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R ITA L EE, D I F E R E N Ç A ENTRE LOBOS E OVELHAS

0 ual o tipo de liberdade Rita Lee defendia, atribuindo a


si mesma o título de Padroeira? Será que sua
liberdade significou se eximir politicamente?
Uma reflexão sobre algumas canções, sua história e lobos
em pele de ovelhas

Rita Lee, a multiartista que se consagrou como expressão


feminina maior do rock nacional, nos deixou em 08 de maio Foto: 1 Divulgação/ Biscoito Fino

de 2023, aos 75 anos. A contribuição ao Rock lhe conferiu


um título de reconhecimento pelo meio musical como “Rainha do Brasil” no gênero, ao que ela
disse considerar cafona e injusto receber essa designação, se via mais como plebeia. Queria ser
lembrada como Padroeira da Liberdade. Quanto ao conceito de “liberdade”, ao qual se referia e
as questões apontadas no subtítulo deste texto, serão analisados alguns aspectos de sua vasta
obra, a forma como foi reconhecida pela sociedade em seus mais de 50 anos de carreira.

Rita Lee Jones de Carvalho nasceu em uma família notadamente conservadora na virada do ano
de 1947, em São Paulo com um “Lee” no sobrenome totalmente postiço, sem registro na família
até então: seu pai registrou suas três filhas com este nome para homenagear o general
confederado Robert E. Lee, que se tornou símbolo de apoio à escravidão e que foi adotado pela
extrema-direita. Seu avô paterno, Norris, chegou a ter escravos e
trouxe uma delas para o Brasil, Olímpia que terminava algumas frases
com a expressão “gódemi” e intrigava a jovem, que ficou sabendo pelo
seu pai, que se tratava de referência aos sofrimentos pelos quais
passou na Guerra de Secessão nos EUA, uma corruptela de God damn
it!, (algo como ‘maldição!’, em inglês). Sua ascendência, além da
origem americana, contava também com indígenas americanos da
tribo Cherokee, do lado paterno e imigrantes ultracatólicos por parte
de mãe, uma credencial que conferiu um sotaque paulistano
Foto: 2 - Rita Lee com a bandeira da cidade marcante e um olhar de cronista da Paulicéia, uma legítima “mina de
de São Paulo, prestando homenagem.
Sampa” em uma de suas letras inspirada em Adoniran Barbosa e que
remeteu ao apelido dado em 1978 por Caetano Veloso e que também reverenciava a cantora
como sua “mais perfeita tradução”, deixando claro que a cidade se revelava como mistério em
todas suas contradições e contrastes que atordoam quem aqui chega desavisado.
São Paulo foi a cidade em que Rita viveu durante toda sua vida, teve até mesmo a honra de ser
considerada um de seus símbolos mais emblemáticos. A paulistana que nasceu na Vila Mariana,
foi cronista atenta aos segredos, mistérios e contradições da cidade. Ela até mesmo registrou
com sua irreverência típica, o sotaque que lhe era característico no
título de uma de suas canções: “Orra meu”, lançada em 1980.

Caetano Veloso, na letra de “Sampa” conseguiu descrever muitos dos


dilemas e o choque que a metrópole causa a quem vem atrás de
sonhos muitas vezes irrealizáveis e encara uma grandeza de concreto
que se expande vertiginosamente, um “mundaréu” que não para de
crescer e oprimir, erguendo e destruindo coisas belas. Além de tudo
isso, a indelével presença de “filas, vilas e favelas” e muita “grana”,
geralmente na mão de poucos em um cenário de fundo que pode ser
Foto: 3 - Infância na V. Mariana descrito como cinza, escuro, uma fusão da garoa e fumaça.

