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O Santuário das Duas Luas estava às suas costas, sombrio e silencioso. Era noite. Até o
Terraço Dourado da cidade montanhosa, em geral fervilhante de vida, estava quieto. Dezco
estava grato por isso. Ele e sua tribo, os Grelmadruga, tinham a grande plataforma de pedra
só para eles. Não era hora para distrações.
Dezco afastou as preocupações e, do terraço, olhou para as colinas iluminadas pela lua e
os bosques e sebes que recobriam o Vale das Flores Eternas. Mesmo à noite o lugar era
deslumbrante.
"Um crisol de mudança" era como Leza chamava o lugar. "Um vale repleto de flores
douradas, cheio da esperança da paz."
Durante meses, ela sonhara com o vale. Dezco e outros taurens também tinham tido visões,
mas as de Leza eram mais fortes. Sem ela, a tribo jamais teria conseguido encontrar
Pandária após uma árdua jornada, nem, partindo dali, chegar ao vale oculto no coração do
continente.
A busca tinha sido brutal. Tempestades violentas destruíram três navios repletos de
membros da tribo de Dezco. Amigos. Família. Quando a última nau remanescente aportou
na quente selva costeira de Pandária, houve mais mortes. O fato de Leza estar grávida
fazia com que Dezco se preocupasse cada vez mais com a situação difícil. Então sua
esposa contraiu uma febre que, apesar dos esforços da tribo, parecia incurável. Em meio a
tudo isso, Leza sempre se mantinha resoluta, o farol de esperança que todos os Andarilhos
do Sol almejavam se tornar.
— Ainda é noite — dizia ela —, mas logo o Sol vai nascer. Eu sinto, está perto.
Quando ela entrou em trabalho de parto, o esforço foi demais para seu corpo adoecido.
Morreu semanas antes de a tribo encontrar o vale, ainda acreditando que as vicissitudes da
jornada estavam quase acabando. Dezco se recordava daquele dia sombrio com clareza
dolorosa: o último lamento atormentado da esposa, a febre minando a vida de suas veias,
suas tentativas fracassadas de salvá-la da morte e, mais tarde, a fumaça e o fogo que
subiam da pira funerária...
Luz baça afastava as trevas, pintando o vale em tons de ouro e violeta. Era o momento que
antecedia o amanhecer, a hora fugaz em que An'she, o Sol, ainda se escondia, mas em que
de alguma forma um vislumbre de sua luz conseguia se derramar pelo mundo.
— Traga as crianças. — Dezco fez um gesto, mantendo os olhos no leste.
Nala, a prima de Leza, se aproximou em silêncio, com duas crianças taurenas nos braços.
Penas e contas cerimoniais pendiam dos seus chifrinhos. O primeiro se chamava Chifre
Rubro, e o segundo, Casco das Nuvens. Dezco entregou o cacho de cabelo da esposa a
Nala e então acolheu os últimos presentes de Leza nos braços.
— Comecem! — comandou ele. Sem hesitar, doze taurens sentados suas às costas
começaram a bater com as patas em pequenos tambores de couro. O ritmo era acelerado
como o coração de um guerreiro na véspera da batalha.
Enquanto Nala trançava o cacho de Leza na cabeleira de Dezco, ele se debruçou sobre os
filhos. — Observem bem, pequeninos — sussurrou. Eles eram jovens demais para entender
o que estava acontecendo, mas parecia certo lhes dizer. Seus filhos bocejaram e olharam
para a frente com olhos semiabertos.
— Toda manhã, An'she sangra — continuou Dezco. — Ele sacrifica parte de sua luz para
nos avisar que a aurora se aproxima. Mas ele não faz isso sozinho. Os yeena'e o ajudam.
Sua mãe o ajuda.
No dia anterior, as luas gêmeas apareceram durante o dia pela primeira vez desde a morte
de Leza, sinalizando que seu espírito finalmente se juntara aos yeena'e, "os que anunciam
a aurora". Agora estava em boa companhia, junto a todos os veneráveis ancestrais que
morreram no processo de salvar vidas ou, como no caso de Leza, no de criar novas vidas.
As batidas ficaram mais lentas, e An'she surgiu sobre as montanhas inexpugnáveis do vale.
