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Rita Lee Jones de Carvalho nasceu em uma família notadamente conservadora na virada do ano
de 1947, em São Paulo com um “Lee” no sobrenome totalmente postiço, sem registro na família
até então: seu pai registrou suas três filhas com este nome para homenagear o general
confederado Robert E. Lee, que se tornou símbolo de apoio à escravidão e que foi adotado pela
extrema-direita. Seu avô paterno, Norris, chegou a ter escravos e
trouxe uma delas para o Brasil, Olímpia que terminava algumas frases
com a expressão “gódemi” e intrigava a jovem, que ficou sabendo pelo
seu pai, que se tratava de referência aos sofrimentos pelos quais
passou na Guerra de Secessão nos EUA, uma corruptela de God damn
it!, (algo como ‘maldição!’, em inglês). Sua ascendência, além da
origem americana, contava também com indígenas americanos da
tribo Cherokee, do lado paterno e imigrantes ultracatólicos por parte
de mãe, uma credencial que conferiu um sotaque paulistano
Foto: 2 - Rita Lee com a bandeira da cidade marcante e um olhar de cronista da Paulicéia, uma legítima “mina de
de São Paulo, prestando homenagem.
Sampa” em uma de suas letras inspirada em Adoniran Barbosa e que
remeteu ao apelido dado em 1978 por Caetano Veloso e que também reverenciava a cantora
como sua “mais perfeita tradução”, deixando claro que a cidade se revelava como mistério em
todas suas contradições e contrastes que atordoam quem aqui chega desavisado.
São Paulo foi a cidade em que Rita viveu durante toda sua vida, teve até mesmo a honra de ser
considerada um de seus símbolos mais emblemáticos. A paulistana que nasceu na Vila Mariana,
foi cronista atenta aos segredos, mistérios e contradições da cidade. Ela até mesmo registrou
com sua irreverência típica, o sotaque que lhe era característico no
título de uma de suas canções: “Orra meu”, lançada em 1980.
Na canção “Ritta Lee”, que foi gravada no segundo trabalho da banda Os Mutantes, o disco
lançado em 1969 “álbum – Mutantes” faz uma autorreferência irônica às jovens que se orientam
pelo objetivo de encontrar seu par para se casar, o que remete à antiga expressão que
pressiona a realidade habitacional profundamente crítica da cidade: “quem casa quer casa”. Na
voz de Arnaldo Baptista, a canção pode até se encaixar ao casamento dela própria com Arnaldo
e que durou nove anos, com final traumático para ambos e que significou também sua expulsão
da banda por não possuir o “calibre como instrumentista” necessário para acompanhar linha
progressiva-virtuose que seria seguida pela banda. A decisão foi recebida da seguinte forma,
conforme descrito no livro Rita Lee: uma
autobiografia, de 2016 “Uma escarrada na cara seria menos
humilhante. Em vez de me atirar de
Sua saída discreta não representou obstáculo à sua joelhos chorando e pedindo perdão por ter
nascido mulher, fiz a silenciosa elegante.
carreira ascendente de sucesso no cenário musical,
Me retirei da sala em clima dramático, fiz
ao contrário, motivou a criação de uma de suas a mala, peguei Danny (a cachorra) e
músicas de maior sucesso como veremos adiante. adiós."
Muita desilusão, sonhos não realizados representados por contradições explícitas, gritantes, e
que são associadas pelo autor a verdadeiras “quimeras”,
realidades híbridas e que chegam até a se negar. Outra
imagem que temos na letra, refere-se ao crescimento na
direção dos céus, associada à pretensão de alcançá-lo.
Superioridade com tom arrogante e o orgulho por ser
considerada a “locomotiva” do país, a máquina potente
Foto: 7 - Cortiços que inspiraram Saudosa Maloca com motor capaz de “carregar” o restante dos estados.
Essa situação determinada pelo poder
“É Torre de Babel, é inflação, é vendaval, é só papel
econômico é comparada a história da
Esperanças vão morrendo, é só quimera
E mais quimera e mais quimera Torre de Babel descrita pelo Livro
Gênesis que faz parte da Bíblia, no
É não e não e fel e fel, mas que escarcéu que a gente tá vivendo”
Antigo Testamento com um Deus
marcadamente severo que desorienta o povo e sua ambição com a destruição do símbolo de
unidade, e poder que ela representava e, além disso, “cria” diferentes idiomas para confundi-los
e que não mais se entendam e possam se articular.
Depois destas canções que situam Rita Lee, as homenagens que recebeu, a parceria com Itamar
Assumpção, a fala “errada” estilo Adoniran e a origem paulistana que
nunca negou, tem sua expressividade e o sucesso que solidificou sendo
expoente e referência de uma geração inteira, lidou com a realidade
masculina e machista do ambiente musical, especialmente no rock e
soube “tirar de letra”, com letras mais que especiais. Alguns registros:
Mania de Você - expressão feminina sobre a sexualidade, esta canção rompeu, de modo
revolucionário, o silêncio e o silêncio até então. A música composta por ela e Roberto de
Carvalho em 1979, também serviu como referência para tempos futuros em
ambiente com maior liberdade de expressão, em contraste com a realidade
de toda uma geração de jovens que estavam assumindo o mundo com todos
os paradigmas, modelos e convenções a quebrar ou se adaptar.
