AVANT-PREMIÊRE

Fundomilionário já terá cumprido o seu papel, afirma Bru-

APECEmergencial permite ao gover-
no federal a utilização de recursos do
Fundo Setorial do Audiovisual(FSA)pa-
ra o pagamento de dívida pública. "O go-
verno Bolsonaro descobriu como surru-
piar fundos como o do audiovisual,
abastecido pelo próprio setor com cerca
de R$1,5 bilhão anuais",diz Douglas
Duarte, da diretoria da Associaçãodas
Produtoras Independentes do Audiovi-
sual. Segundo o produtor, a Ancine tem
divulgado informações questionadas
pelo Tribunal de Contas da União e os re-
cw-sosliberados nos últimos dois anos
destinaram-se a projetos selecionados
por governos anteriores. "O audiovisual
brasileiro estava sendo destruído e agora
está pronto para ser confiscado."
• Manifestopeloteatro
AAncine afirma ao Valor que, no ano
passado, foram injetados mais de R$408
milhões no setor. Cercade 2 mil projetos,
diz, encontram-se em execução e movi-
mentam mais de R$2,2 bilhões. O órgão
federal responsável pelo audiovisual
afirma ainda que a política de financia-
mento segue mantida e que "um déficit
bilionário" do FSAfoi sanado, a fim de
preservar a aplicação de recursos e suas
finalidades legais.
Filmesna fila
O brasileiro "LucicreideVaipra Marte"
é um dos raros filmesa estrear nos cine-
mas. Por conta do público irrisório, pou-
cos títulos têm se arriscado no mercado
de salas. Sechegar a 20 mil espectadores,
no Wainer, diretor da Downtown Filmes.
"Sónão queria que o filme passasse des-
percebido neste momento de terra a1Ta-
sada",diz. Wainer possui 12 títulos à es-
pera de um melhor cenário. "Irei aguar-
dar até julho ou agosto, mas, se a situa-
ção não melhorar, vamos lançar direta-
mente nas plataformas digitais."
Versosdo cotidiano
lgorPireslança,em abril,seu quarto li-
vroelepoesias,"Todasas Coisasque EuTe
Escreve1iaSePudesse",em que aborda rela-
cionamentos,racismoe o momento atual.
"Solidão,oscilaçãono humor, caos político
e a incertezaquanto ao futuro impactaram
diretamente a minha escrita",diz.
Amanhã,DiaInternacionaldo Teatro,
um gmpo de editoras lança um manifesto
em defesada literatura dramática.Tempo-
ral,Javali,34,Grua e Hucitecdestacam a
importância dos livrosde dramaturgia e
sua ausênciaem espaçosliterários."Para
além de Shakespearee das tragédiasgre-
gas, há uma relevantedramaturgia con-
temporânea surgindo e sendo publicada", Semanade Arte Modernade 1922 em debate
diz AssisBenevenuto,daJavali. O Museu de Arte Contemporânea da fazer uma revisãocrítica da semana que
Universidade de SãoPaulo (MACUSP),a marca o início do modernismo no Brasil.
Viola caipira Pinacoteca de São Paulo e o Instituto Mo- Na segunda-feira ( dia 29), às 18h, o
Comrepertó1iodo disco"Arredores",o reira Sallespromovem o ciclo "1922: Mo- primeiro encontro, "Histórias ela Se-
violeiro,cantor e compositorüsni Ribeiro dernismos em Debate" em encontros mana: O que É Preciso Rever", tem
fazshowson-line entre 6 e 25 de abril por on-line e mensais até dezembro. participações de Aracy Amaral, Frede-
meio de canaisdo YouTubee do Facebook. Com participação de 41 convidados, o rico Coelho, Regina Teixeira de Barros,
evento transmitido pelos canais de You- Ana Paula Cavalcanti Simioni e lvana
JoãoBernardoCaldeira, para o Valor Tubee Facebook das instituições busca Ferrante Rebello. ■

BJ&Destaques
ColunaSocialPandemiaexpôsa
opçãodo Brasilpeloatraso.Por
Joséde SouzaMartins.Pág.4
GPSUmpaísescancaradoao
capitalismodevigilância.Por
Maria CristinaFernandes.Pág.6
Reportagemde capaSinaisde
pressãoem preçosao consumidor
despertamtemor deumaalta
sustentadadosjuros.Textode
DiegoViana.Concepçãovisualda
capade Beto Nejme.Pág.8
EntrevistaJoséJúlio Senna,
AMesacomo ValorNapandemia,paróquiado padreJúlioLancellotti do Ibre, vê perspectivasruins
vê quintuplicaro númerode pessoasem buscaderefeições.Pág.14 paraa inflação.Pág.12
VinhoOarsenalvitícolada Itália
nãose resumeàsuvasnebbioloe
sangiovese,
e muitasvariedades
nãotinham o destaquemerecido.
PorJorge Lucki.Pág.19
Moda BrunelloCucinelli,o "rei da
casimira",pregaa necessidade de
um novocontrato socialentreo
homeme a natureza.Pág.20
Sociedade
"Avacinação
iniciouuma
guerrageopolítica",
dizBoaventura
deSousaSantos.Pág.23
HistóriaSérie,livro e debate
marcam200 anosdo fim da
Inquisição.Pág.24
Cinema"Meu Pai"buscalevarao
espectadora sensaçãoda
demência.Pág.26
Literatura"CromwelIteria
dificuldadesem entendero
Brexit",diz Hilary Mantel.Pág.30
JanelaCrítica"LoversRock"
retrata momentodefelicidade.
Por PedroButcher.Pág.32
ÉTudoVerdadeOscarreafinma
PorAmir Labaki.Pág.33
renovação.
OutrosEscritosMichel Laub
escrevesobreTatianaSalem
Levye NatérciaPontes.Pág.34

2 1 Valor I Sexta-feira, 26 de março de 2021

COLUNA
SOCIAL
-----------------------------'CARVê
A opção
peloatraso
A pandemiadesconstruiu
e expôscontradições
do
modelodecapitalismo
subdesenvolvido
quehá
meioséculonospuxa
parabaixo.PorJosé de
SouzaMartins
A pandemia não é a causa primeira
ela orientação retrógrada que define a
situação brasileira atual. Ela apenas
agravou-lhe as tendências ao
clesfazimento ela ordem e à
institucionalização ela crise.
Sobretudo no retorno do Brasil à
condição ele país atrasado, com
espasmos ele economia moderna.
Fatores e interesses opostos ao
desenvolvimento aqui ele um
capitalismo possível e diferente já
vinham se manifestando há tempos.
Desde os governos petistas, com uma
vulnerabilidade clara aos ímpetos do
capitalismo elo crescimento econômico
e não o do desenvolvimento econômico
com clesenvolvi.mento social.
Mas isso era coisa nascida com o
golpe militar ele 1964, com vários e
crescentes clesclobramentos para além
ela economia, na política, na
socieclacle, na cultura. Ao que as
esquerdas não conseguiram antepor
um projeto democrático de nação.
Não é de hoje que diferentes grupos,
organizações, entidades e até igrejas
atuam claramente em defesa ele uma
política do atraso econômico, político,
social e cultural. Se ficar lá atrás, o
Brasil que não pensa criticamente nem
José de Souza Martins é sociólogo. Pro- pensa com sua própria cabeça não
fessor Emérito da Faculdade de Filosofia incomodará ninguém. São grupos ele
da USP.Simon Bolivar Professor (Cam- ativistas que, pelos valores e pelas
bridge, 1993-94). Pesquisador Emérito concepções antimodernas que os
do CNPq.Membro da Academia Paulista orientam, perfilham a opção
de Letras. Entre outros livros,é autor de preferencial pelo atraso.
"Moleque de Fábrica" (Ateliê). Importante para desvendara projeto
4 1 Valor I Sexta-feira,26 de março de 2021
elo atraso, de Bolsonaro e de seu governo,
é a en !:revistada jornalista A.manda Klein
com o general Hamilton Mourão no
programa "É Notícia", da RedeTV!,no dia
29 de outubro de 2018, dia seguinte ao
ela eleição. Sobretudo por contrastar
com aquilo que o governo acabou
fazendo, cujas premissas ideológicas ali
expostas já indicavam o i1Tealismo
messiânico da suposição de que o
mundo caminhava para aquilo que
Bolsonaro era e pensava.
As eleições mostraram que as
esquerdas estavam profundamente
despreparadas para compreender
dialeticamente o que Bolsonaro e
Mourão representavam: uma direita
peculiar e clespreparada. Por isso,
capaz de agregar os setores residuais e
autoritários da classe média e dar-lhes
uma bandeira falsa, mas convincente.
A direita combateu e venceu uma
esquerda que não existia porque,
democrática, era outra coisa. A esquerda
combateu uma direita que tampouco
existia porque direita de mero
condomínio político retrógrado e ele
ajuntamento de resíduos ideológicos
desencontrados. Perdeu a oportunidade
de questioná-la na ideologia servil do
atraso e do projeto implícito de
retrocesso do país. E batê-la na eleição.
A inesperada e mortal irrupção da
pandemia expôs os efeitos das
contradições do modelo de capitalismo
subdesenvolvido que há mais de meio
século nos puxa para baixo. Um
subcapitalismo feito para sustentara
neocolonialismo que nos torna uma
nação subalterna.
Minorias obscurantistas, com a
irresistível ascensão de Bolsonaro e do
bolsonarismo, ganharam o
protagonismo público que nunca
tiveram, quando muito reduzidas à
insuficiente expressão eleitoral e nem
a isso. O que se tornou possível porque
os gestores e manipuladores das redes
sociais descobriram neles a força
política da nulidade, deram-lhes voz e
expressão na ideologia da raiva, do
ressentimento e ela revanche.
Por esses meios, o poder tem sido
historicamente assediado por aqueles
que não têm o direito de nele influir e
de orientá-lo em decisões que afetam
a vida de todos. O atual presidente
parece atrair, naturalmente, pessoas
que se identificam com suas ideias
limitadas a um horizonte imediatista
e eleitoreiro, o do agora e só seu, e não
o do sempre e de todos.
A política do atraso produziria um
de seus mais perversos efeitos no
governo de condomínio familiai do
poder. Um modo arcaico e
antidemocrático de praticar o
presidencialismo. Expressão de
fragilidade política de quem desse
modo exerce a Presidência. E desse
modo molesta os direitos de todos.
O presidente da República age, o
tempo todo, como se sua eleição não
fosse para presidente, mas para ser
apenas candidato à renovação do
mandato ainda não exercido em nome
da competência ainda não
demonstrada. Nisso já fica evidente
uma primeira indicação de uma opção
política de extenso e diversificado
grupo por um projeto de nação que é o
do Brasil atrasado porque nega o que é
próprio da modernidade democrática.
É o indisfarçável projeto de voltar ao
que há de mais retrógrado nas
tradições brasileiras.
O governo atual conduz o Brasil a uma
situação em que não temos nem a ordem
nem o progresso proclamados na
próprio bandeira nacional. O símbolo
do dedo no gatilho que identificou a
proposta eleitoral de quem seria o
vencedor do pleito de 2018 substituiu-os
na mentalidade política.Já dizia tudo.
Era o anúncio de um projeto de nação
cuja vida seria regulada pelo primado
diabólico da morte. E tem sido. ■
GPS
primeiro e-mail com pedido
Umpaís
escancarado
O de entrevista para este texto
foi enviado às 9h 15 da manhã
da segunda-feira 15 de
março. Antesdas lüh, chegou
mensagem de uma assessoria
sugerindo um especialistaem
aocapitalismo vazamento de dados. Naquela tarde,
ainda entrou na caixapostal uma
newsletter sobre ciiptomanias. As
devigilância mensagens se sucederam até o dia em
que esta coluna começou a ser escrita,
na sexta-feira19.Chegou de tudo. Das
últin1assobre evoluçãode pagamentos
Apesarde boasleis, digitais à oferta de conteúdo
compartilhado sob medidas para
Brasiltem autarquiade públicos específicos,passando por
proteçãode dadossob consultores de produtos algorítmicos
comandomilitar,alémde para consumo digital e especialistasem
potencializar vendas no lnstagram.
submetidadiretamente à
A leitura de "AEra eloCapitalismo de
Vigilância-A.Lutapor Um Futuro
Presidência, e hospeda Humano na NovaFronteira do Poder",
dadosdeáreas de Shoshana Zuboff(Intrmseca,2021 ),
mal chegara ao fim e já se desdobrava
estratégicas nasnuvens em aulas práticas, na tela do
das'bigtechs'.PorMaria computador. A cada mensagem,
ressoavaa autora: "Esqueçao clichêque
CristinaFernandes, de afirma que, se é de graça, 'o produto é
SãoPaulo você'.Vocênão é o produto; vocêé a
carcaça abandonada". O produto são os
dados fornecidos no uso do e-mail, das
ferramentas de busca e das redes
sociais,que Shoshana chama de
"superávitcomportamental" extraído
de sua viela.Evocê?Ajulgar pela
autora, não passa de um ser que paga
para ser dominado.
A percepção de que mensagens,
buscas no Google,compras, além de
postagens e curtidas em redes sociais
são vigiadasde perto e geram um
banco de dados comportamentais
capazes de influenciar o consumo não é
nova.O livro avança em mostrar como,
faceàs reações públicas, a indústria da
vigilânciatem sido capaz de contornar
as limitações para continuar a
bisbilhotar a vida alheia e fazer(muito)
dinheiro com isso.Foio que aconteceu,
por exemplo, com o GoogleStreet View,
que usava canos de anônimos, de
taxistasou motoristas de aplicativos
para capturar imagens das ruas, casase
prédios. Lançadoem 2007, o serviçofoi
MariaCristinaFernandes,jornalistado banido em um grande número de
Valor,escrevenesteespaçoquinzenalmentepaíses depois da reação de pessoas que
se reconheceram nas imagens. A
E-mail:111cristina.fernandes@valor.com.br
empresa desculpou-se,borrou o rosto
6 1 Valor I Sexta-feira.26demarçode2021
das pessoas,mas valeu-sedo banco de
imagens reunidas como plataforma
para mui tos outros produtos que se
valem do georreferenciamento.
A pressão das comunidades obrigou
os governos a se mexer para adotar
restrições e penalidades, mas não
impediu que, em 2016, um advogado
de NovaJerseyfossetirado da banheira
de sua casa para atender a campainha e
se deparasse com uma aglomeração de
adolescentes que, por dias a fio,
acamparam no gramado em frente à
sua casa e insistiram na existênciade
um Pokémon em seu quintal que
precisavaser resgatado. Ojogo
"Pokémon Go",que atraía anunciantes
levando seus usuários a procurar os
bonequinhos amarelos em pontos de
venda, havia sido lançado a partir da
base eledados do GoogleStreet View.
No mesmo ano, um casal ele
aposentados, no estado amelicano de
Illinois,precisou escolher pagar o
financiamento de seu carro usado ou
comprar remédios. O funcionário da
empresa de cobrança que os visitou
sensibilizou-see deu início a uma
campanha on-line para arrecadar
fundos, o que não te1iasido possívelse
a empresa empregasse os produtos ele
telemática criados a partir da sugestão
de um consultor do Googleque let:tinhasmiúdas que ninguém lê e em
simplesmente teriam desligado o cano cujo "aceito"todo mundo acaba
do casal inaclimplente.Pelomesmo clicando para conseguir ir adiante.
fluxo de algoritmos por onde trafega a Por mais que se coloquem limites,
telemática de vigilância flui também a estes sempre serão desafiados pela
reação solidária capaz de recompor a velocidadecom a qual a tecnologia
confiança entre as pessoas. avança.Não há como uma boa
No Brasil,a reação começou com o legislaçãoser efetiva,diz Gisele
MarcoCivilda Internet, em 2014, que, Beiguelman,professora da Faculdade
quatro anos depois, desdobrou-se na de Arquitetura e Urbanismo da USPe
LeiGeralde Proteção de Dados.A pesquisadora de arte digital, sem
legislaçãoé mais próxima das amparo além das fronteiras nacionais.
restrições impostas pela União Seum único país aperta o cerco,
Europeia do que das frouxas condutas explica,o se1viçovai ser hospedado em
americanas na matéria. Determina que outro lugar onde o controle seja mais
as em presas só podem coletar os dados frouxo.Foio que aconteceu, por
estritamente necessálios para realizar exemplo, com a pornografia. A
seu serviço.Ébaseada no princípio de legislaçãoexistente tampouco in1pediu
que, para ir além, precisa do seu o roubo de 223 milhões de CPFs,em
consentimento, explicaFláviaLefevre, janeiro deste ano, o maior da histólia. A
advogada especialistaem direito LeiGeralde Proteção de Dados,que
digital, integrante eloComitê Gestor da entrou em vigor em setembro de 2020,
Internet até o ano passado e hoje restringe a coleta de novosdados pelas
agregada à CoalizãoDireitosna Rede.O empresas, mas a base anteriormente
consentimento vai desde o aplicativo existente dificilmente sairá elainternet.
de ioga que pede sua localizaçãopara Sea legislaçãofosseefetiva,talvezo
vender o dado, até os contratos em presidente Jair Bolsonaro,que se valeu

