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Resumo:
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Resumo:
O casaco.
A parede.
A tabela.
Revi tudo o que escrevi ontem e percebi que não escrevi com
clareza o suficiente. Ou seja, isso tudo é muito evidente para
qualquer um de nós. Mas como posso saber: é possível que vocês,
desconhecidos, a quem a “Integral” levará as minhas anotações,
tenham lido o grande livro da civilização apenas até a página que
descreve nossos antepassados de 900 anos atrás. É possível que
vocês nem conheçam a Tábua das Horas, a Hora Pessoal, a Norma
Maternal, o Muro Verde, o Benfeitor. É risível e ao mesmo tempo
muito difícil falar sobre tudo isso. É como se algum escritor,
digamos, do século 20 tivesse que explicar em seu romance o que
significam “casaco”, “apartamento”, “esposa”. Entretanto, se o
seu romance fosse traduzido para os selvagens, seria possível
dispensar notas explicativas a respeito de “casaco”?
Estou certo de que um selvagem olharia para um “casaco” e
pensaria: “Para que serve isso? É apenas um fardo”. Acredito que
vocês terão exatamente o mesmo pensamento quando lhes disser
que nenhum de nós esteve além do Muro Verde desde a Guerra
dos Duzentos Anos.
Mas, meus queridos leitores, é preciso pensar um pouco, isso
ajuda muito. É evidente que toda a história da humanidade, pelo
que sabemos dela, é uma história de transição de uma forma de
vida nômade para outra, cada vez mais sedentária. Será que não
se deduz disso que a forma de vida mais sedentária (a nossa) é ao
mesmo tempo a mais perfeita (a nossa)? As pessoas se moviam
pela terra de um extremo a outro apenas na época pré-histórica,
quando havia nações, guerras, comércio, descobertas de
diferentes Américas. Mas para que alguém precisa disso agora?
Admito que o hábito dessa vida sedentária não se realizou sem
esforço e nem de uma só vez. Durante a Guerra dos Duzentos
Anos, todas as estradas foram destruídas e tomadas pelo mato; a
princípio, deve ter sido muito incômodo viver em cidades
separadas umas das outras por uma mata densa e verde. Mas e
depois? Depois que o homem perdeu sua cauda, provavelmente
não foi de uma vez só que ele aprendeu a espantar as moscas sem
a ajuda desta. Sem dúvida, no início entristeceu-se pela falta da
cauda. Mas agora vocês conseguem se imaginar com uma cauda?
Ou: vocês conseguem se imaginar na rua nus, sem “casaco”
(talvez vocês ainda andem por aí de “casacos”). Pois aqui é da
mesma forma: não consigo imaginar a cidade sem estar revestida
pelo Muro Verde, não consigo imaginar uma vida não envolta pelo
manto numérico da Tábua.
A Tábua... Agora mesmo, as cifras púrpuras sobre um fundo
dourado na parede do meu quarto olham-me diretamente nos
olhos, ao mesmo tempo com severidade e ternura.
Involuntariamente recordei-me daquilo que os antigos chamavam
de “ícone”. Eu gostaria de compor versos ou orações (algo
equivalente). Ah, por que não sou poeta para cantar como és
digna, oh Tábua, oh coração e pulso do Estado Único?!
Nós todos (talvez vocês também), quando crianças, líamos na
escola o maior monumento literário legado pelos antigos: Horário
das estradas de ferro. Mas, mesmo que o coloque ao lado da
Tábua, vocês verão o grafite e o diamante lado a lado e ambos são
constituídos do mesmo C, o carbono, mas como o diamante é
transparente, eterno, e como brilha! Quem não fica sem ar
quando passa de maneira rápida e estrondosa pelas páginas do
Horário. Mas a Tábua das Horas converteu cada um de nós em
verdadeiros heróis de seis rodas de aço, heróis do grande poema.
Todas as manhãs, com exatamente seis rodas, precisamente na
mesma hora, precisamente no mesmo minuto, nós, os milhões,
levantamos como um só. Exatamente na mesma hora, unimilhões
começamos a trabalhar e, na mesma hora, unimilhões,
terminamos o trabalho. E fundidos num único corpo com milhões
de mãos, exatamente na mesma hora determinada pela Tábua, no
mesmo segundo, levamos a colher à boca e, no mesmo segundo,
saímos para passear, vamos ao auditório, ao ginásio de exercícios
de Taylor, adormecemos...
Serei totalmente sincero: ainda não encontramos uma solução
absolutamente exata para a felicidade – duas vezes por dia, das 16
às 17 horas e das 21 às 22 horas, nosso poderoso e único
organismo se divide em células isoladas: essas são as Horas
Pessoais estabelecidas pela Tábua das Horas. Nesses horários
observam-se as cortinas castamente fechadas nos quartos de
alguns; outros percorrem ritmadamente as avenidas, como se
subissem os degraus de cobre da Marcha; outros, ainda, assim
como eu, estão sentados à escrivaninha. Mas creio firmemente –
chamem-me de idealista e sonhador –, creio que, cedo ou tarde,
algum dia também encontraremos um lugar para essas horas na
fórmula geral, algum dia todos os 86.400 segundos entrarão na
Tábua das Horas.
Fui obrigado a ler e ouvir muitas coisas incríveis sobre a época
em que as pessoas ainda viviam livres, isto é, num estado de
desorganização selvagem. Mas o que sempre me pareceu ser mais
incrível é exatamente isto: como pôde o poder estatal daquela
época – ainda que fosse embrionário – permitir que as pessoas
vivessem sem algo parecido com a nossa Tábua, sem os passeios
obrigatórios, sem regulamentação exata dos horários das
refeições? Levantavam-se e deitavam-se para dormir quando lhes
desse na cabeça. Alguns historiadores dizem, inclusive, que
naquele tempo as ruas ficavam iluminadas durante a noite
inteira, e as pessoas caminhavam e dirigiam a noite inteira.
Isso eu não consigo compreender de maneira nenhuma. Afinal,
por mais limitada que fosse sua inteligência, eles deveriam,
apesar disso, entender que esse tipo de vida era um verdadeiro
assassinato em massa, cometido aos poucos, dia após dia. O
Estado (humanitário) proibia matar um indivíduo, mas não
proibia que se matassem milhões aos poucos. Matar alguém, isto
é, diminuir a soma das vidas humanas em cinquenta anos é um
crime, mas diminuir a soma das vidas em 50 milhões de anos não
é. Isso não é engraçado? Qualquer número de dez anos de idade é
capaz de resolver esse problema matemático e moral em meio
minuto, mas eles não conseguiram fazê-lo mesmo com todos os
seus Kants juntos (porque nenhum de seus Kants descobriu como
construir um sistema de ética científica, isto é, um sistema
baseado em subtração, adição, divisão e multiplicação).
E não era um absurdo que o Estado (que se atrevia a chamar-
se de Estado!) permitisse a vida sexual sem qualquer controle?
Quem, quando e quantas vezes quisessem... Completamente
anticientífico, como os animais. E procriavam assim como os
animais, às cegas. Não é risível que soubessem horticultura,
avicultura, piscicultura (temos dados precisos de que eles
conheciam tudo isso) e, ainda assim, não conseguissem alcançar o
último degrau dessa escada lógica: a puericultura? Não pensaram
a ponto de atingir as Normas Maternal e Paternal.
É tão engraçado, tão inverossímil que tenho medo do que
escrevi: de repente vocês, leitores desconhecidos, podem me
tomar por um piadista perverso. Podem pensar, de repente, que
eu simplesmente queira zombar e que, com um ar de seriedade,
esteja contando completos disparates.
Mas, em primeiro lugar: não sou capaz de fazer piadas – em
toda piada há uma mentira como função implícita. Segundo: a
Ciência do Estado Único afirma que exatamente assim viviam os
antigos, e a Ciência do Estado Único não pode estar errada. Além
do mais, de onde, então, tirariam uma lógica governamental
quando as pessoas viviam em estado de liberdade, isto é, como
feras, macacos, como rebanhos. O que podemos esperar deles se,
de vez em quando, inclusive em nosso tempo, ainda se ouve, do
fundo de alguma densa profundeza, o eco selvagem dos macacos.
Felizmente, é apenas de vez em quando. Felizmente, são
apenas pequenos incidentes que podem ser facilmente
consertados, sem interromper o eterno e grandioso movimento
de toda a Máquina. E para arrancar um parafuso torto temos a
mão hábil e pesada do Benfeitor, temos o olhar experiente dos
Guardiões...
A propósito, agora me lembro: aquele de ontem, o duplamente
encurvado como um S, parece-me tê-lo visto saindo do Escritório
dos Guardiões. Agora me lembro por que tive uma sensação
instintiva de respeito para com ele e um certo embaraço quando
aquela estranha I o acompanhou... Tenho que reconhecer que
essa I...
Soou a hora de dormir: 22h30. Até amanhã.
4ª ANOTAÇÃO
Resumo:
O selvagem e
o barômetro. Epilepsia. Se.
Até agora, tudo na vida tem sido claro (não é em vão que
tenho, ao que parece, certa propensão pela própria palavra
“claro”). Mas hoje... Não a compreendo.
Primeiro: recebi realmente a tarefa de estar exatamente no
auditório 112, como ela havia me dito. Embora a probabilidade
fosse 1.500/10.000.000 = 3/20.000 (1.500 sendo o número de
auditórios, e 10.000.000, o de números). Segundo... Aliás, melhor
que seja na ordem.
O auditório. Um enorme hemisfério de vidros maciços,
ensolarado de ponta a ponta. Fileiras circulares de cabeças
nobres, esféricas e raspadas rente. Com o coração levemente
apertado, olhei ao redor. Acho que procurava ver se não brilhava
sobre as ondas de unifs azulados uma foice rosada, os gentis
lábios de O. E ali estavam os dentes extraordinariamente brancos
e pontiagudos de alguém, parecidos... não, não aqueles. Hoje à
noite, às 21 horas, O virá à minha casa – o desejo de vê-la aqui é
completamente natural.
Soa a campainha. Levantamos, cantamos o Hino do Estado
Único. No palco, o fonolector resplandeceu espirituoso com seu
alto-falante dourado.
“Prezados números! Há pouco tempo, arqueólogos
desenterraram um livro do século 20. Nele, o irônico autor relata
a história de um selvagem e um barômetro. O selvagem percebeu
que todas as vezes que o barômetro marcava ‘chuva’, realmente
chovia. E como o selvagem desejava que chovesse, então ele
extraiu a quantidade necessária de mercúrio para que o nível
parasse em ‘chuva’ (na tela havia um selvagem de plumas tirando
o mercúrio. Risos). Riam: mas não lhes parece que o europeu
daquela época é muito mais digno de riso? Assim como o
selvagem, o europeu queria ‘chuva’ – chuva com letra maiúscula,
chuva algébrica. Mas ele ficava em frente ao barômetro como uma
galinha molhada. Os selvagens pelo menos tinham mais coragem,
energia e – ainda que selvagens – lógica: ele pôde estabelecer uma
conexão entre causa e consequência. Ao tirar o mercúrio, ele foi
capaz de dar o primeiro passo para o longo caminho em que...”
Nesse momento (repito: escrevo sem ocultar nada), nesse
momento, fiquei como que temporariamente impermeável às
torrentes vivificantes derramadas pelos alto-falantes. De
repente, pareceu-me que eu havia me dirigido para lá em vão (por
que “em vão”? Como poderia deixar de vir, uma vez que a ordem
me fora dada?); pareceu-me que tudo estava vazio, que era
apenas uma casca. E, com dificuldade, prestei atenção apenas
quando o fonolector já havia passado para o tema principal: a
nossa música, a composição matemática (o matemático é a causa;
a música, a consequência), a descrição do recentemente
inventado musicômetro.
“... Apenas girando esta manivela, qualquer um de vocês
produzirá até três sonatas em uma hora. Mas isso era difícil para
os nossos antepassados. Eles podiam criar apenas conduzindo a
si próprios a um acesso de ‘inspiração’, uma forma desconhecida
de epilepsia. E aí vocês têm uma ilustração divertida de seus
resultados, a música de Scriábin do século 20. Essa caixa preta
(no palco a cortina se abriu e lá estava o antigo instrumento
deles), essa caixa a que eles chamavam de ‘piano de cauda’ ou
‘piano’, que mais uma vez demonstra o quanto toda sua música...”
Em seguida, novamente não me lembro, muito provavelmente
porque... Bom, então falarei diretamente: porque foi ela, I-330,
que se aproximou da caixa “piano”. É possível que eu tenha
simplesmente ficado estupefato com a sua inesperada aparição
no palco.
Ela usava um fantástico traje de época: um vestido preto
muito justo que destacava bem a brancura dos ombros e colo
desnudos, uma cálida sombra ondulava pela respiração entre... E
os dentes ofuscantes, quase perversos...
O sorriso-mordida para cá, embaixo. Sentou-se e começou a
tocar. Era selvagem, convulsivo, multicolorido, como tudo na vida
deles naqueles tempos – nem uma sombra do racionalismo
mecânico. E, é claro, aqueles ao meu redor estavam certos: todos
riam. Apenas uns poucos... Mas por que eu também?
Sim, a epilepsia é uma enfermidade mental, uma dor. Uma dor
lenta e doce – uma mordida – e quanto mais profunda, mais
dolorosa. Então, lentamente surge o sol. Não é o nosso, não é o sol
azul cristalino que atravessa uniformemente os tijolos de vidro,
não: é um sol selvagem, flutuante e ardente, expelindo tudo de si,
tudo em pedacinhos.
O número sentado ao meu lado olhou de soslaio para a
esquerda – para mim – e deu uma risada. Por algum motivo, com
muita clareza, ficou gravado em minha memória: vi que de sua
boca saltou uma microscópica bolha de saliva que se rompeu.
Essa pequena bolha me fez voltar a mim. Eu era eu novamente.
Como todos os outros, eu ouvia apenas o ridículo e inquieto
matraquear das cordas. Ri. Ficou fácil e simples. O talentoso
fonolector havia representado para nós de maneira demasiado
vívida aquela época selvagem – isso é tudo.
Com que prazer escutei em seguida a nossa música
contemporânea (ela fora demonstrada no final para o contraste).
Graus cristalinos e cromáticos que convergiam e divergiam em
séries infinitas, os acordes totalizantes das fórmulas de Taylor e
McLaurin; os movimentos de tom inteiro, dos quadrados do
teorema de Pitágoras; melodias tristes de extinções vibratórias
do movimento; as linhas de Fraunhofer que transformavam as
cadências vívidas – uma análise espectral do planeta... Que
grandiosidade! Que regularidade imutável! E que lamentável é a
voluntariosa e limitada música dos antigos, nada além de
fantasias selvagens...
Como de costume, alinhados em filas de quatro, todos saíram
pelas largas portas do auditório. Passou rapidamente por mim a
conhecida figura duplamente encurvada. Saudei-o
respeitosamente.
Dentro de uma hora a querida O deveria chegar. Sentia-me
agitado de maneira útil e agradável. Em casa, fui rapidamente ao
departamento, entreguei à plantonista meu bilhete rosa e recebi
a autorização que me dava direito a fechar as cortinas. Apenas
temos esse direito nos dias sexuais. Assim, entre nossas paredes
transparentes, como se fossem tecidas de ar brilhante, vivemos
sempre em plena vista, eternamente banhados pela luz. Não
temos nada a esconder uns dos outros. Além do mais, isso alivia a
pesada e elevada tarefa dos Guardiões. De outro modo, quem
sabe o que poderia acontecer? É possível que tenham sido
exatamente as moradas estranhas e não transparentes dos
antigos que engendraram essa sua lamentável psicologia celular:
“Minha (sic!) casa é minha fortaleza”. Era realmente necessário
pensar melhor nisso!
Às 21 horas, fechei as cortinas, e no mesmo minuto O entrou
um pouco sem fôlego. Ela estendeu para mim sua boca rosada e o
bilhete rosa. Arranquei o recibo e não pude me desprender da sua
boca rosada até o último momento: 22h15.
Depois mostrei-lhe minhas “anotações” e falei – parece que
muito bem – sobre a beleza do quadrado, do cubo, da reta. Ela me
ouvia de uma maneira rosada e encantadora, mas, de repente, dos
seus olhos azuis brotou uma lágrima, e outra, uma terceira, e
caíram diretamente sobre a página aberta (a página 22). A tinta
borrou. Pois bem, terei que reescrevê-la.
– Querido D, se você apenas, se você...
Mas que “se você”? “Se você” o quê? De novo a sua velha
canção: um filho. Ou pode ser que alguma coisa nova, a respeito...
a respeito da outra? Seria então como se... Não, isso seria ridículo
demais.
5ª ANOTAÇÃO
Resumo:
O quadrado. Os senhores do
mundo. Uma função útil e
agradável.
Novamente não é isso. Novamente a você, meu desconhecido
leitor, falo como se... Bem, digamos, como um velho camarada, R-
13, um poeta de lábios negroides – sim, todos o conhecem.
Entretanto, você está na Lua, em Vênus, em Marte, em Mercúrio –
quem o conhece? Onde está e quem é você?
Pois bem: imagine um quadrado, um bonito quadrado vivo. E
ele precisa falar sobre si mesmo, sobre sua própria vida.
Compreenda que a última coisa que passaria pela cabeça do
quadrado seria falar que possui quatro lados iguais: isso é algo
que ele simplesmente já não vê, para ele isso é muito habitual,
cotidiano. Pois eu também, durante todo esse tempo, estou na
mesma posição desse quadrado. Bem, se falarmos dos talões cor-
de-rosa e tudo associado a eles, para mim é igual aos quatro
lados, mas para você talvez seja mais evidente do que o binômio
de Newton.
Pois bem. Um dos antigos sábios – casualmente, sem dúvida –
disse uma coisa inteligente: “O amor e a fome dominam o mundo”.
Ergo: para dominar o mundo o homem deve dominar os senhores
do mundo. Finalmente, nossos antepassados, com um alto preço,
venceram a Fome: falo sobre a Grande Guerra dos Duzentos
Anos, sobre a guerra entre a cidade e o campo. Provavelmente,
por causa dos preconceitos religiosos, os selvagens cristãos
agarraram-se obstinadamente ao seu “pão”.[2] Mas, no ano 35
antes da fundação do Estado Único, foi inventado o nosso atual
alimento à base de petróleo. É verdade que apenas 0,2% da
população do globo terrestre sobreviveu. Mas, em compensação,
com uma limpeza de mil anos de sujeira, como se tornou
resplandecente a face da Terra! E por isso esse zero ponto dois
aproveitou com deleite os cubículos do Estado Único.
Mas não está claro se o deleite e a inveja são o numerador e o
denominador da fração chamada felicidade. E qual seria o sentido
das inumeráveis vítimas da Guerra dos Duzentos Anos, se, apesar
de tudo, ainda permanecesse motivo para inveja em nossas vidas?
Mas permaneceu, porque ficaram os narizes “de botão” e os
narizes “clássicos” (nossa conversa de então no passeio), porque
alguns conseguem o amor de muitos, outros o de ninguém.