A luz do sol faiscou pelos campos de grama cor de mel. Folhas douradas se agitavam na
brisa em altas árvores de pau-marfim. Dezco já tinha visto o nascer do sol naquele lugar
muitas vezes, mas ainda se surpreendia com a intensidade do brilho da luz de An'she. Era
como se o olhar do astro se fixasse apenas no vale, e todas as outras terras apenas se
banhassem no reflexo difuso de sua luz.
A beleza do lugar era cruel, de certa forma. Era para as coisas terem ficado mais fáceis
desde que Dezco e sua tribo alcançaram o vale, mas não tinham. A batalha continuava. A
politicagem da Horda se tornara um aborrecimento diário. Dezenas de refugiados de terras
devastadas pela guerra a norte dali vinham em grandes grupos até o santuário, dia e noite,
em busca de comida, abrigo e descanso das tribulações.
E então, alguns dias antes, seus filhos adoeceram, chorando e recusando-se a comer.
Dezco e Nala tentaram decifrar qual seria a doença, sem sucesso. Pela graça de An'she,
Chifre Rubro e Casco das Nuvens pareciam normais aquela manhã. "Talvez o ritual os
tenha curado de alguma forma", imaginou Dezco.
Dezco olhou por sobre a amurada. Uma aglomeração de vultos avançava por uma das
trilhas de pedra e barro bastante gastas que levavam até o santuário. À luz da manhã, suas
sombras se alongavam pelo chão como braços estendidos.
— O Lótus Dourado — disse Dezco, reconhecendo um membro do grupo que era diferente
dos demais. O gingado de Mokimo, o Forte, era inconfundível, mesmo de longe. Como
todos da raça hozen, ele tinha longos braços musculosos que quase arrastavam no chão
quando caminhava. Dezco não conseguiu identificar os outros membros, mas se
surpreendeu ao ver que tantos guardiões ancestrais do vale vinham para o santuário.
Normalmente ficavam no Pagode Dourado, seu local de encontro, aninhado bem no centro
da região.
— Você acha que isso tem algo a ver com os boatos? — Havia preocupação na voz de
Nala.
— Não acredite em boatos — respondeu Dezco. Ele também os ouvira: histórias sobre os
guardiões do vale se reunindo em segredo e visitando certos pontos do continente para
algum propósito desconhecido. Como mediador entre o Lótus e o povo de Dezco, Mokimo
poderia explicar o que estava acontecendo, mas tinha se ausentado do santuário fazia mais
de uma semana. De qualquer forma, Dezco não via motivo para se preocupar. O Lótus era
uma ordem misteriosa, sem dúvida, mas também era uma aliada confiável.
— Eu sei. — Nala aquiesceu lentamente. — Mas estou mais preocupada com as crianças.
Não temos certeza se a doença passou. Visitantes podem piorá-la. — Ela afagou a
bochecha de Chifre Rubro. Desde o falecimento de Leza, sua prima protegia ferozmente as
crianças. Dezco simpatizava com ela. Tão longe de casa, as crianças eram toda a família
que Nala tinha.
— Leve-as para dentro enquanto o Lótus estiver aqui — disse Dezco, e depois acrescentou:
— Depois da cerimônia.
Então ele se voltou para o sol nascente. Vozes altas e passos pesados começaram a ecoar
pelo terraço; os madrugadores começavam a sair dos salões e catacumbas do santuário.
Mercadores bocejavam ao montar suas barracas frágeis. Refugiados se reuniam e
compartilhavam comida. Orcs, elfos sangrentos e outros membros da Horda que tinham
seguido Dezco até o vale se misturavam na plataforma.
Por um instante, Dezco sentiu-se em paz. Talvez aquele fosse o dia em que
as dificuldades finalmente acabariam, pensou, com otimismo cauteloso.
Talvez a aurora de que Leza sempre falava tivesse chegado finalmente.
***
Eram mogus, uma raça bruta que já governara o vale, usando seu poder para
erguer um império de ódio e escravização. Dezco lutara com alguns deles
antes. Eram oponentes poderosos e implacáveis, sem honra alguma.
Felizmente, seu império se esfacelara havia muito.
— Ah, sua esposa, sim. — Zhi acenou gravemente com a cabeça. — Todos
os taurens honram os mortos desse mesmo jeito?