do impulsionamento de conteúdos
falsos, sem limite, nas redes sociais, não
tivesse sido eleito. Não estranha,
portanto, que a proteção de dados
tenha sido negligenciada em seu
governo. Seu antecessor preparou o
terreno que o bolsonarismo salgou. O
ex-presidente Michel Temer vetou a
criação de uma agência reguladora
independente e colocou Autoridade
Nacional de Proteção de Dados no
organograma da Presidência da
República, na mesma estrutura onde
está a Agência Brasileira de Inteligência
e o Gabinete de Segurança
Institucional. "Foi como colocar a
raposa no galinheiro", diz Flávia
Lefevre, uma vez que o poder
público é o maior coletor de dados
pessoais e sensíveis.
E,como não poderia deixar de ser, o
órgão foi loteado entre militares. O
presidente, Waldemar Ortunho Jr., é
coronel reformado do Exército. Dois
dos quatro diretores também são
egressos da caserna: o tenente-coronel
Arthur Pereira Sabbat e o engenheiro
militarjoacil Basílio Rael. Até agora sua
atuação tem se limitado a solicitar
informações à Polícia Federal,
como no caso do vazamento de dados,
e a soltar instruções normativas. Os
conflitos continuam a ser dirimidos na
Secretaria Nacional de Defesa do
Consumidor e no Conselho
Administrativo de Defesa Econômica.
A Autoridade Nacional de Proteção
eleDados também parece alijada da
elaboração elo edital elo leilão ela
tecnologia SG. Hoje entregue ao
Ministé1io elas Comunicações, o edital
elevesair ainda neste semestre. Por mais
dúvidas que ainda suscite, parece estar
descartada a exclusão da Huawei como
fornecedora. Menos pelas convicções
que inspiram este governo elo que por
pressões empresariais contrárias a uma
elevação elecustos clecoil'ente ele um
fornecimento ela infraestrutura elo SG
que exclua a China.
O governo brasileiro afirma ser
capaz de manter sob seu controle a
rede para tráfego de informações
sensíveis, mas um especialista na área
diz que o país não tem meios para
construir esta rede. O máximo que se
fez no tema foi desenvolvido no centro
de pesquisa em criptografia, da Abin.
Boa tecnologia, mas facilmente
clecoclificávelpor qualquer um e não
apenas pelos chineses. Desde que
Edward Snowclen revelou os métodos
ela agência americana NSA,na verdade,
ficou difícil acreditar que é o uso da
tecnologia chinesa que vulnerabiliza as
redes elecomunicação.
No livro, Shoshana Zuboff se limita a
dizer que, se no Ocidente o Estado
trabalha com e por intermédio elos
capitalistas de vigilância para construir
suas redes de infonnação, na China a
competição pelo controle opõe Estado
e capitalistas de vigilância. Se com a
posse de Joe Biclenjá houve sinalização
ele uma regulamentação mais agressiva
em relação a Amazon, Google,
Facebook e Apple, também é verdade
que a mudança ele postura não vai
alterar a desvantagem do país em
relação ao avanço chinês.
Os americanos acreditaram que o SG
era apenas um "pipeline" mais rápido.
O resultado é que hoje os chineses têm
suas próprias empresas na
concorrência com as "big techs",
enquanto aos EUAnão têm uma única
fabricante de equipamentos SG, que
são todos, parcial ou inteiramente,
produzidos na China e se revelaram
muito mais do que "canos" para dados.
O Brasil não se contenta em observar
a disputa desaparelhado para nela se
posicionar, como abre as portas para o
que Sergio Amadeu chama ele
"neocolonialismo digital''. Professor ela
UFABCe ex-presidente do Instituto
Nacional de Tecnologia da Informação,
Amadeu cita estudos segundo os quais
70%elas universidades públicas, entre
as quais a mais rica delas, a USP,e
secretarias estaduais eleeducação no
Brasil hospedam parte considerável ele
seus dados em grandes plataformas
como Google, Microsoft e Amazon.
Não apenas a produção ele
conhecimento está hospedada nos
Estados Unidos como o maior banco ele
dados sobre os jovens brasileiros
também. Em 2019, enquanto a nação
estava estigmatizada pelo
cliversionismo do então titular elo
Ministério ela Educação, Abraham
Weintraub entregava para a Microsoft
toda a operação do Sisu, o sistema de
seleção unificada para as universidades
brasileiras, com notas e dados
sócio-econômicos e de desempenho
escolar ele 1,7 milhão eleestudantes. A
justificativa foi a ele que a empresa
oferecia capacidade e bom preço para
supmtar o acesso ele7 mil inscritos.
A renúncia à autonomia se estende,
na verdade, a toda a gestão de políticas
públicas no país. Em maio elo ano
passado, conta Amadeu, o Ministério
de Ciência, Tecnologia, Inovações e
Comunicações assinou com a
americana Cisco acordo para o
desenvolvimento ele plataforma digital
com este fim. Difícil concorrer com a
Cisco, especialmente quando a Pasta,
em vez eleinvestir no desenvolvimento
de plataformas digitais em parcerias
com cientistas eledados brasileiros,
preferiu destinar R$6 milhões para a
pesquisa elevermífugos no tratamento
preventivo e inútil ela covicl-19.
Se você gostou deste texto, e puder
ignorar a propaganda de marketing
digital que receberá, compartilhe. ■
Sexta-feira, 26 de março de 2021 1 Valor 1 7
 REPORTAGEM
DECAPA
Sinaisde pressãoem preçosaoconsumidor despertam
temorde umaalta sustentadadosjurosao redordo
mundo.PorDiegoViana,parao Valor,deSãoPaulo
aassom
epois de seis anos, a alta da taxa
D básica de juros, decidida pelo
Banco Central na semana passa-
da, veio mais forte cio que o mer-
cado esperava. Pressionado por uma infla-
ção que chegou a 5%, aproximando-se do
teto da meta, o Comitê de Política Monetá-
ria já anuncia que o aperto monetário vai
prosseguir nas próximas reuniões.
As más notícias domésticas, no entanto,
não são a única fonte da alta dos juros no Bra-
sil:com bons números da recuperação econó-
mica nos Estados Unidos, o avanço da vacina-
ção no páts de Joe Biden e a sanção do pacote
de auxílio de US$ 1,9 trilhão, investidores co-
meçam a exigir um retomo maior dos títulos
americanos, suscitando especulações sobre o
retomo da inflação também lá.
"O pacote e a vacinação melhoram a pers-
pectiva de crescimento americano. Os juros
sobem porque há um sinal de que os capitais
vão tomar o rumo dos EUA.Com isso, investi-
dores passam a ver um país como o Brasil co-
mo mais arriscado", afirma o economista José
Júlio Senna, chefe do Centr·o de Estudos Mo-
8 1 Valor I Sexta-feira,26 de março de 2021
netários do FGV/Ibre[veja entrevista à pág.
12). "Aalta ciosjuros lá fora mexe com a per-
cepção de risco-país, e isso atrapalha o nosso
nível de juros, as negociações das bolsas, o
câmbio. A atratividade maior leva os fluxos de
capitais a migrar para lá, em detrimento de
mercados emergentes, Brasil em particular."
As especulações sobre inflação nos EUA
são resultado de uma série de boas notícias,
mas administrar a política monetária du-
rante a recuperação económica pós-covid
exigirá atenções especiais do Federal Reser-
ve, banco central americano. Foi o que dei-
xou claro o presidente do Fed, Jerome
Powell, na entrevista coletiva concedida se-
mana passada, após a reunião que manteve
a taxa de juros do país praticamente nula.
Powell reafirmou que não há planos de
subir os juros neste ano, nem reduzir as
compras mensais de ativos. Ao mesmo
tempo, reconheceu que a inflação anual
deve chegar a 2,4% durante alguns meses
do ano, mas declarou que só haverá reação
do Fed quando os índices estiverem nesse
patamar por um longo período.
Um dos principais elementos de fundo
para as declarações de Powell é um episó-
dio ocorrido em maio de 2013, que resul-
tou de uma falha de comunicação do então
presidente do Fecl, Ben Bernanke. Na oca-
sião, Bernanke deixou entender que come-
çaria a retirar estímulos monetários e a ele-
var a taxa de juros, resultando no "taper
tantrum" (que se traduz desajeitadamente
como "acesso de raiva pela redução das
compras do Fed"), uma rápida e violenta
realocação de recursos.
O resultado foi uma súbita queda do mer-
cado de ações que atingiu em cheio os países
emergentes, entre eles o Brasil:nos meses se-
guintes, o real teve uma depreciação de 12%.
Se os mercados interpretarem os movi-
mentos do Fed e os dados da economia
americana como sinais de que em breve
os juros básicos vão subir na maior
economia do planeta, pode ocorrer um
"taper tantrum 2.0", e os emergentes po-
dem ser afetados mais uma vez, alerta o
economista americano Kenneth Rogoff, da
Universidade Harvard.
 "Sem sombra de dúvida, o maior risco
macroeconômico da economia global hoje
é uma alta considerável e sustentada das
taxas de juros reais no mundo. Teria efeitos
de choque nos mercados de ativos ao redor
do planeta", afirma.
Essa é uma razão pela qual o Fed repetida-
mente lança sinais de que não pretende elevar
os juros de curto prazo. Ainda assim, o merca-
do já começa a exigir retornos mais altos so-
bre títulos ele 1Oe 30 anos. A curva elejuros na
maior economia cio planeta se toma mais in-
clinada, indicando que os recursos abrigados
no Tesouro americano começam a ser realoca-
dos para investimentos ele maior risco. Ao
mesmo tempo, emergem especulações sobre
uma alta da inflação neste ano.
Por enquanto, os retornos dos títulos au-
mentaram apenas ligeiramente. Para o ti-
tulo ele 30 anos, passou ele 2,3% no começo
ele março, pela primeira vez desde o come-
ço ela pandemia. Já o ele 1O anos, referência
cios mercados, atingiu 1,6%. São números
semelhantes aos ele fevereiro do ano passa-
do, antes que a pandemia os derrubasse.
Mas ainda estão bem aquém do nível de
2018, ele 3%. Até o momento, portanto, só
houve uma recuperação em números que
estavam excepcionalmente baixos.
Os dados que começam a sair neste ano,
porém, dão indício ele que daqui por diante
será diferente. Em fevereiro, o PIB america-
no chegou a 98,7% do pico do mesmo mês
cio ano passado. Com a vacina avançando
em ritmo mais intenso e os números ele in-
ternações caindo, as expectativas são ele
crescimento acima de 6% neste ano. Apesar
cio desemprego ainda alto, com 1O milhões
ele vagas de trabalho a menos cio que há um
ano, a disponibilidade para gastar cios con-
sumidores é calculada em US$ 1,5 trilhão.
Em fevereiro, a economia americana sornou
379 mil empregos, bem acima das proje-
ções cio mercado, que eram ele 200 mil.
O temor ele que a inflação subisse foi ex-
pressado pelo ex-secretário do Tesouro do
governo ele Bill Clinton Lawrence Summers.
Em artigo para o "Washington Post", Sum-
mers escreveu que o plano recém-aprovado
"pode provocar pressões inflacionárias ele
um tipo que não vemos há mais de uma ge- KennethRogoff:"o
ração, com consequências para o valor do maiorrisco
dólar e a estabilidade financeira". macroeconômico da
O economista Robert Barro, professor em economiaglobalhoje
Harvard, argumenta que os indicadores ele in- é umaalta
flação futura, a começar pelos retornos cios t:í- considerávele
tulos de longo prazo, já anunciam preços su- sustentadadastaicas
bindo acima ele 2%. Barro é cético quanto às dejurosreaisno
ferramentas cio Feclpara evitar que esse índice mundo"
cresça ainda mais rápido e teme a perda ele
creclibiliclacleela autoridade monetária.
Por um lado, as expectativas ele inflação
estão, ele fato, mais altas. Na medição que
compara o retomo dos t:ítulos de 10 anos à
cios t:ítulos protegidos pela inflação
( 10-year breakeven rate), chegou-se a 2,3%
no começo do mês. Em parte, trata-se de
uma recuperação da queda do começo do
ano passado, mas o atual valor é superior
aos 2, 16%ele 2018 e não foi atingido em ne-
nhum momento desde julho ele 2013.
Por outro lado, o núcleo ela inflação se-
gue teimosamente em tomo de 1,6%, dei-
xando espaço para subir antes que o Fed
entre em ação. Ademais, quanto mais lon-
Sexta-feira, 26 de março de 2021 1 Valor 1 9

AndréPerfeito: go o prazo, menor é a expectativa de infla-
"Quandosurgeuma ção, ficando nos 2% esperados após cinco
determinaçãoforte anos, aponta Senna.
do governo Rogoff também considera exagerada a
americanona direção perspectiva de aumento da inflação ameri-
do ativismofiscal,um cana. Segundo o economista, mesmo que
espaçoé aberto para pressões inflacionárias eventualmente se
queseinvistaem instalem, esse é um processo lento, uma
outrascoisas" vez que as expectativas estão ancoradas e o
aumento de preços é dependente do que
os agentes esperam. Hoje, a perspectiva de
inflação é tão baixa que há tempo de sobra
para bancos centrais agirem e evitarem o
descontrole dos preços.
Nem mesmo a perspectiva de uma expan-
são dos gastos do governo deve ser fonte de
aumento de preços, segundo Powell, que
chegou a dizer que "talvez tenha havido, no
passado, uma ligação entre os déficits orça-
mentários e a inflação, mas ultimamente es-
sa conexão realmente não tem aparecido".
A secretária do Tesouro,Janet Yellen,que
presidiu o Fed antes de Powell, deu declara-
ção semelhante: "Passei muitos anos estu-
dando a inflação e me preocupando com
ela. Posso afinnar que, se ela se materializar,
10 1 Valor I Sexta-feira, 26 de março de 2021
temos as ferramentas para lidar com ela".
De acordo com André Perfeito, economis-
ta-chefe da corretora Necton, desde 2008
existe uma expectativa de que o aumento da
oferta de moeda e o maior ativismo dos ban-
cos centrais, em todo o mundo, resultaria
em alta da inflação, mas até agora essa previ-
são não se concretizou. O motivo é que a po-
lítica estritamente monetária não foi incen-
tivo suficiente para investimentos no setor
produtivo, levando à recompra de ações pe-
las empresas e à valorização de ativos.
Previsões de uma alta da inflação e dos
juros nos EUAnão são a melhor explicação
para a alta dos títulos americanos, segun-
do Perfeito. "Para um gestor de ativos, a
chegada ele um plano de US$ 1,9 trilhão,
que é mais do que o PIBdo Brasil, sinaliza o
momento de vender parte do que está alo-
cado em títulos públicos, para aproveitar
os outros investimentos que virão", afirma.
Assim, ao contrário do que vinha aconte-
cendo ao longo ela última década, desta
vez o estímulo do governo é diretamente
injetado na economia real.
O resgate sancionado por Biden se soma
aos do ano passado, aprovados ainda no go-
verno de Donald Trump. Somados, os estí-
mulos já implementados ultrapassam US$3
trilhões. O atual, chamado "Plano de Resgate
Americano", envolve o pagamento direto à
população de US$1,4 mil e a extensão do se-
guro-desemprego, entre outras medidas.
A equipe do presidente democrata tam-
bém pretende apresentar um segundo pa-
cote, não mais de recuperação, e sim de fo-
mento a investimentos em infraestruh1ra.
Os pacotes trazem uma mudança de sinali-
zação que pode ter consequências para o
resto do mundo, inclusive o Brasil.
Segundo Perfeito, as apostas do mercado
até recentemente iam na direção de juros
que continuariam sempre a cair. "Mas agora
ficou evidente que não haverá mais cortes
elejuros", diz. Como resultado, os investido-
res passam a ver com mais simpatia os in-
vestimentos que trazem risco maior, parti-
cularmente no setor produtivo.
"Osjuros estão tão baixos hoje, em gran-
de medida, porque os capitais do mundo
todo correram para títulos amelicanos e
alemães. Com tanta incerteza econômica,
os investidores não sabiam o que fazer e es-
colheram deixar o dinheiro nos tíhilos, que
chegaram aos juros negativos", lembra Per-
feito. "Quando surge uma determinação
forte do governo americano na direção do
ativismo fiscal, como está acontecendo ago-
ra, um espaço é aberto para que se invista
em outras coisas. Como resultado, os preços
dos títulos caem e os juros sobem."
Em seguida, uma vez que os títulos mais
seguros pagam juros melhores, todo o
"complexo dos juros" também tende a su-
bir, diz Perfeito. Para que os investimentos
alocados em países emergentes, por exem-
plo, não sejam transferidos para os países ri-
cos, é preciso oferecer um retorno maior.
Parte da desvalo1ização do real ocorrida em
fevereiro se explica pela alta dos títulos
americanos. O mesmo ocorreu com o rublo
russo, o rand sul-africano e os pesos do Mé-
xico e da Colômbia, entre outros.
Para Rogoff, é verossímil que, nos próxi-
mos dois anos, as taxas de juros reais ao re-
dor cio mundo subam ISO pontos-base.
"Mas ainda não estamos livres da crise, en-
tão também é possível que eles comecem a
cair de novo, se, por exemplo, novas muta-
ções do vírus se revelarem mais difíceis de
administrar do que o esperado", completa.
O economista também manifesta preocu-
pação com o desequilíbrio na recuperação
entre os países e mesmo dentro de cada
país, argumentando que as diferenças po-
dem conduzir a uma onda de problemas de
endividamento e falências.
"O aperto da política monetária pelo Fed
ainda está longe, mas as circunstâncias
ah1ais já suscitam a pergunta sobre quais
mercados emergentes podem sofrer uma
desvalorização acentuada e pressões sobre
a dívida, caso os retornos dos títulos do Te-
souro americano continuem subindo e o
mercado permaneça volátil como está", diz
o economista Brendan McKenna, analista
da corretora Wells Fargo.
O "taper tantrnm" deixa lições para este
ano. Na ocasião, países emergentes senti-
ram um forte baque no valor de suas moe-
das e de suas bolsas de valores. McKenna
aponta alguns países cujas moedas estão
em sih1ação mais vulnerável, como África
do Sul, México, Peru e Rússia.
O Brasil está em posição um pouco mais
segura, diz o analista. Embora a perspectiva
de longo prazo seja negativa, para os próxi-
mos meses a recuperação da economia glo-
bal e o avanço da vacinação nas economias
centrais traz benefícios ao país, sobretudo
com a alta nos mercados de commodities.
O que se anuncia com a recuperação
pós-covid, entretanto, pode ser mais amplo
do que a simples volta ao cenário anterior,
tanto no campo das finanças quanto na
economia global, apontam os economis-
tas. Nas finanças, parece consolidado o re-
torno das políticas fiscais, que foram dei-
xadas de lado no mundo desenvolvido a
partir da década de 1990. Na economia in-
ternacional, os ventos da globalização po-
dem estar mudando de direção.
 Na última década, os bancos centrais, a co-
meçar pelo Fed, se esforçaram menos para re-
duzir a inflação e mais para elevá-la. Nos EUA,
tentava-se chegar ao patamar considerado
saudável de 2%ao ano, sem sucesso. Segundo
Rogoff, "a maior parte do que os bancos cen-
trais vinham fazendo nos últimos anos, como
afrouxamento monetário e compra de ativos,
nada mais é do que uma forma de política fis-
cal, que os Tesouros poderiam, em princípio,
fazer tão bem quanto, até melhor".
"Aquestão é o que vai acontecer quando,
finalmente, a inflação passar a subir e apre-
sentar um risco de ficar acima da meta por
um bom tempo. Nesse momento, os bancos
centrais vão ser confrontados com escolhas
difíceis. Aumentar as taxas de juros vai ser
doloroso não só para o crescimento, mas
para a dívida dos governos", diz Rogoff.
"Mais cedo ou mais tarde, a economia
global vai se recuperar. Quando isso aconte-
cer, os bancos centrais vão começar a nor-
malizar a política monetária. Nesse mo-
mento, podemos esperar que os preços de
ativos nos mercados emergentes comecem
a sofrer, principalmente os ativos ligados à
dívida soberana e às moedas", diz McKenna.
O economista examina o cenário em que o
otimismo se realiza, encerrando a era de juros
praticamente nulos nos países desenvolvidos
e inaugurando um "novo período" da econo-
mia mundial. Mais do que as flutuações atuais
em tomo dos títulos ame1icanos, dos juros e
da inflação, este é o cenário que pode ter efei-
tos mais duradouros para os países em desen-
volvimento,já que reduz a disponibilidade de
capitais e exige maiores retornos de econo-
mias, em geral, mais frágeis.
No caso do Brasil, para McKenna, a recu-
peração dos preços de produtos primários
traz um alívio. O que causa preocupação
no país é a situação de curto prazo. A que-
da do PIB no ano passado foi menor do que
em outros emergentes, graças ao estímulo
fiscal trazido, sobretudo, pelo auxílio
emergencial. Neste ano, porém, com a re-
dução drástica do estímulo, "revela-se co-
mo é frágil a economia brasileira sem
apoio do governo", diz o economista. Com
a alta dos juros e a volta da inflação, em
meio a sinais negativos do varejo, insta-
la-se um paradoxo.
"Mais estímulo fiscal poderia dar apoio à
economia. Por outro lado, mais um ano de
gastos elevados poderia causar mau hu-
mor nos mercados financeiros", explica.
"Se isso acontecer, o real poderia despen-
car, forçando o BC a subir os juros de acor-
do com as expectativas, tentando defender
o valor da moeda. O resultado seria enfra-
quecer o estímulo fiscal, o que, somado a
uma possível fuga de capitais, tomaria a
desaceleração ainda mais agressiva."
No tema da economia internacional, ape-
sar das perspectivas de recuperação com o
fim paulatino da pandemia, Rogoff lança
um alerta: os sinais de volta do crescimento
e o pacote de auxílio não são os únicos indí-
cios de um possível retorno da inflação nos
próximos anos. Fatores mais estruturais po-
derão ter como consequência a alta das ta-
xas de juros, principalmente um fortaleci-
mento do nacionalismo econômico.
Ao longo da pandemia, formou-se entre
analistas da economia global o quase consen-
so de que a crise sanitária intensifica a tendên-
cia à desaceleração e mesmo redução do co-
mércio internacional, no fenômeno batizado
de "desglobalização". Nos últimos anos, o
conceito esteve associado à retórica naciona-
lista do ex-presidente ame1icano Donald
Trump, que renegociou acordos comerciais e
assumiu uma retórica de grande hostilidade
contra a China, e aos políticos ingleses que
promoveram o Brexit.
Antes desses dois eventos, porém,já havia
sinais de desaceleração do comércio global.
Em apresentação para a Universidade de
Tecnologia de Hong Kong, a economis-
ta-chefe para a Ásia e o Pacífico do banco
Natixis, Alicia García Herrero, observou que
as cadeias globais de valor perderam espaço
no PIBglobal, caindo de 50,5% para 46% en-
tre 2008 e 2018. O fenômeno se ve1ificou até
mesmo em países muito integrados ao co-
mércio mundial, como Alemanha e China.
Os investimentos diretos estrangeiros tam- de produção das empresas, que seria repas- AliciaGarcíaHerrero
bém vinham diminuindo em escala global. sado aos preços. Além disso, é um incentivo dizqueascadeias
Durante a pandemia, as disputas em tor- ao fortalecimento de salários nas econo- globaisdevalor
no de máscaras, ventiladores e vacinas re- mias domésticas, aponta Rogoff. "É difícil perderamespaçono
forçaram a convicção, em muitos países, de enxergar como se reconciliam as propostas PIB global,até
que a produção doméstica de bens estraté- de maior poder dos sindicatos, que ouvi- mesmoem países
gicos é um imperativo. A dependência de mos da equipe de Biden, com um sistema de muito integrados ao
fornecedores industriais concentrados no comércio global mais aberto", observa. comércio mundial
território chinês também se revelou perigo- Para Alicia García Herrero, o freio da globa-
sa quando a província de Hubei, onde está lização não chega a representar um retomo a
localizada a cidade de Wuhan, primeiro economias nacionais fechadas, mas uma
epicentro da pandemia, foi colocada numa transformação das cadeias de valor, que se
quarentena que durou mais de dois meses. reorganizam segundo as regiões, com alcance
Ao longo das últimas duas décadas, Rogoff mais curto. Um efeito inflacionário pode ser
tem defendido a ideia de que a progressiva esperado, mas apenas temporariamente, já
queda dos índices de inflação no mundo, a que o sistema global tende a se acostumar
pa1tir da década de 1980, resultam mais dos com os novos patamares de preços. Para o Bra-
avanços da troca além das fronteiras nacio- sil, "que já é uma das economias mais fecha-
nais do que da ação dos bancos centrais. Em das do mundo em termos de comércio, o im-
2003, publicou o artigo "Globalização e De- pacto será menor cio que para economias me-
sinflação Global", em que argumentava que a nores e mais integradas. Mas também serão
paulatina queda de juros e inflação desde a tempos ma.isdifíceis", afirma.
década de 1980 era fruto das mudanças na es-
trutura do comércio mundial. Leiatambém artigo de LuizFernandode
A desglobalização pode ser uma fonte de Paulae JoséLuisOreiroem
pressões inflacionárias ao aumentar o custo valor.globo.com/eu-e/
Sexta-feira,26demarçode2021 1 Valor I ll
 ENTREVISTA