Naturalmente, tendo submetido a Fome (algebricamente = a
soma dos bens externos), o Estado Único conduziu uma ofensiva
contra outro senhor do mundo: contra o Amor. Finalmente, esse
elemento também foi vencido, isto é, organizado e matematizado,
e por volta de trezentos anos atrás foi promulgada nossa
histórica Lex Sexualis: “todo número tem direito a qualquer outro
número como produto sexual”.
Bem, o que se segue é apenas técnico. No laboratório do
Departamento Sexual examinam-nos e calculam exatamente a
composição de nossos hormônios sexuais no sangue, e produzem
para nós uma Tábua apropriada dos dias sexuais. Em seguida,
fazemos uma declaração de que queremos utilizar nossos dias
com esse ou aquele número, e recebemos o devido talão cor-de-
rosa. Isso é tudo.
Está claro: já não há motivos para a inveja, o denominador da
fração felicidade foi reduzido a zero, a fração converte-se em
magnífico infinito. E o que para os antigos era fonte de
inumeráveis e tolas tragédias em nossa sociedade foi convertido
em harmoniosas, agradáveis e úteis funções do organismo, assim
como o sono, o trabalho físico, a ingestão de alimentos, a
defecação etc. A partir daí, fica evidente como a grande força da
lógica purifica tudo o que toca. Oh, se vocês, desconhecidos,
conhecessem essa força divina, se vocês aprendessem a segui-la
até o fim.
... É estranho, hoje escrevi sobre os elevados cumes da história
da humanidade, e o tempo todo respirei o ar puro das montanhas
do pensamento, mas dentro de mim havia algo nublado, coberto
de teias de aranha, com a cruz de quatro pernas de um certo X.
Ou foram minhas patas, e tudo isso seja porque elas ficaram por
muito tempo diante de mim, minhas patas peludas. Não gosto de
falar sobre elas, não gosto delas: são o vestígio de uma época
selvagem. É possível que em meu interior realmente...
Gostaria de riscar tudo isso porque extrapola os limites do
resumo. Mas depois resolvi não riscar. Que minhas notas, como
um sensível sismógrafo, registrem a curva e, inclusive, as mais
insignificantes oscilações cerebrais: porque, às vezes,
exatamente tais oscilações servem de prenúncio...
Mas isso já é um absurdo. Isso realmente já deveria ter sido
riscado: já estabelecemos o curso de todos os elementos, não
pode haver nenhuma catástrofe.
E agora tudo ficou claro para mim: a estranha sensação no
íntimo se deve inteiramente à mesma situação do quadrado sobre
o qual eu falara no início. Não há nenhum X em mim (não é
possível), apenas tenho medo de que um X fique em vocês, meus
leitores desconhecidos. Mas acredito que não me julgarão com
severidade demais. Acredito que vocês compreendem que para
mim escrever é tão difícil como nunca foi a qualquer autor ao
longo de toda a história da humanidade: uns escreviam para seus
contemporâneos, outros para seus descendentes, mas ninguém
nunca escreveu para os antepassados ou seres semelhantes aos
seus selvagens antepassados distantes...
Resumo:
Um incidente. Maldito “é
claro”. 24 horas.
Repito: imputei-me o dever de escrever sem esconder nada.
Por isso, ainda que triste, preciso assinalar aqui que,
evidentemente, mesmo o nosso processo de solidificação e
cristalização da vida ainda não terminou. Até o ideal ainda faltam
alguns degraus. O ideal (é claro) está onde já não ocorre nada,
mas nós... Vejam, por exemplo: hoje li na Gazeta do Estado Único
que na Praça do Cubo, dentro de dois dias, será celebrado o
feriado da Justiça. Portanto, de novo, algum número perturbou a
marcha da grande Máquina Estatal, de novo aconteceu algo
imprevisto e incalculável.
E, além disso, algo me ocorreu. É bem verdade que aconteceu
durante a Hora Pessoal, isto é, durante o tempo especialmente
concedido para as circunstâncias imprevistas, mas de qualquer
maneira...
Por volta das 16 horas (faltando 10 para as 16, mais
exatamente) eu estava em casa. De repente, o telefone:
– D-503? – uma voz feminina.
– Sim.
– Você está livre?
– Sim.
– Sou eu, I-330. Estou passando aí para pegar você, vamos à
Casa Antiga. De acordo?
I-330... Essa I me irrita, me repele, quase me assusta. Mas foi
exatamente por isso que eu disse: sim.
Dentro de cinco minutos já estávamos no aero. A maiólica azul
do céu de maio, o sol suave no seu próprio aero dourado zumbia
atrás de nós, sem nos ultrapassar e tampouco ficar para trás. Mas
adiante, como uma catarata, havia uma nuvem que branquejava,
ridícula e rechonchuda como as bochechas de um antigo
“cupido”, e de alguma maneira isso me incomodou. A pequena
janela da frente estava aberta, o vento ressecava meus lábios,
fiquei lambendo-os inevitavelmente o tempo todo e o tempo todo
pensando neles.
De longe já era visível uma mancha turva e esverdeada, lá atrás
do Muro. Em seguida, sem querer, um leve aperto no coração –
para baixo, para baixo, para baixo, como se descêssemos uma
montanha escarpada. Chegamos à Casa Antiga. Era estranha,
frágil e indistinta, coberta inteiramente por uma casca de vidro:
de outra maneira, é claro, há muito tempo já teria vindo abaixo.
Ao lado da porta de vidro estava uma velha toda enrugada,
sobretudo a boca: cheia de pregas e franzida, os lábios para
dentro, como se a boca estivesse contraída, era absolutamente
incrível que ela pudesse falar. E, contudo, ela falou:
– Então, queridos, vieram dar uma olhada na minha casinha? –
as suas rugas começaram a brilhar (isto é, provavelmente,
puseram-se em forma radial, o que deu a impressão de que
“brilhavam”).
– Sim, vovó, gostaria de vê-la de novo – disse-lhe I.
As rugas resplandeceram:
– Que sol, hein? O quê, então? Ah, diabinha, ah, diabinha! Já
sei, já sei! Está bem: vão sozinhos, fico melhor aqui no sol...
Hum... Provavelmente, minha companheira era uma hóspede
frequente. Eu queria me livrar de algo que me incomodava: é
possível que aquela mesma imagem visual obsessiva: a nuvem
num céu liso de maiólica azul.
Enquanto subíamos as escadas largas e escuras, I disse:
– Eu amo aquela velha.
– Por quê?
– Não sei. Talvez por causa de sua boca. Ou talvez por nada.
Simples assim.
Dei de ombros. Ela continuou sorrindo um pouco, ou talvez
sequer tenha sorrido:
– Sinto-me muito culpada. É claro que não deve ser “amo
simplesmente”, mas sim “amo por alguma coisa”. Deve ter todos
os elementos.
– Claro... – comecei e imediatamente peguei-me dizendo essas
palavras, olhei furtivamente para I: ela percebera ou não?
Ela olhava para alguma coisa embaixo, os olhos caídos, como
cortinas.
Lembrei-me de que à noite, por volta das 22 horas, passando
pela avenida, entre células transparentes e vivamente
iluminadas, algumas estavam escuras, com as cortinas fechadas,
e lá, detrás delas... O que havia atrás das cortinas? Para que ela
me telefonou hoje? E para que tudo isso?
Abri a porta pesada, rangente e opaca, entramos em um
recinto sombrio e desordenado (o que eles chamavam de
“apartamento”). O mesmo estranho instrumento musical, o
“piano” – uma música selvagem, desorganizada e demente como a
daquela época, uma mistura de cores e formas. Uma superfície
plana e branca no alto; paredes azul-escuras; encadernações
alaranjadas, vermelhas e verdes de livros antigos; o amarelo
bronze dos candelabros e da estátua de um Buda; deformadas
pela epilepsia, as linhas dos móveis não se encaixavam em
nenhuma equação.
Tive dificuldade para suportar esse caos. Mas minha
companheira, pelo visto, tinha um organismo mais forte.
– Esse é o meu favorito – e de repente, se deu conta, abriu um
sorriso-mordida, com dentes brancos e pontiagudos. – Mais
exatamente: este é o mais ridículo de todos os “apartamentos”.
– Ou para ser mais exato: dos Estados – eu a corrigi. – Milhares
de microscópicos Estados eternamente belicosos e cruéis, como...
– Bem, é claro... – disse I, aparentemente com muita seriedade.
Passamos por um quarto onde havia pequenas camas infantis
(naquela época as crianças também eram propriedade privada). E
mais cômodos, o brilho dos espelhos, armários sombrios, sofás
insuportavelmente multicoloridos, uma gigantesca “lareira”, uma
grande cama de mogno. Nosso atual, belo, transparente e eterno
vidro apenas existia ali na forma de lamentáveis e frágeis janelas
quadradas.
– E pensar que aqui “simplesmente amavam”, consumiam-se,
atormentavam-se... (de novo fechou os olhos, como cortinas). –
Que ridículo desperdício de energia humana, não é verdade?
Ela falava como se estivesse dentro de mim, verbalizava meus
pensamentos. Mas em seu sorriso havia o tempo todo aquele X
irritante. Ali, atrás das cortinas, alguma coisa acontecia com ela.
Não sei o que é que me fazia perder a paciência; queria discutir
com ela, gritar com ela (exatamente isso), mas tinha que
concordar, era impossível não concordar.
Paramos diante de um espelho. Naquele momento eu via
apenas seus olhos. Uma ideia me ocorreu: o homem é feito da
mesma forma selvagem que esses ridículos “apartamentos” – sua
cabeça é opaca, há minúsculas janelas, no interior: os olhos. Ela
como que adivinhara os meus pensamentos e se virou. “Bem, aqui
estão meus olhos. Então?” (Isso tudo em silêncio, é claro.)
Diante de mim estavam duas janelas espantosamente escuras,
e dentro delas uma vida tão desconhecida, tão estranha. Vi
apenas o fogo arder como em uma daquelas “lareiras”, e algumas
figuras, parecidas...
Isso, é claro, era natural, eu vira meu próprio reflexo. Mas era
antinatural e não se parecia comigo (evidentemente que se devia
ao desalento das circunstâncias). Senti-me verdadeiramente
preso naquela jaula selvagem. Senti-me apanhado por aquele
torvelinho da vida antiga e selvagem.
– Sabe o quê – disse I –, vá por um instante ao quarto ao lado. –
Ouvia-se sua voz lá de dentro, por detrás das janelas escuras dos
seus olhos, onde a lareira chamejava.
Entrei e me sentei. De uma prateleira na parede, quase
invisível, sorria para mim a fisionomia assimétrica e de nariz
arrebitado de um dos poetas antigos (parece que era Púchkin).
Por que estou sentado aqui aguentando obediente a esse sorriso?
E para que tudo isso? Por que estou aqui nessa situação ridícula?
Essa mulher irritante e repulsiva, seu estranho jogo...
Lá, ouvi a porta do armário bater, o roçar de seda, continha-
me com dificuldade para não ir até lá, não me lembro com
exatidão: provavelmente tive vontade de lhe dizer umas coisas
ásperas.
Mas ela já havia saído. Vestia um antigo vestido curto, de um
amarelo vivo, chapéu preto e meias pretas. O vestido era feito de
uma seda leve, eu via claramente: as meias estavam muito longas,
muito acima dos joelhos, e a abertura no colo, a sombra entre...
– Escute, é claro que você quer ser original, mas será que
você...
– É claro – I interrompeu –, ser original, isso significa destacar-
se dos outros. Portanto, ser original é romper com a igualdade... O
que na linguagem idiota dos antigos chamava-se “ser banal”, o
que para nós significa apenas cumprir o seu dever. Porque...
– Sim, sim, sim! Exatamente – não me contive. – E você não
tem, não tem nada que...
Ela se aproximou da estátua do poeta de nariz arrebitado e, ao
cobrir o brilho selvagem dos olhos com as cortinas, lá dentro, por
trás de suas janelas, ela disse, com uma voz que pareceu
totalmente séria (talvez para me acalmar), uma coisa muito
racional:
– Não considera surpreendente que em outra época as
pessoas suportavam tipos assim? E não só suportavam, como os
admiravam. Que espírito servil! Não é verdade?
– É claro... Isto é, eu queria... (esse maldito “é claro”!).
– Bem, sim, eu entendo. Pois, em essência, esses poetas eram
senhores mais poderosos que aqueles a quem coroavam. Por que
não os isolaram não os exterminaram? Em nossa...
– Sim, em nossa... – comecei. E, de repente, ela caiu na risada.
Simplesmente observei com meus próprios olhos aquela risada:
sonora, rude, flexível, elástica como uma chibata, uma risada
falsa.
Lembro-me de que tremia todo. Queria tê-la agarrado, já não
me lembro mais... Era preciso fazer alguma coisa, qualquer coisa.
Maquinalmente abri minha placa dourada, olhei para o relógio.
Faltavam 10 minutos para as 17 horas.
– Você não acha que já é hora de ir? – eu disse, do modo mais
gentil possível.
– E se eu lhe pedisse para ficar aqui comigo?
– Ouça: você se dá conta do que está falando? Dentro de dez
minutos devo estar no auditório...
– ... E todos os números são obrigados a fazer o curso
preestabelecido de arte e de ciência... – I disse, com a voz igual à
minha. Depois abriu as cortinas, levantou os olhos: através das
janelas escuras a lareira chamejava. – No Departamento de
Medicina conheço um médico, ele está inscrito comigo. Se eu
pedir, ele lhe dará um atestado médico. E então?
Compreendi. Finalmente compreendi para onde ia todo esse
jogo.
– Você perdeu a cabeça! Você sabe que eu, de fato, como todo
número honesto, devo me dirigir imediatamente ao
Departamento dos Guardiões e...
– Mas de fato, não (o sorriso-mordida penetrante). Estou
terrivelmente curiosa: você irá ou não ao Departamento?
– Você vai ficar aí? – segurei a maçaneta da porta. A maçaneta
era de cobre, e ouvi como minha voz soava igualmente metálica.
– Um minuto... Pode ser?
Ela se aproximou do telefone. Ligou para algum número, eu
estava tão agitado que não memorizei qual. Ela gritou:
– Vou esperar você na Casa Antiga. Sim, sim, sozinha...
Girei a fria maçaneta de cobre:
– Você me permite usar o aero?
– Oh, sim, certamente! Por favor...
Ali, na saída, a velha cochilava ao sol como um vegetal. Era
novamente surpreendente que ela abrisse a boca
hermeticamente fechada e que pudesse falar:
– E a sua... ela ficou lá dentro sozinha?
– Ficou sozinha.
A boca da velha se cobriu novamente. Ela balançou a cabeça.
Pelo visto, até o seu cérebro debilitado compreendeu o ridículo e
arriscado comportamento daquela mulher.
Às 17 horas em ponto eu estava na palestra. E, então, de
repente, por algum motivo, compreendi que havia mentido para a
velha: I estava lá agora, mas não sozinha. Talvez fosse exatamente
isso, ter enganado a velha sem querer, que me atormentava e me
impedia de prestar atenção. Sim, ela não estava sozinha: essa era
a questão.
Após as 21h30 eu tinha uma hora livre. Podia ter ido ao
Departamento dos Guardiões e feito uma denúncia hoje.
Mas depois dessa história estúpida eu estava muito cansado. E
depois, o prazo legal para fazer uma reclamação era de dois dias.
Amanhã terei tempo: ainda tenho 24 horas.
7ª ANOTAÇÃO
Resumo:
Resumo:
3. Sem dúvida, o discurso não se trata da "Lei de Deus" dos antigos, mas da lei do Estado
Único [N. do A.].
9ª ANOTAÇÃO
Resumo:
A liturgia. Os iambos e
troqueus. A mão de ferro
fundido.
Um dia claro e festivo. Em dias como este você esquece as
próprias fraquezas, imprecisões e enfermidades, tudo é cristalino
e inquebrantável, eterno como o nosso novo vidro...
A Praça do Cubo. Sessenta e seis potentes círculos
concêntricos: as tribunas. E sessenta e seis fileiras: rostos quietos
e iluminados, os olhos refletindo o resplendor do céu, ou, quem
sabe, o resplendor do Estado Único. As flores de um vermelho
vivo, como sangue, como os lábios das mulheres. Delicadas
guirlandas nos rostos das crianças nas primeiras fileiras, próximo
ao lugar da ação. Um silêncio profundo, severo, gótico.
A julgar pelas descrições que chegaram até nós, na época dos
antigos eles experimentavam algo semelhante em suas “missas”.
Mas serviam a um Deus absurdo e desconhecido, ao passo que
nós servimos a um Deus plausível e cuja imagem é precisamente
conhecida; o Deus deles não lhes deu nada além de uma busca
eterna e torturante; o Deus deles não imaginou nada mais
inteligente do que oferecer-se em sacrifício, sem saber por quê;
nós nos sacrificamos a Deus, ao Estado Único com calma, de
maneira bem pensada, um sacrifício racional. Sim, essa era a
liturgia solene do Estado Único, em memória aos dias e anos
difíceis da Guerra dos Duzentos Anos, uma grandiosa celebração
da vitória de todos sobre um, da soma sobre a unidade...
Um número estava nos degraus onde o sol enchia o Cubo.
Branco... nem sequer estava branco, mas já sem cor, um rosto de
vidro, lábios de vidro. Apenas viam-se seus olhos negros
absorvendo e tragando buracos, e aquele mundo sinistro no qual
ele estava somente alguns minutos antes. A placa dourada com o
número já fora tirada. As mãos estavam atadas com uma fita
púrpura (um velho costume que, pelo visto, tem explicação na
antiguidade, quando tudo isso não era celebrado em nome do
Estado Único, e os condenados, é compreensível, sentiam-se no
direito de resistir, então as mãos deles eram geralmente
imobilizadas com correntes).
E em cima, no Cubo, ao lado da Máquina havia uma figura
como que feita de metal, a que nós chamávamos de Benfeitor.
Daqui debaixo, não se podia distinguir seu rosto: apenas se via
que ele era determinado por traços severos, grandiosos e
quadrados. As mãos, em compensação... Como ocorre às vezes
nas fotografias, se estão demasiado próximas, posicionadas em
primeiro plano, as mãos aparecem enormes, prendem o olhar,
encobrem todo o resto. Eram mãos pesadas, ainda que
tranquilamente pousadas sobre os joelhos, ficou claro: eram
pedras, e os joelhos quase não suportavam seu peso...
E, de repente, uma dessas mãos enormes levantou-se
lentamente – num gesto vagaroso de ferro fundido – e da tribuna,
obedecendo à mão erguida, um número aproximou-se do Cubo.
Era um dos Poetas Estatais, a quem tocara a sorte e a felicidade
de compartilhar, coroar essa celebração com seus versos.
Ressoaram sobre a tribuna os divinos iambos de cobre sobre o
louco de olhos de vidro que permanecia em pé ali, nos degraus,
esperando a consequência lógica de suas loucuras.
... Um incêndio. Nos iambos, as casas balançam, espargem
para o alto um líquido dourado, desmoronam. As árvores verdes
se torcem, derramando seiva, restam apenas as cruzes negras
das sepulturas. Mas Prometeu surgiu (somos nós, naturalmente):
“E atrelou o fogo à máquina, o aço,
E com a lei o caos aprisionou”.
