Você está na página 1de 14

Divulgação

O Preço da Fama – filme presta tributo a Chaplin Pág. 13

Circulação Nacional Uma visão popular do Brasil e do mundo R$ 3,00

Ano 13 • Número 657 São Paulo, de 1º a 7 de outubro de 2015 www.brasildefato.com.br


Fernando Frazão/ABr

No Ceará, água imprópria


para a população
Caminhões-pipa no Ceará entregam água imprópria à população.
Moradores reclamam da água distribuída na operação de combate Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr

emergencial à seca que se arrasta há quatro anos; crianças e idosos


têm adoecido por causa da contaminação. Págs. 10 e 11

ISSN 1978-5134
Os números alarmantes de O papa reacende
intoxicação por agrotóxico Pág. 6 a fé em Cuba Pág. 15
Ademar Bogo Luiz Ricardo Leitão Marcelo Barros

Enraivar o cão Ficção & realidade A arte de envelhecer


As diferentes crises atuais põem às Um colunista comenta a eventual No mundo atual, um número maior
claras os equívocos dos devotos do associação subliminar do personagem de pessoas atinge idades que poucos
desenvolvimentismo que entregaram ao Romero Romulo, protagonista da nova conseguiam alcançar. O desafio é lhes
mercado a responsabilidade de fazer a novela A Regra do Jogo, com o deputado proporcionar uma vida ativa e integrada
igualdade social. Pág. 2 Marcelo Freixo. Pág. 2 na sociedade. Pág. 3
2 de 1º a 7 de outubro de 2015

editorial

A reforma ministerial e os escravos de Jó


A ACREDITARMOS nos oligopó-
lios da mídia, as correntes do PMDB
“Estou muito idosa e já vi de tudo
neste mundo de Deus. Por isto, tenho
O fato é que, a O fato é que, a ameaça de uma in-
dicação partida do deputado Cunha,
muito bem, que num Estado regi-
do em parceria com a Igreja (ainda
transformaram a reforma ministerial
num “jogo de caxangá”, conforme se
medo que ele morra e seja substituí-
do por outro tirano ainda pior”. [1]
ameaça de uma nos acende todos os sinais de aler-
ta: o que acontecerá com o Siste-
não houvera a Revolução Francesa
com sua premissa de Estado Laico),
divertiam os escravos de Jó, segun-
do nos dá notícia a velha música in-
É bem verdade que, dentre os mi-
nistros do PT, os senhores Merca-
indicação partida ma Único de Saúde (SUS), dura con-
quista das nossas lutas dos anos de
o Tribunal do Santo Ofício estava a
postos, vigiando seus pensamentos,
fantil: “Tira/ bota/ deixa ficar/ guer- dante e Cardozo são os mais impopu- do deputado Cunha, 1970 e 1980? O SUS será privatiza- palavras e obras.
reiros com guerreiros/ fazem zigue- lares entre os petistas (quase unani- do? E nos hospitais públicos, as mu- [2] Isonomia significa igualda-
-zigue-zá”. midade). Mas, como diria a nossa ve- nos acende todos os lheres internadas em consequência de de todos perante a lei. Refere-se
O PT também não ajuda grande lhinha da fábula... de aborto, como punição pelo “peca- ao princípio da igualdade previsto
coisa: suas únicas propostas conheci- Quanto a nós, sobram as pergun- sinais de alerta do cometido”, voltarão a ser tratadas no art. 5º, “caput”, da Constituição
das – e sempre de acordo com os oli- tas: que políticas e quais gestores de- sem anestesia, retroagindo aos anos Federal, segundo o qual todos são
gopólios da mídia, pois imprensa e verão substituí-los? Sejamos claros: de 1980 e anteriores? E os/as ho- iguais perante a lei, sem distinção de
meios de comunicação próprios é al- uma vez que política é a última coisa mossexuais serão internados pelos qualquer natureza. Assim, de acordo
go que os dirigentes do campo ma- que se discute, os que pedem a cabe- Bala-Boi-Bíblia). Para qualquer cida- programas do tipo Cura Gay? Aos com tal princípio, os méritos iguais
joritário sempre impediram que fos- ça dos “malquistos” querem as vagas dã/o séria/o, isto só pode soar como casais heterossexuais só lhes restará devem ser tratados de modo igual,
sem construídos – dizem respei- para quem? Que composição fisioló- uma piada de mau gosto ou, pelo me- o sexo por amplexo mútuo [3] e com e as situações desiguais, desigual-
to ao pedido das cabeças dos minis- gica pode atender a interesses eleito- nos, como um balão de ensaio. fins reprodutivos? mente, já que não deve haver distin-
tros Aloizio Mercadante, José Eduar- reiros do tal campo majoritário em Ora, vigesse no Brasil, o princípio Sim, o presidente da nossa Câma- ção de classe, grau ou poder econô-
do Cardozo e mais um ou dois. Quem 2016 e 2018? da Isonomia [2] – e não fosse trata- ra Federal (e um dos pré-candidatos mico entre os homens. Fundamen-
colocar no lugar e qual a exata críti- Enquanto isto, o PMDB vai nadan- do como letra-morta, ou um “adorno do PMDB à Presidência da Repúbli- tação: Arts. 3º, IV, 5º, “caput”, I,
ca aos que devem sair, ninguém sabe. do de braçada. civilizado” em nossa Constituição, o ca em 2018) é isto. Em termos de se- VIII, XXXVII e XLII, 7º, XXX, XXXI,
Que políticas deverão implementar Sempre de acordo com os oligopó- deputado Cunha já deveria estar re- xo, ainda não percebeu que o bom é o XXXII e XXXIV, 37, XXI, 43, caput
os novos ministros, menos ainda. A lios midiáticos, outro ministro petis- colhido à Papuda (DF) ou ao Com- “tira-bota-deixa ficar”. Mais ainda, se e § 2º, I, 165, § 7º, 170, VII, 206, I e
propósito, essa situação nos faz lem- ta que se encontra no “bico-do-cor- plexo Médico-Penal de Pinhais (Curi- o Estado Laico consta da nossa Cons- 227, § 3º, IV da CF; Arts. 3º, pará-
brar uma historinha paradigmática, vo”, é o titular da Pasta da Saúde, tiba) – em consequência do seu en- tituição, pouco lhe interessa. grafo único, 5º, 460 e 461 da CLT;
ambientada num feudo europeu. De doutor Arthur Chioro, ex-secretário volvimento nos escândalos da Petro- Arts. 125, I, 685-A, § 3º e 1.015, § 2º
acordo com a fábula, uma velhinha municipal da Saúde da gestão petis- bras (cf. Operação Lava Jato - Polícia [1] Grafamos “Deus” com maiúscu- do CPC; Arts. 1.511 e 2.017 do CC.
de muita idade foi surpreendida re- ta de São Bernardo do Campo. Pior Federal), ou até mesmo – quem sabe la, pois se trata do deus dos católi- (Dicionário Jurídico – DireitoNet)
zando diariamente para dar longa vi- ainda: o ministro seria substituído –, depois de um exame médico, por cos, e a velhinha certamente jamais [3] O chamado “amplexo mútuo”
da ao terrível tirano que dominava por alguém a ser indicado pelo presi- uma questão de solidariedade huma- o pronunciaria (ou sequer pensaria) é a posição no coito à qual nos re-
o feudo onde vivia. Questionada por dente da Câmara, deputado Eduardo na, a alguma instituição do tipo da com minúscula, uma vez que, na sua ferimos coloquialmente como “pa-
tamanho disparate, a anciã explicou: Cunha (PMDB-RJ – Bancada BBB, Casa de Custódia de Taubaté (SP). arguta sabedoria de anciã, sabia pai-mamãe”.

