Você está na página 1de 27

A GÊNESE DO

CONTO DE FADAS
LITERÁRIO
Paulo César Ribeiro Filho
Doutorando em Estudos Comparados de Literaturas
de Língua Portuguesa (ECLLP-USP)
Panorama histórico

“É durante o período histórico conhecido como Tempos


Modernos que a Literatura Ocidental vai adquirir seu
contorno próprio e alcançar o apogeu de suas formas e
imagem-de-mundo. Começa então a ascensão da
civilização humanista-liberal-cristã-burguesa que chega
ao apogeu no século XIX e começa seu declínio ao
entrar em nosso século.” (COELHO, 1985, p. 37)
Panorama histórico

“A vulgarização do papel (a partir da 2.ª metade do séc.


XIV); a descoberta da gravura (séc. XIV), a invenção da
imprensa (1.ª metade do séc. XV) modificaram
profundamente as condições da vida cultural e
intelectual.” (COELHO, 1985, p. 38)
Panorama histórico

“Do foco gerador que foi a Itália de ‘quattrocento’, surge o


Renascimento europeu (...) É esse homem liberal,
‘renascido’, depois de mil anos de espera, que vai construir
a Renascença artística e literária, a partir dos ‘modelos’
deixados pelos antigos gregos e romanos. Nasce uma Arte
idealista, bela e harmoniosa, uma Literatura culta e
aristocrática, alicerçada em pressupostos filosóficos e
estéticos bem definidos. Uma Arte e uma Literatura que,
por sua vez, com o passar dos séculos, se transformarão em
‘modelo clássico’ para o mundo ocidental.” (COELHO,
1985, p. 39)
Panorama histórico

Nelly Novaes Coelho (1985, p. 40-42) lista quatro obras de suma


importância para o surgimento de uma Literatura Infantil que
começa a aparecer do século XVII em diante. São elas:

1. Noites Agradáveis, de Gianfrancesco Straparola da Caravaggio


(Itália, 1554);
2. Contos e Histórias de Proveito e Exemplo, de Gonçalo
Fernandes Trancoso (Portugal, 1575);
3. Conto dos Contos ou Pentameron, de Giambattista Basile
(Itália, 1600);
4. Astúcias Sutilíssimas de Bertoldo, de Giulio Cesare Croce
(Itália, segunda metade do séc. XVI).
Panorama histórico

“É na França, na segunda metade do século XVII, durante


a monarquia absoluta de Luís XIV, o ‘Rei Sol’, que se
manifesta abertamente a preocupação com uma literatura
para crianças ou jovens. As Fábulas (1668) de La
Fontaine; os Contos da Mãe Gansa (1691/1697) de
Charles Perrault; os Contos de Fadas (8 vols. –
1696/1699) de Mme. D’Aulnoy e Telêmaco (1699) de
Fénelon são os livros pioneiros no mundo literário
infantil, tal como hoje o conhecemos.” (COELHO, 1985,
p. 56, grifo nosso)
“A Jean de La Fontaine
(1621/1692) coube o mérito de
dar a forma definitiva, na
literatura ocidental, a uma das
espécies literárias mais resistentes
ao desgaste do tempo: a fábula.
Embora escrevendo para adultos,
La Fontaine (ou melhor, suas
fábulas) tem sido leitura
obrigatória das crianças de todo o
mundo.” (COELHO, 1985, p.
60, grifo nosso)
“Figura de grande influência na
área da literatura para crianças e
também na das ideias pedagógicas
modernas, Fénelon é
principalmente lembrado por ter
sido um dos primeiros a se
preocupar com a ‘educação das
meninas’, e também a tentar uma
literatura que, embora visando a
‘formação do caráter’ do
educando, fosse principalmente
interessante e transmitisse os
ensinamentos de uma forma
indireta, não-declarada ou
evidente.” (COELHO, 1985, p.
77, grifo nosso)
“O mais importante de sua obra
(...) é a novela As Aventuras de
Telêmaco (1695/1699), cuja
difusão entre adultos e crianças, e
influência sobre outros escritores
foram das maiores, na era clássica:
até 1830 teve cento e cinquenta
edições e oitenta traduções. A
partir do Romantismo, quando
um novo ‘maravilhoso’ (= o
científico) surge, seu interesse
começa a declinar.” (COELHO,
1985, p. 78, grifo nosso)
“Contemporâneo de La Fontaine
e seu opositor na ‘Querela dos
Antigos e Modernos’, Charles
Perrault (tal como aconteceu
com o genial fabulista) entra para
a História Literária Universal, não
como poeta clássico (eleito para a
Academia Francesa de Letras em
1671), mas como o autor de uma
literatura popular, desvalorizada
pela estética de seu tempo e que,
apesar disso, se transforma em um
dos maiores sucessos da literatura
para a infância.” (COELHO,
1985, p. 63, grifo nosso)
Les Contes de Ma Mère L’Oye

1. A Bela Adormecida no Bosque


2. Chapeuzinho Vermelho
3. O Barba Azul
4. O Gato de Botas
5. As Fadas
6. A Gata Borralheira
7. Riquete de Topete
8. O Pequeno Polegar

