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Literatura Portuguesa III - O Neorrealismo

Em plena vigência do movimento presencista começam a surgir as primeiras reações contrárias, motivadas
pela inaceitação do seu carácter estético e pela descoberta da ficção norte-americana e brasileira dos anos de 30, de
fisionomia sócio-realista. Dentre os escritores norte-americanos que então se revelam, citam-se os seguintes: Michael
Gold, John Steinbeck, Upton Sinclair, Sinclair Lewis, John dos Passos, H. G. Carlisle, Erskine Caldwell, Ernest
Hemingway, etc. Concomitantemente, os romancistas brasileiros do Nordeste, em especial Jorge Amado, José Lins do
Rego, Graciliano Ramos, Amando Fontes, José Américo de Almeida e Raquel de Queirós chamam as consciências
para o grave problema socioeconômico das secas e para a luta de classes em torno do açúcar e do cacau. As duas
vertentes americanas de ficção se assemelham, grosso modo, nas "novidades" introduzidas: a objetividade, que não
pressupõe destruição do lirismo autêntico e realista, a simpatia comovida por tudo quanto determina altos propósitos
de reconstrução social, o desejo de fazer literatura sem heróis pré-fabricados, mas sim com os humildes, os
injustiçados, os marginais, uma tentativa de estruturação cinematográfica do romance, etc.

Contemporaneamente a esse influxo, vai-se operando um movimento contrário às doutrinas presencistas. É no


jornal O Diabo (iniciado a 2 de Junho de 1934), órgão independente e eclético ao menos no começo, que encontramos
as primeiras manifestações direta ou indiretamente antipresencistas. Com efeito, no número 10, saído a 2 de Setembro
de 1934, Ferreira de Castro escreve acerca da Literatura Social Brasileira, logo seguido por outros colaboradores que
batem na mesma tecla. Aos poucos, o jornal vai perdendo seu cunho polifónico e adquirindo uma diretriz única,
evidente a partir de 1938: a 31 de Dezembro deste ano, Joaquim Namorado estampa um artigo intitulado Do
Neorrealismo. Amando Fontes, onde possivelmente pela primeira vez se usa o rótulo por meio do qual a nova corrente
literária pouco depois viria a se tornar conhecida.

Seguem-se agora colaborações várias dentro do novo credo, dos quais merecem relevo as seguintes: Alves
Redol publica o conto "Lua de pé", a 26 de Agosto de 1939, já de carácter neorrealista, em torno de pescadores;
Seabra Novais trata da Literatura Populista, a 4 de Outubro do mesmo ano, António Ramos de Almeida publica umas
Notas para o Neorrealismo, a 21 de Setembro, 5 e 26 de Outubro e 9 de Novembro de 1940. O evidente carácter
polémico adquirido pelo periódico e a divisão extremista de campos ideológicos trazida pela II Grande Guerra
justificam-lhe o fechamento a 21 de Dezembro de 1940. Como se verá, trata-se apenas dum trocar de tocha olímpica,
pois o movimento renovador continua, embora doutro modo.

Nesse ínterim, a reação antipresencista ainda se faz presente através duma revista, Sol Nascente, que começa a
publicar-se a 30 de Janeiro de 1937, na qual seus dirigentes estampam em nota de abertura uma espécie de programa
de ação, afirmando entre outras coisas o seguinte: "Tendo como fim contribuir para o elevamento do nível cultural
português, juntando os seus esforços aos outros nobres esforços que se afirmam, Sol Nascente não esquece a frase
límpida do nosso Eça: "0 fim de toda a cultura humana consiste em compreender a Humanidade."

Decorridos pouco mais de dois anos, no editorial do número publicado a 1.° de Março de 1939, o carácter da
revista define-se limpidamente: "Sol Nascente surgiu como um quinzenário cultural de orientação um pouco esfumada
e imprecisa, limitando-se nos seus primeiros vinte números quase só à missão passiva de arquivar. Em dado momento,
porém, começou a pronunciar-se dentro da revista uma certa linha de pensamento, um certo método, que, pela simpatia
conquistada, depressa conduziu à aceitação de uma doutrina. A partir de então, a missão de Sol Nascente tornou-se
marcadamente ativa, dinâmica. Sol Nascente passou assim a ter o seu programa completo, e a sua posição
intransigente sobre múltiplos problemas. Assim é que reage contra a metafísica e contra o psicologismo, apoiando-se
na obra crítica do pensamento diamático; combate pelo neorrealismo como forma necessária da humanização da arte;
defende um Humanismo integral que seja verdadeiramente um humanismo humano."