opinião Ademar Bogo crônica Luiz Ricardo Leitão

Ficção & realidade


UM COLUNISTA DA GRANDE imprensa comenta a preocupação do
PSOL com a eventual associação subliminar do personagem Romero
Romulo, protagonista da nova novela das 21h da Rede Globo (“A Re-
gra do Jogo”), com um de seus parlamentares mais notáveis, o depu-
tado estadual fluminense Marcelo Freixo, virtual candidato do par-
tido à Prefeitura do Rio de Janeiro em 2016. Descrita como ativista
social e ex-vereador, a figura interpretada por Alexandre Nero seria,
inclusive, uma versão televisiva do deputado Diogo Fraga (Irandhir
Santos), de Tropa de Elite 2, político fictício cuja composição se ins-
pirou no próprio Freixo.
De fato, segundo anota o jornalista, há muitas semelhanças entre
as duas personagens: Romero e Diogo atuaram na comunidade car-
cerária, abraçaram a carreira política, mediaram rebeliões em presí-
dios e militaram em setores marginalizados da sociedade. Além dis-
so, ambos se convertem em heróis ao evitar o pior em situações de
alto risco. O único “detalhe” é que, já ao final do primeiro capítulo, a
novela global nos revela a outra face obscura do “mocinho”: Romero
é, na verdade, um “agente duplo” – finge ser ativista, mas relaciona-

Enraivar o cão
-se com uma facção criminosa e vive secretamente em uma cobertu-
ra de luxo. Para desqualificá-lo ainda mais, o autor o faz zombar dos
militantes sociais, com direito até a uma cena de escracho da Anistia
Internacional.
É claro que o PSOL se incomodou com o veneno destilado pela
KARL MARX PARTIU do enten-
dimento de que a sociedade capi-
O mercado não No Brasil, os equívocos alia-
ram-se aos desvios e levaram ao
produção e emitiu uma nota a respeito, à qual a direção da emisso-
ra respondeu afirmando que tudo não passa de ficção... Será que os
talista funciona com dois mundos
superpostos, o dos homens e o das
pode ser visto como comportamento passivo das for-
ças que deveriam aproveitar o
demiurgos da Vênus Platinada são assim tão inocentes ou tudo não
passa do velho filme rebobinado a que assistimos desde a década de
mercadorias. Daí então, quando o
mundo das mercadorias se desen-
o instrumento momento para impulsionar o as-
salto ao mundo das mercadorias
1980, após o fim da ditadura em cujas tetas a família Marinho ma-
mou por duas décadas?
tende, o mundo dos homens se de- para alcançar a para construírem outra forma de
sintegra. poder político. No entanto, essas
A interação entre as diferen- igualdade social, forças estão aliadas com aqueles Na geleia geral global, pelo visto, a
tes crises atuais põem às claras os que perderam a base social, mo-
equívocos dos devotos do desen- nem tampouco os ral e política, e por isso, apanham ficção e a realidade andam de mãos
volvimentismo que entregaram ao junto. Satisfazem-se em defen-
mercado a responsabilidade de fa- direitos podem ser der um projeto que os distancia dadas na sagrada missão de criar
zer a promoção da igualdade so- cada vez mais da responsabilida-
cial; deu aos que tinham o poder alcançados pelo de de cumprir o verdadeiro papel perversas máscaras sociais
de comprar, a ampliação dessa sa- na história, que é o de desfazer o
tisfação e, aos que não tinham, valor de troca. mundo das mercadorias para que
bolsas e créditos subsidiados para não gere mais crises.
que pudessem experimentar uma Cão que mostra os O pior é que, para justificar os Os leitores mais calejados decerto hão de se lembrar de “Vale Tu-
sensação temporária de acesso ao ataques, os atacados, disparam do”, novela de 1988-1989, cuja trama se atinha à “inversão de valo-
mundo das mercadorias. dentes, ninguém que, “ninguém chuta cachorro res no Brasil do final dos anos de 1980”, tematizando a falta de éti-
Mas o mercado não pode ser um morto”. É verdade, quem chutaria ca e a corrupção no país (caiu a ficha?) por meio do confronto entre
justiceiro social. As suas leis são chuta, e se chuta, alguém que já passou para o mun- a honesta Raquel (Regina Duarte) e Maria de Fátima (Glória Pires),
leis do mundo das coisas que se do dos mortos? Mas também nin- sua filha vigarista. O tom moralizante da dramaturgia, às vésperas da
tornam incontroláveis pelos ho- terá a punição que guém chuta um cachorro enraive- primeira eleição direta pós-ditadura, era um preâmbulo magnífico
mens quando as mercadorias pas-
sam a não ter mais o poder de mo- merece cido. Qual é então o cachorro que
se “chuta”? Aquele que está deita-
para a vitoriosa campanha de Collor de Melo, o fantástico “caçador
de marajás” criado (e desconstruído) pela própria TV Globo.
vimentar as pessoas a seu favor. do. É este que a burguesia e seus E o que dizer da saga de Sassá Mutema, o personagem interpreta-
Daí surgem as crises que afetam aliados estão chutando. Este cão do por Lima Duarte em “O Salvador da Pátria”, também em 1989?
diretamente o mundo dos homens está deitado sob o banco do gover- Muitos talvez nem se lembrem, mas o tosco “caipira” que viria a se
e as ondas de satisfação, conver- no sobre o qual a burguesia está eleger presidente era uma caricatura enviesada de Lula (antes da
tem-se em ondas de reação e pro- sentada e que, na próxima reforma versão Paz & Amor). Desprovido de qualquer formação escolar e sem
testos contra as cores, as siglas, in- ministerial, a presidenta Dilma se- prévia atuação político-administrativa, ele servia como uma adver-
divíduos, governantes etc., como rá empurrada para a ponta. Fica- tência explícita da ficção sobre os riscos catastróficos de uma experi-
se todos fossem culpados pelas de- rá ainda sentada, mas já com uma ência mais “popular” de governo no país dos pactos oligárquicos e da
savenças criadas no mundo das nádega de fora. “modernização conservadora”.
mercadorias. É preciso enraivar o cão ador- Por fim, vale lembrar o caso emblemático de “O Rei do Gado”
Nas crises, os governantes per- em sua crise pelo baixo rendimen- mecido sob o banco do governo e (1996-97), em que o MST, execrado no “Jornal Nacional”, ocupava
dem bases em três sentidos: mo- to das mercadorias. fazê-lo voltar para o lugar das lu- pela primeira vez as telinhas de Bruzundanga. A presença do movi-
ral, político e social, porque pro- As crises também enfraque- tas sociais. O mercado não po- mento na cena ficcional tem um quê de escárnio: uma de suas líde-
curam salvar a pele fazendo cor- cem as forças produtivas e as re- de ser visto como o instrumento res, a camponesa Luana (Patrícia Pillar), apaixona-se pelo fazendei-
tes nos recursos que asseguram os lações sociais de produção pondo para alcançar a igualdade social, ro Bruno Metzenga (Antônio Fagundes), um latifundiário tão “gene-
direitos no mundo dos homens, em desvantagem a revolução tec- nem tampouco os direitos podem roso” que é capaz de oferecer um churrasco aos lavradores que ocu-
como por exemplo, na educação, nológica do mundo das mercado- ser alcançados pelo valor de tro- pam suas terras. Assim, ela deixa o movimento e, depois de superar
saúde e moradia. Mas nada cor- rias, mas abre oportunidades para ca. Cão que mostra os dentes, nin- as barreiras típicas de um melodrama, casa-se com Bruno... Final fe-
tam no mundo das mercadorias; as forças revolucionárias, no mun- guém chuta, e se chuta, terá a pu- liz? Na geleia geral global, pelo visto, a ficção e a realidade andam de
de lá aguardam as soluções. Então, do dos homens. É verdade, não em nição que merece. mãos dadas na sagrada missão de criar perversas máscaras sociais.
as dívidas públicas de natureza so- todos os lugares, principalmen-
cial deixam de ser pagas, tendo em te onde os equívocos tornaram- Ademar Bogo é filósofo e escritor, Luiz Ricardo Leitão é doutor em Estudos Literários (Universidade de La Ha-
vista que há de se pagar a dívida -se princípios e os desvios, virtu- autor do livro, A linguagem das mer- bana) e professor associado da UERJ, é o autor de Noel Rosa: Poeta da Vi-
pública com o capital, penalizado des morais. cadorias em Marx. la, Cronista do Brasil e ¿Adónde va la telenovela brasileña? (Cuba, 2001).