Maisnuvens
Brasi
JoséJúlioSenna, Aesperava e o BCadiantou que haverámais altas.
inflaçãovoltoupara.ficar?
ciaçôes cambiais do que economias seme-
lhantes, em grande parte por causa ela me-

doIbre,vê A velocidade de deterio-

JoséJúlioSenna:
ração do ambiente econômico foi espantosa,
diocridade ciocrescimento.
Valor:Na expectativapara este mw?
muito mais rápida do que se esperava. Não é Senna:Não apenas. Chamo atenção para
perspectivas
ruins de surpreender que as expectativas tenham se três aspectos. No longo prazo, o desempenho
ajustado mais lentamente. A partir de agosto ela produtividade, que é medíocre há quatro
parainflação.
Por eparasetembro, a inflação começou a surpreender
cima, e os analistas de mercado erravam
décadas. Depois, temos o desajuste fiscal. Por
fim, no curto prazo, a velocidade ela vacina-
DiegoViana,parao reclonclarnente, mês a mês. Primeiro falava-se
em alta ele 25 pontos ela Selic, depois consoli-
ção. Virou quase um clichê dizer que, hoje, o
melhor instrumento ele política econômica é

Valor,deSãoPaulo dou-se a expectativa de 50 pontos. Não deu

tempo eleestimarem
ara o economista José Júlio Senna,
pontos. 75
a vacina. E é mesmo. Mas, com a nossa veloci-
dade ele vacinação, não há perspectiva de
Valor:Além da inflaçãobrasileira,o cenário crescimento. E o real fica muito prejudicado.
externopesa para a voltadas altasda Selic? Valor:A alta do retomo sobre títulos longos
Senna:Sempre que há uma alteração impor- refletea sançãoao pacotede auxílionos EUA?

P chefe do Centro de Estudos Monetá- tante no mercado de renda fixa nos EUA,ela se
rios do Instituto Brasileiro de Econo- propaga para outros países. O aumento ciojuro
Senna:O pacote e a vacinação melhoram a
perspectiva de crescimento americano. Os ju-
mia, da Fundação Getulio Vargas real nos EUAcertamente afeta os juros reais em ros dos títulos de 10 e 30 anos sobem porque
(FGV-Ibre), o contraste entre as perspectivas outras economias, por causa da integração fi- há um sinal de que os capitais vão tomar o ru-
positivas da economia americana e as negati- nanceira do mundo. Quando os juros mudam mo ciosEUA.Com isso, investidores passam a
vas da brasileira podem piorar um cenário no mercado financeiro central cio planeta, os ver um país corno o Brasil corno mais arrisca-
que já é nebuloso para o país. Com os capitais ciosoutros lugares também mudam. do. A alta dos juros lá fora mexe com a per-
dirigindo-se para a maior economia do plane- Valor:Com os EUAvoltando a crescer,a ten- cepção de risco-país, e isso atrapalha o nosso
ta e o real se desvalorizando, as perspectivas dênciaé mais aumento dosjuros no Brasil? nível de juros, a bolsa, o câmbio. A atrativida-
para a inflação e a taxa Selic são ruins. Senna: A alta de juros nos EUA passa a de maior leva os fluxos de capitais a migrar
Entre as causas do descolamento estão mensagem de que a economia americana es- para os EUA, em detrimento ele mercados
não só o lento avanço da vacinação, como tá se fortalecendo. O Feclfez uma revisão ex- emergentes, Brasil em particular.
problemas de mais longo prazo, como o de- pressiva do crescimento americano previsto Valor:Adisparadada inflaçãono Brasilé tem-
sequilíbrio fiscal e a produtividade estagna- para este ano, que passou ele 4% para 6,5%, porária011/Já 11mfi.mdame11to de longoprazo?
da. A recente elevação da taxa de juros pelo aproximadamente. A inflação também foi re- Senna: Essa é a questão fundamental.
Copom expressa a percepção de que, com o vista para cima. Avariável-chave para os mer- Quando vemos um processo inflacionário
ambiente econômico se deteriorando mais cados de câmbio é o diferencial de cresci- ganhando força e o BC reagindo, a primeira
rapidamente do que era previsto, existe o mento. Muita gente se atém ao diferencial ele coisa que perguntamos é: será que a deman-
risco de que o Banco Central perca o contro- taxas de juros, mas isso é incompleto. Tudo da está forte? Mas não podemos falar de um
le das expectativas de inflação. melhora quando um país tem perspectiva ele grande impulso de demanda, em termos
crescimento mais forte, e isso se reflete nos agregados, no Brasil. Houve um componente
Valor:A Selic subiu mais do que o mercado juros. Já o Brasil tem sofrido mais com clepre- de demanda, que tem a ver com a pandemia,
12 1 Valor I Sexta-feira,26demarçode2021
 CLAUDIO
BELLIJ\'ALOR
em que as famílias mudaram seu consumo, nua se depreciando. Isso tem a ver com a per-
abdicando de certos serviços e recorrendo cepção do risco, o crescimento medíoue e
mais a determinados bens, sobretudo os que agora, mais recentemente, pela percepção de
são consumidos em casa. Houve um claro um traço populista na política econômica. E
efeito de substituição. Isso aconteceu no agora a PECemergencial estabeleceu gatilhos,
mundo inteiro. A capacidade de oferta não mas quando eles forem disparados, o objetivo
conseguiu reagir ao aumento de demanda. O será compensar o aumento de gastos extraor-
auxílio emergencial também contribuiu um dinários durante a calamidade. Não é ajuste lí-
pouco, porque atingiu pessoas com 1úvel de quido. Não há nada que demonstre um apetite
renda mais baixo, que têm sempre necessida- para fazer ajuste fiscal de verdade. Isso tudo
des de consumo que estão retidas. mexe com o câmbio, a ponto de inverter aque-
Valor:Essessãofenômenos que marcaram o la relação entre commodities e câmbio.
ano passado.Não estãosuperados? Valor.A subida da Selicpode expressartam-
Senna: De fato, não temos mais um pro- bém uma tentativa de combatera inflaçãopor
blema de demanda. A situação brasileira ho- meio da apreciaçãodo câmbio?
je pode ser entendida mais como fruto de Senna:Nenhuma chance. Isso está na cabeça
choques. Por exemplo, choques agrícolas, de muita gente, talvez porque já foi amplamen-
porque certas mercadorias tiveram seus pre- te usado no passado. Mas, no caso atual, não
ços elevados internacionalmente, como soja, tem isso. O Banco Central expressou surpresa
milho, minério de ferro, cobre. E com a inte- com a duração dos choques, que realmente não
gração da economia mundial, muita maté- estão passando. Vejo especulações de que o BC
ria-prima e muitos bens intermediários vêm reagiu ao câmbio, mas o que aconteceu foi que
da Ásia. A pandemia interrompeu a produ- as circunstâncias o levaram a perceber que, do
ção em muitos lugares, atrasando carrega- jeito que as coisas estão andando, as perspecti-
mentos e criando escassez. vas para a inflação não estão nada boas. O gran-
Valor:Essetambém é umfenômeno doprimei- de risco é perder o controle das expectativas de
rosemestredo ano passado. inflação. Na minha cabeça, a alta dos juros foi
Senna:Mas os circuitos ainda não se resta- exclusivamente por isso.
beleceram plenamente. Outro ponto é que na Valor. Nos EUA,o presidente do Fed,Jerome
primeira fase aguda da pandemia, em março Powell,disse que não se incomodará quando a
e abril do ano passado, a demanda desabou inflaçãochegara 2,4%nesteano.
no mundo e o preço de muitas coisas foi para Senna:Sim, porque é um efeito estatístico e
o chão. Com a soma de todos esses fatores, ele busca deixar isso claro para o público. Ele
produziu-se a alta de preços atual, que é gran- tem o compromisso de não mexer nos juros
de em comparação com uma base muito de- enquanto a inflação não passar de 2%. Mas é
primida. Na medição de preços ao produtor, passar de verdade, de maneira sustentada. trutura. Mas é menos prejudicial para o aumen- Sennadizque
nos últimos 12 meses as matérias-primas su- No Brasil, a partir de maio o IPCAem 12 me- to da demanda, porque é financiado por im- fraquezadorealtem
biram 75%.Os bens intermediários, 30%.E es- ses vai superar 7,5%.Vai durar entre três e cin- postos. Daí a ter inflação persistentemente mais a ver compercepção
tamos com uma inflação ao consumidor de co meses, porque reflete a saída de meses, no alta é um exagero. No período que citei, houve dorisco,crescimento
3%.Choques são fenômenos transitórios, mas ano passado,em que a inflação foi muito bai- uma sequência de eventos. medíocree mais
isso não tem acontecido. Os choques não es- xa. É um efeito estatístico, que não deveria Valor:Umponto que parece estarsendo afeta- recentementea
tão se dissipando na velocidade esperada. nos incomodar em condições normais. Só do é a concentraçãode renda. percepçãodetraço
Valor:Qual é o papel do cãmbio? que as condições não estão normais! Senna:Sim, o aumento da concentração de populistanapolítica
Senna:O índice de commodities do Brasil, Valor.A alta dos retomas também pode refle- renda é inibidor do consumo. Fica mais ren- econômica
calculado pelo BC,subiu 10%em janeiro e 7% tir a perspectivade inflação nosEUA? da na mão das pessoas mais ricas, que conso-
em fevereiro, em reais. Boa parte disso se ex- Senna:Lawrence Summers chegou a dizer mem menos. Por isso, também tem mais pou-
plica pela depreciação cambial, que tem a ver que poderia haver um processo inflacionário pança. A pandemia tem produzido efeitos
com o risco-país, que, por sua vez, tem a ver como há muitos anos não víamos. Elese referia bastante concentradores de renda, mas não
com o crescimento medíocre de longo prazo, aos anos 1960e 1970.Aquele foi o auge do key- sabemos se são definitivos. Pelo menos por
o desequilíbrio fiscal, que é uma ameaça ini- nesianismo nos EUA,com John Kennedy, corte um tempo, a pandemia deixa marcas que
bidora de investimentos, e a vacinação.já que de impostos importantes, aumento de gastos acentuam tendências anteriores. E sua prin-
sem ela a economia não vai deslanchar. Inves- da Guerra do Vietnã, o programa chamado cipal caractelistica, do ponto de vista econô-
tidores, de modo geral, não gostam de apli- "Great Society",uma espécie de guerra à pobre- mico, é o aumento da desconfiança e da in-
car recursos em lugares que não crescem. za do presidente Lyndon Johnson. As taxas de certeza. É um fator paralisante, que inibe
Valor:A alta mundial das commodities não crescimento eram fortíssimas, mas a inflação consumo, investimento, contratação de mão
deveriaestarvalorizandoo real? começou a subir. Chegou a 13%no final da dé- de obra. Quando a situação se normalizar,
Senna:Tradicionalmente, quando os preços cada de 70.Ela não apareceu do nada, teve uma volta para um estado que foi definido por
em dólar de commodities sobem, as moedas década e meia de eventos. Agora, a expectativa mudanças de cunho estrutural. Existe uma
de países produtores se fortalecem. Mas, no de inflação nos EUAtem a ver com o pacote de chance boa de que o mundo pós-pandemia
Brasil, agora, isso não está acontecendo. As resgate. Mas ele termina. Depois vai ter outro, seja parecido com o que era antes da pande-
commodities estão subindo e a moeda conti- de recuperação, com investimento de infraes- m.ia,pelo menos nos países desenvolvidos. ■
Sexta-feira, 26 de março de 2021 1 Valor I U
 À MESACOMOVALOR JÚLIOLANCELLOTTI
Padreviupandemiamultiplicarporcincoo númerode
pobresquedependem dasrefeições desuaparóquia.Por
AdrianaAbujamra,parao Valor,de SãoPaulo
■ ■
1ss1onar10
padre Júlio LanceUotti tem Ferrari e
O Pirelli na linhagem familiar, mas pi-
lota um ca1Tinho de supermercado,
um presente de uma pessoa em si-
tuação de rua. Sem carteira de habilitação e
com artrose no joelho, faz do trole uma espé-
cie de andador. Todas as manhãs, empurra seu
possante abarrotado de mantimentos com as
rodinhas a tremelicar sobre o asfalto das ruas
da Mooca, na zona leste da capital paulista.
Os apetrechos usados por LanceUotti pa-
ra se proteger do vírus acabaram colados à
sua figura. A máscara com filtros cor-de-ro-
sa embutidos foi presente dos profissionais
do Consultório da Rua. A coleção de jalecos
é herança de um médico. O avental, sempre
com um santo estampado, remete à sua bi-
savó. Imigrante italiana e analfabeta, ao fi-
carviúva passou a usar uma peça dessas pre-
ta. No bolso da frente, levava sempre um ro-
sário. "Além da proteção, o avental traz uma
reflexão teológica, é uma vestimenta usada
para servir o outro", explica o padre.
Coordenador da Pastoral do Povo da Rua da
Arquidiocese de São Paulo, Lancellotti costu-
mava servir café da manhã para uma média de
14 1 Valor I Sexta-feira,26 de março de 2021
, ■
200 por dia no pátio da sua pequena paróquia
São Miguel Arcanjo. Com a pandemia, esse
número arnnentou cinco vezes. Já o de doa-
ções e de voluntários - com covid-19 ou com
medo de contrair a doença-só mingua.
A saída foi unir esforços com a prefeitura. A
refeição, única do dia para muitos, agora é ser-
vida no Centro Comunitário São Martinho de
Lima. O espaço foi criado por Lancellotti há
mais de três décadas. No começo funcionava
embaixo de um viaduto, agora a poucas qua-
dras da paróquia. Um carro da pastoral vai
diariamente à praça Princesa Isabel, no cen-
tro, e atrai cada vez mais gente faminta.
"Parece campo de refugiados. Pessoas des-
truídas, esfarrapadas, não param de chegar
mais e mais, são mães com crianças de colo,
doentes, LGBTs,jovens,gente em idade de tra-
balhar, mas que perdeu completamente a es-
perança de conseguir um emprego. É um de-
salento", lamenta o padre. Mas a sociedade,
diz, baseada na lógica do sistema neoliberal,
considera "os miseráveis descartáveis".
Para receber o auxílio emergencial de R$
600 que o governo pagou no ano passado, era
necessário um celular para se cadastrar, exi-
gência que deixava de fora justamente os mais
vulneráveis. Lancellotti os ajudou a obtero be-
nefício, cujo pagamento deve ser retomado
em breve, mas com valor mais baixo.
A reportagem acompanhou Lancellotti
em ação no dia seguinte ao nosso prin1eiro
encontro virtual. Aos 72 anos, 35 deles de-
dicados à população em situação de ma, o
religioso, seguido por três voluntários, é
reconhecido de longe e sabe o nome e a
história de muitos dos que dormem sobre
papelões, jornais, cobertores ou dentro de
barracas coloridas. "Benção, vossa senho-
ria." "Bom dia, padre." "Aêee."
Nem todos são afáveis, caso de Bahia.
Sem camisa, sem sapato, sem máscara e
sem papas na língua, xinga meio mundo,
menos Gorda, Susi, Spike e Abraão, seus
cães de guarda. A pequena praça próxin1a
à paróquia tem sido sua morada. Bahia
possui uma rede, uma bicicleta e muitos
dreads no cabelo. Várias vezes padre Júlio o
acudiu, seja varrendo o lugar, seja tentan-
do recuperar seus pertences levados pela
Guarda Civil Metropolitana.
"Bahia é danado, mas tem bom coração",
 LULA