Na canção “Ritta Lee”, que foi gravada no segundo trabalho da banda Os Mutantes, o disco
lançado em 1969 “álbum – Mutantes” faz uma autorreferência irônica às jovens que se orientam
pelo objetivo de encontrar seu par para se casar, o que remete à antiga expressão que
pressiona a realidade habitacional profundamente crítica da cidade: “quem casa quer casa”. Na
voz de Arnaldo Baptista, a canção pode até se encaixar ao casamento dela própria com Arnaldo
e que durou nove anos, com final traumático para ambos e que significou também sua expulsão
da banda por não possuir o “calibre como instrumentista” necessário para acompanhar linha
progressiva-virtuose que seria seguida pela banda. A decisão foi recebida da seguinte forma,
conforme descrito no livro Rita Lee: uma
autobiografia, de 2016 “Uma escarrada na cara seria menos
humilhante. Em vez de me atirar de
Sua saída discreta não representou obstáculo à sua joelhos chorando e pedindo perdão por ter
nascido mulher, fiz a silenciosa elegante.
carreira ascendente de sucesso no cenário musical,
Me retirei da sala em clima dramático, fiz
ao contrário, motivou a criação de uma de suas a mala, peguei Danny (a cachorra) e
músicas de maior sucesso como veremos adiante. adiós."

Voltando à música sobre os caminhos para o casamento e a convencional constituição de


família após o ritual de casamento com véu e grinalda contrastava com os questionamentos da
juventude dos anos 60 à “caretice” que a instituição casamento representava. Com uma melodia
aparentemente simples e inocente, com referências
infantis, captamos a crítica aos exageros da busca que
pode levar uma eternidade. Como diz a canção em tom
desanimador: “Vinte anos, namorar talvez” a “mulher
infeliz, com mãos frias e vazias” pretende encontrar um
“par para amar” com “mãos que conversem com as
suas”. O final da letra descreve a “alegria” do casamento
Foto: 4 - Rita com Os Mutantes, foto como “noiva” com “véu, arroz e igreja a rodar” em um “dia azul” que é
para capa de disco.
cenário para a irônica “felicidade” que a beleza de amar
propicia neste propósito um tanto quanto vazio, sem sentido e baseado numa realidade
conservadora, tradicional.
Num salto para outro momento da artista, nos anos 90, encontramos sua parceria com outro
tradutor de São Paulo, Itamar Assumpção que era da Penha, zona leste da cidade. Ele nos
convida a conhecer a Região Metropolitana e seu ritmo frenético sempre característico. A
canção "Venha até São Paulo" fazia parte do álbum Bicho de 7 Cabeças – Vol. 01, lançado em
1993 pela gravadora Baratos Afins. Neste CD, a banda
“Venha até São Paulo relaxar, ficar relax
Tire um xerox, admire um triplex que acompanhou o músico era formada por mulheres
Venha até São Paulo viver à beira do stress e, entre elas, houve a participação mais que especial da
Fuligem, catarro, assaltos no dia dez” Rita Lee. Ambos, Rita e Itamar possuem sua trajetória
artística intimamente ligada a
São Paulo, sabem bem o desafio que representa encontrar um
momento “relax” e “viver à beira do stress” que representa enfrentar
seus problemas de crescimento contínuo e desordenado, a poluição,
os problemas respiratórios que ela causa à maioria de seus habitantes
amontoados. Há até uma alusão aos paulistanos como “sangue de
fumaça”, referindo-se ao perfil industrial e as chaminés que lançam
poluentes que até “apagam as estrelas”. Outra realidade difícil, a
violência a que ficavam sujeitos os trabalhadores que recebiam no dia
Foto: 5 - Rita e Itamar para a
10 de cada mês. gravação de "Venha até São Paulo"