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Aldo Gama, Marcelo Netto • Repórter: Marcio Zonta• Correspondentes nacionais: Maíra Gomes (Belo Horizonte – MG),
Pedro Carrano (Curitiba – PR), Pedro Rafael Ferreira (Brasília – DF), Vivian Virissimo (Rio de Janeiro – RJ) • Correspondentes internacionais: Achille Lollo (Roma – Itália),
Baby Siqueira Abrão (Oriente Médio), Claudia Jardim (Caracas – Venezuela) • Fotógrafos: Carlos Ruggi (Curitiba – PR), Douglas Mansur (São Paulo – SP),Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper
(Rio de Janeiro – RJ), João Zinclar (in memoriam), Joka Madruga (Curitiba – PR), Le onardo Melgarejo (Porto Alegre – RS), Maurício Scerni (Rio de Janeiro – RJ), Pilar Oliva (São Paulo – SP) • Ilustradores: Latuff,
Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Aparecida Terra • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira •
Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Juliana Fernandes • Endereço: Alameda Olga, 399 – Barra Funda – São Paulo – SP CEP: 01155-040 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 4301-9590 – São Paulo/SP –
redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: Taiga • Distribuição: Dinap Ltda. – Distribuidora Nacional de Publicações • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Aurelio Fernandes, Bernadete
Monteiro, Beto Almeida, Dora Martins, Frederico Santana Rick, Igor Fuser, José Antônio Moroni, Luiz Dallacosta, Marcelo Goulart, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Neuri Rosseto, Paulo
Roberto Fier, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Rosane Bertotti, Sergio Luiz Monteiro, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131–0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800
de 1º a 7 de outubro de 2015 3

instantâneo Marcelo Barros

A arte de envelhecer
A ONU CONSAGRA o 1º de outubro como dia internacio-
nal de proteção às pessoas idosas. No Brasil, nessa data, em
2003, foi assinado o Estatuto do Idoso. Nesse mesmo ano, a
CNBB começou a Pastoral das Pessoas Idosas, com o objeti-
vo de assegurar a dignidade e a valorização integral dos ido-
sos na sociedade.
No mundo atual, um número sempre maior de pessoas
atinge idades que, em outros tempos, poucos conseguiam al-
cançar. O desafio é lhes proporcionar uma vida o mais pos-
sível ativa e integrada no conjunto da sociedade. Na socie-
dade atual, apesar do envelhecimento da população, a socie-
dade é pensada para a juventude. Como os mais velhos não
produzem mais, perdem sua importância social. Parece que
só a juventude importa. As pessoas fazem cirurgia plástica e
malhação para se manter sempre jovens. Envelhecer se tor-
na mais doloroso e difícil. No Brasil, são 22 milhões de pes-
soas que passam dos 65 anos. Isso exige aumento de assis-
tência e médicos especializados. Uma senhora de mais de 90
anos afirmava à sua filha: “Agora, está muito difícil morrer”.
Em muitas cidades, existem associações da terceira idade
que promovem encontros, lazer, danças e até passeios. Para
elas, as universidades têm programas de extensão universitá-
ria e atividades como cursos de computação, ginástica, nata-
ção, música, dança e outras artes.
Às pessoas idosas e a toda sociedade, essas organizações
propõem fazer as coisas com calma no lugar da agitação.
Sugerem a disponibilidade no lugar do estresse. Valorizam
mais a identidade do que só a função; a qualidade e não so-
mente a quantidade. Trata-se, finalmente, de viver a graça
do dia de hoje mais do que o afã da permanente projeção pa-
ra o amanhã.
Em qualquer cultura, para toda pessoa, envelhecer é sem-
pre um processo difícil e exigente. Não é fácil ver o corpo ir
progressivamente decaindo e manter o espírito jovial. Enve-
lhecer fisicamente é um processo inexorável e ninguém pode
mudar isso. Não depende da vontade da pessoa. No entanto,
podemos fazer escolhas que nos permitam envelhecer de for-
ma mais humanizada e humanizadora.
Ninguém sabe ainda a causa biológica do envelhecimento,
Igor Fuser nem se pode, até agora, deter ou evitar esse fenômeno. Clineu
de Melo, médico especialista em geriatria da USP, afirmou:
“O envelhecimento é a perda gradativa das reservas que to-

Emoções baratas dos os organismos têm para usar em momentos de estresse”.

No Brasil, são 22 milhões de


AS EMPRESAS INTERNACIONAIS de mídia são espe- Antes da invasão da Líbia por forças da Otan, o país era,
cialistas em vender emoções. Fazem isso com incompará-
vel competência, como se viu, nas últimas semanas, com a
de fato, uma ditadura (como, de resto, todo o Oriente Mé-
dio), mas seus habitantes desfrutavam do Índice de De-
pessoas que passam dos 65 anos.
famosa foto do garotinho sírio morto numa praia e com as
imagens de multidões de refugiados do Oriente Médio em
senvolvimento Humano (IDH) mais alto do continente
africano. Hoje o líder líbio (ditador, se quiserem) Mua-
Isso exige aumento de assistência e
busca de um porto seguro no continente europeu. mar Kadafi está morto, linchado por seus inimigos, mas médicos especializados
Outras imagens, também recentes, de náufragos africa- a Líbia já praticamente não existe como entidade política.
nos afogados na mesma tentativa ficaram bem longe de É um território sem governo coerente, com o poder efeti-
provocar comoção equivalente. (Os sírios são brancos, ou vo nas mãos de milícias armadas até os dentes. Os únicos
quase brancos, e os retirantes africanos são negros, ou lugares onde reina a ordem são os campos de petróleo, vi- Todos os organismos foram pensados pela natureza para
quase negros – seria essa a explicação para a indiferença giados por mercenários a serviço das transnacionais. nascer, viver, reproduzir-se e depois morrer. Há uma seleção
maior ou menor?). A Síria é outro país em ruínas. O crime de seu governan- natural. Nesse sentido, pelo que se sabe, durante milênios, o
O que pouco se apresenta é o motivo que leva tantas fa- te, Bashar al-Assad, não é o autoritarismo. Se o problema ser humano a média da vida humana era de 30 anos. Vários
mílias a abandonarem suas casas para se lançar nessa fu- fosse esse, seu governo não teria recebido, anos atrás, sus- cientistas dizem que, a partir dos 30 anos, entramos em uma
ga rumo ao desconhecido, repleta de perigos. É a guer- peitos de terrorismo presos pelos EUA, com a incumbên- etapa da vida para a qual a seleção natural não nos preparou.
ra, somos informados. E a conversa costuma parar por aí. cia de torturá-los para extrair informações. O crime de al- Leonard Stayflick, professor na Universidade da Califórnia,
Falta indagar: onde se situam as guerras que maiores nú- -Assad é o de governar um Estado soberano, que apoia a chega a afirmar: “A velhice é um produto da civilização. Só
meros de refugiados têm provocado nos últimos anos? Na causa palestina e mantém uma aliança geopolítica com a ocorre propriamente nos seres humanos, nos animais domés-
Líbia. No Iraque. No Afeganistão. Na Síria. Rússia. Na tentativa de derrubá-lo, os EUA financiaram ticos e nos mantidos em zoológicos e em laboratórios”. Comu-
As mesmas guerras que os Estados Unidos e seus alia- os terroristas muçulmanos que lançaram a Síria na atual mente ligamos o envelhecimento à idade e, de fato, há uma
dos europeus deflagraram ainda ontem são o palco dos guerra civil. relação, mas não é direta e linear. Há pessoas de 90 anos que
massacres que hoje despacham milhões de pessoas a bus- Bashar al-Assad continua no poder. E as mesmas redes parecem ter 70 e há pessoas de 60 com jeito de 90.
car abrigo – muitas vezes, negado – na “civilizada” e “hu- midiáticas que promoveram a guerra na Síria choram lá- Apesar de não se poder generalizar, há uma pesquisa que
manista” Europa. grimas de crocodilo pelos inocentes mortos. mostra que a longevidade humana é maior em mosteiros bu-
distas, em conventos cristãos, em templos de Candomblé e
em comunidades de outras religiões do que na sociedade na
Joaquin Piñero qual as pessoas mais velhas são simplesmente postas em asi-
lo ou em depósitos humanos esperando a morte. É claro que