4. Naturalmente, são do Museu de Botânica. Pessoalmente não vejo nada de bonito nas
flores, como a tudo o que pertence ao mundo selvagem há muito banido pelo Muro
Verde. Apenas é belo o útil e racional: máquinas, botas, fórmulas, alimentos e etc [N. do
A.].
10ª ANOTAÇÃO
Resumo:
A carta. A membrana. O eu
desgrenhado.
O dia de ontem foi para mim semelhante ao papel através do
qual os químicos filtram suas soluções: todas as partículas em
suspensão, todo o excedente, ficam nesse papel. Pela manhã saí
de casa completamente destilado, transparente.
Embaixo, no vestíbulo, a plantonista atrás de sua mesa olhava
para o relógio e anotava o horário de entrada dos números. Seu
nome era Iu... Aliás, é melhor não dar o seu número porque tenho
medo de vir a escrever algo ruim sobre ela, embora, na realidade,
ela seja uma mulher de idade muito respeitável. A única coisa que
não gosto nela são suas bochechas um pouco caídas, como as
guelras dos peixes (você pode pensar: o que há de errado nisso?).
Sua pena rangeu, e vi a mim mesmo na página: “D-503” e um
borrão de tinta ao lado.
Enquanto eu tentava prestar atenção nisso, ela, de repente,
levantou a cabeça e me dirigiu um sorriso semelhante a uma gota
de tinta:
– Tem uma carta. Sim. Você a receberá, querido, sim, sim,
receberá.
Eu sabia que a carta havia sido lida por ela, e ainda teria que
passar pelo Departamento dos Guardiões (acho que é
desnecessário explicar essa regra natural) e eu a receberia antes
das 12 horas. Mas eu estava perturbado por aquele sorriso.
Aquela gota de tinta havia turvado minha solução transparente.
De tal maneira que mais tarde, na construção da “Integral”, de
modo algum pude me concentrar, inclusive cometi um erro nos
cálculos, coisa que nunca me acontecera antes.
Às 12 horas, de novo as guelras de peixe marrom-rosadas, o
sorriso, e finalmente a carta em minhas mãos. Não sei por que não
a li lá mesmo, em vez disso, enfiei-a no bolso e me apressei para o
meu dormitório. Abri-a, passei os olhos e me sentei... Era uma
notificação oficial de que o número I-330 se inscrevera comigo e
que hoje, às 21 horas, eu deveria apresentar-me a ela no endereço
abaixo...
Não: depois de tudo o que havia acontecido, depois de tão
inequivocamente ter mostrado minha posição em relação a ela.
Além do que, ela sequer sabia se eu realmente fora ao
Departamento dos Guardiões, não havia como ela saber que eu
estivera doente, então, de modo geral, não podia... Apesar de
tudo...
Minha cabeça girava, zumbia como um dínamo. O Buda, o
amarelo, o lírio-do-vale, a meia-lua cor-de-rosa... Sim, e mais isso
ainda: O queria vir me visitar hoje. Mostro a ela essa notificação
referente à I-330? Não sei se ela acreditará (e como acreditaria,
de fato?) que eu não tenho nada a ver com isso, que eu
absolutamente... E sei que se seguirá uma conversa difícil,
absurda e completamente ilógica... Não, isso não. Que tudo se
resolva mecanicamente: apenas enviarei a ela uma cópia da
notificação.
Depressa enfiei a notificação no bolso e observei minhas
terríveis mãos de macaco. Lembrei-me de como ela, I, no passeio,
pegara minha mão e a contemplara. É possível que ela
realmente...
Eram 20h45. A noite era branca. Tudo era de vidro verde, mas
um tipo diferente, um vidro frágil, não era o nosso, o autêntico.
Era uma casca fina de vidro sob a qual algo girava, voava,
zumbia... Não me surpreenderia se agora as cúpulas dos
auditórios soltassem lentas e circulares nuvens de fumaça em
direção ao céu, e a lua cheia sorrisse, manchada de tinta como
aquela mulher atrás da mesa hoje pela manhã, e que em todas as
casas ao mesmo tempo fechassem as cortinas e por trás delas...
Estranha sensação: sentia que havia em minhas costelas uma
barra de ferro obstruindo totalmente o coração, apertando-o sem
deixar espaço. Eu estava em pé junto à porta de vidro com o
número dourado: I-330. I estava de costas para mim, sentada à
mesa escrevendo alguma coisa. Entrei...
– Aqui está... – estendi-lhe o bilhete cor-de-rosa. – Recebi hoje
a notificação e compareci.
– Como você é pontual! Um momento, você me permite?
Sente-se, estou quase acabando.
Voltou a pôr os olhos na carta – e o que havia por dentro das
suas cortinas fechadas? O que ela dirá? O que irá fazer em um
segundo? E como saber, como calcular, quando toda ela é de lá, do
mundo antigo e selvagem dos sonhos?
Fiquei contemplando-a em silêncio. Senti que minhas costelas
eram como barras de ferro e comprimiam – definitivamente,
comprimiam – o meu coração. Quando ela fala, seu rosto parece
uma roda brilhante que gira rapidamente: não é possível discernir
alguns raios. Mas agora a roda estava parada. Vi uma estranha
combinação: suas sobrancelhas escuras subiam alto até as
têmporas, formando um engraçado triângulo agudo que
apontava para cima, e duas profundas ruguinhas que iam do nariz
aos cantos da boca. E esses dois triângulos de alguma maneira
contradiziam um ao outro, punham em todo o rosto aquele
desagradável e irritante X, como uma cruz: um rosto riscado por
uma cruz.
A roda começou a girar, os raios se fundiram...
– Você não foi ao Departamento dos Guardiões?
– Eu estive... Não pude, estive doente.
– Sim, pois foi isso que pensei: alguma coisa deve tê-lo
impedido, não importa o quê (sorriu com os dentes pontiagudos).
Em compensação, agora você está em minhas mãos. Você se
lembra: “Qualquer número que não se manifestar no curso de 48
horas é considerado...”.
Meu coração batia tão forte que as barras começaram a
envergar. Como um menininho tolo eu havia sido apanhado e
como um menininho tolo fiquei calado. Sentia que estava de pés e
mãos atados...
Ela se levantou e se esticou preguiçosamente. Apertou o botão
e com um suave estalido as cortinas se fecharam de todos os
lados. Eu estava isolado do mundo, a sós com ela.
I estava em algum lugar atrás de mim, perto do armário. Ouvi o
seu unif farfalhar e cair no chão, ouvi da cabeça aos pés. E me
lembrei... não: foi um relâmpago de um centésimo de segundo...
Há pouco tempo tive que calcular a curvatura de um novo tipo
de membrana de rua (agora essas membranas elegantemente
decoradas estão em todas as avenidas e gravam as conversas de
rua para o Departamento dos Guardiões). E me lembrei: essa
membrana côncava, rosada e trêmula era um ser estranho,
composto de apenas um órgão, o ouvido. Nesse momento, eu era
essa membrana.
O estalar de um botão na gola, no peito, e mais outro embaixo.
A seda cristalina farfalhou nos seus ombros, nos joelhos, no chão.
Eu ouvia com mais clareza do que via, uma perna após a outra saía
daquele monte cinza-azulado de seda...
A membrana tensionada com força tremia e gravava o silêncio.
Não: o bater de um martelo forte com pausas infinitas sobre a
barra. Eu ouvia e via: ela estava atrás de mim, pensando por um
instante.
Então as portas do armário bateram, depois alguma tampa e
de novo a seda, seda...
– Bem, por favor.
Virei-me. Ela estava com um leve vestido amarelo-açafrão, de
estilo antigo. Isso era mil vezes mais terrível do que se ela
estivesse sem nada. Duas pontas agudas ardiam, rosadas, através
do tecido fino, duas brasas entre as cinzas. Dois delicados e
redondos joelhos...
Ela se sentou numa poltrona baixa. Na mesinha quadrangular
diante dela havia um frasco com algum líquido verde, da cor de
veneno, e dois minúsculos copinhos com hastes. Do canto de sua
boca saía uma fumaça por um antigo e fino tubo de papel (agora
esqueci como se chamava).
A membrana ainda vibrava. O martelo batia ali, dentro de
mim, deixando a barra vermelha incandescente. Eu ouvia
claramente cada golpe e... E se de repente ela também estivesse
ouvindo?
Mas ela fumava tranquilamente, olhava para mim
tranquilamente e batia as cinzas com negligência sobre o meu
bilhetinho cor-de-rosa.
Perguntei com o maior sangue-frio que consegui reunir:
– Escute, nesse caso, por que é que você se inscreveu comigo?
E para que me obrigar a vir aqui?
Fez como se não me escutasse. Encheu um copinho com a
bebida do frasco e deu um gole.
– Licor delicioso. Você quer?
Só então eu entendi: álcool. O dia de ontem me fulminou como
um raio. O rápido raio de ontem: a mão de pedra do Benfeitor, o
insuportável corte, e lá, no Cubo, aquele corpo estendido, com a
cabeça atirada para trás. Estremeci.
– Escute – eu disse –, você sabe que a todos que se envenenam
com nicotina e, sobretudo, com álcool, o Estado Único age de
forma implacável...
As sobrancelhas escuras ergueram-se até as têmporas,
formando um triângulo zombeteiro:
– Eliminar rapidamente uns poucos é mais racional do que dar
a muitos a possibilidade de destruírem-se, degenerarem-se etc. É
uma verdade que chega a ser obscena.
– Sim... obscena.
– Sim, se soltássemos na rua esse monte de verdades nuas...
Não, imagine você... bem, por exemplo, esse meu admirador fiel
que você já conhece. Imagine que ele se despisse de toda essa
vestimenta mentirosa e mostrasse sua forma verdadeira ao
público... Oh!
Ela ria. Mas eu via claramente o seu aflito triângulo inferior:
duas rugas profundas dos cantos da boca até o nariz. E, por
alguma razão, essas rugas me fizeram compreender: aquele
homem duplamente encurvado, corcunda e de orelhas em forma
de asas, a tinha abraçado como ela está agora... Ele...
Aliás, tentarei reproduzir agora as minhas sensações
anormais de então. Neste momento, enquanto escrevo, percebo
muito bem: tudo isso deve ser assim. Ele, como todo número
honrado, tem direito à felicidade e seria injusto se... Bem, isso é
muito claro.
I ria longamente e de maneira muito estranha. Depois olhou
fixamente, para dentro de mim:
– O importante é que me sinto completamente calma com
você. Você é tão gentil. Oh, e tenho certeza de que você não está
pensando em ir ao Departamento e denunciar-me por beber licor
e fumar. Você estará doente, ou ocupado, ou sei lá o quê. E mais:
tenho certeza de que você beberá comigo esse veneno
fascinante...
Que tom mais insolente e escarnecedor. Tive certeza: agora eu
a odiava de novo. Por outro lado, por que “agora”? Eu a odiei o
tempo todo.
Ela entornou todo o veneno verde do copinho, levantou-se, o
rosa transparecendo através do açafrão, deu alguns passos,
parou atrás da minha poltrona...
De repente, o braço em volta do meu pescoço, lábios nos
lábios... Não, em algum lugar mais profundo, mais terrível... Juro
que foi algo completamente inesperado para mim, talvez só
porque... Eu não poderia querer – agora compreendo com
absoluta nitidez – não poderia querer aquilo que aconteceu
depois.
Os lábios insuportavelmente doces (suponho que seja o gosto
do “licor”) verteram um gole do veneno ardente, e mais um, e
mais um... Desprendi-me da terra como um planeta
independente, rotacionando freneticamente, disparando para
baixo, para baixo, por alguma órbita obscura.
Posso descrever o que se seguiu apenas de maneira
aproximada, apenas por meio de analogias mais ou menos
aproximadas.
Uma coisa dessas nunca me passou pela cabeça antes, mas foi
exatamente assim: nós, na Terra, andamos o tempo todo sobre
um mar vermelho e fervente de fogo, oculto lá, nas entranhas do
planeta. Mas nós nunca pensamos sobre isso. E se, de repente, a
casca sob os nossos pés começasse a se vitrificar, e de repente
pudéssemos ver...
Transformei-me em vidro. Vi a mim mesmo por dentro.
Havia dois de mim. Um eu era o D-503 de antes, o número D-
503, mas o outro... Antes, ele apenas mostrara um pouco suas
patas peludas fora da casca, mas agora saíra completamente, a
casca estalava, rompera-se em pedaços e... e o quê, agora?
Com todas as minhas forças agarrei-me àquele fio – os braços
da poltrona –, e perguntei, para ouvir meu antigo eu:
– Onde... Onde você conseguiu esse... esse veneno?
– Oh, isso! Só um médico, um de meus...
– “De meus”? “De meus” o quê?
Subitamente, o outro eu saltou e começou a gritar:
– Não admito! Não quero que haja ninguém além de mim. Vou
matar qualquer um... Porque você, eu e você...
Eu vi: ele a agarrou brutalmente com as patas peludas, rasgou
seu vestido de seda fina e cravou-lhe os dentes, lembro-me com
exatidão: foram justamente os dentes.
Já não sei como I escapou. Os olhos fechados pelas malditas e
impenetráveis cortinas, ela em pé, encostada no armário,
escutando-me.
Lembro-me de estar no chão abraçando suas pernas,
beijando-lhe os joelhos e implorando: “Agora, agora mesmo,
nesse minuto...”.
Os dentes pontiagudos, as sobrancelhas triangulares e
escarnecedoras. Ela se inclinou e em silêncio desprendeu minha
placa.
“Sim! Sim, querida, querida”, e comecei a tirar
apressadamente meu unif. Mas I, ainda em silêncio, levou até
meus próprios olhos o relógio da minha placa. Faltavam 5 minutos
para as 22h30.
Congelei. Eu sabia o que significava aparecer na rua depois
das 22h30. Toda a minha loucura foi carregada de uma vez só. Eu
era eu. Uma coisa ficou clara para mim: eu a odeio, odeio, odeio!
Sem me despedir e sem olhar para trás, lancei-me para fora do
cômodo. Prendi a placa de qualquer jeito na corrida pelos degraus
e, por precaução, fui pelas escadas (estava com medo de
encontrar alguém no elevador), saltei na rua deserta.
Tudo estava em seu lugar, tão simples, comum, em
conformidade com a lei: as casas de vidro com luzes brilhantes,
um céu pálido e cristalino, a noite verdejante e sem movimento.
Mas sob esse vidro frio e sem ruído, algo rubro e desgrenhado
sofria, silencioso e violento. E eu, sem fôlego, corria
apressadamente para não me atrasar.
De repente, senti que a placa que eu havia prendido depressa
enquanto corria estava se desprendendo. Ela se soltou e retiniu
sobre a calçada de vidro. Inclinei-me para pegá-la e naquele
segundo de silêncio percebi passos de alguém atrás de mim.
Virei-me: algo pequeno e encurvado virava a esquina. Pelo menos
assim me pareceu.
Corri a toda velocidade, apenas o ar assobiava nos meus
ouvidos. Parei na entrada: o relógio indicava um minuto para as
22h30. Ouvi com atenção: não havia ninguém atrás de mim. Tudo
isso evidentemente havia sido uma fantasia absurda, efeito do
veneno.
Foi uma noite torturante. A cama debaixo de mim subia,
descia e subia de novo, flutuava sinuosamente. Tentei convencer-
me disso: “À noite, os números devem dormir; isso é obrigatório,
assim como o é trabalhar durante o dia. É imprescindível para
poder trabalhar de dia. Não dormir à noite é criminoso...”. E
mesmo assim não pude, não pude.
Estou arruinado. Não sou capaz de cumprir minhas
obrigações para com o Estado Único... Eu...
11ª ANOTAÇÃO
Resumo:
20 MINUTOS DEPOIS
Resumo:
Resumo:
Resumo:
Resumo:
A Campânula. O mar
espelhado. Queimarei
eternamente.
Eu acabara de entrar no hangar onde a “Integral” era
construída, quando o Segundo Construtor veio ao meu encontro.
Seu rosto era o de sempre: redondo, branco como um prato de
louça, e, como se nesse prato levasse algo insuportavelmente
delicioso, ele disse:
– Já que você fez o favor de ficar doente, ontem, sem você, sem
a sua autoridade, pode-se dizer que ocorreu um incidente.
– Um incidente?
– Pois sim! A campainha soou, terminamos o trabalho e
começávamos a sair do hangar e imagine: o encarregado prendeu
uma pessoa sem número. Não consigo entender como ele se
infiltrou aqui. Levaram-no para a Sala de Operações. Lá, meu
caro, arrancarão dele a causa e o motivo... (Deu um sorriso
delicioso...)
Na Sala de Operações trabalham os nossos melhores e mais
experientes médicos sob a orientação direta do próprio Benfeitor.
Nela existem diferentes instrumentos, e o mais importante é a
famosa Campânula. Na realidade, ela funciona como o antigo
experimento escolar no qual um rato era colocado sob uma
redoma de vidro; o ar dentro dela é bombeado para fora,
diminuindo cada vez mais... e assim por diante. Mas, é claro, a
Campânula é um aparato consideravelmente mais completo, com
o emprego de diferentes gases, e, por isso mesmo, naturalmente,
não é mais o caso de escarnecer animais pequenos e indefesos,
mas tem um propósito elevado: a preocupação com a segurança
do Estado Único; em outras palavras, a felicidade de milhões. Por
volta de cinco séculos atrás, quando o trabalho na Sala de
Operações apenas se iniciava, apareceram alguns tolos que a
compararam com a antiga Inquisição, mas na verdade isso é tão
absurdo como colocar no mesmo patamar um cirurgião que
realiza uma traqueostomia e um salteador: talvez ambos tenham
a mesma faca nas mãos e façam a mesma coisa, cortar a garganta
de uma pessoa viva. Entretanto, um é benfeitor, o outro, um
criminoso; um é o sinal de +, o outro, o de −...
Tudo isso é muito claro, tudo isso num segundo, numa volta da
máquina da lógica. Mas depois, no instante em que os dentes se
engancharam no sinal de menos, outra coisa me veio à mente: o
chaveiro ainda balançando no armário. Evidentemente, a porta
havia acabado de bater, mas ela, I, não estava lá: havia
desaparecido. A máquina não pôde resolver isso de maneira
nenhuma. Um sonho? Mas ainda sinto uma doce e
incompreensível dor no ombro direito – I se apertara contra ele ao
meu lado, em meio à névoa. “Tu gostas da névoa?” Sim, a névoa...
gosto de tudo, tudo era suave, novo, surpreendente, tudo estava
bem...
– Tudo está bem – eu disse em voz alta.
– Bem? – arregalou os olhos arredondados como louça. – Ou
melhor, o que há de bom nisso tudo? Se esse sem número foi
capaz de... quer dizer que eles estão por toda parte, ao nosso
redor, o tempo todo, eles estão aqui, perto da “Integral”, eles...
– Mas quem são eles?
– Eu sei lá quem são eles! Mas eu os sinto, entende? O tempo
todo.