O texto fala por si: a 15 de Abril de 1940, o Sol Nascente deixa de circular, certamente pelas mesmas razões
que determinaram o encerramento d’ O Diabo.

Em 1941, começa a publicar-se o Novo Cancioneiro, título geral de obras em que poetas jovens, alguns deles
parcialmente ligados à Presença, coletam suas composições, cada qual em volume separado. O primeiro deles é Terra,
de Fernando Namora, seguido pelas obras de Mário Dionísio (Poemas, 1941), João José Cochofel (Sol de Agosto,
1941), Joaquim Namorado (Aviso à Navegação, 1941), Álvaro Feijó (Os Poemas de..., 1941), Manuel da Fonseca
(Planície, 1941), Carlos de Oliveira (Turismo, 1942), Sidônio Muralha (Passagem de Nível, 1942), Francisco José
Tenreiro (Ilha de Nome Santo, 1942), Políbio Gomes dos Santos (A voz que escuta, 1944).

Dentro do espírito realista, ao Novo Cancioneiro seguiu-se a colecção Galo, dirigida por Carlos de Oliveira e
Joaquim Namorado, e onde se publicaram Poesia I (1948) e Poesia II (1950), de José Gomes Ferreira, Esperança
Desesperada (1948), de Armindo Rodrigues, e Post-Scriptum de um Combatente (1949), de Afonso Duarte.

No exame das manifestações precursoras do Neo-Realismo, há que levar em conta o facto de Ferreira de
Castro vir fazendo desde 1928 uma ficção bastante parecida com aquela que os neo-realistas objectivam criar.
Entretanto, a obra que se considera introdutora da nova tendência é Gaibéus, de Alves Redol, publicada em 1940 (na
verdade, a obra apareceu em Dezembro de 1939). Nesse romance, em que são flagrantes as infiltrações insinuativas do
lirismo realista dum Jorge Amado, retrata-se o drama anónimo mas comovente dos gaibéus, modestos trabalhadores do
campo, no Ribatejo. No pórtico da obra, o romancista declara:

"Este romance pretende ficar na Literatura como obra de arte”. (Sic)

Afinal, que pretendem os neorrealistas? Como se viu, sabem o que não querem ser, mais do que o que querem
ser: diferentemente da Presença, que foi um movimento crítico por excelência e precedido de um corpo definido de
teorias estéticas, o Neorrealismo instala-se em 1940 com relativa pobreza doutrinária. As doutrinas, essas vem sendo
discutidas nos anos seguintes, sem chegar a um definitivo acordo, pois ou as teorias colidem com as obras, ou estas,
quando lhes correspondem, acabam por se transformar em panfleto. Por outro lado, a evolução interna das obras
escritas e das ideias orientadoras justifica a dificuldade em ver com isenção um momento literário, como o
Neorrealismo, ainda vivo e a provocar polémicas e debates, não raro em torno de questões extraliterárias. António José
Saraiva, um dos principais críticos do movimento neorrealista, resume em três os seus aspectos fundamentais: "uma
visão mais completa e integrada dos homens, a consciência do dinamismo da realidade e a identificação do escritor
com as forças transformadoras do mundo." Se o materialismo histórico se entreve nessa tríade doutrinária, nos
romances neorrealistas, ao menos os ortodoxos e polêmicos, se torna patente. Daí que o Neorrealismo seja um
movimento em que se restaura a ideia de literatura social, de ação reformadora consciente, uma literatura engagée, a
serviço da redenção do homem do campo ou da cidade, injustiçado e humilhado por estruturas sociais envelhecidas: os
neorrealistas põem o problema da luta de classes, na equação senhor x escravo, que se desgastou à custa de tanto ser
repetida, e que não raro atrofiou a estrita carga literária de certas obras, transformando-as em panfletos, o que só
desserve à causa em mira.