Sexta-feira, 26 de março de 2021 1 Valo, 1 15

GALERIA diz uma das voluntárias. Como João Grilo,
personagem de "O Auto da Compadecida",
de Ariano Suassuna (1927- 2014), que em-
prega recursos engenhosos para sobreviver
- o filme baseado no livro é um dos prefe-
ridos do padre. Quando um sem-teto per-
de a compostura e recebe críticas, Lancel-
lotti cita reuniões de condomínio em que
gente fina às vezes sai no tapa para so1tear
vagas de carro na garagem. ''A rua repete a
sociedade. Tem terraplanista, negacionista,
malandro, de tudo, não são apenas anjos."
Bahia desaparece, seguido pelos seus cães,
e o padre volta a empurrar o carrinho. O ape-
lido do rapaz é uma referência à região de
01igem. Lancellotti explica que a maioria
PadreJúlio,esq.,é ordenadopor DomLucianoMendesde Almeida dos que dormem ao relento é do Sudeste,
não do Norte e Nordeste do país, como se
acredita. Há várias pessoas que querem vol-
tar para a cidade de origem, mas não conse-
guem por falta de dinheiro e documento.
São muitos os problemas que levam al-
guém a abandonar tudo e viver ao léu. Entre
os principais fatores, estão a ausência de vín-
culos familiares, a perda de entes queridos, o
desemprego, a violência, perda da autoesti-
ma, alcoolismo, uso de drogas e doenças men-
tais. "Apessoa até chegar na rua paga um pre-
ço, há perdas, algumas irreparáveis", diz.
É frequente lhe perguntarem como agir
Coma mãe,Wilma. e osirmãosJoséLuiz,à esq.,e Milton,à dir. com as pessoas em situação de rua e se é
aconselhável ou não dar dinheiro. Lancellot-
ti costuma responder que não existe carti-
lha, mas segue o que batizou de "pedagogia
do olhar". "É importante se despir de pre-
conceitos e se aproximar, mas sem ingenui-
dade, e de fato se mostrar interessado, per-
guntar como se sentem. O principal é a qua-
lificação humana para perceber o outro."
Recentemente a primeira-dama de São
Paulo, Bia Doria, comentou que Lancellotti
promove "assistencialismo" com os vulne-
ráveis. No ano passado, já havia aconselha-
do as pessoas a não doarem marmitas por-
que "as pessoas gostam de ficar na rua", e
ComJussarae David,portadoresdo HIV atendidospelaCasaVida elas "têm que se conscientizar e sair dessa si-
tuação". Alimentar quem tem fome, para
Lancellotti, é um dever ético.
Procurada pelo Valor, Bia diz: "Tenho
imenso respeito pelo trabalho do padre Jú-
lio Lancellotti. O que eu quis dizer na en-
trevista ao portal UOL é que devemos ir
além do assistencialismo e oferecer opor-
tunidades para que a população de rua
conquiste sua emancipação".
Tirar as pessoas da situação de rua não é tão
simples porque ninguém chega lá de repente,
diz Lancellotti, é um processo. Embora os ca-
sos de sucesso sejam raros, eles existem. Mui-
Manifestação
contraa mortedepessoas
emsituaçãoderuaem2004 tos a partir do programa Consultório na Rua,
que visa ampliar o acesso dos desabrigados
16 1 Valor I Sexta-feira,26demarçode2021
aos serviços de saúde e foi instituído em 2011
pela Política Nacional de Atenção Básica. Os
agentes das equipes do programa já tinham
vivência na rua ou em abrigos e foram contra-
tados após um processo seletivo.
Muitos, diz Lancellotti, são hoje assisten-
tes sociais, psicólogos e médicos. Uma mu-
lher trans prestes a se formar em enferma-
gem decidiu homenagear Lancellotti ao ti-
rar novos documentos de identidade e
adotou seu sobrenome. Ela agora se chama
Alessandra Lancellotti.
Planejar programa para o povo da rua, ex-
plica o padre, sempre foi uma construção com
muitos atores envolvidos, de grupos da socie-
dade civil combinados com o governo. "Ve-
nho desde a gestão do Jânio Quadros na pre-
feitura da cidade (entre 1986 e 1989), encon-
trei todos eles no caminho. No governo Lula, o
BNDEScriou linha de apoio para catadores de
materiais recicláveis", diz. "Foi um grande
processo para se chegar a uma política nacio-
nal que hoje está escangalhada, com aumento
ve1tiginoso de vulneráveis."
Às 8 da manhã chegamos ao centro de con-
vivência. Enquanto Lancellotti responde às
perguntas de uma repórter de televisão, um
homem ajeita na calçada um enorme espelho,
coloca um caixote na frente e transforma o
canto em salão de beleza. O preço é camarada,
corte ou dread saem por R$1Ocada um.
Na porta do centro, um funcionário é res-
ponsável pela contagem das pessoas que
entram. Na hora do café da manhã, a capaci-
dade máxima de atendimento é de 700 por
dia. De tempos em tempos, ele levanta uma
placa e anuncia os números. Segundo esti-
mativa dos coordenadores do lugar, a crise
fez dobrar o número de pessoas que procu-
ram o centro em busca de comida: de 4 mil,
saltou para 8 mil por mês.
Antes de se se1virem, cada morador rece-
be da mão do padre uma máscara, e dos vo-
luntários, papel higiênico, escova e pasta de
dente. A comida vem por último. No menu,
três sabores de pães: integral adocicado
com açúcar mascavo e cacau, broa de milho
com erva doce e pão de manteiga.
As receitas, mais nutritivas do que um pão
comum, são criação do chef Ricardo Frugoli.
Há também pão francês, café com leite, suco,
fruta e bolo, se1vidos pela prefeitura. O cardá-
pio, explica uma das voluntárias, foi sugerido
pelo médico Drauzio Varella, que recomenda
sempre um alimento doce para diminuir a fis-
sura dos dependentes químicos.
"Olha só, õ, seu padre Júlio", diz um rapaz
alto, que anda como se gingasse. "Quando eu
usava drogas, eu tinha dinheiro, agora nem
para cortar o cabelo", queixa-se. Ele se afasta,
antes que Lancellotti possa dizer algo. "Cento
e cinquenta", giita o funcionário da pmta,
acenando com a placa. "Me dá arrepios cada
vez que escuto a voz dele, quando chega perto
do 700 então ... ",diz uma voluntária.
O fundo musical vem da flauta doce de Lui-
zinho, de olhos miúdos, que veio de Osasco,
na região metropolitana. Ao ouvir a melodia
de "Romaria",de Renato Teixeira,um homem
na fila segura uma sacola plástica com todos
os seus pertences e cantarola baixinho: "É de
sonho e de pó, o destino de um só...".
"Trezentos!",atualiza o rapaz encarregado
da contabilidade. Apopulação em situação de
rua é flutuante, por isso é difícil mensurá-la.
Segundo o censo mais recente, realizado pela
Prefeitura de São Paulo, houve aumento de
53%na cidade entre 2015 e 2019. O número é
o maior desde que o levantamento é feito, mas
ainda aquém da realidade. Há muitas falhas
de metodologia, avalia o padre, como contar
apenas um morador por barraca, quando ge-
ralmente são dois ou três em cada uma.
"Quatrocentos!", anuncia novamente o
funcionário, com a fila no centro comunitário
a se perder de vista. Para a conversa virtual na
véspera, Lancellotti usou a recepção da paró-
quia. Ele teve de ir até lá e ajudar, porque sua
secretária havia contraído covid-19. Pessoas PadreJúlio
passavam ao fundo ca1Tegando caixas com Lancellottiem sua
mantimentos. A mesa estava abarrotada de rotinadiáriade
papéis e estatuetas de santos. "Conhece São entregaro café da
João de Deus? Foi o precursor da humaniza- manhãaospobresem
ção na psiquiatria", explica o padre, que faz seucentro
sessões de psicanálise. "Nem sempre consigo comunitário
comparecer, mas gosto de conversar."
Por causa das novas restrições da fase pouco ou nada temem ser infectados pelo no- fim em si, e nós estamos em um processo
emergencial em São Paulo, foram suspensas vo coronavírus. Entre católicos, o índice é 32%. acelerado de desumanização."
as missas matutinas da paróquia e manti- Esse pensamento mágico, diz o clérigo, for- Lancellotti vive nas ruas e também nas re-
das as de domingo, de forma remota. "São mado em teologia e pedagogia, remete à teo- des. No Instagram, conta com mais ele 501
decisões técnicas. Tem que prevalecer o res- ria de Jean Piaget (1896-1980). O psicólogo mil seguidores e administra a conta sozinho.
peito à vida e ao bom senso." Sensatez, aliás, suíço dividia o estágio do desenvolvimento Esta entrevista foi marcada com mensagens
é uma qualidade nem sempre presente nas cognitivo em quatro fases. "A maior parte do pela rede social. Mensagem mandada num
grandes crises. Foi assim com o vírus da aids povo brasileiro não passa elasegunda", diz, re- minuto, mensagem respondida no outro.
na década de 1980, e agora não é diferente. ferindo-se à fase das c1ianças de 2 a 6 anos. Viralizou na internet uma campanha pa-
O vírus, para muitos, é um castigo divino, Nessa etapa, os pequenos se relacionam com ra que o padre, pela relevância de seu traba-
que só afeta os pecadores e quem não tem o mundo apenas a partir de uma perspectiva lho e pelos riscos, fosse o primeiro a ser vaci-
fé;já a fé conferiria imunidade aos fiéis. pessoal, restringindo símbolos e palavras a nado em São Paulo. Pessoas em situação ele
Outro dia, pastores de uma igreja pente- seu universo limitado. rua com mais de 60 anos foram incluídas na
costal da redondeza ela paróquia São Mi- "É vermelho? É comunista. É rosa? É de lista de prioridade para a imunização, e
guel Arcanjo ungiram a cabeça cios fiéis menina." Não fosse a vida atribulada, Lan- Lancellotti tomou a vacina com eles.
sem proteção, mas com fé na proteção divi- cellotti gostaria de escrever uma tese para "A rede ajuda, mas expõe. Sou alvo da re-
na. "Pandemia? É castigo ele Deus! Vacina? explicar como o avanço do fundamentalis- tórica do ódio", diz o padre, que tem sofrido
Distanciamento? Máscara? Para quê? Tudo mo religioso está ligado a essa fase do pen- ameaças virtuais, mas também reais. Não
bobagem, não preciso, Deus me protege", samento infantil descrita por Piaget. que seja algo inédito, mas se agravaram des-
diz Lancellotti, como se imitasse os pasto- "O fundamentalismo religioso, seja da de a eleição do presidente Jair Bolsonaro
res ela concorrência. "Então, tá! Se está nas Igreja Católica ou ela evangélica, tem infan- ( sem partido). "A partir elejaneiro é tiro na
mãos ele Deus, pode atravessar a rua ele tilizado a fé. Deus não é todo-poderoso, ele cabeça", dizia um dos posts logo depois do
olhos fechados. Se basta ter fé, q uai a ne- é misericordioso, amoroso. Solidariedade e pleito. Um deputado estadual do Patriotas
cessidade ele porte ele arma?" compaixão não são dimensões religiosas, atacou o padre nas redes, chamando-o ele
Pesquisa Datafolha clivulgaclanesta sema- mas humanas. Tem muito ateu mais solidá- "cafetão da miséria" e instigando a ira da
na revela que 46% cios evangélicos no Brasil rio do que religioso. A religião não é um horda, que também se voltou contra ele.
Sexta-feira, 26 de março de 2021 1 Valor 1 17

O padreadministra No início do ano, Lancellotti quebrou a
sozinhosuacontano marretadas blocos de pedras instalados pela
Instagram,com501 prefeitura sob um viaduto da zona leste de
mil seguidores.
"A São Paulo. A ação repercutiu e teve efeitos: o
redeajuda.mas secretá1io foi demitido; pedras, retiradas; e
expõe.Soualvoda um projeto de lei, apresentado para barrar a
retórica doódio" arquitetura hostil da cidade. Chumbar pedras
no concreto, diz, é uma medida higienista, es-
tratégia para expulsar quem vive no local.
"Como a gente aprende na primeira aula
de física, todo corpo ocupa um espaço. Es-
sas pessoas não têm para onde ir." Os alber-
gues, diz, não são numericamente nem qua-
litativamente adequados para a diversidade
dos "irmãos de rua". "A prefeitura costuma
fazer ações para SOOpessoas. Não dá para
massificar, o melhor é trabalhar com gru-
pos pequenos, como repúblicas, casas tera-
pêuticas e locações sociais. Eles não preci-
sam de vagas. Vaga é para carro, eles preci-
sam de um lugar para morar."
Não foi a primeira vez que o padre apa-
receu dando marretadas, como se vê no
documentáiio "Febem - O Começo do Fim",
18 1 Valor I Sexta-feira, 26 de março de 2021
''Solidariedadee
. - - -
compa,xao naosao
dimensões religiosas,
mashumanas. Tem
muitoateumais
solidário
doque
religioso.
A religião
não
éumfimemsi''
de 1991. Criada para atender adolescentes
em conflito com a lei, durante décadas a
Febem (Fundação do Bem-Estar do Menor)
foi palco de levantes e alvo de denúncias
que ganharam o noticiário, até ser extinta,
30 anos após sua criação, em 2006.
Lancelotti tornou-se padre aos 37 anos.An-
tes de ser ordenado, era funcionário da antiga
Febem, hoje Fundação Casa. Os funcionários
da instituição, diz, batizavam os cassetetes
com nomes como Direitos Humanos, ECA-
em referência ao Estatuto da Criança e do
Adolescente -e Júlio Lancellotti. Ao surrar os
menores, repetiam sadicamente seus nomes.
"Quer direitos, toma isso, mais isso!"
Em 2007, o padre foi acusado de pedofilia
por um ex-interno da Febem e sua compa-
nheira, que acabaram condenados a sete anos
de prisão por extorsão. Mesmo com a vitória
judicial, que demorou quatro anos, Lancellot-
ti diz ter sido wn dos momentos mais tristes
de sua vida. "Foi uma história muito distorci-
da, mas está tudo documentado e arquivado.
Mesmo assim, é usada até hoje para me atin-
gir. Tive minha vida vasculhada pelo Ministé-
rio Público, pelo Poder Judiciário, pela Polícia
Civile Militar, pela igreja, recebi muitas amea-
ças. Sofri muito, minha mãe sofreu muito."
Wilma falava espanhol, era leitora com-
pulsiva, datilógrafa, mas parou de traba-
lllar depois de casar com Milton, diretor de
divisão de material de um almoxarifado.
"Meu pai, como um bom latino, não quis."
Ela, então, passou a servir pensão em casa
para até 40 pessoas por dia. Uma de suas
memórias mais antigas, diz o padre, é ele
de pé em uma cestinha de vime na cozinha
a observar a mãe cozinhar.
A mãe morreu em 2010, e até hoje Lan-
cellotti vive na casa que era dela, no bairro
do Belém, na zona leste, com mais três so-
brinhos, filhos de seu irmão caçula. Os dois
ümãos também já morreram. O vaivém de
caixas atrás do padre não para. O carrega-
dor é sempre o mesmo, um rapaz de boné
virado para trás, um de seus sobrinhos.
Quando esteve à frente da Casa Vida, en-
tidade beneficente ciiada para atender
crianças abandonadas ou órfãs, portadoras
de HN, diz, chegaram a tentar colocar fogo
no local. "Um carro subiu na calçada para
me atropelar. Uma médica me processou
dizendo que um mosquito poderia picar
uma criança doente e levar o vírus para a
casa dela." A pessoa que mais o apoiou na
ocasião, diz, foi a então candidata à prefei-
tura da capital e hoje deputada federal Lui-
za Erundina (PSOL). "Luiza foi muito amiga
das crianças da casa, especialmente de Da-
niel, um menino fraquinho, nem levanta-
va. Ela foi ao enterro dele."
Naquela época, diz, um projeto de lei in-
dicava aborto compulsório para toda mu-
lher grávida com o vfrus. Uma das conquis-
tas do seu trabalho foi incluir os exames de
HN no protocolo do pré-natal na rede pú-
blica. Como padre, diz, mantém a posição
oficial da igreja contra o aborto, a não ser
nas formas permitidas na lei. "Sou contra a
morte do feto, mas também contra a morte
social dos pobres. Não adianta defender a
vida intrauterina e depois que a criança
nasce não se importar mais."
Numa nota recente, o Vaticano anunciou
tratar como pecado a união de pessoas do
mesmo sexo e disse que padres e outros mi-
nistros da Igreja Católica não podem aben-
çoá-los. "As mudanças não acontecem por-
que eu quero, são processos que se dão na
história", diz Lancellotti. Pergunto por que
ele não poderia abençoar uma união se é
tão solidário à população LGBTQIA+. "A
gente sabe antes de entrar no jogo quais são
as regras. O religioso estada rompendo com
uma disciplina que assumiu."
Insisto e pergunto se não seria um con-
trassenso o fato de a igreja condenar a ho-
mossexualidade ao mesmo tempo que
encoberta casos de abusos de padres co-
metidos contra meninos? "A maior parte
dos abusos são cometidos pelos pais e pa-
drastos. Vamos extinguir a paternidade?
Como mudar a históiia do patriarcado,
tão arraigado? Vai levar séculos, talvez não
seja na minha geração."
Nos dias que se seguiram à entrevista,
Lancellotti me encaminhou vários textos
de religiosos sobre o assunto. "A maior lei é
a lei do amor", escreveu o monge Marcelo
Barros, em um deles. "Af está o parâmetro
que devemos seguir." ■
VINHO
da aglianicopor dar equiHbrioà grande es-
Segredos trutura e bela trama tânica que caracteriza
seusvinhos,permitindo ressaltaro paladar
frutado e l11esgarantir longevidade,e, nes-

doVesúvio sa evolução,ganhar mais complexidade.

O arsenalvitícolada
Itália nãose resumeàs
uvasnebbioloe
sangiovese e muitas
variedadesnãotinhamo
destaquequemerecem.
PorJorgeLuckià
JorgeLuckiescreveneste
espaçosemanalmente
E-mail:
Colaborador-jorge.lucki@valor.com.br entre os melhoresde seusgêneros na Itália.
VinhedosnaCostaAmalfitana,ao norte daCampânia,o "lar" da falanghina
A rica história italiana, aliada à excep-
cional vocação vitivinícolada quase tota-
lidade de seu territóiio - a França,que
disputa com a Itália a primazia no ran-
king das mais importantes nações pro-
dutoras, não tem tal diversidade-, fez
com que o país conseguisse reunir uma
seleção de uvas típicas e exclusivas.Éum
invejávelpatrimônio ter uma nebbiolo,
que enseja os fantásticos barolos e bar-
barescos, ou uma sangiovese,casta que
garante alguns dos mais famosos vinhos
da Toscana.O arsenal da Itália, porém,
não se limita a essas duas variedades,
mas muitas não tinham o destaque que
mereciam. O processo de renovação viti-
vinícola do país iniciado nos anos 1970 e
que foi ganhando cada vezmais força
desde então, fezcom que as castas autóc-
tones fossem melhor trabalhadas, ressal-
tando suas virtudes e valorizando suas
01igens- há uma interdependência ina-
lienável entre uva e procedência.
Sesucessode críticanão é normalmente
acompanhado de in1ediatopelo público,
consumidoresantenados têm a vantagem
de desfrutar de muitos dessesvinhosantes
que atinjam preçosdisparatados, como
tem acontecido com rótulos celebradosda
atualidade.Oexemplodado na coluna da
semana passada,em que os vinhos do Etna
tiveramdestaque,vale também para os
tintos e brancos da Campânia,região cos-
teira no sudoeste da Itália,que tem acida-
de de Nápolescomo referência.Os tintos,
onde reina soberana a aglianico,e os bran-
cos,com a gTeco,fiano e falanghina,estão
Aaglianiconão é uma uva fácilde ser
manejada.Se fosseestaria espalhada por
várioscantos,não só na Campaniae no
norte da vizinhaBasilicata,onde conb.ibui
igualmente para grandes vinhos,e, em me-
nor escalae mais no sentido de dar suporte
a outras variedades,na Calábriae na Pu-
glia.O fato de estar concentrada no sul da
Itáliase devea seu inusitadamente longo
ciclovegetativo,necessitandode sol.Signi-
ficaque além de brotar relativamentecedo
é a última a ser colhida,entrando muitas
vezesno mês de novembro,o que, ades-
peito dos riscosde a chegada do outono
implicarmudanças no tempo, pode ser
considerado positivo,por atingir a fasefi-
nal de maturação em temperaturas mais
amenas-grau alcoóliconão tão elevadoe
níveisde acidezresguardados.
Atéque estudos recentesdesca1tassem
qualquer parentesco,supunha-se que a
aglianicotivessesido trazida da Grécia,em
função da 01igemde seu nome, uma cor-
mptela italiana de helênico.Senão era por
aí, não estavalonge.Écerto que as primei-
ras parreiras foram plantadas pelos habi-
tantes de um antigo povoado grego que se
instalou na Campania,segundo consta nas
proximidadesde Avellino.Aolongo dos
anos provou-seque é onde ela se expressa
mell1or,em paiticular na zona de Taurasi.
ContJ.ibuempara issoo soloclevai'iações
vulcânicascom dominante calcárioe a alti-
tude mais elevada,entre400 metros e 600
metros acinlaelonívelelomar, situação
que lhe permite reter mais acidez.
Essetão importante componente de
frescoré ainda mais significativono caso
Aindaque os atuais aglianicossejammais
abordáveisquando jovensdo que no pas-
sado, desfmtar delesdemanda ceita pa-
ciência,bemmaisdoqueos tJ.·êsanos-ao
menos um ano em barris/toneis-exigidos
pela legislaçãopara que os Taurasisejam
comercializados(quatro anos para os "ri-
serva",elosquais um mínimo de dezoito
mesesem madeira).Aexigêncianão vale
para as demais DOCsque levamaglianico
(lrpinia e Falemodei Massico,por exem-
plo), que, sem perder as muitas viltudes
que a casta oferece,são vil1hosbastante re-
presentativose algo mais abordáveisno
curto e médio prazo.
Semdeixarde lado a falanghina,que dá
resultadosmais expressivosnos vinhedos
íngremes elaCostaAmalfitanae Beneven-
to, mais ao norte, os melhores brancos da
Campaniavêm das cercaniasda cidade de
Avellino,a nordeste de Nápoles:o Grecodi
Tufoe o Fiai10diAvellino,ambos perten-
centes à categmia DOCG.Comoo nome
sugere,são vinhosproduzidos com a uva
greco cultivadaem tufo (solovulcânico)e
a fiano em alusão à cidade.Beneficiadas
pela altitude mais elevadae distantes da
umidade elomar,que fariaos cachosten-
derem a apodrecer,valem-setambém elo
solovulcânico-o Vesúviodista cercade
40 kmde Avellino-, conjunto de fatores
que propicia brancos vibrantes,comple-
xose com bom potencial de guarda.
A preferênciapor rótulos de regiões
mais conhecidaspor parte dos consumi-
dores brasileirosfazcom que a rotativida-
de dos vil1hosda Campaniaem nossasim-
portadoras sejabaixa.Comisso,a ofe1ta
não é regular,há safrasantigas ai11daem
estoque, rótulos interessantesnão são tra-
zidos e alguns bons produtores deixaram
der ser inlportados (casode SalvatoreMo-
lettieri,que era da Vinci,Pietracupa,da No-
va Fazendinha,e MarisaCuomo e LuigiTec-
ce,elaCellar).Mesmocom essasressalvas,
há bons vinhos para il·atrás.Vaiaqui uma
seleçãodeles:Evil10:Feudidi SanGreg01io
Fiai10di AvellinoPietJ.·acalda2018; Decan-
ter:VillaRaianoFianodi Avellino2018;
Mistral:MastroberardinoTaurasiRadiei
2014;NovaFazendinha:Nanni-CopeTerre
cliVoltumaSabbiedi Sopra il Bosco201O;
Premium:DonnachiaraGrecodiTufo2017
elrpilliaAglianico2016. ■
Sexta-feira, 26 de março de 2021 1 Valor 1 19
 MODA
■ ■

uman1s
BrunelloCucinelli,o "rei da casimira",pregaa necessidade
de um novocontrato socialentre o homeme a natureza.
PorAndreaTorrente,para o Valor,de Curitiba