É hora de ir às ruas
o processo do envelhecimento depende da saúde, do clima e
mesmo da raça a qual pertencemos, mas depende também do
temperamento e estilo de vida. Por isso, podemos dizer que
até certo ponto a espiritualidade, isso é, a energia do espírito
em ação na pessoa, pode ter aí uma boa influência. A primeira
POUCO A POUCO A SITUAÇÃO no país vai se configu- Diariamente, nos dizem que o remédio para sair da coisa que as tradições espirituais propõem é manter sempre
rando da forma como os que perderam a eleição pre- crise deve ser os cortes nos investimentos sociais, a re- um projeto de vida profundo e de acordo com o projeto divino
sidencial planejaram. Ou seja, dia após dia, o proje- tirada dos direitos trabalhistas, pois pesam na folha de para o mundo e a comunidade a qual pertencemos.
to derrotado na eleição passada vai ganhando corpo e pagamento das empresas, privatização de empresas co- No começo dos anos de 1990, no Recife, Dom Hélder Câ-
seus operadores vão se fortalecendo nas esferas do po- mo a Petrobras, os Correios, etc. É a receita neoliberal. mara, com seus quase 90 anos, recebeu a visita do Abbé
der ditando as regras, mudando as leis e aplicando seus A classe trabalhadora não vai aceitar passivamente a Pierre, fundador de uma associação que trabalha com sofre-
planos.  volta de um projeto que penaliza cada vez mais os po- dores de rua. Os dois anciãos conversaram durante horas.
A grande maioria que votou pela continuidade de um bres. Não se pode aceitar essa política econômica na qual Depois, um jornalista perguntou: - Como vocês se sentem
projeto ganhou, mas não levou. Esse projeto vinha dan- quem paga a conta da crise são os que ganham menos. ao perceber que, depois de consagrarem toda a vida à liber-
do certo, com desemprego baixo, aumento real do salá- É hora de resistir, de demonstrar descontentamento e tação dos pobres do mundo, conseguiram tão pouco? Dom
rio mínimo, aumento do poder de compra, programas de exigir que o governo cumpra o projeto para o qual foi Helder falou: - Ficamos felizes de ter conseguido ao menos
sociais inclusivos, mas também exigia avanços com pro- eleito. É hora de ir às ruas. É hora de pressionar por mu- esse pouco e nos comprometemos em dar até o nosso último
jetos estruturais. danças estruturais, é hora de retomar o diálogo com o suspiro por essa causa na qual acreditamos e pela qual que-
O que vemos é um governo acuado, perdendo cada vez povo para fortalecer essa luta. remos dar a vida.
mais base de sustentação e apoios. Um governo chanta- Nos dias 2 e 3 de outubro, haverá mobilizações em to-
geado por um parlamento corrupto, por uma burguesia do o país levantando essa bandeira por uma nova polí- Marcelo Barros é monge beneditino e teólogo. Atualmente,
sedenta de lucros estratosféricos e por um conjunto de tica econômica e para que os ricos paguem pela crise. é coordenador latino-americano da Associação Ecumênica de
ações articuladas por esses setores que têm como prin- Ocorrerão várias atividades de rua ao longo desses dias. Teólogos/as do Terceiro Mundo (ASETT) e assessora comunidades
cipal porta-voz os meios de comunicações empresariais. Participe! eclesiais de base e movimentos sociais.

fatos em foco
da Redação
Aumenta número de 120 dias para que todos os órgãos façam a também abono de R$ 2.500. Os bancá- que representa os funcionários, 15 milhões
sem-teto em Los Angeles regulamentação. O Conselho Curador do rios farão assembleias em todo o país na de pessoas deixaram de ser atendidas nesse
A cidade norte-americana declarou, dia FGTS publicou, dia 25, a resolução Nº 780, próxima quinta (1º). O comando prevê a período de paralisação. Ainda vai ser defini-
22 de setembro, estado de emergência em que define a obrigatoriedade do recolhimen- deflagração de greve a partir do dia 6 se do – com o governo e com os grevistas – se
razão da “invasão” de acampamentos de to do FGTS e determina que a Caixa defina não houver alteração na proposta. O lucro haverá plantão para repor o tempo parado.
moradores de rua, que ocupam desde pas- os procedimentos operacionais. Cabe ao líquido dos cinco maiores bancos (Banco A categoria dos peritos continua em greve
sagens debaixo de rodovias até calçadas de empregador fazer o pedido de inclusão do do Brasil, Caixa Federal, Bradesco, Itaú e em todo o país. A paralisação começou dia
bairros chiques. Los Angeles é  a primeira empregado doméstico, sob sua responsabili- Santander), nos seis primeiros meses do 4 de setembro e segundo a Associação Na-
no país a dar um passo drástico frente ao dade. Os valores referentes a outubro devem ano, atingiu a marca de R$ 36,3 bilhões, cional dos Médicos Peritos em Previdência
problema, que só vem aumentando desde a ser depositados a partir de novembro. um crescimento de 27,3% na comparação Social, ainda não há previsão de fim do mo-
crise de 2008. Fala-se em 26 mil moradores com o primeiro semestre de 2014. vimento. (Agência Sindical)
de rua na cidade. (Agência Sindical) Com proposta de 5,5%, bancários
indicam greve para dia 6 Servidores do INSS encerram greve Mais de 24% da juventude
Empregados domésticos passam O Comando Nacional dos Bancários em todo o país está sem emprego na França
a ter direito ao FGTS em outubro considera que a proposta feita hoje pe- Após 78 dias, a greve dos servidores do A França, segunda maior potência da zona
O Fundo de Garantia do Tempo de Ser- la federação dos bancos, a Fenaban, de Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) do euro, continuou com a sua economia estag-
viço (FGTS) passa a ser obrigatório a partir 5,5% de reajuste, deve ser rejeitada pela foi encerrada dia 25 de setembro. O aten- nada no segundo trimestre, com a população
de 1º de outubro a todos os trabalhadores categoria. Segundo os representantes dimento deve ser normalizado em todo o amargando altos índices de desemprego e pre-
domésticos. O direito aos domésticos foi dos bancários nas negociações, a oferta país. Os servidores aceitaram a proposta carização das condições de trabalho e de vida.
regulamentado pela Lei Complementar 150, patronal “não chega perto de repor a in- de aumento do governo: 10,8%. Uma parte A taxa de desemprego no país está em 10,4%,
sancionada pela presidenta Dilma Rousseff flação de 9,88%, e representaria perdas de será paga em agosto do ano que vem e ou- alcançando os 24,1% para os jovens com me-
em 2 de junho desse ano, e deu prazo até 4% para os bancários”. A proposta prevê tra em janeiro de 2017. Segundo o Sindicato nos de 25 anos. (Agência Sindical)
4 de 1º a 7 de outubro de 2015 brasil 5