Na ordenação dos adeptos do Neorrealismo, é preciso ter em conta o seguinte: 1) alguns foram ou são
conscientemente neorrealistas, de obra, de ação e, não raro, de pensamento político; 2) alguns outros foram ou são
neorrealistas por coincidência, quer seguindo os ditames da vocação literária pessoal, quer, ao mesmo tempo ou não,
recebendo os naturais eflúvios do ambiente neorrealista, em especial durante os anos da II Grande Guerra. Seja entre
os do primeiro grupo, seja entre os do segundo, houve escritores que não aceitaram senão parcialmente a nova moda, e
evoluíram por trilhas próprias, tornaram-se autónomos e muitas vezes contraditórios; também houve outros que foram
atenuando, no decurso de sua trajetória, a rigorosa ortodoxia do começo. Além de Alves Redol, podemos agrupá-los,
indistintamente: Soeiro Pereira Gomes, Faure da Rosa, Carlos de Oliveira, Manuel da Fonseca, Romeu Correia, José
Marmelo e Silva, Leão Penedo, Manuel do Nascimento, Vergílio Ferreira, Fernando Namora, Rogério de Freitas,
Afonso Ribeiro, Aleixo Ribeiro, Assis Esperança, Alexandre Cabral, Tomás Ribas, Garibaldino de Andrade e tantos
outros. Ainda há que acrescentar a figura de Ferreira de Castro, cuja obra romanesca pressagia claramente o
movimento neorrealista.

Massaud Moisés, A Literatura Portuguesa

Editora Cultrix, São Paulo


Fragmento de Gaibéus de Alves Redol

(...)Pareciam cercados no trabalho pelo braseiro de um fogo que alastrasse na Lezíria


Grande. Como se da Ponta de Erva ao Vau a leiva se consumisse nas labaredas de um incêndio que
irrompesse ao mesmo tempo por toda a parte.
O ar escaldava; lambia-lhes de febre os rostos corridos pelo suor e vincados por esgares que
o esforço da ceifa provocava. O Sol desaparecera há muito, envolvido pela massa cinzenta das
nuvens cerradas. Os ceifeiros não o sentiam penetrar-lhes a carne abalada pela fadiga. Lento, mas
persistente, parecia ter-se dissolvido no ar que respiravam, pastoso e espesso.
Trabalhavam à porta de uma fornalha que lhes alimentava os pulmões com metal em fusão.
Quase exaustos, os peitos arfavam num ritmo de máquinas velhas saturadas de movimento.
A ceifa, porém, não parava, e ainda bem - a ceifa levava o seu tempo marcado. Se chovesse,
o patrão apanharia um boléu de aleijar, diziam os rabezanos na sua linguagem taurina. Eles
próprios não a desejavam; se as foices não cortassem arroz, as jornas acabariam também.
E se ao sábado o apontador não enchesse a folha, as fateiras não trariam pão e conduto da
vila.
Então os dias tornar-se-iam ainda mais penosos e o degredo por terras estranhas mais
insuportável.
Vencidos pelo torpor os braços não param. Lançam as foices no eito, juntando os pés de
arroz na mão esquerda, e o hábito arrasta-os em gestos quase automáticos, mais um passo e
outro, a caminho da maracha que fecha o extremo de cada canteiro. Caminham sempre no mesmo
balouçar de ombros; as pegadas do seu esforço ficam marcadas na resteva lodosa.
Talvez muitos deles pensem que o arroz deitado nas gavelas repousa primeiro do que os
seus corpos. Se pudessem deter-se também, por instantes, e descansarem depois a cabeça nos
montes de espigas que deixam atrás de si, a ceifa poderia animar.
Mas o bafo que vem da seara queima mais em cada minuto e as cabeças dos alugados
pesam já tanto como o cabo das foices nos braços esgotados. Estão atulhados de amarelo, de
pensamentos e de grãos de fogo que a canícula doente lhes insuflou no sangue.
Ninguém entoa cantigas para animar, embora os capatazes tenham incitado as raparigas
cantaroleiras para o fazer. Nos ranchos não há agora quem saiba cantar.
Como podem as cachopas entrar em cantos ao desafio, se os peitos parecem fendidos pela fadiga
e o ar que respiram se tornou lava do vulcão da planície?!
-Auga!... Auga!... - Gritam os rapazes aguadeiros.
Os seus brados parecem vogar sobre o rancho e não se dissolvem. Ficam a boiar na massa
espessa da lava de fogo e angústia que cobre as searas. As palavras não naufragam.
Os seus brados parecem vogar sobre o rancho e não se dissolvem. Ficam a boiar na massa
espessa da lava de fogo e angústia que cobre as searas. As palavras não naufragam.
Talvez por isso também as raparigas não cantem. Agora só saberiam canções tristes que lhes
recordassem a sua condição de alugadas. (...)

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