BrunelloCucinellidiz
queempresas
precisamlucrarde
formajusta, o que
paraele seriaalgo
como8% a 10%:
"Quandoo lucroé
exagerado,algoestá
desequilibrado"

20 1 Valor I Sexta-feira,26 de março de 2021

 e orno conciliar lucro, ética e digni-
dade humana? Há mais de 40 anos,
o empresário Brunello Cucinelli,
dono de uma das casas de moda
mais refinadas da Itália, tenta responder a
essa pergunta buscando inspiração na filo-
sofia - sua paixão - e na vida simples do
campo, onde nasceu e ainda vive.
Conhecido como "rei da casimira", Cuci-
nelli é dono de um império de € 3 bilhões.
Suas criações artesanais, feitas à mão, com
grande atenção à qualidade dos materiais e
aos detalhes, seguem a linha esportiva-chi-
que de luxo. Elegância e conforto são aspa-
lavras de ordem das coleções. As peças che-
gam a custar milhares de reais.
"Aempresa precisa lucrar de forma justa.
Por que precisamos de um lucro exagera-
do?", diz Cucinelli ao Valor, em entrevista
por videoconferência. "Quando o lucro é
exagerado, algo está desequilibrado. Um lu-
cro ele 8%a 10%ao ano é uma porcentagem
justa para uma boa empresa. O problema é
como é alcançado esse lucro. Eu quero que
seja feito com ética, cligniclaclee moral."
Podem soar como palavras vazias ou jo-
gada de marketing, mas seu modelo de ne-
gócio, além ele rentável para os investido-
res - desde 2012, quando estreou na bolsa
ele valores ele Milão, as ações ela empresa
triplicaram ele valor -, foca no bem-estar
de seus funcionários.
Ajornada na fábrica começa às 8h e termina
às 17h30, com 90 minutos eleinte1valo.Nada
elerefeitório, o almoço é servido num restau-
rante que prepara pratos da tradição culinária
local. Horas extras, telefonemas e e-mails são
proibidos após o expediente. Os salários são
em média 20%acima ciomercado.
A Cucinelli é reconhecido o mé1ito ele
valorizar o traballlo a1tesanal cios alfaiates
e costureiras, trabalhadores que ganham
salários mais altos que o pessoal adminis-
trativo ela empresa. "Até alguns anos atrás,
os jovens não tinham prazer em dizer aos
amigos que faziam um trabalho manual.
Alguma coisa impedia ele enxergar e en-
tender o verdadeiro valor e a criatividade
de suas mãos e olhos", explica.
Para evitar que artes antigas e nobres se
perdessem, ele abriu uma escola profissio-
nal para ensinar aos jovens alfaiataria, de-
senho e modelagem de roupa, costura,
horticultura, jardinagem e alvenaria. Sem-
pre que uma turma é aberta, a demanda
ultrapassa a oferta ele vagas.
Enquanto muitos estilistas desenham as
roupas na Itália e fazem a confecção em paí-
ses onde a mào de obra é mais barata, o em-
presário tem as raízes bem fincadas nas co-
"Nosnossos
Brasil.Nãohá
planos
estáa expansão no
dúvidasquenos
próximos 30 anos[o
paísterá] grandes
melhorias"
tinas da Úmbria, região do centro da Itália,
longe eleMilão e outras capitais ela moela.
Seu escritório fica na torre cio castelo ele
Solomeo, burgo medieval do século XII na
província de Perúgia. "Aperiferia tem mui-
tas vezes um significado negativo. Mas
nem sempre é assim: a periferia é um lugar
belíssimo quando a sua humanidade e a
cligniclacleelas pessoas que a habitam po-
dem se expressar segundo sua própria na-
tureza", afirma o empresário.
Desde a década de 1980, Cucinelli trabalha
para a revitalização cio vilarejo. Ele mandou
construir três parques ele árvores frutíferas,
uma vinícola, um olival e uma fábrica eleazei-
te, um monumento de mármore branco em
estilo clássico dedicado à dignidade humana,
um teatro inspirado no modelo renascentista
e uma biblioteca pública. Tudo financiado por
meio elesua fundação cultural.
Velllos galpões abandonados espalha-
dos pelo vale foram reformados ou demo-
lidos para dar lugar a novas fábricas onde
trabalham os 2,1 mil funcionários ela em-
presa. Pequenos laboratórios parceiros em-
pregam outras 5 mil pessoas. O êxodo ela
área rural para as cidades foi revertido. So-
lomeo chegou a ter 300 habitantes, agora
conta com 800 moradores.
A pandemia apenas arranhou a saúde ela
empresa. "Fomos atingidos pela crise, mas
não somos um cios setores que mais so-
freu", reconhece o empresário, que olha o
copo meio cheio. "O ano ele 2020 fechou
'bem' tendo em vista quais eram as premis-
sas de março", afirma.
O faturamento fechou em€ 544 milhões,
uma queda ele 10%em relação a 2019. Cuci-
nelli absorveu o golpe: não demitiu nin-
guém e manteve os níveis salariais cio ano
anterior. Os laboratórios parceiros registra-
ram parcas perdas no faturamento de me-
nos de 2%. A queda nas vendas motivou o
empresário a doar para a caridade o esto-
que encalhado - roupas no valor ele€ 30
milhões-, num projeto chamado de Bru-
nello Cucinelli pela Humanidade.
A previsão para este ano é crescer 15%,e
10%em 2022. O plano clecenal traçado em
2019 está mantido, com o objetivo de do-
brar o faturamento até 2028. "Santo Agos-
tinho disse que a dor é como um mestre",
diz Cucinelli, antes ele apontar os legados
que a pandemia nos deixará.
"Primeiro, não iremos voltar as costas à
pobreza; segundo, como aprendi com os
frades beneditinos que vieram me visitar,
iremos comer na medida certa; terceiro,
após um ano ele dor física, espiritual, mo-
ral e humana, perdemos a propensão à ar-
rogância e ganhamos propensão à gentile-
za e à educação", afirma.
Nascido 67 anos atrás numa família ele
camponeses no vilarejo de Castel Rigone, a
25 km eleSolomeo, Cucinelli prese1va ainda
hoje o respeito que os homens cio campo re-
servam à natureza. Cresceu numa casa sem
luz e água. Na adolescência, ajudava o pai a
guiar os bois para arar o terreno.
Hoje é um homem rico, de visual elegan-
te e impecável, com mais ele 130 butiques
espalhadas pelo mundo. Na América Lati-
na, está presente na Cidade cio México e em
São Paulo, com uma loja no Shopping
Cidade Jardim. Uma viagem ao Brasil pro-
gramada para este ano teve que ser adiada
por causa da pandemia. "Mas nos nossos
planos está a expansão no Brasil, México e
na Argentina. Não há dúvidas ele que nos
próximos 30 anos esses países terão gran-
des melhorias", afirma.
Durante a entrevista, uma caixa cheia ele
bolas ele futebol ao lado ela escrivaninha
chama a atenção. "Sou um amante cio fute-
bol e, como as pessoas conhecem minha
paixão, me mandam bolas do mundo in-
teiro", afirma Cucinelli. "O Brasil sempre
exerceu seu fascínio por meio cio futebol",
diz "Sei a seleção ele 1970 ele cor: Félix,
Brito, Piazza, Carlos Alberto, Clocloaldo,
Everaldo, Jairzinho, Gérson ... " O time der-
rotou a seleção italiana por 4 a 1 na final
ela Copa do Mundo.
A empresa começou em 1978, quando
Cucinelli inovou ao tingir com cores dife-
rentes suéteres femininos de casimira. O te-
cido é fabricado a partir de delicadas fibras
ele lã retiradas elecabras elaraça Hircus cria-
das na região entre índia e Paquistão. O
mercado alemão foi o primeiro a se apaixo-
nar pelas roupas coloridas. Na virada cio sé-
culo, a empresa ampliou a produção e in-
vestiu em acessórios, bolsas, sapatos e cole-
ções completas masculinas e femininas.
Sexta-feira, 26 de março de 2021 1 Valor 1 21
 De fala mansa -na juventude, cogitou se
tornar frade-, Cucinelli é um amante da fi.
losofia. Toda noite reserva duas horas para a
reflexão pessoal e para estudar obras clássi-
cas. As paredes de suas lojas são forradas
com as confissões de Santo Agostinho e os
diálogos de Giordano Bruno.
Citações de Confúcio, Nietzsche, Aristóte-
les, Platão e Sócrates, além dos imperadores
romanos Marco Aurélio e Adriano, enri-
quem seus escritos, suas conversas, e estão
espalhadas por toda a cidade de Solomeo. A
primeira frase que aparece ao se abrir o site
da marca é uma citação de Kant, "o belo é o
símbolo do bem moral".
Ao longo da carreira, Cuci.nelli.recebeu
inúmeros reconhecimentos, como os di-
plomas honoris causa em filosofia nas uni-
versidades de Messina e Perúgia, na Itália, e
o Global Economy Prize, do prestigioso
Instituto da Economia Mundial de Kiel, na
Alemanha. A imprensa americana já o cha-
mou de "homem renascentista", ou polí-
mata, e "príncipe de Solomeo".
Seu jeito nada comum de empreender o
tomou um guru do capitalismo humanis-
ta, que atraiu as atenções inclusive dos em-
presários do Vale do Silício. Não só pelo es-
tilo - Mark Zuckerberg veste camisetas fei-
tas à mão grifadas Cucinelli -, mas pelas
visões do mundo e trabalho.
Em 2019,Jeff Bezos, o fundador da Ama-
zon, e uma outra dúzia de presidentes das
"big techs" - entre eles Reid Hoffman, do
Linkedln, e Drew Houston, da Dropbox -
voaram a Solomeo para conhecer de perto
o coração do império humanista de Cuci-
nelli. Foram três dias, desconectados do
mundo, para trocar experiências pessoais e
falar de filosofia e de futuro.
"Eu disse a eles: 'Vocês são uma espécie
de Leonardo [da Vinci] moderno, mas Leo-
nardo era um verdadeiro humanista.
Quem de vocês conseguir dar humanismo
à tecnologia se tornará o novo Leonardo.
Nos digam como podemos usar essas no-
vas tecnologias sem que nos roubem a al- Ovilarejode Solomeo Rousseau. "Precisamos de um novo contrato maneira sustentável. A "fast fashion", a mo-
ma"', exortou Cucinelli. e o casteloonde social, não mais entre os homens, mas entre o da descartável, pode ter os dias contados.
Casado com Federica Benda, de quem Cucinellitem seu homem e a natureza", diz. "Uma peça de casimira dura a vida inteira,
pegou o gosto pela moda, e pai de Camilla escritório.A "Cada um de nós precisa voltar a ter gran- não se joga, se deixa como herança, a dura-
e Carolina, Cucinelli revela que é guiado empresa,quedireta e de humildade, coragem, criatividade e se- ção é o símbolo de seu valor", diz.
por três ideais: a fanúlia, a espiritualidade indiretamente riedade. Pensemos nos nossos filhos, nas ge- Perguntado sobre dicas para ali.ar con-
e a política. "Os partidos e alguns políticos emprega7 mil rações futuras, no mundo que receberão de forto e elegância em tempos de reuniões
estão em crise, mas não podemos não in- pessoas,ajudoua nós e que deverá ser um pouco melhor que virtuais, Cucinelli levanta da cadeira e mos-
vestir na política. Precisamos de uma boa reverter umêxodo este", resume. A essência do apelo é um im- tra seu look na frente da câmara: calça
política para nos guiar", afirma. pulso rumo ao capitalismo sustentável, do jeans, camisa branca, suéter cinza claro
Sem pretensões eleitorais, Cucinelli tenta ponto de vista ambiental e humano. com gola em V e por cima blazer branco
dar sua contribuição ao debate público. Em As mudanças já estão ocorrendo e são ir- com lencinho no bolso. "O estilo esporti-
novembro, publicou "Carta para um Contrato reversíveis, segundo o empresário, que diz vo-chique é confortável e elegante. No
Socialcom a CLiação",inspirada na obra escri- observar nos jovens um interesse crescente meu caso, ajuda também a aparentar cinco
ta mais de 250 anos atrás por Jean-Jacques em saber se os objetos são produzidos de anos a menos", brinca. ■
22 1 Valor I Sexta-feira, 26 de março de 2021
SOCIEDADE
"Avacinação
iniciou
umaguerrageopolítica"
Sociólogo
Boaventura
deSousaSantosvê'apartheid
mundial'.
coronavfrus é a expressão das
O dificuldades e contradições
de nosso tempo, e é com a
pandemia que inauguramos,
tardiamente, o século XXI. Essa visão,
que permeia o pensamento do sociólo-
go português Boaventura eleSousa San-
tos, está esmiuçada no livro "O Futuro
Começa Agora: Da Utopia à Pandemia"
(Boitempo, 400 págs., R$77).
Produzido no ano passado, antes
da chegada da vacina, o livro foi es-
crito, nas palavras do autor, "entre o
medo e a esperança". Em entrevista
ao Valor, Boaventura diz que o início
da vacinação confirma sua aborda-
gem de que a pandem.ia veio dar
uma nova transparência e agravar as
desigualdades no mundo.
"O vírus é caótico, mas não demo-
crático - basta ver como as taxas de
letalidade variam não só de país para
país, como também dentro de cada
país consoante o rendimento e a con-
dição social das pessoas."
Na sua opinião, a vacinação iniciou
uma guerra geopolítica com várias
dimensões que têm a ver, por um la-
do, com a medicina ocidental, domi-
nada pelas grandes empresas multi-
nacionais farmacêuticas, ou "big
pharma", que controlam a produção
das vacinas e vendem, preferencial-
mente, para os países ricos da Europa
e ela América do Norte.
"Esta geopolítica assenta na ideia da
superioridade científica em relação às
vacinas produzidas em outros contex-
tos: a chinesa, a russa, a cubana. Não es-
tá provado que as vacinas produzidas
pela 'big pharma' sejam mais eficazes
do que as outras. Pelo contrário. Esta-
mos criando um apartheid mw1dial."
A grande oportunidade da pande-
mia seria trazer mudanças políticas,
sociais e comportamentais. Mas, por
enquanto, tudo é uma incógnita. Ao
pensar no amanhã, Boaventura apre-
senta três cenários para o período
pós-pandêmico.
O primeiro é o negacion.ismo -
"O modelo que tem dominado o go-
verno brasileiro". O segundo é o que
PorMariadaPazTrefaut,parao Valor,deSãoPaulo
ParaBoaventura,pandemiadá umanovatransparênciae agravaas desigualdades
ele chama de "gattopardo"(baseado
no título italiano do romance de Giu-
seppe Tomasi di Lampeclusa, "O Leo-
pardo"), ou fazer alterações para que
nada mude no essencial.
O terceiro cenário setia uma resposta
à oportunidade que o vírus nos dá de
pensarmos numa alternativa ao mode-
lo ele desenvolvinlento, não só econô-
mico, mas também das formas de socia-
bilidade dominantes.
"Se é verdade que através cio vírus a
natureza nos está a dar algumas men-
sagens de que este modelo não pode
continuar, seria a oportun.idade para
começarmos a pensar numa transição
para outros modelos de produção e
GUSTAVOLDPESPERElRAJOlVULGA
ÃO
de consumo." Ele destaca a necessida-
de de as economias começarem a di-
versificar sua matriz energética, usan-
do mais fontes renováveis.
Ele diz que os centros comerciais vão
ser zonas de risco e devem ser substituí-
dos por pequeno comércio de proximi-
dade ou por centros comerciais redi-
mensionados para estarem mais próxi-
mos das comunidades. "Arelação cida-
de/campo tem eleser mudada."
Eletambém prega a mudança nos há-
bitos ele consumo. "Um computador,
um celular, um relógio elepulso, que po-
dem durar 10, 20 ou 30 anos, estão ago-
ra programados para durar muito pou-
co para que possamos continuardepen-
dentes de novos conswnos, com sobre-
carga enorme para os recursos naturais,
que serão cada vez mais escassos."
O sociólogo qualifica como "surpre-
endente e estranho" o fato eleJair Bolso-
naro continuar com 30%ele aprovação.
"Há uma base ideológica e conservado-
ra muito forte que se mantém firme na
defesa do presidente." Ele também
menciona as ações das redes sociais e o
fato ele a população brasileira ter clifi-
culclacle em vincular a má gestão ela
pandemia ao desempenho cio presi-
dente. "Seja por fatalismo ou pelas con-
dições elevicia,prevalece a ideia ele con-
siderar acidental o que se passa no Bra-
sil, e não o resultado ele uma política
que ou é negligente ou é mesmo inten-
cional no sentido de desproteger a saú-
de da população."
No caso elePortugal, que reelegeu em
janeiro o conservador Marcelo Rebelo
ele Sousa, o sociólogo diz que a vitória
foi o reconhecimento do equilíbrio
com que o presidente getiu o primeiro
mandato. Além disso, diz que "os portu-
gueses quiseram a continuidade de
uma certa coesão política entre o gover-
no e a presidência para que o país se
concentre mais na luta contra a pande-
mia cioque na luta política interna".
Mas Portugal também deu muitos
votos ao Chega, partido simpatizante
ciobolsonatismo. Eleinsere isso no cres-
cimento global da extrema-direita,
"muito apoiado pelos setores do capital
financeiro", e como consequência ele
uma atitude antissistema feita elevários
componentes. Entre eles, estão os seto-
res minoritários que nunca concorda-
ram nem com a descolonização ( a saída
dos portugueses das colônias na Áftica
e no Timor-Leste) nem com o 25 de
Abril ele 1974( a Revolução ciosCravos).
No Brasil, em Portugal e no mundo,
Boaventura diz que para o crescimento
ela extrema-direita cont:tibuíram tam-
bém as incertezas, o agravamento elas
desigualdades sociais, o fato ele setores
elapopulação se sentirem abandonados
pelas políticas públicas e terem medo de
cair na pobreza absoluta ao ver a sua si-
tuação social cada vez mais precátia. ■
Sexta-feir,1,26 de março de 2021 1 Valor 1 23
O Monumentoda
CruzCaída,de Mario
Cravo,foi erguido
ondeantes eraa
Igreja da Séem
Salvador,ondeo
SantoOfícioproferia
suassentenças

