o prazo legal para fazer uma reclamação era de dois dias.
Amanhã terei tempo: ainda tenho 24 horas.
7ª ANOTAÇÃO

Resumo:

Os cílios. Taylor. O meimendro


e o lírio-do-vale.
Noite. Verde, laranja, azul; um instrumento vermelho, o piano;
um vestido amarelado como uma laranja-lima. Depois, o Buda de
bronze. Subitamente, levantaram-se as pálpebras de bronze e do
Buda começou escorrer um sumo. Também o vestido amarelo
vertia suco, e pelo espelho gotas de suco. Também gotejava na
cama grande e nas camas das crianças, e agora eu mesmo, com
algum terror mortal e doce...
Despertei: a luz era azulada e suave, o vidro da parede
brilhava, e também a poltrona e a mesa de vidro. Isso me
tranquilizou, o coração parou de palpitar. O suco, o Buda... mas
que absurdo? É claro: estou doente. Nunca havia sonhado antes.
Dizem que sonhar era a coisa mais cotidiana e normal na época
dos antigos. Pois, sim, toda a vida deles era esse carrossel terrível:
verde, laranja, Buda, suco. Mas nós sabemos que os sonhos são
uma séria enfermidade psíquica. Eu também sei que até agora
meu cérebro tem sido cronometricamente regulado, um
mecanismo brilhante sem nenhum grão de poeira, mas agora...
Sim, exatamente agora: sinto que lá, no meu cérebro, há um corpo
estranho, como quando um fino cílio entra no olho: o resto de
você não sente, mas esse olho com o cílio, você não consegue
esquecer dele nem por um segundo...
A vigorosa campainha de cristal na cabeceira soou às 7h, hora
de levantar. À direita e à esquerda, através das paredes de vidro,
vejo como se fosse eu mesmo, meu quarto, minha roupa, meus
movimentos, repetidos milhares de vezes. Isso me reanima: vejo-
me como parte de uma enorme e potente unidade. E que beleza
precisa: nem um gesto, curva ou volta excedente.
Sim, esse Taylor foi, sem dúvida, o mais genial dos antigos. É
verdade que ele não chegou a pensar em estender seu método
para todas as esferas da vida, para cada passo, dia e noite. Não
soube integrar seu sistema às 24 horas do dia. Mas, de qualquer
forma, como eles puderam escrever uma biblioteca inteira sobre
um tal de Kant, sem quase notar Taylor, esse profeta que
conseguiu enxergar dez séculos à frente?
O café da manhã havia terminado. Cantamos
harmoniosamente o Hino do Estado Único. Em harmoniosas filas
de quatro pessoas, fomos para o elevador. O zumbido dos
motores era quase imperceptível, descemos rapidamente cada
vez mais para baixo, o coração apertou de leve...
E, então, de repente, por alguma razão, aquele sonho ridículo
de novo, ou alguma função implícita dele. Ah, sim, ontem senti a
mesma coisa durante a descida do aero. Por outro lado, tudo isso
estava acabado: ponto. E também foi muito bom eu ter sido tão
decidido e ríspido com ela.
No vagão do caminho subterrâneo me apressei para o lugar
onde, sobre a carreira, brilhando ao sol, ainda imóvel, ainda sem o
espírito do fogo, ali, estava o elegante corpo da “Integral”.
Fechando os olhos, imaginei as fórmulas: mais uma vez calculei
mentalmente qual era a velocidade inicial necessária para lançar
a “Integral” da Terra. A cada átomo de segundo, a massa da
“Integral” se transforma (o combustível da explosão se consome).
A equação se mostrou muito complexa, com proporções
transcendentais.
Como que em meio a sonhos, aqui, no sólido mundo numérico,
alguém se sentou ao meu lado, esbarrou em mim de leve e disse:
“Desculpe”.
Entreabri os olhos. Vi primeiramente (por associação com a
“Integral”) algo se precipitando rapidamente para o espaço: era
uma cabeça que voava graças a rosadas orelhas, em forma de asas
que sobressaíam pelas laterais. E depois a curva do seu pescoço
caído – as costas arqueadas – a duplamente encurvada letra S...
E entre as paredes de vidro do meu mundo algébrico, de novo
o cílio: algo desagradável, que devo hoje mesmo...
– Não foi nada, não foi nada, por favor – sorri para o meu
vizinho, cumprimentando-o. Em sua placa brilhava: S-4711 (é
compreensível por que desde o primeiro momento associei-o com
a letra S: fora uma impressão não registrada pela minha
percepção visual). Seus olhos também brilharam: duas brocas
pontiagudas, girando rapidamente, atarraxando mais e mais
profundamente, e agora que estão parafusadas até o fundo, veem
aquilo que nem mesmo eu...
De repente, o cílio começou a ficar completamente evidente
para mim: era um deles, um dos Guardiões. O mais fácil era
contar tudo a ele agora mesmo, sem demora.
– Sabe, ontem eu estive na Casa Antiga... – Minha voz soou
estranha, diminuta e trivial, tossi para tentar melhorá-la.
– Que coisa excelente. Isto dará material para conclusões
instrutivas.
– Mas entenda que eu não estava sozinho, estava
acompanhando o número I-330, então...
– I-330? Fico feliz por você. É uma mulher muito interessante e
talentosa. Ela tem muitos admiradores.
... Mas será que ele também – naquele dia no passeio –, talvez
ele também estivesse registrado com ela? Não, sobre isso eu não
podia falar com ele, era inconcebível: isso estava claro.
– Sim, sim! Sem dúvida, sem dúvida! – Dei um sorriso muito
largo e ridículo e senti que aquele sorriso me deixara nu, tolo...
As verrumas me chegaram até o fundo, depois, girando
rapidamente, desparafusaram-se diante dos meus olhos; S sorriu
de maneira ambígua, saudou-me e deslizou para a saída.
Escondi-me atrás de um jornal (parecia que todo mundo
olhava para mim) e imediatamente esqueci do cílio, das verrumas,
de todos: de tanto que me emocionou o que havia lido. Era uma
pequena notícia: “Por meio de informações incontestáveis,
recentemente foram descobertas pistas de uma organização que
até agora tem escapado, e cujo objetivo é a liberação do jugo
benfeitor do Estado”.
“Liberação”? É admirável: como são persistentes os instintos
criminosos da espécie humana. Digo “criminosos”
conscientemente. A liberdade e o crime são tão
indissoluvelmente conectados entre si como... Bem, como o
movimento do aero e sua velocidade: se a velocidade do aero = 0,
então ele não se move; se a liberdade de uma pessoa = 0, então ela
não comete crimes. Isso é claro. O único meio de livrar uma
pessoa do crime é livrá-la da liberdade. Aqui quase atingimos esse
estágio (numa escala cósmica do século, isso certamente é um
“quase”), e de repente algum tolo lamentável...
Não, não compreendo: por que imediatamente, ontem mesmo,
não fui ao Departamento dos Guardiões? Hoje após as 16 horas
irei lá sem falta...
Às 16h10 saí e no mesmo instante vi O na esquina, toda rosada
de entusiasmo por causa desse encontro. “Ela tem uma
inteligência simples e circular. Isso vem a propósito, ela me
compreenderá e apoiará...” Por outro lado, não, não tenho
necessidade de apoio: estava firmemente decidido.
As cornetas da Fábrica Musical ecoaram harmoniosamente a
Marcha, a mesma Marcha de todos os dias. Que fascínio
inexplicável existe nessa cotidianidade, repetitividade e
reflexividade!
O agarrou-me pela mão.
– Vamos passear – os olhos redondos e azuis estavam bem
abertos, janelas azuis para o interior, e eu penetrei sem ficar
preso por nada em seu interior, ou seja, neles não havia nada de
estranho e desnecessário.
– Não, não vou passear. Preciso... – disse a ela para onde eu ia.
E, para a minha surpresa, percebi que sua redonda boca rosada
tomara a forma de uma meia-lua cor-de-rosa, com as pontas para
baixo, como se tivesse provado algo azedo. Fiquei enfurecido.
– Parece que vocês, números femininos, estão incuravelmente
corroídos por preconceitos. São absolutamente incapazes de
pensar de forma abstrata. Desculpe-me, mas isso é simplesmente
estupidez.
– Você vai até os espiões... Fuh, que horror! E eu lhe trouxe do
Museu de Botânica um buquê de lírios-do-vale...
– Por que “E eu”? Por que esse “E”? Bem coisa de mulher. –
Com raiva (reconheço), agarrei os lírios dela. – Aqui estão eles, os
seus lírios-do-vale, então? Cheire: é bom, não é? Ao menos você
tem lógica para tanto. O lírio-do-vale cheira bem, isso é certo. Mas
você não pode falar o mesmo do odor, da própria ideia de “odor”,
se é bom ou ruim? Não pode, não é? Existe o cheiro do lírio-do-
vale, também existe o cheiro abominável do meimendro: ambos
são odores. Havia espiões no Estado antigo, também há espiões
entre nós... sim, espiões. Não tenho medo da palavra. Pois está
claro que o espião de então era o meimendro, e o espião de hoje é
o lírio-do-vale. Isso mesmo, o lírio-do-vale!
A rosada meia-lua estremeceu. Agora compreendo: apenas me
parecera, mas eu estava certo de que ela ria. Então, pus-me a
gritar ainda mais alto:
– Sim, o lírio-do-vale! E não há nada engraçado nisso, nada
engraçado!
As lisas e redondas esferas das cabeças que flutuavam
passando por nós viravam-se. O me pegou carinhosamente pela
mão:
– Você está um pouco... Você não está doente?
O sonho, o amarelo, o Buda... Imediatamente tudo ficou claro:
eu precisava ir ao Departamento Médico.
– Sim, é verdade, estou doente – eu disse muito contente
(naquele momento caí em uma contradição inexplicável: não
havia nada para se alegrar).
– Você precisa ir ao médico agora mesmo. Pois você sabe
muito bem que tem a obrigação de estar saudável. É engraçado
apontar isso a você.
– Bem, querida O, naturalmente você está certa.
Absolutamente certa!
Não fui ao Departamento dos Guardiões, não havia o que
fazer, eu tinha que ir ao Departamento Médico. Fiquei retido lá
até as 17 horas.
À noite (ademais, isso já não importava, o Departamento já
estava fechado a essa hora), O veio me visitar. As cortinas não
estavam fechadas. Resolvemos problemas de um antigo manual:
isso era muito calmante e limpava os pensamentos. O-90 estava
debruçada sobre seu caderno, com a cabeça inclinada sobre o
ombro esquerdo e por causa do esforço pressionava a língua por
dentro da bochecha esquerda. Era algo tão infantil, tão
encantador. E em meu interior tudo ia bem, com precisão e
simplicidade...
Ela foi embora. Fiquei só. Respirei profundamente duas vezes
(isso é muito útil antes de ir dormir). De repente, um odor
imprevisto me fez recordar de algo muito desagradável... Logo
descobri: em minha cama estava escondido o buquê de lírios-do-
vale. Imediatamente tudo turbilhonou e se levantou das
profundezas. Não, esconder esses lírios fora simplesmente uma
falta de tato da sua parte. Pois bem, não fui até lá. Mas não tenho
culpa se estou doente.
8ª ANOTAÇÃO

Resumo:

A raiz irracional. R-13. O


triângulo.
Já faz muito tempo, nos anos de escola, quando √-1 aconteceu
comigo. Lembro-me tão claramente, como se estivesse gravado:
uma sala iluminada, as centenas de cabeças redondas dos
meninos, e Pliapa, nosso professor de matemática. Nós o
chamávamos de Pliapa porque ele era bem desgastado,
desleixado, e quando o encarregado colocava a ficha atrás dele, os
alto-falantes sempre começavam: “Plia-plia-plia-tchhh”, e em
seguida a aula iniciava. Uma vez, Pliapa falou sobre os números
irracionais. Eu me lembro que comecei a chorar, bati com os
punhos na mesa e gritei: “Não quero √-1! Tire de mim √-1!”. Aquela
raiz irracional crescia dentro de mim como algo estranho, alheio e
terrível que me devorava, eu não podia compreendê-la ou reduzi-
la porque estava fora de ratio.
E agora de novo √-1. Reexaminei minhas anotações e ficou
claro: eu trapaceava comigo mesmo, eu mentia para mim só para
não ver √-1. Essa coisa toda de que estou doente etc. é uma tolice:
eu poderia ter ido aos Guardiões. Uma semana atrás, eu sei, teria
ido sem hesitar. Por que será que agora... Por quê?
E hoje a mesma coisa. Exatamente às 16h10, eu estava em
frente à parede de vidro reluzente. Acima, as letras douradas,
ensolaradas e com o brilho limpo da placa do Departamento. Lá
no fundo, entre as paredes de vidro, uma longa fila de unifs
azulados. Os rostos ardiam como lâmpadas de igrejas antigas:
chegaram para realizar uma façanha, chegaram para entregar ao
altar do Estado Único seus amados, seus amigos e até a si
próprios. E eu desejava ir até eles, estar com eles. Não pude: meus
pés estavam profundamente soldados nas chapas de vidro.
Permaneci em pé, com o olhar inexpressivo, sem forças para sair
do lugar...
– Ei, matemático, está sonhando acordado!
Estremeci. Olhos escuros, envernizados, risonhos e lábios
grossos e negros dirigiam-se a mim. Era o poeta R-13, um velho
companheiro, e com ele a rosada O.
Virei-me com raiva (acho que se eles não tivessem me
atrapalhado, eu teria, no fim das contas, arrancado com carne e
tudo a √-1 de mim e entrado no Departamento).
– Não estou dormindo acordado, mas admirando, se você me
permite – eu disse satisfeito e com rispidez.
– Sim, mas é claro, é claro! Meu caro, você não deveria ser
matemático, mas um poeta, sim, um poeta! Eu juro, passe para o
nosso lado, o dos poetas, sim? Bem, se você quiser, providencio
num instante. E então?
R-13 falava engasgando, as palavras esguichavam dele, de seus
lábios grossos voavam gotas; cada “p” era um chafariz, “poetas”,
um chafariz.
– Eu sirvo e continuarei a servir o saber – franzi o cenho: não
gosto e não entendo as piadas, mas R-13 tinha o mau hábito de
brincar.
– Ora essa: o saber! O seu saber é uma total covardia. Sim, isso
é a verdade. Vocês simplesmente querem cercar o infinito com
pequenas paredes, mas vocês têm medo de olhar atrás delas. Sim!
E se olharem, fecharão os olhos. Sim!
– Os muros são a base de toda a humanidade... – comecei.
R esguichava o chafariz, e O ria, rosada e redonda. Não dei
mais importância: riam, tanto faz. Eu não estava para isso.
Precisava destruir alguma coisa, afogar essa maldita √-1.
– O que vocês acham, – propus – vamos para minha casa
resolver alguns problemas matemáticos (lembrei-me da hora
silenciosa da noite anterior, talvez também seja assim hoje).
O lançou um olhar para R; e também me lançou um olhar claro
e redondo, as bochechas tingiram-se um pouco da cor suave e
emocionante dos nossos talões.
– Mas hoje eu... Hoje eu tenho um talão para ele – disse,
apontando para R –, e à noite ele estará ocupado... Então...
Os lábios úmidos envernizados estalaram, bondosos:
– Bem, veja, para nós meia hora já é suficiente. Não é, O?
Quanto aos seus problemas de matemática, eu não sou um
aficionado; vamos só à minha casa e fiquemos um tempo por lá.
Eu tinha medo de ficar a sós comigo, ou melhor, com aquele
novo desconhecido, que por uma estranha coincidência tinha
meu número – D-503. Fui à casa dele, de R. É verdade que ele não
é preciso, rítmico, ele tem uma lógica ridícula e distorcida, mas,
no entanto, somos amigos. Não foi em vão que três anos atrás nós
escolhemos juntos a querida e rosada O. Isso nos uniu de uma
maneira mais forte do que em nossos tempos de escola.
Logo em seguida estávamos na habitação de R. Tudo parecia
exatamente como na minha: a Tábua, as poltronas de vidro, a
mesa, o armário e a cama. Mas, assim que entrou, ele deslocou
uma poltrona, depois a outra, os planos mudaram, tudo saiu da
dimensão predeterminada, ficou não euclidiano. R ainda era
exatamente o mesmo. Sempre foi o último da classe em
taylorismo e matemática.
Relembramos o velho Pliapa: como nós, menininhos,
colávamos bilhetinhos de agradecimento em suas pernas de vidro
inteiras (nós adorávamos Pliapa). Recordamos nosso professor
de religião[3]. Ele falava excepcionalmente alto – dos alto-falantes
soprava um vento, e nós, as crianças, a plenos pulmões
berrávamos os textos depois dele. Certa vez, o atrevido R-13
introduziu no megafone um pedaço de papel mastigado: em vez
de textos, ele disparou papel mastigado. R, naturalmente, foi
castigado. O que ele fizera fora detestável, é claro, mas, naquele
momento, caímos na risada, o triângulo inteiro, e reconheço que
eu também.
– O que teria acontecido se ele fosse um ser vivo como eram os
antigos? O que teria, se... – “s”, o chafariz jorrava dos lábios
grossos...
O sol penetrava através do teto e das paredes; por cima, pelas
laterais, o sol refletia embaixo. O estava sentada no colo de R-13, e
havia minúsculas gotinhas de sol nos seus olhos azuis. De alguma
maneira, senti-me acalentado, separei-me deles. A √-1 se
extinguiu, não me inquietava...
– Então, como vai a sua “Integral”? Logo vamos voar para
instruir os habitantes de outros planetas, hein? Bem, ponha para
fora, ponha para fora! Senão nós, poetas, lhe escreveremos tanto,
que a sua “Integral” nem levantará voo. Todos os dias, das 8 às
11h... – R balançou a cabeça, coçou a nuca. Esta parecia uma
maleta quadrada presa por detrás (lembrava um quadro antigo,
“Na carruagem”).
Fiquei animado:
– Você também escreve para a “Integral”? Então, diga, o quê?
O que, por exemplo, hoje?
– Hoje, sobre nada. Eu estava ocupado com outras coisas... – o
“s” respingou diretamente em mim.
– Que outras coisas?
R franziu o cenho:
– Quê, quê! Está bem, como queira, com uma sentença.
Poetizei uma sentença. Um idiota, um de nossos poetas... Por dois
anos sentou-se junto conosco, como se não houvesse nada. E, de
repente: “Eu – disse ele – sou um gênio, um gênio, estou acima da
lei”. E outras sujeiras... Bem, isso... Ah!
Os lábios grossos penderam, o verniz foi arrancado de seus
olhos. R-13 virou-se de um salto e cravou os olhos em algum lugar
na parede. Eu olhava para a sua maleta firmemente fechada e
pensei: o que está se remexendo ali na sua maleta?
Houve um minuto de embaraço e silêncio assimétrico. Não
ficou claro para mim o que estava acontecendo, mas alguma coisa
acontecia.
– Felizmente, os tempos antediluvianos de todo o tipo de
Shakespeares e Dostoiévskis, ou quem quer que fossem,
passaram – falei num tom propositalmente alto.
R virou o rosto. As palavras, assim como antes, salpicavam,
jorravam dele, mas me pareceu que o alegre verniz de seus olhos
já havia sumido.
– Sim, meu caro matemático, felizmente, felizmente,
felizmente! Nós somos a média aritmética mais feliz... Como
vocês dizem: integrar do zero ao infinito, do cretino ao
Shakespeare... É isso!
Não sei por quê – como se fosse completamente fora de
propósito –, mas lembrei-me daquela mulher, o seu tom de voz,
algum fio fino que se estendia entre ela e R. (Qual?) De novo √-1
começou a remexer-se. Abri minha placa: 16h25. Ainda restavam
45 minutos no talão cor-de-rosa deles.
– Bem, já está na hora... – beijei O, apertei a mão de R e dirigi-
me para o elevador.
Na avenida, enquanto atravessava para o outro lado, olhei ao
redor: no luminoso bloco de vidro do edifício iluminado por todos
os lados pelo sol, aqui e acolá havia células cinza, de tons
azulados, não transparentes, com as cortinas fechadas, células no
ritmo da felicidade taylorizada. No sétimo andar meus olhos
encontraram a célula de R-13: ele já havia fechado as cortinas.
Querida O... Querido R... Também há nele (não sei por que
“também”, mas já que escrevi, então que seja), nele também há
algo que não é de todo claro para mim. E mesmo assim, eu, ele e O
somos um triângulo, ainda que não um equilátero, mas mesmo
assim um triângulo. Nós, para falar na língua dos nossos
antepassados (talvez a vocês, meus leitores de outros planetas,
essa língua seja mais compreensível), nós somos uma família.
Como é bom, às vezes, ainda que rapidamente, descansar num
simples e forte triângulo, isolar-se de tudo que...

3. Sem dúvida, o discurso não se trata da "Lei de Deus" dos antigos, mas da lei do Estado
Único [N. do A.].
9ª ANOTAÇÃO

Resumo:

A liturgia. Os iambos e
troqueus. A mão de ferro
fundido.
Um dia claro e festivo. Em dias como este você esquece as
próprias fraquezas, imprecisões e enfermidades, tudo é cristalino
e inquebrantável, eterno como o nosso novo vidro...
A Praça do Cubo. Sessenta e seis potentes círculos
concêntricos: as tribunas. E sessenta e seis fileiras: rostos quietos
e iluminados, os olhos refletindo o resplendor do céu, ou, quem
sabe, o resplendor do Estado Único. As flores de um vermelho
vivo, como sangue, como os lábios das mulheres. Delicadas
guirlandas nos rostos das crianças nas primeiras fileiras, próximo
ao lugar da ação. Um silêncio profundo, severo, gótico.
A julgar pelas descrições que chegaram até nós, na época dos
antigos eles experimentavam algo semelhante em suas “missas”.
Mas serviam a um Deus absurdo e desconhecido, ao passo que
nós servimos a um Deus plausível e cuja imagem é precisamente
conhecida; o Deus deles não lhes deu nada além de uma busca
eterna e torturante; o Deus deles não imaginou nada mais
inteligente do que oferecer-se em sacrifício, sem saber por quê;
nós nos sacrificamos a Deus, ao Estado Único com calma, de
maneira bem pensada, um sacrifício racional. Sim, essa era a
liturgia solene do Estado Único, em memória aos dias e anos
difíceis da Guerra dos Duzentos Anos, uma grandiosa celebração
da vitória de todos sobre um, da soma sobre a unidade...
Um número estava nos degraus onde o sol enchia o Cubo.
Branco... nem sequer estava branco, mas já sem cor, um rosto de
vidro, lábios de vidro. Apenas viam-se seus olhos negros
absorvendo e tragando buracos, e aquele mundo sinistro no qual
ele estava somente alguns minutos antes. A placa dourada com o
número já fora tirada. As mãos estavam atadas com uma fita
púrpura (um velho costume que, pelo visto, tem explicação na
antiguidade, quando tudo isso não era celebrado em nome do
Estado Único, e os condenados, é compreensível, sentiam-se no
direito de resistir, então as mãos deles eram geralmente
imobilizadas com correntes).
E em cima, no Cubo, ao lado da Máquina havia uma figura
como que feita de metal, a que nós chamávamos de Benfeitor.
Daqui debaixo, não se podia distinguir seu rosto: apenas se via
que ele era determinado por traços severos, grandiosos e
quadrados. As mãos, em compensação... Como ocorre às vezes
nas fotografias, se estão demasiado próximas, posicionadas em
primeiro plano, as mãos aparecem enormes, prendem o olhar,
encobrem todo o resto. Eram mãos pesadas, ainda que
tranquilamente pousadas sobre os joelhos, ficou claro: eram
pedras, e os joelhos quase não suportavam seu peso...
E, de repente, uma dessas mãos enormes levantou-se
lentamente – num gesto vagaroso de ferro fundido – e da tribuna,
obedecendo à mão erguida, um número aproximou-se do Cubo.
Era um dos Poetas Estatais, a quem tocara a sorte e a felicidade
de compartilhar, coroar essa celebração com seus versos.
Ressoaram sobre a tribuna os divinos iambos de cobre sobre o
louco de olhos de vidro que permanecia em pé ali, nos degraus,
esperando a consequência lógica de suas loucuras.
... Um incêndio. Nos iambos, as casas balançam, espargem
para o alto um líquido dourado, desmoronam. As árvores verdes
se torcem, derramando seiva, restam apenas as cruzes negras
das sepulturas. Mas Prometeu surgiu (somos nós, naturalmente):
“E atrelou o fogo à máquina, o aço,
E com a lei o caos aprisionou”.

Tudo novo é de aço: o sol de aço, as árvores de aço, as pessoas


de aço. De repente, algum louco queria “libertar o fogo dos
grilhões” – e de novo arruína tudo...
Por desgraça, tenho uma péssima memória para poemas, mas
de um eu me lembro: não há como escolher imagens mais
instrutivas e belas.
Novamente o gesto lento e pesado, e na escadaria do Cubo
apareceu um segundo poeta. Até me soergui: não pode ser! Não,
seus negros lábios gordos, era ele... Por que é que ele não havia me
dito antes que tinha pela frente uma tarefa elevada? Seus lábios
tremiam, estavam cinza. Eu o entendo: estava diante do Benfeitor,
diante da multidão de números Guardiões, mas ainda assim,
estava tão agitado...
Troqueus ásperos e rápidos, afiados como um machado. Sobre
um crime sem precedentes, sobre versos profanos em que se
chamava o Benfeitor... Não, não levantarei minha pena para
repeti-los.
R-13 estava pálido e não olhava para ninguém (não esperava
essa timidez dele), desceu as escadas e sentou-se. Por um
segundo diferencial minúsculo pareceu-me que perto dele estava
um certo rosto, penetrante, negro e triangular, mas
imediatamente desapareceu: meus olhos, e milhares de outros
olhos, se voltaram para cima, para a Máquina. Lá, a mão sobre-
humana fez o terceiro gesto. E, oscilando por um vento invisível, o
criminoso caminhou lentamente, um degrau, depois outro, o
último passo de sua vida, com o rosto virado para o céu e a cabeça
atirada para trás, em seu último ato.
Pesado, de pedra, como o destino, o Benfeitor andou em volta
da Máquina, colocou sua mão enorme sobre a alavanca... Nem um
sussurro, nem uma respiração: todos os olhos fixados naquela
mão. Deve ser um turbilhão ígneo e arrebatador ser o
instrumento, ser a força resultante de centenas de milhares de
volts. Que grande sorte!
Um segundo incomensurável. A mão ligou a corrente e caiu.
Brilhou um raio insuportável, agudo e cortante, como um tremor,
quase se ouviu o estalido dos tubos da Máquina. O corpo
estendido, envolto por uma suave e brilhante neblina fina,
consumiu-se mais e mais diante de nossos olhos até se dissolver
com uma rapidez terrível. E nada restou: apenas uma poça de
água quimicamente limpa, que ainda um minuto antes fazia bater
violento e vermelho o coração...
Tudo isso era simples, e cada um de nós já conhecia: sim, a
dissociação da matéria na cisão dos átomos do corpo humano.
Contudo, cada vez era como um milagre, como um sinal da
potência sobre-humana do Benfeitor.
Acima, diante Dele, os rostos inflamados de dez números
femininos com os lábios semiabertos de comoção, carregando
flores[4] que balançavam ao vento.
Segundo o costume antigo, dez mulheres coroavam de flores o
unif do Benfeitor, ainda molhado de gotas. Com passos
majestosos de sumo sacerdote, Ele desceu lentamente, e, sem se
apressar, passou pelas tribunas, e, atrás Dele, as mãos brancas e
delicadas das mulheres erguidas e uma tormenta de clamores dos
unimilhões de números. Continuaram os mesmos clamores em
honra da multidão de Guardiões, que presenciava de maneira
invisível de algum lugar próximo daqui, das nossas fileiras. Quem
sabe? Talvez, precisamente eles, os Guardiões, tenham sido
previstos na fantasia do homem antigo quando esse criou ternos
e terríveis “arcanjos”, designados no nascimento de cada pessoa.
Sim, havia algo das antigas religiões, algo de purificador como
uma tempestade ou uma tormenta em toda a celebração. Vocês,
que acabaram por ler isso, estão familiarizados com momentos
como esse? Tenho pena de vocês se não estão...

4. Naturalmente, são do Museu de Botânica. Pessoalmente não vejo nada de bonito nas
flores, como a tudo o que pertence ao mundo selvagem há muito banido pelo Muro
Verde. Apenas é belo o útil e racional: máquinas, botas, fórmulas, alimentos e etc [N. do
A.].
10ª ANOTAÇÃO

Resumo:

A carta. A membrana. O eu
desgrenhado.
O dia de ontem foi para mim semelhante ao papel através do
qual os químicos filtram suas soluções: todas as partículas em
suspensão, todo o excedente, ficam nesse papel. Pela manhã saí
de casa completamente destilado, transparente.
Embaixo, no vestíbulo, a plantonista atrás de sua mesa olhava
para o relógio e anotava o horário de entrada dos números. Seu
nome era Iu... Aliás, é melhor não dar o seu número porque tenho
medo de vir a escrever algo ruim sobre ela, embora, na realidade,
ela seja uma mulher de idade muito respeitável. A única coisa que
não gosto nela são suas bochechas um pouco caídas, como as
guelras dos peixes (você pode pensar: o que há de errado nisso?).
Sua pena rangeu, e vi a mim mesmo na página: “D-503” e um
borrão de tinta ao lado.
Enquanto eu tentava prestar atenção nisso, ela, de repente,
levantou a cabeça e me dirigiu um sorriso semelhante a uma gota
de tinta:
– Tem uma carta. Sim. Você a receberá, querido, sim, sim,
receberá.
Eu sabia que a carta havia sido lida por ela, e ainda teria que
passar pelo Departamento dos Guardiões (acho que é
desnecessário explicar essa regra natural) e eu a receberia antes
das 12 horas. Mas eu estava perturbado por aquele sorriso.
Aquela gota de tinta havia turvado minha solução transparente.
De tal maneira que mais tarde, na construção da “Integral”, de
modo algum pude me concentrar, inclusive cometi um erro nos
cálculos, coisa que nunca me acontecera antes.
Às 12 horas, de novo as guelras de peixe marrom-rosadas, o
sorriso, e finalmente a carta em minhas mãos. Não sei por que não
a li lá mesmo, em vez disso, enfiei-a no bolso e me apressei para o
meu dormitório. Abri-a, passei os olhos e me sentei... Era uma
notificação oficial de que o número I-330 se inscrevera comigo e
que hoje, às 21 horas, eu deveria apresentar-me a ela no endereço
abaixo...
Não: depois de tudo o que havia acontecido, depois de tão
inequivocamente ter mostrado minha posição em relação a ela.
Além do que, ela sequer sabia se eu realmente fora ao
Departamento dos Guardiões, não havia como ela saber que eu
estivera doente, então, de modo geral, não podia... Apesar de
tudo...
Minha cabeça girava, zumbia como um dínamo. O Buda, o
amarelo, o lírio-do-vale, a meia-lua cor-de-rosa... Sim, e mais isso
ainda: O queria vir me visitar hoje. Mostro a ela essa notificação
referente à I-330? Não sei se ela acreditará (e como acreditaria,
de fato?) que eu não tenho nada a ver com isso, que eu
absolutamente... E sei que se seguirá uma conversa difícil,
absurda e completamente ilógica... Não, isso não. Que tudo se
resolva mecanicamente: apenas enviarei a ela uma cópia da
notificação.
Depressa enfiei a notificação no bolso e observei minhas
terríveis mãos de macaco. Lembrei-me de como ela, I, no passeio,
pegara minha mão e a contemplara. É possível que ela
realmente...
Eram 20h45. A noite era branca. Tudo era de vidro verde, mas
um tipo diferente, um vidro frágil, não era o nosso, o autêntico.
Era uma casca fina de vidro sob a qual algo girava, voava,
zumbia... Não me surpreenderia se agora as cúpulas dos
auditórios soltassem lentas e circulares nuvens de fumaça em
direção ao céu, e a lua cheia sorrisse, manchada de tinta como
aquela mulher atrás da mesa hoje pela manhã, e que em todas as
casas ao mesmo tempo fechassem as cortinas e por trás delas...
Estranha sensação: sentia que havia em minhas costelas uma
barra de ferro obstruindo totalmente o coração, apertando-o sem
deixar espaço. Eu estava em pé junto à porta de vidro com o
número dourado: I-330. I estava de costas para mim, sentada à
mesa escrevendo alguma coisa. Entrei...
– Aqui está... – estendi-lhe o bilhete cor-de-rosa. – Recebi hoje
a notificação e compareci.
– Como você é pontual! Um momento, você me permite?
Sente-se, estou quase acabando.
Voltou a pôr os olhos na carta – e o que havia por dentro das
suas cortinas fechadas? O que ela dirá? O que irá fazer em um
segundo? E como saber, como calcular, quando toda ela é de lá, do
mundo antigo e selvagem dos sonhos?
Fiquei contemplando-a em silêncio. Senti que minhas costelas
eram como barras de ferro e comprimiam – definitivamente,
comprimiam – o meu coração. Quando ela fala, seu rosto parece
uma roda brilhante que gira rapidamente: não é possível discernir
alguns raios. Mas agora a roda estava parada. Vi uma estranha
combinação: suas sobrancelhas escuras subiam alto até as
têmporas, formando um engraçado triângulo agudo que
apontava para cima, e duas profundas ruguinhas que iam do nariz
aos cantos da boca. E esses dois triângulos de alguma maneira
contradiziam um ao outro, punham em todo o rosto aquele
desagradável e irritante X, como uma cruz: um rosto riscado por
uma cruz.
A roda começou a girar, os raios se fundiram...
– Você não foi ao Departamento dos Guardiões?
– Eu estive... Não pude, estive doente.
– Sim, pois foi isso que pensei: alguma coisa deve tê-lo
impedido, não importa o quê (sorriu com os dentes pontiagudos).
Em compensação, agora você está em minhas mãos. Você se
lembra: “Qualquer número que não se manifestar no curso de 48
horas é considerado...”.
Meu coração batia tão forte que as barras começaram a
envergar. Como um menininho tolo eu havia sido apanhado e
como um menininho tolo fiquei calado. Sentia que estava de pés e
mãos atados...
Ela se levantou e se esticou preguiçosamente. Apertou o botão
e com um suave estalido as cortinas se fecharam de todos os
lados. Eu estava isolado do mundo, a sós com ela.
I estava em algum lugar atrás de mim, perto do armário. Ouvi o
seu unif farfalhar e cair no chão, ouvi da cabeça aos pés. E me
lembrei... não: foi um relâmpago de um centésimo de segundo...
Há pouco tempo tive que calcular a curvatura de um novo tipo
de membrana de rua (agora essas membranas elegantemente
decoradas estão em todas as avenidas e gravam as conversas de
rua para o Departamento dos Guardiões). E me lembrei: essa
membrana côncava, rosada e trêmula era um ser estranho,
composto de apenas um órgão, o ouvido. Nesse momento, eu era
essa membrana.
O estalar de um botão na gola, no peito, e mais outro embaixo.
A seda cristalina farfalhou nos seus ombros, nos joelhos, no chão.
Eu ouvia com mais clareza do que via, uma perna após a outra saía
daquele monte cinza-azulado de seda...
A membrana tensionada com força tremia e gravava o silêncio.
Não: o bater de um martelo forte com pausas infinitas sobre a
barra. Eu ouvia e via: ela estava atrás de mim, pensando por um
instante.
Então as portas do armário bateram, depois alguma tampa e
de novo a seda, seda...
– Bem, por favor.
Virei-me. Ela estava com um leve vestido amarelo-açafrão, de
estilo antigo. Isso era mil vezes mais terrível do que se ela
estivesse sem nada. Duas pontas agudas ardiam, rosadas, através
do tecido fino, duas brasas entre as cinzas. Dois delicados e
redondos joelhos...
Ela se sentou numa poltrona baixa. Na mesinha quadrangular
diante dela havia um frasco com algum líquido verde, da cor de
veneno, e dois minúsculos copinhos com hastes. Do canto de sua
boca saía uma fumaça por um antigo e fino tubo de papel (agora
esqueci como se chamava).
A membrana ainda vibrava. O martelo batia ali, dentro de
mim, deixando a barra vermelha incandescente. Eu ouvia
claramente cada golpe e... E se de repente ela também estivesse
ouvindo?
Mas ela fumava tranquilamente, olhava para mim
tranquilamente e batia as cinzas com negligência sobre o meu
bilhetinho cor-de-rosa.
Perguntei com o maior sangue-frio que consegui reunir:
– Escute, nesse caso, por que é que você se inscreveu comigo?
E para que me obrigar a vir aqui?
Fez como se não me escutasse. Encheu um copinho com a
bebida do frasco e deu um gole.
– Licor delicioso. Você quer?
Só então eu entendi: álcool. O dia de ontem me fulminou como
um raio. O rápido raio de ontem: a mão de pedra do Benfeitor, o
insuportável corte, e lá, no Cubo, aquele corpo estendido, com a
cabeça atirada para trás. Estremeci.
– Escute – eu disse –, você sabe que a todos que se envenenam
com nicotina e, sobretudo, com álcool, o Estado Único age de
forma implacável...
As sobrancelhas escuras ergueram-se até as têmporas,
formando um triângulo zombeteiro:
– Eliminar rapidamente uns poucos é mais racional do que dar
a muitos a possibilidade de destruírem-se, degenerarem-se etc. É
uma verdade que chega a ser obscena.
– Sim... obscena.
– Sim, se soltássemos na rua esse monte de verdades nuas...
Não, imagine você... bem, por exemplo, esse meu admirador fiel
que você já conhece. Imagine que ele se despisse de toda essa
vestimenta mentirosa e mostrasse sua forma verdadeira ao
público... Oh!
Ela ria. Mas eu via claramente o seu aflito triângulo inferior:
duas rugas profundas dos cantos da boca até o nariz. E, por
alguma razão, essas rugas me fizeram compreender: aquele
homem duplamente encurvado, corcunda e de orelhas em forma
de asas, a tinha abraçado como ela está agora... Ele...
Aliás, tentarei reproduzir agora as minhas sensações
anormais de então. Neste momento, enquanto escrevo, percebo
muito bem: tudo isso deve ser assim. Ele, como todo número
honrado, tem direito à felicidade e seria injusto se... Bem, isso é
muito claro.
I ria longamente e de maneira muito estranha. Depois olhou
fixamente, para dentro de mim:
– O importante é que me sinto completamente calma com
você. Você é tão gentil. Oh, e tenho certeza de que você não está
pensando em ir ao Departamento e denunciar-me por beber licor
e fumar. Você estará doente, ou ocupado, ou sei lá o quê. E mais:
tenho certeza de que você beberá comigo esse veneno
fascinante...
Que tom mais insolente e escarnecedor. Tive certeza: agora eu
a odiava de novo. Por outro lado, por que “agora”? Eu a odiei o
tempo todo.
Ela entornou todo o veneno verde do copinho, levantou-se, o
rosa transparecendo através do açafrão, deu alguns passos,
parou atrás da minha poltrona...
De repente, o braço em volta do meu pescoço, lábios nos
lábios... Não, em algum lugar mais profundo, mais terrível... Juro
que foi algo completamente inesperado para mim, talvez só
porque... Eu não poderia querer – agora compreendo com
absoluta nitidez – não poderia querer aquilo que aconteceu
depois.
Os lábios insuportavelmente doces (suponho que seja o gosto
do “licor”) verteram um gole do veneno ardente, e mais um, e
mais um... Desprendi-me da terra como um planeta
independente, rotacionando freneticamente, disparando para
baixo, para baixo, por alguma órbita obscura.
Posso descrever o que se seguiu apenas de maneira
aproximada, apenas por meio de analogias mais ou menos
aproximadas.
Uma coisa dessas nunca me passou pela cabeça antes, mas foi
exatamente assim: nós, na Terra, andamos o tempo todo sobre
um mar vermelho e fervente de fogo, oculto lá, nas entranhas do
planeta. Mas nós nunca pensamos sobre isso. E se, de repente, a
casca sob os nossos pés começasse a se vitrificar, e de repente
pudéssemos ver...
Transformei-me em vidro. Vi a mim mesmo por dentro.
Havia dois de mim. Um eu era o D-503 de antes, o número D-
503, mas o outro... Antes, ele apenas mostrara um pouco suas
patas peludas fora da casca, mas agora saíra completamente, a
casca estalava, rompera-se em pedaços e... e o quê, agora?
Com todas as minhas forças agarrei-me àquele fio – os braços
da poltrona –, e perguntei, para ouvir meu antigo eu:
– Onde... Onde você conseguiu esse... esse veneno?
– Oh, isso! Só um médico, um de meus...
– “De meus”? “De meus” o quê?
Subitamente, o outro eu saltou e começou a gritar:
– Não admito! Não quero que haja ninguém além de mim. Vou
matar qualquer um... Porque você, eu e você...
Eu vi: ele a agarrou brutalmente com as patas peludas, rasgou
seu vestido de seda fina e cravou-lhe os dentes, lembro-me com
exatidão: foram justamente os dentes.
Já não sei como I escapou. Os olhos fechados pelas malditas e
impenetráveis cortinas, ela em pé, encostada no armário,
escutando-me.
Lembro-me de estar no chão abraçando suas pernas,
beijando-lhe os joelhos e implorando: “Agora, agora mesmo,
nesse minuto...”.
Os dentes pontiagudos, as sobrancelhas triangulares e
escarnecedoras. Ela se inclinou e em silêncio desprendeu minha
placa.
“Sim! Sim, querida, querida”, e comecei a tirar
apressadamente meu unif. Mas I, ainda em silêncio, levou até
meus próprios olhos o relógio da minha placa. Faltavam 5 minutos
para as 22h30.
Congelei. Eu sabia o que significava aparecer na rua depois
das 22h30. Toda a minha loucura foi carregada de uma vez só. Eu
era eu. Uma coisa ficou clara para mim: eu a odeio, odeio, odeio!
Sem me despedir e sem olhar para trás, lancei-me para fora do
cômodo. Prendi a placa de qualquer jeito na corrida pelos degraus
e, por precaução, fui pelas escadas (estava com medo de
encontrar alguém no elevador), saltei na rua deserta.
Tudo estava em seu lugar, tão simples, comum, em
conformidade com a lei: as casas de vidro com luzes brilhantes,
um céu pálido e cristalino, a noite verdejante e sem movimento.
Mas sob esse vidro frio e sem ruído, algo rubro e desgrenhado
sofria, silencioso e violento. E eu, sem fôlego, corria
apressadamente para não me atrasar.
De repente, senti que a placa que eu havia prendido depressa
enquanto corria estava se desprendendo. Ela se soltou e retiniu
sobre a calçada de vidro. Inclinei-me para pegá-la e naquele
segundo de silêncio percebi passos de alguém atrás de mim.
Virei-me: algo pequeno e encurvado virava a esquina. Pelo menos
assim me pareceu.
Corri a toda velocidade, apenas o ar assobiava nos meus
ouvidos. Parei na entrada: o relógio indicava um minuto para as
22h30. Ouvi com atenção: não havia ninguém atrás de mim. Tudo
isso evidentemente havia sido uma fantasia absurda, efeito do
veneno.
Foi uma noite torturante. A cama debaixo de mim subia,
descia e subia de novo, flutuava sinuosamente. Tentei convencer-
me disso: “À noite, os números devem dormir; isso é obrigatório,
assim como o é trabalhar durante o dia. É imprescindível para
poder trabalhar de dia. Não dormir à noite é criminoso...”. E
mesmo assim não pude, não pude.
Estou arruinado. Não sou capaz de cumprir minhas
obrigações para com o Estado Único... Eu...
11ª ANOTAÇÃO

Resumo:

... Não, não posso, que seja


assim, sem resumo.
Entardecer. Neblina suave. O céu estava coberto por um
tecido leitoso e dourado, e não era visível o que havia adiante,
mais acima. Os antigos sabiam que lá vivia o seu grandioso, cético
e entediado Deus. Nós sabemos que lá existe o puro azul
cristalino, o obsceno nada. Neste momento eu não sei o que há lá,
aprendi demais. O conhecimento é a absoluta certeza de que ele é
infalível: isso é a fé. Eu tinha uma fé inabalável em mim mesmo,
acreditava que sabia tudo de mim mesmo. Mas agora...
Estou diante do espelho. Pela primeira vez na vida –
exatamente, pela primeira vez na minha vida – vejo-me com
clareza, precisão e de maneira consciente. Com surpresa vejo-me
como algum tipo de “ele”. Mas eu sou ele: sobrancelhas negras
traçadas em linha reta; entre elas, como uma cicatriz, uma ruga
vertical (não sei se ela estava ali antes). Olhos cinza, de aço,
circulados pela sombra de uma noite de insônia, e atrás desse
aço... Acontece que nunca soube o que havia ali. Desde “ali” (esse
“ali” é ao mesmo tempo aqui, mas infinitamente longe) e desde
“ali” contemplo a mim e a ele também, e sei com firmeza que este,
com as sobrancelhas traçadas em linha reta, é um estranho,
alheio a mim, encontrei-me com ele pela primeira vez na vida. Mas
eu sou o real, eu, não ele...
Não: ponto final. Tudo isso são tolices, todas essas sensações
ridículas são delírios, resultado do envenenamento de ontem...
Mas com o quê: com o gole do veneno verde, ou com ela? Tanto
faz. Anoto isso apenas para mostrar como se pode, de maneira
estranha, se emaranhar e perder a tão precisa e afiada razão
humana. Essa razão foi capaz de fazer o infinito digerível até
mesmo para os assustados antigos, mediante a...
O numerador tocou, e as cifras: R-13. Até fiquei feliz, senão
estaria sozinho agora...