— Do jeito que Mokimo fala, parece até que são os filhotes dele — disse Zhi,
e riu. — Mas falando nas crianças... elas estão bem de saúde?
Zhi fez um gesto para os membros do Lótus que aguardavam. Eles entraram
em ação. Alguns seguiram na direção de um grupo de refugiados perto da
entrada do santuário. Os demais destravaram um grande baú de madeira que
tinham trazido.
— Se houver algo que eu possa fazer para ajudar, basta dizer — disse
Dezco, sentindo a curiosidade aumentar.
— Bem que eu queria que houvesse. Mas a verdade é que viemos aqui a
mando dos celestiais.
Mokimo foi até Dezco enquanto Zhi começava a falar com os refugiados.
— Três dias atrás... — disse Dezco, de si para si. Ele tentou lembrar quando
fora que Chifre Rubro e Casco das Nuvens tinham adoecido. Parecia ter sido
uns três dias antes. Ou mais tempo? Não sabia ao certo.
— Eu não sei. Ninguém sabe. Acho que a criança talvez fique... perturbada.
Quase como uma doença. O propósito é saber qual tem o potencial. Soar o
gongo uma segunda vez supostamente alivia o sofrimento do filhote afetado
e, assim, atesta que é o escolhido. A isso se seguiria algum sinal dos
celestiais.
Dezco passou pelo celestial e pôs a mão no ombro de Nala para acalmá-la.
Chifre Rubro e Casco das Nuvens observavam dos berços. Estavam rindo
pela primeira vez em dias, esticando os bracinhos na direção de Chi-Ji.
— Deve haver algum engano. — Dezco teve que fazer um esforço supremo
para controlar o tom da voz.
— Que você proteja aquilo pelo qual viajou de tão longe para proteger —
respondeu a Garça Vermelha. — Que honre o sonho de sua esposa. Que se
sacrifique pelo vale, como ela se sacrificou. É bom que você tenha dois filhos.
Um ajudará o vale; o outro ficará com você. Só resta escolher. — O avatar de
Chi-Ji começou a esvanecer-se no ar feito fumaça.
Alguém bateu forte nas costas de Dezco. Ele se voltou para se defender e viu
Mokimo com um largo sorriso no rosto. — Que dia! — gritou o hozen, acima
do barulho da multidão. — Que dia glorioso hoje se revelou!
***
Escolha...
"De nada servem minhas armas agora" , pensou ele, enquanto observava o
terraço. Àquela hora da noite, a plataforma estava quase vazia. Alguns orcs
se agachavam sob a árvore buzao, afiando as lâminas em uma pedra à luz
de um lampião. Perto da entrada do santuário, elfos sangrentos de longas
vestes esvoaçantes conversavam animadamente sobre as propriedades
mágicas do vale. Normalmente, Dezco os teria cumprimentado, mas, daquela
vez, passou por eles sem lhes dirigir a palavra.
— Não seja tolo — respondeu alguém. — O filhote não seria mais um de nós.
A Horda não significaria mais nada para a criança. Veja Mokimo. Ele não age
como os hozen que conhecemos. O Lótus tomou sua cultura. Sua identidade.
Dezco se afastou para não ouvir a conversa. Ele já ouvira discussões como
aquelas centenas de vezes. O dia passara como um sonho. Não: um
pesadelo. Só se lembrava de trechos: o Lótus Dourado lhe dando os
parabéns e desaparecendo tão rapidamente quanto surgira, reuniões
intermináveis com outros membros da Horda para discutir o acontecido, o
afluxo interminável de refugiados que queriam ver seus filhos, como se
fossem objetos sagrados.
Ele estava aliviado por estar finalmente sozinho. Tinha chegado ao limite da
paciência e dispensara seus conselheiros — e até Nala — havia muitas
horas. Dezco suspirou, frustrado: o dia começara tão bem, apenas para
terminar em meio ao caos.
Ele sempre achara estranho que o Lótus Dourado jamais tivesse derrubado
as estátuas e prédios pertencentes aos antigos senhores do vale. Deixá-los
de pé era como dar um motivo para os mogus retornarem. Certa ocasião,
mencionara aquilo a Mokimo, que replicara: — Os mogus acreditavam que o
vale servia a eles. O Lótus acredita que nós servimos ao vale. Deixamos as
estátuas como recordações de sua arrogância e vaidade.
