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Curso de especialização em Jornalismo Cultural

Oferecido pela Faculdade de Comunicação Social da UERJ


Disciplina de Artes da Cena

Tema:

Análise crítica e comparativa da peça teatral Musical Céu Estrelado

Aluna: Ana Letícia Daflon Tinoco


Envolvente, enxuta e surpreendente: assim foi o impacto de Céu Estrelado - O
Musical, em cartaz para curta temporada no CCBB do Rio de Janeiro, Belo
Horizonte, Brasília e São Paulo.

Com texto de Carla Faour, direção de João Fonseca e Vinícius Arneiro, direção
musical de Tony Lucchesi, arranjos de Gabriel Quinto e produzido pela
Turbilhão de Ideias, a peça prende o espectador com enredo cativante contado
através do cancioneiro popular do interior do Brasil (termo, inclusive, usado em
abundancia – e quase desgastado – pelos veículos de imprensa).

Protagonizado por Juliana Linhares como Antônia, Céu Estrelado conta a


história de uma jovem cantora, original do interior do Brasil, que volta pra casa
depois de anos tentando a carreira no Rio de Janeiro. Cheia de reviravoltas, a
peça conta também com Bruno Garcia e Dani Câmara que fazem os papéis de
Seu Cris e Cidinha, pai e irmã de Antônia.

Além deles, estrelam também Daniel Carneiro como Paixão, antigo amor da
protagonista, Hamilton Dias como Johnny, atual namorado estrangeiro de
Tonha que a acompanha na viagem de volta para casa, e Natasha Jascalevich
como Fafá, a faz tudo da fazenda. Todos com vozes e presença de palco
notáveis que envolveram e apaixonaram a plateia do início ao fim, sendo os
dois últimos as veias cômicas do espetáculo.

A trama se passa em Carneirinhos, cidade fictícia onde a família de Tonha tem


uma pequena fazenda. A protagonista volta pro interior depois de anos
afastada para rever a família na festa de Santo Antônio, acontecimento
tradicional da região. Entre questionamentos acerca de quem é e na busca por
entender seu propósito, Tonha carrega a frustração de ainda cantar em bares,
ao passo de que Cidinha e Seu Cris cultivam a mágoa da partida da irmã e filha
após a morte da mãe, construindo, assim, personagens com cargas
emocionais complexas e distintas.

Até mesmo as críticas publicadas são carregadas de emoção, como vemos no


Texto1 de Rodrigo Fonseca para o Estadão, publicado no dia 5 de junho.
1
https://cultura.estadao.com.br/blogs/p-de-pop/ccbb-ve-o-ceu-estrelado-autoral-de-carla-faour/
acessado no dia 11 de junho.
“E aí… Ah! Aí, Sofocles, Eurípedes, Aristófanes e a turma toda que
ensinou Carla a ser a artesã de surpresas que inicia uma ciranda. A
ciranda do desejo, que é também a ciranda do pertencimento,
expressa na fala mais linda de toda a peça: “Ninguém está longe
demais pra esquecer de onde veio”. E aí não dá mais pra contar. Só
vendo. E ouvindo, porque é um musical, com canções de Milton
Nascimento, Chico César, Chico Buarque, Gilberto Gil, Jovelina
Pérola Negra, Chitãozinho e Xororó e outras, moduladas pelo diretor
musical Tony Lucchesi, com o acompanhamento (certeiro) do
violonista Gabriel Quinto”.

Sem esconder o entusiasmo com a peça, seja pelo enredo envolvente ou


seleção musical inspiradora dos grandes nomes da música brasileira, Fonseca
abre diálogo com o suspense lúdico e conduz sua análise através de termos
como “troncos que criam raízes por medo da inconstância do vento” e “peito
encardido de saudade”, utilizando-se de metáforas e jogos de linguagem.

Durante a peça, o desenrolar das cenas indicam que há ainda um grande


acontecimento por vir, que o crítico descreveu como:

“É, sim, tem algo de trágico vindo. Em Carla Faour sempre tem algo
trágico, quando a gente menos espera, pois a contribuição fulcral
dela, ao teatro brasileiro, é lembrar que nunca se conjuga o verbo
“viver” na desinência da calmaria, pois sempre pode haver um dente
frouxo ou presa mais afiada, que lacera gengivas”.

A frase final da crítica sintetiza e conclui a análise linear de Fonseca. Para ele,
o musical Céu Estrelado “vale um sonho”.