20 MINUTOS DEPOIS

Na superfície do papel, num mundo bidimensional, estas


linhas estão lado a lado, mas em outro mundo... Estou perdendo
minha capacidade numérica: 20 minutos podem ser 200 ou
200.000. É tão absurdo: tranquilo, comedido, refletindo cada
palavra e anotando o que se passou entre mim e R. É o mesmo que
estar sentado na poltrona com as pernas cruzadas ao lado de sua
cama e observando com curiosidade como você mesmo se
contorce nesta cama.
Quando R-13 entrou, eu estava completamente tranquilo e
normal. Com um sentimento de admiração sincera, comecei a
falar sobre como ele se saíra magnificamente bem ao compor em
troqueus a sentença e que, mais do que tudo, eram precisamente
aqueles troqueus que haviam cortado em pedaços, aniquilado
aquele louco.
– E mais: se tivesse me proposto fazer um plano esquemático
da Máquina do Benfeitor, sem dúvida eu teria de alguma maneira
colocado nesses planos os seus troqueus – concluí.
De repente, vi os olhos de R apagarem-se, seus lábios ficaram
cinza.
– O que há com você?
– O quê? Bem... Bem, só me aborrecem todos em volta: a
sentença, a sentença. Não quero mais falar sobre isso, isso é tudo.
Não quero mais!
Ele franziu o cenho, esfregou a cabeça, essa sua maletinha de
conteúdo estranho e incompreensível para mim. Uma pausa.
Então descobriu algo em sua maletinha, retirou, desdobrou, e
tendo desdobrado, seus olhos cobriram-se com um verniz de riso,
e ele deu um salto.
– Veja, estou compondo para a sua “Integral”... Sim, Sim!
Como antes: seus lábios me golpeavam, me salpicavam, as
palavras jorravam como um chafariz.
– Compreende (“p”: um chafariz), é como a antiga lenda sobre
o Paraíso... É sobre nós, sobre o agora. Sim! Pense bem. Aqueles
dois no Paraíso estavam diante de uma escolha: ou a felicidade
sem liberdade, ou a liberdade sem felicidade; não havia terceira
opção. Eles, imbecis, escolheram a liberdade, é compreensível,
depois de séculos sentindo falta dos grilhões. Os grilhões,
compreende, são a causa da dor do mundo. Séculos! E apenas nós
redescobrimos como voltar à felicidade... Não, continue, continue
ouvindo! Nós e o antigo Deus estamos lado a lado, na mesma
mesa. Sim! Nós ajudamos Deus a vencer definitivamente o diabo,
foi ele que incitou as pessoas a violar a proibição e provar a
nefasta liberdade, ele é uma cobra escarnecedora. E nós pisamos
na cabeça dele, zás! E pronto: o Paraíso retorna. E de novo nós
seremos puros e inocentes como Adão e Eva. Nenhuma confusão
sobre o bem e o mal: tudo é muito simples e paradisíaco,
infantilmente simples. O Benfeitor, a Máquina, o Cubo, o Sino de
Gás, os Guardiões, tudo isso é bom, tudo isso é majestoso,
perfeito, nobre, elevado, de uma pureza cristalina. Porque isso
protege a nossa falta de liberdade, isto é, a nossa felicidade. Os
antigos começaram a julgar, a ordenar, a quebrar a cabeça: é
ético, antiético... Bem, de acordo. Em uma palavra, que tema para
um poema sobre o Paraíso, hein? E terá um tom sério...
compreende? Que coisa, hein?
Só faltava não ter compreendido. Lembro que pensei: “Que
aspecto ridículo e assimétrico ele tem, no entanto, que mente tão
racional”. E por causa disso ele me era tão próximo, do eu
verdadeiro (ainda considero o eu anterior como o verdadeiro eu,
tudo agora, naturalmente, é apenas uma doença).
R, evidentemente, havia lido na minha testa, abraçou-me pelos
ombros e caiu na gargalhada.
– Ah, você... Adão! Sim, aliás, a propósito de Eva...
Ele revirou o bolso, tirou sua agenda e a folheou.
– Depois de amanhã... não, em dois dias, O tem um talão cor-
de-rosa com você. Como está para você? Como antes? Quer que
ela...
– Sim, claro.
– Direi para ela. Ela mesma, veja, se sente coibida... Que
história, lhe digo! Eu sou apenas um talão cor-de-rosa, mas você...
Ela não diz quem é essa quarta pessoa que penetrou em nosso
triângulo. Quem é? Confesse, pecador, hein?
Dentro de mim levantaram-se as cortinas: o roçar da seda, o
frasco verde, os lábios... Sem motivo e fora de propósito, soltei (se
eu tivesse me contido!):
– Diga-me: alguma vez você teve a oportunidade de provar
nicotina ou álcool?
R encolheu os lábios, olhou-me de soslaio. Eu ouvia com total
clareza os seus pensamentos: “Meu amigo, meu amigo... Mas
apesar de tudo...”. E respondeu:
– Bem, como dizer? Na realidade, não. Mas conheci uma
mulher...
– I – eu gritei.
– Como você... Você também esteve com ela? – pôs-se a rir,
engasgando-se e depois salpicando saliva.
Meu espelho estava pendurado de tal maneira que para se
olhar nele era preciso ver através da mesa: daqui, da poltrona, eu
apenas podia ver minha testa e as sobrancelhas.
Então eu, o verdadeiro, vi no espelho a linha reta estropiada e
saltitante das sobrancelhas, e meu verdadeiro eu ouviu um grito
selvagem e abominável:
– Como “também”? Não, o que quer dizer “também”? Não,
exijo saber!
Os lábios negroides estavam estirados. Os olhos arregalados...
O eu verdadeiro agarrou pelo colarinho o outro eu – selvagem,
desgrenhado, de respiração pesada. Eu, o verdadeiro, disse para
R:
– Desculpe-me, pelo Benfeitor. Estou completamente doente,
não durmo. Não entendo o que acontece comigo...
Os lábios grossos sorriram brevemente:
–Sim, sim, sim! Eu entendo, eu entendo! Isso me é familiar...
teoricamente, sem dúvida, teoricamente. Adeus!
Na porta, ele virou-se e, como se fosse uma pequena bola
preta, jogou um livro sobre a mesa:
– Meu último... trouxe de propósito e por pouco não esqueci.
Adeus... – o “d” espirrou em mim, e ele partiu...
Fiquei só. Ou, mais exatamente: a sós com esse outro “eu”. Na
poltrona, cruzei as pernas, e de “lá” observei com curiosidade
como eu, eu mesmo, me retorcia na cama.
Por que, por que será que por três anos inteiros eu e O vivemos
tão amigavelmente, mas de repente, agora, apenas uma palavra
daquela mulher sobre... É possível que toda essa loucura – o amor,
o ciúme – sejam apenas idiotices dos livros antigos? E o principal
é que me envolvem! As equações, as fórmulas, as cifras, e... isso,
não entendo nada disso! Nada... Amanhã mesmo irei à casa de R e
direi que...
Não é verdade: não irei. Nem amanhã, nem depois de amanhã,
nunca mais irei. Não posso, não quero vê-lo. É o fim! O nosso
triângulo desmoronou.
Estou só. Anoitece. Neblina suave. O céu está coberto por um
tecido leitoso e dourado, se eu soubesse, o que há lá, mais acima?
E se eu soubesse: quem sou eu? Qual sou eu?
12ª ANOTAÇÃO

Resumo:

A limitação do infinito. O anjo.


Reflexões sobre poesia.
Apesar de tudo, parece-me que recuperarei a saúde, que
posso me recuperar. Dormi muito bem. Não tive nenhum
daqueles sonhos ou outros fenômenos doentios. Amanhã a
querida O virá me visitar, tudo será simples, correto e limitado,
como um círculo. Não tenho medo da palavra “limitação”: o
trabalho superior que há para o homem é o da razão, que se
resume precisamente na contínua limitação do infinito, no
fracionamento do infinito em convenientes, fáceis e digeríveis
porções, em diferenciais. É exatamente nisso que está a divina
beleza do meu elemento, na matemática. E é nesse ponto que lhe
falta a compreensão dessa própria beleza. Por outro lado, isso é
apenas uma associação casual.
Pensava tudo isso sob o ritmo métrico dos golpes das rodas da
estrada subterrânea. Escandi mentalmente o ruído das rodas em
versos (como no livro de ontem, de R). Senti que atrás de mim
alguém se inclinava cuidadosamente sobre o meu ombro e olhava
a página aberta que eu lia. Sem me virar, apenas com o canto do
olho, eu vi: as rosadas e abertas orelhas em forma de asas,
duplamente encurvado... era ele! Não quis incomodá-lo, então
fingi que não o percebi. Não sei como ele foi parar ali, pois quando
entrei no vagão acredito que ele não estava lá.
Esse incidente, insignificante por si só, atuou de maneira
particularmente benéfica sobre mim, diria até que me fortaleceu.
É tão agradável sentir o olhar vigilante de alguém que o protege
afetuosamente do menor erro, do menor passo em falso. Ainda
que isso soe um pouco sentimental, me vem à cabeça novamente
aquela analogia dos anjos da guarda, com quem os antigos
sonhavam. Quanto dessas coisas, com que eles apenas sonhavam,
se materializaram em nossas vidas.
Naquele mesmo momento, quando percebi que o anjo da
guarda estava atrás das minhas costas, eu me deleitava com um
soneto intitulado “Felicidade”. Acredito que não erro se digo que
era raro em sua beleza e profundidade de pensamento. Eis os
primeiros quatro versos:

Eternamente apaixonados dois vezes dois,


Eternamente fundidos em um apaixonado quatro,
Os amantes mais ardentes do mundo –
Os inseparáveis dois vezes dois...

E tudo o que se segue é sobre a sábia e eterna felicidade da


tabuada de multiplicação.
Todo autêntico poeta é necessariamente um Colombo. A
América existia por séculos antes de Colombo, mas apenas ele foi
capaz de descobri-la. A tabuada de multiplicação existia por
séculos antes de R-13, mas só ele foi capaz de encontrar o novo
Eldorado na mata virginal das cifras. Realmente, haveria um lugar
onde a felicidade seria mais sábia e desanuviada do que nesse
mundo maravilhoso? O aço oxida; o Deus antigo criou o antigo,
isto é, o homem capaz de errar, e, desta maneira, ele próprio
errou. A tabuada de multiplicação é mais sábia e absoluta do que
o antigo Deus: ela nunca, entenda, nunca erra. E não há cifras
mais felizes do que as que vivem pela lógica eterna das leis da
tabuada de multiplicação. Sem variações, sem erros. Existe
apenas uma verdade e um caminho verdadeiro; e essa verdade é o
dois vezes dois, e o caminho verdadeiro é o quatro. Não seria um
absurdo se esses pares felizes e idealmente multiplicados
começassem a pensar sobre uma tal de liberdade, isto é, de forma
mais clara, sobre cometer um erro? Para mim é um axioma que R-
13 foi capaz de captar, o mais fundamental, o mais...
Então senti de novo, primeiro na minha nuca, depois na minha
orelha esquerda, o quente e suave sopro do anjo da guarda. Com
certeza ele reparou que o livro sobre os meus joelhos já estava
fechado, e meus pensamentos, longe. Bem, contudo, eu estava
pronto para abrir diante dele as páginas do meu cérebro: que
sentimento tão tranquilizador e agradável. Lembro-me de virar a
cabeça e olhá-lo nos olhos de maneira insistente e suplicante, mas
ele não entendeu, ou não quis entender, e nem me perguntou
nada sobre isso... Só me resta uma coisa: contar tudo a vocês,
meus leitores desconhecidos (agora vocês me são tão queridos,
próximos e inalcançáveis, como ele naquele momento).
Esse era meu caminho, da parte ao todo; a parte era R-13, e o
majestoso todo era o nosso Instituto Estatal de Poetas e
Escritores. Pensei em como não saltou aos olhos dos antigos todo
o absurdo da sua literatura e poesia. A enorme e esplêndida força
da palavra artística foi desperdiçada totalmente em vão.
Simplesmente ridículo: qualquer um poderia escrever sobre o que
lhe viesse à cabeça. Tão ridículo e absurdo como quando o mar
dos antigos passava dia e noite batendo estupidamente na costa,
e os milhões de quilogrâmetros contidos nas ondas eram
utilizados apenas para aquecer os sentimentos dos apaixonados.
Nós conseguimos extrair eletricidade desse apaixonado sussurro
das ondas, das bestas salpicadas de espuma raivosa fizemos
animais domésticos, e: exatamente da mesma maneira,
domesticamos e dominamos os elementos poéticos selvagens de
outrora. Atualmente, a poesia já não é o desregrado silvo do
rouxinol: a poesia é um serviço estatal, a poesia é utilidade.
Nossas célebres “Normas Matemáticas”: sem elas, será que
poderíamos ter amado tão sincera e afetuosamente as quatro
regras da aritmética na escola? E a clássica imagem dos
“espinhos”: os Guardiões são como os espinhos de uma rosa,
defendendo o delicado Estado-Flor do contato grosseiro... De
quem é o coração de pedra que fica indiferente à visão dos lábios
inocentes de uma criança, murmurando como uma prece: “O
menino mau arrancou uma rosa com as mãos. Mas o espinho
cravou-se-lhe como uma agulha de aço, travesso – ai, ai – corra
para casa”, e assim por diante? E a “Ode Diária ao Benfeitor”?
Quem, tendo-a lido, não se inclinaria com devoção diante do
esforço abnegado desse Número entre os Números? E das
terríveis e vermelhas “Flores das Sentenças Judiciais”? E a
tragédia imortal “Aquele que se Atrasa para o Trabalho”? E o
livro de cabeceira “Das Estâncias da Higiene Sexual”?
Toda a vida em sua total complexidade e beleza está
eternamente gravada em palavras de ouro.
Nossos poetas já não andam mais nas nuvens: desceram para
a Terra. Conosco, andam sob o compasso da severa marcha
mecânica da Fábrica Musical: sua lira é o rumor matinal das
escovas de dente elétricas e o terrível estalido da faísca da
Máquina do Benfeitor, o majestoso eco do Hino do Estado Único,
o íntimo retinido de um vaso noturno, brilhante e cristalino, o
estalido emocionante das cortinas se fechando, as vozes
contentes por causa de um novíssimo livro de culinária, o quase
audível sussurro das membranas das ruas.
Nossos deuses estão aqui, conosco, no Departamento, na
cozinha, na oficina, no banheiro. Os deuses transformaram-se em
nós: ergo, nós nos transformamos em deuses. E até vocês, meus
leitores planetários desconhecidos, iremos até vocês para tornar
suas vidas divinamente racionais e exatas como a nossa...
13ª ANOTAÇÃO

Resumo:

A névoa. Tu. Um incidente


completamente ridículo.
Despertei ao alvorecer; diante de meus olhos o rosado e sólido
firmamento. Tudo está bem, circular. À noite, O virá. Sem dúvida
já estou recuperado. Sorri e voltei a dormir.
A campainha matinal. Levanto-me e está tudo diferente, atrás
do teto de vidro, das paredes, por toda parte, em tudo ao redor:
uma névoa. Nuvens enlouquecidas, umas mais pesadas, outras
mais leves, e ficando mais próximas, já não há limites entre o céu e
a terra, tudo voa, derrete, cai, sem ter no que se agarrar. Não há
mais casas: as paredes de vidro se dissolveram na névoa como
cristais de sal na água. Se olhasse da calçada para os vultos
escuros das pessoas nos edifícios, estes pareceriam partículas
em suspensão numa delirante solução leitosa, umas pendiam
baixas, outras mais altas, e outras ainda mais altas, no décimo
andar. Tudo fumegava. Talvez tivesse se desencadeado algum
incêndio silencioso.
Eram exatamente 11h45: olhei de propósito para o relógio,
para agarrar as cifras, para que pelo menos elas se salvassem.
Às 11h45, antes de ir para as cotidianas ocupações de trabalho
físico, conforme a Tábua das Horas, corri para o quarto. De
repente, o telefone tocou: uma voz penetrou no meu coração
como uma longa e lenta agulha:
– Ah, você está em casa! Fico feliz. Espere-me na esquina.
Iremos juntos a... bom, você verá para onde.
– Você sabe perfeitamente que agora eu vou para o trabalho.
– Você sabe perfeitamente que vai fazer exatamente o que
digo. Até mais. Nos vemos em dois minutos...
Dentro de dois minutos eu me encontrava na esquina.
Precisava mostrar a ela que era governado pelo Estado Único, e
não por ela. “Exatamente o que digo...” E ela estava segura disso,
percebia-se pela voz. Bem, agora direi a ela o que é verdadeiro...
Tecidos da névoa úmida, os unifs cinzas passavam
rapidamente ao meu lado e um momento depois se dissolviam de
maneira inesperada na névoa. Não desprendi os olhos do relógio,
eu era o pontiagudo e trêmulo ponteiro de segundos. Oito, dez
minutos... Faltam três, faltam dois para as doze...
Claro. Eu já estava atrasado para o trabalho. Como eu a odeio.
Mas precisava mostrar-lhe...
Na esquina, na névoa branca: sangue. Como uma faca afiada:
seus lábios.
– Parece que me atrasei. Mas, tanto faz, agora já é tarde para
você.
Como eu a odeio. Por outro lado, é verdade: já era tarde.
Olhei em silêncio para seus lábios. Todas as mulheres são
lábios, apenas lábios. Alguns são rosados, firmes e redondos: um
anel, uma delicada cerca do mundo todo. Mas aqueles: um
segundo antes eles não estavam aqui, e apenas agora, como uma
faca derramando gotas doces de sangue.
Mais perto, apoiados sobre meus ombros – e éramos um, ela
transbordava em mim, e eu sei que deve ser assim. Sei por cada
nervo, cada fio de cabelo, cada doce e até dolorosa batida do meu
coração. E que alegria era me submeter a esse “deve ser”.
Provavelmente, um pedaço de ferro deva se alegrar da mesma
maneira ao submeter-se à inevitabilidade e precisão da lei e
agarrar-se ao ímã. Uma pedra lançada para o alto vacila por um
instante, depois se precipita para o solo. Uma pessoa, depois de
agonizar, finalmente respira pela última vez e morre.
Lembro-me que sorri desconcertado e disse sem nenhum
motivo:
– Névoa... há muita névoa.
– Tu gostas da névoa?
Esse antigo, há muito esquecido “tu”. O “tu”, vindo do amo
para o escravo, penetrou agudo e devagar: sim, eu era um escravo,
e isso também deveria acontecer, também era bom.
– Sim, é bom... – disse a mim mesmo em voz alta. E depois para
ela: – Odeio a névoa. Tenho medo dela.
– Quer dizer que você a adora. Tem medo porque é mais forte
que você, odeia porque tem medo, adora porque não pode
submetê-la a você. É que só se pode amar o insubmisso.
Sim, é isso mesmo. E exatamente por isso, exatamente por isso
que eu...
Caminhávamos os dois como se fôssemos um. Em algum lugar
ao longe, por entre a névoa, o sol cantava quase audível, enchendo
tudo de uma luz forte, pérola, dourada, rosa e vermelha. O mundo
inteiro era uma única e imensa mulher, e nós, dentro de seu
ventre, ainda não nascemos, amadurecemos alegres. Para mim
ficou claro, inabalavelmente claro, tudo era por minha causa: o
sol, a névoa, o rosa, o dourado, para mim...
Não perguntei a ela para onde íamos. Não fazia diferença:
apenas ir, ir, amadurecer, encher-se de mais força...
– É aqui... – I parou ao lado de uma porta. – Aqui está hoje de
plantão um... Eu lhe falei sobre ele aquele dia, na Casa Antiga.
De longe, protegendo cuidadosamente a visão, li no letreiro:
“Departamento de Medicina”. Compreendi tudo.
Era um ambiente de vidro cheio de uma névoa dourada. Tetos
de vidro, garrafas coloridas, latas. Fios. Faíscas azuladas dentro
de tubos.
Ali estava um homem muito delgado. Era como se ele todo
tivesse sido recortado de uma folha de papel. Não faria diferença
se ele se virasse, ele tinha apenas um perfil, pontiagudo e afiado: o
nariz era como uma lâmina brilhante, os lábios como uma
tesoura.
Não ouvi o que I disse a ele: contemplava como ela falava e
senti que queria sorrir, irresistível e beatificamente. A lâmina dos
lábios de tesoura reluziu, e o médico disse:
– Ora, ora. Entendo. É uma doença muito grave, não conheço
nenhuma mais grave... – disse e pôs-se a rir. Com a mão delgada
como um papel, escreveu rapidamente algo e deu uma folha para
I; escreveu e deu outra para mim.
Eram atestados de que estávamos doentes e que não pudemos
comparecer ao trabalho. Roubei meu trabalho do Estado Único,
sou um ladrão, estarei sob a Máquina do Benfeitor. Mas isso
estava distante de mim, era indiferente, como num livro... Peguei
o papel sem hesitar nem por um segundo. Eu sabia, com meus
olhos, mãos e lábios, que isso era necessário.
Na esquina, pegamos o aero da garagem quase vazia, I, como
da outra vez, sentou-se ao volante, ligou o motor em “para
frente”, desprendemo-nos do solo e saímos flutuando. Deixamos
tudo para trás: a névoa rosa e dourada; o sol, o perfil delgado e
laminado do médico, que subitamente me pareceu tão querido e
próximo. Antes tudo girava ao redor do sol, mas agora sei que
tudo gira ao meu redor, de forma lenta, beatificamente, de olhos
semicerrados...
A velha estava ao lado do portão da Casa Antiga, com sua boca
amável coberta de rugas em forma de raios. É provável que
estivesse fechada todos esses dias e apenas agora se abrira, e ela
sorriu:
– Ah, diabinha! Não pôde trabalhar, como todos... Então está
bem! Se alguma coisa acontecer, corro para avisar...
A pesada porta opaca se fechou com um rangido.
Imediatamente, e com dor, meu coração se abriu amplamente, e
ainda mais: de par em par. Seus lábios eram os meus, eu bebia e
bebia, desprendia-me, em silêncio olhava para os olhos abertos
para mim, e de novo...
O aposento estava na penumbra, mais azul, amarelo-açafrão, o
couro marroquino verde-escuro, os lábios dourados do Buda, o
brilho dos espelhos. Então meu antigo sonho ficou tão
compreensível: tudo estava embebido de um suco rosa e dourado,
tudo transbordava pelas beiradas, salpicando...
Estava maduro. E, de maneira inevitável, como o ferro e o ímã,
com uma doce obediência às suas leis precisas e imutáveis,
desaguei-me nela. Não havia talão cor-de-rosa, não havia conta,
não havia Estado Único, não havia eu. Havia apenas seus dentes
cerrados, suavemente pontiagudos, os olhos dourados
totalmente abertos para mim, e, através deles, eu penetrava no
interior, mais e mais profundamente. Reinava o silêncio. Apenas
na esquina, a milhares de quilômetros, pingavam gotas no lavabo,
e eu era o universo, e de gota em gota passavam-se eras, épocas...
Depois de colocar meu unif, inclinei-me para I e sorvi-a com o
olhar uma última vez.
– Eu sabia... Eu sabia que te... – disse I bem baixinho. Ela se
levantou rapidamente, colocou o unif e lançou seu pontiagudo
sorriso-mordida de sempre. – Pois então, anjo caído. Agora você
está perdido. Não tem medo? Bem, até logo! Você voltará sozinho.
Tudo bem?
Ela abriu a porta espelhada embutida no armário. Olhando-me
por cima do ombro, ela esperava. Saí, obediente. Apenas
atravessei a soleira da porta e, de repente, tornou-se imperativo
que ela se apertasse contra o meu ombro apenas por um segundo
e nada mais.
Precipitei-me para trás, para aquele cômodo onde ela
(provavelmente) ainda abotoava o unif em frente ao espelho.
Entrei correndo e parei. Vi claramente como ainda balançava o
antigo anel na chave da porta do armário, mas I não estava mais
lá. Ela não poderia ter ido a lugar nenhum, existe apenas uma
saída do quarto, e apesar disso ela não estava lá. Revistei tudo,
inclusive abri o armário e apalpei os multicoloridos vestidos
antigos: não havia ninguém...
Fico um pouco embaraçado, meus leitores planetários, em
contar-lhes sobre esse incidente inverossímil. Mas o que fazer se
tudo foi exatamente assim? Não foi todo o dia, desde de manhã
cedo, cheio de coisas inverossímeis? Isso não se parecia com
aquela antiga doença de sonhar? E se é assim, não seria
indiferente um absurdo a mais ou a menos? Além disso, estou
seguro de que cedo ou tarde conseguirei incluir qualquer absurdo
em algum silogismo. Isso me acalma e espero que acalme vocês
também.
... Como estou completo! Se vocês soubessem como estou
completo!
14ª ANOTAÇÃO

Resumo:

“Meu”. Não se pode. Chão frio.


Um pouco mais sobre os acontecimentos da véspera. Eu
estava ocupado durante a Hora Pessoal antes de dormir e não
pude escrever ontem. Mas tudo isso está gravado em mim – talvez
para sempre –, especialmente aquele chão insuportavelmente
frio...
À noite O deveria me ver, era o seu dia. Desci até a plantonista
para pegar a autorização para as cortinas.
– Você está bem? – perguntou a plantonista. – Hoje você está
um pouco...
– Eu... eu estou doente...
De fato, era verdade, sem dúvida eu estava doente. Tudo isso
era uma doença. E imediatamente recordei: sim, o atestado...
Apalpei o bolso: ele farfalhou. Significa que tudo aconteceu, tudo
realmente aconteceu...
Estendi para ela o pedaço de papel. Senti minhas bochechas
arderem; sem olhar, senti que ela me observava com assombro.
Eram 21h30. As cortinas do quarto à esquerda estavam
fechadas. No quarto à direita, vi o vizinho debruçado sobre um
livro, a careca nodosa e cheia de montículos, a testa parecia uma
enorme parábola amarela. Eu andava de um lado para o outro
dolorosamente: como, depois de tudo o que aconteceu, eu
poderia ficar com ela, com O? E da direita, senti claramente olhos
em minha direção, vi perfeitamente uma testa enrugada, uma
série de linhas amarelas indefinidas, e, por alguma razão, me
pareceu que essas linhas falavam sobre mim.
Às 21h45, entrou em meu quarto um alegre e rosa turbilhão,
um anel de braços rosados em volta do meu pescoço. Senti que o
anel ficava mais fraco, mais fraco até que se abriu, baixou os
braços...
– Você não é o mesmo, não é como antes, você não é meu!
– Que terminologia selvagem: “meu”. Eu nunca fui... – hesitei:
passou-me pela cabeça que antes realmente não era, mas agora...
De fato, agora não vivo no nosso mundo racional, mas no antigo e
delirante mundo da √-1.
As cortinas se fechavam. Lá, atrás da parede à direita, o
vizinho deixou cair o livro de cima da mesa, e, no último instante,
por uma fresta estreita entre a cortina e o chão, vi a mão
amarelada pegar o livro, e dentro de mim, com todas as forças,
quis me agarrar àquela mão...
– Pensei: queria tê-lo encontrado no passeio hoje. Tenho muito
sobre o que falar, preciso lhe contar muitas...
Querida e pobre O! A boca rosada, a meia-lua rosada
apontando para baixo. Mas não posso de forma alguma contar-
lhe tudo o que aconteceu, porque isso faria dela cúmplice de meus
crimes, e eu sei que ela não teria forças para ir ao Departamento
dos Guardiões, portanto...
O estava deitada. Beijei-a lentamente. Beijei aquela dobra
inocente e doce do seu pulso, seus olhos azuis estavam fechados,
sua meia-lua rosada florescia lentamente, desabrochou, beijei-a
toda.
De repente, percebi com clareza como tudo estava desolado e
à mercê. Não posso, não se pode. Devia, mas não se pode. Meus
lábios ficaram frios imediatamente...
A meia-lua rosada começara a tremer, extinguira-se,
contraíra-se. O se cobriu com a colcha, embrulhou-se e enfiou a
cara no travesseiro...
Sentei-me no chão ao lado da cama, que estava extremamente
frio. Fiquei sentado em silêncio. O frio torturante vindo de baixo
subia cada vez mais. É possível que esse frio tão torturante reine
lá, no azul, no mudo espaço interplanetário.
– Entenda-me bem, eu não queria... – murmurei. – Com todas
as forças...
Era verdade: eu, o eu verdadeiro não queria. Mesmo assim,
com que palavras dizer a ela? Como explicar-lhe que o ferro não
queria, mas as leis eram precisas e imutáveis.
O levantou o rosto do travesseiro e, sem abrir os olhos, disse:
– Vá embora – mas devido às lágrimas saiu um “vábora” e, por
alguma razão, esse detalhe ridículo trespassou-me.
Completamente varado de frio, entorpecido, saí para o
corredor. Lá, atrás do vidro havia uma baforada suave de névoa,
que mal se distinguia. Mas à noite, provavelmente, ela descerá de
novo e envolverá tudo. O que acontecerá durante a noite?
Sem uma palavra, O deslizou por mim em direção ao elevador,
a porta bateu.
– Um minuto – gritei. Fiquei assustado.
Mas o elevador já zumbia para baixo, mais baixo...
Ela havia me tirado R.
Ela havia me tirado O.
E ainda assim, ainda assim...
15ª ANOTAÇÃO

Resumo:

A Campânula. O mar
espelhado. Queimarei
eternamente.
Eu acabara de entrar no hangar onde a “Integral” era
construída, quando o Segundo Construtor veio ao meu encontro.
Seu rosto era o de sempre: redondo, branco como um prato de
louça, e, como se nesse prato levasse algo insuportavelmente
delicioso, ele disse:
– Já que você fez o favor de ficar doente, ontem, sem você, sem
a sua autoridade, pode-se dizer que ocorreu um incidente.
– Um incidente?
– Pois sim! A campainha soou, terminamos o trabalho e
começávamos a sair do hangar e imagine: o encarregado prendeu
uma pessoa sem número. Não consigo entender como ele se
infiltrou aqui. Levaram-no para a Sala de Operações. Lá, meu
caro, arrancarão dele a causa e o motivo... (Deu um sorriso
delicioso...)
Na Sala de Operações trabalham os nossos melhores e mais
experientes médicos sob a orientação direta do próprio Benfeitor.
Nela existem diferentes instrumentos, e o mais importante é a
famosa Campânula. Na realidade, ela funciona como o antigo
experimento escolar no qual um rato era colocado sob uma
redoma de vidro; o ar dentro dela é bombeado para fora,
diminuindo cada vez mais... e assim por diante. Mas, é claro, a
Campânula é um aparato consideravelmente mais completo, com
o emprego de diferentes gases, e, por isso mesmo, naturalmente,
não é mais o caso de escarnecer animais pequenos e indefesos,
mas tem um propósito elevado: a preocupação com a segurança
do Estado Único; em outras palavras, a felicidade de milhões. Por
volta de cinco séculos atrás, quando o trabalho na Sala de
Operações apenas se iniciava, apareceram alguns tolos que a
compararam com a antiga Inquisição, mas na verdade isso é tão
absurdo como colocar no mesmo patamar um cirurgião que
realiza uma traqueostomia e um salteador: talvez ambos tenham
a mesma faca nas mãos e façam a mesma coisa, cortar a garganta
de uma pessoa viva. Entretanto, um é benfeitor, o outro, um
criminoso; um é o sinal de +, o outro, o de −...
Tudo isso é muito claro, tudo isso num segundo, numa volta da
máquina da lógica. Mas depois, no instante em que os dentes se
engancharam no sinal de menos, outra coisa me veio à mente: o
chaveiro ainda balançando no armário. Evidentemente, a porta
havia acabado de bater, mas ela, I, não estava lá: havia
desaparecido. A máquina não pôde resolver isso de maneira
nenhuma. Um sonho? Mas ainda sinto uma doce e
incompreensível dor no ombro direito – I se apertara contra ele ao
meu lado, em meio à névoa. “Tu gostas da névoa?” Sim, a névoa...
gosto de tudo, tudo era suave, novo, surpreendente, tudo estava
bem...
– Tudo está bem – eu disse em voz alta.
– Bem? – arregalou os olhos arredondados como louça. – Ou
melhor, o que há de bom nisso tudo? Se esse sem número foi
capaz de... quer dizer que eles estão por toda parte, ao nosso
redor, o tempo todo, eles estão aqui, perto da “Integral”, eles...
– Mas quem são eles?
– Eu sei lá quem são eles! Mas eu os sinto, entende? O tempo
todo.
– Você ouviu falar que inventaram uma operação para extirpar
a imaginação? (De fato, há alguns dias ouvi algo parecido.)
– Sim, eu sei. Mas o que tem isso agora?
– Ora, se eu estivesse no seu lugar, pediria que fizessem essa
operação em mim.
No prato, claramente se desenhou algo ácido-cítrico. Meu
caro, ele se ofendeu com a menor insinuação de que poderia ter
imaginação... Pensando bem, na semana passada, provavelmente
eu também teria ficado ofendido. Mas agora, agora não: porque
sei que tenho uma, que estou doente. E também sei que não quero
me recuperar. Não quero me recuperar e ponto-final. Subimos os
degraus de vidro. Tudo sob nossos pés era claro como o dia...
Vocês, leitores destas notas, quem quer que sejam, o sol está
sobre vocês. E se algum dia também estiveram tão doentes como
estou agora, sabem como é e como pode ser o sol pela manhã.
Sabem que é rosado, transparente, morno e dourado. O próprio
ar é um pouco rosado, tudo está impregnado do delicado sangue
solar. Tudo está vivo: as pedras estão vivas e macias; o ferro está
vivo e quente; as pessoas estão vivas e cada uma delas sorri. Pode
acontecer de em uma hora tudo isso desaparecer, em uma hora o
sangue rosado se esvair, mas por enquanto estamos vivos. E vejo
que algo pulsa e transborda nos fluidos vítreos da “Integral”; vejo
a “Integral” pensando no seu grandioso e terrível futuro, no fardo
pesado da felicidade inevitável que ela levará para cima, a vocês
desconhecidos, a vocês que a buscam eternamente e nunca a
encontram. Vocês a encontrarão e serão felizes, vocês são
obrigados a ser felizes e já não precisam esperar muito tempo.
A fuselagem da “Integral” está quase pronta: uma elegante e
alongada elipsoide feita com o nosso vidro, eterno como o ouro e
flexível como o aço. Por dentro, vi que fixavam ao corpo de vidro
as costelas transversais – as cavernas – e as longitudinais – as
longarinas; na popa colocaram o alicerce para o gigantesco motor
do foguete. A cada três segundos, a cauda potente da “Integral”
lançará chamas e gases no espaço – e voará, voará como um ígneo
Tamerlão da felicidade...
Vi as pessoas lá embaixo, em movimentos cadenciados e
rápidos, no ritmo Taylor, curvando-se e desencurvando-se,
girando como alavancas de uma máquina enorme. Em suas mãos
brilhavam canos: cortavam com fogo, soldavam as paredes de
vidro, as esquadrias, as bordas e os suportes. Vi deslizar devagar
pelos trilhos de vidro guindastes monstruosos de vidro
transparente, e, como se fossem pessoas, viravam-se obedientes,
inclinavam-se e introduziam a carga nas entranhas da “Integral”.
Formavam uma unidade: humanizadas, pessoas perfeitas. Era a
música mais elevada, de beleza formidável, harmonia... Apressei-
me para baixo, para eles, para estar com eles!
E lá estava eu, ombro a ombro, fundido neles, tomado pela
cadência do aço... Movimentos ritmados: bochechas coradas,
arredondadas e firmes; frontes espelhadas, não obscurecidas
pela loucura do pensamento. Eu nadava por esse mar espelhado.
Relaxei.
De repente, alguém se virou e disse com tranquilidade para
mim:
– E então, você está melhor hoje?
– Como assim, melhor?
– Bem, você não esteve aqui ontem. Pensamos que alguma
coisa perigosa havia... – sua testa resplandecia, seu sorriso era
infantil e inocente.
O sangue invadiu meu rosto. Eu não podia, não podia mentir
para aqueles olhos. Fiquei em silêncio, afundei...
Acima, o rosto que irradiava a brancura redonda de um prato
de louça meteu-se na escotilha.
– Ei, D-503! Venha até aqui! Neste ponto, veja, a estrutura
ficou rígida com os suportes, e as junções criaram uma tensão no
quadro.
Sem ouvir até o fim, subi correndo ao encontro dele. Escapei
vergonhosamente. Não tinha forças para levantar o olhar, os
olhos se turvaram por causa dos degraus brilhantes de vidro sob
meus pés, e a cada degrau tudo parecia mais desesperador: não
havia lugar para um criminoso envenenado como eu. Nunca mais
farei parte do preciso ritmo mecânico, nem nadarei no mar
espelhado e tranquilo. Queimarei eternamente, revolvendo-me e
procurando um canto onde possa esconder meus olhos
eternamente, até que por fim encontre forças para atravessar...
E uma faísca de gelo me atravessou: não me importo comigo,
tanto faz, mas acontecerá o mesmo com ela também, e...
Passei com dificuldade pela escotilha, cheguei à plataforma e
parei: não sabia para onde ir naquele momento, não sabia por que
viera até ali. Olhei para cima. Lá se erguia um sol exaurido e opaco
de meio-dia. Embaixo estava a “Integral”, cinza-vítrea, sem vida.
O sangue rosado se esvaíra, estava claro que tudo isso havia sido
apenas minha imaginação, que tudo permanecia como antes e, ao
mesmo tempo, era evidente...
– O que há com você, 503, está surdo? Estou chamando,
chamando... O que há com você? – Era o Segundo Construtor, que
gritava diretamente no meu ouvido: devia estar gritando comigo
há um bom tempo.
O que há comigo? Perdi o leme. O motor ronca ao máximo, o
aero treme e se move rapidamente, mas sem direção, e não sei
para onde estou indo: para baixo, para estatelar-me no chão, ou
para cima, em direção ao sol, ao fogo...
16ª ANOTAÇÃO

Resumo:

Amarelo. Uma sombra


bidimensional. Uma alma
incurável.
Faz alguns dias que não escrevo minhas anotações. Não sei
quantos: todos os dias são iguais. Todos os dias têm a mesma cor
amarela, como areia seca e incandescente, nem uma nesga de
sombra, nem uma gota de água – apenas essa areia amarela e sem
fim. Não posso ficar sem ela, mas desde aquele dia em que ela
desapareceu inexplicavelmente na Casa Antiga...
Desde então, eu a vi uma única vez durante o passeio. Dois,
três, quatro dias atrás, não sei: todos os dias são iguais. Ela
passou por mim como um relâmpago e por um segundo
preencheu este meu mundo amarelo e vazio. O duplamente
encurvado S estava de mãos dadas com ela, ombro a ombro.
Também estavam ali o doutor fino como uma folha de papel e uma
quarta pessoa – só me lembro de seus dedos: eles saíam das
mangas do unif como feixes de luz, eram excepcionalmente finos,
brancos e longos. I levantou a mão e acenou para mim; vi, por
cima de uma cabeça, ela se inclinar para aquele com dedos de luz.
Pareceu-me ter ouvido a palavra “Integral”: todos os quatro se
voltaram para mim e então se perderam no céu azul cinzento. De
novo o caminho amarelo e incandescente.
Naquela noite ela tinha um talão cor-de-rosa para mim. Fiquei
em pé diante do numerador, com delicadeza e ódio implorei-lhe
para que estalasse, para que rapidamente surgisse no painel
branco: I-330. Uma porta bateu, saíram do elevador números
pálidos, altos, rosados, morenos; cortinas ao redor se fecharam.
Ela não estava ali. Não viera.
Pode ser que neste exato momento, precisamente às 22h,
enquanto escrevo isto, ela esteja de olhos fechados, apoiada nos
ombros de alguém e também lhe dizendo “Você gosta...?”. Para
quem? Quem é ele? Aquele de dedos luminosos, ou R, de lábios
grossos e esguichadores? Ou S?
S... Por que todos os dias escuto atrás de mim seus passos
chapinhantes, como se andasse sobre uma poça de água? Por que
todos os dias ele está atrás de mim como uma sombra? À frente,
ao lado e atrás, uma sombra bidimensional cinza-azulada: as
pessoas passam através dela, pisam-na, mas, ainda assim, ela
está aqui, inabalável, ao meu lado, presa a mim com um cordão
umbilical invisível. É possível que esse cordão umbilical seja ela, I?
Não sei. Ou talvez eles, os Guardiões, já saibam que eu...
E se lhes dissessem: a sua sombra observa você, observa o
tempo todo. Compreende? E, de repente, você tem uma sensação
estranha: seus braços lhe são estranhos, incomodam, e você se
surpreende com o ridículo que é balançá-los fora do compasso
com os seus próprios passos. Ou, de repente, você sente que
precisa olhar para trás, mas não consegue olhar de jeito nenhum;
o pescoço está imobilizado. E eu corro, corro a toda velocidade e
nas costas sinto minha sombra ir também, mais rápido, e dela não
há como fugir, não há...
Estou em meu quarto, finalmente sozinho. Mas há outra coisa:
o telefone. Novamente pego o fone: “Sim, I-330, por favor”. E, de
novo pelo fone, ouço um ruído leve, alguns passos no corredor,
passaram pela porta do quarto dela, e silêncio... Largo o telefone –
não aguento, não aguento mais! Vou até ela.
Isso aconteceu ontem. Corri até lá e durante uma hora inteira,
das 16 às 17h, vaguei ao redor do prédio em que ela mora.
Números passavam por mim em filas. Milhares de pés choviam no
mesmo compasso, um Leviatã com milhões de pés balançando-se,
flutuando ao meu redor. E eu estava só, açoitado por uma
tempestade numa ilha deserta, e procurava, procurava com meus
olhos por entre as ondas cinza-azuladas.
Agora, vindo de algum lugar: sobrancelhas em ângulo agudo e
zombeteiras, com os cantos levantados até as têmporas, os olhos
escuros – ali dentro ardia uma lareira, sombras se moviam. Vou
diretamente para lá, para dentro, e digo a ela “tu” (certamente
“tu”): “Você já sabe que eu não posso viver sem você. Por que tudo
isso?”.
Mas ela ficou calada. De repente, ouvi o silêncio, de repente
ouvi a Fábrica Musical e compreendi que já passava das 17h, e
todos se foram há muito tempo, eu estava só, estava atrasado. Ao
redor havia um deserto de vidro inundado pela luz amarela do sol.
Vi como se fosse na água, na superfície lisa do vidro, paredes
brilhantes suspensas de cabeça para baixo, assim como eu
também estava de cabeça para baixo, com um ar zombeteiro,
pendurado pelos pés.
Precisava me apressar, ir imediatamente para o
Departamento de Medicina conseguir um atestado por doença,
caso contrário eles me pegariam... Talvez seja melhor. Ficar
parado aqui e esperar tranquilamente até que eles me vejam e me
levem para a Sala de Operações – e tudo terminará
imediatamente, tudo será redimido imediatamente.
Um sussurro suave, e diante de mim uma sombra duplamente
encurvada. Sem olhar, senti duas brocas de aço cinza
rapidamente se atarraxarem em mim. Sorri com todas as forças e
disse algo que precisava dizer:
– Eu... Eu preciso ir ao Departamento de Medicina.
– Qual é o problema? Por que você está aí parado?
De maneira absurda, de cabeça para baixo, pendurado pelos
pés, fiquei em silêncio, queimando de vergonha.
– Venha comigo – S disse asperamente.
Segui-o obediente, agitando os braços que me eram estranhos
e inúteis. Não consegui levantar os olhos, caminhava o tempo
todo num mundo selvagem, virado de cabeça para baixo: havia
máquinas de algum tipo, as bases por cima, pessoas com os pés
grudados no teto como antípodas, e, mais abaixo, o céu
aprisionado no vidro grosso do pavimento. Lembro-me de que o
que mais me ofendeu foi ver pela última vez na vida tudo dessa
maneira: irreal, de cabeça para baixo. Mas não consegui levantar
os olhos.
Paramos. Havia degraus diante de mim. Mais um passo e eu
veria: figuras em brancos aventais médicos, uma enorme
Campânula muda...
Com esforço, num movimento espiralado, finalmente
despreguei os olhos do vidro sob meus pés e, de repente, na
minha frente brotaram as letras douradas “Médico”... Por que ele
me trouxe até aqui e não me levou à “Sala de Operações”? Por que
ele se compadeceu de mim? Mas naquele momento eu nem
pensava nisso: subi os degraus num salto, bati a porta com força
atrás de mim e suspirei. Era como se eu não respirasse desde a
manhã, como se meu coração não batesse, e só agora suspirasse
pela primeira vez, só agora se abrisse uma eclusa no meu peito...
Havia dois deles: um era baixinho, com as pernas atarracadas,
os olhos pareciam erguer os pacientes, como chifres; o outro era
muito magro, tinha lábios brilhantes de tesoura, nariz de lâmina...
Era aquele mesmo.
Corri em sua direção, direto na lâmina, como se fosse
conhecido. Falei sobre a insônia, os sonhos, as sombras, o mundo
amarelo. Os lábios de tesoura brilharam e sorriram.
– É muito ruim esse seu problema! Pelo visto você desenvolveu
uma alma.
Uma alma? Essa é uma palavra estranha, muito antiga, há
muito tempo esquecida. Às vezes, falávamos “alma gêmea”, “alma
fria”, “desalmado”, mas “alma”...
– Isso... é muito perigoso – balbuciei.
– É incurável – as tesouras cortaram.
– Mas... qual é exatamente a essência disso? Eu nem... nem
posso imaginar.
– Veja... como explicar-lhe... Você é matemático?
– Sim.
– Então, por exemplo: temos um plano, uma superfície como
este espelho. E nessa superfície estamos você e eu – veja – e
estamos apertando os olhos por causa do sol; temos também uma
faísca elétrica azul dentro daquele tubo, e ali a sombra rápida do
aero. Apenas nessa superfície e só por um segundo. Mas imagine
que alguma fonte de calor fez com que, de repente, essa
superfície impermeável amolecesse, e nada mais pudesse deslizar
sobre ela. Tudo penetra seu interior, para lá, para esse mundo
refletido que olhamos com a curiosidade de crianças – e lhe
asseguro que elas não são nem um pouco tolas. O plano adquire
volume, um corpo, um mundo, e tudo isso está dentro do espelho,
está dentro de você: o sol, o turbilhão da hélice do aero, seus
lábios trêmulos e os de mais alguém. Entenda: o espelho frio
reflete, repele, mas este absorve e deixa vestígios para sempre.
Certa vez, você viu uma ruga quase imperceptível no rosto de
alguém, e ela sempre estará com você; certa vez, você ouviu uma
gota cair no silêncio, e você a ouve agora...
– Sim, sim, exatamente... – agarrei sua mão. Ouvi gotas
pingando vagarosamente da torneira do lavatório para o silêncio.
E eu soube que lembraria para sempre. Mas ainda assim, por que
de repente uma alma? Eu nunca tive, nunca tive e de repente...
Por que ninguém mais tem, exceto eu...?
Agarrei sua mão fina com mais força ainda: eu tinha medo de
perder aquela boia salva-vidas.
– Por quê? Por que nós não temos penas ou asas, mas apenas
ossos escapulares, a base das asas? É porque já não necessitamos
de asas, temos o aero, as asas apenas atrapalhariam. Asas são
para voar, mas não temos mais para onde: aterrissamos e
encontramos o que buscávamos. Não é verdade?
Assenti com a cabeça, confuso. Ele olhou para mim, riu com
sarcasmo de modo lancinante. Ao ouvir isso, o outro, pisando
forte com as pernas atarracadas, saiu de seu escritório, ergueu
com seus olhos de chifre o meu delgado doutor, e depois a mim.
– O que é isso? Como assim, alma? Uma alma, você disse? Mas
que diabo é isso? Desse jeito chegaremos logo à cólera. Eu disse a
você (com o muito delgado doutor nos chifres) – eu disse: a
imaginação de todos... é preciso... É preciso extirpar a
imaginação! Aqui cabe apenas a cirurgia, apenas a cirurgia...
Ele enfiou a custo os enormes óculos de raios x, andou
demoradamente ao meu redor examinando os ossos do meu
crânio, o meu cérebro, e anotou alguma coisa no caderninho.
– Extraordinário, curiosamente extraordinário! Escute: você
não concordaria em... conservá-lo em álcool? Seria extraordinário
para o Estado Único... Isso nos permitiria prevenir uma
epidemia... Se você, naturalmente, não tiver uma razão em
particular...
– Veja – disse o outro – o número D-503 é o construtor da
“Integral”, e estou certo de que isso perturbaria...
– Ah – resmungou ele e retornou para o seu escritório, com
suas pernas atarracadas.
Ficamos apenas nós dois. A mão suave como papel
afavelmente deitou-se sobre a minha, o rosto de perfil inclinou-se
na minha direção. Ele sussurrou:
– Digo-lhe em segredo: não é só você. Não é sem razão que meu
colega fala em epidemia. Pense um pouco, talvez você mesmo
tenha percebido algo parecido em outra pessoa, muito parecido,
muito próximo... – ele olhou fixamente para mim. Ao que ele se
referia? A quem? Será que...
– Escute... – saltei da cadeira. Mas ele começara a falar alto
sobre outra coisa:
– ... E sobre a insônia e esses seus sonhos, posso lhe dar um
conselho: caminhe mais. Por exemplo, amanhã mesmo, de manhã,
dê uma volta... nem que seja até a Casa Antiga.
Ele me perfurou novamente com os olhos, deu um sorriso fino.
E me pareceu que pude ver claramente, envolta no fino tecido
desse sorriso, uma palavra, uma letra, um nome, um nome em
particular... Ou seria de novo apenas minha imaginação?
Mal consegui esperar até que ele escrevesse meu atestado de
doença para hoje e amanhã. Uma vez mais apertei sua mão com
força, em silêncio, e corri para fora dali.
Meu coração estava leve e veloz como um aero, levando-me
cada vez mais alto. Eu sabia que amanhã teria uma alegria. Mas
qual?
17ª ANOTAÇÃO

Resumo:

Através do vidro. Morri.


Corredores.
Estou completamente desconcertado. Ontem, no mesmo
momento em que eu pensava que tudo já havia se esclarecido,
todos os X encontrados, apareceram novas incógnitas na minha
equação.
A origem das coordenadas de toda essa história, é claro, está
na Casa Antiga. Desse ponto saem os eixos X, Y e Z, que
recentemente têm edificado todo o meu mundo. Pelo eixo X
(Avenida 59) caminhei até a origem das coordenadas. Os
acontecimentos multicoloridos de ontem formavam um turbilhão
dentro de mim: as pessoas e os prédios de cabeça para baixo, as
mãos dolorosamente alheias, as tesouras brilhantes, o gotejar
sonoro do lavatório, tal como havia ocorrido uma vez. Tudo isso
rasgava minha carne, girando impetuosamente por trás da
superfície derretida pelo calor, onde se encontra a “alma”.
Para cumprir a recomendação do doutor, propositalmente não
escolhi o caminho da hipotenusa, mas sim o de dois catetos. E eis
aqui já o segundo cateto: um caminho circular ao pé do Muro
Verde. Além do Muro, do vasto oceano verde, avançava sobre mim
uma onda selvagem de veios de raízes, flores, galhos e folhas – em
pé; ela iria me engolir, e, de um homem, o mais fino dos
mecanismos, eu me transformaria em...
Mas, felizmente, entre mim e esse oceano verde e selvagem
havia o vidro do Muro. Oh, grandiosa e divina sabedoria
limitadora das paredes e barreiras! Essa talvez seja a mais
grandiosa de todas as invenções. O homem só deixou de ser uma
besta selvagem quando construiu a primeira parede. O homem só
deixou de ser um selvagem quando construímos o Muro Verde,
quando com esse Muro isolamos nossas máquinas, nosso mundo
perfeito, do insensato e repugnante mundo das árvores,
pássaros, animais...
Através do vidro, enevoado e mal iluminado, vi o focinho tolo
de uma besta de olhos amarelos, obstinadamente repetindo o
mesmo pensamento incompreensível para mim. Por um longo
tempo, olhamos um para o outro bem nos olhos, esses poços que
ligam um mundo superficial a outro suprassuperficial. E algo
fervilhou dentro de mim: “Mas se de repente ele, de olhos
amarelos, no seu ridículo monte de folhas imundas, na sua vida
incalculada, fosse mais feliz do que nós?”.
Acenei, os olhos amarelos piscaram, retrocederam e
desapareceram no meio das folhas. Pobre criatura! Que absurdo:
ele ser mais feliz do que nós! Talvez seja mais feliz do que eu, sim,
mas é porque sou apenas uma exceção, estou doente.
E eu... Eu já podia ver as paredes vermelho-escuras da Casa
Antiga, a boca amável e contraída da velha. Corri até ela a toda
velocidade:
– Ela está aqui?
A boca enrugada abriu-se devagar:
– Quem é ela mesmo?
– Ah, como quem? Bem, I, é claro... Estivemos aqui, viemos de
aero...
– Ah, sim, sim... Pois é, pois é...
Rugas em forma de raio ao redor da sua boca, raios maliciosos
dos seus olhos amarelos penetravam-me mais e mais fundo... E
finalmente:
– Muito bem... ela está aqui, chegou faz pouco tempo.
Está aqui. Vi junto aos pés da velha um arbusto prateado de
absinto (o quintal da Casa Antiga também era um museu, ele fora
cuidadosamente preservado no seu aspecto pré-histórico). Um
ramo do absinto se estendia até a mão da velha, ela o acariciou,
um raio de sol amarelo iluminou seus joelhos. Num piscar de
olhos, eu, o sol, a velha, o absinto, os olhos amarelos – éramos
apenas um, solidamente conectados por algo como veias, e por
essas veias corria o mesmo sangue, impetuoso e magnífico...
Agora tenho vergonha de escrever sobre isso, mas prometi
que estas notas seriam sinceras até o fim. Assim: inclinei-me e
beijei sua boca enrugada, suave e musgosa. A velha enxugou a
boca e pôs-se a rir...
Atravessei correndo os aposentos familiares, meio escuros e
ecoantes, e, por alguma razão, fui diretamente para o dormitório.
Assim que cheguei à porta, agarrei a maçaneta e, de repente: “E
se ela não estiver aqui sozinha?”. Parei e pus-me a escutar. Mas
apenas ouvi uma batida próxima – não em mim, mas em algum
lugar perto de mim. Era o meu coração.
Entrei. A cama larga estava feita. Um espelho. Outro espelho
na porta do armário, e no buraco da fechadura, a chave com o
antigo chaveiro. Não havia ninguém.
Chamei baixinho:
– I! Você está aqui? – E mais baixo, com os olhos fechados e
sem respirar, como se eu estivesse de joelhos diante dela: – I!
Querida!
Silêncio. Apenas a água da torneira gotejava rapidamente
dentro de uma xícara branca na pia. Não posso explicar por quê,
mas isso foi desagradável; fechei a torneira com força e saí. Ela
não estava ali: isso estava claro. Significa que estava em algum
outro “apartamento”.
Desci correndo por uma escada larga e obscura, puxei uma
porta, outra, uma terceira: trancada. Todas estavam trancadas,
exceto aquela do “nosso” apartamento, e lá não havia ninguém.
Apesar disso, voltei para lá, eu mesmo não sei por quê. Andei
devagar, com dificuldade, e, de repente, as solas dos meus pés
transformaram-se em ferro. Lembro-me claramente do
pensamento: “É um erro que a força da gravidade seja uma
constante. Em consequência, todas as minhas fórmulas...”.
Então, um estouro; uma porta bateu embaixo, alguém pisava
rapidamente na laje. Eu, sentindo-me de novo leve, mais leve do
que nunca, lancei-me em direção ao corrimão, inclinei-me para,
numa palavra, num grito, “Tu!”, gritar tudo...
Congelei: lá embaixo, introduzido no quadrado escuro da
sombra do caixilho da janela, a cabeça de S flutuava, batendo as
orelhas rosadas em forma de asas.
Como um raio: apenas uma conclusão nua, sem premissa
(ainda não sei a base da premissa): “De maneira nenhuma ele
pode me ver aqui”.
Na pontinha dos pés, colado à parede, deslizei para o andar
superior, para o apartamento destrancado.
Detive-me um segundo diante da porta. O outro subia cansado
para cá. Se pelo menos pudesse usar a porta! Supliquei à porta,
mas ela era de madeira, começou a ranger e guinchou. Passei
como uma flecha pelo verde, vermelho, pelo Buda amarelo, estava
diante do espelho da porta do armário: meu rosto estava pálido,
os olhos atentos, os lábios... Ouvi, através do rumor do meu
sangue, a porta ranger de novo... Era ele, era ele.
Agarrei a chave na porta do armário e o chaveiro balançou.
Isso me lembrou uma coisa – de novo uma instantânea conclusão
nua e sem premissa – ou mais exatamente, parcial: “Naquela vez
I...”. Abri rapidamente a porta do armário, fiquei lá dentro, na
escuridão, fechei a porta com um forte ruído. Dei um passo, o
chão oscilava sob meus pés. Devagar, suavemente, flutuei para
baixo, meus olhos escureceram. Morri.

Mais tarde, quando tive de escrever esses estranhos


acontecimentos, esquadrinhei na memória, nos livros e agora, é
claro, eu compreendo: foi um estado de morte temporária,
conhecido dos antigos e, pelo que sei, completamente
desconhecido entre nós.
Não tenho ideia de quanto tempo estive morto, provavelmente
entre cinco e dez segundos, mas só depois de algum tempo
ressuscitei e abri os olhos: estava escuro e eu sentia que descia,
descia... Estendi a mão tentando me agarrar em algo e arranhei
uma parede áspera, que rapidamente me escapou. Havia sangue
nos meus dedos. Ficou claro que tudo isso não era um jogo da
minha imaginação doente. Mas, então, o que era?
Ouvi a minha respiração entrecortada e trêmula (tenho
vergonha de reconhecer, tudo foi tão inesperado e
incompreensível). Um minuto, dois, três – descendo. Finalmente,
um golpe suave: aquilo que caía sob meus pés agora estava
imóvel. Na escuridão apalpei um tipo de maçaneta, empurrei,
uma porta se abriu, uma luz pálida. Vi atrás de mim uma pequena
plataforma quadrada se afastar rapidamente para cima. Pulei,
mas já era tarde: fui abandonado ali... onde era esse “ali” eu não
sabia.
Um corredor. Um silêncio de mil pudes[5]. Ao longo do teto
abobadado havia lâmpadas que formavam infinitos pontos
cintilantes e tremeluzentes. Parecia-se um pouco com os “tubos”
dos nossos caminhos subterrâneos, mas muito mais estreito, e
não era feito com o nosso vidro, mas de algum outro tipo de
material antigo. Passou-me pela cabeça que aquilo seria como os
subterrâneos onde se refugiavam na época da Guerra dos
Duzentos Anos... Não importa: era preciso seguir.
Acredito que caminhei por uns vinte minutos. Virei à direita,
um corredor mais amplo com lâmpadas mais brilhantes. Um
rumor confuso. Talvez fossem máquinas, talvez fossem vozes.
Não sei, só sei que eu estava perto de uma porta pesada e opaca: o
rumor vinha de lá.
Bati, mais uma vez e com força. Atrás da porta ficou silencioso.
Alguma coisa rangeu, devagar e pesada, a porta se abriu.
Não sei quem de nós dois ficou mais estupefato. Diante de mim
estava o meu doutor delgado e de nariz afilado.
– Você? Aqui? – e suas tesouras fecharam-se sonoras. E eu, era
como se eu nunca houvesse sabido uma palavra humana sequer:
fiquei calado, olhando, sem entender nada do que ele me dizia.
Certamente ele achava que eu devia ir embora dali, porque em
seguida me afastou rapidamente com seu corpo achatado de
papel até o fim do corredor, na sua parte mais iluminada, e me
empurrou pelas costas.
– Permita-me... eu queria... pensei que ela, I-330... Mas atrás de
mim...
– Fique aqui – cortou o doutor e desapareceu...
Finalmente! Finalmente ela está perto, está aqui – afinal,
importa sim onde é “aqui”. A familiar seda amarelo-açafrão, o
sorriso-dentada, os olhos de cortinas fechadas... Meus lábios,
mãos e joelhos tremiam, e na cabeça havia um pensamento tolo:
“As vibrações são sons. O tremor deveria ressoar. Por que,
então, não era audível?”.
Os olhos dela se abriram para mim, de par em par, adentrei no
interior...
– Não posso mais! Onde você estava? Por que... – não tirei os
olhos dela nem por um segundo. Eu falava como num delírio:
rápido, incoerente – Talvez eu apenas tenha pensado tudo isso.
Havia uma sombra atrás de mim... Morri dentro do armário...
Porque aquele homem... falou com as tesouras que eu tenho uma
alma... É incurável...
– Uma alma incurável! Meu pobrezinho! – I caiu na risada, e seu
riso espirrou em mim: todo o meu delírio passou, tudo brilhava,
nossas risadas ressoavam, e como... como tudo estava bem.
De um canto retornou o miraculoso, esplêndido e muito
delgado doutor.
– Bem – ele parou ao lado dela.
– Nada, nada! Depois eu conto. Ele acidentalmente... Diga que
eu volto em... uns 15 minutos...
O doutor desapareceu de um canto. Ela ficou esperando. A
porta bateu surdamente. Então, I, muito devagar e
profundamente, cravou-me uma agulha doce e pontiaguda no
coração, apertou-se contra o meu ombro, seu braço, ela inteira, e
caminhamos juntos, e juntos éramos dois em um...
Em meio à escuridão, não me lembro de onde nos desviamos.
Mas nessa escuridão, em silêncio, subimos degraus sem fim. Eu
não via, mas sabia: ela andava com os olhos fechados assim como
eu – cega, atirando a cabeça para trás, mordendo os lábios e
ouvindo a música: meu tremor quase inaudível.
Voltei a mim num dos infinitos recantos do quintal da Casa
Antiga: ao lado de uma espécie de cerca que sai da terra, costelas
nuas de pedra e dentes amarelos de uma parede em ruínas. Ela
abriu os olhos e disse: “Depois de amanhã, às 16h”. Foi embora.
Tudo isso havia realmente acontecido? Não sei. Saberei depois
de amanhã. A única evidência real: na ponta dos dedos da minha
mão direita a pele estava esfolada. Porém, hoje, na “Integral”, o
Segundo Construtor convenceu-me, como se ele mesmo houvesse
visto, que por acidente eu tocara a roda de polir com esses dedos.
E isso era tudo. Bom, é possível que seja verdade. Muito possível.
Não sei. Não sei de nada.

5. Antiga medida de peso russa, equivalente a 16,38 kg. [N. de T.]


18ª ANOTAÇÃO

Resumo:

Selvas lógicas. Feridas e


emplasto. Nunca mais.
Ontem, quando me deitei, mergulhei imediatamente nas
profundezas do sonho, como um barco naufragando, demasiado
carregado. A água verde e densa ondulando surdamente. E,
devagar, vou emergindo das profundezas para a superfície, e de
algum lugar no meio das profundezas, abro os olhos: meu quarto,
uma manhã ainda verde e gelada. No espelho da porta do armário,
uma fenda de sol atingia meus olhos. Isso me impossibilitava de
cumprir com exatidão as horas de sono estabelecidas pela Tábua
das Horas. Seria melhor abrir o armário. Mas era como se eu
estivesse preso numa teia de aranha, com uma teia nos olhos, sem
forças para levantar...
Apesar disso, levantei-me, abri a porta e, de repente, detrás da
porta espelhada, livrando-se do vestido, toda rosada, estava I. Eu
já estava tão habituado às coisas mais improváveis que, do quanto
me lembro, não me surpreendi em absoluto, nem perguntei nada:
fui rápido para o armário, bati a porta espelhada atrás de mim e,
sufocando, rapidamente e às cegas, enlacei-a com avidez. Mesmo
agora consigo ver: por uma fresta da porta, penetrou na
escuridão um intenso raio de sol, e, como um relâmpago, rompeu-
se no chão, na parede e no alto do armário. E esse fio cruel e
brilhante caiu no pescoço nu de I, jogado para trás... Aquilo foi tão
terrível que não me contive e gritei – abri os olhos mais uma vez.
Meu quarto. A manhã ainda estava verde e fria. Na porta do
armário, uma fenda de sol. Eu estava na cama. Foi um sonho. Mas
meu coração ainda bate violentamente, estremecendo, jorrando,
as pontas dos meus dedos e os joelhos doem. Sem dúvida, tudo
acontecera. Mas agora não sei o que é sonho e o que é realidade;
grandezas irracionais brotam por entre tudo o que é sólido,
habitual e tridimensional, e, ao invés de planos polidos e firmes,
alguma coisa torta, arredondada e espessa...
Ainda faltava muito para a campainha. Fiquei deitado,
pensando, e desenvolvi uma cadeia lógica e excepcionalmente
estranha.
Cada equação, cada fórmula na superfície da Terra tem uma
curva ou um corpo correspondente. Para as fórmulas irracionais,
para a minha √-1, não conhecemos seus corpos correspondentes,
nunca os vimos... Mas esse é o horror, que esses corpos invisíveis
existam. Necessariamente, sem dúvida, eles precisam existir:
porque na matemática, como numa tela, passam por nós as
sombras extravagantes e espinhosas das fórmulas irracionais.
Tanto a matemática como a morte jamais cometem erros. E se
não vemos esses corpos no nosso mundo, na superfície, quer
dizer que para eles deve haver, inevitavelmente, um mundo
inteiro e enorme sob a superfície...
Levantei num salto e, sem esperar pela campainha, pus-me a
andar depressa pelo quarto. Minha matemática, até agora a única
ilha sólida e imutável de toda a minha vida fora dos eixos, também
se rompeu, flutuava, girava. Então, o que significa essa ridícula
“alma”? Ela é tão real quanto meu unif, como minhas botas, ainda
que eu não os veja agora (estão atrás da porta espelhada do
armário)? E, se as botas não são uma doença, por que a “alma” é?
Procurei, mas não encontrei uma saída para essa selvagem
lógica fechada. Eram as mesmas desconhecidas e sinistras selvas
de fora do Muro Verde, com seres extraordinários,
incompreensíveis, que falam sem palavras. Parecia-me que eu via
através de algum tipo de vidro grosso algo infinitamente enorme
e, ao mesmo tempo, infinitamente pequeno, com a forma de um
escorpião, com o seu sinal de menos, com seu ferrão oculto e
sempre perceptível: a √-1... Mas, talvez, isso não seja outra coisa
senão a minha “alma”, semelhante ao legendário escorpião dos
antigos que voluntariamente se picava com tudo o que...
A campainha. Era dia. Tudo isso não havia morrido, não
desaparecera, apenas fora coberto pela luz do dia, como objetos
visíveis que não morrem, mas são encobertos pela escuridão
noturna. Uma neblina suave e instável em minha cabeça. Em meio
à neblina – longas mesas de vidro; cabeças esféricas mastigando
devagar, em silêncio, no mesmo compasso. De longe, através da
neblina, um metrônomo tiquetaqueava, e sob essa música
corriqueira e doce, eu, maquinalmente, junto com todo mundo,
contei até cinquenta; os cinquenta mandatórios movimentos
mastigatórios em cada mordida. E, maquinalmente, marcando o
ritmo, desci, assinei meu nome no livro de saída, como todo
mundo. Mas sentia que vivia isolado dos outros, sozinho, cercado
por um som suave que se extinguia na parede, e atrás dessa
parede estava o meu mundo...
Mas aí está: se esse mundo é só meu, por que é que ele está
nestas notas? Por que estão aqui esses “sonhos” absurdos,
armários, corredores intermináveis? Vejo com pesar que, em vez
de um lógico e rigoroso poema matemático em honra ao Estado
Único, isso está me saindo um romance fantástico de aventuras.
Ah, se isso fosse de fato apenas um romance e não minha vida
presente, cheia de X, √-1 e de quedas.
Por outro lado, talvez tudo isso seja para melhor. O mais
provável é que vocês, meus leitores desconhecidos, sejam
crianças se comparados conosco (porque nós fomos criados pelo
Estado Único, e, por conseguinte, alcançamos os mais altos
pináculos possíveis para o homem). E como crianças, sem gritar,
engolirão todo o amargor que lhes ofereço, quando isso for
cuidadosamente guarnecido com a espessa calda da aventura...

AO ANOITECER:

Conhecem a sensação de quando o aero levanta voo


rapidamente numa espiral azulada, a janela está aberta, um
turbilhão de ar assobia no seu rosto, a Terra não existe, você se
esquece da Terra, ela está tão distante de nós como Saturno,
Júpiter ou Vênus? Assim vivo agora: o torvelinho no rosto, e
esqueci-me da Terra, esqueci-me da querida e rosada O. Mas a
Terra ainda existe e cedo ou tarde precisarei aterrissar. Só fecho
os olhos perante o dia em que o nome dela está marcado na minha
Tabela Sexual – o nome O-90...
Hoje à noite a longínqua Terra me recordou da sua própria
existência.
Para seguir as recomendações do doutor (com toda
sinceridade quero restabelecer a saúde), por duas horas
perambulei pelas retilíneas e desertas avenidas de vidro. De
acordo com a Tábua das Horas, todos estavam no auditório,
exceto eu... Isso era, essencialmente, um espetáculo antinatural:
imagine um dedo humano cortado por inteiro da mão, um dedo
humano separado que, curvado, corre saltitando pela calçada de
vidro. Esse dedo sou eu. E o mais estranho e antinatural de tudo é
que o dedo não quer em absoluto ficar na mão junto com os
outros: prefere ficar sozinho, ou... Bem, já não tenho mais nada
para esconder: ou estar com ela, e de novo fundir-me com ela
através dos ombros, através dos dedos entrelaçados de nossas
mãos...
Voltei para casa ao pôr do sol. Havia cinzas crepusculares e
rosadas nas paredes de vidro, no pináculo dourado da Torre
Acumuladora, nas vozes e sorrisos dos números que passavam
por mim. Como é estranho: os raios solares se extinguem e caem
exatamente no mesmo ângulo em que surgem pela manhã,
entretanto tudo é completamente diferente, esse rosado é
diferente, é muito silencioso e um pouco amargo, mas pela manhã
será sonoro e espumante de novo.
E embaixo, no vestíbulo, Iu, a supervisora, tirou de uma pilha
de envelopes cobertos de cinzas rosadas uma carta, e me
entregou. Repito: essa é uma mulher muito respeitável, e estou
certo de que tem os melhores sentimentos para comigo.
Apesar disso, todas as vezes que vejo essas bochechas, caídas
como as guelras de um peixe, por alguma razão acho
desagradável.
Iu suspirou ao estender-me a carta com sua mão nodosa. Mas
aquele suspiro apenas fez trepidar de leve as cortinas que me
separavam do mundo: eu estava completamente projetado no
envelope que tremia em minhas mãos. Eu não tinha dúvidas: era
uma carta de I.
Então, um segundo suspiro, tão claro, duas vezes sublinhado,
que me apartei do envelope e vi: entre as guelras, através das
modestas persianas fechadas dos olhos, havia um sorriso terno,
envolvente e ofuscante. Em seguida:
– Coitado, coitado de você – um suspiro triplamente
sublinhado e indicou a carta de maneira quase imperceptível
(naturalmente, por obrigação ela sabia o conteúdo da carta).
– Não, na verdade, eu... Mas por quê?
– Não, não, meu querido: eu te conheço melhor do que você
mesmo. Tenho o observado há algum tempo e vejo que você
precisa de alguém que o pegue pela mão e o conduza pela vida,
alguém que tenha estudado a vida por muitos anos...
Senti que seu sorriso me cobrira por inteiro, um emplasto em
todas as feridas que se alastrariam por causa da carta que tremia
em minhas mãos. E, finalmente, através das pudicas persianas,
ela disse bem baixinho:
– Pensarei nisso, querido, pensarei. Fique tranquilo: se eu
sentir força o bastante, não, não, primeiro tenho que pensar um
pouco...
Grande Benfeitor! Será que estou destinado... é possível que
ela queira dizer que...
Em meus olhos – ondulações, milhares de sinusoides, a carta
saltitava. Aproximei-me mais da luz, da parede. Lá o sol se
apagava, e lá eu, o chão, minhas mãos, a carta – tudo estava
imerso naquelas cinzas, tristes e de um tom rosado e escuro.
Abri o envelope, apressei-me para ver a assinatura. Então, a
ferida – não era I, mas O... E mais uma ferida: na parte inferior da
folha, no canto direito, a tinta estava borrada, ali caíra uma gota
de... Não suporto borrões, tanto faz se são de tinta ou de... tanto
faz do quê. Sei disso: antes, uma mancha assim seria apenas
muito desagradável de se olhar. Mas por que agora essa
manchinha acinzentada, como uma nuvem, fez tudo se tornar
plúmbeo e escuro? Ou de novo seria a “alma”?
A carta:

Você sabe... ou, talvez, você não saiba – não sei escrever muito
bem –, mas não importa: saberá agora. Sem você não viverei nem
um dia, nem uma manhã, nem uma primavera. Porque R para mim
é apenas... bem, isso não é importante para você. De qualquer
maneira, sou muito agradecida a ele: se eu estivesse sozinha, sem
ele, nesses dias, não sei o que... Durante esses dias e noites vivi dez,
talvez vinte anos. Era como se meu quarto não fosse quadrangular,
mas circular e sem fim – circular, circular, e tudo era o mesmo, em
lugar nenhum havia portas.
Não posso viver sem você porque o amo. Porque vejo e
compreendo: agora você não precisa de ninguém, ninguém no
mundo além daquela, da outra, e, entenda: é exatamente porque
amo você que devo...
Ainda preciso de dois ou três dias para juntar meus pedaços de
alguma maneira para ficar pelo menos parecida com a antiga O-
90. Então farei uma solicitação para remover meu registro com
você, e você ficará melhor, ficará bem. Nunca mais nos falaremos,
desculpe-me.
O

Nunca mais. Será melhor assim: ela tem razão. Mas por que,
por que então...
19ª ANOTAÇÃO

Resumo:

O infinitesimal de terceira
ordem. Sob a fronte. Por cima
do parapeito.
Lá, no estranho corredor com as lâmpadas formando pontos
opacos e tremeluzentes... ou não, não – não foi lá: depois, quando
eu já estava com ela em algum recanto perdido no quintal da Casa
Antiga, ela disse: “Depois de amanhã”. Esse “depois de amanhã” é
hoje, e tudo ganhou asas, o dia voa, a nossa “Integral” já está
alada: terminaram a instalação do propulsor do foguete e hoje
realizaram o teste em ponto morto. Que descargas magníficas e
potentes e, para mim, cada uma delas era uma saudação em
honra a ela, à única, em honra ao dia de hoje.
Durante a primeira manobra (= explosão), havia uma dezena
de números boquiabertos embaixo da boca do motor no nosso
hangar, e deles não sobrou absolutamente nada além de algumas
migalhas e fuligem. É com orgulho que escrevo que o ritmo do
nosso trabalho não perdeu nem um segundo por causa disso.
Ninguém se abalou: nós e nossas máquinas continuamos os
movimentos, em linha reta e circulares, tudo com a mesma
precisão, como se nada houvesse acontecido. Dez números mal
são uma parte de 100 milhões da massa do Estado Único. De
acordo com um cálculo prático, é um infinitesimal de terceira
ordem. Aritmeticamente, só os antigos conheciam a compaixão
iletrada: para nós ela é cômica.
É engraçado como ontem eu pude refletir e, inclusive, escrever
nestas páginas sobre alguma lamentável manchinha acinzentada,
sobre um borrão. Isso é o mesmo que “amolecer a superfície”, que
deveria ser dura como diamante, assim como as nossas paredes
(há um provérbio antigo que diz: “o mesmo que falar com as
paredes”).
16 horas. Não fui ao passeio complementar: como eu poderia
saber se ela não teria a ideia de vir exatamente agora, quando
tudo brilha à luz do sol...
Estou praticamente sozinho no prédio. Por entre as paredes
ensolaradas, posso ver ao longe as outras habitações, à direita, à
esquerda e embaixo de mim, penduradas no ar, vazias, repetindo-
se umas nas outras como num espelho. Apenas uma tênue
sombra cinzenta deslizava devagar para cima, por uma escada
azulada delineada pelo sol como tinta nanquim. Ouço passos e
vejo-a através da porta. Sinto o sorriso-emplasto grudado em
mim – passou e foi para outra escada – para baixo...
O numerador tocou. Atirei-me para o estreito painel branco
e... e era algum número masculino desconhecido (se iniciava com
uma consoante). O elevador zumbiu, e a porta bateu. Diante de
mim, uma testa enfiada sobre os olhos de maneira torta e
desleixada, e esses olhos... tinham uma expressão muito estranha:
como se ele falasse de lá, sob a fronte, onde estavam os olhos.
– Ela lhe mandou uma carta... – sob a fronte, sob um toldo. –
Ela pede que faça sem falta tudo o que está escrito aqui.
Sob a fronte, sob o toldo – olhou ao redor. Sim, não há
ninguém, não há ninguém aqui, então me dê logo! Mais uma vez
olhou para trás, entregou-me o envelope e saiu. Eu estava
sozinho.
Não, não sozinho: dentro do envelope havia um talão cor-de-
rosa e, quase imperceptível, o cheiro dela. Era ela, ela viria, viria
me ver. Rápido, peguei a carta para, com meus próprios olhos, ler
até o fim para crer...
O quê? Não pode ser! Li mais uma vez, saltando pelas linhas:
“O talão... feche as cortinas sem falta, como se eu realmente
estivesse com você. É imprescindível que eles pensem que eu... eu
sinto muito, sinto muito...”.
Fiz a carta em pedaços. Por um segundo, no espelho, vi minhas
sobrancelhas deformadas e desgrenhadas. Peguei o talão para
fazer com ele o mesmo que fiz com a carta...
“Ela pediu que fizesse sem falta tudo como está escrito”.
Minhas mãos se enfraqueceram e se abriram. O talão caiu na
mesa. Ela é mais forte do que eu, e ao que parece farei tudo como
ela quer. Por outro lado... por outro lado, não sei: veremos, ainda
falta muito até a noite... O talão ficou na mesa.
No espelho, minhas sobrancelhas deformadas e
desgrenhadas. Por que não tenho um atestado médico para hoje?
Teria ido caminhar, caminhar sem parar ao redor de todo o Muro
Verde, e depois cair na cama, nas profundezas... Mas eu deveria ir
ao 13º auditório, deveria atarraxar-me na cadeira para não me
mover por duas horas, por duas horas... quando o que eu
precisava era gritar e bater os pés.
A palestra. É muito estranho que viesse do aparato brilhante
uma voz não metálica, como a de costume, mas suave, aveludada,
musgosa. Era uma voz feminina. Ocorreu-me que, quando viva,
ela devia ser pequena, uma velha em forma de anzolzinho,
parecida com a da Casa Antiga.
A Casa Antiga... e tudo vem de uma vez, como uma fonte, de lá
debaixo, e com todas as forças preciso atarraxar-me para não
inundar todo o auditório com um grito. As palavras suaves e
aveludadas me trespassavam, e de tudo ficou apenas isto: algo
sobre crianças, sobre a puericultura. Eu era como uma chapa
fotográfica: gravava tudo em mim com uma precisão um tanto
estranha, alheia e sem sentido, um crescente dourado, o reflexo
da luz do alto-falante; sob ele, havia uma criança – uma ilustração
viva – tentando alcançá-lo; ela enfiava na boca a barra do seu unif
microscópico; o punho apertado com força, o polegar (na
verdade, muito pequeno) dobrado para dentro, a sombra leve da
dobra no seu pulso roliço. Como uma chapa fotográfica, gravei: a
perna nua pendia sobre a extremidade, o leque cor-de-rosa
formado pelos dedos pisava no ar e estava a ponto de cair no
chão...
Então, um grito de mulher subiu ao palco e, balançando as
asas transparentes do unif, apanhou o bebê com os lábios, pelos
punhos roliços, colocou-o no centro da mesa, depois desceu do
palco. Ficou gravado em mim: a boca rosada em meia-lua, com as
pontas para baixo, os olhos azuis como pires transbordando.
Aquela era O. E eu, como se estivesse numa conferência sobre
alguma fórmula bem-proporcionada, de repente, percebi a
necessidade, a regularidade desse evento insignificante.
Ela se sentou um pouco atrás de mim, à esquerda. Dei uma
olhada ao redor; de maneira obediente, ela tirou os olhos da mesa
com o bebê e pousou-os sobre mim, dentro de mim, e de novo: ela,
eu e a mesa no palco éramos três pontos, e através deles uma
linha foi traçada – projeções de certos eventos inevitáveis e ainda
imperceptíveis.
Voltei para casa por uma rua verde, crepuscular, sob luzes
penetrantes. Ouvi: eu fazia tique-taque, como um relógio. E os
ponteiros dentro de mim ultrapassavam algum número, eu estava
prestes a fazer uma coisa da qual não poderia voltar atrás. Ela
precisa que alguém pense que ela está aqui comigo. Mas eu
preciso dela, e que me importam as suas “necessidades”. Não
quero ser as cortinas de outra pessoa. Não quero e pronto.
Atrás de mim, passos familiares, ruidosos como numa poça de
água. Não olhei para trás, já sabia que era S. Ele me seguirá até a
minha porta, depois, talvez, fique lá embaixo, na calçada, com
suas brocas perfurando para cima, para o meu quarto até que as
cortinas se fechem, escondendo o crime de alguém...
Ele, meu Anjo da Guarda, colocou um ponto final nisso. Decidi-
me: não farei. Decidi-me.
Quando subi até a minha habitação e acendi o interruptor, não
pude acreditar nos meus olhos: O estava de pé ao lado da minha
mesa. Ou, mais exatamente, estava pendurada, como um vestido
vazio após ser tirado. Sob o vestido, parecia que lhe faltava uma
mola, seus braços, suas pernas estavam sem molas, sua voz
estava suspensa, sem molas.
– Eu... queria falar sobre minha carta. Você a recebeu? Sim?
Preciso saber a resposta, preciso hoje mesmo.
Dei de ombros. Com prazer, como se ela fosse culpada de tudo,
olhei para os seus olhos azuis, cheios até a borda e protelei a
resposta. E com prazer, espetando-a com cada palavra, disse:
– Resposta? Então... Você está certa. Sem dúvida. Sobre tudo.
– Isso significa... (havia um minúsculo tremor cortando seu
sorriso, mas eu podia vê-lo). Então, muito bem! Agora, agora
mesmo vou embora.
E ela lá, ficou pendurada sobre a mesa. Olhos, braços e pernas
abatidos. Na mesa ainda estava o amarrotado talão cor-de-rosa
dela. Rapidamente abri este meu manuscrito – “Nós” – e suas
páginas cobriram o talão (talvez fosse mais por mim do que por
O).
– Veja, estou escrevendo tudo. Já tenho 150 páginas... Está
saindo algo tão inesperado...
Uma voz, uma sombra de voz:
– Mas lembre-se... quando você estava na página 22, eu... eu
derramei... e você...
Lágrimas apressadas e silenciosas transbordavam pelos pires
azuis, escorriam pelas bochechas, palavras apressadas, pela
borda:
– Não posso, agora vou embora... eu nunca mais... e que seja
assim. A única coisa que quero... Preciso de um bebê seu... Dê-me
um bebê e eu vou embora, vou embora!
Vi que ela tremia inteira debaixo do unif e senti que eu
também... Coloquei as mãos para trás, sorri:
– O quê? Você deseja a Máquina do Benfeitor?
E despejou em mim estas palavras, assim como uma torrente
rompendo uma represa:
– Não importa! Mas de verdade eu sentirei, eu o sentirei
dentro de mim. E mesmo que em alguns dias... Ver, apenas uma
vez ver as suas dobrinhas nos pulsos, assim como lá, como na
mesa. Apenas por um dia!
Três pontos: ela, eu e aquele com o punho roliço com
dobrinhas na mesa...