O sotaque paulistano, marcado pela “fala cantada”, meio


“italianada”, na visão de Adoniran Barbosa, foi formado no cotidiano
de convivência em bairros centrais como o Bixiga, Brás, Cambuci,
Mooca, Liberdade e outros. A região contou desde sua origem com
a forte presença de imigrantes italianos e seus descendentes
nascidos no Brasil, mas também os portugueses, espanhóis que
conviviam com os negros nascidos aqui ou que migraram do
Foto: 6 Adoniran, um intérprete de
São Paulo e o sotaque da Babel interior, somando-
“Vai e vem e tchan e tchum, êta sobe desce
se a eles os Gente do nordeste, do norte aqui no sudeste
migrantes nordestinos, do norte e dos estados Batalhando nesse mundaréu de mundo que só cresce
vizinhos, aqui no sudeste. Um “mosaico” Que só carece”
formado por grupos diversos e sua
convivência, até certo ponto, em sua descrição, em harmonia e muita interação. O ambiente de
contato frequente desta população se dava em comércios locais, feiras livres durante as
manhãs, bem como nas moradias coletivas, as “casas de aluguel”, ou “cortiços” que
representavam o reflexo de contraste entre uma parcela pequena “endinheirada” convivendo
com pessoas em busca de trabalho, que batalhavam “nestes bairros para resistir ao mundo “que
só carece” de melhores condições de vida.

Muita desilusão, sonhos não realizados representados por contradições explícitas, gritantes, e
que são associadas pelo autor a verdadeiras “quimeras”,
realidades híbridas e que chegam até a se negar. Outra
imagem que temos na letra, refere-se ao crescimento na
direção dos céus, associada à pretensão de alcançá-lo.
Superioridade com tom arrogante e o orgulho por ser
considerada a “locomotiva” do país, a máquina potente
Foto: 7 - Cortiços que inspiraram Saudosa Maloca com motor capaz de “carregar” o restante dos estados.
Essa situação determinada pelo poder
“É Torre de Babel, é inflação, é vendaval, é só papel
econômico é comparada a história da
Esperanças vão morrendo, é só quimera
E mais quimera e mais quimera Torre de Babel descrita pelo Livro
Gênesis que faz parte da Bíblia, no
É não e não e fel e fel, mas que escarcéu que a gente tá vivendo”
Antigo Testamento com um Deus
marcadamente severo que desorienta o povo e sua ambição com a destruição do símbolo de
unidade, e poder que ela representava e, além disso, “cria” diferentes idiomas para confundi-los
e que não mais se entendam e possam se articular.

Na sequência, o convite contraditório em essência, convoca e desestimula ao mesmo tempo,


revela lugares, peculiaridades tais como a presença religiosa e os “muitos santos espalhados
pelo estado”, a pressão onde “tem gente e mais gente cabe, invade”, o céu cinza, coberto por
“Garoa, neblina, sereno formando um véu”. As ameaças preparam o possível visitante “venha ver
o que é bom pra tosse”, tem “muito rock, mas também o rush” (em alusão ao movimento de
correr). A diversidade dos mais variados bairros cita até mesmo a “Liberdade é bairro, mas é
como Japão fosse”.
“Venha até São Paulo (venha ver o que é bom pra tosse)
Por fim, a letra cita Adoniran Venha até São Paulo, venha até São Paulo (Pule o rock and rush)
(São Paulo tem Socorro, tem Liberdade, Rita Lee)
Barbosa e a própria Rita Lee
Venha até São Paulo (São Paulo tem Rita Lee)
como monumentos, Venha até São Paulo (c'mon) (tem Bom Retiro) (tem Adoniran Barbosa)
referências paulistanas que (Tem Liberdade) Venha até São Paulo (tem São Bernardo?) (tem!)”
se misturam aos labirintos
dos bairros da cidade, suas mazelas e até as possíveis alegrias. Definitivamente, Rita Lee foi uma
das melhores cronistas de São Paulo, ao lado do próprio Itamar Assumpção e o “Charutinho”,
(apelido de João Rubinato, nome de Adoniran).