■ /\.. ■

1no eranc1a
Série,livro e debatemarcam200 anosdo fim da
Inquisição.Por Sheilal<aplan,parao Valor,do Rio
24 1 Valor I Sexta-feira,26demarçode2021
 leitura do romance pastoril "Dia-
A na" selou o destino do jovem poeta
Bartolomeu Fragoso. A posse do li-
vro de Jorge de Montemor, tido co-
mo herético pelo Santo Ofício, em que a pro-
tagonista, apaixonada por outro, lamenta
seu casamento infeliz, foi uma das acusações
contra o poeta, condenado ao degredo.
Fragoso é um dos personagens de "Confis-
sões da Bahia", série desenvolvida pelos rotei-
ristas Douglas Tourinho e Angelo Tortelly, cu-
ja trama se passa durante a primeira visitação
da Inquisição ao Brasil, em 1591, quando,
além de cristãos-novos, que eram o alvo prin-
cipal, centenas ele colonos foram perseguidos
por btuxaria e práticas sexuais como sodo-
mia, bigamia, adultério e concubinato.
Neste ano em que se comemoram dois sé-
culos do fim da Inquisição, o período som-
b1io que durou quase 300 anos será tam-
bém tema ele livros e debates acadêmicos.
Em Belo Horizonte, o Museu da História da
Inquisição lançou "Bicentenário do Térmi-
no da Inquisição Luso-Brasileira", obra que
traz 150 imagens e expõe de fo1111adidática
uma história ainda pouco conhecida.
O lançamento, por videoconferência, foi
planejado para 31 de março, data em que
foi votado, em 1821, o fim da Inquisição
pela assembleia constituinte em Portugal.
Na capital mineira, desde 2013, foi instituí-
do, via decreto municipal, como Dia em
Memória às Vítimas da Inquisição.
A planejada série de Tourinho e Tortelly,
pensada para ocupar oito episódios e que
está sendo negociada para TV aberta ou
streaming nas feiras de audiovisual, ga-
nhou o edital para audiovisual da Secretaria
de Cultura do Estado da Bahia. Para garantir
o rigor histórico, os dois tiveram a consulto-
ria cio historiador Ronaldo Vainfas, autor de
"Trópico cios Pecados: Moral, Sexualidade e
Inquisição no Brasil", entre outros livros.
Os personagens reais tiveram suas histó-
rias conhecidas por meio de processos in-
quisitoriais e manuscritos cio Arquivo da
Torre cio Tombo, em Lisboa. "Em relação à
construção cios personagens fictícios, os au-
tores tiveram a maior liberdade possível,
mas em relação aos reais há que ter caute-
las", explica Vainfas. Além da ficleliclacle ao
conteúdo histórico da trama, ele também se
preocupou em evitar anacronismos.
O historiador acompanhou a elaboração
cio roteiro, capítulo a capítulo, discutindo
desde os rituais judiciários ela Inquisição
até as roupas que as pessoas usavam, as re-
feições, tipos ele barcos, o material ele que
as coisas eram feitas. "Não podíamos, por
exemplo, colocar uma mulher entrando
na igreja desacompanhada", diz Tortelly,
acusada de ter romance com mulheres. Foi
"Asérieapresenta açoitada publicamente, teve de caminhar
maisparalelos
descalça pela cidade, mãos amarradas, segu-
comos rando uma vela acesa, e foi condenada ao
diasdehojedoque
degredo. Felipa aparece apenas como coad-
juvante em "Confissões da Bahia", porque
sobre ela será realizado um longa-metra-
gostaríamos",
diz gem, dirigido por Ceei Alves, também com
roteiro de Douglas Tominho, livTemente
AngeloTortelly,
um adaptado do livro de Patrícia Toledo.
Em outro episódio, o senhor de engenho
dosroteiristas
de Fernão Cabral de Ataíde, descendente de Pe-
dro Álvares Cabral, é denunciado e julgado
"Confissões
daBahia" por ter permitido em suas terras uma seita
constituída de elementos sincréticos indíge-
nas e católicos. Seu intuito era atrair os tupi-
uma vez que esse não era um comporta- nambás como mão de obra escrava para tra-
mento aceito no Brasil quinhentista. balhar na lavoura. Acusado pelo inquisidor,
"Contar com Ronaldo Vainfas na supervi- juntou-se a outros fazendeiros e comandou
são e consultoria ela série foi um privilégio", um massacre contra os índios. Foi condenado
diz Tourinho. "Além de muito preciso quanto a um curto período ele degredo.
à história, ele também entende de dramatur- Já o vigário Frutuoso Álvares, também
gia e nos deu toques importantes." Os dois ro- convocado pelo Santo Ofício, acusado ele
teiristas são vencedores do Emmy, a impor- "tocamentos desonestos e torpes", mesmo
tante premiação dada a programas ele televi- tendo confessado ter praticado sodomia e
são: Tominho pela novela "Lado a Lado", de abusado de menores, não recebeu punição.
Cláudia Lage e João Ximenes Braga, de cuja Lealdades e traições, disputas familiares,
equipe fez parte, e Tortelly pela série de repor- violência contra mulheres, exploração de ín-
tagens sobre a ocupação cio Complexo cio Ale- dios. ''A série apresenta mais paralelos com
mão, exibida no ''Jornal Nacional". os dias de hoje do que gostaríamos", diz Tor-
Uma das protagonistas ele "Confissões telly. Para Vainfas, a importância de "Confis-
ela Bahia" é Ana Rodrigues, da alta socieda- sões ela Bahia""é mostrarum tempo de into-
de da época, amiga de Dom Antônio, bispo lerância, típico da época, mas que pôde ser
de Salvador. Dona do engenho Matoim, no reavivado em vários tempos, inclusive o
Recôncavo, era bem relacionada com o cle- atual, não só no Brasil como no mundo".
ro católico, ajudando na constmção de Foi o risco da intolerância religiosa o princi-
igrejas e provendo o bispado com legumes pal motivo que levou o engenheiro Marcelo
e frutas. No interior do engenho, porém, Miranda Guimarães a fundar o Museu da His-
mantinha uma sinagoga clandestina. tória da Inquisição em Belo Horizonte em
"Era sabido que era cristã-nova. Quem não 2012. Como diretor ela siderúrgica Mannes-
sabia, desconfiava", diz Tou1inho. A chegada mann, hoje Vallourec, viajava regularmente
do inquisidor Heitor Furtado de Mendonça, para a Alemanha, aproveitando para passar
no entanto, modificou as regras de conviviali- em Portugal e pesquisar a origem da sua fanú-
dade entre nistãos-novos e velhos. Delatada lia. Confirmou ser descendente de cris-
pelo genro, Ana Rodrigues,já octogenária, foi tãos-novos e passou a colecionar uma vasta
condenada à fogueira em Portugal e mo1Teu bibliografia sobre o tema, além de objetos da
na prisão antes que a pena fosse cumprida. época da Inquisição, adquiridos em leilões.
Outras personagens femininas fortes da Éesse o ace1vo que constitui o museu. "Tan-
época estão presentes na série. A espanhola to o museu como o livro que agora publicamos
Catarina Morena, acusada de bigamia, é têm o propósito de trazer a público essa histó-
obrigada a se separar do homem com quem ria que não foi contada nem pela igreja, nem
casara na igreja em Salvador, tendo deixado pelo Estado, que eram sócios durante a Inqui-
marido vivo em Portugal.Já Paula de Siquei- sição", diz Guimarães, lembrando o legado dos
ra, mulher de um renomado funcionário do cristãos-novos para a formação do Brasil.
governo, foi acusada de envolvimento em ri- Entre os eventos acadêmicos que se pro-
tuais de bruxaria, bem como ela leitura ele põem a buscar novos caminhos para a refle-
obras proibidas. Confessou ter lido o ro- xão sobre a Inquisição, destaca-se o seminário
mance "Diana" "perante a gente de sua casa". on-line "A Inquisição Portuguesa: 200 Anos
Ficou seis dias presa e teve de pagar uma Depois", organizado por pesquisadores brasi-
quantia elevada ao Santo Ofício. leiros e portugueses, que tem início em abril e
Pena mais severa recebeu Felipa de Souza, se estende até o fim do ano. ■
Sexta-feira, 26 de março de 2021 1 Valor 1 25
 CINEMA

, ■

a memoria
Indicadoa seis ctogenário afetado pela demência lha, Anne, que é interpretada por Olivia Col-

prêmiosOscar,
'MeuPai'busca
O
já não reconhece as pessoas ao seu
redor ou mesmo o apa1tamento on-
de mora. Seus dias são cada vez mais
confusos, como se ele estivesse preso a uma
realidade estranha. Até o relógio, que o idoso
man. Pelo menos até o idoso passar a ver outra
mulher na sua frente (interpretada por Olivia
Williams), que jura ser sua filha.
"Inicialmente, o filme é bastante realista,
a ponto de ninguém questionar o que está
nunca sabe onde deixou, parece querer enga- vendo na tela", diz Zeller, durante evento
levaraoespectadorzinha
ná-lo. Quando pensa ter sido chamado naco-
para tomar o café da manhã porque
on-line realizado no último Festival de To-
ronto (Tiff), que teve cobertura do Valor.
a sensaçãoda ainda está de pijama,já é hora do jantar. E ele
nem se lembra do que aconteceu naquele dia.
"Pouco depois, a mesma situação é apre-
sentada de outra maneira, em discordância
Acompanhar o estrago da demência, da com o que foi visto antes, o que deixa a pla-
demência do perspectiva de quem se sente o tempo todo teia mais ativa. Ela não simplesmente
desorientado, é o que torna "Meu Pai" uma acompanha uma história que é contada,
personagem de obra humana e desconcertante. Indicado a
seis prêmios Oscar, incluindo o de melhor
sendo parte da narrativa."
No começo da trama, Anthony, um enge-
AnthonyHopkins. filme e o de melhor ator, com Anthony
Hopkins, o drama é inspirado no que o
nheiro aposentado que prefere morar sozi-
nho, ainda tem dias bons, quando reconhe-
PorElaineGuerini, francês Florian Zeller testemunhou em fa-
mília. Nos anos 1990, sua avó perdeu pro-
ce o seu espaço, os seus móveis e a sua filha.
Ao visitar o pai, Anne, preocupada com a
gressivamente as capacidades cognitivas, perda con(mua de suas funções cerebrais,
paraoValor, principalmente a memória. insiste ter chegado o momento de contratar
"Aideia é colocar o espectador nesse labi- uma cuidadora, algo que ele não aceita.
deSãoPaulo rinto, no qual ele terá de lidar com as contra-
dições das situações apresentadas e não en-
Conforme a ação avança, o idoso passa a
enfrentar dias ruins. Para começar, ele não
tenderá exatamente o que está acontecen- entende o que um homem desconhecido es-
do", diz Florian Zeller, diretor e roteirista do tá fazendo no seu apartamento. O sujeito,
filme previsto para estrear no Brasil em 8 de que se comporta como se fosse o seu genro,
abril, dependendo da reabertura dos cine- Paul (vivido por Mark Gattis), diz ser o dono
mas. "Temos uma espécie de quebra-cabeça. da casa e afirma estar esperando Anne voltar
Você pode brincar com as peças, mas nunca das compras, para o casal preparar o jantar.
vai conseguir completá-lo. Fica sempre fal- O problema é que Anthony só se recorda
tando uma peça, o que é de propósito." de a filha ter dito no último encontro que
Para que a plateia se sinta perdida, assim estava divorciada do marido e que trocaria
como o protagonista (Anthony, como o ator), Londres por Paris, por ter se apaixonado por
a câmera mostra só o que ele vê, na maior par- um francês. Daí a necessidade de uma cui-
te do tempo. É como se o público estivesse na dadora, por Anne estar de malas prontas
cabeça do personagem, quando ele passa a para deixar o país. Aos olhos do idoso, a no-
não reconhecer lugares ou pessoas. Como a fi- va situação simplesmente não se encaixa, o
26 1 Valor I Sexta-feira,26demarçode2021
que permite a Hopkins expressar toda a
frustração, a raiva e, mais tarde, o desespero
de quem não sabe mais em quem acreditar.
Ele desconfia da própria mente.
"Foi fácil para mim interpretá-lo porque
o meu cérebro está velho também. Velho o
suficiente para entender", afirma Anthony
Hopkins, que também participou do evento
do Tiff."Tenho a mesma idade do persona-
gem. Não que eu esteja com medo. Ainda
estou forte e me sinto em forma", completa
o ator britânico, de 83 anos.
"Mas eu sinto a mesma melancolia. O
que me pegou foi a luz no nosso pequeno
set de filmagem, no norte de Londres.
Aquelas tardes honiveis de sol forte em
uma rua suburbana, onde você ouve um
carro passando ou as ctianças falando", re-
corda Hopkins, candidato ao Oscar pela
sexta vez pelo retrato do idoso confuso. Pe-
lo desempenho como o assassino serial ca-
nibal de "O Silêncio dos Inocentes", ele
conquistou a primeira estatueta de melhor
ator da Academia, em 1992.
Olivia Colman, vencedora de um Oscar de
melhor atriz pelo papel da rainha Ana do
Reino Unido em "A Favorita" (2018), foi in-
dicada novamente por "Meu Pai". Desta vez,
a inglesa concoITe ao prêmio de melhor
coadjuvante pela empatia imediata que
desperta no público na pele da filha com
um dilema: colocar ou não o pai senil em
uma casa de repouso. Por mais amorosa e
dedicada que Anne seja, Anthony sempre
dá um jeito de insultá-la, não reconhecendo
o seu esforço para ajudá-lo, no sentido de
deixá-lo mais seguro e confortável.
"Eu só precisei observar Tony (Anthony
Hopkins). Sentir o que ele enfrentava no set
facilitou muito para mim. Foi de cortar o cora-
ção vê-lonesse papel", afirma Olivia,lembran-
do que a dupla precisava se descontrair nos
intervalos de filmagem. "Tony faz imitações
hilárias e conta muitas histórias. Eu teria feito
esse trabalho de graça, mas meu agente diz
que não devo falar isso",brinca ela.
A força e a engenhosidade do roteiro so-
bre demência ajudaram Zeller a conseguir
dois atores de peso em seu primeiro lon-
ga-metragem. Por ser dramaturgo, ele ini-
cialmente tratou o assunto na peça "Le Pe-
re", que venceu o prêmio Moliere em 2014 e
foi traduzida do francês para o inglês, ga-
nhando os palcos de Londres e de Nova York
como "The Father", em 2016.
"É uma história pessoal que eu percebi, no
palco, ser muito universal. Depois de cada
perfonnance, pessoas da plateia vinham nos
contar as suas experiências", afirma Zeller, "Foifácil paramim
indicado neste ano ao Oscar de melhor ro- interpretá-loporque
teiro adaptado, pelo trabalho feito em par- o meucérebroestá
ceria com o inglês Christopher Hampton. Na velhotambém.Velho
premiação marcada para 25 de abril, "Meu o suficientepara
Pai" também concorre nas categorias de entender",diz
montagem e de design de produção. AnthonyHopkins
Como não adiantaria só filmar a peça, sobreo personagem
Zeller reescreveu o material com Hampton, de"MeuPai"
o vencedor do Oscar de melhor roteiro
adaptado por "Ligações Perigosas" (1988),
para torná-lo mais cinematográfico. A
ideia de brincar com a plateia, deixando-a
desorientada, já veio do teatro. "O que fize-
mos no filme foi transformar o cenário em
um personagem da história, com o aparta-
mento de Anthony sofrendo várias meta-
morfoses", diz o diretor, referindo-se à mu-
dança de móveis, de objetos de decoração
( como quadros) e de cores.
Mas toda alteração é sutil-só o suficien-
te para criar uma leve estranheza dentro de
um ambiente que ainda é familiar. Int1iga-
do com o que acontece ao redor, o protago-
nista inevitavelmente passa a questionar se
algo mudou na sua casa de fato ou se ele só
está imaginando coisas. 'Tudo foi feito para
que o espectador experimentasse pelo me-
nos um pedaço da demência", diz Zeller. ■
Sexta-feira, 26 de março de 2021 1 Valor 1 'r7
 LIVRO
Dunker
analisa
metamorfoses
dadepressão
abordatranstornodesdeorigensaté os diasda covid.PorSérgioTelles,parao Valor,de SãoPaulo
Psicanalista
Uma Biografiada Depressão
ChristianDunker
Paidós
240 págs.,R$46,90
Christian Dunker
-conhecido
psicanalista,
professor titular do
Instituto de
Psicologia da USPe
presença na mídia
- organiza de
fonna criativa essa abrangente
história da depressão, ao organizá-la
como uma biografia com episódios
intih1lados de forma sugestiva, que
atiçam a curiosidade do leitor.
Inicia a biografia com os nobres
"antecedentes familiares" da
depressão: a melancolia e a tristeza
( acídia ), deSCtitospor Aristóteles e por
monges medievais, bem como por
escritores como Richard Bu1ton
("AAnatomia da Melancolia", de 1621 ).
O "nascimento" da depressão se dã
em 1785, quando William Cullen
retira a melancolia de suas origens
ilustres e a inscreve no domínio da
medicina, transformando-a numa
das "doenças dos nervos".
O aparecimento da "depressão"
coincide com a instalação do
romantismo nas artes, o que dá
oportunidade a Dunker de estabelecer
aproximações entre o transtorno e
vários artistas, como Turner, Edvard
Munch, Edward Hopper, LewisCarro li,
Samuel Beckett e Van Gogh.
Sua "infância infeliz" se caracteriza
pelo período em que não tinha uma
existência própria e era apenas um
coadjuvante dos grandes quadros de
sofrimento mental. Dentro do
referencial freudiano de "Inibição,
Sintoma e Angústia", ela continuou
sendo a "irmã do meio", entre os
"sintomas verdadeiros e a caçula
malcriada chamada Angústia". Apesar
de ter recebido grande prestígio na
obra de Melanie Klein, apenas a partir
dos anos 1950passou a receber
atenção e cuidados específicos.
28 1 Valor I Sexta-feira,26 de março de 2021
ChristianDunkertrata a históriadadepressão
deformacriativaemseunovolivro
Équando ocorre o "rapto da
depressão pela nova psiquiatria".
Os aportes crescentes e complexos da
psicanálise ao acervo da depressão
foram deslocados por outras narrativas
criadas pelas mudanças nas relações
sociais concernentes ao trabalho e ã
organização econômica (guerras, crises
financeiras etc.).
Concomitantemente, surgiram os
novos antidepressivos, dando relevo
máximo à depressão no interior da
clínica psiquiátrica, quando ela passa a
ser considerada a expressão mais
frequente de transtorno psíquico
individual e social. Entretanto, as
promessas das neurociências e as
explicações sobre os neurotransmissores
progTessivamente perderam força,
gerando grande frustração.
Assiste-seassim à "ascensão e queda
da rainha depressiva". O conflito
interno-central para a psicanálise-
perde a importância e é transfe1ida para
os conflitos com a realidade externa.
Supostamente a depressão viria de fora,
de problemas neuroendócrinos
cerebrais ou de pressões econômicas ou
socioculturais, isentando o sujeito de
qualquer pa1ticipação pessoal em sua
condição depressiva.
As terapias cognitivas
comportamentais ensinam técnicas
para controlar o pensamento. Se, no
séctúo XIX,a moralidade pública e
econômica exigia contenção, restrição
e poupança, o neoliberalismo ordena
consumir, gozar e gastar, detem1inação
que o depiimido não acata, deixando-o
isolado socialmente.
Aos poucos, a depressão perde sua
posição de "rainha" e fica relativamente
normalizada, representando a forma
mais frequente e socialmente tolerada
do sofrimento psíquico, da mesma
forma como a neurose antes ocupava
esse mesmo lugar. Éinteressante
notar que a potência dos
antidepressivos parece decrescer à
medida que as patentes caducam e os
preços caem, o que evidenciaria a mão
da indústiia farmacêutica.
Apoiando-se na diferença
estabelecida por Walter Benjamin
entre vivência ("Erlebnis ") e
experiência ("Erfahrung"), Dunker
adota um estilo mais ensaístico em
"Depressão em Tempos de Felicidade
Compulsória", discorrendo de forma
crítica e divertida sobre algumas das
formas muito familiares de depressões
compartilhadas no dia a dia, a começar
por aquela desencadeada pela
quarentena imposta pela covid.
Aborda então a "depressão do fim
de ano" (parente da "mania da
sexta-feira", da "angústia do
domingo" e da "melancolia da
segunda") e a "depressão política".
O leitor se beneficiará com a vasta
gama ele informações sobre aspectos
históricos, médicos, psiquiátricos,
psicanalíticos e socioculturais da
depressão. Dunker também mostra as
dificuldades no estabelecimento do
diagnóstico das doenças mentais, que
mal se adaptam ao conceito de
doença física em medicina, dado que
lhes faltam marcadores biológicos e a
aferição dos sintomas depende dos
relatos dos pacientes, da observação
subjetiva de suas funções psíquicas ou
de seus comportamentos objetivos.
As tentativas de deixar mais
objetivas as descrições diagnósticas
em psiquiatria tiveram relativo
sucesso, o que não impediu que a
última versão (a quinta) do "DSM-
Manual de Diagnóstico e Estatístico
de Transtornos Mentais", feito pela
Associação Americana de Psiquiatria
e usado globalmente, tenha recebido
unânimes críticas e censuras pela
criação excessiva de novos
transtornos, dando um caráter
patológico a circunstâncias nonnais
própiias da vida.
SérgioTellesé psicanalistae escritor,
autor devárioslivros,entreeles"Postode
Observação" (EditoraBlucher,2017)
Destinostraçadospelageografia
DramaturgoNewtonMorenoescrevelivrode contos.PorDirceuAlvesJr.,parao Valor,de SãoPaulo
CidadesSensíveis
NewtonMoreno
Folhasde RelvaEdições,
128 páginas,R$45,90