— Mas, quando falamos para eles da Garça Vermelha e dos seus filhos...
como eles mudaram! Num minuto, tristeza; no outro, alegria. Num minuto,
desespero; no outro, esperança! — Mokimo pulava animado, curvando as
perninhas atarracadas.
— Mokimo, você sabe que eu quero ajudar vocês. Mas eu... — começou a
dizer, mas parou ao ver a expressão de alegria no rosto do hozen. Ele não
seria capaz de destruir o sonho de Mokimo. Não tinha nem certeza de que o
protetor entenderia. O Lótus parecia pensar que não importava se Dezco
decidiria ou não. Aquilo era o esperado.
— Não precisa falar disso agora — disse Mokimo. — Eu nem deveria estar
aqui. Zhi disse para eu não falar com você, para deixar você pensar e
escolher com calma. Eu só queria entregar isso. Queria agradecer. — O
hozen se afastou da balaustrada. — É melhor eu ir. Devem estar me
procurando no pagode.
— Leza… — sussurrou Dezco, desejando que ela estivesse ao seu lado para
ajudá-lo, imaginando o que ela faria em seu lugar. Súbito, ele se lembrou de
algo que sua esposa disse antes de morrer. Meu amor... o que quer que
aconteça... você tem que proteger... nossos filhos… Ela não sabia que daria à
luz gêmeos. Para Dezco, aquilo tornava seu último desejo ainda mais
premente.
— Nala! — gritou Dezco, virando a cabeça. Imaginava que ela estava ali por
perto, nas sombras. Pedira que ela não o acompanhasse, mas a conhecia
bem o suficiente para saber que, naquele ponto, não o obedeceria.
***
Dezco se envergonhava de não avisar Mokimo, mas não havia o que fazer.
Uma fuga rápida, por mais que doesse, era a melhor opção. Tornaria mais
fácil para o Lótus seguir em frente.
O tauren avançou bastante pela manhã. Ele ficou longe das estradas
principais, seguindo pelos sopés das montanhas ao norte. Estimava que
antes do anoitecer chegaria ao Portão dos Celestiais Majestosos, que
demarcava a saída do vale.
— Não é tão ruim assim — grunhiu Dezco. Ele tomou um gole da mistura. A
bebida espessa, insuportavelmente amarga, o fez tossir de forma
incontrolável. O choro de Chifre Rubro e Casco das Nuvens logo se
transformou em gargalhada.
Ele viu mais à frente o Portão dos Celestiais Majestosos. Havia incêndios por
toda a parte. Um exército de Shao-Tien de pele azul-escura enxameava à
entrada do vale. Aglomerados de formas vestindo armaduras leves — o Lótus
Dourado — avançavam contra os mogus invasores. Tiros de canhão
estouravam feito trovões pelo vale. Um grupo inteiro de defensores do Lótus
desapareceu em uma torrente de fogo e sangue. O resto dos guerreiros da
ordem bateu em retirada rapidamente com os mogus em seus calcanhares,
eliminando os retardatários.
Ele só sabia que não poderia voltar ao santuário. Já não fazia parte daquele
lugar, não agora, depois de ter feito sua escolha. Aferre-se à escolha que fez.
Fique firme, pensou.
Um dos fugitivos esperava por ele na base da colina. Era um velho pandaren
com uma barba longa e rala que descia do seu queixo. — Naquela direção só
há morte — disse ele.
— Bruma Baixa. Muitos de nós fomos separados das famílias. Parece que
alguns podem estar lá. Estou procurando meus netos. Para onde o vento leva
você?
Dezco meditou sobre o pouco que sabia a respeito da Vila da Bruma Baixa. O
pequeno campo de refugiados ficava perto do lado sudoeste do vale. De lá,
Dezco poderia saber mais sobre o outro portão. E se aquele lado também
estivesse bloqueado, pelo menos a jornada lhe permitiria passar mais tempo
afastado do santuário. Talvez até tempo suficiente para o Lótus rechaçar os
Shao-Tien e retomar o Portão dos Celestiais Majestosos.
