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Gil engendra em Gil rouxinol

“Alô, mulatas! Alô, alô, mulatas! O barulho que vocês estão


ouvindo é um barulho de latas!” (“A luta contra a lata ou a
falência do café”, 1968)

Meu amigo Frederico Coelho pede para que eu escreva sobre os 70 anos de Gilberto Gil. E
imediatamente me ocorre uma história, na verdade uma espécie de anedota familiar, segundo a qual eu
teria assistido à estreia dos Doces Bárbaros no Canecão em 1975. Aos seis meses e no colo. Tempos
depois, revirando os discos com a brutalidade natural das crianças, (re)descobri aquela figura pitoresca,
que além das tranças no cabelo, vestia um macacão branco bordado com lantejoulas. A imagem deste
ser andrógino teve para mim o efeito indelével de uma tatuagem, como somente as imagens da infância
costumam produzir. Assim como a capa do disco Extra, de 1983, que girava sem parar no toca-discos
lá de casa: Gil sem camisa, tomando banho de espuma, ladeado por duas ilustrações inusitadas. A
primeira, o disco voador referente ao ET de “Extra”; a segunda, o veado, em alusão à canção que
encerra o disco, “O Veado”. Um chorinho, pilar da sacrossanta tradição musical brasileira, acerca do
animal que empresta seu nome à forma preconceituosa de se referir aos homossexuais. Para além da
provocação, “O Veado” encena, com a habitual serenidade, frases ambíguas que ora contemplam a
beleza plástica do animal “evoluindo, correndo evasivo”, ora sugerem a consciência da provocação:
“Ó, veado/Quanto tato/Preciso pra chegar perto?”

Alguns anos antes, em 1975, Gil editava em Refazenda outro chorinho, desta vez destilando versos
confessionais com descontração acima de qualquer suspeita: “eu passei muito tempo aprendendo a
beijar outros homens como beijo meu pai”. O aprendizado árduo e prolongado (“eu passei muito tempo
aprendendo…”) que o poeta generosamente nos relata através dos versos da canção. Contudo,
executada pela excelência da instrumentação de Dino Sete Cordas, Canhoto e Altamiro Carrilho, a
fluência da melodia amortecia o impacto das ideias, que, creiam-me, para um pré-adolescente de classe
média baixa da zona norte eram motivo de previsíveis confusões morais. Mesmo a relativo contragosto
do ambiente que me circundava, as canções e suas ideias libertárias entravam pelos poros. Afirmo sem
medo de errar — e, provavelmente, errando — que “Pai e Mãe” é o tipo de canção capaz de dinamitar
preconceitos e inaugurar uma saudável confusão na cabeça do preconceito machão latino-americano.
Não me refiro à construção individual da sexualidade, mas a um certo ambiente moral-cultural
permemável a diversidade, um alargamento de horizonte moral. E então me recordo de uma entrevista
com outro personagem admirável, Carlinhos Brown, que declarara algo do tipo: “Minha escola foi
Gilberto Gil e Caetano Veloso”. O “eterno deus mu, dança”…

Recentemente, assisti no Youtube a um vídeo que me deixou emocionado, ainda que ligeiramente
perplexo, no qual Itamar Assumpção e a banda Isca de Polícia tocam a canção “Extra”. Reticente em
lançar mão do repertório alheio, Assumpção demonstra concentração, particularmente nos versos: “Eu,
tu e todos no mundo no fundo, tememos por nosso futuro/ ET e todos os santos, valei-nos, livrai-nos
desse tempo escuro.” Olhar circunspecto, mira a câmera frontalmente, valorizando com dicção acurada
a ressonância silábica entre os trechos “no mundo/no fundo” e “valei-nos/livrai-nos”. Não sei até que
ponto se pode atribuir a “Extra” a tendência costumeira da canção política, geralmente cantada sob o
ponto de vista da primeira pessoa do plural, endereçada a um determinado âmbito político ou
existencial. Trata-se de uma canção que transpira a urgência sincera dos anthems jamaicanos, mesmo
que envolta pela roupagem pop de Liminha e impregnada pela brisa suave do Caribe. Um tema duro de
cozinhar, mas que Gil transforma em inigualável iguaria, se utilizando de artifícios, desenhos poéticos
e melódicos, uma banda extraordinária. Notório adepto da lapidação minuciosa da palavra, Assumpção
parece ter compreendido como poucos a sutileza desta canção.