– Você ouviu falar que inventaram uma operação para extirpar
a imaginação? (De fato, há alguns dias ouvi algo parecido.)
– Sim, eu sei. Mas o que tem isso agora?
– Ora, se eu estivesse no seu lugar, pediria que fizessem essa
operação em mim.
No prato, claramente se desenhou algo ácido-cítrico. Meu
caro, ele se ofendeu com a menor insinuação de que poderia ter
imaginação... Pensando bem, na semana passada, provavelmente
eu também teria ficado ofendido. Mas agora, agora não: porque
sei que tenho uma, que estou doente. E também sei que não quero
me recuperar. Não quero me recuperar e ponto-final. Subimos os
degraus de vidro. Tudo sob nossos pés era claro como o dia...
Vocês, leitores destas notas, quem quer que sejam, o sol está
sobre vocês. E se algum dia também estiveram tão doentes como
estou agora, sabem como é e como pode ser o sol pela manhã.
Sabem que é rosado, transparente, morno e dourado. O próprio
ar é um pouco rosado, tudo está impregnado do delicado sangue
solar. Tudo está vivo: as pedras estão vivas e macias; o ferro está
vivo e quente; as pessoas estão vivas e cada uma delas sorri. Pode
acontecer de em uma hora tudo isso desaparecer, em uma hora o
sangue rosado se esvair, mas por enquanto estamos vivos. E vejo
que algo pulsa e transborda nos fluidos vítreos da “Integral”; vejo
a “Integral” pensando no seu grandioso e terrível futuro, no fardo
pesado da felicidade inevitável que ela levará para cima, a vocês
desconhecidos, a vocês que a buscam eternamente e nunca a
encontram. Vocês a encontrarão e serão felizes, vocês são
obrigados a ser felizes e já não precisam esperar muito tempo.
A fuselagem da “Integral” está quase pronta: uma elegante e
alongada elipsoide feita com o nosso vidro, eterno como o ouro e
flexível como o aço. Por dentro, vi que fixavam ao corpo de vidro
as costelas transversais – as cavernas – e as longitudinais – as
longarinas; na popa colocaram o alicerce para o gigantesco motor
do foguete. A cada três segundos, a cauda potente da “Integral”
lançará chamas e gases no espaço – e voará, voará como um ígneo
Tamerlão da felicidade...
Vi as pessoas lá embaixo, em movimentos cadenciados e
rápidos, no ritmo Taylor, curvando-se e desencurvando-se,
girando como alavancas de uma máquina enorme. Em suas mãos
brilhavam canos: cortavam com fogo, soldavam as paredes de
vidro, as esquadrias, as bordas e os suportes. Vi deslizar devagar
pelos trilhos de vidro guindastes monstruosos de vidro
transparente, e, como se fossem pessoas, viravam-se obedientes,
inclinavam-se e introduziam a carga nas entranhas da “Integral”.
Formavam uma unidade: humanizadas, pessoas perfeitas. Era a
música mais elevada, de beleza formidável, harmonia... Apressei-
me para baixo, para eles, para estar com eles!
E lá estava eu, ombro a ombro, fundido neles, tomado pela
cadência do aço... Movimentos ritmados: bochechas coradas,
arredondadas e firmes; frontes espelhadas, não obscurecidas
pela loucura do pensamento. Eu nadava por esse mar espelhado.
Relaxei.
De repente, alguém se virou e disse com tranquilidade para
mim:
– E então, você está melhor hoje?
– Como assim, melhor?
– Bem, você não esteve aqui ontem. Pensamos que alguma
coisa perigosa havia... – sua testa resplandecia, seu sorriso era
infantil e inocente.
O sangue invadiu meu rosto. Eu não podia, não podia mentir
para aqueles olhos. Fiquei em silêncio, afundei...
Acima, o rosto que irradiava a brancura redonda de um prato
de louça meteu-se na escotilha.
– Ei, D-503! Venha até aqui! Neste ponto, veja, a estrutura
ficou rígida com os suportes, e as junções criaram uma tensão no
quadro.
Sem ouvir até o fim, subi correndo ao encontro dele. Escapei
vergonhosamente. Não tinha forças para levantar o olhar, os
olhos se turvaram por causa dos degraus brilhantes de vidro sob
meus pés, e a cada degrau tudo parecia mais desesperador: não
havia lugar para um criminoso envenenado como eu. Nunca mais
farei parte do preciso ritmo mecânico, nem nadarei no mar
espelhado e tranquilo. Queimarei eternamente, revolvendo-me e
procurando um canto onde possa esconder meus olhos
eternamente, até que por fim encontre forças para atravessar...
E uma faísca de gelo me atravessou: não me importo comigo,
tanto faz, mas acontecerá o mesmo com ela também, e...
Passei com dificuldade pela escotilha, cheguei à plataforma e
parei: não sabia para onde ir naquele momento, não sabia por que
viera até ali. Olhei para cima. Lá se erguia um sol exaurido e opaco
de meio-dia. Embaixo estava a “Integral”, cinza-vítrea, sem vida.
O sangue rosado se esvaíra, estava claro que tudo isso havia sido
apenas minha imaginação, que tudo permanecia como antes e, ao
mesmo tempo, era evidente...
– O que há com você, 503, está surdo? Estou chamando,
chamando... O que há com você? – Era o Segundo Construtor, que
gritava diretamente no meu ouvido: devia estar gritando comigo
há um bom tempo.
O que há comigo? Perdi o leme. O motor ronca ao máximo, o
aero treme e se move rapidamente, mas sem direção, e não sei
para onde estou indo: para baixo, para estatelar-me no chão, ou
para cima, em direção ao sol, ao fogo...
16ª ANOTAÇÃO
Resumo:
Resumo:
Resumo:
AO ANOITECER:
Você sabe... ou, talvez, você não saiba – não sei escrever muito
bem –, mas não importa: saberá agora. Sem você não viverei nem
um dia, nem uma manhã, nem uma primavera. Porque R para mim
é apenas... bem, isso não é importante para você. De qualquer
maneira, sou muito agradecida a ele: se eu estivesse sozinha, sem
ele, nesses dias, não sei o que... Durante esses dias e noites vivi dez,
talvez vinte anos. Era como se meu quarto não fosse quadrangular,
mas circular e sem fim – circular, circular, e tudo era o mesmo, em
lugar nenhum havia portas.
Não posso viver sem você porque o amo. Porque vejo e
compreendo: agora você não precisa de ninguém, ninguém no
mundo além daquela, da outra, e, entenda: é exatamente porque
amo você que devo...
Ainda preciso de dois ou três dias para juntar meus pedaços de
alguma maneira para ficar pelo menos parecida com a antiga O-
90. Então farei uma solicitação para remover meu registro com
você, e você ficará melhor, ficará bem. Nunca mais nos falaremos,
desculpe-me.
O
Nunca mais. Será melhor assim: ela tem razão. Mas por que,
por que então...
19ª ANOTAÇÃO
Resumo:
O infinitesimal de terceira
ordem. Sob a fronte. Por cima
do parapeito.
Lá, no estranho corredor com as lâmpadas formando pontos
opacos e tremeluzentes... ou não, não – não foi lá: depois, quando
eu já estava com ela em algum recanto perdido no quintal da Casa
Antiga, ela disse: “Depois de amanhã”. Esse “depois de amanhã” é
hoje, e tudo ganhou asas, o dia voa, a nossa “Integral” já está
alada: terminaram a instalação do propulsor do foguete e hoje
realizaram o teste em ponto morto. Que descargas magníficas e
potentes e, para mim, cada uma delas era uma saudação em
honra a ela, à única, em honra ao dia de hoje.
Durante a primeira manobra (= explosão), havia uma dezena
de números boquiabertos embaixo da boca do motor no nosso
hangar, e deles não sobrou absolutamente nada além de algumas
migalhas e fuligem. É com orgulho que escrevo que o ritmo do
nosso trabalho não perdeu nem um segundo por causa disso.
Ninguém se abalou: nós e nossas máquinas continuamos os
movimentos, em linha reta e circulares, tudo com a mesma
precisão, como se nada houvesse acontecido. Dez números mal
são uma parte de 100 milhões da massa do Estado Único. De
acordo com um cálculo prático, é um infinitesimal de terceira
ordem. Aritmeticamente, só os antigos conheciam a compaixão
iletrada: para nós ela é cômica.
É engraçado como ontem eu pude refletir e, inclusive, escrever
nestas páginas sobre alguma lamentável manchinha acinzentada,
sobre um borrão. Isso é o mesmo que “amolecer a superfície”, que
deveria ser dura como diamante, assim como as nossas paredes
(há um provérbio antigo que diz: “o mesmo que falar com as
paredes”).
16 horas. Não fui ao passeio complementar: como eu poderia
saber se ela não teria a ideia de vir exatamente agora, quando
tudo brilha à luz do sol...
Estou praticamente sozinho no prédio. Por entre as paredes
ensolaradas, posso ver ao longe as outras habitações, à direita, à
esquerda e embaixo de mim, penduradas no ar, vazias, repetindo-
se umas nas outras como num espelho. Apenas uma tênue
sombra cinzenta deslizava devagar para cima, por uma escada
azulada delineada pelo sol como tinta nanquim. Ouço passos e
vejo-a através da porta. Sinto o sorriso-emplasto grudado em
mim – passou e foi para outra escada – para baixo...
O numerador tocou. Atirei-me para o estreito painel branco
e... e era algum número masculino desconhecido (se iniciava com
uma consoante). O elevador zumbiu, e a porta bateu. Diante de
mim, uma testa enfiada sobre os olhos de maneira torta e
desleixada, e esses olhos... tinham uma expressão muito estranha:
como se ele falasse de lá, sob a fronte, onde estavam os olhos.
– Ela lhe mandou uma carta... – sob a fronte, sob um toldo. –
Ela pede que faça sem falta tudo o que está escrito aqui.
Sob a fronte, sob o toldo – olhou ao redor. Sim, não há
ninguém, não há ninguém aqui, então me dê logo! Mais uma vez
olhou para trás, entregou-me o envelope e saiu. Eu estava
sozinho.
Não, não sozinho: dentro do envelope havia um talão cor-de-
rosa e, quase imperceptível, o cheiro dela. Era ela, ela viria, viria
me ver. Rápido, peguei a carta para, com meus próprios olhos, ler
até o fim para crer...
O quê? Não pode ser! Li mais uma vez, saltando pelas linhas:
“O talão... feche as cortinas sem falta, como se eu realmente
estivesse com você. É imprescindível que eles pensem que eu... eu
sinto muito, sinto muito...”.
Fiz a carta em pedaços. Por um segundo, no espelho, vi minhas
sobrancelhas deformadas e desgrenhadas. Peguei o talão para
fazer com ele o mesmo que fiz com a carta...
“Ela pediu que fizesse sem falta tudo como está escrito”.
Minhas mãos se enfraqueceram e se abriram. O talão caiu na
mesa. Ela é mais forte do que eu, e ao que parece farei tudo como
ela quer. Por outro lado... por outro lado, não sei: veremos, ainda
falta muito até a noite... O talão ficou na mesa.
No espelho, minhas sobrancelhas deformadas e
desgrenhadas. Por que não tenho um atestado médico para hoje?
Teria ido caminhar, caminhar sem parar ao redor de todo o Muro
Verde, e depois cair na cama, nas profundezas... Mas eu deveria ir
ao 13º auditório, deveria atarraxar-me na cadeira para não me
mover por duas horas, por duas horas... quando o que eu
precisava era gritar e bater os pés.
A palestra. É muito estranho que viesse do aparato brilhante
uma voz não metálica, como a de costume, mas suave, aveludada,
musgosa. Era uma voz feminina. Ocorreu-me que, quando viva,
ela devia ser pequena, uma velha em forma de anzolzinho,
parecida com a da Casa Antiga.
A Casa Antiga... e tudo vem de uma vez, como uma fonte, de lá
debaixo, e com todas as forças preciso atarraxar-me para não
inundar todo o auditório com um grito. As palavras suaves e
aveludadas me trespassavam, e de tudo ficou apenas isto: algo
sobre crianças, sobre a puericultura. Eu era como uma chapa
fotográfica: gravava tudo em mim com uma precisão um tanto
estranha, alheia e sem sentido, um crescente dourado, o reflexo
da luz do alto-falante; sob ele, havia uma criança – uma ilustração
viva – tentando alcançá-lo; ela enfiava na boca a barra do seu unif
microscópico; o punho apertado com força, o polegar (na
verdade, muito pequeno) dobrado para dentro, a sombra leve da
dobra no seu pulso roliço. Como uma chapa fotográfica, gravei: a
perna nua pendia sobre a extremidade, o leque cor-de-rosa
formado pelos dedos pisava no ar e estava a ponto de cair no
chão...
Então, um grito de mulher subiu ao palco e, balançando as
asas transparentes do unif, apanhou o bebê com os lábios, pelos
punhos roliços, colocou-o no centro da mesa, depois desceu do
palco. Ficou gravado em mim: a boca rosada em meia-lua, com as
pontas para baixo, os olhos azuis como pires transbordando.
Aquela era O. E eu, como se estivesse numa conferência sobre
alguma fórmula bem-proporcionada, de repente, percebi a
necessidade, a regularidade desse evento insignificante.
Ela se sentou um pouco atrás de mim, à esquerda. Dei uma
olhada ao redor; de maneira obediente, ela tirou os olhos da mesa
com o bebê e pousou-os sobre mim, dentro de mim, e de novo: ela,
eu e a mesa no palco éramos três pontos, e através deles uma
linha foi traçada – projeções de certos eventos inevitáveis e ainda
imperceptíveis.
Voltei para casa por uma rua verde, crepuscular, sob luzes
penetrantes. Ouvi: eu fazia tique-taque, como um relógio. E os
ponteiros dentro de mim ultrapassavam algum número, eu estava
prestes a fazer uma coisa da qual não poderia voltar atrás. Ela
precisa que alguém pense que ela está aqui comigo. Mas eu
preciso dela, e que me importam as suas “necessidades”. Não
quero ser as cortinas de outra pessoa. Não quero e pronto.
Atrás de mim, passos familiares, ruidosos como numa poça de
água. Não olhei para trás, já sabia que era S. Ele me seguirá até a
minha porta, depois, talvez, fique lá embaixo, na calçada, com
suas brocas perfurando para cima, para o meu quarto até que as
cortinas se fechem, escondendo o crime de alguém...
Ele, meu Anjo da Guarda, colocou um ponto final nisso. Decidi-
me: não farei. Decidi-me.
Quando subi até a minha habitação e acendi o interruptor, não
pude acreditar nos meus olhos: O estava de pé ao lado da minha
mesa. Ou, mais exatamente, estava pendurada, como um vestido
vazio após ser tirado. Sob o vestido, parecia que lhe faltava uma
mola, seus braços, suas pernas estavam sem molas, sua voz
estava suspensa, sem molas.
– Eu... queria falar sobre minha carta. Você a recebeu? Sim?
Preciso saber a resposta, preciso hoje mesmo.
Dei de ombros. Com prazer, como se ela fosse culpada de tudo,
olhei para os seus olhos azuis, cheios até a borda e protelei a
resposta. E com prazer, espetando-a com cada palavra, disse:
– Resposta? Então... Você está certa. Sem dúvida. Sobre tudo.
– Isso significa... (havia um minúsculo tremor cortando seu
sorriso, mas eu podia vê-lo). Então, muito bem! Agora, agora
mesmo vou embora.
E ela lá, ficou pendurada sobre a mesa. Olhos, braços e pernas
abatidos. Na mesa ainda estava o amarrotado talão cor-de-rosa
dela. Rapidamente abri este meu manuscrito – “Nós” – e suas
páginas cobriram o talão (talvez fosse mais por mim do que por
O).
– Veja, estou escrevendo tudo. Já tenho 150 páginas... Está
saindo algo tão inesperado...
Uma voz, uma sombra de voz:
– Mas lembre-se... quando você estava na página 22, eu... eu
derramei... e você...
Lágrimas apressadas e silenciosas transbordavam pelos pires
azuis, escorriam pelas bochechas, palavras apressadas, pela
borda:
– Não posso, agora vou embora... eu nunca mais... e que seja
assim. A única coisa que quero... Preciso de um bebê seu... Dê-me
um bebê e eu vou embora, vou embora!
Vi que ela tremia inteira debaixo do unif e senti que eu
também... Coloquei as mãos para trás, sorri:
– O quê? Você deseja a Máquina do Benfeitor?
E despejou em mim estas palavras, assim como uma torrente
rompendo uma represa:
– Não importa! Mas de verdade eu sentirei, eu o sentirei
dentro de mim. E mesmo que em alguns dias... Ver, apenas uma
vez ver as suas dobrinhas nos pulsos, assim como lá, como na
mesa. Apenas por um dia!
Três pontos: ela, eu e aquele com o punho roliço com
dobrinhas na mesa...
Resumo:
Resumo:
AO ANOITECER
Resumo:
Resumo:
Flores. A dissolução de um
cristal. Se ao menos.
Dizem que existem flores que desabrocham apenas uma vez a
cada cem anos. Por que não existem outras que florescem uma
vez a cada mil ou 10 mil anos? Talvez até agora não soubéssemos
disso apenas porque essa vez a cada mil anos é exatamente hoje.
Embriagado e afortunadamente, desci as escadas para ver a
plantonista, e rapidamente, diante de meus olhos, por toda parte
ao meu redor, silenciosamente rebentavam brotos de milhares de
anos e floresciam poltronas, sapatos, placas douradas, lâmpadas
elétricas, os olhos escuros e hirsutos de alguém, parapeitos com
colunas entalhadas, um lenço caído nos degraus, a mesa da
plantonista, por cima desta as bochechas ternas, castanhas e
salpicadas de Iu. Tudo era extraordinário, novo, suave, rosado e
úmido.
Iu pegou meu talão cor-de-rosa, e sobre sua cabeça, através da
parede de vidro, a lua azul e aromática pendia de um galho
invisível. Triunfante, apontei e disse:
– A lua, compreende?
Iu lançou um olhar para mim, depois para o número no talão, e
vi aquele movimento familiar tão encantador e recatado: arrumou
a dobra do unif entre os joelhos.
– Você, meu querido, tem um aspecto anormal e doentio
porque a anormalidade e a doença são a mesma coisa. Você está
se arruinando e isso ninguém lhe dirá, ninguém.
Esse “ninguém” certamente se referia ao número no talão: I-
330. Querida, admirável Iu! Você, é claro, está certa: eu sou
imprudente, estou doente, tenho uma alma, sou um micróbio.
Mas não é o florescer de uma doença? Um broto não sente dor
quando se rompe? Você não acha que o espermatozoide é o mais
terrível dos micróbios?
