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Cálice

Chico Buarque
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue.

Como beber dessa bebida amarga


Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta.

Como é difícil acordar calado


Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa.

De muito gorda a porca já não anda


De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade.

Talvez o mundo não seja pequeno


Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça.
Francisco Buarque de Hollanda

Rio de Janeiro, 19 de junho de 1944.

Mais conhecido como Chico Buarque ou ainda Chico Buarque de Hollanda, é um


músico, dramaturgo e escritor brasileiro.
Filho do historiador Sérgio Buarque de Holanda, iniciou sua carreira na década
de 1960, destacando-se em 1966, quando venceu, com a canção A Banda, o Festival de
Música Popular Brasileira. Em 1969, com a crescente repressão da ditadura militar no
Brasil, se auto-exilou na Itália, tornando-se, ao retornar, um dos artistas mais ativos na
crítica política e na luta pela democratização do Brasil. Na carreira literária, foi
ganhador do Prêmio Jabuti, pelo livro Budapeste, lançado em 2004.
Casou-se com e separou-se da atriz Marieta Severo, com quem teve três filhas:
Sílvia, que é atriz e casada com Chico Diaz, Helena, casada com o percussionista
Carlinhos Brown e Luísa. É irmão das cantoras Miúcha, Ana de Hollanda e Cristina. Ao
contrário do que tem sido propagado na internet, Aurélio Buarque era apenas um primo
distante do pai de Chico.

A crítica à Ditadura
Ameaçado pelo Regime Militar no Brasil, esteve exilado na Itália em 1969, aonde
chegou a fazer espetáculos com Toquinho. Nessa época teve suas canções Apesar de
você (que dizem ser uma alusão negativa ao presidente Emílio Garrastazu Médici, mas
que Chico sustenta ser em referência à situação) e Cálice proibidas pela censura
brasileira. Adotou o pseudônimo de Julinho da Adelaide, com o qual compôs apenas
três canções: Milagre Brasileiro, Acorda amor e Jorge Maravilha. Na Itália Chico
tornou-se amigo do cantor Lucio Dalla, de quem fez a belíssima Minha História, versão
em português (1970) da canção Gesù Bambino (título verdadeiro 4 marzo 1943), de
Lucio Dalla e Paola Palotino. Em viagem a França, tornou-se amigo de Carlos
Bandeirense Mirandópolis inspirando-se em uma de suas composições para criar Samba
de Orly.
Ao voltar ao Brasil continuou com composições que denunciavam aspectos sociais,
econômicos e culturais, como a célebre Construção ou a divertida Partido Alto.
Apresentou-se com Caetano Veloso (que também foi exilado, mas na Inglaterra) e
Maria Bethânia. Teve outra de suas músicas associada a críticas a um presidente do
Brasil. Julinho da Adelaide, aliás, não era só um pseudônimo, mas sim a forma que o
compositor encontrou para driblar a censura, então implacável ao perceber seu nome
nos créditos de uma música. Para completar a farsa e dar-lhe ares de veracidade, Julinho
da Adelaide chegou a ter cédula de identidade e até mesmo a conceder entrevista a um
jornal da época.
Uma das canções de Chico Buarque que criticam a ditadura é uma carta em forma de
música, uma carta musicada que ele fez em homenagem ao Augusto Boal, que vivia no
exílio, quando o Brasil ainda vivia sob a ditadura militar.
A canção se chama Meu Caro Amigo e foi dirigida a Boal, que na época estava exilado
em Lisboa. A canção foi lançada originalmente num disco de título quase igual,
chamado Meus Caros Amigos, do ano de 1976.

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