Quanto à desigualdade econômica que se torna ainda mais aguda e aparente em uma cidade
como São Paulo, com muitas contradições e carências, “só carece” ao mesmo tempo em que “só
cresce”, a miséria, certamente não foi desconsiderada, ou negadas por ela. Mesmo dizendo em
“Orra meu” que seu negócio era menos papo e mais farra, para Santa Rita de Cássia, ser jovem,
mulher e artista lhe impôs um difícil processo de afirmação, buscar e encontrar alternativas a
partir de questionamentos, irreverência, muita criatividade e humor.
Um dos aspectos que responde sobre o tipo de liberdade que ela acredita e defende com
“padroeira” pode ser essencialmente a ambiência para expressão livre de preconceitos, mas uma
liberdade para expressão que não prescinde de intencionalidade e, portanto, compromisso com
“o que se diz”, “no que” acredita e, ao final, “em que mundo acredita”, que se traduzem em suas
músicas, livros e opiniões nos programas que apresentou e participou.
É possível afirmar que suas pautas sempre foram contraponto ao conservadorismo, ao que era
careta, brega no sentido de cafonice, tudo que se orienta para conservar a realidade desigual e
injusta, o status quo excludente e que tornam exclusivos os privilégios. Mesmo que não seja o
proposito deste texto realizar uma pesquisa exaustiva ou com parâmetros rigorosos de
investigação, há muitas evidências de sua postura de contrariedade frente a injustiças e
desigualdades sociais em manifestações registradas diversas entrevistas ou nas letras de suas
músicas.
Com a sociedade consternada, sentimento de pesar e mensagens de solidariedade aos
familiares, por ocasião da perda de Rita Lee, a declaração do partido Novo em relação à Rita Lee
causou controvérsia nas redes sociais. A mensagem foi criticada por associar a postura da
cantora de evitar dar declarações políticas ou apoiar candidatos com o conceito de liberdade.
Embora seja verdade que Rita Lee não costumava fazer declarações políticas ou apoiar
candidatos, é importante lembrar que a liberdade não se limita a isso. Associar a
postura da Padroeira da Liberdade à perspectiva de liberdade irrestrita ao capital e
negação do modelo político convencional em nome de uma postura nova, vinda
do “mercado” com uma pretensa eficiência que prescinde do Estado como
provedor de políticas públicas universais é um embuste, uma postura enganosa.
Os lobos que se vestem como “ovelhas, tradicionais, convencionais, branquinhas”, fazem parte
da alcatéia chamada “faria limers”, seus integrantes são facilmente identificados, por seus
hábitos e adereços:
Jaquetas ou coletes puffer - principal peça dos uniformes imaginários da Faria Lima,
geralmente nas cores escuras, azuis ou pretas. Nosso clima menos rigoroso
para o inverno pode er gerado a adaptação “colete” que preserva o símbolo de
status, sem provocar tanto desconforto em nosso clima tropical. Os lobos não
se importam com a exposição que este tipo de jaqueta e/ ou colete dão,
revelando facilmente os membros da alcateia.
Camisas azuis (ou brancas), dizem que são aconselhados a utilizar cores que transmitam
calma, equilíbrio e ponderação, mesmo que seja um day trade alucinado,
operador que compra e vende ações freneticamente, acompanhando a
volatilidade diária – outro nome para especulação e oportunismo,
geralmente deixou de jogar videogame há alguns poucos anos;
Sapatênis, calçados que simbolizam a tentativa de fusão do aspecto clássico e tradicional
do sapato com o conforto e informalidade do tênis. Alguns analistas argumentam
que essa fusão é um fracasso, apesar de contar com grandes campanhas de
publicidade, lojas que os expõem com destaque em suas vitrines, artistas e
os chamados influenciadores que formam uma certa “aliança” em torno
deste calçado que é anunciado como item da moda, especialmente nos
últimos 20 anos. O argumento para este insucesso é que a fusão dos elementos a que se
propõe, não cumpre seu objetivo. Seu solado mais baixo e o emprego de material menos
confortável que os empregados em tênis, geram desconforto pela falta de ergonomia. Quanto
ao aspecto de formalidade, dizem, que não consegue convencer por seus traços e características
menos sofisticadas, materiais de qualidade inferior e a ausência de acabamento sofisticado dos
sapatos tradicionais.
A grande maioria dos lobos se orienta apenas em direção aos uivos dos líderes que decoraram
as práticas rigorosas de controles fiscais, preconizadas pela economia neoliberal. Não
questionam o modelo de análise e as práticas do passado com políticas econômicas sem casos
de sucesso em países com realidade comparável à do Brasil. Há poucos uivos, de economistas
que partem de outra linha de análise, por exemplo, que investiguem nossa história econômica e
o modelo produtivo em profundidade, ,seu perfil concentrador e que reproduz os fatores de
manutenção da desigualdade econômica com reflexos imediatos na realidade social, com
parâmetros de vulnerabilidade social cada vez mais elevados. Há estudos que apontam
caminhos alternativos aos modelos caducos, há poucas vozes que vão em direção contrastante
à do mercado, personificada na “estupidez travestida de linguajar pseudo técnico do atual
presidente do BC.