Depois destas canções que situam Rita Lee, as homenagens que recebeu, a parceria com Itamar
Assumpção, a fala “errada” estilo Adoniran e a origem paulistana que
nunca negou, tem sua expressividade e o sucesso que solidificou sendo
expoente e referência de uma geração inteira, lidou com a realidade
masculina e machista do ambiente musical, especialmente no rock e
soube “tirar de letra”, com letras mais que especiais. Alguns registros:

Ovelha Negra - Após ser expulsa de Os Mutantes de maneira tão assertiva


e que questionava seus objetivos e qualidade da sua expressão artística,
Rita seguiu uma jornada em que procurava
“Não adianta chamar
se encontrar e encontrar seu espaço. Quando alguém está perdido
Através desta canção, a cantora começou a Procurando se encontrar”
promover um “acerto de contas”, revelou
sentimentos de maneira “cifrada” (inclusive há registros de que seu pai ficou magoado porque
as pessoas imaginaram que era algum problema com a família, apesar de ter recebido apoio
desde o início). O disco alcançou uma marca expressiva de vendas: Fruto Proibido, lançado em
1975, vendeu 200 mil cópias e se tornou “clássico”. Uma letra que trazia a angústia e a sensação
de estar perdido diante de um estigma, de ser considerado inadequado, pois diferente, não
convencional. Lidar com o mundo, com o Brasil em regime de exceção, com escolhas e
responsabilidades, dilemas presentes e marcantes foram traduzidos em uma letra que transmite
superação.

Mania de Você - expressão feminina sobre a sexualidade, esta canção rompeu, de modo
revolucionário, o silêncio e o silêncio até então. A música composta por ela e Roberto de
Carvalho em 1979, também serviu como referência para tempos futuros em
ambiente com maior liberdade de expressão, em contraste com a realidade
de toda uma geração de jovens que estavam assumindo o mundo com todos
os paradigmas, modelos e convenções a quebrar ou se adaptar.

Navegando pelos trechos das músicas que compôs


ou lhe dedicaram, revela seu olhar atento aos dilemas de seu tempo.
Múltiplos e complexos desafios, maiores ainda para as mulheres, a
desigualdade que estigmatiza, “Mães de assassinas, filhas de Maria
sobretudo no campo Polícias femininas, nazijudias
“comportamento”. Neste Gatas gatunas, quengas no cio
Esposas drogadas, tadinhas, mal pagas
aspecto, Rita Lee representou
uma importante liderança, Toda mulher quer ser amada
uma referência que Toda mulher quer ser feliz
certamente a colocam em um Toda mulher se faz de coitada
Toda mulher é meio Leila Diniz”
plano semelhante ao de Gal Costa e Elza Soares.

Quanto à desigualdade econômica que se torna ainda mais aguda e aparente em uma cidade
como São Paulo, com muitas contradições e carências, “só carece” ao mesmo tempo em que “só
cresce”, a miséria, certamente não foi desconsiderada, ou negadas por ela. Mesmo dizendo em
“Orra meu” que seu negócio era menos papo e mais farra, para Santa Rita de Cássia, ser jovem,
mulher e artista lhe impôs um difícil processo de afirmação, buscar e encontrar alternativas a
partir de questionamentos, irreverência, muita criatividade e humor.

Um dos aspectos que responde sobre o tipo de liberdade que ela acredita e defende com
“padroeira” pode ser essencialmente a ambiência para expressão livre de preconceitos, mas uma
liberdade para expressão que não prescinde de intencionalidade e, portanto, compromisso com
“o que se diz”, “no que” acredita e, ao final, “em que mundo acredita”, que se traduzem em suas
músicas, livros e opiniões nos programas que apresentou e participou.

É possível afirmar que suas pautas sempre foram contraponto ao conservadorismo, ao que era
careta, brega no sentido de cafonice, tudo que se orienta para conservar a realidade desigual e
injusta, o status quo excludente e que tornam exclusivos os privilégios. Mesmo que não seja o
proposito deste texto realizar uma pesquisa exaustiva ou com parâmetros rigorosos de
investigação, há muitas evidências de sua postura de contrariedade frente a injustiças e
desigualdades sociais em manifestações registradas diversas entrevistas ou nas letras de suas
músicas.
Com a sociedade consternada, sentimento de pesar e mensagens de solidariedade aos
familiares, por ocasião da perda de Rita Lee, a declaração do partido Novo em relação à Rita Lee
causou controvérsia nas redes sociais. A mensagem foi criticada por associar a postura da
cantora de evitar dar declarações políticas ou apoiar candidatos com o conceito de liberdade.
Embora seja verdade que Rita Lee não costumava fazer declarações políticas ou apoiar
candidatos, é importante lembrar que a liberdade não se limita a isso. Associar a
postura da Padroeira da Liberdade à perspectiva de liberdade irrestrita ao capital e
negação do modelo político convencional em nome de uma postura nova, vinda
do “mercado” com uma pretensa eficiência que prescinde do Estado como
provedor de políticas públicas universais é um embuste, uma postura enganosa.