Uma vez, na infância, lembro que fomos enviados à Torre


Acumuladora. No terraço do último andar, inclinei-me sobre o
parapeito de vidro; embaixo, pontinhos de pessoas. Meu coração
batia docemente: “E se?”. Naquele momento, eu apenas me
agarrei com mais força ao corrimão. Agora, eu saltava no vazio.
– É isso que você quer? Sabendo absolutamente que...
Seus olhos estavam fechados, como se o sol batesse
diretamente no seu rosto. Um sorriso radiante e úmido.
– Sim, sim! Eu quero!
Arranquei o talão cor-de-rosa de debaixo do manuscrito e
corri para baixo, para a plantonista. O agarrou-me pelo braço,
gritou algo que eu só compreendi depois, quando voltei.
Ela estava sentada na beirada da cama, as mãos apertadas
com força sobre os joelhos.
– Esse... esse é o talão dela?
– Isso pouco importa. Bem, sim, é dela.
Algo estalou. O mais provável é que O se movera. Ela ficou
sentada com as mãos nos joelhos, em silêncio.
– Então? Se apresse... – Peguei-a pelos braços com
brutalidade, e uma mancha vermelha (amanhã seriam equimoses)
apareceu em seu pulso, nas infantis dobrinhas rechonchudas.
Aquela foi a última coisa. Depois apaguei as luzes, os
pensamentos se apagaram, escuridão, faíscas, pulei sobre o
parapeito e fui caindo...
20ª ANOTAÇÃO

Resumo:

Descarga. O material das


ideias. O penhasco zero.
Uma descarga, essa é a definição mais apropriada. Agora vejo
que aquilo fora exatamente como uma descarga elétrica. Nos
últimos dias meu pulso ficou mais seco, mais rápido, mais intenso;
os polos, mais próximos. Havia uma crepitação seca. Um
milímetro a mais: uma explosão, depois silêncio.
Dentro de mim agora está tudo quieto e vazio, como quando
todos saem do prédio e você fica sozinho deitado na cama,
doente, escutando claramente o distinto e metálico tamborilar
dos pensamentos.
Talvez essa “descarga” finalmente tenha me curado da minha
“alma” torturada, e agora volto a ser como todos nós. Ao menos,
vejo mentalmente, sem toda aquela dor, O nos degraus do cubo,
vejo-a na Campânula. E se na Sala de Operações ela mencionar
meu nome, não importa: no último momento, com devoção e
gratidão, beijarei a mão castigadora do Benfeitor. Em relação ao
Estado Único, tenho direito de receber o castigo, e esse é um
direito do qual não abro mão. Nenhum de nós, os números, pode
ou se atreve a abdicar desse nosso único e, portanto, valioso
direito.
Os pensamentos martelavam silenciosamente, metálicos e
precisos; um aero desconhecido carregou-me para as alturas
azuis das minhas abstrações favoritas. E aqui vejo – no ar limpo e
rarefeito – como numa câmara pneumática, com um suave
estalido, meu raciocínio “sobre a eficácia do direito” estourar. E
vejo claramente que isso é apenas um resquício do absurdo
preconceito dos antigos sobre o valor do “direito”.
Existem ideias de barro, existem ideias esculpidas em ouro
para sempre ou no nosso precioso vidro. E para determinar o
material das ideias é preciso apenas pingar uma gota de um ácido
muito forte. Os antigos também conheciam um desses ácidos:
reductio ad finem. Aparentemente, é assim que o chamavam. Mas
eles temiam esse veneno e preferiam ver qualquer coisa, ainda
que fosse de barro, um céu de brinquedo, do que um nada azul.
Nós, graças ao Benfeitor, somos adultos e não precisamos de
brinquedos.
Bem, então, pinguemos uma gota de ácido na ideia de
“direito”. Até os antigos, sobretudo os mais adultos, sabiam: a
fonte do direito é o poder, o direito é uma função do poder.
Tomemos como exemplo dois pratos numa balança! Num, um
grama, no outro, uma tonelada; no primeiro, “eu”, no segundo,
“nós”, o Estado Único. Não está claro? Permitir que o “eu” possa
ter os mesmos “direitos” em relação ao Estado é absolutamente a
mesma coisa que permitir que um grama seja equivalente a uma
tonelada. Esta é a distribuição: uma tonelada tem direitos, um
grama tem deveres. Esse é o caminho natural que conduz do nada
à grandeza: esquecer que você é um grama e sentir-se a
milionésima parte de uma tonelada...
Vocês, voluptuosos e corados venusianos, e vocês, uranianos
cobertos de fuligem como ferreiros, ouço seu descontentamento
no meu próprio silêncio azul. Mas compreendam bem: toda
grandeza é simples; compreendam bem: apenas as quatro regras
da aritmética são eternas e imutáveis. E só a moral construída sob
essas quatro regras continuará sendo grandiosa, imutável e
eterna. Essa é a sabedoria definitiva, esse é o vértice da pirâmide
que as pessoas, vermelhas de suor, debatendo-se e agonizando,
escalaram por séculos. E desse vértice olhamos para o fundo,
onde vermes insignificantes ainda fervilham sobre algo que
sobreviveu em nós dos nossos antepassados selvagens. Desse
vértice, eles parecem iguais: uma mãe ilegal, O, um assassino,
aquele louco que ousou jogar seus versos no Estado Único.
Também o julgamento é igual para eles: a morte prematura. Essa
é a justiça mais divina, com que sonharam os homens das
cavernas, iluminados pelos inocentes e rosados raios do
amanhecer da história: o “Deus” deles castigava uma blasfêmia
contra a Santa Igreja da mesma maneira que castigava um
assassinato.
Vocês, uranianos, severos e escuros como os antigos
espanhóis (que sabiamente fizeram queimar os inimigos nas
fogueiras), vocês ficaram em silêncio. Acredito que concordam
comigo. Mas eu ouço: os rosados venusianos falam algo sobre
torturas, castigos, sobre o retorno aos tempos bárbaros. Meus
caros, tenho pena de vocês, pois não são capazes de pensar
filosófica e matematicamente.
A história da humanidade ascende em círculos, como um aero.
Círculos diferentes: dourados, ensanguentados, mas todos
igualmente divididos em 360 graus. Do zero, prossegue: 10, 20,
200, 360 graus e volta para o zero. Sim, nós retornamos para o
zero, sim. Mas para a minha mente matemática está claro que
esse zero é completamente diferente, é novo. Nós partimos do
zero pela direita e retornamos a ele pela esquerda, e então: no
lugar de um zero positivo, temos um zero negativo.
Compreendem?
Vejo esse zero como algo silencioso, gigantesco, estreito e
pontiagudo como uma faca, um penhasco. Na ferocidade, na
escuridão hirsuta, prendendo a respiração, soltamo-nos das
amarras do lado negro, noturno, do Zero Abismal. Por séculos,
como Colombos, navegamos e navegamos, demos a volta ao
mundo e, finalmente, hurra! Uma salva, todos para o mastro:
diante de nós está um lado diferente e até então desconhecido do
Penhasco Zero, iluminado pela aurora boreal do Estado Único,
um bloco azul-claro, faíscas do arco-íris, o sol, centenas de sóis,
bilhões de arco-íris...
Por essa razão, estamos separados do outro lado do Penhasco
Zero apenas pela espessura de uma faca. A faca é a mais sólida,
mais imortal e mais genial criação humana. A faca tem sido a
guilhotina, um meio universal de desfazer todos os nós, e pelo fio
da faca corre o caminho dos paradoxos, o único caminho digno e
ousado da razão...
21ª ANOTAÇÃO

Resumo:

O dever do autor. O gelo se


dilata. O amor mais difícil.
Ontem foi o dia dela, mas de novo ela não apareceu. Recebi
novamente um bilhete incompreensível que não esclarecia nada.
Mas estou calmo, totalmente calmo. Se eu procedo da maneira
que está determinada no bilhete, se levo seu talão à plantonista e,
em seguida, fecho as cortinas e fico sozinho em meu quarto, isso,
sem dúvida não é porque eu não tenha forças para ir contra os
seus desejos. É ridículo! Claro que não. Em primeiro lugar, é
simplesmente porque as cortinas me separam daqueles sorrisos
emplastos-curativos, e posso escrever estas páginas com
tranquilidade. Em segundo lugar, sem ela, sem I, tenho medo de
perder aquela que talvez seja a única chave para desvendar todas
as incógnitas (a história do armário, minha morte temporária e
assim por diante). E agora me sinto no dever de desvendá-las pelo
simples fato de ser eu o autor destas notas. Sem mencionar que,
em geral, o desconhecido é organicamente hostil ao homem, e o
homo sapiens só é um homem, no sentido amplo dessa palavra,
quando sua gramática não contém absolutamente nenhum ponto
de interrogação, mas apenas pontos de exclamação, vírgulas e
pontos-finais.
Então, guiado, como me parece, justamente pelo meu dever de
autor, hoje às 16 horas peguei o aero e dirigi-me de novo para a
Casa Antiga. Havia um vento forte e contrário. O aero abriu
caminho com dificuldade pelo ar denso, ramos transparentes
assobiavam e açoitavam. A cidade abaixo parecia feita de blocos
de gelo azul-claros. De repente – uma nuvem, uma sombra rápida
e oblíqua, o gelo tornou-se cor de chumbo e se dilatou como na
primavera, quando, na margem, você espera: tudo rebenta, jorra,
põe-se em movimento. Porém, minuto após minuto, o gelo
continua firme, e você mesmo se dilata, seu coração bate
desassossegado, mais rápido (pensando bem, por que estou
escrevendo sobre isso e de onde vêm essas estranhas sensações?
Porque, de fato, não existe tal quebra-gelo capaz de quebrar o
cristal mais transparente e resistente da nossa vida...).
Não havia ninguém na entrada da Casa Antiga. Dei a volta e vi
a velha porteira junto ao Muro Verde: ela apoiava a mão na testa
como uma viseira, olhava para cima. Sobre o Muro havia alguns
pássaros formando um triângulo negro e pontiagudo: grasnando,
lançavam-se com o peito ao ataque contra a sólida barreira de
ondas elétricas. Recuavam e de novo sobrevoavam o Muro.
Vi, em seu rosto escuro, enrugado e contraído, sombras
rápidas e oblíquas – uma rápida olhadela na minha direção.
– Ninguém, ninguém, não há ninguém! Sim! Não tem por que ir
lá. Sim...
Como, não há por quê? E por que esse estranho modo de me
considerar apenas a sombra de alguém? Talvez você e todos os
demais sejam a minha sombra. Acaso eu não povoei estas
páginas, que há pouco eram desertos brancos e quadrados, com
vocês? Sem mim, vocês seriam vistos por todos aqueles a quem
me dirijo pelas estreitas veredas destas linhas?
Naturalmente, eu não disse nada disso para ela. Por
experiência própria, sei que a coisa mais dolorosa é despertar
numa pessoa a dúvida de que ela é uma realidade tridimensional,
e não alguma outra realidade. Apenas a adverti de que sua tarefa
era abrir a porta, e ela então me deixou entrar no quintal.
Vazio. Silêncio. O vento soprava atrás das paredes, ao longe,
como naquele dia, quando, ombro a ombro, dois em um,
emergimos dos corredores lá debaixo, se é que isso realmente
aconteceu. Caminhei sob alguns arcos de pedra, onde meus
passos ecoavam pelas abóbadas úmidas e caíam atrás de mim,
como se o tempo todo outra pessoa seguisse meus passos.
Paredes amarelas com tijolos vermelhos e granulosos me
observavam por entre as lentes das janelas escuras e quadradas.
Observavam-me abrindo as portas sonoras dos barracões,
olhando pelos cantos, becos sem saída, vielas. Uma portinhola na
cerca conduzia a um espaço vazio, onde havia um monumento da
Guerra dos Duzentos Anos: da terra saíam pedras desnudas
como uma costela, paredes de dentes amarelos como uma
mandíbula, um fogão antigo com tubos verticais, um navio
petrificado para sempre entre as ondas de pedras amarelas e
tijolos vermelhos.
Parecia-me que eu já havia visto alguma vez aqueles mesmos
dentes amarelos, mas de maneira vaga, como que vindos das
profundezas, entre a densidade da água. Comecei a procurar. Caí
num buraco, tropecei em pedras, garras enferrujadas me
seguraram pelo unif, gotas de suor muito salgadas escorriam pela
minha testa, caíam nos meus olhos...
Não estava em lugar nenhum! Não pude encontrar em lugar
nenhum aquela saída lá debaixo, dos corredores, ela não existia.
Por outro lado, talvez fosse melhor assim: o mais provável é que
tudo isso tenha sido mais um de meus “sonhos” sem sentido.
Cansado, coberto de pó e teias de aranha, já tinha aberto a
portinhola para retornar ao pátio principal. De repente, um
sussurro vindo detrás de mim, passos chapinhando, e diante de
mim as orelhas rosadas em forma de asas, o sorriso duplamente
encurvado de S.
Ele apertou os olhos, parafusando-me com suas brocas e
perguntou:
– Dando um passeio?
Fiquei em silêncio. Minhas mãos me incomodavam.
– Então, pois agora já se sente melhor?
– Sim, obrigado. Acho que estou voltando ao normal.
Ele me soltou, levantou os olhos. Atirou a cabeça para trás, e
eu notei pela primeira vez o seu pomo de Adão.
Acima, não muito alto, a uns 50 metros, os aeros zumbiam.
Pelo voo vagaroso e baixo, pelas negras trombas dos tubos de
observação voltados para o solo baixo, eu soube que eram
aparatos dos Guardiões. Mas não eram nem dois, nem três, como
de costume, mas de dez a doze deles (infelizmente tenho que me
limitar a dar uma cifra aproximada).
– Por que tantos deles hoje? – tive a ousadia de perguntar.
– Por quê? Hum... Um médico de verdade começa a tratar uma
pessoa quando ela ainda está saudável, alguém que ainda ficará
doente, amanhã, depois de amanhã, em uma semana. É apenas
profilaxia!
Ele acenou com a cabeça, saiu chapinhando pelas lajes de
pedra do pátio. Depois se virou e, por cima do ombro:
– Tenha cuidado!
Eu estava sozinho. Silêncio. Vazio. Ao longe, sobre o Muro
Verde, os pássaros e o vento se agitavam. O que ele quis dizer com
isso?
O aero rapidamente deslizava pela corrente. As sombras
suaves e pesadas das nuvens, abaixo as cúpulas azuis, os cubos
vítreos de gelo tornavam-se cor de chumbo, dilatavam-se...

AO ANOITECER

Abri meu manuscrito para anotar nestas páginas, como me


parece, algumas ideias úteis (para vocês, leitores) sobre o grande
Dia da Unanimidade, que já está próximo. E percebi: não posso
escrever agora. Durante todo o tempo escutei atentamente o
vento açoitar com suas asas sombrias as paredes de vidro, não
parei de olhar ao redor. Aguardava. O quê? Não sei. E quando
surgiram na minha habitação as familiares guelras castanho-
rosadas, fiquei muito contente, falo com sinceridade. Ela se
sentou e de maneira casta ajustou a dobra do unif sobre os
joelhos, rapidamente cobriu-me todo de sorrisos – pequenos
pedaços em cada uma das minhas fissuras – e me senti bem,
unido solidamente.
– Sabe, estive na classe hoje (ela trabalha na Fábrica de
Educação Infantil) – e havia uma caricatura na parede. Sim, sim,
eu garanto! Eles me desenharam com a aparência de um tipo de
peixe. Talvez eu realmente...
– Não, não, de jeito nenhum – apressei-me em dizer (vista de
perto, de fato era claro que não havia nada parecido com guelras,
e foi absolutamente inapropriado tê-las mencionado antes).
– Sim, no final das contas, isso não é importante. Mas
compreenda: é a ação em si. É claro que chamei os Guardiões.
Amo muito as crianças e considero que o amor mais difícil e
elevado é a crueldade, você me compreende?
Como não! Isso se entrecruzava tanto com os meus
pensamentos. Não me contive e li para ela um fragmento da
minha 20ª Anotação, iniciando por: “Os pensamentos
martelavam silenciosamente, metálicos e precisos...”.
Sem olhar, vi as bochechas castanho-rosadas estremecerem e
se aproximarem cada vez mais de mim. Então, em minhas mãos,
seus dedos secos e duros pulsaram de leve.
– Dê, dê para mim! Farei um fonograma e obrigarei as crianças
a saberem de cor. Isso não é tão necessário para os seus
venusianos quanto é para nós, nós de agora, de amanhã, de
depois de amanhã.
Ela olhou em volta e bem baixinho:
– Você ouviu: dizem que no Dia da Unanimidade...
Sobressaltei-me:
– O quê, o que é que dizem? O que tem o Dia da Unanimidade?
As paredes acolhedoras não existiam mais. Por um momento,
senti-me como se tivesse sido jogado lá fora, onde um vento
colossal se agitava sobre os telhados, nuvens crepusculares e
oblíquas ficavam mais baixas...
Iu me envolvera pelos ombros, decidida, com firmeza (embora
tenha percebido que os ossos de seus dedos tremiam, ressoando
minha agitação).
– Sente-se, meu querido, não se inquiete. Pouco importa o que
dizem... Depois, se precisar, ficarei junto com você nesse dia,
deixarei minhas crianças na escola com outra pessoa e ficarei com
você, porque, de fato, você, meu querido, você também é uma
criança e precisa...
– Não, não – agitei as mãos. – De jeito nenhum! Então você vai
pensar que realmente sou algum tipo de bebê, que não posso ficar
sozinho... De jeito nenhum! (Confesso que tinha outros planos no
que concerne a esse dia.)
Ela sorriu – o texto não escrito desse sorriso era,
evidentemente: “Ah, que menino teimoso!”. Depois ela se sentou.
Os olhos baixos. As mãos arrumando de novo castamente a dobra
do unif, que caíra entre os joelhos. Mudou de assunto:
– Acho que precisarei resolver... Por você... Não, peço que não
me apresse, ainda preciso pensar um pouco...
Eu não a apressava. Embora compreendesse que devia estar
feliz e que não havia honra maior do que coroar os últimos anos
de alguém.
... A noite toda – umas asas, eu andava cobrindo a cabeça com
as mãos para proteger-me dessas asas. Depois, havia uma
cadeira. Mas a cadeira não era nossa, contemporânea, mas um
modelo antigo, de madeira. Movia as pernas como um cavalo (a
pata direita dianteira, a esquerda traseira, a esquerda dianteira e
a direita traseira), a cadeira corre para a minha cama, sobe nela,
amo a cadeira de madeira: desconfortável, dolorida.
É assombroso: será que não é possível encontrar algum meio
de curar essa doença do sonho ou fazer dela algo racional, talvez
até útil?
22ª ANOTAÇÃO

Resumo:

Ondas entorpecidas. Tudo se


aperfeiçoa. Eu sou um
micróbio.
Imagine-se parado na praia: as ondas crescem ritmicamente, e
erguidas, de repente, permanecem paradas, congeladas,
entorpecidas. Pareceria tão horrível e antinatural como se nosso
passeio, ordenado pela Tábua das Horas, subitamente se
emaranhasse, se confundisse e parasse. A última vez que algo
parecido ocorreu foi há cento e dezenove anos, de acordo com
nossos anais, quando caiu do céu, bem no meio do passeio
compacto, um meteorito silvando e soltando fumaça.
Caminhávamos como sempre, isto é, como monumentos de
guerreiros assírios: mil cabeças unidas em pares, pernas
integradas, braços integrados oscilando. No final da avenida,
onde a Torre Acumuladora zumbia ameaçadoramente, fomos ao
encontro do quadrilátero: nas laterais, na frente e atrás, havia
guardas; no centro, três pessoas de unifs já não tinham mais seus
números dourados – e tudo ficou terrivelmente claro.
O enorme mostrador no topo da torre era um rosto. Inclinado
por dentro das nuvens, cuspindo os segundos para baixo,
esperava indiferente. Exatamente às 13 horas e 6 minutos ocorreu
uma confusão no quadrilátero. Tudo aconteceu muito próximo de
onde eu estava, e pude ver até os mínimos detalhes. Lembro-me
muito bem de um pescoço longo e fino, na têmpora uma trama
emaranhada de veias azuis como rios num mapa geográfico de um
mundo pequeno e desconhecido – e esse mundo desconhecido,
pelo visto, era jovem. Provavelmente, ele havia reparado em
alguém de nossas fileiras: ergueu-se na ponta dos pés, esticou o
pescoço e se deteve. Um dos guardas acertou-o com a faísca azul
do chicote elétrico; ele soltou um grito agudo como o de um
cachorrinho. E em seguida, um estalo distinto, aproximadamente
a cada dois segundos: um ganido, um estalo – um ganido, um
estalo.
Caminhávamos como sempre, num ritmo assírio, e eu, olhando
para as graciosas faíscas em zigue-zague, pensei: “Tudo na
sociedade humana se aperfeiçoa infinitamente, e assim deve ser.
Que instrumento horrendo era o antigo chicote, e agora como é
belo...”.
Mas, nesse momento, como uma porca de parafuso saltando
em pleno funcionamento, uma figura feminina esguia, ágil e
flexível separou-se das nossas fileiras e com um grito: “Chega!
Não se atreva!”, se atirou diretamente no quadrilátero. Isso foi
como o meteoro de cento e dezenove anos atrás: todos os que
caminhavam ficaram petrificados, e nossas fileiras se
converteram na crista cinza das ondas paralisadas por um frio
repentino.
Durante um segundo contemplei-a como uma estranha, assim
como aos outros: ela já não era mais um número, era apenas uma
pessoa, existia apenas como a substância metafísica de uma
ofensa dirigida ao Estado Único. Mas um movimento seu –
virando-se, girou os quadris para a esquerda – e de repente tudo
ficou claro: conheço, conheço esse corpo flexível como uma
chibata, meus olhos, meus lábios, minhas mãos o conhecem,
naquele momento eu estava absolutamente certo disso.
Dois guardas se moveram para cortar-lhe a passagem. Num
instante, num ponto ainda claro e espelhado do pavimento, suas
trajetórias se cruzarão, eles irão agarrá-la... Meu coração parou, e,
sem raciocinar se seria possível, impossível, absurdo ou sensato,
lancei-me em direção àquele ponto...
Senti milhares de olhos em mim, arregalados de horror, mas
isso apenas serviu para dar ainda mais força, uma força
desesperada e alegre, para aquele selvagem de mãos peludas que
escapava de dentro de mim, e ele corria a toda velocidade. A dois
passos, ela se virou...
Diante de mim estava um rosto trêmulo, salpicado de sardas,
sobrancelhas avermelhadas... Não era ela! Não era I.
Uma alegria furiosa e fustigante. Eu queria gritar algo como:
“Aqui está ela!”, “Peguem-na!”, mas apenas escutei meu próprio
sussurro. Uma mão pesada pousou no meu ombro, prendeu-me e
me levou, tentei explicar a ele que...
– Escute, mas você precisa entender que eu pensei que...
Mas como explicar tudo sobre mim, sobre a minha doença, que
descrevo nestas páginas? Apaguei-me, caminhei submisso... Uma
folha arrancada da árvore por um golpe inesperado do vento cai
submissa, mas dá voltas pelo caminho, prende-se em cada galho
conhecido, bifurcação, ramo: assim eu me agarrava em cada uma
das silenciosas cabeças esféricas, no gelo transparente das
paredes, no pináculo azul da Torre Acumuladora, cravado nas
nuvens.
Naquele momento, quando uma cortina imperceptível estava
pronta para me separar definitivamente de todo esse mundo
maravilhoso, vi ao longe, agitando os braços-asas rosados,
deslizar uma conhecida e imensa cabeça. Uma voz achatada e
familiar:
– Considero meu dever testemunhar que o número D-503 está
doente e não se encontra em condições de controlar seus
sentimentos. Estou certo de que ele foi levado por uma
indignação natural...
– Sim, sim – aproveitei. – Eu até gritei: peguem ela!
Atrás, sobre meus ombros:
– Você não gritou nada.
– Sim, mas eu queria, juro pelo Benfeitor, eu queria.
Por um segundo, fui atarraxado por uns olhos de broca
cinzentos e frios. Não sei se ele viu dentro de mim que era (quase)
verdade ou se ele tinha algum objetivo secreto para mais uma vez
se compadecer de mim, mas assim que ele escreveu um bilhete e
entregou-o a um dos que me seguravam, eu estava novamente
livre, ou seja, mais precisamente, voltei a me integrar às assírias
fileiras, harmoniosas e sem fim.
O quadrilátero, o rosto sardento e as têmporas com veias
azuis como um mapa geográfico desapareceram atrás da esquina
para sempre. Caminhávamos como um corpo de milhões de
cabeças, e em cada um de nós havia a mesma alegria resignada
que, provavelmente, experimentam as moléculas, os átomos e os
fagócitos. No mundo antigo, os cristãos compreendiam isso,
nossos únicos (ainda que muito imperfeitos) predecessores: a
humildade é uma virtude, e o orgulho é um vício, e que “NÓS” é
divino, e “EU” é diabólico.
Agora caminho nos passos dos outros e, contudo, separado
deles. Ainda tremo todo por causa da agitação que passei, como
uma ponte pela qual acaba de passar, retumbando, um antigo
trem de ferro. Estava consciente de mim mesmo. Mas, de fato,
apenas são conscientes de si e reconhecem a própria
individualidade um olho com um cisco, um dedo machucado, um
dente doendo: olhos, dedos e dentes saudáveis – eles parecem
não existir. Será que não está claro que uma consciência
individual é apenas uma doença?
Talvez eu já não seja um fagócito que, zeloso, devora
tranquilamente os micróbios (com têmporas azuladas e sardas):
talvez eu seja um micróbio e, talvez, um dos milhares entre nós
que como eu ainda fingem ser fagócitos...
E se o incidente de hoje, em essência de pouca importância,
fosse apenas o início, apenas o primeiro meteorito de uma longa
série de pedras retumbantes e incandescentes que caem do
infinito sobre o nosso paraíso de vidro?
23ª ANOTAÇÃO

Resumo:

Flores. A dissolução de um
cristal. Se ao menos.
Dizem que existem flores que desabrocham apenas uma vez a
cada cem anos. Por que não existem outras que florescem uma
vez a cada mil ou 10 mil anos? Talvez até agora não soubéssemos
disso apenas porque essa vez a cada mil anos é exatamente hoje.
Embriagado e afortunadamente, desci as escadas para ver a
plantonista, e rapidamente, diante de meus olhos, por toda parte
ao meu redor, silenciosamente rebentavam brotos de milhares de
anos e floresciam poltronas, sapatos, placas douradas, lâmpadas
elétricas, os olhos escuros e hirsutos de alguém, parapeitos com
colunas entalhadas, um lenço caído nos degraus, a mesa da
plantonista, por cima desta as bochechas ternas, castanhas e
salpicadas de Iu. Tudo era extraordinário, novo, suave, rosado e
úmido.
Iu pegou meu talão cor-de-rosa, e sobre sua cabeça, através da
parede de vidro, a lua azul e aromática pendia de um galho
invisível. Triunfante, apontei e disse:
– A lua, compreende?
Iu lançou um olhar para mim, depois para o número no talão, e
vi aquele movimento familiar tão encantador e recatado: arrumou
a dobra do unif entre os joelhos.
– Você, meu querido, tem um aspecto anormal e doentio
porque a anormalidade e a doença são a mesma coisa. Você está
se arruinando e isso ninguém lhe dirá, ninguém.
Esse “ninguém” certamente se referia ao número no talão: I-
330. Querida, admirável Iu! Você, é claro, está certa: eu sou
imprudente, estou doente, tenho uma alma, sou um micróbio.
Mas não é o florescer de uma doença? Um broto não sente dor
quando se rompe? Você não acha que o espermatozoide é o mais
terrível dos micróbios?
Subi de volta para o meu quarto. I estava no amplo cálice da
poltrona. E eu estava no chão, abraçado às suas pernas, minha
cabeça apoiada em seus joelhos, ficamos calados. O silêncio, o
pulso... E eu era um cristal, dissolvia-me nela, em I. Senti
claramente que se derretiam: derretiam-se as facetas polidas que
me limitam no espaço – desapareço, dissolvo-me em seus joelhos,
nela, tornei-me muito menor e, ao mesmo tempo, muito mais
amplo, cada vez maior, imenso. Porque ela não é ela, mas o
Universo. E, por um segundo, eu e essa poltrona trespassada de
alegria junto à cama somos um só: a velha sorridente ao lado da
porta da Casa Antiga, a selva incivilizada no exterior do Muro
Verde, ruínas de prata enegrecida que cochilavam como a velha,
e, em algum lugar incrivelmente longe, o bater de uma porta. Isso
tudo dentro de mim, junto comigo, ouvindo meu pulso e flutuando
por um abençoado segundo...
Numa ridícula e confusa inundação de palavras, tentei contar
a ela que eu era um cristal, e por isso dentro de mim havia uma
porta, por isso me sentia como uma poltrona feliz. Porém, me saiu
tamanho disparate que me interrompi. Fiquei realmente
envergonhado: de repente, eu...
– Querida I, perdoe-me! Realmente não entendo, falo tantas
bobagens...
– Por que você pensa que as bobagens são coisas ruins? Se a
tolice humana fosse nutrida e cultivada ao longo dos séculos da
mesma maneira que a inteligência, talvez conseguíssemos dela
algo extraordinariamente precioso.
– Sim... (Me parecia que ela estava certa, como ela poderia
estar errada agora?)
– E foi por causa de uma bobagem sua, pelo que você fez
ontem no passeio, que te amo ainda mais, ainda mais.
– Mas por que é que você me tortura, por que você não veio,
por que você enviou seus talões, por que me obrigou a...
– Talvez você precisasse ser testado. Talvez eu precisasse
saber que você faria tudo o que eu quisesse, que você era
completamente meu.
– Sim, completamente!
Ela pegou meu rosto – pegou-me por inteiro – com as palmas
das mãos, levantou minha cabeça:
– Então, e como vão os seus “deveres de todo número
honesto”? Hein?
Dentes brancos, pontiagudos e doces: um sorriso. Sentada no
amplo cálice da poltrona, ela era como uma abelha: dentro dela, o
ferrão e o mel.
Sim, os deveres... Folheei mentalmente minhas últimas
anotações: de fato, em lugar nenhum havia sequer um
pensamento sobre o que, na realidade, eu deveria...
Fiquei em silêncio. Com entusiasmo (e, provavelmente, como
um tolo) sorri, observei suas pupilas, pulando de uma para a
outra, e em cada uma delas vi a mim mesmo: eu era minúsculo,
milimétrico, preso nessas pequeninas e irisadas masmorras. E,
em seguida, de novo, abelhas, lábios, a dor doce do florescer...
Em cada um de nós, números, há um tipo de metrônomo
invisível, fazendo um leve tique-taque, e, sem olhar para o relógio,
sabemos a hora com uma precisão de cinco minutos. Mas,
naquele momento, o metrônomo dentro de mim havia parado, e
eu não sabia quanto tempo se passara. Assustado, peguei
debaixo do travesseiro minha placa com o relógio...
Graças ao Benfeitor: ainda faltavam 20 minutos! Mas os
minutos são ridiculamente curtos, muito curtos, correm, e eu
tenho tanto para dizer a ela, tudo, tudo sobre mim: sobre a carta
de O, sobre aquela noite terrível em que dei a ela um bebê; e, por
alguma razão, algo sobre a minha infância, sobre o matemático
Pliapa, a √-1 e como, pela primeira vez, no feriado da
Unanimidade, chorei amargamente porque naquele dia havia uma
mancha de tinta no meu unif.
I levantou a cabeça, apoiou-se no cotovelo. Duas longas linhas
agudas formavam-se no canto dos seus lábios, e o ângulo escuro
de suas sobrancelhas erguidas: uma cruz.
– Talvez, naquele dia... – interrompeu-se, e suas sobrancelhas
ficaram ainda mais escuras. Ela pegou minha mão e apertou-a
com força. – Diga que você não irá me esquecer, você sempre se
lembrará de mim?
– Por que você está assim? Do que você está falando, I,
querida?
Ela ficou em silêncio, e seus olhos passaram por mim, através
de mim, para longe. E, de repente, ouvi o vento açoitar o vidro
com suas asas imensas (sem dúvida isso acontecera durante todo
o tempo, mas eu o ouvira apenas agora), e por algum motivo
recordei dos pássaros estridentes sobrevoando o Muro Verde.
I sacudiu a cabeça, tentando tirar algo de si. Mais uma vez, por
um segundo, tocou-me com todo o corpo – como um aero toca o
solo, repelindo-o por um segundo antes de pousar.
– Então, vamos, passe as minhas meias! Rápido!
As meias estavam jogadas na minha mesa, sobre a página
aberta das minhas notas. Na pressa, esbarrei no manuscrito, as
páginas se espalharam e não havia como colocá-las em ordem – e
o mais importante era que, se o fizesse, não seria a ordem
verdadeira, ficariam de qualquer maneira alguns cortes, buracos
e Xs.
– Não posso fazer isso – disse eu. – Você está aqui agora, ao
meu lado, e mesmo assim é como se você estivesse atrás de uma
antiga parede opaca: ouço através da parede sussurros e vozes,
mas não consigo decifrar as palavras, não sei o que há lá. Desse
jeito não posso. Você sempre deixa as coisas por dizer, você nunca
me disse aonde eu fui parar na Casa Antiga e que corredores
eram aqueles, e por que o doutor... Ou será que nada disso
aconteceu?
I colocou as mãos nos meus ombros, lenta e profundamente
penetrou meus olhos:
– Você quer saber de tudo?
– Sim, eu quero. Preciso.
– E não terá medo de ir comigo a qualquer lugar, até o fim,
aonde quer que eu te leve?
– Sim, a qualquer lugar!
– Está bem. Prometo que, quando o feriado terminar, se ao
menos... Ah, sim: e como vai a sua “Integral”, sempre me esqueço
de perguntar, fica pronta logo?
– Não. Como “se ao menos”? De novo? O que quer dizer “se ao
menos”?
Ela ( já junto à porta):
– Você verá por si mesmo...
Fiquei só. Tudo o que restou dela foi esse cheiro quase
imperceptível, semelhante ao pólen doce, seco e amarelo de
algumas flores de fora do Muro. E mais uma coisa: as perguntas-
gancho se cravavam solidamente em mim, à maneira que os
antigos empregavam para pescar os peixes (Museu Pré-
Histórico).
Por que de repente ela perguntou sobre a “Integral”?
24ª ANOTAÇÃO

Resumo:

O limite da função. Páscoa.


Riscar tudo.
Eu sou como uma máquina funcionando em rotação excessiva;
os rolamentos ficaram incandescentes, um minuto a mais e o
metal derretido começará a gotejar e tudo se converterá em nada.
Depressa: água fria, lógica. Derramo água aos baldes, mas a lógica
sibila nos rolamentos em brasa e dissipa um vapor branco e
imperceptível pelo ar.
Mas é claro: para determinar a verdadeira importância de uma
função é preciso levá-la ao limite. E é evidente que a absurda
“dissolução do universo” de ontem, levada ao limite, é a morte.
Porque a morte é exatamente a absoluta dissolução do eu no
universo. Então, se “A” designa o amor, e “M” a morte, logo, A=
f(M), isto é, o amor e a morte...
Sim, exatamente, exatamente. Por isso tenho medo de I,
resisto a ela, não quero. Mas por que é que coexistem dentro de
mim “não quero” e “eu quero”? É aí que está o horror, que eu
queira novamente aquela morte feliz de ontem. O horror está
justamente no fato de que, inclusive agora, quando a função
lógica foi integrada, quando evidentemente está implícito que ela
abarca em si a morte, eu mesmo assim a quero com meus lábios,
mãos, peito, com cada milímetro...
Amanhã é o Dia da Unanimidade. Certamente ela estará lá. Eu
a verei, mas apenas de longe. E de longe será doloroso, porque
tenho uma necessidade impetuosa de estar ao lado dela, de suas
mãos, seus ombros, seus cabelos... Porém, quero até mesmo essa
dor – que venha!
Grande Benfeitor! Que absurdo é desejar a dor. Quem não
compreende que as dores são negativas, são componentes que
reduzem a soma que chamamos de felicidade? E,
consequentemente...
Não há nenhum “consequentemente”. Simples. Nu.