De uma coisa, o
dramaturgo
pernambucano
Newton Moreno, de
51 anos, tem a
plena certeza. Ele
pretende
envelhecer no
exercício da contação de histórias,
sem depender eleninguém e menos
ainda elascircunstâncias da vida. E,
no último ano, o premiado autor elas
peças "Agreste",''AsCentenárias" e
"Maria do Caritó" se viu, como tantos,
diante de uma limitação.
A paralisação elas atividades
culturais por causa da pandemia
deixaria suas ideias longe do palco.
O adiamento cio espetáculo "Suefio",
uma releitura política ela
shakespeariana "Sonho de uma Noite
eleVerão",que começaria a ser
ensaiado em maio, levou Moreno a
fugir do silêncio em um projeto
apoiado somente na concentração
individual: um livro de contos.
Em "Cidades Sensíveis",o
dramaturgo dá asas a criaturas
envolvidas em conflitos sociais,
identitários e de gênero em um trânsito
entre o sagrado e o profano, linha
explorada nas suas peças. Em comum,
desta vez, os destinos são traçados ele
acordo com a geografia que os envolve.
Moreno confessa que anda meio
cansado de um formato que
inevitavelmente segue no teatro.
"Eu sou obrigado a centrar atenção
em um único assunto", afirma. "A
literatura pode abolir qualquer tipo
de protagonismo, ganho permissão
para enfocar diferentes temas e
desenvolver com profundidade vários
personagens ao mesmo tempo."
Não se trata de uma estreia nas
tramas curtas. Em 2016, Moreno
publicou "Ópera e Outros Contos",
volume patrocinado por um edital ele
Comatividadesparalisadaspelapandemia,NewtonMorenofugiudosilêncioem um projetodeconcentraçãoindividual
apoio às artes elaprefeitura cioseu
Recifenatal. "Ali,tudo era mais
exagerado, melodramático, rasgado,
sobre pessoas à margem, vejo como um
livroeleafetos",diz. "Desta vez,eu criei
uma narrativa geográfica, não a
história de uma cidade ou da sua
formação, mas como o lugar serve ele
trampolim e moldura para os
personagens."
São 27 histórias clivicliclas
em dois
segmentos. Em "Cidades com Deus",a
religiosidade e o mistério determinam
os destinos elecada um, enquanto em
"Cidades sem Deus",os contos
independem de qualquer relação de fé
e os tipos trilham caminhos voltados
para uma realidade social ou ele
comportamento.
Riode janeiro, México,Osasco,
Curitiba, Recife,Atacama e Londres
figuram como cenários, mas o autor
também recorre à imaginação para
pontos indeterminados, definidos
como cidade universitária, ciossonhos
ou do interior, sejam elas de Mi.nas
Gerais,elaParaíba ou cioPiauí.
A temática elatransexualiclade,
abordada em peças como "Imortais",
surge em destaque, com cinco
narrativas de oportuna discussão. Em
"ARaiz",o filho caçula de uma família
formada só por homens assume o
papel e as funções da mãe
recém-morta. "ABença 1"e "ABença2",
ambientadas respectivamente no
intetior mineiro e na paulista
Guaratinguetá, são centradas em uma
jovem hostilizada na igreja e em uma
menina milagreira cujo segredo é
descoberto depois da sua morte.
Também vigorosas são "Dia das
Mães",que se passa em Aparecida e
mostra uma mulher trans
amamentando a filha pela primeira
vez,e "Fronteira",o mais bem-sucedido
dos contos da coletânea. Da periferia de
Caracas,o transexual Mário cruza os
limites para o Brasile, em Roraima, vive
um romance com um pastor casado.
"Pretendo desenvolver mais esse
universo transe acredito que ainda
tem um espaço não explorado na
dramaturgia e na literatura
brasileira", diz.
Quem é íntimo da sua obra teatral
poderá estabelecer conexões com
certas histórias e algumas delas não
são gratuitas. ''AHerança",
ambientada no interior de Goiás,
flerta com o melodrama e o folhetim,
objetos de estudo eleMoreno com a
companhia Os Fofos Encenam. "Puta
Serial", que se passa em Brasília, é o
embrião da peça ''.Justa",sobre uma
prostituta ética que se vinga dos
poderosos clientes. O caráter
noticioso também ronda "Mansidão",
inspirada no extremismo vigente no
Brasil por meio eleuma professora
universitária assombrada pelo
fanatismo religioso de alguns alunos.
"Cidades Sensíveis"é uma ótima
surpresa, uma investida literária
orientada pela mesma veia do
dramaturgo Newton Moreno, o que
não deixa de ser natural tanto para o
autor como para seus leitores,
prováveisconhecedores de um
currículo teatral, com histórias
fragmentadas e próximas da fábula.
Depois dessenovo passo,Moreno,
mais à vontade e seguro, provavelmente
deverá sobrepor a literatura ao seu
teatro e, assim,atingir a transcendência
de um estilo próprio, como aqui ele
alcançou em "Fronteira".A histó1ia
pocle1iaestar no palco,nas telas do
cinema ou da televisão,mas se apresenta
naturalmente como literatura. ■
Sexta-feira, 26 de março de 2021 1 Valor 1 29
LITERATURA
"Cromwell
teriadificuldades
ementender
o Brexit"
HilaryManteldizqueo conselheiro
era'europ:u PorMari1aDella
emtooososasr:axos'. Valle,P3Jâo Valor,deSãoPaulo
o colocar o ponto final em

A "O Espelho e a Luz", último

volume da trilogia sobre
Thomas Cromwell, a escri-
tora inglesa Hilary Mante) terminava
a obra que mudou sua carreira.
Antes do lançamento de "Wolf Hall"
(2009), o primeiro livro sobre o plebeu
que se transformou no braço direto de
Henrique Vlll (1491-1547), a autora era
celebrada pela crítica, mas as vendas de
seus livros eram modestas. Onze anos
depois, "O Espelho e a Luz" vendeu 95
mil cópias impressas em três dias: mul-
tidões correram para ler sobre uma exe-
cução ocorrida há quase meio século.
O livro agora ganha edição no BrasiI pe-
la Todavia ( trad.: Heloisa Mourão e Ana
Ban, 768 págs.,R$ l 19,90).
No meio disso houve o lançamento
de "Tragam os Corpos", que narra o jul-
gamento e a morte de Ana Bolena
( 1507"?-1536),dois prêmios Man Boo-
ker, entre diversos outros, e adaptações
para o teatro (pela Royal Shakespeare Hilary Mantel foi celebradapor redefinirumgênero:"Achoquea ficçãohistóricadeveriaserumafonna subversiva"
Company) e para a 1V (pela BBC,com
Mark Rylanceno papel principal), além muitos dos projetos promissores que "Enquanto invenção, foi algo pontual. de escrever", conta. "Eu tinha escrito
de fama internacional. deixei de lado para passar 15 anos Normalmente a história escreve um en- válias versões elas páginas finais mui-
"Acabei de terminar a adaptação de com os Tudors", conta. redo melhor do que sou capaz." to tempo atrás." A dificuldade foi in-
'O Espelho e a Luz' em colaboração Como no restante da trilogia, Hilary O que ela é capaz, porém, arreba- corporar os dois livros anteriores. "Ele
com o ator Ben Miles, que vai interpre- escreve seguindo de perto os registros nhou leitores no mundo todo e segue [o livro) precisava funcionar como
tar Cromwell", diz Hilary, de 68 anos. históricos. "Até vidas que foram muito celebrado pela cdtica.Jornais como o uma narrativa em si, e também como
"Esperamos que haja uma produção estudadas têm áreas em que os fatos são "Financial Times" e o "Guardian" afir- a conclusão de uma história maior."
em Londres mais para o fim do ano. contestados, nebulosos, estão faltando maram que sua obra redefiniu o gêne- O período entre o lançamento do pri-
Enquanto isso, tenho histórias de to- -e é aqui que acho que um romancista ro do romance histórico. meiro e o último livro da trilogia de
do tipo para contar." pode trabalhar", afirma. "O Espelho e a ''Acho que tive sucesso em encontrar Thomas Cromwell, peça central em um
A experiência com o teatro teve seu Luz",porém, traz o que ela chama de "a um ponto de vista diferente para explo- período elegrandes mudanças na Ingla-
efeito na elaboração do capítulo final decisão ele ficção mais ousada" da trilo- rar acontecimentos que todos acham terra, também foi de momentos decisi-
da vida de Thomas Cromwell gia: a presença da personagem Jenneke, que entendem-e contestar esse enten- vos para o futuro, como o Brexit. Teria
( 1485-1540), além de levar Hilary pa- filha ilegítima de Cromwell. dimento. Acho que a ficção histórica um dos arquitetos de seu tempo conse-
ra um tipo de esclita que ainda não Oficialmente, sabe-se apenas que deveria ser uma forma subversiva. Você lhos para os que governam agora?
havia expeiimentado. "Escrevendo o uma filha ilegítima chamada Jane pode deveiia escavar os registros históiicos, "Creio que o passado deve ser valori-
último livro, quando tinha que lidar ter existido. "Se eu tivesse ignorado Ja- fazer novas perguntas, tentar novos ân- zado por si só, não como ensaio para o
com tanta complexidade, achei útil ne, estaria cumprindo meu dever, que gulos", afirma. "Não tenho certeza de presente. Mas acho que Cromwell, que
me perguntar o que faria se precisasse era imaginar Cromwell em sua totalida- que fiz algo novo-mas tratei a histólia era europeu em todos os aspectos, teria
colocar a cena no palco", diz. "Isso me de? Se a colocasse na parte conhecida e e a ficção com a mesma importância." achado difícil entender a ideia de que a
ajudou a chegar até o cerne." estudada ela vicia dele e 'inventasse' Os leitores agora se despedem de Inglaterra desejava se divorciar das ins-
A autora diz que gostaria de traba- uma mãe para ela, isso seria falsificação Cromwell, personagem obscura da tituições e elacultura europeias." ■
lhar com teatro além das adaptações - e deliberada. Então decidi localizá-la história britânica que ganhou vida
já feitas, mas depende da saúde, que na parte da vida dele que já é em grande nova pelas mãos de Hilary Mante)- e Marina DellaValleé jornalistaetradutora,
nem sempre colabora. "Comecei a es- parte minha invenção: os anos nos Paí- ela não poupa drama ou sangue em doutoraemestudoslinguísticos e literários
crever ficção nova e estou revendo ses Baixos, quando era jovem", explica. sua despedida. "O fim não foi difícil eminglêspelaUniversidade deSãoPaulo
30 1 Valor I Sexta-feira,26 de março de 2021
lV
DieselLa Torraca,AntoniaGentrye BrianneHoweyem cenada série"Ginny& Georgia"(Netflix),quemostraa relaçãodeumajovemmãesolteirae suafilha adolescente
"Ginny& Georgia"tropeçaempolêmicas
Diálogos
sobretemasraciaisincomodam
o público.
Ginny& Georgia(1 ª temporada)
EUA-2021.Criador:SarahLarnpert.
Onde:Netflix CCC
Na série da
Netflix "Ginny &
.. Georgia", Ginny
... (Antonia Gentry),
' aos 15 anos, parece
. ~ -~'-
mais madura que a
GINNYE mãe, Georgia
GEORGIA (Brianne Howey),
inquieta texana que engravidou
muito jovem e nunca conseguiu se
assentar na vida.
Na esteira de mais um
relacionamento malfadado, a dupla,
junto ao caçula, Austin, arruma as
malas e vai tentar a sorte na pacata
Wellsbury, Massachusetts, sob a
promessa de que dessa vez as coisas
serão diferentes.
Ginny tem razões para duvidar:
elas mal chegaram, e Georgiajá está
flertando com o prefeito, causando
atrito entre as outras mães. Éum
padrão se repetindo e não poderia ser
mais frustrante, agora que Ginny está
AAAExcepcionalAA+Alta qualidade BBBAcimadamédia BB+Moderado CCCBaixaqualidade e Alto risoo
PorLuciano
Buarque
deHolanda,
parao Valor,deSãoPaulo
às voltas com suas próprias
descobertas e provações.
Ela, que pouco antes nunca havia
sido beijada, de repente se vê no
meio de um triângulo amoroso,
dividida entre o namorado "nerd" e o
"bad boy" da vizinhança.
O texto "non stop" e as citações à
cultura pop reforçam comparações
com "Gilmore Girls", também
centrada na relação de uma jovem
mãe solteira e sua filha adolescente.
"Somos como as Gilmore Girls, mas
com peitos maiores", diz Georgia,
numa fala que assume de vez o
parentesco.
O mais correto, no entanto,
seria chamar a série de versão
genérica de "Gil.more Girls", com
elenco piorado e ululantes clichês
contemporâneos. Neste último
quesito, o tiro saiu pela culatra.
Diversidade é uma questão
constante na 1V atualmente. No
entanto, nem sempre os realizadores
das séries têm algo a dizer, uma vez
que, afinal, estão surfando em
tendências da indústria. Gafes
podem ocorrer, portanto.
Numa cena de "Ginny & Georgia",
a protagonista "teen" e seu
namorado Hunter (Mason Temple)
entram numa acalorada discussão
sobre questões raciais, sendo ambos
mestiços - ele, meio taiwanês; ela,
afrodescendente, criada pela mãe
branca. No que chamam de
"Olimpíada da opressão", eles
acusam-se mutuamente de trair suas
respectivas origens e tirar proveito
do conceito de minoria.
"Sua comida favorita é
cheeseburguer, e eu sei mais
mandarim que você!", diz Ginny. "Me
desculpe se eu não sou chinês o
bastante para você, mas nunca te vi
devorar um frango!", Hunter rebate.
Qualquer que tenha sido a intenção
dos roteiristas, o infeliz diálogo só
reforça estereótipos de raça.
A cena inevitavelmente viralizou
nas redes sociais, minando o futuro
de "Ginny & Georgia", que até então
ia bem de audiência - no Brasil,
chegou a liderar o top 1Oda Netflix.
Mas essa não foi a única polêmica em
torno da série.
Reagindo a uma fala em que é
citada, a cantora Taylor Swift foi ao
Twitter chamar o texto de "Gilmy &
Georgia" de "preguiçoso" e
"profundamente sexista". Ela se
referia ao comentário de Georgia
sobre a vida amorosa da filha: "Você
passa por homens mais rápido do
que a Taylor Swift!"
Naturalmente, não faltaram
apoiadores à diva pop, que
aproveitou para cobrar um
posicionamento da rede de
strearning, também produtora de
seu documentário "Miss Americana".
justiça seja feita, "Ginny & Georgia"
não é aquela cópia descarada de
"Gilmore Girls" que antecipamos no
início. Aos poucos, o obscuro passado
de Georgia incide sobre a trama, que
toma rumos mais imprevisíveis.
Mas isso não é o bastante. Mesmo
eliminando todas as piadas de moral
duvidosa, o saldo geral da série ainda
será uma "clraméclia" lugar comum,
cheia ele personagens caricatos e
falas forçadas. ■
Sexta-feira, 26 de março de 2021 1 Valor 1 31
JANELA
CRÍTICA AAAExcepcionalAA+Altaqualidade BBBAcimadamédia BB+Moderado CCCBaixaqualidade CAlto risco

Comofilmarummomento
defelicidade
FilmeEm"LoversRock",SteveMcQueen
retrataoutrotipo depolítica.PorPedroButcher,
parao Valor,do Rio
"LoversRock"e outros
ReinoUnido,2020. Dir.:SteveMcQueen.
Onde:Globoplay AA+