Subi de volta para o meu quarto. I estava no amplo cálice da
poltrona. E eu estava no chão, abraçado às suas pernas, minha
cabeça apoiada em seus joelhos, ficamos calados. O silêncio, o
pulso... E eu era um cristal, dissolvia-me nela, em I. Senti
claramente que se derretiam: derretiam-se as facetas polidas que
me limitam no espaço – desapareço, dissolvo-me em seus joelhos,
nela, tornei-me muito menor e, ao mesmo tempo, muito mais
amplo, cada vez maior, imenso. Porque ela não é ela, mas o
Universo. E, por um segundo, eu e essa poltrona trespassada de
alegria junto à cama somos um só: a velha sorridente ao lado da
porta da Casa Antiga, a selva incivilizada no exterior do Muro
Verde, ruínas de prata enegrecida que cochilavam como a velha,
e, em algum lugar incrivelmente longe, o bater de uma porta. Isso
tudo dentro de mim, junto comigo, ouvindo meu pulso e flutuando
por um abençoado segundo...
Numa ridícula e confusa inundação de palavras, tentei contar
a ela que eu era um cristal, e por isso dentro de mim havia uma
porta, por isso me sentia como uma poltrona feliz. Porém, me saiu
tamanho disparate que me interrompi. Fiquei realmente
envergonhado: de repente, eu...
– Querida I, perdoe-me! Realmente não entendo, falo tantas
bobagens...
– Por que você pensa que as bobagens são coisas ruins? Se a
tolice humana fosse nutrida e cultivada ao longo dos séculos da
mesma maneira que a inteligência, talvez conseguíssemos dela
algo extraordinariamente precioso.
– Sim... (Me parecia que ela estava certa, como ela poderia
estar errada agora?)
– E foi por causa de uma bobagem sua, pelo que você fez
ontem no passeio, que te amo ainda mais, ainda mais.
– Mas por que é que você me tortura, por que você não veio,
por que você enviou seus talões, por que me obrigou a...
– Talvez você precisasse ser testado. Talvez eu precisasse
saber que você faria tudo o que eu quisesse, que você era
completamente meu.
– Sim, completamente!
Ela pegou meu rosto – pegou-me por inteiro – com as palmas
das mãos, levantou minha cabeça:
– Então, e como vão os seus “deveres de todo número
honesto”? Hein?
Dentes brancos, pontiagudos e doces: um sorriso. Sentada no
amplo cálice da poltrona, ela era como uma abelha: dentro dela, o
ferrão e o mel.
Sim, os deveres... Folheei mentalmente minhas últimas
anotações: de fato, em lugar nenhum havia sequer um
pensamento sobre o que, na realidade, eu deveria...
Fiquei em silêncio. Com entusiasmo (e, provavelmente, como
um tolo) sorri, observei suas pupilas, pulando de uma para a
outra, e em cada uma delas vi a mim mesmo: eu era minúsculo,
milimétrico, preso nessas pequeninas e irisadas masmorras. E,
em seguida, de novo, abelhas, lábios, a dor doce do florescer...
Em cada um de nós, números, há um tipo de metrônomo
invisível, fazendo um leve tique-taque, e, sem olhar para o relógio,
sabemos a hora com uma precisão de cinco minutos. Mas,
naquele momento, o metrônomo dentro de mim havia parado, e
eu não sabia quanto tempo se passara. Assustado, peguei
debaixo do travesseiro minha placa com o relógio...
Graças ao Benfeitor: ainda faltavam 20 minutos! Mas os
minutos são ridiculamente curtos, muito curtos, correm, e eu
tenho tanto para dizer a ela, tudo, tudo sobre mim: sobre a carta
de O, sobre aquela noite terrível em que dei a ela um bebê; e, por
alguma razão, algo sobre a minha infância, sobre o matemático
Pliapa, a √-1 e como, pela primeira vez, no feriado da
Unanimidade, chorei amargamente porque naquele dia havia uma
mancha de tinta no meu unif.
I levantou a cabeça, apoiou-se no cotovelo. Duas longas linhas
agudas formavam-se no canto dos seus lábios, e o ângulo escuro
de suas sobrancelhas erguidas: uma cruz.
– Talvez, naquele dia... – interrompeu-se, e suas sobrancelhas
ficaram ainda mais escuras. Ela pegou minha mão e apertou-a
com força. – Diga que você não irá me esquecer, você sempre se
lembrará de mim?
– Por que você está assim? Do que você está falando, I,
querida?
Ela ficou em silêncio, e seus olhos passaram por mim, através
de mim, para longe. E, de repente, ouvi o vento açoitar o vidro
com suas asas imensas (sem dúvida isso acontecera durante todo
o tempo, mas eu o ouvira apenas agora), e por algum motivo
recordei dos pássaros estridentes sobrevoando o Muro Verde.
I sacudiu a cabeça, tentando tirar algo de si. Mais uma vez, por
um segundo, tocou-me com todo o corpo – como um aero toca o
solo, repelindo-o por um segundo antes de pousar.
– Então, vamos, passe as minhas meias! Rápido!
As meias estavam jogadas na minha mesa, sobre a página
aberta das minhas notas. Na pressa, esbarrei no manuscrito, as
páginas se espalharam e não havia como colocá-las em ordem – e
o mais importante era que, se o fizesse, não seria a ordem
verdadeira, ficariam de qualquer maneira alguns cortes, buracos
e Xs.
– Não posso fazer isso – disse eu. – Você está aqui agora, ao
meu lado, e mesmo assim é como se você estivesse atrás de uma
antiga parede opaca: ouço através da parede sussurros e vozes,
mas não consigo decifrar as palavras, não sei o que há lá. Desse
jeito não posso. Você sempre deixa as coisas por dizer, você nunca
me disse aonde eu fui parar na Casa Antiga e que corredores
eram aqueles, e por que o doutor... Ou será que nada disso
aconteceu?
I colocou as mãos nos meus ombros, lenta e profundamente
penetrou meus olhos:
– Você quer saber de tudo?
– Sim, eu quero. Preciso.
– E não terá medo de ir comigo a qualquer lugar, até o fim,
aonde quer que eu te leve?
– Sim, a qualquer lugar!
– Está bem. Prometo que, quando o feriado terminar, se ao
menos... Ah, sim: e como vai a sua “Integral”, sempre me esqueço
de perguntar, fica pronta logo?
– Não. Como “se ao menos”? De novo? O que quer dizer “se ao
menos”?
Ela ( já junto à porta):
– Você verá por si mesmo...
Fiquei só. Tudo o que restou dela foi esse cheiro quase
imperceptível, semelhante ao pólen doce, seco e amarelo de
algumas flores de fora do Muro. E mais uma coisa: as perguntas-
gancho se cravavam solidamente em mim, à maneira que os
antigos empregavam para pescar os peixes (Museu Pré-
Histórico).
Por que de repente ela perguntou sobre a “Integral”?
24ª ANOTAÇÃO
Resumo:
AO ANOITECER:
25ª ANOTAÇÃO
Resumo:
AO ANOITECER. 22 HORAS.
Resumo:
MEFI
6. É necessário entender que a resolução exata para esse sorriso só descobri depois de
alguns dias, repletos dos acontecimentos mais estranhos e inesperados. [N. do A.]
27ª ANOTAÇÃO
Resumo:
Resumo:
As duas. Entropia
e energia.
A parte opaca do corpo.
Vejam: se o seu mundo é parecido com o dos nossos
antepassados distantes, então imaginem que algum dia no
oceano vocês tropeçaram com a sexta, a sétima parte do
mundo – uma espécie de Atlântida – com cidades-labirinto
extraordinárias, pessoas que planam pelos ares sem a ajuda
de asas ou aeros e pedras que podem ser levantadas com a
força do olhar, resumindo, coisas que não viriam à cabeça
nem se vocês sofressem da doença do sonho. É assim que foi
o dia de ontem para mim. Porque, compreendam, nenhum de
nós, nunca, desde a Guerra dos Duzentos Anos, esteve fora do
Muro – já lhes falei sobre isso.
Eu sei que é meu dever para com vocês, amigos
desconhecidos, contar em detalhes sobre esse mundo
estranho e inesperado que se revelou para mim ontem. Mas
por enquanto eu não estou em condições de voltar a isso.
Tudo é novo, novo, como uma chuva torrencial de eventos e
não dou conta de reuni-los todos: fechei as mangas do meu
unif com as palmas das mãos, e apesar de tudo o balde todo
derramou e algumas gotas caíram nestas páginas...
Primeiro ouvi vozes altas atrás da minha porta e reconheci
a voz dela, de I, flexível, metálica, e outra quase monótona,
rígida como uma régua de madeira: era a voz de Iu. Em
seguida, a porta se abriu com um estalido, e as duas
dispararam para dentro do meu quarto. Exatamente isso:
dispararam.
I pousou a mão no espaldar da minha poltrona e sobre o
ombro direito sorriu para Iu com todos os dentes. Eu não
queria ficar na direção daquele sorriso.
– Escute – disse-me I –, essa mulher parece ter como
objetivo defender você de mim, como se você fosse uma
criancinha. Ela tem sua permissão?
E então, a outra, com as guelras trêmulas:
– Sim, ele é uma criança. Sim! É só por isso que ele não vê
que você está com ele para... Tudo isso é apenas para, para...
que tudo é uma farsa. Sim! E meu dever é...
Por um instante, vi no espelho a linha partida e trêmula
das minhas sobrancelhas. Levantei num salto e, com
dificuldade de conter o meu outro eu, o de punhos peludos e
trêmulos, fazendo passar com dificuldade cada palavra por
entre meus dentes, gritei-lhe na cara, bem nas guelras:
– Agora mesmo, fora! Agora!
As guelras inflaram-se vermelhas como tijolos, depois
murcharam e se tornaram cinzentas. Ela abriu a boca para
dizer alguma coisa e, sem dizer nada, fechou-a com um ruído
e foi embora.
Corri para I:
– Não perdoarei, nunca irei me perdoar por isso! Ela se
atreveu, com você? Você não pode pensar que eu penso que...
que ela... Tudo isso porque ela quer registrar-se comigo, mas
eu...
– Felizmente, ela não terá tempo de se registrar com você.
Ainda que existissem milhares como ela: não importa. Eu sei
que você confia não em milhares, mas somente em mim.
Porque, de fato, depois de ontem, sou toda sua, até o fim,
como você queria. Estou em suas mãos, você pode a qualquer
momento...
– O que a qualquer momento? – e imediatamente
compreendi o quê, o sangue brotou em minhas orelhas, nas
bochechas e gritei: – Não diga isso, nunca mais fale disso!
Você compreende que aquele era meu eu anterior, mas
agora...
– Quem sabe... O homem é como um romance: até a última
página não se sabe como vai terminar. Do contrário, não
valeria a pena ler...
I acariciava minha cabeça. Eu não via seu rosto, mas podia
ouvir em sua voz que ela olhava para algum lugar distante, os
olhos presos numa nuvem, que navegava silenciosamente,
devagar, quem sabe para onde...
De repente, ela me afastou com a mão, de maneira firme e
suave, e disse:
– Escute: vim aqui lhe dizer que estes talvez sejam os
últimos dias... Você sabe que hoje à noite estão cancelados
todos os auditórios.
– Cancelados?
– Sim. Passei em frente e vi: nos edifícios dos auditórios
preparam algo. Há mesas, médicos de branco.
– Mas o que é que isso significa?
– Não sei. Por enquanto ninguém sabe. E isso é o pior de
tudo. Apenas sinto que ligaram a corrente, as faíscas se
espalham, senão hoje, amanhã... Mas, talvez eles não consigam
a tempo.
Há muito deixei de tentar entender quem são eles e quem
somos nós. Não compreendo o que quero: que eles consigam
ou não consigam. Apenas uma coisa é clara para mim: I está
andando no limite, e num instante, a qualquer momento...
– Mas isso é uma loucura – eu disse. – Você contra o
Estado Único. É a mesma coisa que tapar a boca do cano de
uma arma com a mão e achar que é possível deter o tiro. É
uma completa loucura!
Um sorriso:
– “É preciso que todos enlouqueçam, enlouqueçam o mais
depressa possível.” Alguém disse ontem à noite. Você se
lembra? Lá...
Sim, tenho isso anotado. Portanto, havia realmente
acontecido. Permaneci em silêncio, contemplei seu rosto: nele
havia uma cruz escura extraordinariamente nítida.
– Querida I, antes que seja tarde... Se quiser, eu abandono
tudo, esqueço tudo e vou contigo para lá, para o outro lado do
Muro, com aqueles... não sei quem são eles.
Ela balançou a cabeça. Através das janelas escuras dos
seus olhos, lá, dentro dela, vi uma lareira ardente, faíscas,
línguas de fogo subiam, um amontoado de lenha seca. E ficou
claro para mim que já era tarde, minhas palavras não podiam
fazer mais nada...
Ela se levantou – estava para ir embora. Talvez estes
fossem os últimos dias, talvez até os últimos minutos...
Agarrei-a pela mão.
– Não! Mais um pouco, pelo bem do... pelo bem do...
Lentamente ela levantou minha mão em direção à luz,
minha mão peluda que eu tanto odiava. Eu queria puxá-la,
mas ela a segurava com firmeza.
– Sua mão... Você realmente não sabe, e poucos sabem que
as mulheres daqui, da cidade, amavam aqueles do outro lado.
É possível que você tenha algumas gotas do sangue
ensolarado da floresta. Talvez seja por isso que eu também...
Pausa. Que estranho: meu coração batia muito depressa
por causa dessa pausa, desse vazio, desse nada. E gritei:
– Ah! Você não vai embora ainda! Não vai embora até me
contar sobre eles, por que você os... ama, e eu nem sei quem
são eles, de onde eles são. Quem são eles? A metade que
perdemos? H2 e O, e para obter H2O – rios, mares,
cachoeiras, ondas, tempestades – as duas metades devem ser
unidas...
Lembro-me precisamente de cada um de seus
movimentos. Lembro-me que ela pegou um triângulo de vidro
de cima da minha mesa e, durante todo o tempo em que eu
falava, apertava a ponta contra sua bochecha. E nela
apareceu uma marca branca, depois ficou rosada e
desapareceu. É surpreendente, não consigo recordar suas
palavras – principalmente o início –, mas apenas algumas
imagens e cores isoladas.
Eu sei que o início era sobre a Guerra dos Duzentos Anos.
E então: vermelho na grama verde, no barro escuro, na neve
azul, poças vermelhas que não secavam. Em seguida, a grama
amarela queimada pelo sol, pessoas amarelas e nuas
desgrenhadas, cachorros desgrenhados – perto, ao lado de
cadáveres inchados de cachorros ou, talvez, de pessoas... Isso,
é claro, foi além dos Muros: porque a cidade já havia vencido e
o nosso atual alimento à base de petróleo já existia.
Do céu, quase até o chão, pesadas pregas escuras
balançando: colunas de fumaça sobre as florestas, sobre os
povoados. Um uivo seco: fileiras sem fim eram conduzidas até
a cidade para serem salvas à força e aprenderem a felicidade.
– Você sabia de quase tudo isso?
– Sim, quase tudo.
– Mas você não sabia, e poucos sabiam, que uma pequena
parte deles conseguiu se salvar e passou a viver lá, fora dos
Muros. Nus, eles foram embora para a floresta. Aprenderam
com as árvores, as bestas, os pássaros, as flores, o sol.
Adquiriram mais pelos, mas sob esse pelo conservaram o
sangue vermelho, quente. Para vocês foi pior: criaram as
cifras, que se arrastam por vocês como piolhos. É necessário
livrá-los de tudo e expulsá-los nus para a floresta. Deixar que
aprendam a tremer de medo, de felicidade, de raiva, de frio, e
rezar pelo fogo. E nós, Mefi, nós queremos...
– Não, espere, e “Mefi”? O que quer dizer “Mefi”?
– Mefi? É um nome antigo, é aquele que... Você se lembra:
lá, na pedra, a imagem do jovem... Ou não: é melhor na sua
língua, você entenderá mais rápido. Então, há duas forças no
mundo: a entropia e a energia. Uma tende ao repouso
beatífico, ao equilíbrio feliz; a outra tende à destruição do
equilíbrio, ao doloroso movimento sem fim. A entropia, os
nossos, ou melhor, os seus antepassados, os cristãos,
adoravam-na como a um Deus. E nós, os anticristãos, nós...
E naquele momento, um murmúrio quase inaudível, uma
batida na porta, e saltou para dentro do quarto aquele
mesmo homem achatado, com a testa enterrada nos olhos,
que mais de uma vez trouxera para mim os bilhetes de I.
Ele veio correndo em nossa direção e parou resfolegando
como uma bomba de ar, não conseguia dizer uma palavra: é
possível que tenha corrido depressa demais.
– Mas então! O que aconteceu? – I agarrou-o pelo braço.
– Estão vindo para cá... – a bomba finalmente ofegou. – Os
Guardiõ... e com eles aquele que... parece um corcunda...
– S?
– Sim, sim! Estão perto, no prédio. Estarão aqui a qualquer
momento. Rápido, rápido!
– Bobagem! Temos tempo... – ela riu, faíscas nos olhos com
línguas de fogo.
Ou era uma coragem absurda e imprudente, ou algo que
eu ainda não havia compreendido.
– I, pelo Benfeitor! Você tem que entender, isso é...
– Pelo Benfeitor – o triângulo pontiagudo, um sorriso.
– Então... então por mim... Eu te peço.
– Ah, ainda preciso tratar de um assunto com você... Mas,
não importa: amanhã...
Com alegria (sim, com alegria) ela acenou para mim; o
outro também acenou, aparecendo por um instante sob o
toldo formado pela sua testa. E fiquei só.
Depressa, para a mesa. Abri minhas notas, peguei a pena
para que eles me encontrassem trabalhando em benefício do
Estado Único. De repente, cada fio de cabelo da minha cabeça
estava vivo; isolados, moviam-se: “E se eles apanharem e
lerem mesmo que seja uma das últimas páginas?”.
Fiquei sentado à mesa, sem me mover, vi como tremiam as
paredes, a pena em minha mão, as letras trepidavam e se
misturavam...
Devo esconder? Mas onde? Tudo é de vidro. Queimar? Mas
eles me veriam do corredor e das habitações vizinhas. E
depois, já não posso, não tenho forças para destruir este
doloroso e, talvez, mais precioso pedaço de mim mesmo.
Ao longe, no corredor, já se ouviam vozes e passos. Tive
tempo apenas de agarrar um maço de folhas e metê-lo
embaixo de mim. Eu estava pregado à poltrona que oscilava
com cada um de seus átomos, e sob meus pés, era como o
convés de um navio, para cima, para baixo...
Encolhido como uma bolinha, escondido sob o toldo da
minha testa, de alguma maneira, de soslaio, observei
sorrateiro: eles iam de quarto em quarto, iniciando no final
direito do corredor e chegando cada vez mais perto. Alguns
ficavam sentados e petrificados, como eu; outros se
levantavam de um salto ao encontro deles e escancaravam a
porta – números felizes! Se eu também...
“O Benfeitor é indispensável para o aperfeiçoamento da
desinfecção humana, e, em consequência, não existe nenhum
movimento peristáltico no organismo do Estado Único...” Com
a pena aos pulos, extraí esse completo disparate e me inclinei
mais sobre a mesa, em minha cabeça havia uma enlouquecida
forja. Às minhas costas, ouvi a maçaneta da porta, o vento
soprou, a poltrona pôs-se a dançar sob mim...