***
Dezco abriu caminho entre os outros viajantes para sair do final da coluna,
lutando contra a fadiga. Mal dormira durante a jornada. Os refugiados tinham
bons corações, mas careciam de treinamento militar. O tauren não confiava
neles o suficiente para deixar seus filhos desprotegidos, nem que fosse
apenas por algumas horas à noite.
— Alguém sabe quem pode ser? — perguntou aos pandarens ali reunidos.
— Mais refugiados? — gritou para o batedor. Além dos mogus, havia outro
inimigo que o preocupava: a Aliança. Os rivais da Horda tinham estabelecido
uma embaixada em uma fortaleza semelhante ao Santuário das Duas Luas
naquele canto do vale. Dezco formara um vínculo com um dos líderes da
Aliança, o príncipe Anduin Wrynn. Assim como os taurens, o jovem humano
não desejava o conflito. Ele viera ao vale atraído pela promessa de
esperança e paz. Ainda assim, o tauren não sabia qual era o peso real
daquela amizade. Havia tantos fanáticos beligerantes na Aliança quanto na
Horda.
***
Uma grande fogueira crepitava atrás do hozen. Vapor se evolava das panelas
de ferro penduradas sobre as chamas. Perto dali, Weng, o Misericordioso,
pegava arroz dos caldeirões e o despejava em tigelas lisas de madeira
entalhadas com símbolos dos quatro celestiais. Um pandaren que Dezco não
conhecia desembalava copos de capangas de couro. Ele era enorme, a ponto
de fazer o tauren parecer minúsculo, e vestia enormes placas de armadura
negra. À exceção do coque e da barba castanhos, seu pelo era todo branco.
Os refugiados passaram por Dezco e precipitaram-se em direção à fogueira,
famintos e exaustos. O estômago do tauren também roncou quando o vento
levou o cheiro de comida quente até ele, mas Dezco não se moveu. A
presença do Lótus o irritava. Àquela altura, com certeza já estavam a par de
sua escolha. O mais honrado teria sido deixá-lo seguir caminho e encarar as
consequências de sua decisão.
— Dezco! — Mokimo acenou para ele. — Venha! Você deve estar faminto!
Dezco abanou as orelhas e bufou, irritado com o tom casual. Do jeito que
Mokimo falava, até parecia que encontrar o tauren no meio do vale não era
surpresa nenhuma.
Dezco não sabia como reagir. Ele esperara alguma resistência. — Outro dia
mesmo você falou da importância dos meus filhos para o futuro da sua ordem
— disse o tauren.
— Sim, é... foi por isso. — Dezco baixou a cabeça. — Se Chi-Ji tivesse
mandado que eu avançasse sobre as linhas mogus sozinho, eu teria honrado
seu pedido sem pensar duas vezes. Teria feito qualquer coisa. Qualquer
coisa menos isso... — Ele olhou para Mokimo. — Não foi para isso que eu
vim aqui.
— Não foi — disse Dezco, sentindo a raiva aumentar. Ele percebeu o que
estava acontecendo: Mokimo estava tentando convencê-lo. Zhi
provavelmente enviara o hozen e os outros para dissuadi-lo de partir.
"Quando chegou o dia, nós viajamos até minha aldeia nas colinas enevoadas
da Floresta de Jade. Eu me sentia assustado e empolgado ao mesmo tempo.
Já fazia anos que não via minha família. — Mokimo desamarrou uma
pequena tira azul-esverdeada do rabo de cavalo e a mostrou a Dezco. Não
era nada de mais: uma tira de couro simples, envelhecida, gasta pelo tempo.
— Foi da minha mãe. Nós a encontramos nas ruínas da velha cabana da
família. A aldeia inteira tinha sido destruída. Todos tinham morrido. As tribos
hozen frequentemente lutam entre si, sabe.
— Por quê? Se eu não tivesse sido escolhido, não estaria vivo aqui hoje. Nós
não podemos prever aonde a vida nos levará. É melhor não lutar contra o que
nos foge ao controle. O momento em que você abandona as expectativas é o
momento da verdadeira liberdade. Tudo o que podemos fazer é servir ao vale
sabendo que, aonde quer que o vento nos leve, teremos vivido por algo maior
do que nós mesmos. Para nós, é o que basta.