Discretamente, a
Globoplay
disponibilizou para
o público brasileiro
alguns dos
melhores filmes do
ano passado. Eles
estão reunidos na
série/antologia "Small Axe",
concebida e dirigida por Steve
McQueen para a BBC.
Em entrevista ao site lndieWire,
McQueen explicou que, a pedido do
canal de televisão inglês, começou a
desenvolver uma série, mas, à medida
que o projeto tomou corpo, percebeu
que as histórias precisavam ser
independentes. O resultado: cinco
longas que podem ser
experimentados isoladamente. 'LoversRock',quefaz parte de'SmallAxe',tem comocenárioprincipalumacasaondeserealizaumafesta:felicidadecoletiva
"Obviamente, esses filmes estão
ligados, e o tecido conectivo é a lançar Iuz sobre episódios espalhados outros se traduz em narrativas sem "lovers rock", uma variação
experiência dos negros no Reino no tempo ( entre o fim cios anos 1960 desperdícios e uma força expressiva romântica cio reggae.
Unido. Estas são peças históricas que e meados cios anos 1980) que que faz justiça à trajetória cios Quando um cios maiores hits ela
precisamos trazer à luz", disse. Ou seja, marcaram essa geração, mas personagens e a implicações políticas época inflama a pista - "Silly Games",
o conjunto está mais próximo de tuna permaneciam desconhecidos do das situações que enfrentaram. cantado por Janet Kay-, a casa é
antologia (grnpo de obras organizado grande público. São cinco histórias Quatro dos cinco filmes são tomada por um estado de transe em
por tema, autoria ou período) do que a de resiliência e enfrentamento diante recriações de episódios de fundo que as pessoas, embriagadas de
uma série,já que não obedece à de um racismo muitas vezes brutal, político mais explícito, enquanto em álcool e fumaça, seguem cantando o
estrutura dramática de capítulos sobretudo quando vindo ela polícia. "l.overs Rock",situado em 1980, a refrão por minutos a fio depois que a
interligados por um "gancho". Dois desses filmes, "Os Nove de política se expressa de outras maneiras. música acaba, como que para
O título dessa antologia, "Small Mangrove" e "Lovers Rock", Se "Os Nove de Mangrove" é um ótimo prolongar o máximo possível aquele
Axe" (Pequeno Machado), refere-se a receberam a etiqueta Cannes 2020, filme de tribunal, "Verme111o,Branco e momento de felicidade coletiva.
um provérbio africano citado na ou seja, teriam participado do festival Azul",uma variação de um filme A festa e o que ela traz de mais
canção homônima de Bob Marley no ano passado, caso tivesse ocorrido. policial, ''AlexWheatle", uma pequena sensorial são os elementos que mais
(1945-1981 ). Em tradução "Lovers Rock" foi escolhido para abrir cinebiografia, e "Education", um filme nos afetam, mas só porque também
aproximada, a letra diz: "Se você é a o Festival ele Nova York, em setembro. ele escola, "LoversRock" é afetam os convidados e os
grande árvore/ Nós somos o pequeno O conjunto cios cinco filmes mantém simplesmente um filme ele festa. personagens centrais, a adolescente
machado/ Afiados para derrubá-lo/ um padrão elealto nível que representa As elipses temporais e os Martha ( Amarah-Jae St. Aubyn)
Preparados para derrubá-lo". o mell10r momento ela carreira eleSteve enquadramentos geomét1icos que e o jovem com quem ela faz par a
A canção se popularizou entre a McQueen desde seu impactante garantem a musculatura cios outros partir de determinado momento,
"geração Windrush", como ficaram primeiro longa, "Fome" (2008). São, ele filmes dão lugar, em "Lovers Rock", a Franklyn(Michael Ward).
conhecidas as pessoas que chegaram fato, obras muito diferentes entre si, um tempo estendido e uma câmera A violência e a brutalidade, em
ao Reino Unido entre 1948 e 1971, mas que guardam um mesmo espírito em fluxo constante, que se "LoversRock",se fazem presentes nas
vindas, em um primeiro momento, da e, sobretudo, um estilo. ( con )funde com o cená1io e os bordas. No centro do filme está outra
Jamaica e ele outras ilhas caribenhas "Os Nove de Mangrove", único com personagens que o habitam. forma de política: a força da expressão
para ajudar a preencher a escassez ele mais ele 2h (todos os outros têm em O cenário principal é uma casa, Ciiativa que se faz ver pela música, pela
mão ele obra no pós-guerra. torno ele 1h15 ), é também o mais onde se realiza uma festa em que o dança e pela busca eleum estado de
Steve McQueen queria,justamente, convencional. A duração enxuta cios gênero musical predominante será o êxtase, apesar de tudo. ■
32 1 Valor I Sexta-feira, 26 de março de 2021
ÉTUDOVERDADE
Oscar
reafirma
~ atualíssimo "Rede ele Intrigas", ele
renovaçao
A listade concorrentes,
no entanto,não
representaum novo
movimentoou uma
surpreendente ruptura.
PorAmir Labaki
FrancesMcDonnandé forte candidataao prêmiodemelhoratriz por"Nomadland"
O devastador impacto da pandemia
de covid-19 sobre a indústria de cinema
tem como rara consequência positiva
haver emprestado novo impulso ao
processo de "aggiornamento" da
Academia de Artes e Ciências
Cinematográficas de Hollywood e de seu
prêmio máximo anual, o Oscar.
A lista de indicados para a disputa
ela 93• edição do Oscar demarca uma
aceleração no movimento visando
tornar o prêmio mais independente e
internacional, assim como mais
diverso em gênero e etnias.
A reforma provocada no fim ela
última década pelas campanhas
#OscarsSoWhite e #Me Too, aplaudida
nesta coluna pelo menos nas últimas
três edições, ganhou tração neste ano,
mas a lista ele concorrentes não
representa um novo movimento ou
uma surpreendente ruptura.
Duas mulheres entre os indicados a
melhor direção, 9 dos 20 intérpretes
concorrentes representando etnias antes
marginalizadas e maior presença de
produções independentes na disputa de
melhor filme reafinnam a busca recente
de um saudável reequilíbrio.
Além de uma injustiça e um
exagero, a liderança ele indicações por
Amir Labakié diretor-fundador do "Mank", de David Fincher, que
ÉTudo Verdade- Festival Internacional concorre a dez estatuetas, lembra a
de Documentários. velha máxima de que o Oscar é uma
autocelebração de Hollywood.
E-mail:labaki@etudoverdade.com.br Velhos hábitos não morrem
Site dofestival: facilmente, logo a superprodução que
www.etudoverdade.com.br reglamouriza os anos dourados do
sistema de estúdios, ainda que à custa de
caricaturar e vi.li.pendi.arum dos maiores
cineastas da história, Orson Welles
(1915-1985), teve na manhã das
indicações seu fugaz momento de glória.
Tudo indica que a posição
destacada não se repetirá na noite de
entrega cio Oscar, em 25 de abril
próximo, numa cerimônia ainda em
desenvolvimento, de olho nas
restrições impostas pela pandemia.
Éespecialmente simbólico que um
dos calcanhares de Aquiles de "Mank",o
roteiro póstumo de Jack Fincher
( 1930-2003), pai do diretor, tenha ficado
de fora da enxurrada de indicações.
Favorito sem melhor roteiro? Duvide.
Dos seis títulos cio segundo pelotão,
com seis indicações cada um,
"Nomadlancl", da chinesa de
nascimento Chloé Zhao, destaca-se
como a mais segura aposta do ano.
Éum drama sobre os humill1ados e
ofendidos pela mais recente crise
econômica dos EUA,protagonizados
por uma nômade contemporânea
interpretada por Frances McDormand
("Fargo"),forte candidata a melhor atriz.
Sua estreia no Brasil está agendada para
a semana anterior à premiação.
SeChloé promete fazer história como
apenas a segunda mulher a vencer o
prêmio de melhor direção (Kathryn
Bigelow a antecedeu em 201 Opor
"Guerra ao Terror"), o mesmo deve
acontecer com Chadwick Boseman
( 1976-2020), o astro de "Pantera Negra"
(2018), que rouba a cena em seu último
papel como o músico irascível do
modonento "AVoz Suprema do Blues".
O únicoOscarde melhor ator
atribuído postumamente data de 1977,
celebrando o imenso desempenho
ele Peter Finc.h(1916-1977) no
Sidney Lumet(1924-2011 ).
Depois de uma excepcional lista de
15 semifinalistas, a disputa de melhor
documentário de longa-metragem
infelizmente deu um trupicada. De
um lado, repete dois dos avanços
ousados no ano passado. Um cios
filmes ela lista também concorre a
melhor longa internacional, como
fizera "Honeyland" - o romeno
"Collective", de Alexander Nanau,
vencedor da disputa internacional do
ÉTudo Verdade 2020.
Pela segunda vez consecutiva um
documentário dirigido por uma
diretora sul-americana conquista uma
vaga, com o chileno "Agente Secreto",
de Maite Alberdi, menção honrosa de
nosso festival no ano passado,
sucedendo a brasileira Petra Costa, de
"Democracia em Vertigem".
Nada a reclamar quanto às
indicações de "Time", de Garrett
Bradley, e de "Crip Camp: Revolução
pela Inclusão", de James Lebrecht e
Ni.coleNewnham, seguindo esse
último os passos de "Indústria
Americana", de Julia Reichert e Steven
Bognar, o vencedor do ano passado,
que também estampava o selo do novo
braço documental do casal Barack e
Michelle Obama.
A decepção cio quinteto é "Professor
Polvo", de Pippa Elu-lich e James Reecl,
um pouco inspirado documentário
de natureza sobre a relação entre um
cineasta e um polvo nas águas da
África do Sul.
O conjunto seria muito mais
potente se, para essa quinta vaga,
contasse com "AsMortes ele Dick
Johnson", um perturbador jogo
macabro entre a cineasta Ki.rsten
Johnson e seu pai; "Wekome to
Chechnya", sobre a repressão à
comunidade LGBTQna Chechênia; ou
"76 Dias", uma devastadora radiografia
do auge ela epidemia de covid-19 em
Wuhan, China. Como ficou, a lista
documental brilha menos do que
poderia. A torcer para que ao menos a
premiação faça a coisa certa. ■
Sexta-feira,26demarçode2021 1 Valor 1 33
 OUTROS
ESCRITOS
Em 1985,aescritorae
Dore
dinamite
1 cartunista americana Alison
Bechdel publicou uma tira
• em sua série "Dykes to Watch
Out For". Nela, uma personagem diz
que só vê filmes que I) têm pelo menos
duas mulheres; 2) elas conversam uma
Osnovoslivrosde Tatiana coma outra; 3)sobre alguma coisa que
não seja rnn homem. O que era um
SalemLevye Natércia pouco piada, um pouco discurso a
Pontes.PorMichelLaub sério, virou referência em discussões de
internet sobre preconceito de gênero
no imaginário contemporâneo. Afinal,
a imensa maioria das histórias
ficcionais de hoje-e não só as ctiadas
por homens-acabaria reprovada em
um dos três requisitos.
Mas há algo de simplificador, claro,
nesse tipo de critério. Na arte existe
ironia, contraste, incómodo proposital
e tantos outros recursos que põem
nuances no valor de face de uma
narrativa. A denúncia de uma situação
opressiva, por exemplo, pode ocorrer
quando o opressor é uma figura
totalizante, que assombra cada palavra
dita ou pensada por sua vítima. Éo caso
de "Vista Chinesa", novo romance ele
Tatiana Salem Levy(Todavia, 112 págs. ),
e do modo mais radical possível em se progresso mateiial e cultural-a a ele porque tem consciência do
tratando da temática de gênero: o livro mesma que pauta nosso dia a dia entre equilíbrio difícil de sua tarefa: confiar
reproduz a elaboração de um estupro as classes privilegiadas de um na história que conta, mas não no
-e, logo, a presença inecorrível cio arremedo de país e civilização. impacto direto das palavras que à
estuprador-na sensibilidade eleuma Um dos méritos de "Vista Chinesa" é primeira vista estão disponíveis para
arquiteta carioca. articular organicamente, por meio de isso. A prosa de "Vista Chinesa" é às
A trama se baseia num crime real, uma fo1ma bem calibrada, as questões vezes crua, às vezes elaborada, e só
ocorrido na Floresta elaTijuca, em 2014, públicas e íntimas que levanta. No existe em ambos os registros por
quando o Rio e o Brasil estavam primeiro caso, algumas frases- "as causa do procedimento estético que
mergulhados no otimismo que violências sofridas naquela terra, as potencializa seus efeitos -a
antecedeu a Copa do Mundo e as violências sofridas por aquela terra" - emulação de uma linguagem
Olimpíadas. Tatiana é amiga da vítima e têm um tom dúbio que expande a epistolar, que se baseia na oralidade
transformou seu depoimento numa tragédia para os domínios da histótia de uma personagem verdadeira, tudo
carta que a na1nclora ele"Vista brasileira. No segundo, o trauma reinventado com as mentiras que
Chinesa" escreve para os filhos, a alguns contamina o andamento do enredo comunicam verdades num romance.
anos de distância do trauma-ou, com sua natureza circular: o romance é Dizer "eu fui estuprada" é uma coisa.
como ela diz, no presente doloroso ele composto por pequenos blocos que Outra é fazer quem lê mergulhar na
"coisas que, mesmo depois de terem avançam e não avançam, mudam de claustrofobia dessa memória,
acontecido, continuam acontecendo". assunto e não mudam nas descrições situando a frase em meio a outras
Há uma dimensão individual em tudo, do trabalho da protago1ústa, de seu frases, outras variações sobre a
sem dúvida, e há uma dimensão casamento e de seus raros momentos mesma experiência de horror, a
política: é como se cada aparição do de placidez/alegria, como se o passo de ponto de nos convencer de que sem a
estuprador, em flashes do crime, nas uma narrativa de transformação-e é repetição -com seu efeito catártico,
tentativas ela narradora em lembrar disso que se trata, em última instância terapêutico- não seria possível uma
seus traços físicos para ajudar num -estivesse sempre preso à âncora de pessoa/personagem enfrentar algo
MichelLaub,jornalistae autor dosro- retrato-falado, em suas idas penosas a brutalidade que a fez nascer. tão indizível: "A mãe de vocês foi
mances"Diárioda Queda"(2011)e "Solu- rnna delegacia conduzida por policiais O resultado final é notável, e mais estuprada. Eu, a mãe de vocês, fui
çãode DoisEstados"(2020),escreve ineptos, fosse a lembrança da barbátie ainda porque não torna o livro estuprada. Foi. Fui. Estuprada.
nesteespaçoquinzenalmente por trás de uma ideia enganosa de redundante. A meu ver, Tatiana chega Estuprada. Es-tu-pra-da."
34 1 Valor I Sexta-feira,26 de março de 2021

Se os afetos que compõem
2 a maior parte de "Vista
Chinesa" são o medo, o
• nojo e a raiva, "Os Tais
Caquinhos" (Companhia das Letras,
215 págs.) é um outro tipo de história
de transformação. Romance de estreia
da cearense Natércia Pontes, aqui as
agruras da adolescência - suas
tristezas, sua instabilidade emocional
continua - são lembradas com amor,
ou ao menos com ironia carinhosa:
"Naquele lar as baratas não sofriam
acuadas"; "Mergulhávamos na
possibilidade intangível de saborear
( ...) cubinhos de s01vete de abacate( ...),
mas o que havia era um pinga-pinga
incessante que inchava a pintura do
teto, um pote de margarina onde
repousava uma cebola velha".
O livro também gira, à sua maneira,
em torno de uma figura masculina: um
pai que cria sozinho duas filhas num
apartamento caótico, repleto de tralhas
e sujeira, numa cidade não nomeada
( que poderia ser a Fortaleza dos anos
1990). O modo como ele é visto,
contudo, sob o filtro de uma narradora
às voltas com problemas na escola,
drogas, namoros incipientes e
brigas/reconciliações com a irmã, é
sempre generoso. O mesmo homem
incapaz de organizar a vida prática,
disfarçando a precariedade geral
com máximas como "é muito
importante sentir fome", é o que
consegue gerar um "sentimento bruto
elefamilia", uma "cumplicidade
gelatinosa" que protege quem está ao
seu redor"como uma placenta."
A exemplo ele "Vista Chinesa", "Os
Tais Caquinhos" faz da forma um
prolongamento de seu tema. Aos
hábitos ele acumulação do pai
correspondem trechos que emulam
listas, sequências de objetos, fatos,
paisagens e sensações que passam
(também)certa ideia de imobilidade.
Não importa: o sabor intenso ele cada
passagem dessas, às vezes isolada
num elos pequenos blocos que
(também) estruturam o romance, é
um mundo em si. Os "insights" não
são obtidos pela abstração das ideias,
e sim pela concretude de imagens
sempre físicas, corpóreas: as mechas
de cabelo transformadas em
"chicote" por um "vento doido"; uma
gargalhada de "Quick de morango"
que gera um "acesso de tosse pink"; a
narradora que donne "salivando o
gosto mentolado da pasta de dente" e
cai em "sonhos abafados, polvilhados
com farelo de dentes"; os pés do pai
que são "elegantes, dramáticos",
mesmo com as unhas de "cantinhos
nodosos e encrespados, lembrando
os córneos de um bode velho".
É natural que por trás de tudo haja
um sentimento de perda, às vezes
uma dor aguda, o que perto do
desfecho se traduz num
acontecimento traumático. Mas a voz
do livro não é, como a da personagem
de Tatiana precisa ser, a de uma
libertação conseguida a duras penas.
Da "dinamite improvisada" que é a
adolescência, com sua "fúria,
hormônios( ...), desamparo logístico
( ...), incompreensão sobre a vida",
Natércia consegue extrair uma
sabedoria feita ele humor e lirismo. O
passado nunca deixa de ser presente,
só que dá para vivê-lo com alguma
leveza, tentando avançar "como um
gato em meio aos destroços da nossa
vida comum". ■
LANÇAMENTOS
Israele Palestina:UmAtivistaem
BuscadaPaz
GershonBaskin.Ayllon,R$98,80
Nome de peso na
questão da busca da
paz no Oriente
Médio, Baskin relata
neste livro a sua
atuação como
negociador no
conflito entre
israelenses e palestinos. O americano
ganhou fama mundial por mediar a
liberação do soldado israelense Gilad
Shalit, sequestrado em 2006 por um
grupo militante de Gaza e mantido
preso por cinco anos pelo Hamas.
Baskin conta sobre as negociações
feitas pessoalmente com Abu Mazen
e Yasser Arafat, e também com a
equipe de Yitzhak Rabin. O pacifista
obse1va os efeitos da indiferença
ocorrida entre povos e afirma que,
sem um espaço de experiência
compartilhada na cultura, não há
caminho para a paz. A apresentação é
do psicanalista Christian Dunker.
LinguagemdoEspírito-UmaIntroduçãoà
MúsicaClássica.
UN&UAGEM
DD
ESPIRITO
JanSwafford.Trad.:
PauloGeiger.Zahar,R$94,90
Ao mesmo tempo
que apresenta a
evolução da música
clássica através dos
tempos, Swafforcl,
renomado
musicólogo e
compositor
americano ( ele assina biografias de
Beethoven e Mozart, por exemplo),
busca aproxin1ar as pessoas desse
gênero musical. Para isso, oferece um
texto recheado de curiosidades ao
explicar períodos, estilos e tendências
da história ela música clássica,
enquanto percorre biografias de
criadores do peso de Mozart, Debussy,
Bach etc. Junto a isso, compartilha com
o leitor as ideias e percepções que dão à
música suas qualidades universais e sua
capacidade única de transmitir as
grandes emoções humanas-como
amor, esperança ou desespero.
Swafforclé ainda autor do "Guia
Vintage eleMúsica Clássica".
KlaraeoSol
l<azuoIshiguro.Trad.:Ana Guadalupe
CompanhiadasLetras,R$ 59,90
Ganhador do
o
Nobel de Literatura,
autor de obras
como"NãoMe
Abandone Jamais" e
"O Gigante
Enterrado", lshiguro
traz um novo
romance. Mestre em balancear o que
revelar e o que não revelar no
decorrer da trama, ele retoma um
tema que captura o interesse geral-
o significado de ser humano. Para
isso criou Klara, um ser artificial com
habilidade de observação que estuda
de forma afiada o comportamento
ele quem passa pela vi trine onde está.
Ela quer ser escolhida por alguém.
Mas, prestes a ter seu desejo
realizado, é advertida a não se fiar
muito na bondade humana. Em
"Klara e o Sol", o autor examina, com
escrita precisa, o mundo moderno e
o significado do amor e do cuidado.
Memóriasde um DoentedosNervos
DanielPaulSchreber.Trad.:Marilene
Carone.Todavia,R$ 89,90
A autobiografia de
Daniel Paul Schreber
(1842-1911 ), escrita
no início do século
XX, tomou-se um
texto seminal para a
psicanálise. Nele,
Schreber, de família
proeminente e presidente (afastado)
da corte de apelação de Dresden, narra
o seu processo psicótico na fase final
de sua segunda internação ( que durou
nove anos). Ele estava em uma clínica
psiquiátrica ela Universidade de
Leipzig, Alemanha. O livro foi
publicado em 1903. Em 1911, Freud
tomou conhecimento das "Memórias"
e tomou-as objeto ele um dos grandes
estudos sobre a paranoia, que se
tornaria referência. Esta edição, além
da tradução e introdução de Marilene
Carone ( 1942-1987), traz ensaios de
Elias Canetti e Roberto Calasso, o que
amplia a compreensão elo caso e atesta
sua atualidade.
Sexta-feira, 26 de março de 2021 1 Valor 1 35