E, mais tarde:
9. A Pele de Asno
10. Os Desejos Ridículos
11. Grisélidis
“Na mesma época em que
Charles Perrault começava a
publicar seus contos, também em
Paris, a jovem baronesa Marie-
Catherine le Jumel de
Barneville, Mme. D’Aulnoy (de
vida extremamente aventurosa e
cheia de escândalos) põe em
moda os ‘contos de fadas’.
Mantendo um salão mundano,
bastante famoso, ela estreia em
1690 com um romance ‘precioso’,
aventuresco, bem ao estilo
patético em moda, História de
Hipólito, conde de Douglas.”
(COELHO, 1985, p. 75, grifo
nosso)
“Publicou oito volumes de contos
maravilhosos que, desafiando o
racionalismo clássico e o ‘modelo
dos antigos grecolatinos’,
lançavam a ‘moda das fadas’ entre
os adultos. Moda que vai durar
anos. É entre 1696 e 1698 que
Mme. D’Aulnoy publica: Contos
de Fadas; Novos Contos de
Fadas ou As Fadas em Moda;
Ilustres Fadas, etc.” (COELHO,
1985, p. 76, grifo nosso)
O legado de Mme. D’Aulnoy

A crítica especializada atribui a Mme. D’Aulnoy a cunhagem do


termo “conto de fadas” (“contes de feés”). Zipes (2012) atenta para
o fato de que nenhum escritor teria utilizado o termo antes de
1697, ano da publicação da primeira coleção de contos de Mme.
D’Aulnoy, Les contes des fées (Os contos de fadas). O autor indica
que o termo “fairy tale” só teria se popularizado em língua inglesa
na segunda metade do século XVIII, anos após a primeira
tradução dos contos de D’Aulnoy, intitulada Tales of the Fairies,
publicada em 1707.
O legado de Mme. D’Aulnoy

Backscheider (2013) também outorga a Mme. D’Aulnoy a autoria


do termo, indicando que a publicação do primeiro conto de fadas
literário de que se tem notícia ocorreu em 1690, com L’Île de la
félicité (A Ilha da felicidade), um dos episódios da primeira novela
publicada por D’Aulnoy, Histoire d’Hypolite, comte de Duglas
(História de Hipólito, conde de Duglas). Para Backscheider, o referido
conto é inovador por ser “mais longo que os contos de fadas
populares, mais complexo, estilisticamente distinto, altamente
intertextual, repleto de plot twists” e “originalmente publicado como
uma narrativa interpolada e tematicamente enriquecedora”.
(BACKSCHEIDER, 2013, p. 83)
O legado de Mme. D’Aulnoy

Schacker (2015) corrobora a cunhagem do termo e afirma


que os contos de Mme. D’Aulnoy podem parecer
demasiadamente longos e complexos aos olhos dos leitores
modernos, mas que ajudaram a definir o que seria um “conto
de fadas” à época: narrativa de “paisagem fantástica” na qual
“as personagens enfrentam desafios sociais”, além de ser
escrito como “entretenimento adulto e provocação
intelectual”. (SCHACKER, 2015, p. 41)
O legado de Mme. D’Aulnoy

Donald Haase (2008), autor do The Greenwood Encyclopedia of


Folktales and Fairy Tales, obra de referência nos estudos de
literatura infantil e juvenil, também localiza a origem do termo
“conto de fadas” em D’Aulnoy e ratifica o status de L’Île de la
félicité como o primeiro conto de fadas literário.
Salon des dames.
Conversation de
dames en l'absence de
leurs maris: le diner.
Abraham Bosse
(1602-1676).
Lecture de la tragédie de l’Orphelin de la Chine, de Voltaire, dans le salon de madame Geoffrin.
Anicet Lammounier (1812).
A voga e o declínio dos contos de fadas

“Coincidindo com a fantasia extravagante e inverossímil


dos ‘romances preciosos’ e novelas de cavalaria, já em
decadência nesse final de século XVII, mas ainda os
favoritos no gosto dos leitores, os contos de fadas
alcançam um sucesso extraordinário, que dura até fins do
século XVIII”, quando “sai a publicação de Gabinete de
Fadas (...) São quarenta e um volumes de vários autores,
que marcam o fim dessa produção literária fantástica.”
(COELHO, 1985, p. 76, grifo nosso)
Conto de fadas popular versus Conto de fadas literário

São duas vertentes que encontram seus maiores representantes em


Charles Perrault e Mme. D’Aulnoy, respectivamente. Em The
Contes of Mme. D’Aulnoy and Charles Perrault (2002), Ruth
Bottigheimer, professora de pesquisa no departamento de Análise e
Teoria Cultural da Stony Brook University, Universidade Estadual
de Nova York, especialista em contos de fadas europeus e literatura
infantil britânica, apresenta algumas caraterísticas fundamentais
destes dois tipos de contos de fadas. Um deles, o literário, já nasce
escrito, elaborado, com linguagem rebuscada e de fontes literárias
conhecidas; o outro, popular, é proveniente da tradição oral,
recolhido da boca do povo, com linguagem simplificada e cheia de
motivos populares.
Conto de fadas popular versus Conto de fadas literário