“Discutir o fechamento de escola passa por discutir o próprio projeto de campo” Karina Zambrana/SGEPMS
ENTREVISTA grandes elementos desse novo governo.
Para Alessandro Mariano,
Hoje a gente está pleiteando a constru- SEMINÁRIO
ção de 100 centros de educação infantil Leonardo Severo

nas áreas de reforma agrária. Um quin-


do setor de educação to elemento é a implementação de 30
do MST, um campo sem institutos federais, que já foram nego-
ciados e acordados nas áreas de assen-
gente, que é o que o tamento de reforma agrária. No Brasil
todo isso já é um acordo firmado, mas
agronegócio apregoa, não foi implementado. Outro elemento
evidentemente vai resultar que o Enera traz com bastante ênfase é
a criação de um Programa Nacional de
no fechamento das Alfabetização de Jovens e Adultos para
enfrentar o analfabetismo que se colo-
escolas, no definhamento ca hoje no Brasil. Hoje, 26% da popu-
das comunidades do lação que mora no campo, no Brasil, é
analfabeta. A gente tem que superar es-
campo. Segundo ele, essa se analfabetismo e nós do Movimen-
to Sem Terra adotamos o método “Sim,
é a lógica do capitalismo Eu Posso”, que já é utilizado nas áre-
as de reforma agrária e queremos que
no campo: que ele se torne o MEC se coloque nessa tarefa e assu-
um espaço de produção ma isso como o programa de superação
do analfabetismo. Um outro elemento,
de mercadoria unicamente o sétimo então, é um termo de coope-
ração entre o MEC e o MDA [Ministé-
em detrimento a um rio do Desenvolvimento Agrário], pa-
campo como espaço de ra o fortalecimento do Pronera, o Pro-
grama Nacional de Educação na Refor-
relação, de vida, de cultura ma Agrária, que é o grande programa
Abertura do 2º Encontro Nacional de Educadoras e Educadores da Reforma Agrária (ENERA) que tem possibilitado o acesso das co-
munidades camponesas e, mais especi-
refa no campo, que é se construir como ficamente, dos assentamentos e acam-

Paulo H. Carvalho/MDA
Cátia Guimarães esse espaço difusor de cultura, que vai pamentos de reforma agrária, ao ensi-
de Brasília (DF) para além do conhecimento sistemati- no superior. Hoje, da população jovem

A crescente
O professor João Antonio Felicio, da CSI, falou sobre o avanço do capital estrangeiro
camente elaborado a partir dos conte- que se vincula à reforma agrária, ape-
DURANTE CINCO dias, mais de 1.500 údos. nas 1% tem conseguido acessar a uni-
educadoras e educadores ligados ao versidade. O que a gente tem indicado
Movimento dos Trabalhadores Rurais O fechamento de escolas atende a como uma reivindicação é que o MEC