O “Novo”, como é chamado comumente, é composto por alguns “lobos” do mercado


que se vestem com uma “pele de cordeiro”, do tipo jaqueta ou colete de modelo
puffer e defendem a “eficiência limpinha, branca, masculina e hetero tops”. Quando
estão junto ao rebanho, ditam normas, exigem produtividade, precarização das relações de
trabalho, limites de gastos para o governo e especulam com investimentos de curto prazo,
voláteis, sem perspectiva de futuro a estruturar, apenas realização quase instantânea de seus
aportes. Não faz parte da agenda do capital financeiro a a pauta de melhorias nas condições de
vida da população, composta pelas ovelhas legítimas, além dos cordeiros verdadeiros que
crescem e se tornam carneiros. Tampouco há simpatia com melhoria nas relações capital x
trabalho, tendo em vista que defenderam entusiasticamente a reforma do trabalho que
precarizou ainda mais a relação que já era difícil e com muita atividade informal. Por todo
imediatismo com que orientam suas operações, os cabeças de planilha não fazem a menor ideia
, por exemplo, do que significa a proposta da OIT de que as empresas estruturem uma agenda
do Trabalho Decente, nem consideram efetivas, por exemplo a ESG que se anuncia como
critério de investimento.

Os lobos que se vestem como “ovelhas, tradicionais, convencionais, branquinhas”, fazem parte
da alcatéia chamada “faria limers”, seus integrantes são facilmente identificados, por seus
hábitos e adereços:

Jaquetas ou coletes puffer - principal peça dos uniformes imaginários da Faria Lima,
geralmente nas cores escuras, azuis ou pretas. Nosso clima menos rigoroso
para o inverno pode er gerado a adaptação “colete” que preserva o símbolo de
status, sem provocar tanto desconforto em nosso clima tropical. Os lobos não
se importam com a exposição que este tipo de jaqueta e/ ou colete dão,
revelando facilmente os membros da alcateia.

Camisas azuis (ou brancas), dizem que são aconselhados a utilizar cores que transmitam
calma, equilíbrio e ponderação, mesmo que seja um day trade alucinado,
operador que compra e vende ações freneticamente, acompanhando a
volatilidade diária – outro nome para especulação e oportunismo,
geralmente deixou de jogar videogame há alguns poucos anos;
Sapatênis, calçados que simbolizam a tentativa de fusão do aspecto clássico e tradicional
do sapato com o conforto e informalidade do tênis. Alguns analistas argumentam
que essa fusão é um fracasso, apesar de contar com grandes campanhas de
publicidade, lojas que os expõem com destaque em suas vitrines, artistas e
os chamados influenciadores que formam uma certa “aliança” em torno
deste calçado que é anunciado como item da moda, especialmente nos
últimos 20 anos. O argumento para este insucesso é que a fusão dos elementos a que se
propõe, não cumpre seu objetivo. Seu solado mais baixo e o emprego de material menos
confortável que os empregados em tênis, geram desconforto pela falta de ergonomia. Quanto
ao aspecto de formalidade, dizem, que não consegue convencer por seus traços e características
menos sofisticadas, materiais de qualidade inferior e a ausência de acabamento sofisticado dos
sapatos tradicionais.