AO ANOITECER:

Através das paredes de vidro do prédio – um inquieto pôr do


sol ventoso, febril e rosado. Virei minha poltrona para que essa
luz rosada não ficasse diante de mim, folheei minhas notas e vi:
esqueci mais uma vez que não escrevo isto para mim, mas para
vocês, desconhecidos, que eu amo e de quem tenho pena, para
vocês, que ainda se arrastam em algum lugar nos séculos
distantes, lá embaixo.
Pois bem, sobre o Dia da Unanimidade, sobre esse grandioso
dia. Sempre o adorei, desde a infância. Acho que para nós é algo
semelhante ao que era a “Páscoa” para os antigos. Lembro que,
na véspera, eu costumava fazer uma espécie de pequeno
calendário de horas e com satisfação riscava uma hora atrás da
outra: uma hora mais próximo, uma hora a menos para esperar...
Se tivesse certeza de que ninguém me veria, dou minha palavra de
que agora eu levaria comigo, para todos os lugares, um desses
pequenos calendários para acompanhar quantas horas ainda
restam até amanhã, quando a verei, ainda que de longe...
(Interromperam-me: trouxeram-me um novo unif que acabou
de sair da oficina de costura. Como de costume, todos nós
recebemos novos unifs para o dia de amanhã. Nos corredores
ouvem-se passos, exclamações de alegria, barulho.)
Continuo. Amanhã assistirei ao mesmo espetáculo que se
repete ano após ano e cada vez emociona de uma maneira
diferente: o poderoso Cálice do Consentimento, as mãos erguidas
em reverência. Amanhã é o dia da eleição anual do Benfeitor.
Amanhã voltaremos a confiar ao Benfeitor as chaves da
inabalável fortaleza da nossa felicidade.
Sem dúvida, isso não é parecido com as eleições confusas e
desorganizadas dos antigos, quando – é engraçado dizer – o
resultado das eleições sequer era conhecido de antemão.
Construir um governo sobre casualidades inteiramente
incalculáveis, às cegas – o que pode ser mais sem sentido? E ainda
assim, foram necessários séculos para entender isso.
Seria importante dizer que, tanto nisso como em tudo o mais,
não temos lugar para quaisquer casualidades, o inesperado não é
possível. As próprias eleições têm um significado mais simbólico:
recordar que somos um organismo único, poderoso, de milhões
de células, que somos, nas palavras do “Evangelho” dos antigos,
uma única Igreja. Isso porque a história do Estado Único não
conhece um incidente em que, nesse dia solene, uma única voz
tenha ousado perturbar o grandioso uníssono.
Dizem que os antigos realizavam as eleições de uma maneira
secreta, escondendo-se como ladrões; alguns de nossos
historiadores afirmam, inclusive, que eles apareciam nas
festividades eleitorais cuidadosamente mascarados (imagino
esse espetáculo fantástico e sombrio: noite, uma praça, figuras de
capas escuras andando furtivamente ao longo das paredes; a
chama das tochas rubras se curvando ao vento...). Para que era
necessário todo esse mistério, até agora isso não foi esclarecido
de maneira cabal; o mais provável é que as eleições estivessem
conectadas a ritos místicos, supersticiosos e, talvez, até
criminosos. Nós não temos nada para esconder ou do que nos
envergonhar: celebramos nossas eleições abertamente, de
maneira honesta, de dia. Eu vejo que todos votam no Benfeitor, e
todos veem que eu voto no Benfeitor – e não poderia ser
diferente, uma vez que “todos” e “eu” somos um único “Nós”.
Como isso é mais nobre, sincero e elevado do que o covarde,
furtivo e “secreto” dos antigos! Além disso: é mais racional. E se o
impossível for sugerido, isto é, que exista alguma dissonância
entre a monofonia habitual, os Guardiões invisíveis que estão
aqui – em nossas fileiras – podem localizar imediatamente os
números que caíram no erro e salvá-los de futuros passos em
falso, e também salvar o Estado Único deles. E, finalmente, mais
uma coisa...
Através da parede do lado esquerdo: diante do espelho da
porta do armário, uma mulher desabotoava apressada o unif. E
por um segundo, de maneira vaga: olhos, lábios, dois frutos
rosados e pontiagudos. Em seguida as cortinas se fecharam,
instantaneamente tudo era como ontem e não sei o que significa
esse “finalmente, mais uma coisa”, e não quero falar disso, não
quero! Quero apenas uma coisa: I. Quero que ela esteja cada
minuto, todos os minutos, sempre comigo – apenas comigo. E o
que acabei de escrever sobre o Dia da Unanimidade é irrelevante,
quero apagar tudo, arrancar, jogar fora. Porque sei (mesmo que
seja um sacrilégio, mas é verdade): é feriado apenas com ela,
quando ela está ao meu lado, ombro a ombro. E sem ela, o sol de
amanhã será apenas um pequeno círculo de lata, um céu de lata
pintado de azul, e eu também...
Agarrei o telefone:
– I, é você?
– Sim, sou eu. Como é tarde!
– Talvez ainda não seja tarde. Quero te pedir... Quero que
amanhã você fique comigo. Querida...
“Querida”, eu disse muito baixo. E por alguma razão, por um
instante, passou-me pela cabeça o ocorrido de hoje de manhã no
hangar: de brincadeira, colocaram um relógio sob um martelo de
cem toneladas, houve uma oscilação, um sopro de vento no rosto
e um suave e silencioso toque de cem toneladas no frágil relógio.
Pausa. Pareceu-me ouvir lá, no quarto de I, o sussurro de
alguém. Depois, a voz dela:
– Não, não posso. Compreenda: eu gostaria... Não, não posso.
Por quê? Amanhã você verá.
NOITE

25ª ANOTAÇÃO

Resumo:

Descendo do céu. A maior


catástrofe da história. O fim do
conhecido.
Quando, antes do início, todos se levantaram, e solene e
vagarosamente o hino flutuou como uma cortina sobre nossas
cabeças – centenas de trompas da Fábrica Musical e milhões de
vozes humanas – eu, por um segundo, me esqueci de tudo: me
esqueci da coisa alarmante que I dissera sobre o feriado de hoje e,
ao que parece, me esqueci inclusive dela. Eu era agora aquele
mesmo menino que, não faz muito tempo, chorava neste dia por
causa de uma manchinha imperceptível no unif. Ainda que
ninguém ao meu redor visse que tenho manchas negras
indeléveis, entretanto, eu sei que sou um criminoso e que não
tenho lugar entre esses rostos completamente transparentes.
Ah, se eu pudesse me levantar agora mesmo e, sufocando, gritar
tudo sobre mim. Mesmo que depois fosse o fim – que seja! –, por
um segundo me sentiria puro, sem pensamentos, como esse céu
azul e infantil.
Todos os olhos se dirigiram para cima: para o azul matutino,
imaculado, ainda não ressecado pelas lágrimas noturnas. Lá havia
uma mancha pouco perceptível, ora escura, ora coberta pelos
raios do sol. Era Ele, que descia dos céus até nós, o novo Jeová no
aero, tão sábio, afetuoso e cruel como o Jeová dos antigos. A cada
minuto Ele chegava mais perto, milhões de corações alçavam-se
mais alto ao seu encontro, Ele já nos via. Juntei-me a Ele,
mentalmente, do alto, olhei ao redor: os círculos concêntricos das
tribunas traçados com finos ponteados azuis, como se fossem
círculos de uma teia de aranha, cobertos de sóis microscópicos
(as placas brilhantes); no centro dela logo se sentará a sábia e
branca Aranha: o Benfeitor em suas roupas brancas, sabiamente
nos unindo pelas mãos e pelos pés com as benéficas teias da
felicidade.
Sua majestosa descida dos céus estava finalizada. O som de
cobre do hino se calara, todos se sentaram, e no mesmo instante
compreendi: tudo era realmente uma finíssima teia, esticada e
tremulando. A qualquer momento ela se romperia e algo
inimaginável iria acontecer...
Levantando-me ligeiramente, olhei ao redor e me deparei com
olhos afetuosos e inquietos, que passavam de rosto em rosto.
Então um número ergueu a mão e, de maneira quase
imperceptível, fez um sinal com o dedo para outro. Em seguida,
outro dedo fez um sinal em resposta. E mais outro... Compreendi:
eram os Guardiões. Percebi que algo os alarmava, a teia estava
tensionada, tremia. E dentro de mim – como num receptor de
rádio sintonizado na mesma frequência de onda – senti um
tremor em resposta.
No palco, um poeta lia uma ode eleitoral, mas não ouvi
nenhuma palavra: apenas a rítmica oscilação do pêndulo
hexamétrico, e, a cada impulso seu, todos ficavam mais próximos
da hora fixada. Nas fileiras, folheei febrilmente um rosto atrás do
outro, como se fossem páginas; contudo, não vi o único rosto que
buscava, precisava encontrá-lo rapidamente porque o pêndulo
soaria, e depois...
Era ele, era ele, claro. Embaixo, ao lado do palco, deslizando
pelo vidro brilhante, passaram correndo as orelhas-asas rosadas,
o corpo correndo refletia a escura e duplamente encurvada letra
S. Ele se dirigia para algum lugar nas passagens emaranhadas
entre as tribunas.
S, I: havia algum fio conectando-os. (Sempre soube que havia
alguma ligação entre eles; ainda não sei qual, mas algum dia irei
desvendá-la.) Cravei o olhar nele: era como um pequeno novelo
rolando para frente e deixando o fio atrás de si. Então ele parou,
e...
Como um relâmpago, uma descarga de alta voltagem: fui
atravessado, retorcido num nó. Na nossa fileira, apenas a 40
graus de mim, S parou e se inclinou. Vi I e, ao lado dela, o
sorridente de lábios negroides, o detestável R-13.
Meu primeiro pensamento foi correr até lá e gritar com ela:
“Por que você está com ele hoje? Por que você não quis vir
comigo?”. Mas uma teia invisível e benéfica prendia com força
minhas mãos e pés. Cerrando os dentes, sentei-me firme como
um pedaço de ferro, sem tirar os olhos deles. Mesmo agora sinto
uma aguda dor física no coração; lembro-me que pensei: “Se de
causas não físicas é possível ter dor física, então está claro que...”.
Infelizmente, não cheguei a uma conclusão: veio-me à
memória, apenas de maneira breve, algo sobre a “alma”.
Atravessou-me como um relâmpago um antigo provérbio sem
sentido, “com a alma em pedaços”. Fiquei petrificado: o
hexâmetro havia se calado. Algo começava... O quê?
Seguiu-se a estabelecida e habitual pausa eleitoral de cinco
minutos. O estabelecido e habitual silêncio eleitoral. Mas esse
momento não havia sido realmente oracional e piedoso como
sempre: foi como nos tempos antigos, quando nossas Torres
Acumuladoras ainda não haviam sido inventadas, quando o céu
indômito ainda desencadeava, de tempos em tempos,
“tempestades”. Era como um momento antes de uma tempestade
ancestral.
O ar era de ferro fundido transparente. Dava vontade de
respirar com a boca toda aberta. Meus ouvidos dolorosamente
tensos registraram: em algum lugar atrás de mim, o roer de um
rato, um sussurro inquieto. Sem levantar os olhos, observava o
tempo todo aqueles dois – I e R – juntos, ombro a ombro, e minhas
mãos peludas, estranhas, que eu odiava, tremiam sobre meus
joelhos.
Todos tinham em mãos as placas com os relógios. Um. Dois.
Três... Cinco minutos... Do palco, uma voz de ferro disse devagar:
– Quem está “a favor”, peço que levante a mão.
Se eu pudesse olhá-Lo diretamente nos olhos, como antes,
com devoção: “Estou aqui por inteiro. Por inteiro. Toma-me!”.
Mas não me atrevi. Com esforço, levantei a mão como se minhas
articulações estivessem enferrujadas.
O farfalhar de milhões de mãos. Alguém emitiu um “ah!”
sufocado. Senti que alguma coisa já havia se iniciado, caía a toda
velocidade, mas não compreendi o que era, e não tive forças, não
me atrevi a olhar...
– Quem é “contra”?
Esse sempre foi o momento mais sublime do feriado: todos
permaneciam sentados sem se mover, inclinando a cabeça com
alegria ante o jugo benéfico do Número dos Números. Mas, então,
com horror ouvi novamente aquele sussurro: leve, como um
suspiro, era mais audível do que as trombetas do hino de antes.
Como o último e quase inaudível suspiro na vida de uma pessoa –
os rostos de todos ao redor empalideceram, nas suas testas gotas
de suor frio.
Levantei os olhos, e...
Num centésimo de segundo, num fio de cabelo. Vi milhares de
mãos erguidas agitando-se “contra” e depois abaixarem. Vi o
rosto pálido de I marcado por uma cruz, sua mão levantada.
Minha visão escureceu.
Mais um fio de segundo; pausa; silêncio; pulso. Em seguida,
como o sinal de um maestro enlouquecido, em todas as tribunas,
ao mesmo tempo, um estrondo, gritos, um torvelinho de unifs
correndo, as figuras dos Guardiões movendo-se confusamente, o
solado dos sapatos de alguém pelo ar diante dos meus próprios
olhos, e, ao lado deles, a boca escancarada de alguém berrando
um grito inaudível. Por alguma razão, isto ficou gravado de
maneira mais veemente do que tudo: milhares de bocas
vociferando sem som, como numa tela monstruosa.
E, como numa tela, em algum lugar embaixo e distante, vi por
um segundo diante de mim os lábios pálidos de O; ela estava
colada contra a parede na passagem, protegia seu ventre
posicionando os braços em forma de cruz. E então ela sumiu, foi
levada, ou esqueci-me dela porque...
Isso já não estava mais na tela, foi dentro de mim mesmo, no
meu coração apertado, nas minhas têmporas, que latejavam
incessantes. Sobre a minha cabeça, à esquerda, surgiu de repente
R-13, em cima de um banco, salpicando, vermelho, furioso. Nos
braços dele estava I, pálida, o unif rasgado do ombro ao peito,
sobre o branco havia sangue. Ela o segurava com força pelo
pescoço, e ele, com saltos gigantescos, de banco em banco,
asqueroso e astuto como um gorila, carregou-a para cima.
Foi como um incêndio dos tempos antigos: tudo se tornou
rubro, e só havia uma coisa a fazer: dar um salto e alcançá-los.
Não posso explicar agora de onde tirei tamanha força, mas, como
um aríete, abri caminho pela multidão, pelos ombros, pelos
bancos. Já estava perto deles – então, consegui agarrar R pelo
colarinho:
– Não se atreva! Estou lhe dizendo, não se atreva! Agora
mesmo! (Felizmente, não se ouvia minha voz, todos gritavam e
corriam.)
– Quem? O que foi? O quê? – ele se virou, os lábios salpicando,
tremia, provavelmente pensou que um dos Guardiões o havia
agarrado.
– O quê? Não quero, não vou permitir! Tire as mãos dela agora
mesmo!
Mas ele apenas estalou os lábios com raiva, balançou a cabeça
e continuou correndo. Então, eu (sinto-me incrivelmente
envergonhado de escrever isso, mas acredito que devo mesmo
assim, devo escrever para que vocês, meus leitores
desconhecidos, possam estudar até o fim a história da minha
doença) golpeei-o com força na cabeça. Compreendem? Golpeei-
o! Lembro-me disso com precisão. E também me lembro: uma
sensação de certa libertação, de leveza por todo o meu corpo por
ter desferido aquele golpe.
I deslizou rapidamente dos braços dele.
– Vá – ela gritou a R. – Você está vendo: ele... Vá embora, R, vá!
R arreganhou os dentes brancos, de negro, salpicou-me o
rosto com alguma palavra, mergulhou e desapareceu. Peguei I
com os braços, com força apertei-a contra mim e a levei embora.
Meu coração batia – imenso, e a cada batida irrompia com
tamanha violência, ardência, tamanha onda de alegria. E não
importa que algo tenha se espalhado em mil pedaços – não faz
diferença! Contanto que a carregue assim, e continue carregando,
carregando...

AO ANOITECER. 22 HORAS.

É com dificuldade que seguro a pena em minhas mãos: o


cansaço é imensurável depois de todos os acontecimentos
vertiginosos desta manhã. Será possível que as paredes
salvadoras e seculares do Estado Único tenham desmoronado?
Será que de novo estamos sem abrigo, no selvagem estado de
liberdade, como nossos antepassados distantes? Será que não há
Benfeitor? Contra... no Dia da Unanimidade... Contra? Sinto
vergonha, dor e medo por eles. E pensando bem, quem são “eles”?
E quem sou eu: “eles” ou “nós”? Será que eu sei?
Lá estava ela: sentada no banco de vidro aquecido pelo sol na
tribuna mais alta, para onde eu a trouxera. Seu ombro direito e o
colo – o início de uma miraculosa e incalculável curvatura –
estavam descobertos; uma finíssima e vermelha serpente de
sangue. Ela parecia não perceber o sangue, o seio descoberto...
Não, mais que isso: ela notara tudo, mas era exatamente o que ela
precisava naquele momento, e se seu unif estivesse abotoado, ela
mesma o rasgaria, ela...
– E amanhã... – respirava avidamente através de seus dentes
cerrados, brilhantes e pontiagudos. – Amanhã, não se sabe o que
acontecerá. Você compreende: nem eu sei, ninguém sabe, é
desconhecido. Você compreende que é o fim de tudo que é
conhecido? Isso é novo, incrível, sem precedentes.
Lá embaixo, espumavam, corriam, gritavam. Mas tudo isso
estava distante e ficava mais distante porque ela olhava para
mim, lentamente me arrastava para dentro de si por entre as
janelas douradas e estreitas de suas pupilas. Ficamos assim por
um longo tempo, em silêncio. Por alguma razão veio-me à
memória aquela vez em que, através do Muro Verde, eu também
olhava as inexplicáveis pupilas amarelas de alguém, e os pássaros
esvoaçavam acima do Muro (ou isso aconteceu em outra
ocasião?).
– Escute: se amanhã não acontecer nada extraordinário, eu te
levarei até lá, você compreende?
Não, eu não compreendia. Mas em silêncio assenti com a
cabeça. Eu me dissolvi, eu era infinitamente pequeno, um ponto...
No fim das contas, nesse estado de ser um ponto, existe uma
lógica própria (de hoje): mais do que tudo há incertezas em um
ponto; basta colocar-se em movimento, agitar-se e ele pode se
transformar em milhares de curvas diferentes, centenas de
corpos.
Estava aterrorizado em me mover: em que me transformarei?
E me parece que todos estavam assim, como eu, com medo do
menor movimento. E agora, enquanto escrevo isso, todos estão
sentados, escondendo-se em suas gaiolas de vidro, esperando por
alguma coisa. No corredor, não se ouve o habitual zumbido do
elevador nesse horário, não se ouvem risos, passos. Às vezes vejo
pessoas em pares olhando, passando nas pontas dos pés pelo
corredor, sussurrando...
O que acontecerá amanhã? No que me transformarei amanhã?
26ª ANOTAÇÃO

Resumo:

O mundo existe. Urticária. 41º.


Manhã. Através do teto, o céu: sólido, arredondado, de
bochechas coradas, como de costume. Acho que eu teria ficado
menos surpreso se visse um excepcional sol quadrado sobre
minha cabeça, pessoas em roupas multicoloridas feitas de pelos
de animais, paredes opacas de pedra. Então, significa que o
mundo – o nosso mundo – ainda existe? Ou isso é apenas a inércia,
o gerador já foi desligado, e as engrenagens ainda estrondam e
giram: duas voltas, três voltas, na quarta irão parar...
Vocês estão familiarizados com essa estranha condição?
Acordar à noite, abrir os olhos no escuro e de repente sentir-se
perdido, e depressa, muito depressa, começar a apalpar ao redor,
buscando algo familiar e sólido: uma parede, uma lâmpada, uma
cadeira. Exatamente assim tateei, buscando na Gazeta do Estado
Único, rápido, rápido – então:

Ontem, realizou-se o Dia da Unanimidade, impacientemente e


há muito esperado por todos. Pela 48ª vez, o Benfeitor, que muitas
vezes provou sua sabedoria inabalável, foi eleito por unanimidade.
A solenidade foi perturbada por um pequeno distúrbio provocado
pelos inimigos da felicidade, e eles próprios, naturalmente,
privaram-se do direito de tornarem-se tijolos da fundação do
ontem renovado Estado Único. É evidente, para qualquer um, que
levar em consideração as suas vozes seria tão absurdo quanto
tomar como parte de uma grandiosa sinfonia heroica a tosse de um
dos presentes na sala de concerto, que por acaso estava doente...

Oh, que sábio! Será que, todavia, apesar de tudo, estamos


salvos? É realmente possível retrucar esse silogismo cristalino?
Em seguida, mais três linhas:

Hoje às 12 horas será realizada uma sessão conjunta entre os


Departamentos Administrativo, Médico e dos Guardiões. Nos
próximos dias será emitido um importante Ato Estatal.

Não, nossas paredes ainda estão de pé – aqui estão, posso


tocá-las. E aquele estranho sentimento de que estou perdido, de
não saber onde estou, de que perdi meu caminho, já se foi. Não é
nenhuma surpresa ver o céu azul, o sol redondo; e todos, como de
costume, dirigem-se para o trabalho.
Eu caminhava pela avenida de maneira particularmente firme
e sonora, e me parecia que todos andavam assim. Mas no
cruzamento, virei a esquina e vi: as pessoas contornavam um
edifício na esquina de maneira um pouco estranha, como se numa
parede houvesse se rompido algum cano e a água gelada jorrasse,
impedindo a passagem pela calçada.
Mais cinco, dez passos, e eu também fiquei encharcado de
água fria, cambaleei e fui jogado para fora da calçada... No alto da
parede, aproximadamente a 2 metros, havia uma folha de papel
quadrada e nela incompreensíveis letras verde-veneno:

MEFI

E, embaixo, costas metaforicamente encurvadas, orelhas


como asas transparentes balançando-se de cólera ou inquietude.
Estava com o braço direito levantado e o esquerdo esticado para
trás, impotente – como uma asa ferida, quebrada. Ele pulava para
arrancar o papel, mas não conseguia, não alcançava.
É provável que todos os que passavam por ali pensassem: “Se
eu me aproximar, eu entre todos, será que ele não pensará que
sou culpado de alguma coisa e é exatamente por isso que quero...”.
Reconheço que tive esse mesmo pensamento. Mas me lembrei
de quantas vezes ele havia sido meu verdadeiro anjo da guarda,
de quantas vezes havia me salvado e sem hesitar me aproximei,
levantei o braço e arranquei a folha de papel.
S virou-se, rapidamente suas brocas me perfuraram até o
fundo, de onde extraiu alguma coisa. Depois, ergueu a
sobrancelha esquerda e piscou, indicando a parede onde estava
pendurado “Mefi”. E a cauda do seu sorriso me perpassou – para
minha surpresa, ele parecia até alegre. E, aliás, por que ficar tão
surpreso? Em vez da penosa e lenta elevação da temperatura no
período de encubação, um médico sempre irá preferir uma
urticária e uma febre de 40°: assim, pelo menos está claro qual é a
doença. O “Mefi” que aparecia hoje nas paredes era uma urticária.
Compreendi seu sorriso...[6]
Descendo para a via subterrânea, sob meus pés, num degrau
de vidro impecável, havia outra folha branca: “Mefi”. Também
numa parede lá embaixo, num banco, no espelho do vagão (pelo
visto colado às pressas, de maneira negligente, torto). Em todo
lugar essa mesma urticária branca e terrível.
No silêncio, ouvia-se distintamente o zumbido das rodas,
como o barulho do sangue febril. Alguém foi tocado no ombro, ele
estremeceu e deixou cair um pacote de papéis. À minha esquerda,
um outro lia a mesma linha do jornal, de novo e de novo, e o jornal
tremia, de modo quase imperceptível. Senti como se em todos os
lugares – nas rodas, nas mãos, nos jornais, nos cílios – houvesse
um pulso cada vez mais rápido, e talvez hoje, quando me
encontrar com I lá embaixo, fará 39, 40, 41°, marcados pela linha
negra do termômetro...
No hangar, o mesmo silêncio, como o zumbido distante e
invisível de uma hélice. As máquinas estavam caladas,
carrancudas. Apenas os guindastes, quase inaudíveis, como que
na ponta dos pés, deslizando, inclinavam-se e agarravam com
suas pinças os blocos azulados de ar congelado e os carregavam a
bordo das cisternas da “Integral”: já nos preparávamos para o
voo de teste.
– Então: terminaremos a operação de carga em uma semana?
Era eu perguntando para o Segundo Construtor. Seu rosto era
de louça pintada com flores de um azul suave e um rosa delicado
(os olhos e os lábios), mas hoje eles estavam desbotados, lavados.
Calculávamos em voz alta, mas, de repente, me interrompi na
metade da palavra e fiquei ali parado, boquiaberto: no alto, sob a
cúpula, num bloco azul erguido pelo guindaste – quase
imperceptível – um quadrado branco, uma folha de papel colada.
Eu tremia todo, talvez por causa do riso, sim, eu ouvia meu riso
(vocês conhecem a sensação de ouvir o próprio riso?).
– Não, escute... – eu disse. – Imagine que você está num antigo
aeroplano, o altímetro marca 5 mil metros, uma asa se rompe,
você cai como um pombo, e no caminho calcula: “Amanhã das 12
às 2... das 2 às 6... às 6 é a refeição...”. Isso não é ridículo? E é
exatamente isso o que estamos fazendo agora!
As florzinhas azuladas se agitaram, arregalaram-se. E se eu
fosse feito de vidro e ele pudesse ver que dentro de umas três ou
quatro horas?...

6. É necessário entender que a resolução exata para esse sorriso só descobri depois de
alguns dias, repletos dos acontecimentos mais estranhos e inesperados. [N. do A.]
27ª ANOTAÇÃO

Resumo:

Não há nenhum resumo,


não é possível.
Estou sozinho naqueles mesmos corredores sem fim. O céu
é mudo, de concreto. Em algum lugar a água goteja sobre uma
pedra. A conhecida porta pesada e opaca, atrás dela um ruído
surdo.
Ela disse que viria me ver exatamente às 16 horas. Mas das
16h já se passaram cinco, dez, quinze minutos: ninguém.
Por um segundo volto a ser meu eu anterior, com medo de
que a porta se abra. Mais cinco minutos, e se ela não sair...
Em algum lugar, a água goteja sobre uma pedra. Ninguém.
Com uma melancólica alegria sinto que estou salvo.
Lentamente, dou meia-volta pelo corredor. O pontilhado
trêmulo das pequenas lâmpadas no teto fica cada vez mais
pálido, mais pálido...
Subitamente, atrás de mim, a porta estalou rápida, o ruído
de passos apressados ecoou suavemente no teto e nas
paredes, e lá estava ela, etérea, ligeiramente sem fôlego da
corrida, respirando pela boca.
– Eu sabia que você estaria aqui, que você viria! Eu sabia,
você, você...
As lanças de seus cílios se afastaram, deixaram-me entrar
e... Como explicar o que esse antigo, absurdo e miraculoso
rito faz comigo quando seus lábios tocam os meus? Que
fórmula pode expressar esse torvelinho que varre tudo da
minha alma, exceto ela? Sim, sim, da alma – riam se quiserem.
Com esforço, ela ergueu devagar as pálpebras e, com
dificuldade, disse lentamente as seguintes palavras:
– Não, chega... Depois: agora vamos.
A porta se abriu. Degraus desgastados e velhos. Um
insuportável e heterogêneo alarido, silvo, luz...

Desde então se passaram quase 24 horas, tudo dentro de


mim se sedimentou um pouco. Todavia, é
extraordinariamente difícil dar uma descrição sequer
aproximada. É como se dentro da minha cabeça uma bomba
houvesse explodido: bocas abertas, asas, gritos, folhas,
palavras, pedras – lado a lado, amontoados, um atrás do
outro...
Lembro-me de que a primeira coisa a me passar pela
cabeça foi: “Depressa, corra de volta”. Porque estava claro
para mim: enquanto eu estava lá, esperando nos corredores,
de alguma maneira eles haviam explodido ou destruído o
Muro Verde, e tudo o que havia lá se precipitara e invadira
nossa cidade, até agora purificada desse mundo inferior.
Devo ter dito algo do gênero a I. Ela caiu na risada:
– Não, de jeito nenhum! Simplesmente saímos do Muro
Verde...
Então, abri os olhos e fiquei cara a cara com a própria
realidade, que até então nenhuma pessoa viva havia visto, a
não ser diminuída milhares de vezes, atenuada, dissimulada
pelo vidro turvo do Muro.
O sol... Esse não era o nosso sol, distribuído
uniformemente pela superfície espelhada do pavimento: eram
fragmentos vivos, manchas que saltavam constantemente,
cegavam meus olhos e faziam minha cabeça girar. E as
árvores eram como velas que se projetavam para o céu; eram
como aranhas agachadas na terra, com suas patas ásperas;
eram como fontes mudas e verdes... E tudo se arrastava,
movia-se, sussurrava. Sob meus pés um pequeno novelo
áspero disparou, fiquei paralisado, não pude dar nenhum
passo porque a superfície sob meus pés não era plana –
compreendam, a superfície não era plana –, mas algo
detestavelmente macio, maleável, vivo, verde, flexível.
Fiquei aturdido com tudo aquilo, engasguei – essa talvez
seja a palavra mais apropriada. Fiquei parado, com as duas
mãos agarradas em algum galho oscilante.
– Não é nada, não é nada! Isso é só o começo, vai passar.
Seja corajoso!
Ao lado de I, sobre a vertiginosa tela verde e irrequieta, o
perfil muito delgado de alguém recortado num papel... Não,
não de qualquer um, eu o conhecia. Lembrei-me: o doutor.
Não, não, compreendi tudo com mais clareza. E então entendi:
os dois pegaram-me pelos braços e, rindo, me arrastaram
para frente. Eu deslizava ziguezagueando. Crocitos, musgo,
montículo, gritos, galhos, troncos, asas, folhas, silvo...
As árvores se dispersaram, uma clareira iluminada, e
pessoas na clareira... ou, não sei como dizer, talvez o mais
correto seja: seres.
Isso é o mais difícil. Porque excedia todos os limites do
verossímil. E agora está claro para mim por que I sempre foi
tão persistente em guardar silêncio: eu não acreditaria de
qualquer forma, mesmo nela. É possível que amanhã eu não
acredite em mim mesmo, ou nestas próprias notas.
Na clareira, ao redor de uma pedra nua parecida com um
crânio, fazia algazarra uma multidão de trezentas,
quatrocentas... pessoas – suponhamos que sejam “pessoas”, é
difícil dizer outra coisa. Assim como nas tribunas, num
primeiro momento, em meio à massa geral de rostos, você
percebe apenas os familiares, da mesma maneira aqui, vi
antes de tudo apenas os nossos unifs cinza-azulados. Em
seguida, entre os unifs, de maneira completamente distinta e
simples: pessoas negras como um corcel, ruivas, louras,
castanhas, gris e brancas, pelo visto, eram pessoas. Todos
estavam sem roupas e cobertos com uma pelagem curta e
reluzente, semelhante àquela que se vê num cavalo
empalhado no Museu Pré-Histórico. Mas as êmeas tinham
rostos exatamente como – sim, sim, exatamente iguais – os
das nossas mulheres: delicadamente rosados e sem pelos,
seus seios também estavam livres de pelos – eram volumosos
e firmes, com belas formas geométricas. Os machos apenas
não tinham pelos em parte do rosto, assim como os nossos
ancestrais.
Aquilo foi a tal ponto inacreditável, a tal ponto inesperado,
que fiquei calmamente parado – posso afirmar com certeza:
fiquei calmamente parado, observando. Como numa balança:
sobrecarrega-se um prato e depois não importa o quanto a
mais se coloca, não fará diferença, o ponteiro não se moverá...
De repente, eu estava sozinho: I não estava mais comigo,
não sabia para onde e como ela desaparecera. Ao meu redor
ficaram apenas aqueles seres de pelo acetinado brilhando ao
sol. Agarrei o ombro quente, forte e escuro de alguém:
– Escute, pelo Benfeitor, você não viu para onde ela foi? Ela
estava aqui nesse instante, agora mesmo...
Sobrancelhas peludas e severas olharam para mim:
– Sh, sh, sh! Silêncio – e o peludo apontou para o centro da
clareira, onde estava a pedra amarela como um crânio.
Lá em cima, acima das cabeças, acima de todos, estava ela.
O sol vinha da mesma direção, diretamente nos meus olhos, e
ela inteira – sobre a tela azul do céu – era uma silhueta afiada,
carvoenta, negra como carvão contra o fundo azul. As nuvens
voavam um pouco acima, e parecia que já não eram mais as
nuvens, mas pedra, e ela própria estava sobre a pedra, e atrás
dela a multidão, a clareira – deslizando sem ruído, como um
navio, e a terra suavemente navegando sob os pés...
– Irmãos... – ela disse. – Irmãos! Vocês todos sabem que lá,
atrás do Muro, na cidade, estão construindo a “Integral”. E
vocês sabem que chegou o dia em que destruiremos o Muro,
todas as paredes, para que o vento verde sopre de ponta a
ponta, por toda a Terra. Mas a “Integral” levará essas paredes
para lá, para o espaço, para milhares de outros mundos, que
hoje à noite sussurrarão a vocês com suas fogueiras através
das escuras folhagens noturnas...
Ao redor da pedra – ondas, espuma, vento:
– Abaixo a “Integral”! Abaixo!
– Não, irmãos: abaixo, não. Mas a “Integral” precisa ser
nossa. No dia em que ela primeiro for lançada ao céu, nós
estaremos dentro dela. Porque aqui conosco está o
Construtor da “Integral”. Ele deixou os Muros e veio comigo
para cá, para estar entre vocês. Viva o Construtor!
Num instante, eu estava em algum lugar no alto. Abaixo de
mim: cabeças e mais cabeças, bocas abertas gritando, braços
que se lançavam para cima e para baixo. Isso foi excepcional,
estranho, inebriante: senti-me acima de todos, eu era eu, algo
em separado, um mundo, deixei de ser um componente, como
sempre, e me tornei uma unidade.
Então, com o corpo amassado, feliz, amarrotado como
depois de um abraço amoroso, desci e fiquei ao lado da pedra.
O sol, vozes de cima, o sorriso de I. Uma mulher de cabelos
dourados, toda de cetim dourado, exalando um aroma herbal,
apareceu. Levava nas mãos uma xícara que parecia ser feita
de madeira. Ela sorveu um pouco com os lábios vermelhos e
passou para mim. Bebi avidamente, de olhos fechados, para
apagar o fogo. Bebi faíscas doces, picantes e frias.
Em seguida, o sangue dentro de mim, o mundo todo,
andava mil vezes mais rápido, e a terra leve flutuava como
plumas. E tudo ficou mais suave, fácil e claro para mim.
E então vi as familiares e enormes letras sobre a pedra:
“Mefi”, e por alguma razão isso era como deveria, um simples
fio resistente conectando tudo. Vi uma rústica representação,
talvez também na mesma pedra: um jovem alado, de corpo
transparente, e onde deveria estar o coração, havia um
carvão ardendo, vermelho, incandescente. E de novo:
compreendi esse carvão... ou ao contrário, senti-o, da mesma
forma que sem ouvir sinto cada palavra (ela falava do alto, da
pedra) – senti que todos respiravam juntos e que voariam
para algum lugar, como os pássaros sobre o Muro naquela
vez...
De trás, da densidade espessa de corpos respirantes, uma
voz alta:
– Mas tudo isso é loucura!
E parece que eu – sim, acho que fui eu mesmo – subi na
pedra e de lá vi o sol, as cabeças sobre o azul, uma linha verde
denteada, e gritei:
– Sim, sim, exatamente! É necessário que todos fiquemos
loucos, é imprescindível que fiquemos todos loucos, o mais
rápido possível! É imprescindível, eu sei.
I estava ao meu lado; seu sorriso era duas linhas escuras
saindo do canto da boca para cima, formando um ângulo;
dentro de mim havia um carvão, e foi instantâneo, suave, um
pouco doloroso, perfeito...
Depois disso, apenas restaram fragmentos dispersos.
Um pássaro passou voando baixo, devagar. Vi que era um
ser vivo como eu, virava a cabeça para a direita e para a
esquerda como uma pessoa e pregou em mim seus olhos
redondos e negros...
Mais: o dorso, de um pelo brilhante, da cor dos ossos de
um velho elefante. Um inseto minúsculo, de asas
transparentes, deslizava pelo dorso, que estremeceu para
espantá-lo, tremeu mais uma vez...
E mais: a sombra das folhas era entrelaçada, uma treliça.
Sob essa sombra, as pessoas estavam deitadas mascando algo
semelhante a um legendário alimento dos antigos: um fruto
longo e amarelo e com um pedaço escuro. Uma mulher meteu
um desses em minhas mãos e achei engraçado: eu não sabia
se podia comê-lo.
Novamente: multidão, cabeças, pernas, braços, bocas. Os
rostos apareciam e desapareciam por um segundo, como
bolhas que arrebentavam. E por um segundo, ou, talvez,
apenas assim me pareceu, orelhas como asas transparentes
passaram voando.
Com toda força apertei a mão de I. Ela olhou em volta:
– O que você tem?
– Ele está aqui... Pareceu-me que...
– Ele quem?
– ... Agora mesmo, na multidão...
As sobrancelhas finas e negras como carvão se ergueram
até as têmporas: um triângulo pontiagudo, um sorriso. E não
estava claro para mim por que ela sorria, como ela podia
sorrir?
– Você não compreende, I, você não compreende o que
significa se ele ou um deles estiver aqui.
– Que bobagem! Por acaso passa pela cabeça de alguém de
lá, do outro lado do Muro, que estamos aqui? Lembre-se: você
mesmo, alguma vez, porventura, pensou que isso era
possível? Eles estão nos caçando lá, deixe-os! Você está
delirando.
Ela sorriu suavemente, alegre, e eu também sorri. A terra
inebriante, alegre e leve flutuava...
28ª ANOTAÇÃO

Resumo:

As duas. Entropia
e energia.
A parte opaca do corpo.
Vejam: se o seu mundo é parecido com o dos nossos
antepassados distantes, então imaginem que algum dia no
oceano vocês tropeçaram com a sexta, a sétima parte do
mundo – uma espécie de Atlântida – com cidades-labirinto
extraordinárias, pessoas que planam pelos ares sem a ajuda
de asas ou aeros e pedras que podem ser levantadas com a
força do olhar, resumindo, coisas que não viriam à cabeça
nem se vocês sofressem da doença do sonho. É assim que foi
o dia de ontem para mim. Porque, compreendam, nenhum de
nós, nunca, desde a Guerra dos Duzentos Anos, esteve fora do
Muro – já lhes falei sobre isso.
Eu sei que é meu dever para com vocês, amigos
desconhecidos, contar em detalhes sobre esse mundo
estranho e inesperado que se revelou para mim ontem. Mas
por enquanto eu não estou em condições de voltar a isso.
Tudo é novo, novo, como uma chuva torrencial de eventos e
não dou conta de reuni-los todos: fechei as mangas do meu
unif com as palmas das mãos, e apesar de tudo o balde todo
derramou e algumas gotas caíram nestas páginas...
Primeiro ouvi vozes altas atrás da minha porta e reconheci
a voz dela, de I, flexível, metálica, e outra quase monótona,
rígida como uma régua de madeira: era a voz de Iu. Em
seguida, a porta se abriu com um estalido, e as duas
dispararam para dentro do meu quarto. Exatamente isso:
dispararam.
I pousou a mão no espaldar da minha poltrona e sobre o
ombro direito sorriu para Iu com todos os dentes. Eu não
queria ficar na direção daquele sorriso.
– Escute – disse-me I –, essa mulher parece ter como
objetivo defender você de mim, como se você fosse uma
criancinha. Ela tem sua permissão?
E então, a outra, com as guelras trêmulas:
– Sim, ele é uma criança. Sim! É só por isso que ele não vê
que você está com ele para... Tudo isso é apenas para, para...
que tudo é uma farsa. Sim! E meu dever é...
Por um instante, vi no espelho a linha partida e trêmula
das minhas sobrancelhas. Levantei num salto e, com
dificuldade de conter o meu outro eu, o de punhos peludos e
trêmulos, fazendo passar com dificuldade cada palavra por
entre meus dentes, gritei-lhe na cara, bem nas guelras:
– Agora mesmo, fora! Agora!
As guelras inflaram-se vermelhas como tijolos, depois
murcharam e se tornaram cinzentas. Ela abriu a boca para
dizer alguma coisa e, sem dizer nada, fechou-a com um ruído
e foi embora.
Corri para I:
– Não perdoarei, nunca irei me perdoar por isso! Ela se
atreveu, com você? Você não pode pensar que eu penso que...
que ela... Tudo isso porque ela quer registrar-se comigo, mas
eu...
– Felizmente, ela não terá tempo de se registrar com você.
Ainda que existissem milhares como ela: não importa. Eu sei
que você confia não em milhares, mas somente em mim.
Porque, de fato, depois de ontem, sou toda sua, até o fim,
como você queria. Estou em suas mãos, você pode a qualquer
momento...
– O que a qualquer momento? – e imediatamente
compreendi o quê, o sangue brotou em minhas orelhas, nas
bochechas e gritei: – Não diga isso, nunca mais fale disso!
Você compreende que aquele era meu eu anterior, mas
agora...
– Quem sabe... O homem é como um romance: até a última
página não se sabe como vai terminar. Do contrário, não
valeria a pena ler...
I acariciava minha cabeça. Eu não via seu rosto, mas podia
ouvir em sua voz que ela olhava para algum lugar distante, os
olhos presos numa nuvem, que navegava silenciosamente,
devagar, quem sabe para onde...
De repente, ela me afastou com a mão, de maneira firme e
suave, e disse:
– Escute: vim aqui lhe dizer que estes talvez sejam os
últimos dias... Você sabe que hoje à noite estão cancelados
todos os auditórios.
– Cancelados?
– Sim. Passei em frente e vi: nos edifícios dos auditórios
preparam algo. Há mesas, médicos de branco.
– Mas o que é que isso significa?
– Não sei. Por enquanto ninguém sabe. E isso é o pior de
tudo. Apenas sinto que ligaram a corrente, as faíscas se
espalham, senão hoje, amanhã... Mas, talvez eles não consigam
a tempo.
Há muito deixei de tentar entender quem são eles e quem
somos nós. Não compreendo o que quero: que eles consigam
ou não consigam. Apenas uma coisa é clara para mim: I está
andando no limite, e num instante, a qualquer momento...
– Mas isso é uma loucura – eu disse. – Você contra o
Estado Único. É a mesma coisa que tapar a boca do cano de
uma arma com a mão e achar que é possível deter o tiro. É
uma completa loucura!
Um sorriso:
– “É preciso que todos enlouqueçam, enlouqueçam o mais
depressa possível.” Alguém disse ontem à noite. Você se
lembra? Lá...
Sim, tenho isso anotado. Portanto, havia realmente
acontecido. Permaneci em silêncio, contemplei seu rosto: nele
havia uma cruz escura extraordinariamente nítida.
– Querida I, antes que seja tarde... Se quiser, eu abandono
tudo, esqueço tudo e vou contigo para lá, para o outro lado do
Muro, com aqueles... não sei quem são eles.
Ela balançou a cabeça. Através das janelas escuras dos
seus olhos, lá, dentro dela, vi uma lareira ardente, faíscas,
línguas de fogo subiam, um amontoado de lenha seca. E ficou
claro para mim que já era tarde, minhas palavras não podiam
fazer mais nada...
Ela se levantou – estava para ir embora. Talvez estes
fossem os últimos dias, talvez até os últimos minutos...
Agarrei-a pela mão.
– Não! Mais um pouco, pelo bem do... pelo bem do...
Lentamente ela levantou minha mão em direção à luz,
minha mão peluda que eu tanto odiava. Eu queria puxá-la,
mas ela a segurava com firmeza.
– Sua mão... Você realmente não sabe, e poucos sabem que
as mulheres daqui, da cidade, amavam aqueles do outro lado.
É possível que você tenha algumas gotas do sangue
ensolarado da floresta. Talvez seja por isso que eu também...
Pausa. Que estranho: meu coração batia muito depressa
por causa dessa pausa, desse vazio, desse nada. E gritei:
– Ah! Você não vai embora ainda! Não vai embora até me
contar sobre eles, por que você os... ama, e eu nem sei quem
são eles, de onde eles são. Quem são eles? A metade que
perdemos? H2 e O, e para obter H2O – rios, mares,
cachoeiras, ondas, tempestades – as duas metades devem ser
unidas...
Lembro-me precisamente de cada um de seus
movimentos. Lembro-me que ela pegou um triângulo de vidro
de cima da minha mesa e, durante todo o tempo em que eu
falava, apertava a ponta contra sua bochecha. E nela
apareceu uma marca branca, depois ficou rosada e
desapareceu. É surpreendente, não consigo recordar suas
palavras – principalmente o início –, mas apenas algumas
imagens e cores isoladas.
Eu sei que o início era sobre a Guerra dos Duzentos Anos.
E então: vermelho na grama verde, no barro escuro, na neve
azul, poças vermelhas que não secavam. Em seguida, a grama
amarela queimada pelo sol, pessoas amarelas e nuas
desgrenhadas, cachorros desgrenhados – perto, ao lado de
cadáveres inchados de cachorros ou, talvez, de pessoas... Isso,
é claro, foi além dos Muros: porque a cidade já havia vencido e
o nosso atual alimento à base de petróleo já existia.
Do céu, quase até o chão, pesadas pregas escuras
balançando: colunas de fumaça sobre as florestas, sobre os
povoados. Um uivo seco: fileiras sem fim eram conduzidas até
a cidade para serem salvas à força e aprenderem a felicidade.
– Você sabia de quase tudo isso?
– Sim, quase tudo.
– Mas você não sabia, e poucos sabiam, que uma pequena
parte deles conseguiu se salvar e passou a viver lá, fora dos
Muros. Nus, eles foram embora para a floresta. Aprenderam
com as árvores, as bestas, os pássaros, as flores, o sol.
Adquiriram mais pelos, mas sob esse pelo conservaram o
sangue vermelho, quente. Para vocês foi pior: criaram as
cifras, que se arrastam por vocês como piolhos. É necessário
livrá-los de tudo e expulsá-los nus para a floresta. Deixar que
aprendam a tremer de medo, de felicidade, de raiva, de frio, e
rezar pelo fogo. E nós, Mefi, nós queremos...
– Não, espere, e “Mefi”? O que quer dizer “Mefi”?
– Mefi? É um nome antigo, é aquele que... Você se lembra:
lá, na pedra, a imagem do jovem... Ou não: é melhor na sua
língua, você entenderá mais rápido. Então, há duas forças no
mundo: a entropia e a energia. Uma tende ao repouso
beatífico, ao equilíbrio feliz; a outra tende à destruição do
equilíbrio, ao doloroso movimento sem fim. A entropia, os
nossos, ou melhor, os seus antepassados, os cristãos,
adoravam-na como a um Deus. E nós, os anticristãos, nós...
E naquele momento, um murmúrio quase inaudível, uma
batida na porta, e saltou para dentro do quarto aquele
mesmo homem achatado, com a testa enterrada nos olhos,
que mais de uma vez trouxera para mim os bilhetes de I.
Ele veio correndo em nossa direção e parou resfolegando
como uma bomba de ar, não conseguia dizer uma palavra: é
possível que tenha corrido depressa demais.
– Mas então! O que aconteceu? – I agarrou-o pelo braço.
– Estão vindo para cá... – a bomba finalmente ofegou. – Os
Guardiõ... e com eles aquele que... parece um corcunda...
– S?
– Sim, sim! Estão perto, no prédio. Estarão aqui a qualquer
momento. Rápido, rápido!
– Bobagem! Temos tempo... – ela riu, faíscas nos olhos com
línguas de fogo.
Ou era uma coragem absurda e imprudente, ou algo que
eu ainda não havia compreendido.
– I, pelo Benfeitor! Você tem que entender, isso é...
– Pelo Benfeitor – o triângulo pontiagudo, um sorriso.
– Então... então por mim... Eu te peço.
– Ah, ainda preciso tratar de um assunto com você... Mas,
não importa: amanhã...
Com alegria (sim, com alegria) ela acenou para mim; o
outro também acenou, aparecendo por um instante sob o
toldo formado pela sua testa. E fiquei só.
Depressa, para a mesa. Abri minhas notas, peguei a pena
para que eles me encontrassem trabalhando em benefício do
Estado Único. De repente, cada fio de cabelo da minha cabeça
estava vivo; isolados, moviam-se: “E se eles apanharem e
lerem mesmo que seja uma das últimas páginas?”.
Fiquei sentado à mesa, sem me mover, vi como tremiam as
paredes, a pena em minha mão, as letras trepidavam e se
misturavam...
Devo esconder? Mas onde? Tudo é de vidro. Queimar? Mas
eles me veriam do corredor e das habitações vizinhas. E
depois, já não posso, não tenho forças para destruir este
doloroso e, talvez, mais precioso pedaço de mim mesmo.
Ao longe, no corredor, já se ouviam vozes e passos. Tive
tempo apenas de agarrar um maço de folhas e metê-lo
embaixo de mim. Eu estava pregado à poltrona que oscilava
com cada um de seus átomos, e sob meus pés, era como o
convés de um navio, para cima, para baixo...
Encolhido como uma bolinha, escondido sob o toldo da
minha testa, de alguma maneira, de soslaio, observei
sorrateiro: eles iam de quarto em quarto, iniciando no final
direito do corredor e chegando cada vez mais perto. Alguns
ficavam sentados e petrificados, como eu; outros se
levantavam de um salto ao encontro deles e escancaravam a
porta – números felizes! Se eu também...
“O Benfeitor é indispensável para o aperfeiçoamento da
desinfecção humana, e, em consequência, não existe nenhum
movimento peristáltico no organismo do Estado Único...” Com
a pena aos pulos, extraí esse completo disparate e me inclinei
mais sobre a mesa, em minha cabeça havia uma enlouquecida
forja. Às minhas costas, ouvi a maçaneta da porta, o vento
soprou, a poltrona pôs-se a dançar sob mim...
Só então, com dificuldade, desprendi-me da página e me
virei para os que haviam entrado (como é difícil interpretar
uma farsa... Ah, quem me falou hoje sobre a farsa?). S entrou
na frente, sombrio, calado, com os olhos perfurando poços em
mim, em minha poltrona, nas folhas que estremeciam sob a
minha mão. Em seguida, por um momento, alguns rostos
familiares, cotidianos, no umbral da porta, e dentre eles um
se destacou, guelras castanho-rosadas infladas...
Recordei tudo o que acontecera neste quarto meia hora
atrás e ficou claro para mim o que ela faria naquele instante...
Todo o meu ser batia e pulsava naquela (felizmente não
transparente) parte do meu corpo, em que eu havia
escondido o manuscrito.
Iu aproximou-se por trás dele, de S, tocou-o
cuidadosamente pela manga e disse em voz baixa:
– Este é D-503, o Construtor da “Integral”. Você já deve ter
ouvido falar dele. Ele sempre está assim, atrás da mesa... Não
se dá nenhum descanso!
... Eu o quê? Que mulher admirável, surpreendente.
S começou a deslizar em minha direção, inclinou-se sobre
o meu ombro, acima da mesa. Cobri o que acabara de
escrever com o cotovelo, mas ele gritou severamente:
– Solicito que me mostre o que tem aí imediatamente!
Ardendo de vergonha, entreguei a ele o pedaço de papel.
Ele leu, e eu vi um sorriso escapar de seus olhos, escorrer
pelo rosto e, depois de mover um pouco sua pequena cauda,
assentar-se em algum lugar no canto direito da boca.
– Um pouco ambíguo, mesmo assim... Bem, continue: não
vamos mais incomodá-lo.
Ele chapinhou até a porta como um remo na água, e, a
cada um de seus passos, meus pés, mãos, dedos voltavam a
mim, minha alma novamente distribuía-se pelo meu corpo
uniformemente, respirava...
Por último: Iu se deteve no meu quarto, aproximou-se de
mim, inclinou-se e sussurrou no meu ouvido:
– Sorte sua que eu...
Incompreensível: o que ela quis dizer com isso?
À noite, mais tarde, soube que eles levaram três números
consigo. Aliás, sobre isso, como sobre todo o resto que
acontecia, ninguém falava (uma influência educativa dos
Guardiões, invisivelmente presentes entre nós). As conversas
giravam principalmente em torno da rápida queda do
barômetro e da mudança do tempo.
29ª ANOTAÇÃO

Resumo:

Fios no rosto. Brotos.