Curioso notar que o mercado financeiro que orbita em um bairro que chamam de “Condado” e
tem como avenida principal a Faria Lima, versão paulistana da “Wall Street” (Rua da Parede, em
tradução livre). Seu nome é referência a um ex prefeito conhecido por ser planejador, pensar no
longo prazo: José Vicente Faria Lima. Depois de uma carreira notável na aviação militar,
alcançando a patente de Brigadeiro do Ar, demonstrou empreendedorismo ao transformar a
Vasp em uma das melhores empresas de aviação do
país e ao promover uma administração exemplar como
secretário de Estado. Como prefeito de São Paulo, sua
gestão foi marcada por um grande volume de obras
que alteraram a paisagem urbana da cidade, incluindo a
construção das marginais Tietê e Pinheiros, viadutos e
avenidas importantes. Sua eficiência administrativa o
tornou uma das maiores forças políticas do Estado, mas
infelizmente faleceu antes das eleições que pretendia
Foto: 8 - Condado Faria Lima
concorrer.
Conforme revelado pelo Padre Júlio Lancelotti, Rita avaliava
sua obra como uma iniciativa louvável e, inclusive, apoiou
o trabalho que ele desenvolve pelos mais carentes, doando
suas roupas para a obra social. A notícia confirmou o
equívoco em associar apressadamente sua postura com a
de isenção ou que não representa compromisso e
posicionamento diante das injustiças sociais causadas pela
desigualdade econômica.
A declaração do partido Novo sobre a morte de Rita Lee pareceu simplificar demais o conceito
de liberdade ao associá-lo apenas à liberdade de escolha pessoal. É importante lembrar que a
liberdade também está ligada à igualdade de oportunidades e à justiça social.
Entre os lobos do Novo e a Ovelha Negra mutante, há muito mais inovação apresentada pela
paulistana legítima, “sangue de fumaça”. Falar sobre afeto, costumes e sexualidade não foi
simples para ela. Cantou outras antes dela, Pagu, Leila Diniz e Elis, lançou “perfume e anunciou
um tempo mais compreensivo com mulheres em uma banheira de espuma. Há muito mais valor
contido nessa trajetória do irá supor qualquer “faria limer” e um mundo que não é mais aquele
dos anos 70.
Projetos que se apresentam “diferente, top, e moderno”, mas apontam caminhos intransigentes
em relação à fé cega na eficiência, que para eles é uma espécie de “poder divino” do mercado
revelam uma caretice, um discurso velho que não se sustenta. Desconsidera contrapontos,
subverte fatos ao esconder o oportunismo dos “players” que operam nosso modelo econômico
e recorrem ao Estado em qualquer período de crise econômica e orientam suas operações
apenas em direção ao lucro imediato, a qualquer preço sem perspectivas
inclusivas e mais sólidas para o “rebanho todos” no futuro.
Poderia ser a função social das companhias, com lideranças assumindo uma pauta de
desenvolvimento social, orientada por uma gestão socialmente responsável.
Quando os lobos resolveram entrar no jogo político, o que se viu foi a aplicação
de um modelo mais radical da velha política, negando debates mais amplos e
inclusivos, iludindo as outras ovelhas em nome de falso ambiente favorável às
oportunidades, bastando esforço e mérito. Um artifício ilusório, “propaganda falsa”
reproduzindo e reforçando precariedade nas relações de trabalho, concentração de
riquezas e um modelo econômico excludente, que se orienta pelo capitalismo financeiro de
resultados voláteis.
A cultura e a felicidade que ela pode proporcionar, não é um indicador considerado pelo
mercado, quando muito, as empresas levam em consideração a promoção de impactos sociais
positivos e com práticas bastante tímidas, contidas. As iniciativas de incentivo à cultura por
empresas são em sua grande maioria associadas a patrocínios e incentivos de projetos já
consagrados e objetivos comerciais, de marketing.
A liberdade que a padroeira sempre defendeu, permite todas as expressões em uma cultura
diversa, livre de preconceitos e estigmatizações. Rita construiu caminhos e deixou exemplos.
Cantora, compositora, multi-instrumentista, a artista feminina que mais vendeu discos no país,
55 milhões de cópias. Impressionante para quem deu de ombros por supostamente não ser
“virtuose”. “Tava nem aí” para opiniões de “mundo melhor”, se levasse em conta os julgamentos
dos outros, talvez não tivesse alcançado o sucesso e, com sua graça, feito tanta gente feliz, sem
querer levar vantagem em tudo. Para ela, as roupas que doou poderiam ajudar quem mais
necessitava. Não se apegou a status, “trajes pop star consagrada”. Maravilhosa também foi que
o Padre Júlio não vendeu para arrecadar dinheiro. Quem disse que precisa ser endinheirado
para ter o privilégio de vestir a roupa da Rita Lee?