desnacionalização do ensino
Sem Terra (MST), pesquisadores e pro- que interesses e a que projeto de se coloque como um parceiro do MDA
fessores convidados se reuniram entre campo? e do INCRA no fortalecimento do Pro-
os dias 21 e 25 de setembro, no II En- Hoje, nós vivenciamos no Brasil uma nera e que isso chegue ao conjunto das
contro Nacional de Educadoras e Edu- crise financeira e política. E a principal universidades públicas do Brasil, que
cadores da Reforma Agrária, em Luzi- resposta assumida pelas forças que es- se coloque como uma política de forma
ânia (GO), para compartilhar experiên- tão na nossa sociedade é esse modelo mais efetiva. E o oitavo ponto é um pro-
cias sobre a educação no campo, apon- que a gente chama de agronegócio, um grama de capacitação profissional pa- EDUCAÇÃO monia econômica e política, deixando o 200 mil alunos no país. Em outubro do
tar desafios e perspectivas, e, acima de modelo composto pelas grandes mul- ra os assentamentos de reforma agrá- país refém dos seus interesses”. mesmo ano, o Grupo Anima, formado
tudo, lutar. tinacionais do agronegócio – Monsan- ria que esteja de acordo com a realidade Seminário da Contee João Felicio também alertou para o pelo Centro Universitário de Belo Hori-
Foi para denunciar o fechamento de to, Cargyl, Syngenta —, que produzem e as especificidades presentes em cada alerta para mercantilização fim da liberdade de cátedra através da zonte (UNIBH) e a UNA, da capital mi-
mais de 4 mil escolas rurais só em 2014 as sementes e dominam toda a comer- realidade do país e que também se vin- “padronização” imposta pelas insti- neira, a Unimonte de Santos e o fun-
e cobrar compromisso do governo fe- cialização dos produtos do setor agríco- cule às instituições públicas de ensino. que avança com recursos tuições mercantis, “sem relação com a do de Investimento BR Educacional, na
deral com uma educação de qualidade la. Isso se coloca como a grande saída Não queremos a forma do próprio Pro- nossa concepção cultural, geográfica ou sua oferta pública inicial de ações (IPO)
também para quem mora nas cidades da crise. No Plano Safra 2015, o agrone- natec Campo, que coloca o Sistema S públicos do FIES e do histórica, pois suas necessidades são na Bolsa de Valores, captou R$ 468,1
que os educadores ocuparam as aveni- gócio ganhou R$ 180 milhões enquan- como seu principal parceiro. Nós que- tão somente a de gestão da empresa, milhões para expansão de suas ativida-
das de Brasília em uma marcha e tam- to a agricultura camponesa familiar re- remos que, de fato, tentemos um pro-
ProUni, denunciam a maximização dos lucros com mão de des. Em 11 de abril de 2014, o mesmo
bém os ministérios da Educação e da cebeu, na política geral, R$ 28 milhões grama de capacitação profissional, mas professores obra barata, anulando o papel do cida- Grupo Anima adquiriu uma tradicional
Agricultura. Neste último, a parada foi do Estado. Mas se pegarmos os planos que seja vinculado às instituições públi- dão”. “Qualquer professor que expres- instituição educacional da capital pau-
também para protestar contra a estag- Safra anteriores, vemos que o acesso da cas e às demandas e necessidades pos- se uma concepção diferente desta ficará lista, Universidade São Judas Tadeu,
nação da reforma agrária no país e uma Evento reuniu 1.500 educadoras e educadores para compartilhar experiências sobre a educação no campo agricultura camponesa a esses recursos tas aí pelos movimentos sociais, as en- muito pouco tempo nestas instituições, com 25,8 mil alunos em 35 cursos, por
série de políticas que ameaçam os tra- é ainda menor pela condição burocrá- tidades de trabalhadores que se vincu- Leonardo Wexell Severo será dispensado”, enfatizou. R$320 milhões.
balhadores e trabalhadoras do campo e pria comunidade ache que não tem fô- “No Paraná, que é de onde eu venho, tica. Porque o camponês não tem a es- lam aos trabalhadores do campo. Então de São Paulo (SP) O professor Celso Napolitano, presi-
toda a sociedade brasileira, como a uti- lego para manter a escola no campo. Se trutura que as grandes empresas e co- esses oito pontos se colocam como uma dente do Departamento Intersindical de Sistema perverso
lização de agrotóxicos. você fecha uma turma de primeiro ano não houve fechamento de escola, mas operativas do agronegócio têm. Então, pauta de reivindicação. A divulgação “ESTAMOS DIANTE de uma crescente Assessoria Parlamentar (DIAP), denun- Para Lucas da Silva Tasquetto, pes-
Nesta entrevista, Alessandro Maria- de ensino médio, isso significa que no a estratégia posta é o fechamento das nem esse valor tão menor a gente con- pelo MEC desse Grupo de Trabalho da desnacionalização do ensino, uma mer- ciou que “com o FIES, as grandes corpo- quisador de pós-doutorado pela UFR-
no, do setor de educação do MST, de- ano seguinte também não vai ter um se- segue acessar. Essa é uma estrutura da Educação do Campo é importante, mas cantilização que avança em nosso país rações trocaram receitas duvidosas por GS e professor do curso de Relações
talha as dificuldades pelas quais pas- gundo ano. A curto prazo a comunida- turmas, o desaquecimento dessa escola política agrícola no Brasil que vai deter- só isso não resolve. Nós temos que ter, com recursos públicos do FIES (Fun- certas, um capitalismo sem risco, com Internacionais da Pontifícia Universi-
sam atualmente os estudantes campo- de não consegue identificar isso, mas a minar a expulsão dos camponeses, po- de fato, ações concretas e estruturantes. do de Financiamento Estudantil) e do aluno cativo e dinheiro do Tesouro Na- dade Católica de São Paulo (PUC-SP),
neses em todo o Brasil e como o mode- médio prazo, daqui a três anos, significa para que daqui a pouco a própria vos indígenas e quilombolas do campo e ProUni (Programa Universidade para cional”. Citando a entrevista do reitor nem foi preciso o Brasil ser signatário
lo de agricultura baseado no agronegó- que a escola não tem mais fôlego. comunidade ache que não tem fôlego vai efetivamente implicar o fechamento Todos). Nesta disputa entre o público da Universidade Federal do Rio, Rober- de acordos de livre comércio para que
cio é insustentável. das escolas. É esse processo que a gente “A escola tem um papel central no e o privado o problema não está só no to Leher, Celso lembrou que com a aqui- o capital estrangeiro pintasse e bor-
Quando as escolas são fechadas, para manter a escola no campo” está denunciando e enfrentando. Mas, financiamento, mas no conteúdo ideo- sição da Anhanguera pelo grupo inter- dasse, tanto na aquisição de empresas
Por que priorizar o tema do para onde vai a população que ao mesmo tempo, a gente — como MST, sentido de fortalecer a luta dessas lógico que passa a ser repassado”, afir- nacional Kroton, o conglomerado pas- quanto na negociação da bolsa de valo-
fechamento das escolas do depende de uma escola próxima? como movimento social e até como lu- mou a professora Fátima Silva, dirigen- sou a contar com 1,2 milhão de estudan- res. “Temos um sistema lucrativo priva-
campo durante o 2º Enera? Esse A saída posta é o transporte rural, o ta indígena — é a resistência no campo.
comunidades, ao mesmo tempo que vai te da Confederação Nacional dos Traba- tes, “passando a ser maior do que todas do de massa extremamente perverso”,
processo está se intensificando? transporte escolar. O Paraná, por exem- damental, que é possibilitar ao jovem, Fazemos ocupação de terras e, se a gen- construir a possibilidade de acesso ao lhadores em Estabelecimentos de Ensi- as universidades federais juntas”. disse Tasquetto, defendendo uma ação
Alessandro Mariano – O Enera se plo, gasta R$ 80 milhões por ano com à criança e até ao adulto que não pode te pega a realidade do Mato Grosso, por no (Contee), no seminário internacio- governamental mais firme para frear o
expressa como um momento impor- transporte rural. O que isso implica efe- frequentar a escola numa idade deter- exemplo — onde os indígenas têm se co- conhecimento e fortalecimento da luta” nal “Os diferentes modos de privatiza- descontrole.
tante de denúncia e enfrentamento. A tivamente nos municípios? É a velha minada, um espaço de acesso ao conhe- locado no enfrentamento do agronegó- ção da educação no mundo e as estra- “Qualquer professor que Na avaliação de Lalo Watanabe Min-
partir do congresso do MST, quando permuta. Por que quem é o empresário cimento. Por isso denunciamos a im- cio no cerrado, que hoje é o grande es- tégias globais e locais de enfrentamen- to, professor da Faculdade de Educa-
os sem-terrinha ocuparam o Ministério do transporte rural? Praticamente são possibilidade de nossos educandos fre- paço de expansão do agronegócio —, ve- to”. Iniciado na segunda-feira, 21 de se- expresse uma concepção ção da Universidade de Campinas (Uni-
da Educação, tivemos uma resposta do os amigos das lideranças, do prefeito, quentarem a escola 40 ou 60 dias em mos que, ao mesmo tempo que a políti- Comenta-se que, por conta do tembro, e encerrado na quinta, dia 24, camp), sem regras para sua atuação,
MEC, que foi a proposição de um aden- vereador. No Paraná, os educandos fi- função das chuvas. Pode não resolver ca se torna hegemônica a partir do agro- ajuste fiscal, o Ministério do o evento realizado pela Contee, no Ho-
diferente desta ficará “o capital está se apropriando do setor
do à Lei de Diretrizes e Bases da Educa- cam 40, 60 dias sem poder acessar a es- de forma total, porque a infraestrutura negócio, a população do campo tam- Desenvolvimento Agrário, que tel Braston, em São Paulo, reuniu espe- muito pouco tempo nestas educacional de todas as maneiras pos-
ção apontando a necessidade de se con- cola porque as estradas estão num es- das escolas do campo tem que ser dis- bém se coloca no enfrentamento, se- entre outras coisas desenvolve cialistas e sindicalistas do ramo. síveis, legais e ilegais, éticas e não éti-
sultar as comunidades para fechamen- tado deplorável. Essa é uma alternativa cutida, mas se a escola está mais próxi- ja na ocupação de terra – que o MST se o Pronera, pode ser extinto. “O fato é que essas instituições do mer- instituições, será dispensado” cas”. Esta apropriação “pelos interes-
to de escolas. No entanto, isso não re- que acaba prejudicando de forma efeti- ma, o jovem, a criança e o próprio adul- coloca como tarefa — seja na resistência Como é que o MST está lidando cado preferem trabalhar com o FIES e o ses políticos, econômicos e ideológicos
sultou ainda num processo contrário ao va até a possibilidade dos 200 dias le- to tem mais condições de acessá-la. Mas na terra que já estão sob o domínio des- com esse risco? Prouni, pois há uma transferência auto- de grupos tornam o ensino um modelo