“Mme. D’Aulnoy e Perrault usam diferentes modelos: de um lado,


os contos episódicos das coletâneas do barroco italiano; de outro, as
produções da ‘biblioteca azul’, o que produziu consequências
imediatamente perceptíveis: longa duração vs. brevidade,
complexidade vs. simplicidade, preciosidade lexical vs. vocabulário
enxuto e amoralidade/não-moralidade vs. Moralização”.
(BOTTIGHEIMER, 2002, p. 57)

*forma de literatura popularesca que circulava em folhetos, tal como


os chapbooks ingleses.
Conto de fadas popular versus Conto de fadas literário

“A tradição dos contos episódicos dos séculos finais da Idade Média,


Renascença e Barroco que incluíam os contos mágicos das Noites
Agradáveis, de Straparola, e dos contos do Pentameron, de Basile,
foi continuada na obra de Mme. D’Aulnoy. Suas narrativas
compartilhavam não apenas a elaborada estrutura das coletâneas de
contos medievais e renascentistas, mas também seu sistema de
moralidades. Elas encontraram aprovação popular: compradores
tanto na Inglaterra quanto na Franca requeriam repetidas
publicações em diferentes formatos, por diferentes preços, e para
leitores nobres, burgueses, artesãos e, eventualmente, crianças”.
(BOTTIGHEIMER, 2002, p. 58, grifo nosso)
Conto de fadas popular versus Conto de fadas literário

“Os contos de Perrault, entretanto, que são os primeiros a adotar o


estilo moderno de contos de fadas, possuíam estilo análogo às já
existentes narrativas breves da ‘biblioteca azul’. Seus contos eram
mais independentes que relativos a outros, curtos ao invés de
expansivos, mais plurais que particularizados. Eles expressavam mais
a modernidade que moralidades antigas e eram estilisticamente
novos.” (BOTTIGHEIMER, 2002, p. 60)

Segundo Nelly Novaes Coelho, “com esse material ‘moderno’”,


Perrault teve dois intuitos: “provar a equivalência de valor entre os
‘Antigos’ grecolatinos e os ‘Antigos’ nacionais”, e “divertir as crianças
e ao mesmo tempo orientar sua formação moral”. (1985, p. 67)
Conto de fadas popular versus Conto de fadas literário
Quadro comparativo baseado em Bottigheimer (2002)

Conto de fadas literário Conto de fadas popular


(Mme. D’Aulnoy) (Charles Perrault)
Tem raízes literárias que remetem à Idade São inspirados em contos míticos e
Média e à Itália Renascentista; folclóricos recolhidos do testemunho de
extravagantes ao extremo figuras populares
Narrativas tão longas que pressupunham e Oferece valores e estilo para um amplo
exigiam um público ocioso e de elite público leitor
Um vocabulário que precisava ser De conteúdo e estilo simples; linguagem
elaborado para não ser chato e repetitivo deliberadamente simplificada; versões
abreviadas de contos populares que
favoreciam um enredo simples, sem os
exageros do preciosismo e da galanteria
A última expressão de uma tradição de Representante de um gênero literário que
coleção de contos comum ao oeste e sul da sobreviveu ao mundo moderno
Europa
Conto de fadas popular versus Conto de fadas literário
Quadro comparativo baseado em Bottigheimer (2002)

Conto de fadas literário Conto de fadas popular


(Mme. D’Aulnoy) (Charles Perrault)
Tratava das interseções imprevisíveis entre As explicações de Perrault, por outro lado,
as vidas dos seres humanos e o mundo raramente envolviam magia, a qual seus
mágico das fadas contos aceitavam sem questionar
Mme. D’Aulnoy repetidamente reconhecia Perrault não inseriu nenhum comentário
a fricção que existia entre sua magia fictícia autoral para explicar o fato de seu gato de
e a realidade cotidiana botas poder falar e que, contra todas as
probabilidades do mundo real, exigiu uma
audiência com o rei
Universo politeísta Ambiente literário monoteísta oposto a um
politeísmo que Perrault identificou com o
mundo antigo
Referências
BACKSCHEIDER, Paula R. Elizabeth. Singer Rowe and the Development of the English
Novel. Baltimore: Johns Hopkins University, 2013.

BOTTIGHEIMER, Ruth B. The Contes of Mme.d'Aulnoy and Charles Perrault. In: E.L.O.,
7-8, 2002, p. 45-62.

COELHO, Nelly Novaes. Panorama histórico da literatura infantil/juvenil. 3.ª ed. São
Paulo: Edições Quíron, 1985.

HAASE, Donald. The Greenwood Encyclopedia of Folktales and Fairy Tales: A-F.
Portsmouth: Greenwood Publishing Group, 2008.

SCHACKER, Jennifer. Feathers, Paws, Fins, and Claws: Fairy-Tale Beasts. Detroit: Wayne
State University Press, 2015.

ZIPES, Jack. The Irresistible Fairy Tale: The Cultural and Social History of a Genre.
Princeton: Princeton University Press, 2012.

Você também pode gostar