Só então, com dificuldade, desprendi-me da página e me
virei para os que haviam entrado (como é difícil interpretar
uma farsa... Ah, quem me falou hoje sobre a farsa?). S entrou
na frente, sombrio, calado, com os olhos perfurando poços em
mim, em minha poltrona, nas folhas que estremeciam sob a
minha mão. Em seguida, por um momento, alguns rostos
familiares, cotidianos, no umbral da porta, e dentre eles um
se destacou, guelras castanho-rosadas infladas...
Recordei tudo o que acontecera neste quarto meia hora
atrás e ficou claro para mim o que ela faria naquele instante...
Todo o meu ser batia e pulsava naquela (felizmente não
transparente) parte do meu corpo, em que eu havia
escondido o manuscrito.
Iu aproximou-se por trás dele, de S, tocou-o
cuidadosamente pela manga e disse em voz baixa:
– Este é D-503, o Construtor da “Integral”. Você já deve ter
ouvido falar dele. Ele sempre está assim, atrás da mesa... Não
se dá nenhum descanso!
... Eu o quê? Que mulher admirável, surpreendente.
S começou a deslizar em minha direção, inclinou-se sobre
o meu ombro, acima da mesa. Cobri o que acabara de
escrever com o cotovelo, mas ele gritou severamente:
– Solicito que me mostre o que tem aí imediatamente!
Ardendo de vergonha, entreguei a ele o pedaço de papel.
Ele leu, e eu vi um sorriso escapar de seus olhos, escorrer
pelo rosto e, depois de mover um pouco sua pequena cauda,
assentar-se em algum lugar no canto direito da boca.
– Um pouco ambíguo, mesmo assim... Bem, continue: não
vamos mais incomodá-lo.
Ele chapinhou até a porta como um remo na água, e, a
cada um de seus passos, meus pés, mãos, dedos voltavam a
mim, minha alma novamente distribuía-se pelo meu corpo
uniformemente, respirava...
Por último: Iu se deteve no meu quarto, aproximou-se de
mim, inclinou-se e sussurrou no meu ouvido:
– Sorte sua que eu...
Incompreensível: o que ela quis dizer com isso?
À noite, mais tarde, soube que eles levaram três números
consigo. Aliás, sobre isso, como sobre todo o resto que
acontecia, ninguém falava (uma influência educativa dos
Guardiões, invisivelmente presentes entre nós). As conversas
giravam principalmente em torno da rápida queda do
barômetro e da mudança do tempo.
29ª ANOTAÇÃO
Resumo:
Resumo:
O último número.
O erro de Galileu. Não
seria melhor?
Segue a minha conversa com I ontem na Casa Antiga, entre
o barulho multicolorido que abafava o movimento lógico do
pensamento – cores vermelhas, verdes, amarelo-bronze,
brancas, alaranjadas... O tempo todo sob o sorriso petrificado
em mármore do antigo poeta de nariz arrebitado.
Reproduzirei essa conversa ao pé da letra porque me
parece que há um significado enorme e determinante para o
destino do Estado Único. E mais: para o destino do Universo.
Além disso, vocês, meus leitores desconhecidos, talvez
possam encontrar aqui alguma justificativa para o meu...
Sem nenhuma preparação, I despejou tudo em mim de uma
só vez:
– Eu sei que depois de amanhã você fará o primeiro voo de
teste da “Integral”. Nesse dia nós a tomaremos em nossas
mãos.
– Como? Depois de amanhã?
– Sim. Sente-se, não se preocupe. Não podemos perder
nem um minuto. Entre as centenas de números detidos
ontem, ao acaso, pelos Guardiões, há 12 Mefi. Se deixarmos
dois ou três dias se passarem, eles serão mortos.
Permaneci em silêncio.
– Para observar o progresso do experimento, eles
precisam enviar a você técnicos eletricistas, mecânicos,
médicos e meteorologistas. E exatamente às 12h – lembre-se
–, quando soar o sinal do almoço e todos forem ao refeitório,
nós ficaremos no corredor e trancaremos todos no refeitório,
e a “Integral” será nossa... Você compreende: isso precisa ser
feito a qualquer custo. A “Integral” em nossas mãos será uma
arma que nos ajudará a pôr um fim em tudo de uma vez,
rápido e sem dor. Os aeros deles... Ah! Serão apenas
mosquitos insignificantes contra um falcão. E depois, se for
inevitável, poderemos apontar para baixo o escape dos
motores e apenas terão o trabalho de...
Sobressaltei-me:
– Isso é inconcebível! Um absurdo! Por acaso não está
claro que o que você está começando é uma revolução?
– Sim, uma revolução! Por que isso é absurdo?
– É um absurdo porque uma revolução não é possível.
Porque a nossa (eu é que digo e não você), a nossa revolução
foi a última. E não é possível haver outras revoluções. Todo
mundo sabe disso...
Um zombeteiro triângulo pontiagudo de sobrancelhas:
– Meu querido: você é um matemático. Inclusive mais do
que isso: um filósofo da matemática. Então: fale-me sobre o
último número.
– O que você quer dizer? Eu... Eu não entendo: que último?
– Bem, o último, o mais elevado, o maior.
– Mas, I, isso é um completo absurdo. Os números são
infinitos, que último número é esse que você quer?
– E que última revolução é essa que você quer? Não há
última, as revoluções são infinitas. Último é para as crianças:
o infinito as assusta, e é imprescindível que as crianças
durmam tranquilamente à noite...
– Mas qual é o sentido, qual é o sentido de tudo isso, pelo
Benfeitor? Qual é o sentido, uma vez que já somos todos
felizes?
– Suponhamos... Então está bem: que seja assim. O que
vem depois?
– Que piada! Uma pergunta completamente infantil. Conte
alguma coisa às crianças, do início ao fim, e certamente vão
perguntar: e depois? Por quê?
– As crianças são os únicos filósofos valentes. E filósofos
valentes são necessariamente crianças. E é exatamente assim,
como as crianças, devemos sempre perguntar: e depois?
– Não há nada depois! Ponto-final. Por todo o universo,
uniformemente, distribuído por todas as partes...
– A-ha! Uniformemente, em todas as partes! E aqui está a
mesma entropia, a entropia psicológica. Para você, para um
matemático, talvez não esteja claro que é apenas na
diferença, na diferença entre temperaturas, é apenas nos
contrastes térmicos, é apenas neles que reside a vida. E se
por toda parte, por todo universo, houvesse corpos de igual
calor ou de igual frieza... Eles precisam colidir para obter
fogo, explosão, geena.[7] E nós os faremos colidir.
– Mas I, entenda, entenda: nossos antepassados fizeram
exatamente isso na época da Guerra dos Duzentos Anos...
– Oh, e eles estavam certos, mil vezes certos. Eles
cometeram apenas um erro: posteriormente, acreditaram
que tinham o último número – o que não existe na natureza,
não existe. O erro deles foi o erro de Galileu: ele estava certo
de que a Terra gira ao redor do Sol, mas não sabia que todo o
Sistema Solar se move ao redor de um centro, não sabia que a
real, e não relativa, órbita da Terra, não é de forma alguma
um círculo ingênuo...
– E vocês?
– Nós, por enquanto, sabemos que não existe último
número. Talvez esqueçamos. Não, talvez esqueçamos quando
ficarmos velhos, como todos ficam velhos inevitavelmente. E
então, também inevitavelmente cairemos como as folhas das
árvores no outono, como depois de amanhã você... Não, não,
querido, você não. Você está do nosso lado, você está do
nosso lado!
Afogueada, num torvelinho, radiante, eu nunca a vira
assim. Ela me abraçou com todo o corpo. Eu desapareci...
Por fim, olhando-me de maneira sólida e firme nos olhos:
– Então se lembre bem: às 12h.
E eu disse:
– Sim, lembrarei.
Ela foi embora. Fiquei só entre a algazarra turbulenta e
dissonante de azuis, vermelhos, verdes, amarelo-bronze,
laranja...
Sim, às 12h... – e, de repente, tive o sentimento absurdo de
que algo estranho havia se instalado no meu rosto, algo de
que eu não podia me livrar de maneira alguma. De repente,
era a manhã de ontem, Iu estava gritando na cara de I... Por
quê? Que absurdo foi aquele?
Apressei-me em sair, chegar rápido em casa, em casa...
Em algum lugar atrás de mim, ouvi o grito estridente dos
pássaros sobrevoando o Muro. E adiante, no sol poente – de
luz cor de framboesa cristalizada –, os globos das cúpulas, as
enormes e ardentes casas cúbicas, raios congelados no céu, o
pináculo da Torre Acumuladora. E tudo isso, toda essa
impecável beleza geométrica, eu mesmo, com minhas
próprias mãos, devo... Será que não há alguma outra saída,
outro caminho?
Passei por um auditório (não me lembro do número).
Dentro, bancos estavam empilhados; no centro, as mesas
estavam cobertas por lençóis de vidro branco como a neve;
sobre o branco havia uma mancha de sangue rosado, de sol.
Oculto por trás de tudo isso havia um misterioso, e por isso
terrível, amanhã. É anormal que um ser pensante e capaz de
ver tenha que viver entre irregularidades, incógnitas e Xs. É
como se o vendassem e o obrigassem a andar tateando e
tropeçando, e você sabe que em algum lugar bem perto há
uma beirada, e mais um passo e de você apenas restará um
pedaço achatado e disforme de carne. Por acaso, isso não é a
mesma coisa?
... E se, sem esperar, eu me atirar de cabeça? Essa não
seria a única maneira, a correta, de me desvencilhar de tudo
de uma vez?
Resumo:
A grande operação.
Perdoei tudo. Uma colisão
de trens.
Estamos salvos! No último momento, quando parecia que
não havia nada em que se agarrar, quando parecia que tudo
estava acabado...
Era como se você houvesse subido os degraus que levam
até a terrível Máquina do Benfeitor e, com um pesado
retinido, fosse coberto pela Campânula de vidro, e pela última
vez na vida, rapidamente devorasse com os olhos o céu azul...
E, de repente, tudo isso foi só um “sonho”. O sol aparece
rosado e alegre; e a parede, que alegria é passar a mão pela
parede fria; o travesseiro, é um deleite sem fim a marca
deixada pela sua cabeça no travesseiro branco...
Foi aproximadamente isso o que experimentei quando li
hoje de manhã a Gazeta do Estado. Fora um sonho terrível e
ele acabara. E eu, um covarde, incrédulo, já estava pensando
em me matar. Estou envergonhado de ler agora as últimas
linhas que escrevi ontem. Mas não importa: que fiquem assim,
como uma memória das coisas inacreditáveis que poderiam
acontecer e das que nunca... sim, nunca acontecerão!...
Na primeira página da Gazeta do Estado brilhava:
ALEGREM-SE,
Porquanto a partir de hoje vocês são perfeitos! Até o dia
de hoje suas criações, mecanismos, eram mais perfeitos que
vocês.
POR QUÊ?
Cada faísca de um dínamo é uma faísca de pura razão;
cada movimento de um pistão é um silogismo imaculado. Mas
será que essa mesma razão infalível não existe em vocês?
A filosofia dos guindastes, prensas e bombas é perfeita e
clara como um círculo de compasso. Mas será a sua filosofia
menos perfeita que um compasso?
A beleza do mecanismo está na imutabilidade e exatidão
do ritmo, como um pêndulo. Mas vocês, criados desde a
in ância no sistema Taylor, não adquiriram a exatidão de um
pêndulo?
E APENAS MAIS UMA COISA:
MECANISMOS NÃO TÊM IMAGINAÇÃO.
Alguma vez vocês viram na fisionomia do cilindro de uma
bomba formar-se um sorriso distante, com ar estúpido de
sonhador, enquanto trabalha? Alguma vez vocês ouviram os
guindastes à noite, nas horas determinadas para o descanso,
dar voltas inquietas e suspirando?
NÃO!
Tenham vergonha! Os Guardiões, com cada vez mais
frequência, veem esses sorrisos e suspiros. E escondam os
olhos, os historiadores do Estado Único pedem demissão para
não registrar eventos tão vergonhosos.
Mas não é sua culpa, vocês estão doentes. O nome dessa
doença é:
IMAGINAÇÃO.
É um verme que rói sua testa, deixando rugas negras. É
uma febre que o intimida a correr cada vez mais distante,
ainda que esse “distante” comece onde termina a felicidade.
Essa é a última barricada no caminho para a felicidade.
Alegrem-se, ela já foi dinamitada.
O caminho está livre.
A última descoberta da Ciência do Estado: o centro da
imaginação está num lamentável nódulo cerebral na região
da Ponte de Varólio. Uma tripla cauterização nesse nódulo
com raios-X e vocês estarão curados da imaginação.
PARA SEMPRE.
Vocês são perfeitos, vocês são como máquinas, o caminho
para a felicidade está cem por cento livre. Apressem-se todos,
velhos e jovens, apressem-se para se submeter à Grande
Operação. Apressem-se para os auditórios onde se executa a
Grande Operação. Viva a Grande Operação! Viva o Estado
Único! Viva o Benfeitor!
Resumo:
Resumo:
Resumo:
Os libertos. Noite
ensolarada. Rádio
Valquíria.
Oh, se eu realmente tivesse me destruído em mil pedaços,
se eu, realmente, junto com ela, me encontrasse em algum
lugar fora do Muro, entre as feras com as presas amarelas à
mostra, se eu realmente nunca tivesse voltado aqui. Teria sido
mil vezes, milhões de vezes mais fácil. E agora o quê? Sair e
estrangular aquela... Mas isso ajudaria em alguma coisa?
Não, não, não! Controle-se, D-503. Coloque-se no firme
eixo da lógica, ainda que seja por pouco tempo, empurre a
alavanca com todas as suas forças e, como um antigo servo,
mova as mós do silogismo. Enquanto não escrever, sua cabeça
não racionalizará tudo o que aconteceu.
Quando entrei a bordo da “Integral”, todos já estavam
reunidos, em seus lugares, todos os gigantescos favos da
colmeia de vidro estavam cheios. E através do convés de
vidro: lá embaixo, pessoas minúsculas como formigas junto
aos telégrafos, dínamos, transformadores, altímetros,
válvulas, ponteiros, motores, bombas, tubos. Na cabine de
refeições, alguns números estavam debruçados sobre tabelas
e instrumentos, provavelmente faziam parte de uma missão
enviada pelo Departamento de Ciência. Ao lado deles, o
Segundo Construtor com dois de seus assistentes.
Os três tinham cabeças como de tartarugas, enterradas
nos ombros, os rostos cinzentos, de outono, sem brilho.
– Bem, e então? – perguntei.
– Bem... É um pouco assustador... – um deles disse, com
um sorriso cinzento, sem brilho. – Talvez tenhamos que
aterrissar num local desconhecido. Em geral, não há como
saber...
Era insuportável olhar para eles, para aqueles que eu, com
minhas próprias mãos, dentro de uma hora privarei para
sempre das confortáveis cifras da Tábua das Horas,
arrancarei do seio maternal do Estado Único. Eles me
recordaram as trágicas figuras dos “Três libertos”, uma
história que qualquer criança de escola conhece. É uma
história sobre como três números, na qualidade de
experimento, foram liberados do trabalho por um mês: para
fazer o que quisessem, ir aonde quisessem.[8] Os infelizes
perambulavam próximo ao local habitual de trabalho,
espreitando-o com olhos famintos; ficavam nas praças e, por
horas a fio, executavam aqueles movimentos que eram
determinados pela hora do dia e que haviam se convertido
numa necessidade do organismo: serravam e aplainavam o ar,
brandiam martelos invisíveis e golpeavam lingotes invisíveis.
E, finalmente, no décimo dia, não suportaram mais: de mãos
dadas, entraram na água sob o som da Marcha e
submergiram cada vez mais fundo, até que a água afogou seus
tormentos...
Repito: era difícil observá-los. Apressei-me para partir.
– Vou apenas verificar a sala das máquinas – eu disse –,
depois partiremos.
Perguntavam-me sobre qual voltagem utilizar para a
detonação do lançamento, o quanto de água para o lastro na
cisterna da popa. Havia um tipo de gramofone dentro de mim:
ele respondia a todas as questões com rapidez e precisão sem
interromper o que se passava no meu interior.
E, de repente, num corredorzinho estreito, algo me
acertou, dentro de mim, e naquele momento, de fato, tudo
começou.
Nesse estreito corredorzinho passaram rapidamente unifs
cinza, rostos cinza, e entre eles, num instante: um deles tinha
o cabelo puxado para baixo, os olhos sob a fronte – aquele
mesmo homem. Compreendi que eles estavam aqui, e não
havia para onde fugir, restavam apenas poucos minutos,
algumas dezenas de minutos... Um minúsculo tremor
molecular atravessou todo o meu corpo (e não cessou até que
tudo estivesse acabado) como se fosse gerado por um enorme
motor, mas a edificação do meu corpo era leve demais e,
então, todas as paredes, divisórias, cabos, vigas e luzes
puseram-se a tremer...
Ainda não sabia se ela estava ali. Mas não havia mais
tempo, vieram atrás de mim para me apressar a voltar para
cima, para a cabine de comando: era hora de partir... Para
onde?
Rostos cinzentos e sem brilho. Cabos azuis e tensos
embaixo, na água. O céu em pesadas camadas de ferro.
Levantei a mão, também de ferro, peguei o telefone de
comando.
– Para cima, 45°!
Uma explosão surda, um impulso, uma montanha de água
branco-esverdeada na popa – o convés se movia sob os
nossos pés –, suave, de borracha – e tudo embaixo, toda a
vida, para sempre... Durante um segundo, afundávamos mais
profundamente, como numa espécie de funil, tudo ao redor
diminuía – o relevo azulado de gelo do recorte da cidade, as
pequenas bolhas arredondadas das cúpulas, o solitário dedo
plúmbeo da Torre Acumuladora. Depois, atravessamos uma
cortina de nuvens instantâneas de algodão – e então o sol, o
céu azul. Segundos, minutos, milhas – o azul endureceu
rapidamente, encheu-se de escuridão, e as estrelas surgiram
como gotas de suor frio e prateado...
Em seguida, uma noite assombrosa, intoleravelmente
brilhante, escura, estrelada e ensolarada. Era como se tornar
surdo de repente: você ainda vê os tubos roncando, mas
apenas os vê: os tubos estão mudos, em silêncio. Assim era o
sol: mudo.
Tudo isso era natural, o que devíamos esperar. Saímos da
atmosfera terrestre. Mas foi tudo tão rápido, inesperado, e
todos ao redor ficaram assustados, silenciosos. E para mim –
para mim, parecia que tudo era mais fácil sob esse sol
fantástico e mudo: era como se eu me encolhesse pela última
vez e já tivesse cruzado um umbral inevitável, e meu corpo foi
deixado em algum lugar lá embaixo, enquanto eu voava para
um mundo novo, onde tudo devia ser diferente, de cabeça
para baixo...
– Mantenha o curso – eu gritei para a sala das máquinas;
ou não fui eu, mas aquele gramofone dentro de mim, que, com
seu braço mecânico articulado, passou o receptor de
comando para o Segundo Construtor. E eu, envolto por
finíssimas moléculas que só eu ouvia tremer, corri para baixo,
para procurar...