***
Ele se apoiou nos cotovelos, zangado por ter caído no sono. Planejara
continuar a vigília noite adentro, mas a longa jornada finalmente cobrara seu
preço.
Mokimo levou o dedo aos lábios. — Rook está vendo alguma coisa —
sussurrou.
Dezco ficou de costas para o fogo a fim de que seus olhos se acostumassem
à escuridão. Lentamente, os detalhes foram ficando mais nítidos: uma
encosta íngreme, o lado da montanha por onde eles planejavam passar.
Rochedos de vários tamanhos pontilhavam a encosta. Mas nada parecia fora
do lugar. Era só uma...
Houve um movimento rápido na encosta. Foi só por um instante, mas Dezco
viu.
Dezco mantinha os olhos na montanha, sem saber se o que vira fora real ou
um simples fruto da sua imaginação. Então houve movimento outra vez. E
não parou.
— O caminho até Bruma Baixa está livre! — gritou Weng. — Vão para...
Algo rasgou. Dezco sentiu um peso sair dos seus ombros. O quílen rompera
a corda.
O tauren agarrou a cesta de Casco das Nuvens no ar. Ele girou a maça
erguida, mas o quílen já fugia na direção da passagem.
O monstro arrastava a outra cesta pela corda. Chifre Rubro, lá dentro, estava
gritando.
— Não vou abandonar Chifre Rubro! — Dezco soltou o braço das mãos de
Mokimo.
Os mogus não disseram nada. Dezco não esperava que o fizessem. Não se
podia arrazoar com aquela raça. Suas ações desafiavam a lógica pela qual
viviam as raças honradas. Ficaram apenas observando Dezco, fazendo
caretas de desdém. O Shao-Tien líder sacudiu Chifre Rubro no ar como se
em sinal para o tauren se aproximar.
Meu amor... o que quer que aconteça... você deve proteger... nosso filho...
Mais à frente, o líder dos mogus cambaleou para trás, protegendo os olhos da
luz. Ele sacudiu a cabeça e atirou a tocha ao chão. O brutamontes puxou
uma lâmina curta do kilt. Longas gavinhas de energia negra e rubra coleavam
da arma, deslizando no aço.
Dezco caiu de joelhos, cegado pelo sangue que escorria da testa para os
olhos.
Ele procurou uma arma freneticamente. Qualquer coisa. Sua mão livre
encontrou o quílen morto.
— Chifre Rubro! — rugiu ele, ao bater com uma só mão a perna do quílen no
peito do mogu de armadura. Houve um estalo alto. O brutamontes foi
arremessado para trás e caiu imóvel no chão.
Sombras bruxuleavam adiante. Dezco cambaleou na direção delas. Ele sentia
a cesta de Casco das Nuvens balançando sob o braço esquerdo, a salvo. O
tauren limpou o sangue dos olhos até sua visão voltar. Mokimo estava
ajoelhado. O líder dos mogus jazia perto dali, com a própria lâmina enfiada na
cabeça de pedra.
— Aqui. — A voz de Mokimo era áspera e úmida. Sangue fluía de uma ferida
profunda em seu pescoço. Ele estendeu os braços, segurando Chifre Rubro.
Os olhos do filhote estavam fechados. Estava coberto de sangue, e um pouco
era dele próprio.
Antes de estender as mãos para pegá-lo, Dezco pediu a An'she que curasse
as feridas do filho. Luz amarela envolveu a criança, mas, quando esmaeceu,
ela não abriu os olhos.
— A lâmina do mogu foi mais rápida — disse Mokimo, com a voz rouca. — A
arma estava envenenada. É forte demais para você curar as feridas deles...
ou as minhas. Mas ainda resta esperança. — Mokimo pegou debilmente a
mão de Dezco e a levou até o peito de Chifre Rubro. Havia um batimento.
Suave e baixinho, mas estava lá. — O filhote ainda vive.
Dezco olhou para onde seu filho estava, seguro sob seus braços.
Toda a sua atenção estivera em Chifre Rubro. Ele nem notou quando Casco
das Nuvens morreu.
***
— Ele se foi. Como, você jamais saberá — disse Mokimo. — O que importa
agora é Chifre Rubro.