A grande maioria dos lobos se orienta apenas em direção aos uivos dos líderes que decoraram
as práticas rigorosas de controles fiscais, preconizadas pela economia neoliberal. Não
questionam o modelo de análise e as práticas do passado com políticas econômicas sem casos
de sucesso em países com realidade comparável à do Brasil. Há poucos uivos, de economistas
que partem de outra linha de análise, por exemplo, que investiguem nossa história econômica e
o modelo produtivo em profundidade, ,seu perfil concentrador e que reproduz os fatores de
manutenção da desigualdade econômica com reflexos imediatos na realidade social, com
parâmetros de vulnerabilidade social cada vez mais elevados. Há estudos que apontam
caminhos alternativos aos modelos caducos, há poucas vozes que vão em direção contrastante
à do mercado, personificada na “estupidez travestida de linguajar pseudo técnico do atual
presidente do BC.

Curioso notar que o mercado financeiro que orbita em um bairro que chamam de “Condado” e
tem como avenida principal a Faria Lima, versão paulistana da “Wall Street” (Rua da Parede, em
tradução livre). Seu nome é referência a um ex prefeito conhecido por ser planejador, pensar no
longo prazo: José Vicente Faria Lima. Depois de uma carreira notável na aviação militar,
alcançando a patente de Brigadeiro do Ar, demonstrou empreendedorismo ao transformar a
Vasp em uma das melhores empresas de aviação do
país e ao promover uma administração exemplar como
secretário de Estado. Como prefeito de São Paulo, sua
gestão foi marcada por um grande volume de obras
que alteraram a paisagem urbana da cidade, incluindo a
construção das marginais Tietê e Pinheiros, viadutos e
avenidas importantes. Sua eficiência administrativa o
tornou uma das maiores forças políticas do Estado, mas
infelizmente faleceu antes das eleições que pretendia
Foto: 8 - Condado Faria Lima
concorrer.
Conforme revelado pelo Padre Júlio Lancelotti, Rita avaliava
sua obra como uma iniciativa louvável e, inclusive, apoiou
o trabalho que ele desenvolve pelos mais carentes, doando
suas roupas para a obra social. A notícia confirmou o
equívoco em associar apressadamente sua postura com a
de isenção ou que não representa compromisso e
posicionamento diante das injustiças sociais causadas pela
desigualdade econômica.

Liberdade é um conceito complexo e multifacetado que


abrange diversas esferas da vida, incluindo a liberdade de
expressão e a liberdade de escolha. A liberdade individual
é uma das bases da democracia e deve ser respeitada e
protegida. A postura de Rita Lee em relação à política não
significa que ela não se importasse com as questões
Figura 1 - Carta de Apoio à obra social do políticas e sociais de sua época. É possível expressar suas
Padre Júlio
opiniões de várias maneiras, inclusive por meio da arte.

A declaração do partido Novo sobre a morte de Rita Lee pareceu simplificar demais o conceito
de liberdade ao associá-lo apenas à liberdade de escolha pessoal. É importante lembrar que a
liberdade também está ligada à igualdade de oportunidades e à justiça social.

Entre os lobos do Novo e a Ovelha Negra mutante, há muito mais inovação apresentada pela
paulistana legítima, “sangue de fumaça”. Falar sobre afeto, costumes e sexualidade não foi
simples para ela. Cantou outras antes dela, Pagu, Leila Diniz e Elis, lançou “perfume e anunciou
um tempo mais compreensivo com mulheres em uma banheira de espuma. Há muito mais valor
contido nessa trajetória do irá supor qualquer “faria limer” e um mundo que não é mais aquele
dos anos 70.

Projetos que se apresentam “diferente, top, e moderno”, mas apontam caminhos intransigentes
em relação à fé cega na eficiência, que para eles é uma espécie de “poder divino” do mercado
revelam uma caretice, um discurso velho que não se sustenta. Desconsidera contrapontos,
subverte fatos ao esconder o oportunismo dos “players” que operam nosso modelo econômico
e recorrem ao Estado em qualquer período de crise econômica e orientam suas operações
apenas em direção ao lucro imediato, a qualquer preço sem perspectivas
inclusivas e mais sólidas para o “rebanho todos” no futuro.