A porta da cabine de refeições, a mesma que dentro de
uma hora irá ressoar e se fechar... Perto da porta havia
alguém que eu não conhecia, baixinho, tinha o rosto de
centenas, de milhares que se perdem na multidão, apenas os
braços eram anormalmente longos, até os joelhos: como se,
por engano, às pressas, houvesse pegado os braços de outro
conjunto humano.
Os braços longos se esticaram obstruindo a passagem:
– Aonde vai?
Ficou claro que ele não sabia que eu estava a par de tudo.
Pois bem, talvez deva ser assim. E de cima, de maneira ríspida
e proposital:
– Eu sou o Construtor da “Integral”. Sou o responsável
pelo experimento. Entendeu?
Os braços baixaram.
A cabine de refeições. Sobre os instrumentos e mapas,
cabeças circundadas por uma cabeleira cinzenta, cabeças
amarelas, calvas, maduras. Dei uma rápida olhada neles, voltei
pelo corredor, desci a escada do alçapão para a sala das
máquinas. Lá dentro: o calor e o estrépito dos canos
incandescentes com as detonações, manivelas brilhando
numa desesperada e ébria prisiadka[9], e, sem parar por um
segundo, o tremor quase imperceptível dos ponteiros dos
mostradores...
E, então, finalmente, próximo ao tacômetro, estava ele,
com a testa projetada sobre um livro de notas...
– Escute... (Um estrondo: era necessário gritar direto nos
ouvidos.) Ela está aqui? Onde?
Na sombra, sob a fronte, um sorriso:
– Ela? Lá, na sala de radiotelefonia...
E eu me dirigi para lá. Havia três deles. Todos em
capacetes auditivos alados. E ela parecia ter a cabeça mais
alta do que nunca, alada, brilhante, voando como as antigas
Valquírias. Parecia que acima dela, na antena de rádio, saíam
enormes faíscas azuis, e também um leve odor relampejante
de ozônio.
– Alguém... não, melhor que seja você... – eu disse a ela,
sem fôlego (por causa da corrida). – Preciso transmitir para
baixo, para a Terra, no hangar... Venha, eu ditarei...
Ao lado da sala de instrumentos havia uma pequena
cabine. Sentamos à mesa, lado a lado. Encontrei sua mão e
apertei-a com força:
– E então? O que vai acontecer?
– Não sei. Você compreende que isso é maravilhoso: voar
sem saber, não importa para onde... E logo serão 12h, e quem
sabe o que vai acontecer? À noite... onde estaremos à noite,
nós dois? Talvez na grama, nas folhas secas...
Faíscas azuis e um cheiro de relâmpago emanavam dela, e
meu tremor ficava cada vez mais rápido.
– Escreva – eu disse alto e ainda sem fôlego (da corrida). –
Horário: 11h30. Velocidade: 6.800...
Ela, sob o capacete alado, sem tirar os olhos do papel,
disse baixinho:
–... Ontem à noite ela veio me procurar com o seu bilhete...
E sei, eu sei de tudo: fique quieto. Mas o bebê é mesmo seu?
Eu a enviei, ela já está lá, fora do Muro. Ela viverá...
De volta à sala de comando. Novamente: a noite delirante
com o céu negro estrelado e o sol ofuscante, o ponteiro do
relógio na parede lentamente mancava de um minuto a outro;
e tudo parecia nebuloso, vestido finamente por um tremor
quase imperceptível (exceto para mim).
Por alguma razão, pareceu-me que era melhor que tudo se
passasse não aqui, mas em algum lugar mais baixo, mais
próximo à Terra.
– Pare – gritei para a máquina.
Tudo prosseguia, pela inércia, mas cada vez mais
lentamente. A “Integral” prendeu-se por um fio de segundo,
ficou suspensa e imóvel por um momento. Em seguida, o fio se
partiu, e a “Integral” caiu como uma pedra, numa velocidade
crescente. Permanecemos em silêncio por uns minutos,
dezenas, minha pulsação era audível, o ponteiro aproximava-
se das 12h diante dos meus olhos. E ficou claro: eu era uma
pedra, I era a Terra, eu era uma pedra atirada por alguém e
tinha a necessidade insuportável de se chocar com a Terra e
se fazer em mil pedaços... E se... abaixo já era visível a densa e
azulada fumaça das nuvens... e se...
Mas o gramofone dentro de mim, articulado e preciso,
pegou o fone e comandou “curso lento” – e a pedra parou de
cair. E então, apenas os quatro auxiliares inferiores – dois na
popa e dois na proa – repousaram para neutralizar o peso da
“Integral”, e a nave, com um leve tremor, parou no ar, firme,
como numa âncora, a cerca de um quilômetro da Terra.
Saímos todos para o convés (eram quase 12h, soaria o
toque do almoço) e, inclinados sobre a amurada de vidro,
apressadamente, tragamos de uma vez o mundo
desconhecido, lá embaixo, fora do Muro. Âmbar, verde e azul:
a floresta outonal, as planícies, um lago. Na beirada desse
pequeno pires azul havia alguma coisa amarelada, ruínas de
ossos, um dedo ressecado amarelo e ameaçador, devia ser a
torre de uma antiga igreja que, por milagre, sobreviveu.
– Olhem, Olhem! Lá, à direita!
Lá, no deserto verde, uma mancha com uma sombra
marrom voava com rapidez. Eu tinha um binóculo nas mãos,
mecanicamente levei-o aos olhos: uma manada de cavalos
castanhos galopava com a vegetação na altura do peito, os
rabos levantados, no dorso, levavam aqueles seres castanhos,
brancos, negros como um corcel...
Atrás de mim:
– Estou lhe dizendo: vi um rosto.
– Vá, conte essa para outra pessoa!
– Bem, tome, tome os binóculos...
Mas já haviam desaparecido. O deserto verde sem fim...
O tremor estridente da campainha invadiu esse deserto, a
mim e a todos os outros: o almoço seria dentro de um minuto,
12h.
O mundo foi momentaneamente disperso em fragmentos
desconexos. A placa dourada de alguém caiu nos degraus e
ressoou, mas não dei importância: quebrei-a com o calcanhar.
Uma voz: “Estou lhe dizendo que era um rosto!”. Um
quadrado escuro: a porta aberta da cabine de refeições.
Dentes brancos cerrados, pontiagudos num sorriso...
E, naquele momento, quando o relógio começou a bater
infinita e lentamente, sem respirar entre uma batida e outra,
e as primeiras filas já se punham em movimento, o quadrado
da porta, de repente, foi cruzado por dois braços familiares,
pouco naturais e longos:
– Parem!
Dedos se cravaram na palma da minha mão. Era I, era ela
ao meu lado:
– Quem é? Você o conhece?
– Será... por acaso não é...
Ele subiu nos ombros de alguém. Acima de centenas de
rostos – seu rosto, como o de centenas, milhares, e único
entre todos eles:
– Em nome dos Guardiões... Vocês, a quem me dirijo, me
ouvem, cada um de vocês me ouve, digo a vocês: nós sabemos.
Não sabemos ainda seus números, porém, sabemos de tudo. A
“Integral” não será de vocês! O teste será levado a cabo, não
se atrevam a se mover, vocês irão concluí-lo com suas
próprias mãos. E depois... bom, isso é tudo...
Silêncio. A laje de vidro sob meus pés ficou mole, como de
algodão, e minhas pernas também ficaram moles, de algodão.
Ela, ao lado, com um sorriso inteiramente branco, com faíscas
raivosas azuladas. Entre dentes, no meu ouvido:
– Foi você? Você “cumpriu o seu dever”? Bem, o que...
Ela tirou a mão da minha. Com raiva, o capacete alado da
Valquíria afastou-se para algum lugar lá na frente. Eu estava
sozinho, petrificado, calado, como todos os outros. Dirigi-me
para a cabine de refeições...
“Mas não fui eu, não fui eu! Não falei com ninguém sobre
isso, além daquelas páginas brancas e mudas...” Dentro de
mim – inaudível, desesperadamente, alto – gritei isso a ela.
Ela se sentou do lado oposto da mesa, e não pousou o olhar
em mim uma vez sequer. Ao lado dela, a careca amarelo-
madura de alguém. Eu pude ouvir (era I):
– “Nobreza”? Mas, meu caro professor, até mesmo uma
simples análise filológica dessa palavra demonstra que ela é
um preconceito, uma reminiscência dos antigos, da época
feudal. E nós...
Senti que estava empalidecendo e todos veriam... Mas o
gramofone dentro de mim executou os cinquenta movimentos
mastigatórios prefixados a cada mordida. Fechei-me em mim
mesmo como uma antiga casa não transparente, atravanquei
a porta com pedras, tapei as janelas...
Mais tarde, o telefone de comando estava em minhas mãos,
e o voo rumo à última e fria tristeza, entre as nuvens, rumo à
noite gelada, estrelada e ensolarada. Minutos, horas. E,
evidentemente, dentro de mim o motor silencioso da lógica
trabalhava febrilmente o tempo todo, porque, de repente,
num ponto, no espaço azul: vi minha escrivaninha, atrás dela
as bochechas em forma de guelras de Iu, uma página
esquecida das minhas notas. E ficou claro: ninguém, a não ser
ela, tudo ficou claro...
Ah, ao menos se... ao menos se eu pudesse chegar ao
rádio... Os capacetes alados, o cheiro de relâmpagos azuis...
Lembro-me de ter dito alguma coisa em voz alta para ela e
lembro-me dela, olhando através de mim, como se eu fosse de
vidro, de longe:
– Estou ocupada: recebo lá de baixo. Dite a ela...
Na minúscula cabine, depois de pensar por um minuto,
ditei com firmeza:
– Hora: 14h40. Descendo! Desligar motores. É o fim de
tudo.
A sala de comando. O coração mecânico da “Integral”
havia parado. Nós caíamos, e meu coração não teve tempo de
cair junto, desprendeu-se e subia para a minha garganta.
Nuvens, em seguida uma mancha verde ao longe, ficando mais
verde, mais distinta, um turbilhão movendo-se velozmente em
nossa direção, o fim se aproximava...
O deformado rosto do Segundo Construtor, branco como
louça. Provavelmente foi ele quem me empurrou com toda a
força. Bati a cabeça contra alguma coisa, e tudo ficou escuro
enquanto eu caía. Nebulosamente, ouvi:
– Motores de popa, a toda velocidade!
Um solavanco brusco para cima... Não me lembro de mais
nada.
8. Isso foi há muito tempo, ainda no século III, após a criação das Tábuas. [N. do A.]
Resumo:
Resumo:
Resumo:
O infusório. O fim do
mundo. O quarto dela.
No refeitório, pela manhã, o vizinho da esquerda
sussurrou, assustado:
– Vamos, coma! Estão observando você!
Sorri com todas as minhas forças. Senti um tipo de
rachadura no meu rosto: sorri e as extremidades dessa
rachadura romperam-se, cada vez mais largas, e ficava cada
vez mais doloroso...
Em seguida: acabara de pegar um cubo com o garfo e esse
imediatamente estremeceu na minha mão e retiniu no prato.
Também as mesas, as paredes, a louça, o ar tremeram e
retiniram e, do lado de fora, um estrondo enorme e metálico
subiu até o céu, atravessou nossas cabeças, casas, para
morrer ao longe, quase imperceptível, pequeno, como
círculos na superfície da água.
Por um momento, vi rostos perderem a cor, desbotarem,
bocas que se detiveram no meio do movimento, garfos
parados no ar.
Seguiu-se uma grande confusão, tudo saiu dos trilhos
seculares. Todos se levantaram num salto (sem haver cantado
o Hino), terminando de mastigar negligentemente, sem ritmo,
engasgando-se, agarrando uns aos outros: “O quê? O que
aconteceu? O quê?”. E como fragmentos desordenados de
uma Máquina uma vez harmoniosa, todos foram para baixo,
de elevador, de escada – passos, palavras cortadas, como uma
carta em pedaços rasgada e jogada ao vento...
Também saíram aos montes dos prédios vizinhos, e num
minuto a avenida ficou como uma gota de água num
microscópio: infusórios presos numa gota de vidro
transparente, confusos, lançando-se para o lado, para cima,
para baixo.
– A-ha! – a voz triunfante de alguém. Diante de mim, uma
nuca e um dedo apontando para cima. Lembro-me muito
distintamente de uma unha amarelo-rosada e, na parte de
baixo dessa unha, uma meia-lua branca, como que saindo do
horizonte. Foi como um compasso: centenas de olhos,
seguindo esse dedo, se voltaram para o céu.
Ali, fugindo de uma perseguição invisível, as nuvens
voavam depressa, esmagavam-se, saltavam umas sobre as
outras, e os aeros dos Guardiões tingidos pelas nuvens
escuras, com seus tubos pretos que pendiam como trombas
e, mais adiante, no oeste, havia algo parecido a...
A princípio, ninguém entendeu o que era aquilo, inclusive
eu não entendi, a quem (infelizmente) havia sido revelado
mais do que a todos os outros. Parecia-se com um imenso
enxame de aeros negros: numa altura inacreditável, pontos
velozes quase imperceptíveis. Cada vez mais próximos, do
alto, gotas de sons roucos e guturais, e, finalmente, pássaros
sobre as nossas cabeças preencheram o céu com triângulos
pontiagudos, negros, estridentes, caindo, a tempestade os
desviava para baixo, eles se assentavam nas cúpulas, nos
telhados, nos postes, nas sacadas.
– A-ha! – virou-se triunfante o homem da nuca. Vi que era
aquele de testa saliente. Mas agora, de seu antigo eu, restara
apenas o título. De alguma maneira, ele saíra de sua eterna
testa saliente e no seu rosto – ao redor dos olhos e dos lábios
– feixes de luz cresciam como fios de cabelo. Ele sorria.
– Você compreende – gritou-me através do uivo do vento,
do bater de asas e dos grasnidos. – Você compreende: o
Muro, explodiram o Muro! Compreende?
De passagem, em algum lugar atrás, vultos apressados, as
cabeças esticadas, correndo rápido para dentro das casas. No
meio do pavimento, uma avalanche de recém-operados
marchavam velozes e, mesmo assim, devagar (por causa do
peso), para o oeste.
... Feixes de raios ao redor dos lábios e dos olhos. Agarrei-
o pela mão:
– Escute: onde ela está, onde está I? Fora do Muro ou...
Preciso saber, está ouvindo? Agora mesmo, não posso...
– Aqui – ele gritou-me, inebriado e alegre, tinha dentes
fortes e amarelos... – Ela está aqui, na cidade, em ação. Oh,
sim, estamos em ação!
Quem somos nós? Quem sou eu?
Próximo, havia uns cinquenta como ele, que rastejaram
para fora de suas grandes testas obscuras, barulhentos,
alegres, dentes fortes. Engoliam a tempestade com as bocas
abertas, agitando um tipo de eletrocutores pacificadores,
benignos (onde eles conseguiram?), eles se puseram na
direção do oeste, atrás dos recém-operados, mas deram a
volta paralelamente, pela Avenida 48...
Tropecei nos cabos esticados que o vento retorcia e corri
até a casa dela. Para quê? Não sei. Tropecei pelas ruas vazias,
uma estranha cidade selvagem, o incessante alarido
triunfante dos pássaros, o fim do mundo. Através das paredes
de vidro, em vários prédios vi (ficou gravado em mim):
números masculinos e femininos copulando sem pudor, sem
sequer fechar as cortinas, sem nenhum bilhete, em plena luz
do dia...
Um edifício, o edifício dela. A porta perplexa estava
escancarada. Embaixo, a mesa do supervisor: vazia. O
elevador estava parado entre os andares. Sem fôlego, corri
para cima, pelas escadas sem fim. O corredor. Rapidamente,
como os raios de uma roda, as cifras nas portas: 320, 326,
330... I-330, sim!
Através da porta de vidro: o quarto inteiro estava
bagunçado, revirado de cabeça para baixo, pisoteado. Uma
cadeira derrubada na pressa, as quatro pernas para cima,
como um animal morto. A cama fora arrancada da parede de
uma maneira absurda e posta de viés. No chão havia talões
cor-de-rosa espalhados e pisoteados como pétalas.
Inclinei-me e apanhei um, dois, três: em todos eles estava
D-503, eu estava em todos, gotas de mim derretidas,
espirrando pelas bordas. E isso era tudo o que restara...
Por alguma razão achei que eles não podiam ficar assim,
pelo chão, onde seriam pisoteados. Peguei mais um punhado
deles e coloquei na mesa, desamassei-os cuidadosamente,
lancei um olhar e... comecei a rir.
Antes eu não sabia disso, agora sei, e vocês também
sabem: o riso tem diferentes cores. É apenas o eco distante
de uma explosão dentro de você: talvez sejam foguetes
festivos, vermelhos, azuis, dourados, ou talvez pedaços do
corpo humano lançado pelos ares...
Num dos talões apareceu um nome completamente
desconhecido. Não me lembro da cifra, apenas da letra F.
Derrubei todos os talões da mesa, pisoteei-os, e a mim, com
os calcanhares – tome, tome isso – e saí...
Sentei-me no peitoril no corredor, do lado contrário à
porta, ainda, tolamente, fiquei esperando por alguma coisa
durante um longo tempo. À esquerda, ouvi passos se
arrastando. Um velho: seu rosto era como uma bolha
perfurada, vazia, na qual se instalaram rugas, e da perfuração
ainda gotejava algo transparente, que escorria lentamente.
Devagar, vagamente, percebi: eram lágrimas. E só quando o
velho já estava longe, me dei conta e gritei-lhe:
– Escute, escute, você não conhece o número I-330...
O velho se virou, fez um gesto desesperado e prosseguiu
mancando...
Retornei à minha casa no crepúsculo. No oeste, a cada
segundo o céu se contraía num espasmo azul pálido, e de lá
vinha um ruído seco e abafado. Os telhados estavam cobertos
por negros tições apagados: eram os pássaros.
Deitei-me na cama, e imediatamente o sonho me dominou
e estrangulou como uma fera...
38ª ANOTAÇÃO
Resumo:
Resumo:
O fim.
Tudo isso foi como o último grão de sal atirado numa solução
saturada: rapidamente, espetando como agulha, os cristais
começaram a se espalhar, solidificando-se, congelando. Para mim
ficou claro: está tudo decidido, amanhã de manhã farei isso. É o
mesmo que me matar, pois, talvez, só então ressuscitarei. Porque
só o que está morto pode ressuscitar.
No oeste, a cada segundo o céu estremecia num espasmo
azulado. Minha cabeça queimava e latejava. Assim passei a noite
inteira e adormeci apenas às 7 da manhã, quando a escuridão já se
dissipava e começava a ficar verde, e os telhados cobertos de
pássaros tornavam-se visíveis...
Despertei: já eram 10 horas (obviamente a campainha não
soara hoje). Na mesa ainda estava o copo de água de ontem.
Engoli a água com avidez e saí correndo: eu precisava fazer tudo
isso rápido, o mais rápido possível.
O céu estava vazio, azul, completamente devorado pela
tempestade. Os cantos angulosos das sombras; tudo era
recortado pelo ar azul outonal – fino – era assustador tocar: se
quebrariam, se dissipariam num pó de vidro. E o mesmo se
passava dentro de mim: eu não devo pensar, não preciso pensar,
não preciso pensar, do contrário...