Compressão antinatural.
Estranho: o barômetro está caindo, mas ainda não há
vento, apenas silêncio. Lá no alto, já havia começado uma
tempestade, mas ainda era inaudível para nós. As nuvens
passavam a toda pressa. Ainda eram poucas, fragmentos
isolados e irregulares. Era como se alguma cidade lá em cima
estivesse sendo destruída, e pedaços de paredes e torres
voassem para baixo, crescendo diante dos meus olhos com
uma velocidade terrível, chegando cada vez mais perto. Mas
ainda teriam que voar por mais alguns dias pelo azul infinito
antes de nos atingirem aqui embaixo, no fundo.
Reinava o silêncio aqui embaixo. No ar havia fios finos,
incompreensíveis, quase invisíveis, que eram trazidos de lá,
do outro lado do Muro, a cada outono. Flutuam lentamente, e,
de súbito, você sente alguma coisa estranha e invisível no seu
rosto, quer tirá-la, mas não, não consegue, não há como se
livrar...
Há muitos desses fios, especialmente ao longo do Muro
Verde, onde eu caminhava hoje pela manhã: I havia me
designado para encontrá-la na Casa Antiga, naquele nosso
“apartamento”.
Eu já estava próximo à enorme massa da Casa Antiga
quando ouvi atrás de mim os passos curtos e apressados de
alguém, a respiração rápida. Olhei para trás: O vinha me
alcançando.
Ela toda parecia um tanto especial, perfeita e firmemente
arredondada. Os braços, as taças dos seus seios – e todo o
seu corpo – que me eram tão familiares, haviam se tornado
arredondados, esticando o seu unif: o material fino se
romperia a qualquer instante, deixando-a exposta ao sol, à
luz. Uma imagem me veio à mente: lá, na mata verde, na
primavera, com a mesma obstinação os brotos se abrem
através da terra e logo crescem ramos, folhas, flores.
Ela permaneceu em silêncio por alguns segundos, com o
azul brilhante mirando meu rosto.
– Eu vi você naquele dia, no Dia da Unanimidade.
– Também vi você... – E imediatamente me lembrei dela,
parada lá embaixo, na passagem estreita, contra a parede,
cobrindo o ventre com os braços. Olhei sem querer para o
seu ventre arredondado sob o unif.
Ela, evidentemente, notou isso, e se pôs toda arredondada
e rosada, e um sorriso cor-de-rosa.
– Estou tão feliz, tão feliz... Eu estou completa,
compreende: estou transbordando. Caminho e não ouço nada
ao redor, ouço apenas meu interior, dentro de mim...
Fiquei em silêncio. No meu rosto havia algo estranho, que
me incomodava, e de maneira nenhuma pude me livrar
daquilo. E súbito, inesperadamente, o azul brilhando ainda
mais, ela pegou minha mão, e senti seus lábios nela... Foi a
primeira vez na minha vida. Uma espécie de carinho antigo,
que eu desconhecia até então, e a vergonha e a dor que ele
causou foi tanta que eu (talvez até de modo grosseiro) tirei a
mão.
– Escute, você perdeu a cabeça! E não apenas com isso,
mas em geral... Por que você está tão feliz? Por acaso você
esqueceu o que te espera? Se não agora, então, dentro de um,
ou dois meses...
Sua alegria se apagou; todos os seus arredondados se
envergaram e murcharam. E no meu coração surgiu uma
compressão desagradável, até dolorosa, ligada ao sentimento
de pena (o coração não é diferente de uma bomba ideal;
compressão, contração – absorção de líquido – são um
absurdo técnico; daí fica claro quão essencialmente absurdos,
antinaturais e doentios são todos os “amores” e “penas” etc.
que provocam tal compressão).
Silêncio. O Muro, de um verde turvo, estava à minha
esquerda. A massa vermelho-escura estava à frente. E essas
duas cores, somadas, trouxeram-me uma visão resultante,
uma ideia brilhante, como me pareceu.
– Espere! Sei como salvar você. Livrarei você de ver seu
próprio filho e depois morrer. Poderá amamentá-lo, poderá
ver como ele cresce em seus braços, arredondar-se,
amadurecer como um fruto...
Ela se pôs a tremer dos pés à cabeça, agarrou-se em mim.
– Você se lembra daquela mulher... Enfim, aquela de algum
tempo atrás, no passeio... Pois bem, ela está aqui agora, na
Casa Antiga. Vamos até ela e garanto que vou arranjar tudo
imediatamente.
Já pude ver nós dois, eu e I, conduzindo-a pelos
corredores: eu a vi lá, entre as flores, a grama, as folhas... Mas
ela deu um passo para trás, as pontinhas rosadas de sua
meia-lua estremeceram e se curvaram para baixo.
– Aquela, a outra? – ela disse.
– Quero dizer... – fiquei perturbado por alguma razão. –
Bem, sim: ela mesma.
– E você quer que eu vá até ela e peça para... Não se atreva
a me dizer isso nunca mais!
Curvada, ela rapidamente se afastou de mim. E, como se
houvesse se esquecido de algo, ela se virou e gritou:
– Que eu morra, sim! Você não tem nada com isso, para
você não dá tudo no mesmo?
Silêncio. Pedaços de torres e paredes azuis caíam lá de
cima e, com uma terrível rapidez, cresciam diante dos meus
olhos, mas ainda tinham horas, talvez dias, para voar pelo
infinito. Os fios invisíveis flutuavam lentamente, instalando-se
no meu rosto, e de nenhuma maneira pude sacudi-los, livrar-
me deles.
Lentamente, dirigi-me à Casa Antiga. No coração, uma
compressão absurda e dolorosa...
30ª ANOTAÇÃO

Resumo:

O último número.
O erro de Galileu. Não
seria melhor?
Segue a minha conversa com I ontem na Casa Antiga, entre
o barulho multicolorido que abafava o movimento lógico do
pensamento – cores vermelhas, verdes, amarelo-bronze,
brancas, alaranjadas... O tempo todo sob o sorriso petrificado
em mármore do antigo poeta de nariz arrebitado.
Reproduzirei essa conversa ao pé da letra porque me
parece que há um significado enorme e determinante para o
destino do Estado Único. E mais: para o destino do Universo.
Além disso, vocês, meus leitores desconhecidos, talvez
possam encontrar aqui alguma justificativa para o meu...
Sem nenhuma preparação, I despejou tudo em mim de uma
só vez:
– Eu sei que depois de amanhã você fará o primeiro voo de
teste da “Integral”. Nesse dia nós a tomaremos em nossas
mãos.
– Como? Depois de amanhã?
– Sim. Sente-se, não se preocupe. Não podemos perder
nem um minuto. Entre as centenas de números detidos
ontem, ao acaso, pelos Guardiões, há 12 Mefi. Se deixarmos
dois ou três dias se passarem, eles serão mortos.
Permaneci em silêncio.
– Para observar o progresso do experimento, eles
precisam enviar a você técnicos eletricistas, mecânicos,
médicos e meteorologistas. E exatamente às 12h – lembre-se
–, quando soar o sinal do almoço e todos forem ao refeitório,
nós ficaremos no corredor e trancaremos todos no refeitório,
e a “Integral” será nossa... Você compreende: isso precisa ser
feito a qualquer custo. A “Integral” em nossas mãos será uma
arma que nos ajudará a pôr um fim em tudo de uma vez,
rápido e sem dor. Os aeros deles... Ah! Serão apenas
mosquitos insignificantes contra um falcão. E depois, se for
inevitável, poderemos apontar para baixo o escape dos
motores e apenas terão o trabalho de...
Sobressaltei-me:
– Isso é inconcebível! Um absurdo! Por acaso não está
claro que o que você está começando é uma revolução?
– Sim, uma revolução! Por que isso é absurdo?
– É um absurdo porque uma revolução não é possível.
Porque a nossa (eu é que digo e não você), a nossa revolução
foi a última. E não é possível haver outras revoluções. Todo
mundo sabe disso...
Um zombeteiro triângulo pontiagudo de sobrancelhas:
– Meu querido: você é um matemático. Inclusive mais do
que isso: um filósofo da matemática. Então: fale-me sobre o
último número.
– O que você quer dizer? Eu... Eu não entendo: que último?
– Bem, o último, o mais elevado, o maior.
– Mas, I, isso é um completo absurdo. Os números são
infinitos, que último número é esse que você quer?
– E que última revolução é essa que você quer? Não há
última, as revoluções são infinitas. Último é para as crianças:
o infinito as assusta, e é imprescindível que as crianças
durmam tranquilamente à noite...
– Mas qual é o sentido, qual é o sentido de tudo isso, pelo
Benfeitor? Qual é o sentido, uma vez que já somos todos
felizes?
– Suponhamos... Então está bem: que seja assim. O que
vem depois?
– Que piada! Uma pergunta completamente infantil. Conte
alguma coisa às crianças, do início ao fim, e certamente vão
perguntar: e depois? Por quê?
– As crianças são os únicos filósofos valentes. E filósofos
valentes são necessariamente crianças. E é exatamente assim,
como as crianças, devemos sempre perguntar: e depois?
– Não há nada depois! Ponto-final. Por todo o universo,
uniformemente, distribuído por todas as partes...
– A-ha! Uniformemente, em todas as partes! E aqui está a
mesma entropia, a entropia psicológica. Para você, para um
matemático, talvez não esteja claro que é apenas na
diferença, na diferença entre temperaturas, é apenas nos
contrastes térmicos, é apenas neles que reside a vida. E se
por toda parte, por todo universo, houvesse corpos de igual
calor ou de igual frieza... Eles precisam colidir para obter
fogo, explosão, geena.[7] E nós os faremos colidir.
– Mas I, entenda, entenda: nossos antepassados fizeram
exatamente isso na época da Guerra dos Duzentos Anos...
– Oh, e eles estavam certos, mil vezes certos. Eles
cometeram apenas um erro: posteriormente, acreditaram
que tinham o último número – o que não existe na natureza,
não existe. O erro deles foi o erro de Galileu: ele estava certo
de que a Terra gira ao redor do Sol, mas não sabia que todo o
Sistema Solar se move ao redor de um centro, não sabia que a
real, e não relativa, órbita da Terra, não é de forma alguma
um círculo ingênuo...
– E vocês?
– Nós, por enquanto, sabemos que não existe último
número. Talvez esqueçamos. Não, talvez esqueçamos quando
ficarmos velhos, como todos ficam velhos inevitavelmente. E
então, também inevitavelmente cairemos como as folhas das
árvores no outono, como depois de amanhã você... Não, não,
querido, você não. Você está do nosso lado, você está do
nosso lado!
Afogueada, num torvelinho, radiante, eu nunca a vira
assim. Ela me abraçou com todo o corpo. Eu desapareci...
Por fim, olhando-me de maneira sólida e firme nos olhos:
– Então se lembre bem: às 12h.
E eu disse:
– Sim, lembrarei.
Ela foi embora. Fiquei só entre a algazarra turbulenta e
dissonante de azuis, vermelhos, verdes, amarelo-bronze,
laranja...
Sim, às 12h... – e, de repente, tive o sentimento absurdo de
que algo estranho havia se instalado no meu rosto, algo de
que eu não podia me livrar de maneira alguma. De repente,
era a manhã de ontem, Iu estava gritando na cara de I... Por
quê? Que absurdo foi aquele?
Apressei-me em sair, chegar rápido em casa, em casa...
Em algum lugar atrás de mim, ouvi o grito estridente dos
pássaros sobrevoando o Muro. E adiante, no sol poente – de
luz cor de framboesa cristalizada –, os globos das cúpulas, as
enormes e ardentes casas cúbicas, raios congelados no céu, o
pináculo da Torre Acumuladora. E tudo isso, toda essa
impecável beleza geométrica, eu mesmo, com minhas
próprias mãos, devo... Será que não há alguma outra saída,
outro caminho?
Passei por um auditório (não me lembro do número).
Dentro, bancos estavam empilhados; no centro, as mesas
estavam cobertas por lençóis de vidro branco como a neve;
sobre o branco havia uma mancha de sangue rosado, de sol.
Oculto por trás de tudo isso havia um misterioso, e por isso
terrível, amanhã. É anormal que um ser pensante e capaz de
ver tenha que viver entre irregularidades, incógnitas e Xs. É
como se o vendassem e o obrigassem a andar tateando e
tropeçando, e você sabe que em algum lugar bem perto há
uma beirada, e mais um passo e de você apenas restará um
pedaço achatado e disforme de carne. Por acaso, isso não é a
mesma coisa?
... E se, sem esperar, eu me atirar de cabeça? Essa não
seria a única maneira, a correta, de me desvencilhar de tudo
de uma vez?

7. Palavra de origem aramaica e hebraica que neste contexto se relaciona ao


Inferno, Hades, Purgatório. [N. de T.]
31ª ANOTAÇÃO

Resumo:

A grande operação.
Perdoei tudo. Uma colisão
de trens.
Estamos salvos! No último momento, quando parecia que
não havia nada em que se agarrar, quando parecia que tudo
estava acabado...
Era como se você houvesse subido os degraus que levam
até a terrível Máquina do Benfeitor e, com um pesado
retinido, fosse coberto pela Campânula de vidro, e pela última
vez na vida, rapidamente devorasse com os olhos o céu azul...
E, de repente, tudo isso foi só um “sonho”. O sol aparece
rosado e alegre; e a parede, que alegria é passar a mão pela
parede fria; o travesseiro, é um deleite sem fim a marca
deixada pela sua cabeça no travesseiro branco...
Foi aproximadamente isso o que experimentei quando li
hoje de manhã a Gazeta do Estado. Fora um sonho terrível e
ele acabara. E eu, um covarde, incrédulo, já estava pensando
em me matar. Estou envergonhado de ler agora as últimas
linhas que escrevi ontem. Mas não importa: que fiquem assim,
como uma memória das coisas inacreditáveis que poderiam
acontecer e das que nunca... sim, nunca acontecerão!...
Na primeira página da Gazeta do Estado brilhava:

ALEGREM-SE,
Porquanto a partir de hoje vocês são perfeitos! Até o dia
de hoje suas criações, mecanismos, eram mais perfeitos que
vocês.
POR QUÊ?
Cada faísca de um dínamo é uma faísca de pura razão;
cada movimento de um pistão é um silogismo imaculado. Mas
será que essa mesma razão infalível não existe em vocês?
A filosofia dos guindastes, prensas e bombas é perfeita e
clara como um círculo de compasso. Mas será a sua filosofia
menos perfeita que um compasso?
A beleza do mecanismo está na imutabilidade e exatidão
do ritmo, como um pêndulo. Mas vocês, criados desde a
in ância no sistema Taylor, não adquiriram a exatidão de um
pêndulo?
E APENAS MAIS UMA COISA:
MECANISMOS NÃO TÊM IMAGINAÇÃO.
Alguma vez vocês viram na fisionomia do cilindro de uma
bomba formar-se um sorriso distante, com ar estúpido de
sonhador, enquanto trabalha? Alguma vez vocês ouviram os
guindastes à noite, nas horas determinadas para o descanso,
dar voltas inquietas e suspirando?
NÃO!
Tenham vergonha! Os Guardiões, com cada vez mais
frequência, veem esses sorrisos e suspiros. E escondam os
olhos, os historiadores do Estado Único pedem demissão para
não registrar eventos tão vergonhosos.
Mas não é sua culpa, vocês estão doentes. O nome dessa
doença é:
IMAGINAÇÃO.
É um verme que rói sua testa, deixando rugas negras. É
uma febre que o intimida a correr cada vez mais distante,
ainda que esse “distante” comece onde termina a felicidade.
Essa é a última barricada no caminho para a felicidade.
Alegrem-se, ela já foi dinamitada.
O caminho está livre.
A última descoberta da Ciência do Estado: o centro da
imaginação está num lamentável nódulo cerebral na região
da Ponte de Varólio. Uma tripla cauterização nesse nódulo
com raios-X e vocês estarão curados da imaginação.
PARA SEMPRE.
Vocês são perfeitos, vocês são como máquinas, o caminho
para a felicidade está cem por cento livre. Apressem-se todos,
velhos e jovens, apressem-se para se submeter à Grande
Operação. Apressem-se para os auditórios onde se executa a
Grande Operação. Viva a Grande Operação! Viva o Estado
Único! Viva o Benfeitor!

... Se vocês houvessem lido tudo isso, não por meio de


minhas anotações, semelhantes a algum antigo romance
excêntrico, mas se tivessem nas mãos, como eu tenho, esta
trêmula folha de jornal ainda cheirando à tinta, se como eu
vocês soubessem que tudo isso é a mais pura realidade, senão
de hoje, de amanhã... Vocês não sentiriam a mesma coisa que
sinto agora? Não perderiam a cabeça como eu agora? Não
correriam pela espinha e pelos braços essas terríveis e doces
agulhas de gelo? Não se sentiriam como um gigante, um Atlas,
que, se endireitando, certamente acertaria a cabeça no teto
de vidro?
Peguei o telefone:
– I-330... Sim, sim: 330 – em seguida, engasgando, gritei: –
Você está em casa, certo? Você leu? Você está lendo? Mas
isso é, isso é... É maravilhoso!
– Sim... – um silêncio longo e sombrio. O fone zumbia
quase inaudível, pensava em alguma coisa... – Preciso vê-lo
hoje, sem falta. Sim, na minha casa após as 16h. Sem falta.
Querida! Tão querida! “Sem falta”... Eu senti que estava
sorrindo e de maneira nenhuma conseguia parar. Eu
carregaria esse sorriso pela rua como um lampião, no alto,
sobre minha cabeça...
Lá fora, o vento me fustigava. Fazia redemoinhos,
assobiava, açoitava. Mas apenas me fez mais alegre. Brade,
uive, não importa: você não pode derrubar estas paredes
agora. Sobre minha cabeça, as nuvens esvoaçantes de ferro
desabando – que venham: não podem obscurecer o sol,
pregamo-as para sempre no zênite, em fileira, nós, Josués,
filhos de Num.
Na esquina, havia uma densa aglomeração de Josués, filhos
de Num, com as testas coladas à parede de vidro. Lá dentro,
havia uma pessoa deitada sobre a mesa de um branco
ofuscante. Embaixo desse branco, vislumbrava-se o ângulo de
uns pés descalços amarelados, médicos brancos debruçavam-
se sobre a cabeceira, uma mão branca estendia para outra
uma seringa cheia de algum líquido.
– E você, por que não entra? – perguntei a ninguém em
particular, ou melhor, a todos.
– E você? – uma esfera virou-se para mim.
– Eu vou depois. Primeiro tenho que...
Afastei-me um pouco desconcertado. Eu realmente
precisava vê-la primeiro, I. Mas por que “primeiro”, não pude
responder...
O hangar. A “Integral” brilhava, cintilava um azul de gelo.
Na maquinaria, o dínamo zumbia docemente, repetindo sem
fim a mesma palavra, como se fosse familiar, minha. Inclinei-
me e acariciei o tubo longo e frio do motor. Querida... Tão, tão
querida. Amanhã você ganhará vida, amanhã, pela primeira
vez na sua existência, estremecerá pelo fogo abrasador das
faíscas no seu ventre...
Com que olhos eu teria olhado para esse poderoso
monstro de vidro se tudo houvesse permanecido como
ontem? Se eu soubesse que amanhã às 12h eu a trairia... sim,
trairia...
Com cuidado, um toque no meu cotovelo. Virei-me, o rosto
do Segundo Construtor, plano como um prato.
– Você já sabe? – ele disse.
– O quê? A Operação? Pois, não é verdade? Como tudo,
tudo de uma só vez...
– Não, não é isso: o voo experimental foi suspenso até
depois de amanhã. Tudo por causa da Operação... Nos
apressamos em vão, nos esforçamos...
“Tudo por causa da Operação”... Engraçado, que pessoa
limitada. Não vê nada além do seu prato. Se ele soubesse que,
se não fosse pela Operação, amanhã às 12h ele estaria
trancado numa caixa de vidro, subindo e descendo pelas
paredes...
Minha habitação, às 15h30. Entrei e vi Iu. Ela estava
sentada atrás da minha mesa, com a mão direita, ossuda e
firme, apoiando a bochecha direita. Ela devia estar esperando
há bastante tempo porque, quando entrei, deu um salto ao
meu encontro. Em sua bochecha ficou a marca dos cinco
dedos.
Por um segundo, lembrei-me daquela manhã infeliz em que
ela estava aqui mesmo, junto à mesa, ao lado de I, enfurecida...
Mas foi apenas por um segundo, ela foi lavada imediatamente
pelo sol de hoje. Assim acontece se o dia está claro e, ao
entrar no cômodo, você acende o interruptor por distração: a
lâmpada se acende, mas é como se ela não estivesse ali – tão
ridícula, precária, desnecessária.
Sem pensar: estendi-lhe as mãos e perdoei tudo – ela
agarrou minhas mãos e com força, espinhosa, apertou-as, e
suas bochechas pendiam como adornos antigos,
estremecendo de emoção. Ela disse:
– Estava esperando... só um minuto... só queria dizer como
estou feliz, como estou contente por você! Você compreende:
amanhã, depois de amanhã, você estará completamente
curado, você nascerá de novo...
Vi uma folha de papel na mesa – as duas últimas páginas
das minhas notas de ontem: estavam no mesmo lugar, como
eu as deixara à noite. Se ela visse o que escrevi ali... Aliás, não
importa: agora é apenas história, agora isso está
ridiculamente distante, como num binóculo invertido...
– Sim – eu disse – e sabe: agora mesmo eu andava pela
avenida e havia uma pessoa na minha frente, e sua sombra se
projetava no pavimento. E imaginem: a sombra brilhava. E
acho, bem, tenho certeza, de que amanhã não haverá mais
sombras, nem de uma pessoa, nem de uma coisa, o sol
atravessará tudo...
Ela, com delicadeza e severidade:
– Você é um sonhador! Eu não permitiria que as minhas
crianças na escola falassem assim...
E continuou falando sobre as crianças, como levara todas
de uma só vez, em grupo, para a Operação, e como foram
obrigados a amarrá-las... e que “é necessário o amor sem
piedade, sim, sem piedade”, e que ela, ao que parece, no final
decidirá...
Ela ajustou o tecido cinza-azulado entre os joelhos, em
silêncio e rapidamente, cobriu-me com um sorriso dos pés à
cabeça e foi embora.
E, felizmente, hoje o sol ainda não havia parado, o sol
corria, e já eram 16h. Bati na porta, o coração batendo...
– Entre!
Eu estava no chão, ao lado da sua poltrona, abraçando
suas pernas, minha cabeça atirada para trás, olhando em
seus olhos, alternando entre um e outro, e vendo-me, a cada
olhada, num maravilhoso cativeiro...
E, do outro lado da parede, uma tempestade, as nuvens
faziam-se cada vez mais ferrosas: que se façam! Na minha
cabeça as palavras – apertadas, furiosas – transbordavam – e
em voz alta eu voava junto com o sol para algum lugar... Não,
agora já sabemos para onde, e havia planetas atrás de mim,
planetas espalhando chamas e habitados por flores
cantantes, de fogo; planetas mudos, azuis, em que pedras
racionais se uniram numa sociedade organizada, planetas que
alcançaram, como a nossa Terra, o ápice da felicidade cem
por cento absoluta...
De repente, de cima:
– Você não acredita que o ápice é justamente a união das
pedras numa sociedade?
Um triângulo mais e mais pontiagudo e obscuro:
– E a felicidade... Sério? Afinal, os desejos são torturantes,
não é? E claro: a felicidade acontece quando não há mais
desejos, nem mesmo um... Que erro, que preconceito ridículo
de, até agora, colocarmos um sinal de mais diante da
felicidade. Diante da felicidade absoluta, é claro, deveria
haver um sinal de menos, o divino menos.
Lembro-me de murmurar perplexo:
– Menos absoluto, 273°...
– Menos 273, exatamente. Um pouco frio, mas será que
isso não é o que demonstra que estamos no ápice?
Como antes, há muito tempo, de alguma maneira ela falava
como se fosse eu, por mim, desenvolvia meus pensamentos
até o fim. Mas nisso havia algo tão terrível que não suportei e
com esforço arranquei de dentro de mim um “não”.
– Não – eu disse –, você... você está brincando...
Ela começou a rir alto, alto demais. Rapidamente, num
segundo, ela riu até certo limite, tropeçou e caiu... Pausa.
Levantou-se. Colocou a mão no meu ombro. E me encarou
demorada e lentamente. Depois, me puxou para si, e não havia
mais nada, apenas seus afiados e quentes lábios.
– Adeus!
Isso veio de longe, de cima, e demorou a me atingir, talvez
um ou dois minutos.
– Como assim, “adeus”?
– Você está doente, cometeu crimes por mim, isso não é
uma tortura para você? E agora existe a Operação, e você vai
se curar de mim. Isso é um adeus.
– Não – gritei.
Um triângulo implacável, agudo e escuro no branco:
– Como? Você não quer ser feliz?
Minha cabeça se rachava, dois trens da lógica colidiram,
subiram um no outro, destroçaram-se, partiram-se...
– Bem, então o que vai ser, estou esperando, escolha: a
Operação e a felicidade cem por cento, ou...
“Não posso sem você, não devo sem você” – eu disse ou
pensei ter dito, não sei, mas I ouviu.
– Sim, eu sei – ela me respondeu. E então, ainda me
segurando pelos ombros e sem deixar meus olhos: – Bem, até
amanhã. Amanhã, às 12h: você se lembra?
– Não. Foi adiado por um dia... Depois de amanhã...
– Para nós é ainda melhor. Às 12h, depois de amanhã...
Caminhava sozinho pela rua na luz do crepúsculo. O vento
me girava, carregava-me, perseguia-me como um papel,
pedaços do céu férreo voavam pelo céu, voavam pelo infinito,
teriam mais um dia ou dois voando... Os unifs pelo caminho
esbarravam em mim, mas eu caminhava sozinho. Para mim
estava claro: todos estavam salvos, mas para mim não havia
mais salvação, eu não queria a salvação...
32ª ANOTAÇÃO

Resumo:

Não acredito. Tratores.


Uma lasca humana.
Vocês acreditam que vão morrer? Sim, o homem é mortal,
eu sou um homem, logo... Não, não é isso: eu sei que vocês
sabem disso. Estou perguntando: alguma vez vocês
acreditaram nisso, acreditaram definitivamente, acreditaram
não com a mente, mas com o corpo, sentiram que um dia os
dedos que seguram esta mesma página ficarão amarelos,
gelados...?
Não: certamente não acreditam, e é por isso que até agora
vocês não saltaram do décimo andar, é por isso que até agora
vocês continuam comendo, virando a página, barbeando-se,
sorrindo, escrevendo...
A mesma coisa, sim, exatamente a mesma coisa está se
passando comigo hoje. Sei que esse pequeno ponteiro negro
no meu relógio desliza em direção à meia-noite e voltará a
subir lentamente, passará pelo último traço e chegará o
amanhã improvável. Eu sei disso, mas por alguma razão não
acredito, ou talvez, porque estas 24 horas parecem passar
como 24 anos. E é por isso que eu ainda consigo fazer alguma
coisa, apressar-me até algum lugar, responder perguntas e
subir a escada que leva ao topo da “Integral”. Ainda sinto
como ela balança na água, e percebo que é necessário
agarrar-me ao corrimão, o vidro é frio sob as mãos. Vejo
como os guindastes são vívidos e transparentes, curvando os
pescoços de grou, esticando os bicos e alimentando com
cuidado e carinho o motor da “Integral” com o assustador
alimento explosivo. Embaixo, no rio, vejo claramente as veias
e os nódulos azuis hidráulicos inflarem com o vento. Mas tudo
isso era completamente apartado de mim, alheio, plano, como
um desenho numa folha de papel. E, de maneira estranha, o
desenho do rosto achatado do Segundo Construtor de
repente falou:
– Bem, então: quanto combustível colocaremos no motor?
Se calcularmos que são três... bem, três horas e meia...
Diante de mim – no projeto, no desenho – o contador na
minha mão, o mostrador logarítmico, a cifra 15.
– Quinze toneladas. Mas é melhor colocar... sim,
coloquemos cem...
Disse isso porque, afinal, eu sabia que amanhã...
De soslaio, vi que de maneira quase imperceptível minha
mão com o mostrador começara a tremer.
– Cem? Mas para que essa quantidade tão grande? Isso é
suficiente para uma semana. Que uma semana, mais!
– Não importa... quem sabe...
– Eu sei...
O vento assobiava, o ar estava completamente carregado
até o topo com alguma coisa invisível. Eu respirava com
dificuldade, andava com dificuldade, e com dificuldade,
lentamente, sem parar nem por um segundo, o ponteiro do
relógio deslizava na Torre Acumuladora, no final da avenida.
O pináculo da Torre estava nas nuvens, apagado, azulado, e
soltava um uivo surdo ao sugar a eletricidade. Também
uivavam as trombetas da Fábrica Musical.
Como sempre, estávamos em filas de quatro pessoas. Mas
as filas pareciam pouco compactas, talvez por causa do vento
elas oscilassem, curvassem-se cada vez mais. Na esquina,
chocamo-nos com alguma coisa, retrocedemos num denso,
imóvel aglomerado, com a respiração acelerada, e
imediatamente todos esticaram os longos pescoços de ganso.
– Olhem! Não, olhem ali, rápido!
– Eles! São eles!
–... Mas eu, de jeito nenhum! De jeito nenhum, é melhor
enfiar a cabeça na Máquina...
– Silêncio! Você está louco...
Na esquina, no auditório, a porta estava escancarada, e de
lá saía uma lenta e pesada coluna de cinquenta pessoas.
Pensando bem, “pessoas” não é o correto: não tinham pés,
mas umas rodas forjadas e pesadas, movidas por
acionamento invisível; não eram pessoas, mas algum tipo de
tratores humanoides. Sobre as cabeças, carregavam uma
bandeira branca balançando ao vento com um sol dourado
bordado e, nos raios, a inscrição: “Nós somos os primeiros! Já
fomos operados! Sigam-nos todos!”.
De maneira lenta e impetuosa eles atravessaram a
multidão e, claramente, se houvesse no caminho deles uma
parede, uma árvore, um prédio, de forma alguma eles
parariam – atravessariam a parede, a árvore, o prédio. Eles já
estavam no centro da avenida. Unidos pelas mãos, esticavam-
se numa corrente, vindo de frente para nós. E nós, tensos,
com as cabeças eriçadas, esperávamos. Os pescoços de ganso
esticados. Nuvens. O vento assobiava.
De repente, os flancos da corrente, à direita e à esquerda,
rapidamente começaram a se curvar em nossa direção, cada
vez mais rápido, como uma máquina pesada sob uma
montanha, comprimiram-nos num anel em direção à porta,
para dentro das portas...
Alguém soltou um grito estridente:
– Estão nos empurrando para dentro! Corram!
Todos saíram correndo. Perto da parede ainda restara
uma abertura estreita no anel vivo, e todos se atiraram para
lá com as cabeças na frente, cabeças momentaneamente
afiadas como cunhas e cotovelos, costelas, ombros, quadris
pontiagudos. Como um jato de água comprimido de uma
mangueira de incêndio, espalharam-se ao redor em forma de
leque batendo os pés, sacudindo os braços, os unifs. Em
algum lugar, por um instante, vi de relance um corpo
duplamente encurvado, como a letra S, com orelhas como
asas transparentes. E então desapareceu, como que tragado
pela terra, fiquei só entre e êmeros braços e pernas, corri...
Parei para descansar um pouco em alguma entrada, as
costas coladas firmemente na porta e, em seguida, algo veio a
mim, como o vento, e uma pequena lasca humana cravou-se
em mim.
– O tempo todo eu... vim atrás de você... Não quero,
compreende, não quero. Eu concordo...
Mãos pequenas e arredondadas na minha manga, olhos
azuis arredondados: era ela, era O. Ela pareceu deslizar pela
parede e sentou-se no chão. Encolheu-se como uma bolinha,
nos degraus frios, e eu fiquei sobre ela, acariciando sua
cabeça, seu rosto, minhas mãos ficaram molhadas. Senti-me
como se eu fosse muito grande e ela bem pequena, uma
pequena parte de mim mesmo. Foi absolutamente diferente
do que com I, e, naquele momento, imaginei que devia ser algo
semelhante ao que os antigos sentiam em relação às suas
crianças particulares.
Embaixo, através das mãos que cobriam seu rosto, quase
inaudível:
– Todas as noites eu... Eu não posso, se eles me curarem...
Todas as noites, sozinha, na escuridão, penso nele, em como
ele será, como irei... Não terei nada pelo que viver, você
entende? Você precisa, você precisa...
Um sentimento absurdo, mas de fato estava certo: sim, eu
precisava. Absurdo porque esse meu dever era mais um
crime. Absurdo porque o branco não pode ser preto ao
mesmo tempo, dever e crime não podem coincidir. Ou na vida
não há nem preto, nem branco, e a cor depende apenas de
uma premissa lógica fundamental. E se a premissa foi a de
que dei a ela um filho ilegalmente...
– Pois, tudo bem, não precisa, não precisa... – disse eu. –
Você compreende que tenho que levá-la até I, como propus
antes, para que ela...
– Sim... (falou baixo, sem tirar as mãos do rosto).
Ajudei-a a se levantar. Em silêncio, cada um com seus
pensamentos, ou, talvez, pensando na mesma coisa,
prosseguimos pela rua que escurecia, entre casas mudas, cor
de chumbo, por galhos cheios que o vento açoitava...
Em algum ponto transparente e tenso, em meio ao assobio
do vento, ouvi atrás de nós passos familiares, chapinhando
como se atravessassem uma poça de água. Na esquina, olhei
ao redor e, entre as nuvens invertidas que voavam refletidas
no vidro pálido do pavimento, vi S. Imediatamente, meus
braços se tornaram estranhos, balançando fora de ritmo, e
falei alto para O que amanhã... Sim, amanhã aconteceria o
primeiro voo da “Integral”, e seria algo absolutamente sem
precedentes, miraculoso, espantoso.
O ficou surpresa, olhou para mim com os olhos redondos e
azuis, para o meu ruidoso e sem sentido balançar de braços.
Mas não a deixei dizer nenhuma palavra, eu falava sem parar.
E dentro de mim, isolado – audível apenas para mim –,
martelava e zumbia febrilmente o pensamento: “Não devo... é
necessário de alguma maneira... Não devo levá-lo conosco até
I...”.
Ao invés de virar à esquerda, virei à direita. A ponte
oferecia, obediente e servil, suas costas arqueadas a nós três:
eu, O e S, atrás. As luzes dos prédios iluminados do outro lado
da margem derramavam-se na água, rompendo-se em
milhares de faíscas que saltitavam febrilmente, salpicadas de
uma espuma branca e furiosa. O vento uivava, como se em
algum ponto não muito alto houvesse uma corda de
contrabaixo esticada. E, por entre o som do contrabaixo,
continuava nos seguindo...
O prédio onde moro. Na porta, O se deteve, começou a
dizer algo:
– Não! Você me prometeu...
Mas não a deixei terminar, empurrei a porta depressa e
entramos no vestíbulo. Sobre a mesa do supervisor,
bochechas caídas e familiares estremeciam de agitação; ao
redor – um grupo denso de números – havia alguma
discussão. Cabeças penduradas no segundo andar por cima
da balaustrada desciam correndo, uma a uma. Mas voltarei a
isso depois, depois... Naquele momento, apressei-me em levar
O para o canto oposto, sentei-me de costas para a parede (ali,
atrás da parede, vi a sombra escura de uma cabeça grande
deslizar para frente e para trás na calçada), saquei meu bloco
de notas.
O lentamente sentou-se numa cadeira, e parecia que, sob o
seu unif, o corpo havia se evaporado, derretido, e apenas
restara uma roupa vazia e olhos vazios, que sugavam para um
vácuo azul. Cansada:
– Por que você me trouxe aqui? Você me enganou?
– Não... silêncio! Olhe ali: vê atrás da parede?
– Sim. Uma sombra.
– Ele esteve o tempo todo atrás de mim... Eu não posso.
Entenda que eu não devo. Escrevo duas palavras, você vai
pegar o bilhete e ir sozinha. Sei que ele ficará aqui.
Sob o seu unif, um corpo roliço de novo pôs-se em
movimento, seu ventre se arredondou e nas bochechas, quase
imperceptível, um amanhecer, uma aurora.
Coloquei o bilhete entre os seus dedos frios, apertei sua
mão com força e pela última vez meus olhos encheram-se do
azul dos olhos dela.
– Adeus! Talvez algum dia...
Ela retirou a mão. Curvada, pôs-se a caminho devagar, deu
dois passos, virou-se rapidamente e de novo estava ao meu
lado. Os lábios se moviam, e, com os olhos, com os lábios, com
ela inteira, repetiam a mesma palavra várias e várias vezes
para mim; e que sorriso insuportável, que dor...
Depois, aquela lasca humana curvada apareceu na porta,
uma minúscula sombra atrás da mesa, sem olhar para trás,
depressa, mais depressa...
Aproximei-me da pequena mesa de Iu. Com as guelras
agitadas, indignadas e infladas, ela disse para mim:
– Você compreende, é como se todos estivessem loucos!
Este aqui garante que ele mesmo viu perto da Casa Antiga um
tipo de pessoa nua e coberta de pelos...
Do amontoado de pessoas, uma cabeça eriçada do grupo,
uma voz:
– Sim! Mais uma vez, repito que vi sim.
– Bem, como você gosta disso, não é? Quanta insanidade!
E esse “insanidade” ela disse com tanta segurança e
inflexibilidade que me perguntei: “Não seria realmente uma
insanidade tudo isso que vem se passando comigo e ao meu
redor nos últimos tempos?”.
Mas lancei um olhar para as minhas mãos peludas e
lembrei-me: “Você provavelmente tem algumas gotas de
sangue da floresta... Talvez seja por isso que eu também te...”.
Não: felizmente, não era uma insanidade. Não:
infelizmente, não era uma insanidade.
33ª ANOTAÇÃO

Resumo:

(Sem resumo, às pressas,


a última.)
O dia havia chegado.
Rapidamente peguei o jornal: talvez ali... Li o jornal com os
olhos (exatamente: naquele momento meus olhos eram como
uma pena, como um contador que você segura, sente nas
mãos, são alheios, são um instrumento).
Ali, em letras garrafais, por toda a primeira página:

OS INIMIGOS DA FELICIDADE NÃO DORMEM. AGARREM-


SE À FELICIDADE COM AS DUAS MÃOS! AMANHÃ O
TRABALHO SERÁ SUSPENSO E TODOS OS NÚMEROS
DEVEM COMPARECER À OPERAÇÃO. OS QUE NÃO
COMPARECEREM ESTARÃO SUJEITOS À MÁQUINA DO
BENFEITOR.