A transformação da nossa realidade econômica precisa de um


olhar para o futuro, considerando uma realidade econômica mais inclusiva e
com menos desigualdade. Deve partir de planejamento estratégico e
direcionamento estruturante do setor produtivo que analise o contexto da
economia global. Necessitam de estudos e investimentos em pesquisa e
desenvolvimento de eixos estratégicos, de longo prazo e orientados para a construção de
oportunidades que um modelo econômico menos dependente da exportação de insumos
apenas.
É urgente repensarmos a economia brasileira com a mesma criatividade e irreverência que Rita
Lee transmitiu para sua legião de fãs, desenvolver o mesmo olhar solidário de quem admira o
desapego e a necessidade de acolhimento que nossos irmãos carecem ao apoiarmos causas
humanitárias:

Que país queremos, o de lobos ou o de ovelhas contestadoras? Podemos conviver com


pessoas passando fome enquanto há orgulho em se anunciar como “agro”, com perfil
preponderantemente subordinado à exportação de soja, uma monocultura que impede a
diversidade na produção de alimentos em grandes extensões de terra?
Exportar commodities, sem valor agregado, interessa a quem? Exportar matérias primas
para outras indústrias operarem com mais ganhos em processo produtivo fora do Brasil traz
benefícios para o país?
Devemos esperar que apenas o Estado ou alguns poucos cidadãos apoiem o trabalho da
igreja liderado pelo Padre Júlio Lancelotti?

Poderia ser a função social das companhias, com lideranças assumindo uma pauta de
desenvolvimento social, orientada por uma gestão socialmente responsável.
Quando os lobos resolveram entrar no jogo político, o que se viu foi a aplicação
de um modelo mais radical da velha política, negando debates mais amplos e
inclusivos, iludindo as outras ovelhas em nome de falso ambiente favorável às
oportunidades, bastando esforço e mérito. Um artifício ilusório, “propaganda falsa”
reproduzindo e reforçando precariedade nas relações de trabalho, concentração de
riquezas e um modelo econômico excludente, que se orienta pelo capitalismo financeiro de
resultados voláteis.

A cultura e a felicidade que ela pode proporcionar, não é um indicador considerado pelo
mercado, quando muito, as empresas levam em consideração a promoção de impactos sociais
positivos e com práticas bastante tímidas, contidas. As iniciativas de incentivo à cultura por
empresas são em sua grande maioria associadas a patrocínios e incentivos de projetos já
consagrados e objetivos comerciais, de marketing.

A liberdade que a padroeira sempre defendeu, permite todas as expressões em uma cultura
diversa, livre de preconceitos e estigmatizações. Rita construiu caminhos e deixou exemplos.
Cantora, compositora, multi-instrumentista, a artista feminina que mais vendeu discos no país,
55 milhões de cópias. Impressionante para quem deu de ombros por supostamente não ser
“virtuose”. “Tava nem aí” para opiniões de “mundo melhor”, se levasse em conta os julgamentos
dos outros, talvez não tivesse alcançado o sucesso e, com sua graça, feito tanta gente feliz, sem
querer levar vantagem em tudo. Para ela, as roupas que doou poderiam ajudar quem mais
necessitava. Não se apegou a status, “trajes pop star consagrada”. Maravilhosa também foi que
o Padre Júlio não vendeu para arrecadar dinheiro. Quem disse que precisa ser endinheirado
para ter o privilégio de vestir a roupa da Rita Lee?

Provavelmente ela preferiria isso mesmo e acharia a opinião do Novo e a galera do


“condado” com suas “jaquetas pluff” e “sapatênis”, “nada a ver”. Gentes caretas, cafonas.
Diria: “Orra meu, nada a ver essa galera insensível, com a minha liberdade, me deixa em
paz”, e talvez lembrasse das presas que a paparicaram, quando esteve na prisão.
Esse é meu agradecimento à nossa Ovelha Negra por sua trajetória de contestação, seu exemplo de irreverência
que estimulou e ainda estimulará muita gente a se expressar livremente, mas sem pisar na bola “meu”.
Maurício Mirra – 17/05/2023 .

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