E não pensei. Inclusive, talvez, nem visse de verdade, mas
simplesmente registrasse. Então, no pavimento, vindos de algum
lugar: ramos de folhas verdes, âmbar e framboesa. No alto,
pássaros e aeros entrecruzavam-se e revolviam-se. E aqui:
cabeças, bocas abertas, mãos balançando ramos. Eles devem ter
sido a fonte dessa gritaria, crocitos, zumbidos...
Depois, as ruas desertas, como se houvessem sido varridas
por alguma peste. Lembro-me de tropeçar em alguma coisa
insuportavelmente macia, flexível, porém imóvel. Inclinei-me: era
um cadáver. Ele jazia de costas, com as pernas abertas e
dobradas, como uma mulher. O rosto...
Reconheci os lábios grossos e negroides que ainda pareciam
salpicar numa risada. Com os olhos severamente entreabertos,
ele ria para mim, diretamente no meu rosto. Num segundo, saltei
por cima dele e corri, porque já não suportava mais, precisava
fazer tudo o mais rápido possível, caso contrário, senti que iria
quebrar, envergar como um trilho sobrecarregado...
Felizmente, já faltavam só uns vinte passos até a placa de
letras douradas: “Departamento dos Guardiões”. Parei na soleira
da porta, respirei fundo, o tanto quanto pude, e entrei.
Lá dentro, no corredor, havia uma fila interminável de
números em pé, com pedaços de papel e cadernos grossos nas
mãos. Lentamente, movia-se um passo, outro, e de novo parava.
Percorri a fila, minha cabeça se partia, eu os agarrava pelas
mangas das roupas, implorava-lhes, como um doente implora
para que lhe deem algo para pôr um fim definitivo ao seu
sofrimento agudo.
Uma mulher usando um cinto alto e muito apertado no unif, os
dois hemisférios ciáticos claramente acentuados movimentando-
se de um lado para outro, o tempo todo, como se eles fossem, de
fato, seus olhos, soltou uma risada na minha direção:
– Ele está com dor de barriga! Levem-no ao banheiro, lá, a
segunda porta à direita...
Risadas na minha direção: e por causa delas algo me veio à
garganta, precisava gritar ou... ou...
De repente, alguém atrás de mim me agarrou pelo cotovelo.
Virei-me: orelhas como asas transparentes. Mas elas não estavam
rosadas como de hábito, mas escarlates: no pescoço, seu pomo de
adão saltava e de uma hora para outra romperia a fina pele do
pescoço.
– Por que você está aqui? – ele perguntou, atarraxando-me
rapidamente.
Também o agarrei pelo cotovelo:
– Rápido, para o seu escritório... Eu preciso contar tudo agora
mesmo! É bom que tenha sido exatamente você... Talvez seja
terrível que exatamente você, mas isso é bom, isso é bom...
Ele também a conhecia, e por isso era ainda mais doloroso,
mas talvez ele também estremecesse quando ouvisse e matasse a
nós dois, e não estarei sozinho nos meus últimos momentos...
A porta bateu. Lembro-me que um papel prendeu debaixo da
porta, arranhando o chão enquanto ela se fechava. Depois, fomos
cobertos por um silêncio vazio e singular, como uma Campânula.
Se ele houvesse dito uma palavra, não importa qual, a palavra
mais insignificante, eu teria despachado tudo de uma vez. Mas ele
ficou em silêncio.
Eu estava tão tenso que meus ouvidos começaram a zumbir,
eu disse (sem olhar para ele):
– Acredito que sempre a odiei desde o início. Lutei... E, aliás,
não, não, não acredite em mim: eu podia ter me salvado, mas não
quis fazê-lo, eu queria morrer, isso tinha mais valor para mim do
que todo o resto... isto é, não morrer, mas que ela... E inclusive
agora, inclusive agora, quando já sei de tudo... Você sabe que o
Benfeitor me chamou?
– Sim, eu sei.
– Mas o que Ele disse para mim... compreenda-me: isso tudo
não importa, é como se agora tivessem arrancado o chão de sob
os seus pés, e você e tudo o que está aqui na sua mesa, o papel, a
tinta... a tinta derramou e tudo está manchado...
– Prossiga, prossiga! E se apresse. Há outros esperando.
Então, resfolegando e me atrapalhando, contei tudo o que
aconteceu, tudo o que está escrito aqui. Sobre o meu eu real, meu
eu desgrenhado, aquilo que ela dissera então sobre as minhas
mãos, sim, exatamente como tudo começou, e como eu não queria
cumprir o meu dever, como me enganei, como ela me conseguiu
falsos atestados médicos e como eu enferrujava dia após dia, os
corredores lá embaixo, e fora do Muro...
Tudo isso em blocos sem sentido, em pedaços, eu estava sem
fôlego, me faltavam palavras. Os lábios torcidos e duplamente
encurvados com um sorriso davam-me as palavras necessárias –
eu assentia agradecido: sim, sim... E então (o que significa isso?)
ele começou a falar por mim, e eu apenas ouvia: “Sim, depois... Foi
exatamente assim, sim, sim!”.
Senti como se passassem éter em volta do meu pescoço, e ele
começasse a congelar, e com dificuldade perguntei:
– Mas como é que... mas você não podia saber de onde...
Seu sorriso, em silêncio, mais irônico... E então:
– Sabe, você queria esconder algo de mim, você enumerou
todos os que observou fora do Muro, mas se esqueceu de um.
Você diz que não? Não se lembra de, fugazmente, por um
segundo, você... ter me visto lá? Sim, sim: a mim.
Pausa.
E, de repente, como um raio, percebi, era vergonhosamente
claro: ele também era um deles... E todo o meu ser, todo o meu
sofrimento, tudo aquilo que, esgotado, com minhas últimas
forças, trouxe para cá como uma vitória – tudo isso era
simplesmente cômico, como a antiga anedota de Abraão e Isaac.
Abraão, suando frio da cabeça aos pés, brandia a faca sobre seu
filho, sobre si mesmo, e de repente uma voz vinda de cima: “Não
vale a pena! Eu estava brincando...”.
Sem tirar os olhos do seu sorrisinho cada vez mais irônico,
apoiei minhas mãos na extremidade da mesa e, lentamente,
lentamente, afastei a cadeira e, em seguida, ao mesmo tempo,
abraçando-me por inteiro, saí correndo, passando por gritos,
degraus, bocas.
Não me lembro de como fui parar lá embaixo, num dos
banheiros públicos da estação subterrânea. Lá em cima tudo
estava sendo destruído, a mais grandiosa e racional civilização da
história estava em colapso, e aqui, por alguma ironia, tudo
permaneceu como antes, maravilhoso. E pensar que tudo estava
condenado, seria tomado pelo verde, e sobre tudo isso haveria
apenas “mitos”...
Comecei a gemer alto. E no mesmo instante senti alguém
acariciar carinhosamente o meu ombro.
Era meu vizinho, sentado à minha esquerda. Sua testa era uma
enorme parábola careca, nela havia linhas amarelas e rugas
ilegíveis. E essas linhas eram sobre mim.
– Eu compreendo, compreendo totalmente – disse ele. – Mas,
apesar disso, se acalme: não precisa ficar assim. Tudo se
restabelecerá, inevitavelmente se restabelecerá. A única coisa
importante é que todos saibam sobre a minha descoberta. Você é
o primeiro a quem conto: calculei que não existe infinito!
Olhei para ele de forma selvagem.
– Sim, sim, estou lhe dizendo: não existe infinito. Se o mundo é
infinito, então a densidade média da matéria nele deve ser igual a
zero. E já que ela não é zero, como sabemos, então, em
consequência, o Universo é finito, é uma forma esférica, e o
quadrado universal do raio, y2, é igual à densidade média
multiplicada por... Só preciso calcular o coeficiente numérico, e
então... Você compreende: tudo é finito, tudo é simples, tudo é
calculável; então venceremos filosoficamente, compreende? Mas
você, meu caro, está atrapalhando a finalização do meu cálculo,
fica gritando...
Não sei o que me deixou mais impressionado: sua descoberta
ou sua firmeza naquele momento apocalíptico: levava nas mãos
(percebi apenas agora) um caderno de notas e uma tabela de
algoritmos. E compreendi: mesmo que tudo pereça, meu dever
(para com vocês, meus queridos leitores desconhecidos) é deixar
minhas notas concluídas.
Pedi a ele papel e aqui escrevo estas últimas linhas...
Queria colocar um ponto final, assim como os antigos
colocavam uma cruz sobre as sepulturas onde lançavam os
mortos, mas subitamente o lápis estremeceu e caiu dos meus
dedos...
– Escute – importunei o vizinho. – Sim, escute, estou falando
com você! Você precisa, você precisa me responder: onde é que
acaba o seu Universo? O que há depois?
Ele não teve tempo de me responder: da superfície, passos
pelos degraus...
40ª ANOTAÇÃO
Resumo:
Os fatos. A Campânula.
Tenho certeza.
Dia. Claro. O barômetro em 760.
É possível que eu, D-503, tenha escrito estas 316 páginas? Será
que algum dia eu senti, ou imaginei ter sentido isso?
A letra é minha. E esta agora também é a mesma letra, mas,
felizmente, é apenas a letra. Nenhum delírio, nem metáforas
absurdas, nem sentimentos: somente fatos. Porque estou
saudável, totalmente, absolutamente saudável. Sorrio e não
posso deixar de sorrir: removeram alguma lasca da minha cabeça,
ela está leve, vazia. Para ser mais preciso: não está vazia, mas não
há nada estranho que me impeça de sorrir (o sorriso é o estado
normal de uma pessoa normal).
Os fatos são estes: naquela noite, meu vizinho, que tinha
descoberto a finitude do Universo, eu e todos os outros que
estavam conosco fomos detidos e levados para o auditório mais
próximo (o número do auditório por alguma razão é familiar: 112).
Lá, fomos presos às mesas e submetidos à Grande Operação.
No dia seguinte, eu, D-503, apresentei-me ao Benfeitor e
contei-lhe tudo o que sabia a respeito dos inimigos da felicidade.
Por que isso me pareceu tão difícil antes? É incompreensível. A
única explicação: minha antiga doença (a alma).
Naquela mesma noite, sentei-me (pela primeira vez) à mesma
mesa com Ele, o Benfeitor, na famosa Câmara de Gás. Eles
trouxeram aquela mulher. Na minha presença, ela devia dar o seu
testemunho. Ela permaneceu teimosamente em silêncio e
sorrindo. Reparei nos seus dentes pontiagudos e muito brancos, e
como eram bonitos.
Em seguida, colocaram-na sob a Campânula. O rosto dela ficou
muito pálido, e, como seus olhos eram escuros e grandes, foi
muito bonito. Quando começaram a extrair o ar da Campânula,
ela pôs a cabeça para trás, semicerrou os olhos, os lábios
comprimidos, aquilo me lembrava de alguma coisa. Ela olhou para
mim, aferrou-se aos braços da cadeira, olhou até que os olhos se
fecharam completamente. Então a retiraram e, com o auxílio de
eletrodos, rapidamente a reanimaram e de novo a colocaram
dentro da Campânula. Repetiram isso por três vezes, e ainda
assim ela não disse nenhuma palavra. Os outros que foram
trazidos junto com essa mulher mostraram-se mais honestos:
muitos deles já começaram a falar na primeira vez. Amanhã todos
subirão os degraus da Máquina do Benfeitor.
Não é possível adiar porque no oeste ainda impera o caos, a
gritaria, os cadáveres, as feras e, infelizmente, uma quantidade
significativa de números que traíram a razão.
Mas, no cruzamento da Avenida 40, conseguimos construir
um Muro alto, temporário e elétrico. E tenho esperança de que
venceremos. Mais: tenho certeza de que venceremos. Porque a
razão deve vencer.
1920
Resenha de Nós,
de Ievguêni Ivánovitch Zamiátin
George Orwell
Texto originalmente publicado na revista Tribune, GB, Londres, em 4 de janeiro de 1946.
Alguns anos depois de ouvir falar da existência de Nós, de
Zamiátin, finalmente um exemplar chegou às minhas mãos – uma
das curiosidades literárias da época atual na qual livros são
queimados. Pesquisando em Twenty-Five Years of Soviet Russian
Literature [Vinte e cinco anos de literatura russa e soviética], de
Gleb Struve, descobri que sua história foi a seguinte:
Zamiátin, que veio a falecer em Paris em 1937, foi um
romancista e crítico russo que publicou alguns livros antes e
depois da Revolução [Russa de 1917]. Nós foi escrito por volta de
1923 e, embora não trate da Rússia nem tenha relação direta com
a política contemporânea – é uma fantasia sobre o século 26 –,
teve sua publicação recusada por ser ideologicamente
indesejável. Uma cópia do manuscrito conseguiu sair do país, e o
livro apareceu em traduções para o inglês, o francês e o tcheco,
mas nunca em russo. A tradução inglesa foi publicada nos
Estados Unidos, e eu nunca fui capaz de obter um exemplar. Mas
exemplares da tradução francesa (cujo título é Nous Autres)
existem, e finalmente consegui tomar um emprestado. Até agora,
posso avaliar que não é um livro excepcional, mas certamente é
incomum, e é espantoso que nenhuma editora inglesa tenha sido
ousada o suficiente para reeditá-lo.
A primeira coisa que qualquer um notaria a respeito de Nós é o
fato – nunca mencionado, creio – de que Admirável mundo novo,
de Aldous Huxley, deve, em parte, originar-se dele. Ambos os
livros tratam da rebelião do espírito humano primitivo contra um
mundo indolor, mecanizado e racionalizado, e ambas as histórias
supostamente se passam daqui a seiscentos anos. A atmosfera
dos dois livros é semelhante, e, em linhas gerais, é o mesmo tipo
de sociedade que está sendo descrito, embora o livro de Huxley
demonstre menos consciência política e seja mais influenciado
pelas recentes teorias biológicas e psicológicas.
No século 26, na visão de Zamiátin, os habitantes de Utopia
perderam a individualidade tão completamente que somente são
conhecidos por números. Vivem em casas de vidro (isso foi
escrito antes da invenção da televisão), o que permite que a
polícia política, conhecida como os “Guardiões”, possa
supervisioná-los mais facilmente. Todos vestem uniformes
idênticos, e costuma-se fazer referência a um ser humano tanto
como “um número” quanto “um unif ” (de “uniforme”). Se
alimentam de comida sintética, e a recreação habitual é marchar
em filas de quatro pessoas enquanto o hino do Estado Único toca
em alto-falantes. A intervalos estabelecidos, é permitido, durante
uma hora (conhecida como “Hora pessoal”), baixar as cortinas em
torno dos apartamentos de vidro. Evidentemente não há
casamento, embora a vida sexual não pareça ser totalmente
promíscua. Para o ato sexual, todos têm um tipo de talão de
bilhetes cor-de-rosa, e o(a) parceiro( a) com quem se passa uma
dessas horas reservadas ao sexo assina o canhoto. O Estado
Único é governado por um personagem conhecido como
Benfeitor, que anualmente é reeleito pela população; a eleição
sempre é unânime. O princípio condutor do Estado é que
felicidade e liberdade são incompatíveis. No Jardim do Éden, o
homem era feliz, mas em sua loucura exigiu liberdade e foi
expulso para o ermo. Agora o Estado Único restaurou sua
felicidade ao retirar-lhe a liberdade.
Até aqui a semelhança com Admirável mundo novo é
impressionante. No entanto, embora o livro de Zamiátin seja
menos coeso – a trama é um tanto frouxa e episódica, e complexa
demais para ser resumida – tem um ponto político que falta no
outro. No livro de Huxley, o problema da “natureza humana” é, em
certo sentido, resolvido, pois supõe que, por meio de um
tratamento pré-natal, medicamentos e sugestão hipnótica, o
organismo humano possa se especializar em qualquer modo
desejado. Um excepcional cientista é produzido tão facilmente
quanto um Ípsilon semi-aleijão, e, em ambos os casos, lida-se
facilmente com os vestígios dos instintos primitivos, como o
sentimento maternal ou o desejo de liberdade. Ao mesmo tempo,
não é explicada a razão pela qual a sociedade deveria ser
estratificada do modo elaborado como é descrita. O objetivo não
é a exploração econômica; no entanto, o desejo de perseguir e
dominar também não parece ser uma razão. Não há fome de
poder, sadismo, nem dureza de tipo algum. Aqueles no topo não
têm motivos fortes para ficar no topo, e embora todos estejam
vagamente felizes, a vida se tornou tão sem sentido que é difícil
acreditar que tal sociedade poderia sobreviver.
O livro de Zamiátin, em geral, é mais relevante para a nossa
própria situação. Apesar da educação e vigilância dos Guardiões,
muitos dos antigos instintos humanos ainda estão ali. O narrador
da história, D-503, embora seja um engenheiro talentoso, é uma
pobre criatura convencional, um tipo de Billy Brown of London
Town utópico. Ele é constantemente aterrorizado por impulsos
atávicos que o dominam. Ele se apaixona (cometendo, sem
dúvida, um crime) por uma certa I-330, membro de um
movimento de resistência clandestino que, durante algum tempo,
é bem-sucedida em conduzi-lo à rebelião. Quando a rebelião
irrompe, parece que os inimigos do Benfeitor são, de fato, muito
numerosos, e que, além de tramar a derrubada do Estado, eles se
entregam, no momento que as cortinas estão abaixadas, a vícios
tais como fumar cigarros e beber. D-503 acaba por fim se
salvando das consequências de sua própria loucura. As
autoridades anunciam a descoberta da causa das recentes
desordens: alguns seres humanos sofrem de uma doença
chamada imaginação. Agora, o centro nervoso responsável pela
imaginação foi localizado, e a doença pode ser curada por meio de
um tratamento de raio-X. D-503 é operado e então se torna fácil
fazer o que sabia ser sua obrigação desde o início – a saber,
denunciar seus cúmplices à polícia. Com total equanimidade, ele
observa I-330 ser torturada com gás comprimido sob uma
redoma:
"Ela olhou para mim, aferrou-se aos braços da cadeira, olhou até que os olhos
se fecharam completamente. Então a retiraram e, com o auxílio de eletrodos,
rapidamente a reanimaram e de novo a colocaram dentro da Campânula.
Repetiram isso por três vezes, e ainda assim ela não disse nenhuma palavra. Os
outros que foram trazidos junto com essa mulher mostraram-se mais honestos:
muitos deles já começaram a falar na primeira vez. Amanhã todos subirão os
degraus da Máquina do Benfeitor."
1946
* O lápis azul se refere normalmente à cor utilizada por editores para anotar originais.
Neste caso, Orwell provavelmente se refere à censura [N. do E.].
** Aqui se traduziu o trecho editado por Orwell. O trecho integral se encontra na 30ª
anotação desta edição. [N. de E.]
Carta a Stálin
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COPIDESQUE:
Lucas Simone
REVISÃO:
Júlia Nejelschi
Giselle Moura
Pausa Dramática
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Desenho Editorial
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