— Os mogus já usaram essas fontes para o mal, mas elas podem ser usadas
para o bem também — disse o hozen. — Cada fonte dessas representa uma
emoção. Coragem… paz… — Mokimo entrou na fonte, fazendo uma careta.
O sangue da sua ferida se espalhou pela água. — Esta é a fonte da
esperança.
— O que... o que eu faço? — perguntou o tauren. Alguns peixes, iluminados
pelas energias da fonte, fugiram enquanto ele avançava.
Dezco entregou o filho sem hesitar. Não havia mais nada que ele pudesse
fazer. Nada. Tudo o que o tauren podia fazer era observar enquanto Mokimo
cuidadosamente — amorosamente — baixava Chifre Rubro até a água, até o
nível do pescoço.
Ele ficou tocado com a cena: pelo modo como Mokimo segurava o filho como
se fosse dele, pelo quanto o hozen tinha arriscado para dar uma chance de
vida a Chifre Rubro, ainda que tênue. Em retrospecto, era claro o que havia
acontecido na batalha. Mokimo interpusera-se entre a lâmina do mogu e a
criança. Embora a arma tivesse atingido Chifre Rubro ainda assim, Dezco
sabia que seu filho estaria morto se não fosse pelo hozen.
— Venha. — Mokimo fazia esforço para mexer a mão. Ele estava quase
apagando. — Deixe... Casco das Nuvens na margem.
Dezco obedeceu com o coração acelerado. Ele deixou a água escorrer pela
cabeça do filho. Mokimo fez o mesmo. Gotas brilhantes desciam pelo focinho
de Chifre Rubro. Aquilo não pareceu afetar a criança.
— Não está acontecendo nada. — Dezco pegou mais água, mas Mokimo
agarrou sua mão.
— Não. — Dezco fechou bem os olhos. Ela sempre acreditara. Sempre fora
forte. Leza merecia estar ali. Não ele. Se ela estivesse viva, nada disso teria...
Uma onda de calor inundou Dezco e ele abriu os olhos. Uma imagem
translúcida de Chi-Ji caminhava sobre a água como se fosse chão sólido. Luz
dourada se irradiava dos pontos em que suas patas tocavam a fonte. A cada
passo, um tilintar se fazia ouvir.
Chi-Ji inclinou-se para diante, perfurando a água com o bico e tocando o peito
de Chifre Rubro. Dezco observou e esperou. O momento parecia durar para
sempre. E justo quando ele começara a temer pelo pior, a criança se mexeu.
Dezco olhou para ele, descrente. Os olhos de Chifre Rubro se abriram e
vagaram de um lado a outro até que ele viu o pai. Então estendeu os braços
na direção de Dezco, chorando.
***
Mas teve. O Lótus se importava muito com elas. Dezco gostaria de entender
por quê. Tudo o que ele sabia é que a preocupação da ordem era genuína.
De alguma forma, os pequeninos eram como membros da família para eles.
Lar. Dezco pensou no pequeno lar de sua tribo nas planícies ensolaradas de
Mulgore. Quando ele e Leza partiram, tinham se perguntado se algum dia as
veriam novamente. Ele acreditara que sim, mas a esposa, não. Ela sempre
falara da terra que aparecia em suas visões como se fosse seu lar. Um lar ao
qual sempre tivessem pertencido, mas que ainda não conheciam. Ele
finalmente entendeu o que ela queria dizer. Dezco vira o poder do vale, seu
potencial, não só para ele, mas para as vidas de tantas pessoas pelo mundo.
— Tem outra coisa — acrescentou Dezco. Ele olhou para Chifre Rubro em
seus braços. — Vocês ainda... — começou, mas era difícil demais. Ele
entregou a criança a Mokimo.
— Leve-o — pediu Dezco. — Foi para isso que viemos. Foi para isso. — Por
An'she, ele pensou, tolice minha não ter percebido antes. Eles tinham vindo
de tão longe para encontrar o vale, para vê-lo com os próprios olhos, para
morar nele. Mas ser uma parte dele... tornar-se um com ele. Aquilo era muito
mais.
— E seu filho — disse o hozen. — Sempre seu filho, mas agora, algo maior
também.