Mais tarde, já marmanjo, outras canções de Gilberto Gil mobilizaram minha atenção de forma decisiva,
geralmente circunscritas ao que podemos chamar linhagem filosófica, tais como “Era Nova” e, mais
recentemente, “Pop Wu Wei”, do disco Quanta, de 1997. Novamente, a entonação poética condensa
com leve ironia um tema filosófico, que diz respeito à permanência imanente de tudo aquilo que é, em
outras palavras, da “eternidade”: “Falam tanto numa nova era/Quase esquecem do eterno é”, ou ainda,
“Os cabelos da eternidade/São mais longos que os tempos de agora/São mais longos que os tempos de
outrora”. Mas em “Pop Wu Wei” a certeza do “eterno é” — bem diferente da estabilidade do “ser”
platônico — se converte em princípio ético (“O movimento está para o repouso/assim como o
sofrimento está para o gozo”), finalizando, novamente, a partir de um equilíbrio improvável entre a
profundidade da reflexão, a leveza da perspectiva e a beleza produzida pelo cantor, compositor e
exímio instrumentista:

“o fato é que eu sou muito preguiçoso


tudo que é repouso me dará prazer
se Deus achar que eu mereço viver sem fazer nada
que eu faça por merecer.”

Depois da cultura (uma relação com o outro, pautado em uma tolerância vivida), da política (sem nunca
se deixar envenenar pela “indignação”) e da cosmologia (a afirmação do “eterno é”), Gil também
ensina o delírio, a curva delicada, que pode ser derivada da “estética do sonho” de Glauber, das
experiências lisérgicas de Timothy Leary, da palavra mística dos repentistas. Ele canta, no álbum
gravado ao vivo em 1974: “Esta localidade de lá/Uma abertura de si/Com um embocadura pra
dó/Sustenido/Uma passagem pra ré/Mi bemol…” Em um complexo exercício poético, Gil transfigura
parcialmente o advérbio “lá” e o pronome “si” em nota músical. Embaralhando a sintaxe e reforçando a
ambiguidade com a utilização dos mesmos acordes, convida o ouvinte a experimentar as fronteiras do
sentido, do som e das palavras. A torrente de imagens de “João Sabino”, assim como a narrativa
rizomática de “Abre o Olho”ou o haikai existencial em “Oriente”, testemunham que há um excepcional
engenho de artista por trás dos delírios criativos de Gilberto Gil.

Somando-se o homem de ação ao artista, e, ainda mais, o político, Gil é Darcy Ribeiro, é Zumbi e
irmãos Villas-Boas. Alguém tem dúvida que ele foi maior ministro da cultura que o Brasil já teve?
Generoso em sua visão do sentido da cultura, visionário no que diz respeito a temas espinhosos como
direito autoral, patrimônio e produção cinematográfica, Gil cumpriu a meta, citada no programa do seu
mandato, de fazer um “do-in antropológico” nos diversos pontos do Brasil.

Posso dizer apenas por mim mesmo, mas suspeito que posso ir além: Gil ensina e engendra o mundo,
não só para este que vos escreve, mas para artistas da grandeza de Carlinhos Brown e Itamar
Assumpção. Gil também engendra em Gil o rouxinol, catalisando em sua obra mais do que uma
mistura de ritmos, cores e culturas, mas uma uma forma de ver o mundo que não se resume à nenhuma
espécie de universalidade. Esta é uma maneira própria da canção, capaz de produzir reviravoltas
monumentais, porém silenciosa, interna, afetiva — “abra-se cadabra-se a prisão”. Uma forma de ver o
outro, a sexualidade, a amizade, o gênero. Uma forma de pensamento político para além das
ferramentas carcomidas da política institucional. Uma forma de amor que é política de combate à
mesmice sem enveredar pela maledicência e a indignação reativa, para além de qualquer voluntarismo.
Uma visão de mundo radical, cuja prática nunca é radical, nem violenta. Uma perspectiva da canção
como o operador a partir do qual se torna instrumento para o aprimoramento da cultura, da política, da
arte, do prazer e, assim, da VIDA.

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