Amanhã! Por acaso pode ainda haver algum amanhã?


Pela inércia cotidiana, estendi a mão (instrumento) até a
estante de livros, coloquei o jornal de hoje junto com os
demais numa encadernação dourada. E no caminho:
“Por quê? Isso importa? Aqui, a esse quarto, eu nunca
mais, nunca...”
E o jornal cai no chão. E fico em pé olhando tudo em volta,
todo o cômodo, recolho apressado e enfio febrilmente numa
mala invisível tudo aquilo que tenho pena de deixar para trás.
A mesa. Os livros. A poltrona. Uma vez I se sentara nela,
enquanto eu estava embaixo, no chão... A cama...
Depois, por um ou dois minutos, esperei ridiculamente por
algum milagre, talvez o telefone tocasse, talvez ela dissesse
para...
Não. Nenhum milagre.
Vou embora para o desconhecido. Essas são minhas
últimas linhas. Adeus a vocês, desconhecidos, vocês, queridos,
com quem vivi por tantas páginas, a quem eu, doente da alma,
mostrei tudo sobre mim, até o último parafusinho solto, até a
última mola quebrada...
Vou embora...
34ª ANOTAÇÃO

Resumo:

Os libertos. Noite
ensolarada. Rádio
Valquíria.
Oh, se eu realmente tivesse me destruído em mil pedaços,
se eu, realmente, junto com ela, me encontrasse em algum
lugar fora do Muro, entre as feras com as presas amarelas à
mostra, se eu realmente nunca tivesse voltado aqui. Teria sido
mil vezes, milhões de vezes mais fácil. E agora o quê? Sair e
estrangular aquela... Mas isso ajudaria em alguma coisa?
Não, não, não! Controle-se, D-503. Coloque-se no firme
eixo da lógica, ainda que seja por pouco tempo, empurre a
alavanca com todas as suas forças e, como um antigo servo,
mova as mós do silogismo. Enquanto não escrever, sua cabeça
não racionalizará tudo o que aconteceu.
Quando entrei a bordo da “Integral”, todos já estavam
reunidos, em seus lugares, todos os gigantescos favos da
colmeia de vidro estavam cheios. E através do convés de
vidro: lá embaixo, pessoas minúsculas como formigas junto
aos telégrafos, dínamos, transformadores, altímetros,
válvulas, ponteiros, motores, bombas, tubos. Na cabine de
refeições, alguns números estavam debruçados sobre tabelas
e instrumentos, provavelmente faziam parte de uma missão
enviada pelo Departamento de Ciência. Ao lado deles, o
Segundo Construtor com dois de seus assistentes.
Os três tinham cabeças como de tartarugas, enterradas
nos ombros, os rostos cinzentos, de outono, sem brilho.
– Bem, e então? – perguntei.
– Bem... É um pouco assustador... – um deles disse, com
um sorriso cinzento, sem brilho. – Talvez tenhamos que
aterrissar num local desconhecido. Em geral, não há como
saber...
Era insuportável olhar para eles, para aqueles que eu, com
minhas próprias mãos, dentro de uma hora privarei para
sempre das confortáveis cifras da Tábua das Horas,
arrancarei do seio maternal do Estado Único. Eles me
recordaram as trágicas figuras dos “Três libertos”, uma
história que qualquer criança de escola conhece. É uma
história sobre como três números, na qualidade de
experimento, foram liberados do trabalho por um mês: para
fazer o que quisessem, ir aonde quisessem.[8] Os infelizes
perambulavam próximo ao local habitual de trabalho,
espreitando-o com olhos famintos; ficavam nas praças e, por
horas a fio, executavam aqueles movimentos que eram
determinados pela hora do dia e que haviam se convertido
numa necessidade do organismo: serravam e aplainavam o ar,
brandiam martelos invisíveis e golpeavam lingotes invisíveis.
E, finalmente, no décimo dia, não suportaram mais: de mãos
dadas, entraram na água sob o som da Marcha e
submergiram cada vez mais fundo, até que a água afogou seus
tormentos...
Repito: era difícil observá-los. Apressei-me para partir.
– Vou apenas verificar a sala das máquinas – eu disse –,
depois partiremos.
Perguntavam-me sobre qual voltagem utilizar para a
detonação do lançamento, o quanto de água para o lastro na
cisterna da popa. Havia um tipo de gramofone dentro de mim:
ele respondia a todas as questões com rapidez e precisão sem
interromper o que se passava no meu interior.
E, de repente, num corredorzinho estreito, algo me
acertou, dentro de mim, e naquele momento, de fato, tudo
começou.
Nesse estreito corredorzinho passaram rapidamente unifs
cinza, rostos cinza, e entre eles, num instante: um deles tinha
o cabelo puxado para baixo, os olhos sob a fronte – aquele
mesmo homem. Compreendi que eles estavam aqui, e não
havia para onde fugir, restavam apenas poucos minutos,
algumas dezenas de minutos... Um minúsculo tremor
molecular atravessou todo o meu corpo (e não cessou até que
tudo estivesse acabado) como se fosse gerado por um enorme
motor, mas a edificação do meu corpo era leve demais e,
então, todas as paredes, divisórias, cabos, vigas e luzes
puseram-se a tremer...
Ainda não sabia se ela estava ali. Mas não havia mais
tempo, vieram atrás de mim para me apressar a voltar para
cima, para a cabine de comando: era hora de partir... Para
onde?
Rostos cinzentos e sem brilho. Cabos azuis e tensos
embaixo, na água. O céu em pesadas camadas de ferro.
Levantei a mão, também de ferro, peguei o telefone de
comando.
– Para cima, 45°!
Uma explosão surda, um impulso, uma montanha de água
branco-esverdeada na popa – o convés se movia sob os
nossos pés –, suave, de borracha – e tudo embaixo, toda a
vida, para sempre... Durante um segundo, afundávamos mais
profundamente, como numa espécie de funil, tudo ao redor
diminuía – o relevo azulado de gelo do recorte da cidade, as
pequenas bolhas arredondadas das cúpulas, o solitário dedo
plúmbeo da Torre Acumuladora. Depois, atravessamos uma
cortina de nuvens instantâneas de algodão – e então o sol, o
céu azul. Segundos, minutos, milhas – o azul endureceu
rapidamente, encheu-se de escuridão, e as estrelas surgiram
como gotas de suor frio e prateado...
Em seguida, uma noite assombrosa, intoleravelmente
brilhante, escura, estrelada e ensolarada. Era como se tornar
surdo de repente: você ainda vê os tubos roncando, mas
apenas os vê: os tubos estão mudos, em silêncio. Assim era o
sol: mudo.
Tudo isso era natural, o que devíamos esperar. Saímos da
atmosfera terrestre. Mas foi tudo tão rápido, inesperado, e
todos ao redor ficaram assustados, silenciosos. E para mim –
para mim, parecia que tudo era mais fácil sob esse sol
fantástico e mudo: era como se eu me encolhesse pela última
vez e já tivesse cruzado um umbral inevitável, e meu corpo foi
deixado em algum lugar lá embaixo, enquanto eu voava para
um mundo novo, onde tudo devia ser diferente, de cabeça
para baixo...
– Mantenha o curso – eu gritei para a sala das máquinas;
ou não fui eu, mas aquele gramofone dentro de mim, que, com
seu braço mecânico articulado, passou o receptor de
comando para o Segundo Construtor. E eu, envolto por
finíssimas moléculas que só eu ouvia tremer, corri para baixo,
para procurar...
A porta da cabine de refeições, a mesma que dentro de
uma hora irá ressoar e se fechar... Perto da porta havia
alguém que eu não conhecia, baixinho, tinha o rosto de
centenas, de milhares que se perdem na multidão, apenas os
braços eram anormalmente longos, até os joelhos: como se,
por engano, às pressas, houvesse pegado os braços de outro
conjunto humano.
Os braços longos se esticaram obstruindo a passagem:
– Aonde vai?
Ficou claro que ele não sabia que eu estava a par de tudo.
Pois bem, talvez deva ser assim. E de cima, de maneira ríspida
e proposital:
– Eu sou o Construtor da “Integral”. Sou o responsável
pelo experimento. Entendeu?
Os braços baixaram.
A cabine de refeições. Sobre os instrumentos e mapas,
cabeças circundadas por uma cabeleira cinzenta, cabeças
amarelas, calvas, maduras. Dei uma rápida olhada neles, voltei
pelo corredor, desci a escada do alçapão para a sala das
máquinas. Lá dentro: o calor e o estrépito dos canos
incandescentes com as detonações, manivelas brilhando
numa desesperada e ébria prisiadka[9], e, sem parar por um
segundo, o tremor quase imperceptível dos ponteiros dos
mostradores...
E, então, finalmente, próximo ao tacômetro, estava ele,
com a testa projetada sobre um livro de notas...
– Escute... (Um estrondo: era necessário gritar direto nos
ouvidos.) Ela está aqui? Onde?
Na sombra, sob a fronte, um sorriso:
– Ela? Lá, na sala de radiotelefonia...
E eu me dirigi para lá. Havia três deles. Todos em
capacetes auditivos alados. E ela parecia ter a cabeça mais
alta do que nunca, alada, brilhante, voando como as antigas
Valquírias. Parecia que acima dela, na antena de rádio, saíam
enormes faíscas azuis, e também um leve odor relampejante
de ozônio.
– Alguém... não, melhor que seja você... – eu disse a ela,
sem fôlego (por causa da corrida). – Preciso transmitir para
baixo, para a Terra, no hangar... Venha, eu ditarei...
Ao lado da sala de instrumentos havia uma pequena
cabine. Sentamos à mesa, lado a lado. Encontrei sua mão e
apertei-a com força:
– E então? O que vai acontecer?
– Não sei. Você compreende que isso é maravilhoso: voar
sem saber, não importa para onde... E logo serão 12h, e quem
sabe o que vai acontecer? À noite... onde estaremos à noite,
nós dois? Talvez na grama, nas folhas secas...
Faíscas azuis e um cheiro de relâmpago emanavam dela, e
meu tremor ficava cada vez mais rápido.
– Escreva – eu disse alto e ainda sem fôlego (da corrida). –
Horário: 11h30. Velocidade: 6.800...
Ela, sob o capacete alado, sem tirar os olhos do papel,
disse baixinho:
–... Ontem à noite ela veio me procurar com o seu bilhete...
E sei, eu sei de tudo: fique quieto. Mas o bebê é mesmo seu?
Eu a enviei, ela já está lá, fora do Muro. Ela viverá...
De volta à sala de comando. Novamente: a noite delirante
com o céu negro estrelado e o sol ofuscante, o ponteiro do
relógio na parede lentamente mancava de um minuto a outro;
e tudo parecia nebuloso, vestido finamente por um tremor
quase imperceptível (exceto para mim).
Por alguma razão, pareceu-me que era melhor que tudo se
passasse não aqui, mas em algum lugar mais baixo, mais
próximo à Terra.
– Pare – gritei para a máquina.
Tudo prosseguia, pela inércia, mas cada vez mais
lentamente. A “Integral” prendeu-se por um fio de segundo,
ficou suspensa e imóvel por um momento. Em seguida, o fio se
partiu, e a “Integral” caiu como uma pedra, numa velocidade
crescente. Permanecemos em silêncio por uns minutos,
dezenas, minha pulsação era audível, o ponteiro aproximava-
se das 12h diante dos meus olhos. E ficou claro: eu era uma
pedra, I era a Terra, eu era uma pedra atirada por alguém e
tinha a necessidade insuportável de se chocar com a Terra e
se fazer em mil pedaços... E se... abaixo já era visível a densa e
azulada fumaça das nuvens... e se...
Mas o gramofone dentro de mim, articulado e preciso,
pegou o fone e comandou “curso lento” – e a pedra parou de
cair. E então, apenas os quatro auxiliares inferiores – dois na
popa e dois na proa – repousaram para neutralizar o peso da
“Integral”, e a nave, com um leve tremor, parou no ar, firme,
como numa âncora, a cerca de um quilômetro da Terra.
Saímos todos para o convés (eram quase 12h, soaria o
toque do almoço) e, inclinados sobre a amurada de vidro,
apressadamente, tragamos de uma vez o mundo
desconhecido, lá embaixo, fora do Muro. Âmbar, verde e azul:
a floresta outonal, as planícies, um lago. Na beirada desse
pequeno pires azul havia alguma coisa amarelada, ruínas de
ossos, um dedo ressecado amarelo e ameaçador, devia ser a
torre de uma antiga igreja que, por milagre, sobreviveu.
– Olhem, Olhem! Lá, à direita!
Lá, no deserto verde, uma mancha com uma sombra
marrom voava com rapidez. Eu tinha um binóculo nas mãos,
mecanicamente levei-o aos olhos: uma manada de cavalos
castanhos galopava com a vegetação na altura do peito, os
rabos levantados, no dorso, levavam aqueles seres castanhos,
brancos, negros como um corcel...
Atrás de mim:
– Estou lhe dizendo: vi um rosto.
– Vá, conte essa para outra pessoa!
– Bem, tome, tome os binóculos...
Mas já haviam desaparecido. O deserto verde sem fim...
O tremor estridente da campainha invadiu esse deserto, a
mim e a todos os outros: o almoço seria dentro de um minuto,
12h.
O mundo foi momentaneamente disperso em fragmentos
desconexos. A placa dourada de alguém caiu nos degraus e
ressoou, mas não dei importância: quebrei-a com o calcanhar.
Uma voz: “Estou lhe dizendo que era um rosto!”. Um
quadrado escuro: a porta aberta da cabine de refeições.
Dentes brancos cerrados, pontiagudos num sorriso...
E, naquele momento, quando o relógio começou a bater
infinita e lentamente, sem respirar entre uma batida e outra,
e as primeiras filas já se punham em movimento, o quadrado
da porta, de repente, foi cruzado por dois braços familiares,
pouco naturais e longos:
– Parem!
Dedos se cravaram na palma da minha mão. Era I, era ela
ao meu lado:
– Quem é? Você o conhece?
– Será... por acaso não é...
Ele subiu nos ombros de alguém. Acima de centenas de
rostos – seu rosto, como o de centenas, milhares, e único
entre todos eles:
– Em nome dos Guardiões... Vocês, a quem me dirijo, me
ouvem, cada um de vocês me ouve, digo a vocês: nós sabemos.
Não sabemos ainda seus números, porém, sabemos de tudo. A
“Integral” não será de vocês! O teste será levado a cabo, não
se atrevam a se mover, vocês irão concluí-lo com suas
próprias mãos. E depois... bom, isso é tudo...
Silêncio. A laje de vidro sob meus pés ficou mole, como de
algodão, e minhas pernas também ficaram moles, de algodão.
Ela, ao lado, com um sorriso inteiramente branco, com faíscas
raivosas azuladas. Entre dentes, no meu ouvido:
– Foi você? Você “cumpriu o seu dever”? Bem, o que...
Ela tirou a mão da minha. Com raiva, o capacete alado da
Valquíria afastou-se para algum lugar lá na frente. Eu estava
sozinho, petrificado, calado, como todos os outros. Dirigi-me
para a cabine de refeições...
“Mas não fui eu, não fui eu! Não falei com ninguém sobre
isso, além daquelas páginas brancas e mudas...” Dentro de
mim – inaudível, desesperadamente, alto – gritei isso a ela.
Ela se sentou do lado oposto da mesa, e não pousou o olhar
em mim uma vez sequer. Ao lado dela, a careca amarelo-
madura de alguém. Eu pude ouvir (era I):
– “Nobreza”? Mas, meu caro professor, até mesmo uma
simples análise filológica dessa palavra demonstra que ela é
um preconceito, uma reminiscência dos antigos, da época
feudal. E nós...
Senti que estava empalidecendo e todos veriam... Mas o
gramofone dentro de mim executou os cinquenta movimentos
mastigatórios prefixados a cada mordida. Fechei-me em mim
mesmo como uma antiga casa não transparente, atravanquei
a porta com pedras, tapei as janelas...
Mais tarde, o telefone de comando estava em minhas mãos,
e o voo rumo à última e fria tristeza, entre as nuvens, rumo à
noite gelada, estrelada e ensolarada. Minutos, horas. E,
evidentemente, dentro de mim o motor silencioso da lógica
trabalhava febrilmente o tempo todo, porque, de repente,
num ponto, no espaço azul: vi minha escrivaninha, atrás dela
as bochechas em forma de guelras de Iu, uma página
esquecida das minhas notas. E ficou claro: ninguém, a não ser
ela, tudo ficou claro...
Ah, ao menos se... ao menos se eu pudesse chegar ao
rádio... Os capacetes alados, o cheiro de relâmpagos azuis...
Lembro-me de ter dito alguma coisa em voz alta para ela e
lembro-me dela, olhando através de mim, como se eu fosse de
vidro, de longe:
– Estou ocupada: recebo lá de baixo. Dite a ela...
Na minúscula cabine, depois de pensar por um minuto,
ditei com firmeza:
– Hora: 14h40. Descendo! Desligar motores. É o fim de
tudo.
A sala de comando. O coração mecânico da “Integral”
havia parado. Nós caíamos, e meu coração não teve tempo de
cair junto, desprendeu-se e subia para a minha garganta.
Nuvens, em seguida uma mancha verde ao longe, ficando mais
verde, mais distinta, um turbilhão movendo-se velozmente em
nossa direção, o fim se aproximava...
O deformado rosto do Segundo Construtor, branco como
louça. Provavelmente foi ele quem me empurrou com toda a
força. Bati a cabeça contra alguma coisa, e tudo ficou escuro
enquanto eu caía. Nebulosamente, ouvi:
– Motores de popa, a toda velocidade!
Um solavanco brusco para cima... Não me lembro de mais
nada.

8. Isso foi há muito tempo, ainda no século III, após a criação das Tábuas. [N. do A.]

9. Passo de dança tradicional russa, que consiste na alternância entre as pernas


esticadas e dobradas, com o dançarino na posição agachada. [N. de T.]
35ª ANOTAÇÃO

Resumo:

Num aro. Uma cenoura.


Um assassinato.
Não dormi a noite toda. A noite toda pensando numa
coisa...
Depois de ontem, a minha cabeça foi firmemente presa
com ataduras. E parecia que não eram bandagens, mas um
aro; um cruel aro de vidro e aço preso na minha cabeça, e eu
me encontrava preso no mesmo tipo de círculo forjado: matar
Iu. Matar Iu e depois procurar I e dizer-lhe: “Agora você
acredita?”. O mais repugnante é que matar é algo sujo, antigo;
partir os miolos de alguém trazia a sensação estranha de algo
detestavelmente doce na boca. Eu não conseguia engolir
minha saliva, o tempo todo tinha que cuspir num lenço, minha
boca estava seca.
No armário, havia uma pesada biela de pistão que se
quebrara após a fundição (eu precisava examinar a ruptura
na estrutura pelo microscópio). Enrolei minhas anotações
num tubo (que ela leia tudo, até a última letra), enfiei dentro
de uma parte do pistão e desci. A escada era interminável, os
degraus, repugnantes e escorregadios, líquidos, o tempo todo
eu secava a boca com o lenço...
Embaixo. Meu coração palpitava. Parei, saquei a biela e fui
até a mesinha de controle...
Mas Iu não estava lá: a superfície gelada estava vazia.
Lembrei-me: hoje todos os trabalhos foram suspensos; todos
deviam comparecer à Operação, e fazia sentido: não havia por
que ela estar ali, ninguém para registrar...
Na rua. Vento. Um céu de lajes de ferro fundido flutuando.
E, como se fosse um certo momento de ontem: o mundo todo
se quebrando em pedaços pontiagudos e independentes, e,
caindo depressa, cada um deles parava por um segundo,
pendurados no ar diante de mim, evaporando-se então sem
deixar rastros.
Era como se as letras negras e precisas desta página de
repente se movessem e num susto se espalhassem por toda
parte, e não restasse nenhuma palavra, apenas algo absurdo:
sust – palh – part. Na rua a multidão estava dispersa, não
estavam em filas, iam para frente, para trás, para o lado, de
través.
E já não havia ninguém. E, por um segundo, algo passou
correndo a toda pressa e parou, imóvel: lá, no segundo andar,
num quadrado de vidro, pendurado no ar, um homem e uma
mulher beijavam-se em pé, o corpo dela curvado para trás
como se fosse quebrar. Foi a última vez, para sempre...
Em alguma esquina, uma moita de cabeças espinhosas se
movia. Sobre as cabeças – separada, como no ar –, uma
bandeira com as palavras: “Abaixo as Máquinas! Abaixo a
Operação!”. E separado (de mim) –, pensei por um segundo:
“Será que cada um possui tamanha dor que só possa ser
arrancada de dentro de si junto com o coração, e que todos
precisem fazer algo antes que...”. E, por um segundo, não
existia nada no mundo, além das (minhas) mãos de fera com
um cilindro pesado de ferro fundido...
Então: um menininho, todo ele para frente, uma sombra
sob o lábio inferior. Ele estava torcido como o punho de uma
manga enrolada, todo o seu rosto estava torcido, e ele
berrava, fugindo de alguém o mais rápido que podia, um ruído
de passos atrás dele...
O menininho me lembrou: “Sim, Iu deve estar na escola
agora, preciso me apressar”. Corri para a entrada da via
subterrânea mais próxima.
Na porta, correndo, alguém:
– Não estão andando! Os trens hoje não estão funcionando!
Lá...
Desci. Lá estava um delírio absoluto. O brilho de facetados
sóis de cristal. A plataforma cheia de cabeças apinhadas. Um
trem imóvel e vazio.
No silêncio, uma voz. Era dela, não estava visível, mas eu
conhecia, eu conhecia aquela voz que açoitava, ágil e flexível
como um chicote – e em algum ponto, aquele triângulo
pontiagudo de sobrancelhas até as têmporas... E gritei:
– Deixem-me passar! Deixem-me ir até lá! Eu preciso...
Mas as pinças de alguém me aprisionaram pelos braços,
pelos ombros, como pregos. E, no silêncio, uma voz:
–... Não: corram para cima! Lá eles os curarão, os
alimentarão até vocês se fartarem da felicidade rica, e,
saciados, vocês dormirão em paz, de maneira organizada, no
ritmo, roncando. Será que vocês não ouvem essa grandiosa
sinfonia de roncos? Eles são ridículos: querem libertar vocês
das interrogações tortuosas que, como vermes, roem
dolorosamente. Mas vocês estão aqui me ouvindo. Rápido,
para cima, para a Grande Operação! Que importa a vocês que
eu fique aqui sozinha? Que importa a vocês que eu não queira
que os outros queiram por mim, mas quero querer por mim
mesma, se quero o impossível...?
Outra voz, lenta e pesada:
– A-ha! O impossível? Isso quer dizer perseguir as suas
fantasias idiotas, enquanto eles balançam o rabo diante do
seu nariz. Não: pegaremos esse rabo e o esmagaremos,
depois...
– E então, engulam e ronquem, precisarão de novos rabos
diante do nariz. Dizem que os antigos tinham um animal: o
burro. Para obrigá-lo a andar para frente, sempre para
frente, amarravam uma cenoura numa vara diante do seu
focinho, de maneira que ele não pudesse pegar. E se pegasse e
engolisse...
De repente, as pinças me soltaram. Corri em direção ao
centro onde ela falava, e naquele momento todos se
precipitaram, amontoaram-se, ouviu-se um grito vindo de
trás: “Para cá, eles estão vindo para cá!”. Uma luz surgiu e se
apagou – alguém havia cortado os cabos, uma avalanche,
gritos, estertor, cabeças, dedos...
Não sei quanto tempo corremos pelos túneis
subterrâneos. Finalmente: degraus, crepúsculo, mais
claridade, e nos encontrávamos de novo na rua, como um
leque, indo para lados diferentes...
E então fiquei só. Ventava, um crepúsculo cinzento, baixo,
logo acima da minha cabeça. Bem fundo, no vidro úmido da
calçada, luzes refletidas, paredes, figuras se movendo com os
pés para cima. O pacote incrivelmente pesado que eu levava
nas mãos me puxava para baixo, para as profundezas.
Embaixo, Iu ainda não estava atrás de sua mesa, a sua
habitação estava vazia e escura.
Subi para meu quarto, acendi as luzes. Minhas têmporas
latejavam, comprimidas pelo arco, eu andava pelo quarto e
parecia que tudo estava preso naquele mesmo círculo: a
mesa, o pacote branco sobre ela, a cama, a porta, a mesa, o
pacote branco... No quarto à esquerda, as cortinas estavam
fechadas. À direita: uma careca cheia de protuberâncias
debruçada sobre um livro, e na testa uma enorme parábola
amarela. Suas rugas formavam uma série de linhas
amareladas incompreensíveis. Às vezes, nossos olhos se
encontravam, e então senti que aquelas linhas amarelas
falavam a respeito de mim.
... Aconteceu exatamente às 21h. A própria Iu veio até mim.
Apenas uma coisa ficou vivamente marcada em minha
memória: eu respirava tão alto que, quando ouvi minha
respiração, tentei silenciá-la de alguma maneira, mas não
consegui.
Ela se sentou, arrumou o unif nos joelhos. As guelras
rosadas e marrons agitavam-se.
– Ah, querido, é verdade, você está ferido? Acabei de
saber, agora mesmo...
A biela estava diante de mim, sobre a mesa. Levantei-me
bruscamente, a respiração ficou ainda mais alta. Ela ouviu,
parou na metade da palavra e, por alguma razão, também se
levantou. Eu já podia ver o lugar em sua cabeça, sentia uma
detestável doçura na boca... o lenço, mas eu estava sem o
lenço. Cuspi no chão.
O número atrás da parede, à direita, as rugas amarelas
fixas em mim. Ele não deve ver, será mais repugnante se ele
vir... Apertei o botão –, não fazia diferença não ter permissão,
já não importava mais – as cortinas se fecharam.
Ela, é evidente, sentiu, compreendeu e correu para a
porta. Mas eu me adiantei, respirando ruidosamente, nem por
um segundo tirei os olhos daquele local na sua cabeça...
– Você... você ficou louco! Não se atreva... – Ela recuou de
costas, sentou-se, ou melhor, caiu na cama e, tremendo,
escondeu as palmas das mãos entre os joelhos. Como uma
mola tensa, prendendo-a pelos olhos, estiquei lentamente o
braço até a mesa e, movendo apenas uma mão, peguei a biela.
– Eu imploro! Um dia, apenas um dia! Amanhã, amanhã
mesmo farei tudo...
Do que ela estava falando? Levantei...
Considero que a matei. Sim, vocês, meus leitores
desconhecidos, vocês têm o direito de me chamar de
assassino. Eu sei que desceria a biela na sua cabeça se ela não
tivesse gritado:
– Pelo... pelo... Concordo, eu... farei agora.
Com as mãos trêmulas, ela arrancou o unif, o corpo amplo,
amarelo e flácido tombou na cama... E só então eu
compreendi: ela pensou que fechei as cortinas para... que eu
queria...
Aquilo foi tão inesperado, tão tolo, que eu caí na
gargalhada. Imediatamente, a mola tensa se rompeu, a mão
fraquejou, a biela fez um estrondo no chão. Naquele
momento, por experiência própria, vi que o riso é a arma
mais terrível: o riso pode matar tudo, inclusive o assassinato.
Sentei à mesa e ri desesperadamente, como se fosse o
último riso, e não consegui ver nenhuma saída para essa
situação ridícula. Não sei como tudo isso teria terminado se
prosseguisse seu curso natural, mas, de repente, um novo
componente externo: o telefone começou a tocar.
Lancei-me na sua direção e peguei o fone: talvez fosse ela?
Do outro lado, soou uma voz desconhecida:
– Agora.
Um zumbido penoso e sem fim. Ao longe, passos pesados,
chegando mais perto, mais sonoros, mais metálicos, e então...
– D-503? Sim... aqui fala o Benfeitor. Venha até mim
imediatamente!
Clic – o telefone desligou. – Clic.
Iu ainda estava deitada na cama com os olhos fechados, as
guelras se abriram num sorriso largo. Removi suas roupas do
chão, atirei nela, e entre dentes:
– Vamos! Se apresse, se apresse!
Ela se levantou um pouco, apoiando-se nos cotovelos, os
seios espalhados para os lados, os olhos redondos, toda de
cera.
– Como?
– Isso mesmo. Vamos, se vista!
Ela se dobrou num nó, agarrou-se às roupas com firmeza e
disse, com a voz diminuída:
– Vire-se...
Virei-me, apoiei a testa no vidro. No espelho escuro e
úmido tremiam luzes, figuras, faíscas. Não: era eu, dentro de
mim... Por que Ele me chamara? Será que Ele já sabia sobre
ela, sobre mim, sobre tudo?
Iu, já vestida, estava junto à porta. Dei dois passos até ela e
apertei sua mão de tal maneira que era exatamente como se
houvesse extraído as gotas do que eu precisava:
– Escute... O nome dela, você sabe de quem falo, você
contou a alguém? Não? Apenas a verdade, eu preciso... Não
importa, apenas a verdade...
– Não.
– Não? Mas por quê? Já que você foi até lá para informar...
Seu lábio inferior de repente virou do avesso, como o
daquele menininho, e da bochecha escorriam gotas, pelas
bochechas...
– Porque eu... eu tive medo que se ela fosse... que por
causa disso você poderia... você deixaria de me am... Oh, não
posso, eu não poderia!
Percebi que era verdade. Uma ridícula e engraçada
verdade humana!
Abri a porta.
36ª ANOTAÇÃO

Resumo:

Páginas vazias. O deus


cristão. Sobre minha mãe.
É estranho, minha cabeça parecia uma página branca e
vazia: como cheguei até lá, como esperei (sei que esperei), não
me lembro de nada, nem de um único som, nem de um único
rosto, nem de um único gesto. Era como se todos os fios que
me conectam ao mundo houvessem sido cortados.
Quando retomei a consciência, eu já estava diante Dele,
aterrorizado demais para levantar os olhos: vi apenas Suas
enormes mãos de ferro fundido sobre os joelhos. Essas mãos
pressionavam até dobrar-Lhe os joelhos. Lentamente, Ele
moveu os dedos. O rosto estava em algum lugar em meio à
neblina, no alto, e parecia que Sua voz, só porque chegava a
mim de tal altura, não ribombava como um trovão, não me
deixara surdo, mas parecia uma voz humana comum.
– Pois bem, você também? Você, o Construtor da
“Integral”? Você, a quem foi concedido tornar-se um grande
conquistador. Você, cujo nome deveria iniciar um capítulo
novo e esplêndido na história do Estado Único... Você?
O sangue subiu-me à cabeça e às bochechas, de novo uma
página em branco: apenas as têmporas pulsando, uma voz de
cima, mas nenhuma palavra. Somente quando ele parou de
falar, eu voltei a mim e vi: a mão se moveu com o peso de 100
pudes, deslizando lentamente, um dedo se fixou em minha
direção.
– Então? Por que você se cala? Sou ou não sou? Sou um
carrasco?
– É, sim – respondi, obediente. Em seguida, ouvi
claramente cada uma de Suas palavras.
– O quê? Você acha que tenho medo dessa palavra?
Alguma vez você tentou tirar sua casca e ver o que tem
dentro? Vou lhe mostrar. Lembre-se: uma colina azul, uma
cruz, uma multidão. Alguns, no alto, salpicados de sangue,
pregam um corpo na cruz; embaixo, outros observam,
salpicados de lágrimas. Não lhe parece que o papel dos que
estão no alto é o mais difícil, o mais importante? Se não fosse
por eles, seria possível realizar toda essa magnífica tragédia?
Eles foram vaiados pela multidão ignorante: mas, por tudo
isso, o autor dessa tragédia, Deus, devia tê-los recompensado
ainda mais generosamente. O próprio Deus cristão e
misericordioso queimava lentamente no fogo do inferno todos
os insubmissos. Ele não é um carrasco? E não são menos os
queimados pelos cristãos nas fogueiras do que os cristãos
queimados? E, contudo, compreenda isso, contudo, esse Deus,
ao longo dos séculos foi glorificado como o Deus do amor.
Absurdo? Não, ao contrário: é uma permissão, escrita com
sangue, do inerente juízo humano. Mesmo naquela época, os
selvagens e desgrenhados compreendiam: o verdadeiro amor
algébrico em relação à humanidade é a crueldade – um
atributo indispensável da verdade. Assim como o fogo, seu
verdadeiro atributo é queimar. Mostre-me um fogo que não
queima! Então, justifique, discuta!
Como eu poderia discutir? Como eu poderia discutir
quando esses eram meus pensamentos (anteriores), apenas
nunca os revesti com uma armadura tão forjada e brilhante.
Fiquei calado...
– Se isso significa que você está de acordo comigo, então
vamos falar como adultos, quando as crianças já foram
dormir: sobre tudo, até o fim. Pergunto: pelo que as pessoas,
desde o berço, suplicavam, sonhavam, sofriam? Com alguém
que de uma vez por todas lhes dissesse o que é a felicidade e
depois as prendesse a essa felicidade com uma corrente... E o
que fazemos agora, senão exatamente isso? Os antigos
sonhavam com o Paraíso... Recorde que no Paraíso não se
conhece o desejo, não se conhece a pena, não se conhece o
amor. Nele existem apenas os bem-aventurados com a
imaginação operada (é por isso que são bem-aventurados): os
anjos, servos de Deus... E justamente nesse momento, quando
já alcançamos esse sonho, quando o agarramos assim (Sua
mão se fechou: se segurasse uma pedra, dela brotaria sumo),
quando o que restou é apenas esfolar a presa e reparti-la em
pedaços, nesse exato momento você, você...
O rumor do ferro fundido cessou de repente. Eu estava
todo vermelho, como um lingote numa bigorna sendo
golpeado por um martelo. O martelo estava suspenso sem
dizer nada, esperar era ainda... mais aterroriz...
De repente:
– Quantos anos você tem?
– Trinta e dois.
– Você é duas vezes um ingênuo de dezesseis! Escute: será
que realmente nenhuma vez lhe passou pela cabeça que eles –
ainda não sabemos seus nomes, mas estamos certos de que
saberemos por você – apenas precisaram de você como o
Construtor da “Integral”, apenas para através de você...
– Não! Não! – gritei.
... Era exatamente como proteger-se com as mãos e gritar
para uma bala: você ainda pode ouvir o ridículo “não”,
enquanto a bala já o atravessou queimando e você está no
chão se retorcendo.
Sim, sim: o Construtor da “Integral”... Sim, sim... e
imediatamente: o rosto enfurecido de Iu, com as guelras
vermelhas como tijolinhos tremendo naquela manhã, quando
as duas estavam no meu quarto...
Lembro-me muito claramente: comecei a rir, levantei os
olhos. Diante de mim estava sentado um homem careca,
socraticamente careca, com pequenas gotas de suor
escorrendo.
Como tudo era simples. Como tudo era majestosamente
banal e ridiculamente simples.
O riso me sufocava, saía em turbilhões. Tapei a boca com
as mãos e atirei-me correndo para fora.
Os degraus, o vento, a umidade, estilhaços de luzes
pulando, rostos, e na corrida: “Não! Vê-la! Vê-la apenas mais
uma vez!”.
Então, de novo, uma página vazia, em branco. Lembro-me
apenas: pés. Não de pessoas, mas especificamente de pés:
pisavam fora de sintonia, centenas de pés que caíam de algum
lugar no alto para o pavimento, uma pesada chuva de pés.
Que canção alegre e travessa, e então um grito, que devia ser
para mim: “Ei! Ei! Aqui, conosco!”.
Em seguida, uma praça vazia tomada por um vento forte.
No centro, uma massa enorme, opaca, pesada e terrível: a
Máquina do Benfeitor. E dela ressoou um eco inesperado
dentro de mim: um travesseiro de um branco vivo, nele, uma
cabeça atirada para trás, olhos entreabertos: uma faixa de
dentes doces e pontiagudos... E tudo isso de uma maneira
absurda e terrivelmente conectada com a Máquina – eu sei
como, mas ainda não quero ver, dizer em voz alta, não quero,
não é preciso.
Fechei os olhos e me sentei nos degraus que levavam até a
Máquina. Devia ter chovido: meu rosto estava molhado. Em
alguma parte, ao longe, gritos abafados. Mas ninguém ouviu
meus gritos: salve-me disso, salve-me!
Se eu tivesse tido uma mãe, como os antigos: minha –
exatamente –, minha mãe. Para ela, eu não seria o Construtor
da “Integral”, nem o número D-503, nem uma molécula do
Estado Único, mas simplesmente um fragmento de
humanidade – um pedaço dela mesma –, pisoteado,
esmagado, descartado... E que eu pregue ou seja pregado,
talvez seja a mesma coisa – ela ouviria aquilo que ninguém
mais ouve, seus lábios de velha contraídos e cheio de rugas...
37ª ANOTAÇÃO

Resumo:

O infusório. O fim do
mundo. O quarto dela.
No refeitório, pela manhã, o vizinho da esquerda
sussurrou, assustado:
– Vamos, coma! Estão observando você!
Sorri com todas as minhas forças. Senti um tipo de
rachadura no meu rosto: sorri e as extremidades dessa
rachadura romperam-se, cada vez mais largas, e ficava cada
vez mais doloroso...
Em seguida: acabara de pegar um cubo com o garfo e esse
imediatamente estremeceu na minha mão e retiniu no prato.
Também as mesas, as paredes, a louça, o ar tremeram e
retiniram e, do lado de fora, um estrondo enorme e metálico
subiu até o céu, atravessou nossas cabeças, casas, para
morrer ao longe, quase imperceptível, pequeno, como
círculos na superfície da água.
Por um momento, vi rostos perderem a cor, desbotarem,
bocas que se detiveram no meio do movimento, garfos
parados no ar.
Seguiu-se uma grande confusão, tudo saiu dos trilhos
seculares. Todos se levantaram num salto (sem haver cantado
o Hino), terminando de mastigar negligentemente, sem ritmo,
engasgando-se, agarrando uns aos outros: “O quê? O que
aconteceu? O quê?”. E como fragmentos desordenados de
uma Máquina uma vez harmoniosa, todos foram para baixo,
de elevador, de escada – passos, palavras cortadas, como uma
carta em pedaços rasgada e jogada ao vento...
Também saíram aos montes dos prédios vizinhos, e num
minuto a avenida ficou como uma gota de água num
microscópio: infusórios presos numa gota de vidro
transparente, confusos, lançando-se para o lado, para cima,
para baixo.
– A-ha! – a voz triunfante de alguém. Diante de mim, uma
nuca e um dedo apontando para cima. Lembro-me muito
distintamente de uma unha amarelo-rosada e, na parte de
baixo dessa unha, uma meia-lua branca, como que saindo do
horizonte. Foi como um compasso: centenas de olhos,
seguindo esse dedo, se voltaram para o céu.
Ali, fugindo de uma perseguição invisível, as nuvens
voavam depressa, esmagavam-se, saltavam umas sobre as
outras, e os aeros dos Guardiões tingidos pelas nuvens
escuras, com seus tubos pretos que pendiam como trombas
e, mais adiante, no oeste, havia algo parecido a...
A princípio, ninguém entendeu o que era aquilo, inclusive
eu não entendi, a quem (infelizmente) havia sido revelado
mais do que a todos os outros. Parecia-se com um imenso
enxame de aeros negros: numa altura inacreditável, pontos
velozes quase imperceptíveis. Cada vez mais próximos, do
alto, gotas de sons roucos e guturais, e, finalmente, pássaros
sobre as nossas cabeças preencheram o céu com triângulos
pontiagudos, negros, estridentes, caindo, a tempestade os
desviava para baixo, eles se assentavam nas cúpulas, nos
telhados, nos postes, nas sacadas.
– A-ha! – virou-se triunfante o homem da nuca. Vi que era
aquele de testa saliente. Mas agora, de seu antigo eu, restara
apenas o título. De alguma maneira, ele saíra de sua eterna
testa saliente e no seu rosto – ao redor dos olhos e dos lábios
– feixes de luz cresciam como fios de cabelo. Ele sorria.
– Você compreende – gritou-me através do uivo do vento,
do bater de asas e dos grasnidos. – Você compreende: o
Muro, explodiram o Muro! Compreende?
De passagem, em algum lugar atrás, vultos apressados, as
cabeças esticadas, correndo rápido para dentro das casas. No
meio do pavimento, uma avalanche de recém-operados
marchavam velozes e, mesmo assim, devagar (por causa do
peso), para o oeste.
... Feixes de raios ao redor dos lábios e dos olhos. Agarrei-
o pela mão:
– Escute: onde ela está, onde está I? Fora do Muro ou...
Preciso saber, está ouvindo? Agora mesmo, não posso...
– Aqui – ele gritou-me, inebriado e alegre, tinha dentes
fortes e amarelos... – Ela está aqui, na cidade, em ação. Oh,
sim, estamos em ação!
Quem somos nós? Quem sou eu?
Próximo, havia uns cinquenta como ele, que rastejaram
para fora de suas grandes testas obscuras, barulhentos,
alegres, dentes fortes. Engoliam a tempestade com as bocas
abertas, agitando um tipo de eletrocutores pacificadores,
benignos (onde eles conseguiram?), eles se puseram na
direção do oeste, atrás dos recém-operados, mas deram a
volta paralelamente, pela Avenida 48...
Tropecei nos cabos esticados que o vento retorcia e corri
até a casa dela. Para quê? Não sei. Tropecei pelas ruas vazias,
uma estranha cidade selvagem, o incessante alarido
triunfante dos pássaros, o fim do mundo. Através das paredes
de vidro, em vários prédios vi (ficou gravado em mim):
números masculinos e femininos copulando sem pudor, sem
sequer fechar as cortinas, sem nenhum bilhete, em plena luz
do dia...
Um edifício, o edifício dela. A porta perplexa estava
escancarada. Embaixo, a mesa do supervisor: vazia. O
elevador estava parado entre os andares. Sem fôlego, corri
para cima, pelas escadas sem fim. O corredor. Rapidamente,
como os raios de uma roda, as cifras nas portas: 320, 326,
330... I-330, sim!
Através da porta de vidro: o quarto inteiro estava
bagunçado, revirado de cabeça para baixo, pisoteado. Uma
cadeira derrubada na pressa, as quatro pernas para cima,
como um animal morto. A cama fora arrancada da parede de
uma maneira absurda e posta de viés. No chão havia talões
cor-de-rosa espalhados e pisoteados como pétalas.
Inclinei-me e apanhei um, dois, três: em todos eles estava
D-503, eu estava em todos, gotas de mim derretidas,
espirrando pelas bordas. E isso era tudo o que restara...
Por alguma razão achei que eles não podiam ficar assim,
pelo chão, onde seriam pisoteados. Peguei mais um punhado
deles e coloquei na mesa, desamassei-os cuidadosamente,
lancei um olhar e... comecei a rir.
Antes eu não sabia disso, agora sei, e vocês também
sabem: o riso tem diferentes cores. É apenas o eco distante
de uma explosão dentro de você: talvez sejam foguetes
festivos, vermelhos, azuis, dourados, ou talvez pedaços do
corpo humano lançado pelos ares...
Num dos talões apareceu um nome completamente
desconhecido. Não me lembro da cifra, apenas da letra F.
Derrubei todos os talões da mesa, pisoteei-os, e a mim, com
os calcanhares – tome, tome isso – e saí...
Sentei-me no peitoril no corredor, do lado contrário à
porta, ainda, tolamente, fiquei esperando por alguma coisa
durante um longo tempo. À esquerda, ouvi passos se
arrastando. Um velho: seu rosto era como uma bolha
perfurada, vazia, na qual se instalaram rugas, e da perfuração
ainda gotejava algo transparente, que escorria lentamente.
Devagar, vagamente, percebi: eram lágrimas. E só quando o
velho já estava longe, me dei conta e gritei-lhe:
– Escute, escute, você não conhece o número I-330...
O velho se virou, fez um gesto desesperado e prosseguiu
mancando...
Retornei à minha casa no crepúsculo. No oeste, a cada
segundo o céu se contraía num espasmo azul pálido, e de lá
vinha um ruído seco e abafado. Os telhados estavam cobertos
por negros tições apagados: eram os pássaros.
Deitei-me na cama, e imediatamente o sonho me dominou
e estrangulou como uma fera...
38ª ANOTAÇÃO