Apesar de fictícia, a cidade de carneirinhos cumpre bem o papel representativo


de uma cidade pequena e rural no interior do país. Seguindo essa mesma
lógica da simbologia, pouco importa que Cidinha e Tonha sejam filhas dos
mesmos pais e uma tenha nascido negra, enquanto a outra é branca e loira. Na
análise de Céu Estrelado ou A Sinopse me Pregou uma Peça ou Como Tratar
um Tema Árido e Triste de Forma Alegre e Poética 2 de Gilberto Bartholo,
publicada em 28 de maio no blog O Teatro Me Representa, o crítico destaca o
depoimento do diretor Vinícius Arneiro, que explica:

2
http://oteatromerepresenta.blogspot.com/2022/05/ceu-estrelado-ou-sinopse-me-pregou-
uma.html acessado no dia 13 de junho
[...] Atores e atrizes, todos excelentes, de diferentes partes do Brasil:
Natal, Recife, Angra dos Reis, Goiânia e Rio de Janeiro. “Os sotaques
são muito distintos e se misturam em cena. Fizemos questão de que
permanecesse assim, para enfatizar que é, também, nessa
multiplicidade cultural, que reside a beleza do português não uniforme
do Brasil”.

Embora Bartholo destaque assertivamente a pluralidade e riqueza cultural


presentes na peça, deixa a desejar quando não se despe de certos
preconceitos que podem ser lidos como culturais, regionais e,
consequentemente, sociais.

“Antes de ter tomado a decisão de ir tentar a carreira artística na


‘cidade grande’, ANTONIA formava uma dessas ‘indefectíveis’ duplas
sertanejas (É A MINHA OPINIÃO. DETESTO TODAS!!! ‘Sertanejo
universitário’. ECA!!! Estão mais para ‘classe de alfabetização’. Não
confundir com ‘música caipira, que eu adoro).

[...]

“Essa não volta mais para a ‘terrinha’, creio eu, visto que maiores
oportunidades de trabalho pode ela encontrar por aqui, embora eu
faça questão de dizer que sou amigo de grandes atores potiguares e
conheço excelentes grupos de TEATRO do Rio Grande do Norte,
assim como de outras partes do Brasil”.

Apesar da diferença coloquial entre um jornal de grande porte como o Estadão


e um blog autoral, na primeira colocação o crítico é enfático e não tenta
esconder seu desprezo pelo sertanejo que chama de universitário. Além de
ignorar os fatores culturais e socioeconômicos envolvidos na popularização do
ritmo, Bartholo não atenta para o fato de que a seleção musical para a fase em
que Antônia cantou na dupla sertaneja com Paixão é composta por nomes
tradicionais do gênero sertanejo como Zé do Rancho e Paulo Sérgio Valle. Já
na segunda colocação, mais tímida, o autor reitera um fato público que é a
discrepância de oportunidades profissionais entre Sudeste quando comparado
com Norte e Nordeste, mas entrega um certo tom de desdém quando sente a
necessidade de reiterar que apesar de sua fala, é amigo de grupos de teatro
potiguares.
No livro Iniciação ao Teatro3 de Sábato Magaldi, o crítico, professor e
historiador fala da receita mais prática para a construção de uma peça, que
envolve apresentação, desenvolvimento e solução de conflito:

“Apresentação, desenvolvimento e solução de um conflito – eis o


esquema habitual da chamada peça bem feita, alimento rotineiro dos
espetáculos. Esse processo construtivo sugere a idéia de unidades
de ação, tempo e lugar. As personagens, dado o tempo mínimo em
que se desnudam para o público, surgem no palco já à beira da crise
aguda que lhes definirá o destino. Para que não se disperse a
atenção do espectador e não se prejudique a organicidade do texto,
concentram-se os conflitos num tempo e num lugar. Os conceitos
mais ou menos restritivos dessas unidades fazem que a peça se
passe num dia ou em meses e num só recinto ou na mesma cidade.
Tudo são convenções e o texto, obra de ficção, observa-as ou se
liberta delas, impondo-se pela própria capacidade de convencer”. (P.
17 e 18)

Carla Faour, no entanto, deixa a plateia no suspense da tragédia final,


libertando-se e libertando – como diz Magaldi – a plateia das convenções
tradicionais, fechando a cortina com uma tragédia poética, social e política. Não
à toa, a canção de Gilberto Gil “Balada do lado sem luz” 4 eternizada na voz de
Maria Bethânia encerra o espetáculo mostrando o lado não tão luminoso, mas
infinitamente potente, do Musical Céu Estrelado.

3
MAGALDI, Sábato. Iniciação ao Teatro, 1994. 5ª Edição, Editora Ática.
4
GIL, Gilberto. “Balada do lado sem luz”, Pássaro Proibido. Philips, 1976.

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