fechamento. Eu venho do estado do Pa- tivos. Mas, ao mesmo tempo, favorece, junto desse papel da escola, de acesso sas comunidades tradicionais, como é o A nossa resposta é a resposta de luta. mática de recursos, é dinheiro líquido de negócio rentável”, desprezando sua
raná e este ano de 2015 foi o que mais nos pequenos municípios, alguns gru- ao conhecimento produzido, a escola caso das comunidades indígenas. A es- O próprio Enera se coloca no enfrenta- e certo, sem os riscos de uma mensali- No dia 22 de abril de 2013, quando importância para o interesse individual
se ressaltou o fechamento de escolas. É pos que vão dar sustentação política pa- também se constitui como um núcleo cola tem um papel central no sentido de mento do modelo agrícola que é hege- dade”, destacou Fátima, lembrando que Kroton e Anhanguera anunciaram sua e coletivo. “Temos que retomar as lutas
um processo crescente. A análise que a ra os partidos em torno do próprio go- de cultura na comunidade. Além de de- fortalecer a luta dessas comunidades ao mônico hoje no Brasil e que está levan- programas pensados para ser transitó- “fusão”, criando uma nova companhia, em defesa da educação pública como
gente vem fazendo é que discutir o fe- verno do estado. sempenhar o papel de ter aulas, conte- mesmo tempo que vai construir a pos- do, por exemplo, ao consumo acelerado rios acabaram se cristalizando, passan- avaliada em 5,9 bilhões de dólares – a único modo de resistir e contrapor-se
chamento de escola passa por discutir údos curriculares, a escola também vai sibilidade de acesso ao conhecimento e de agrotóxicos. Por isso nós tivemos a do a sugar importantes parcelas do Or- maior do mundo – passaram a contar a essas forças, que são muito podero-
o próprio projeto de campo. O Enera se Quando se fecham escolas do se constituir como esse espaço de reu- fortalecimento da luta. ocupação do Ministério da Agricultura çamento da educação para os cofres pri- com 123 campus de ensino presencial, sas”, defendeu, denunciando a crescen-
coloca nessa tarefa, por exemplo, quan- campo, qual a distância que os nião da comunidade, onde outras ações e Pecuária. Se isso se efetivar, eu não te- vados. “A qualidade do ensino também 647 polos de ensino à distância, uni- te influência privatista sobre o Executi-
do a gente faz a ocupação do Ministé- alunos precisam percorrer para podem ser desenvolvidas no contratur- O MEC sinalizou a criação de um nho dúvida de que nós, enquanto movi- vem sofrendo com esta opção”, alertou, dades em 80 cidades do país e mais de vo, o Legislativo e o Judiciário). Exem-
rio da Agricultura no sentido de denun- estudar? no. Nós temos experiências em nível de Grupo de Trabalho para discutir mentos sociais, tanto MST como outros “uma vez que essas empresas trabalham dois mil cursos de graduação, mestrado plo disso, citou, são os 10% do PIB para
ciar o modelo de agricultura vigente sob Temos realidades distintas, não exis- Brasil, no Coletivo das Mulheres, o Co- a situação das escolas do campo. movimentos sociais, vamos fazer uma com a demissão de quadros altamente e doutorado, tendo obtido receita líqui- a Educação, alvo de intensa disputa en-
o agronegócio. Porque um campo sem te uma média. Mas no Paraná, que é um letivo da Juventude. Cooperativas de Como vocês avaliam essa resposta? luta muito fervorosa no sentido de de- qualificados, substituídos por professo- da de 3 bilhões de reais e lucro líquido de tre o público e o privado.
gente, que é o que o agronegócio apre- estado com uma condição razoável, eu assentamento têm na escola esse espa- O anúncio do MEC é um elemento fender essas conquistas —que são pou- res que ganham 50% menos”. 420 milhões de reais. Naquele momen- A professora Madalena Guasco Peixo-
goa, evidentemente vai resultar no fe- conheço comunidades em que os edu- ço de unidade da própria comunidade. bastante importante, mas não resolve. cas, mas que concretamente têm nos to, a fusão englobava cerca de 15% de to- to, coordenadora-geral da Contee, tra-
chamento das escolas, no definhamen- candos têm que andar 80 quilômetros É importante a gente destacar o papel Nós temos uma pauta de reivindicações possibilitado avançar. E o MDA se co- dos os alunos do ensino superior do país. çou um histórico da expansão da educa-
to das comunidades do campo. Essa é diariamente para acessar o ensino mé- que a escola tem na nossa sociedade, com oito pontos. O primeiro é o investi- loca nesse grande marco de reversão. “O fato é que essas instituições do No Brasil, apontou Celso Napolitano, ção superior brasileira, a partir da mer-
a lógica do capitalismo no campo: que dio. Claro que tem assentamentos mais relacionado ao conhecimento historica- mento de 10% do PIB e dos royalties do Comentários a gente ouve muitos, mas cinco fundos de investimento têm 40% cantilização e financeirização do setor.
ele se torne um espaço de produção de próximos ao núcleo urbano mas, ao mente construído, mas ela tem outra ta- Petróleo na educação, o que já foi apro- isso ainda não se oficializou. Se de fa- mercado preferem trabalhar com das matrículas da educação superior A concentração mercantil, avalia, ga-
mercadoria unicamente em detrimento mesmo tempo, temos esses extremos. vado mas não se efetivou. O segundo é to o governo federal assumir essa pos- brasileira e apenas três fundos contro- nhou força a partir do ProUni e do Fies.
a um campo como espaço de relação, de Em dia que chove, praticamente não se
Reprodução/Facebook
a certificação das licenciaturas em edu- tura, eu não tenho dúvida de que a gen-
o FIES e o Prouni, pois há uma lam 60% da educação à distância. Tam- Para Madalena, além de lutar para
vida, de cultura. Isso exalta a necessida- vai. E isso se reflete na perda de 40, 60 cação do campo, que estão sendo ofe- te vai fazer o enfrentamento, vai fazer a transferência automática de recursos, bém presidente da Federação dos Pro- que os recursos públicos fiquem inte-
de de se construírem espaços como as dias de aula. recidas, como fruto da luta dos movi- denúncia. Vamos fazer a crítica ao go- fessores do Estado de São Paulo (Fe- gralmente na esfera pública, é funda-
escolas do campo. mentos sociais, mas que ainda não con- verno federal, a alguns erros e equívo- é dinheiro líquido e certo, sem os pesp), Celso apresentou o estudo Aná- mental buscar uma regulação mais efi-
Além de minimizar esse sacrifício seguimos efetivar o reconhecimento do cos que a gente tem divulgado, mas ao lise econômico financeira de empresas ciente para garantir a qualidade do en-
Que resposta foi essa que o MEC dos alunos para terem acesso à curso para que os egressos possam par- mesmo tempo temos que entender que riscos de uma mensalidade” do setor de Educação com indicado- sino, obrigando as instituições a cum-
deu em relação à LDB? escola, qual é a importância de ticipar dos concursos, dos processos em esse governo hoje foi o que nos permitiu res e resultados dos grupos (de capital prirem com suas responsabilidades.
Houve um adendo na Lei de Diretri- existirem escolas no campo, mais seus espaços. O que eu já disse pra ti, a algumas conquistas que são fundamen- aberto) Kroton-Anhanguera, Estácio, “Daí a importância em pressionar pela
zes e Bases, que acho que é de agosto próximas da população? necessidade de construção de 300 no- tais. O próprio MDA, o Incra e o Pro- Anima e Ser; e empresas particulares aprovação do Insaes (Instituto Nacio-
do ano passado. Foi a inclusão de um Hoje nós temos uma demanda jun- vas escolas, apontando também a ne- nera se colocam nesse contexto. Então, Setor estratégico de capital fechado (Mackenzie e Unic- nal de Supervisão e Avaliação da Edu-
parágrafo colocando a necessidade de to ao MEC de construção de 300 esco- cessidade de desburocratizar esse pro- é uma critica ao processo desencadea- Prestigiando o Seminário, o profes- sul). Entre outros abusos, foi constata- cação Superior)”, sublinhou.
consulta à comunidade local sobre o fe- las em locais de reforma agrária. É uma cesso porque a burocracia tem sido o do que a gente está vivenciando, mas, sor João Antonio Felicio, presidente da do que as companhias Kroton, Anima, Iniciado na segunda-feira e encerra-
chamento das escolas do campo, indí- pauta já antiga, vencida. Só no esta- principal empecilho para a gente aces- ao mesmo tempo, temos que defender Confederação Sindical Internacional Estácio e Ser tiveram, em média, salto do nesta quinta, o evento realizado pela
genas e quilombolas. Com esse aden- do do Paraná nós temos encaminhada, sar isso. Há mais de oito anos a gente essas conquistas que são fundamentais (CSI) e membro da executiva nacional de 201% na receita líquida no período, Contee no Hotel Braston, em São Pau-
do na LDB, há uma mudança na táti- junto ao MEC e à Secretaria de Educa- tem a pauta de 20 escolas lá no Para- para a gente continuar nesse momen- da CUT, também alertou para os riscos direcionando cada vez menos recursos lo (SP), contou com a parceria da In-
ca constituída: fecham-se cursos e tur- ção, a construção de 20 escolas de en- ná com o processo todo iniciado jun- to de resistência. De fato é resistir, ten- do avanço do capital estrangeiro “em aos professores. ternacional de Educação (IE), da Con-
mas e isso vai definhando a escola. Por sino médio em assentamentos da refor- to à Secretaria de Estado da Educação tar qualificar as ações que a gente vem um setor estratégico, que dialoga com Contando com a injeção de recur- federação Nacional dos Trabalhadores
exemplo, no Paraná, que é de onde eu ma agrária. Porque a escola acaba, jun- e junto ao MEC mas a gente não con- desenvolvendo e ampliá-las dentro da a construção de um projeto de país, de sos públicos, em agosto de 2013, o gru- em Educação (CNTE) e da Federação
venho, não houve fechamento de esco- to com outras instâncias da comunida- segue de fato implementar essas esco- conjuntura e da correlação de forças nação”. Transferir o ensino universitá- po americano proprietário da Anhembi de Sindicatos de Professores e Profes-
la, mas a estratégia posta é o fechamen- de camponesa, se constituindo como las. E um quarto elemento é o centro de posta na sociedade brasileira. (Escola rio a essas grandes corporações trans- Morumbi adquiriu as Faculdades Me- soras de Instituições Federais de Ensi-
to das turmas, o desaquecimento des- esse centro cultural da própria comuni- educação infantil que na própria cam- Politécnica de Saúde Joaquim Venân- nacionais, sublinhou, “abre espaço pa- tropolitanas Unidas (FMU) por R$ 1 bi- no Superior e de Ensino Básico, Técnico
sa escola para que daqui a pouco a pró- dade. Então, a escola tem um papel fun- Alessandro Mariano, do setor de educação do MST panha da Dilma colocou como um dos cio – EPSJV/Fiocruz) ra que sejamos submetidos à sua hege- lhão, passando a contar com mais de e Tecnológico (Proifes-Federação).
6 de 1º a 7 de outubro de 2015 brasil