Resumo:

(Não sei qual. Talvez todo o


resumo seja este: um cigarro
jogado fora.)
Despertei, uma luz brilhante fazia meus olhos doerem.
Semicerrei-os. Na cabeça – um tipo de fumaça azulada e
corrosiva, tudo era névoa. E por entre a névoa:
“Mas eu não acendi as luzes, como é que...”
Levantei-me bruscamente. Atrás da mesa, apoiando o queixo
na mão, I olhava para mim com um sorriso malicioso...
Exatamente neste momento, escrevo nesta mesma mesa.
Aqueles dez ou quinze minutos já se passaram, cruelmente
retorcidos numa mola tensa. Para mim, parece que ela acabou de
fechar a porta atrás de si, e que eu ainda posso alcançá-la, pegá-la
pela mão e, talvez, ela riria e diria...
I estava sentada atrás da mesa. Corri para ela.
– Você, você! Eu estive... vi o seu quarto... pensei que você...
Mas no meio do caminho tropecei nas lanças pontiagudas e
imóveis dos seus cílios. Parei. Lembrei-me de que ela me olhara da
mesma maneira antes, na “Integral”. E, naquele momento, num
segundo, precisava explicar tudo a ela e fazê-la acreditar em mim,
do contrário, nunca mais...
– Escute, I. Eu preciso... preciso contar tudo... Não, não, agora
só preciso de um gole de água...
Minha boca estava seca como se estivesse revestida de papel
mata-borrão. Derramei a água, mas não consegui: coloquei o copo
na mesa e agarrei a jarra com força, com as duas mãos.
Naquele momento, eu vi que a fumaça azulada era de um
cigarro. Ela o levou aos lábios, sorveu e tragou o fumo com avidez,
da mesma maneira que eu fizera com a água, e disse:
– Não precisa. Fique calado. Não importa, você verá: apesar de
tudo eu vim. Eles me esperam lá embaixo. E você quer passar os
nossos últimos minutos...
Ela jogou o cigarro no chão, inclinou-se completamente sobre
o braço da poltrona (havia um botão na parede, e ela tinha
dificuldade de alcançá-lo) – ficou gravado na minha memória
como a poltrona se inclinou e seus pés ficaram suspensos. Em
seguida as cortinas se fecharam.
Ela se aproximou e me abraçou com força. Seus joelhos
através da roupa – lento, terno, cálido, o veneno envolvente...
E, de repente... Acontece às vezes: todo submerso num doce e
cálido sonho e, de repente, alguma coisa fura você, você
estremece, e de novo seus olhos estão totalmente abertos... E foi o
que aconteceu: os talões cor-de-rosa pisoteados no chão do
quarto dela, e num deles a letra F e alguma cifra... Entrelaçaram-
se dentro de mim como num novelo, e agora não consigo dizer que
sensação foi aquela, mas apertei-a com tanta força que ela gritou
de dor...
Mais um minuto dos dez ou quinze que restavam: ela estava no
travesseiro branco com a cabeça atirada para trás e os olhos
semicerrados; a linha doce e pontiaguda dos seus dentes. E o
tempo todo eu me lembrava de algo persistente, ridículo e
doloroso que eu não podia, que agora não devia... Eu a apertava
com cada vez mais ternura e crueldade, e as marcas azuis dos
meus dedos ficavam mais vivas...
Ela disse (sem abrir os olhos, notei):
– Dizem que ontem você esteve com o Benfeitor. Isso é
verdade?
– Sim, é verdade.
Então, os olhos se abriram amplamente, e com prazer.
Contemplei seu rosto empalidecendo, apagando-se e sumindo:
ficaram só os olhos.
Contei tudo a ela. Exceto – não sei por quê... não, não é
verdade, eu sei o porquê – exceto uma coisa: o que Ele disse no
final, sobre eles só precisarem de mim para...
Pouco a pouco, seu rosto reapareceu como uma fotografia no
processo de revelação: as bochechas, as listras brancas de
dentes, os lábios. Ela se levantou e se aproximou do espelho na
porta do armário.
De novo minha boca estava seca. Enchi um copo de água, mas
fiquei com nojo de bebê-la. Coloquei o copo na mesa e perguntei:
– É por isso que você veio, porque precisava saber?
Do espelho para mim: um triângulo pontiagudo e zombeteiro
de sobrancelhas alçadas até as têmporas. Ela se virou para dizer
alguma coisa, mas não disse nada.
Não era necessário. Eu sabia.
Despedir-me dela? Movimentei minhas pernas – alheias – e
elas esbarraram na cadeira, que caiu com as pernas para cima,
morta, como aquela no quarto dela. Os lábios dela estavam frios –
tão frios como certa vez o chão daqui mesmo, do meu quarto, ao
lado da cama.
Quando ela foi embora, sentei-me no chão, inclinei-me sobre o
cigarro que ela havia jogado...
Não posso mais escrever, não quero mais!
39ª ANOTAÇÃO

Resumo:

O fim.
Tudo isso foi como o último grão de sal atirado numa solução
saturada: rapidamente, espetando como agulha, os cristais
começaram a se espalhar, solidificando-se, congelando. Para mim
ficou claro: está tudo decidido, amanhã de manhã farei isso. É o
mesmo que me matar, pois, talvez, só então ressuscitarei. Porque
só o que está morto pode ressuscitar.
No oeste, a cada segundo o céu estremecia num espasmo
azulado. Minha cabeça queimava e latejava. Assim passei a noite
inteira e adormeci apenas às 7 da manhã, quando a escuridão já se
dissipava e começava a ficar verde, e os telhados cobertos de
pássaros tornavam-se visíveis...
Despertei: já eram 10 horas (obviamente a campainha não
soara hoje). Na mesa ainda estava o copo de água de ontem.
Engoli a água com avidez e saí correndo: eu precisava fazer tudo
isso rápido, o mais rápido possível.
O céu estava vazio, azul, completamente devorado pela
tempestade. Os cantos angulosos das sombras; tudo era
recortado pelo ar azul outonal – fino – era assustador tocar: se
quebrariam, se dissipariam num pó de vidro. E o mesmo se
passava dentro de mim: eu não devo pensar, não preciso pensar,
não preciso pensar, do contrário...
E não pensei. Inclusive, talvez, nem visse de verdade, mas
simplesmente registrasse. Então, no pavimento, vindos de algum
lugar: ramos de folhas verdes, âmbar e framboesa. No alto,
pássaros e aeros entrecruzavam-se e revolviam-se. E aqui:
cabeças, bocas abertas, mãos balançando ramos. Eles devem ter
sido a fonte dessa gritaria, crocitos, zumbidos...
Depois, as ruas desertas, como se houvessem sido varridas
por alguma peste. Lembro-me de tropeçar em alguma coisa
insuportavelmente macia, flexível, porém imóvel. Inclinei-me: era
um cadáver. Ele jazia de costas, com as pernas abertas e
dobradas, como uma mulher. O rosto...
Reconheci os lábios grossos e negroides que ainda pareciam
salpicar numa risada. Com os olhos severamente entreabertos,
ele ria para mim, diretamente no meu rosto. Num segundo, saltei
por cima dele e corri, porque já não suportava mais, precisava
fazer tudo o mais rápido possível, caso contrário, senti que iria
quebrar, envergar como um trilho sobrecarregado...
Felizmente, já faltavam só uns vinte passos até a placa de
letras douradas: “Departamento dos Guardiões”. Parei na soleira
da porta, respirei fundo, o tanto quanto pude, e entrei.
Lá dentro, no corredor, havia uma fila interminável de
números em pé, com pedaços de papel e cadernos grossos nas
mãos. Lentamente, movia-se um passo, outro, e de novo parava.
Percorri a fila, minha cabeça se partia, eu os agarrava pelas
mangas das roupas, implorava-lhes, como um doente implora
para que lhe deem algo para pôr um fim definitivo ao seu
sofrimento agudo.
Uma mulher usando um cinto alto e muito apertado no unif, os
dois hemisférios ciáticos claramente acentuados movimentando-
se de um lado para outro, o tempo todo, como se eles fossem, de
fato, seus olhos, soltou uma risada na minha direção:
– Ele está com dor de barriga! Levem-no ao banheiro, lá, a
segunda porta à direita...
Risadas na minha direção: e por causa delas algo me veio à
garganta, precisava gritar ou... ou...
De repente, alguém atrás de mim me agarrou pelo cotovelo.
Virei-me: orelhas como asas transparentes. Mas elas não estavam
rosadas como de hábito, mas escarlates: no pescoço, seu pomo de
adão saltava e de uma hora para outra romperia a fina pele do
pescoço.
– Por que você está aqui? – ele perguntou, atarraxando-me
rapidamente.
Também o agarrei pelo cotovelo:
– Rápido, para o seu escritório... Eu preciso contar tudo agora
mesmo! É bom que tenha sido exatamente você... Talvez seja
terrível que exatamente você, mas isso é bom, isso é bom...
Ele também a conhecia, e por isso era ainda mais doloroso,
mas talvez ele também estremecesse quando ouvisse e matasse a
nós dois, e não estarei sozinho nos meus últimos momentos...
A porta bateu. Lembro-me que um papel prendeu debaixo da
porta, arranhando o chão enquanto ela se fechava. Depois, fomos
cobertos por um silêncio vazio e singular, como uma Campânula.
Se ele houvesse dito uma palavra, não importa qual, a palavra
mais insignificante, eu teria despachado tudo de uma vez. Mas ele
ficou em silêncio.
Eu estava tão tenso que meus ouvidos começaram a zumbir,
eu disse (sem olhar para ele):
– Acredito que sempre a odiei desde o início. Lutei... E, aliás,
não, não, não acredite em mim: eu podia ter me salvado, mas não
quis fazê-lo, eu queria morrer, isso tinha mais valor para mim do
que todo o resto... isto é, não morrer, mas que ela... E inclusive
agora, inclusive agora, quando já sei de tudo... Você sabe que o
Benfeitor me chamou?
– Sim, eu sei.
– Mas o que Ele disse para mim... compreenda-me: isso tudo
não importa, é como se agora tivessem arrancado o chão de sob
os seus pés, e você e tudo o que está aqui na sua mesa, o papel, a
tinta... a tinta derramou e tudo está manchado...
– Prossiga, prossiga! E se apresse. Há outros esperando.
Então, resfolegando e me atrapalhando, contei tudo o que
aconteceu, tudo o que está escrito aqui. Sobre o meu eu real, meu
eu desgrenhado, aquilo que ela dissera então sobre as minhas
mãos, sim, exatamente como tudo começou, e como eu não queria
cumprir o meu dever, como me enganei, como ela me conseguiu
falsos atestados médicos e como eu enferrujava dia após dia, os
corredores lá embaixo, e fora do Muro...
Tudo isso em blocos sem sentido, em pedaços, eu estava sem
fôlego, me faltavam palavras. Os lábios torcidos e duplamente
encurvados com um sorriso davam-me as palavras necessárias –
eu assentia agradecido: sim, sim... E então (o que significa isso?)
ele começou a falar por mim, e eu apenas ouvia: “Sim, depois... Foi
exatamente assim, sim, sim!”.
Senti como se passassem éter em volta do meu pescoço, e ele
começasse a congelar, e com dificuldade perguntei:
– Mas como é que... mas você não podia saber de onde...
Seu sorriso, em silêncio, mais irônico... E então:
– Sabe, você queria esconder algo de mim, você enumerou
todos os que observou fora do Muro, mas se esqueceu de um.
Você diz que não? Não se lembra de, fugazmente, por um
segundo, você... ter me visto lá? Sim, sim: a mim.
Pausa.
E, de repente, como um raio, percebi, era vergonhosamente
claro: ele também era um deles... E todo o meu ser, todo o meu
sofrimento, tudo aquilo que, esgotado, com minhas últimas
forças, trouxe para cá como uma vitória – tudo isso era
simplesmente cômico, como a antiga anedota de Abraão e Isaac.
Abraão, suando frio da cabeça aos pés, brandia a faca sobre seu
filho, sobre si mesmo, e de repente uma voz vinda de cima: “Não
vale a pena! Eu estava brincando...”.
Sem tirar os olhos do seu sorrisinho cada vez mais irônico,
apoiei minhas mãos na extremidade da mesa e, lentamente,
lentamente, afastei a cadeira e, em seguida, ao mesmo tempo,
abraçando-me por inteiro, saí correndo, passando por gritos,
degraus, bocas.
Não me lembro de como fui parar lá embaixo, num dos
banheiros públicos da estação subterrânea. Lá em cima tudo
estava sendo destruído, a mais grandiosa e racional civilização da
história estava em colapso, e aqui, por alguma ironia, tudo
permaneceu como antes, maravilhoso. E pensar que tudo estava
condenado, seria tomado pelo verde, e sobre tudo isso haveria
apenas “mitos”...
Comecei a gemer alto. E no mesmo instante senti alguém
acariciar carinhosamente o meu ombro.
Era meu vizinho, sentado à minha esquerda. Sua testa era uma
enorme parábola careca, nela havia linhas amarelas e rugas
ilegíveis. E essas linhas eram sobre mim.
– Eu compreendo, compreendo totalmente – disse ele. – Mas,
apesar disso, se acalme: não precisa ficar assim. Tudo se
restabelecerá, inevitavelmente se restabelecerá. A única coisa
importante é que todos saibam sobre a minha descoberta. Você é
o primeiro a quem conto: calculei que não existe infinito!
Olhei para ele de forma selvagem.
– Sim, sim, estou lhe dizendo: não existe infinito. Se o mundo é
infinito, então a densidade média da matéria nele deve ser igual a
zero. E já que ela não é zero, como sabemos, então, em
consequência, o Universo é finito, é uma forma esférica, e o
quadrado universal do raio, y2, é igual à densidade média
multiplicada por... Só preciso calcular o coeficiente numérico, e
então... Você compreende: tudo é finito, tudo é simples, tudo é
calculável; então venceremos filosoficamente, compreende? Mas
você, meu caro, está atrapalhando a finalização do meu cálculo,
fica gritando...
Não sei o que me deixou mais impressionado: sua descoberta
ou sua firmeza naquele momento apocalíptico: levava nas mãos
(percebi apenas agora) um caderno de notas e uma tabela de
algoritmos. E compreendi: mesmo que tudo pereça, meu dever
(para com vocês, meus queridos leitores desconhecidos) é deixar
minhas notas concluídas.
Pedi a ele papel e aqui escrevo estas últimas linhas...
Queria colocar um ponto final, assim como os antigos
colocavam uma cruz sobre as sepulturas onde lançavam os
mortos, mas subitamente o lápis estremeceu e caiu dos meus
dedos...
– Escute – importunei o vizinho. – Sim, escute, estou falando
com você! Você precisa, você precisa me responder: onde é que
acaba o seu Universo? O que há depois?
Ele não teve tempo de me responder: da superfície, passos
pelos degraus...
40ª ANOTAÇÃO

Resumo:

Os fatos. A Campânula.
Tenho certeza.
Dia. Claro. O barômetro em 760.
É possível que eu, D-503, tenha escrito estas 316 páginas? Será
que algum dia eu senti, ou imaginei ter sentido isso?
A letra é minha. E esta agora também é a mesma letra, mas,
felizmente, é apenas a letra. Nenhum delírio, nem metáforas
absurdas, nem sentimentos: somente fatos. Porque estou
saudável, totalmente, absolutamente saudável. Sorrio e não
posso deixar de sorrir: removeram alguma lasca da minha cabeça,
ela está leve, vazia. Para ser mais preciso: não está vazia, mas não
há nada estranho que me impeça de sorrir (o sorriso é o estado
normal de uma pessoa normal).
Os fatos são estes: naquela noite, meu vizinho, que tinha
descoberto a finitude do Universo, eu e todos os outros que
estavam conosco fomos detidos e levados para o auditório mais
próximo (o número do auditório por alguma razão é familiar: 112).
Lá, fomos presos às mesas e submetidos à Grande Operação.
No dia seguinte, eu, D-503, apresentei-me ao Benfeitor e
contei-lhe tudo o que sabia a respeito dos inimigos da felicidade.
Por que isso me pareceu tão difícil antes? É incompreensível. A
única explicação: minha antiga doença (a alma).
Naquela mesma noite, sentei-me (pela primeira vez) à mesma
mesa com Ele, o Benfeitor, na famosa Câmara de Gás. Eles
trouxeram aquela mulher. Na minha presença, ela devia dar o seu
testemunho. Ela permaneceu teimosamente em silêncio e
sorrindo. Reparei nos seus dentes pontiagudos e muito brancos, e
como eram bonitos.
Em seguida, colocaram-na sob a Campânula. O rosto dela ficou
muito pálido, e, como seus olhos eram escuros e grandes, foi
muito bonito. Quando começaram a extrair o ar da Campânula,
ela pôs a cabeça para trás, semicerrou os olhos, os lábios
comprimidos, aquilo me lembrava de alguma coisa. Ela olhou para
mim, aferrou-se aos braços da cadeira, olhou até que os olhos se
fecharam completamente. Então a retiraram e, com o auxílio de
eletrodos, rapidamente a reanimaram e de novo a colocaram
dentro da Campânula. Repetiram isso por três vezes, e ainda
assim ela não disse nenhuma palavra. Os outros que foram
trazidos junto com essa mulher mostraram-se mais honestos:
muitos deles já começaram a falar na primeira vez. Amanhã todos
subirão os degraus da Máquina do Benfeitor.
Não é possível adiar porque no oeste ainda impera o caos, a
gritaria, os cadáveres, as feras e, infelizmente, uma quantidade
significativa de números que traíram a razão.
Mas, no cruzamento da Avenida 40, conseguimos construir
um Muro alto, temporário e elétrico. E tenho esperança de que
venceremos. Mais: tenho certeza de que venceremos. Porque a
razão deve vencer.

1920
Resenha de Nós,
de Ievguêni Ivánovitch Zamiátin

George Orwell
Texto originalmente publicado na revista Tribune, GB, Londres, em 4 de janeiro de 1946.
Alguns anos depois de ouvir falar da existência de Nós, de
Zamiátin, finalmente um exemplar chegou às minhas mãos – uma
das curiosidades literárias da época atual na qual livros são
queimados. Pesquisando em Twenty-Five Years of Soviet Russian
Literature [Vinte e cinco anos de literatura russa e soviética], de
Gleb Struve, descobri que sua história foi a seguinte:
Zamiátin, que veio a falecer em Paris em 1937, foi um
romancista e crítico russo que publicou alguns livros antes e
depois da Revolução [Russa de 1917]. Nós foi escrito por volta de
1923 e, embora não trate da Rússia nem tenha relação direta com
a política contemporânea – é uma fantasia sobre o século 26 –,
teve sua publicação recusada por ser ideologicamente
indesejável. Uma cópia do manuscrito conseguiu sair do país, e o
livro apareceu em traduções para o inglês, o francês e o tcheco,
mas nunca em russo. A tradução inglesa foi publicada nos
Estados Unidos, e eu nunca fui capaz de obter um exemplar. Mas
exemplares da tradução francesa (cujo título é Nous Autres)
existem, e finalmente consegui tomar um emprestado. Até agora,
posso avaliar que não é um livro excepcional, mas certamente é
incomum, e é espantoso que nenhuma editora inglesa tenha sido
ousada o suficiente para reeditá-lo.
A primeira coisa que qualquer um notaria a respeito de Nós é o
fato – nunca mencionado, creio – de que Admirável mundo novo,
de Aldous Huxley, deve, em parte, originar-se dele. Ambos os
livros tratam da rebelião do espírito humano primitivo contra um
mundo indolor, mecanizado e racionalizado, e ambas as histórias
supostamente se passam daqui a seiscentos anos. A atmosfera
dos dois livros é semelhante, e, em linhas gerais, é o mesmo tipo
de sociedade que está sendo descrito, embora o livro de Huxley
demonstre menos consciência política e seja mais influenciado
pelas recentes teorias biológicas e psicológicas.
No século 26, na visão de Zamiátin, os habitantes de Utopia
perderam a individualidade tão completamente que somente são
conhecidos por números. Vivem em casas de vidro (isso foi
escrito antes da invenção da televisão), o que permite que a
polícia política, conhecida como os “Guardiões”, possa
supervisioná-los mais facilmente. Todos vestem uniformes
idênticos, e costuma-se fazer referência a um ser humano tanto
como “um número” quanto “um unif ” (de “uniforme”). Se
alimentam de comida sintética, e a recreação habitual é marchar
em filas de quatro pessoas enquanto o hino do Estado Único toca
em alto-falantes. A intervalos estabelecidos, é permitido, durante
uma hora (conhecida como “Hora pessoal”), baixar as cortinas em
torno dos apartamentos de vidro. Evidentemente não há
casamento, embora a vida sexual não pareça ser totalmente
promíscua. Para o ato sexual, todos têm um tipo de talão de
bilhetes cor-de-rosa, e o(a) parceiro( a) com quem se passa uma
dessas horas reservadas ao sexo assina o canhoto. O Estado
Único é governado por um personagem conhecido como
Benfeitor, que anualmente é reeleito pela população; a eleição
sempre é unânime. O princípio condutor do Estado é que
felicidade e liberdade são incompatíveis. No Jardim do Éden, o
homem era feliz, mas em sua loucura exigiu liberdade e foi
expulso para o ermo. Agora o Estado Único restaurou sua
felicidade ao retirar-lhe a liberdade.
Até aqui a semelhança com Admirável mundo novo é
impressionante. No entanto, embora o livro de Zamiátin seja
menos coeso – a trama é um tanto frouxa e episódica, e complexa
demais para ser resumida – tem um ponto político que falta no
outro. No livro de Huxley, o problema da “natureza humana” é, em
certo sentido, resolvido, pois supõe que, por meio de um
tratamento pré-natal, medicamentos e sugestão hipnótica, o
organismo humano possa se especializar em qualquer modo
desejado. Um excepcional cientista é produzido tão facilmente
quanto um Ípsilon semi-aleijão, e, em ambos os casos, lida-se
facilmente com os vestígios dos instintos primitivos, como o
sentimento maternal ou o desejo de liberdade. Ao mesmo tempo,
não é explicada a razão pela qual a sociedade deveria ser
estratificada do modo elaborado como é descrita. O objetivo não
é a exploração econômica; no entanto, o desejo de perseguir e
dominar também não parece ser uma razão. Não há fome de
poder, sadismo, nem dureza de tipo algum. Aqueles no topo não
têm motivos fortes para ficar no topo, e embora todos estejam
vagamente felizes, a vida se tornou tão sem sentido que é difícil
acreditar que tal sociedade poderia sobreviver.
O livro de Zamiátin, em geral, é mais relevante para a nossa
própria situação. Apesar da educação e vigilância dos Guardiões,
muitos dos antigos instintos humanos ainda estão ali. O narrador
da história, D-503, embora seja um engenheiro talentoso, é uma
pobre criatura convencional, um tipo de Billy Brown of London
Town utópico. Ele é constantemente aterrorizado por impulsos
atávicos que o dominam. Ele se apaixona (cometendo, sem
dúvida, um crime) por uma certa I-330, membro de um
movimento de resistência clandestino que, durante algum tempo,
é bem-sucedida em conduzi-lo à rebelião. Quando a rebelião
irrompe, parece que os inimigos do Benfeitor são, de fato, muito
numerosos, e que, além de tramar a derrubada do Estado, eles se
entregam, no momento que as cortinas estão abaixadas, a vícios
tais como fumar cigarros e beber. D-503 acaba por fim se
salvando das consequências de sua própria loucura. As
autoridades anunciam a descoberta da causa das recentes
desordens: alguns seres humanos sofrem de uma doença
chamada imaginação. Agora, o centro nervoso responsável pela
imaginação foi localizado, e a doença pode ser curada por meio de
um tratamento de raio-X. D-503 é operado e então se torna fácil
fazer o que sabia ser sua obrigação desde o início – a saber,
denunciar seus cúmplices à polícia. Com total equanimidade, ele
observa I-330 ser torturada com gás comprimido sob uma
redoma:
"Ela olhou para mim, aferrou-se aos braços da cadeira, olhou até que os olhos
se fecharam completamente. Então a retiraram e, com o auxílio de eletrodos,
rapidamente a reanimaram e de novo a colocaram dentro da Campânula.
Repetiram isso por três vezes, e ainda assim ela não disse nenhuma palavra. Os
outros que foram trazidos junto com essa mulher mostraram-se mais honestos:
muitos deles já começaram a falar na primeira vez. Amanhã todos subirão os
degraus da Máquina do Benfeitor."

A Máquina do Benfeitor é a guilhotina. Há muitas execuções


na utopia de Zamiátin. Elas ocorrem publicamente, na presença
do Benfeitor, e são acompanhadas pelas odes triunfais recitadas
pelos poetas oficiais. A guilhotina, evidentemente, não é aquele
antigo e grosseiro instrumento, mas um modelo muito
aprimorado, que literalmente liquida a vítima, reduzindo-a a
fumaça e uma poça de água límpida em um instante. Com efeito, a
execução é um sacrifício humano, e a cena que a descreve recebe
deliberadamente a cor das sinistras civilizações escravocratas do
mundo antigo. É esta apropriação intuitiva do lado irracional do
totalitarismo – sacrifício humano, crueldade como um fim em si,
idolatria de um Líder a quem se atribuiu características divinas –
que faz do livro de Zamiátin superior ao de Huxley.
É fácil entender o porquê da publicação do livro ter sido
recusada. O diálogo a seguir (que editei ligeiramente) entre D-503
e I-330 teria sido suficiente para fazer os lápis azuis*
trabalharem:
– Você compreende que o que está sugerindo é revolução?
– Certamente, é revolução. Por que não?
– Porque não pode haver uma revolução. Nossa revolução foi a última e não
pode haver outra. Todos sabem disso.
– Meu querido, você é matemático; me diga: qual é o último número?
– Mas isso é absurdo. Números são infinitos. Não pode haver último.
– Então por que você fala sobre a última revolução?**

Há outras passagens semelhantes. No entanto, é bem possível


que Zamiátin não visasse o regime soviético como alvo particular
de sua sátira. Escrevendo na mesma época da morte de Lênin, ele
talvez não tivesse em mente a ditadura de Stálin; e as condições
na Rússia de 1923 não eram tais que fariam alguém se revoltar
contra elas pelo fato de a vida estar se tornando segura e
confortável demais. O que Zamiátin parece visar não é um país
em particular, mas os objetivos inferidos da civilização industrial.
Eu não li seus outros livros, mas soube, por Gleb Struve, que
Zamiátin passou alguns anos na Inglaterra e escreveu algumas
sátiras ferozes do estilo de vida inglês. Em Nós, é evidente sua
forte tendência ao primitivismo. Preso pelo governo czarista, em
1906, e posteriormente pelos bolcheviques, em 1922, no mesmo
corredor da mesma prisão, Zamiátin tinha razão em desprezar os
regimes políticos sob os quais viveu, mas seu livro não é
meramente expressão de um descontentamento. Com efeito, é
um estudo da Máquina, o gênio que o homem impensadamente
libertou da lâmpada e não conseguiu colocar de volta. Este é um
livro para se buscar quando uma versão em língua inglesa estiver
disponível.

1946

* O lápis azul se refere normalmente à cor utilizada por editores para anotar originais.
Neste caso, Orwell provavelmente se refere à censura [N. do E.].

** Aqui se traduziu o trecho editado por Orwell. O trecho integral se encontra na 30ª
anotação desta edição. [N. de E.]
Carta a Stálin

Enviada por Zamiátin em 1931


Prezado Yosif Vissarionovich,
O autor da presente carta, condenado ao castigo mais elevado,
apela ao senhor com um pedido de mudança de punição.
Provavelmente, o senhor conhece o meu nome. Para mim,
como escritor, ser privado de escrever é como uma sentença de
morte. Ainda assim a situação que se delineou é tal que eu não
posso continuar meu trabalho, pois nenhuma atividade criativa é
possível em uma atmosfera de perseguição sistemática, que
aumenta de intensidade ano após ano.
Não tenho intenção de me apresentar como imagem da
inocência ferida. Sei que, entre as obras que escrevi durante os
primeiros três ou quatro anos após a Revolução, havia algumas
que poderiam oferecer um pretexto para ataques. Eu sei que
tenho o hábito altamente inconveniente de dizer o que eu
considero ser a verdade em vez de dizer o que pode ser
conveniente no momento. Em particular, nunca disfarcei minha
atitude em relação ao servilismo literário, à bajulação e mudanças
de cor camaleônicas: eu senti, e ainda sinto, que isso é igualmente
degradante tanto para o escritor quanto para a Revolução.
Mencionei esta questão em um de meus artigos (publicado na
revista Dom iskusstv, número 1, 1920[1]) de forma que muitas
pessoas consideraram rude e ofensiva, e isso serviu como um
sinal na época para o lançamento de uma campanha contra mim
em jornais e revistas.
A campanha continuou, sob diferentes pretextos, até hoje, e
finalmente resultou em uma situação que eu descreveria como
um tipo de fetichismo. Assim como os cristãos criaram o diabo
como uma conveniente personificação de todo o mal, os críticos
me transformaram no demônio da literatura soviética. Cuspir no
diabo é considerado uma boa ação e todos cospem da melhor
forma que podem. Em cada uma das minhas obras publicadas,
esses críticos inevitavelmente descobriram uma intenção
diabólica. Em suas buscas, eles chegaram ao cúmulo de me
investir com dons proféticos: assim sendo, em uma de minhas
histórias (“God”[2]) publicada na revista Letopis, em 1916, um
crítico foi capaz de encontrar “uma caricatura da revolução
associada à transição para a NEP[3] ; na história “The Healing of
the Novice Erasmus”[4] , escrita em 1920, outro crítico (Mashbits-
Verov) discerniu “uma parábola sobre os líderes que ficaram mais
sábios após a NEP”. Não importa qual seja o conteúdo de uma
obra, o mero fato de ter a minha assinatura se tornou razão
suficiente para declará-la criminosa. Em março passado, o Oblit
[Gabinete Literário Regional], de Leningrado, deu alguns passos
para eliminar qualquer dúvida que tava acerca disso. Eu editei a
comédia A escola do escândalo, de Sheridan, e escrevi um artigo
sobre sua vida e obra para a Academy Publishing House.
Desnecessário dizer que nada que eu escrevi ou pudesse ter
escrito neste artigo era de natureza escandalosa. No entanto, o
Oblit não apenas baniu o artigo, como proibiu a editora de
mencionar meu nome como editor da tradução. Foi somente
depois da minha reclamação a Moscou, e depois de o Glavlit
[Gabinete Literário Central] evidentemente ter sugerido que tais
ações ingenuamente abertas, são, no fim das contas,
inadmissíveis, que foi dada a permissão para publicar o artigo e
até o meu nome criminoso.
Mencionei este fato porque isso mostra a atitude em relação a
mim de forma completamente exposta e, por assim dizer,
quimicamente pura. De um amplo leque de fatos semelhantes,
mencionarei mais um apenas, envolvendo não um artigo
ocasional, mas uma peça inteira na qual trabalhei por quase três
anos. Eu estava confiante de que esta peça (a tragédia Átila)
finalmente silenciaria aqueles que estavam decididos a me
transformar em um tipo de obscurantista. Eu parecia ter todas as
razões para tal confiança. Minha peça havia sido lida numa
reunião do Comitê Artístico do Teatro Dramático Bolshoi, de
Leningrado. Entre os presentes na reunião estavam os
representantes de dezoito fábricas de Leningrado. Aqui estão
trechos de seus comentários (extraídos das minutas da reunião
de 15 de maio de 1928).
O representante da Planta Volodarsky disse: “É uma peça de
um autor contemporâneo, que trata da questão da luta de classes
na Antiguidade, que era análoga à da nossa própria época...
Ideologicamente, a peça é bastante aceitável... Ela cria uma
impressão forte e elimina a crítica de que os dramaturgos
contemporâneos não produzem boas peças”.
O representante da Fábrica Lênin observou o caráter
revolucionário da obra e afirmou que “em seu nível artístico, a
peça me lembra as obras de Shakespeare... É trágica, cheia de
ação e vai prender a atenção do público”.
O representante da Planta Hidromecânica considerou que
“cada momento da peça é forte e interessante”, e recomendou
sua estreia no aniversário do teatro.
Vamos dizer que os camaradas proletários exageraram em
relação a Shakespeare. No entanto, Maksim Górki escreveu que
considera a peça “altamente valiosa tanto em sentido literário
quanto social” e que “o tom e a trama heroica são muito úteis
para a nossa época”. A peça foi aprovada para ser produzida pelo
teatro; passou pelo Glavrepertkom [Comitê de Repertório
Central]. E, depois disso, ela foi exibida para o público de
trabalhadores que a teve em tão alta estima? Não.
Posteriormente, a peça, já semi-ensaiada pelo teatro, já
anunciada em cartazes, foi banida por insistência do Oblit, de
Leningrado.
A morte da minha tragédia Átila foi uma verdadeira tragédia
para mim. Deixou bem claro que qualquer tentativa de modificar
minha situação seria vã, em especial, em vista do conhecido caso
que envolveu meu romance Nós e Mahogany[5] de Pilniak, pouco
depois. Sem dúvida, qualquer falsificação é permitida na luta
contra o diabo. E assim o romance, escrito nove anos antes, em
1920, foi posto lado a lado com Mahogany e tratado como a minha
última e mais recente obra. A caçada humana organizada na
época não teve precedentes na literatura soviética e até virou
notícia na imprensa estrangeira. Foi feito todo o possível para
fechar todos os caminhos para as minhas novas obras. Eu me
tornei objeto de temor para meus antigos amigos, editoras e
teatros. Meus livros foram banidos das livrarias. Minha peça The
Flea[6], apresentada com sucesso pelo Second Studio, do Teatro
de Arte de Moscou, durante quatro temporadas, foi tirada do
repertório. A publicação das minhas obras completas pela
Federatsiya Publishing House foi suspensa. Todas as editoras
que tentaram lançar minhas obras imediatamente foram postas
na fogueira; isso aconteceu com a Federatsiya, Zemlya i Fabrika e,
sobretudo, com a Editora dos Escritores de Leningrado. Esta
última se arriscou a me manter em seu comitê editorial por mais
um ano e ousou fazer uso de minha experiência literária ao me
confiar a edição estilística das obras de jovens escritores,
inclusive comunistas. Na primavera passada, a sucursal da
RAPP[7] , em Leningrado, foi bem-sucedida em me forçar a sair do
comitê, pondo um fim a esta obra. A Literary Gazette anunciou
este feito, acrescentando de modo inequívoco: “A editora deve ser
preservada, mas não para os Zamiátins”. A última porta para o
leitor foi fechada para Zamiátin. A sentença de morte do escritor
foi pronunciada e publicada.
No código penal soviético, a punição alternativa à morte é a
deportação do criminoso de seu país. Se eu for verdadeiramente
um criminoso que merece punição, não creio que mereça uma
punição tão grave quanto a morte literária. Por isso, peço que
esta sentença seja comutada pela deportação da URSS e que seja
permitido à minha esposa me acompanhar. Porém, se eu não sou
um criminoso, rogo que me seja permitido ir para o exterior
temporariamente com a minha esposa, ao menos, por um ano,
com o direito de retornar assim que se tornar possível, em nosso
país, servir grandes ideias na literatura sem me encolher perante
homens pequenos; assim que haja, no mínimo, uma mudança
parcial na visão dominante acerca do papel do artista literário. E
estou confiante de que esse tempo está próximo, pois a criação da
base material inevitavelmente será seguida pela necessidade de
construir a superestrutura – uma arte e uma literatura
verdadeiramente dignas da Revolução.
Sei que a vida no exterior será extremamente difícil para mim,
pois não posso me tornar parte do movimento reacionário lá; isto
é suficientemente atestado pelo meu passado (integrante do
Partido Social-Democrata Russo [Bolchevique], na época
czarista, preso, duas deportações, julgamento na época da guerra
por uma novela antimilitarista). Sei que, enquanto tenho sido
proclamado um reacionário aqui por causa do meu hábito de
escrever de acordo com a minha consciência em vez de escrever
de acordo com ordens, cedo ou tarde, provavelmente serei
declarado bolchevique pela mesma razão, no exterior. Mas,
mesmo sob as condições mais difíceis, não serei condenado ao
silêncio; serei capaz de escrever e publicar, até, se preciso for, em
outra língua que não o russo. Se as circunstâncias tornarem
impossível (temporariamente, espero) que eu seja um escritor
russo, talvez eu seja capaz de me tornar, por algum tempo, um
escritor inglês, tal como o polonês Joseph Conrad, sobretudo,
porque eu já escrevi sobre a Inglaterra em russo (a novela satírica
The Islanders etc.) e, para mim, não é muito mais difícil escrever
em inglês do que em russo. Iliá Eremburg, embora continue a ser
um escritor soviético, há muito tempo trabalha, sobretudo, para a
literatura europeia – para a tradução em línguas estrangeiras. Por
que então não me seria permitido fazer o que a Eremburg é
permitido? E aqui eu poderia mencionar outro nome: o de Boris
Pilniak. Ele dividiu o papel de diabo comigo; tem sido o alvo
principal dos críticos; ainda assim, lhe foi permitido viajar para o
exterior para descansar desta perseguição. Por que não deveria
ser oferecido a mim o que foi oferecido a Pilniak?
Eu poderia ter tentado justificar meu pedido de permissão
para ir ao exterior com outras razões também – mais
corriqueiras, embora igualmente válidas. Para me livrar de uma
antiga doença crônica (colite), eu tenho que ir para o exterior
atrás de cura; minha presença é necessária no exterior para
ajudar a montar duas das minhas peças, traduzidas para o inglês
e o italiano (The Flea e The Society of Honorary Bell Ringers[8], já
produzidas em teatros soviéticos); além disso, a produção
planejada dessas peças vai tornar possível não sobrecarregar o
Comissariado Popular de Finanças com o pedido de conversão de
moeda. Todos esses motivos existem, mas não quero omitir que a
razão básica para a minha solicitação de permissão para viajar ao
exterior com minha esposa é a posição sem esperança de escritor
aqui, a sentença de morte que foi pronunciada contra mim em
casa.
A extraordinária consideração que o senhor teve com outros
escritores que recorreram ao senhor me traz esperança de que
meu pedido também seja aceito.
Ievguêni Ivánovitch Zamiátin
Junho de 1931

1. A referência é ao artigo “I am afraid”, publicado em Dom iskusstv, número 1, que trazia


na capa o ano de 1920, mas que foi publicada em janeiro de 1921. [N. do T.]

2. “Deus”. [N. de E.]

3. Nova Política Econômica. [N. de T.]

4. “A cura do noviço Erasmo”, em livre tradução para o português. [N. de E.]


5. Mogno. [N. de E.]

6. A pulga. [N. de E.]

7. Associação Russa dos Escritores Proletários. [N. de E.]

8. A pulga e A sociedade dos sineiros honorários. [N. de E.]


SOBRE O AUTOR

Ievguêni Zamiátin nasceu na Rússia 1884. Se formou em


engenharia, mas tornou-se escritor de ficção como passatempo.
Autor de diversos contos, peças de teatro e romances, ele
também trabalhou como editor das traduções russas de autores
como Jack London e H. G. Wells. Sua obra mais famosa é Nós,
distopia que inspirou Admirável mundo novo e 1984. Zamiátin foi
preso e exilado diversas vezes, mas seu exílio final foi voluntário –
ele solicitou a Stálin que lhe deixasse ir viver em Paris, pois estava
proibido de publicar seus textos no próprio país. Faleceu em 1937.
NÓS
TÍTULO ORIGINAL:

Мы
COPIDESQUE:

Lucas Simone
REVISÃO:

Júlia Nejelschi
Giselle Moura
Pausa Dramática
CAPA E PROJETO GRÁFICO:

Pedro Inoue
DIAGRAMAÇÃO:

Desenho Editorial
DIREÇÃO EXECUTIVA:

Betty Fromer
DIREÇÃO EDITORIAL:

Adriano Fromer Piazzi


EDITORIAL:

Daniel Lameira
Katharina Cotrim
Bárbara Prince
Andréa Bergamaschi
COMUNICAÇÃO:

Luciana Fracchetta
Pedro Henrique Barradas
Lucas Ferrer Alves
Stephanie Antunes
COMERCIAL:

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TEXTO ORIGINAL EM DOMÍNIO PÚBLICO.


COPYRIGHT © EDITORA ALEPH, 2016
(EDIÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA PARA O BRASIL)

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. PROIBIDA A REPRODUÇÃO,


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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Odilio Hilario Moreira Junior CRB-8/9949

Z23n        Zamiátin, Ievguêni Ivánovitch

Nós [recurso eletrônico] / Ievguêni Ivánovitch Zamiátin ; traduzido por Gabriela


Soares. - São Paulo : Aleph, 2017.
344 p. ; ePUB.

Tradução de: Mbl


Inclui anexo.
ISBN: 978-85-7657-324-1 (Ebook)

1. Literatura russa. I. Soares, Gabriela. II. Título.


2017-82 CDD: 891.7
  CDU: 821.161.1

Índice para catálogo sistemático:


1. Literatura russa 891.7
2. Literatura russa 821.161.1

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