Intoxicação por agrotóxico:


“os números são alarmantes” Fernando Frazão/ABr

ENTREVISTA Segundo a
pesquisadora Larissa Mies Bombardi,
em 2005 o consumo médio de
agrotóxicos era da ordem de 5 kg/
hectare e, em 2011, passou a ser de
11 kg/hectare. Ou seja, em menos de
uma década dobramos a quantidade
de agrotóxicos utilizada no país

Patricia Fachin
de São Leopoldo (RS)

EM SETE ANOS, 2.181 casos de crian-


ças e adolescentes intoxicados por agro-
tóxicos foram notificados junto ao Mi-
nistério da Saúde, informa Larissa Mies
Bombardi, em entrevista concedida à
IHU On-Line por e-mail. Segundo a
pesquisadora, que analisou esses dados Em sete anos, foram notificados 2.181 casos de crianças e adolescentes intoxicados por agrotóxicos
em sua pesquisa de pós-doutorado, “nos
estados do Centro-Sul do país, as crian- Outra informação importante é que a Outro dado demonstra que trimento de um projeto de soberania ali-
ças entre 1 e 4 anos respondem por mais maior parte das crianças e adolescentes ocorrem em média 5.600 mentar. Desta forma, vamos acompa-
de 30% dos casos. Em Mato Grosso e intoxicados tem a zona urbana como re- intoxicações por ano. Como nhando ano após ano a diminuição da
Minas Gerais, por exemplo, esta faixa sidência. Este fato, sem dúvida, está rela- interpreta esse dado? produção de arroz e feijão, por exemplo,
etária (de 1 a 4 anos) responde por mais cionado à enorme subnotificação dos ca- Estes números já revelam um qua- que respectivamente ocupavam 3,2 e 4,3
de 40% dos casos de intoxicação neste sos de intoxicações por agrotóxico de uso dro gravíssimo. Cheguei a eles a partir milhões de hectares em 2002 e passaram
intervalo de 0 a 14 anos”. agrícola. do banco de dados da Fiocruz, mapean- a ocupar 2,8 e 3,7 milhões de hectares em
Larissa conta que desde que iniciou Se atentarmos para os tipos de circuns- do as intoxicações durante um período 2011. Por outro lado, vemos um aumento
suas investigações sobre os impactos do tâncias e focarmos naquela denomina- de 11 anos (1999 a 2009). Consideran- vertiginoso da produção de grãos (parti-
uso de agrotóxicos no país, tem perce- da pelo Ministério da Saúde como “aci- do este número de intoxicações notifi- cularmente milho e soja) e cana-de-açú-
bido que “de 20 a 25% das intoxicações dental”, verificaremos que esta tem pre- cadas, 5.600 por ano, significa que tive- car. A soja partiu de 16,4 milhões de hec-
notificadas, ano após ano, diziam res- valência na zona urbana em relação à ru- mos 62.000 intoxicações no período, ou tares em 2002 para 22,7 milhões de hec-
peito a crianças e jovens, com idade de ral, o que leva à hipótese de que as crian- 15 intoxicações por dia, ou uma a cada 90 tares em 2011, e a cana, neste mesmo pe-
0 a 19 anos”. Do total das intoxicações ças intoxicadas na zona rural estão en- minutos. ríodo, de 5,2 milhões de hectares para
analisadas por ela, grande parte, expli- volvidas no universo do trabalho dire- Estes números, por si só, já são sufi- 11 milhões de hectares. Se observarmos
ca, refere-se a “motivos acidentais (pri- tamente ou não, ou seja, pode ser que a cientemente alarmantes, entretanto a o uso de agrotóxicos por cultivo (valores
meiro lugar no tipo de circunstância que própria criança trabalhe efetivamente ou própria Fiocruz estima que, para cada referentes às vendas de agrotóxicos), po-
envolveu a intoxicação para a faixa etá- que acompanhe os pais em suas jornadas intoxicação notificada, tenhamos 50 ou- demos verificar que em 2009 a soja ocu-
ria de 0 a 14 anos). de trabalho. tras não notificadas. Isto significa que es- pava o primeiro lugar com 47%, o milho
Entretanto, um dado muito assusta- Outro dado alarmante refere-se à into- tamos diante de uma forma de violência em segundo lugar com 11,4% e a cana em
dor é que o segundo motivo no núme- xicação através da ingestão de alimentos. silenciosa ou de uma epidemia silencio- terceiro lugar com 8,2%.
ro de intoxicações notificadas para a fai- No total, neste período, foram 54 crian- sa provocada pelo modelo agrícola que o Deve-se ressaltar ainda que, com a li-
xa etária mencionada é o de suicídio, que ças intoxicadas por agrotóxico de uso país vem adotando. beração das sementes transgênicas OG-
se concentra entre adolescentes de 10 a agrícola através do consumo de alimen- Ms (Organismos Geneticamente Modifi-
14 anos. Neste período, mais de 300 ado- tos, dentre elas três bebês de menos de Por quais razões as notificações cados), que em boa parte dos casos tra-
lescentes entre 10 e 14 anos fizeram ten- um ano. Com relação à zona de residên- de intoxicação por agrotóxicos ta-se de sementes tolerantes ao Glifosa-
tativa de suicídio através da ingestão de cia, 32 deste total habitam a zona urbana ainda são pouco notificadas no to (o Ingrediente Ativo mais vendido no
agrotóxicos de uso agrícola”. Para ela, e 22 a zona rural. serviço de saúde? Brasil), vivenciamos um aumento mui-
esses dados demonstram que “estamos Este número nos dá uma média de Por algumas razões, dentre elas, desta- to significativo do uso de agrotóxicos.
diante de uma forma de violência silen- quatro crianças intoxicadas com agrotó- cam-se: acesso distante e difícil dos cam- Em 2005 o consumo médio de agrotóxi-
ciosa ou de uma epidemia silenciosa pro- xico de uso agrícola por ano, através do poneses e trabalhadores rurais em rela- cos era da ordem de 5 kg/hectare e, em
vocada pelo modelo agrícola que o país consumo de alimentos. Penso que estes ção aos centros de saúde, falta de prepa- 2011, passou a ser de 11 kg/hectare. Ou
vem adotando”. dados traduzem a gravidade da questão ro dos profissionais de saúde para lidar seja, em menos de uma década dobra-
Na entrevista a seguir, Larissa comen- do uso de agrotóxicos no país. com os quadros de intoxicação por agro- mos a quantidade de agrotóxicos utiliza-
ta os efeitos das intoxicações por agrotó- tóxico e, também, uma prática da popu- da no país.
xicos entre adultos e crianças e esclarece, Como analisa esse dado de mais lação em não buscar o serviço de saúde
especificamente, as implicações do In- de 2.150 intoxicações registradas em quadros de intoxicação “leve”, mas É possível desenvolver uma
grediente Ativo Acefato, o quinto em nú- entre crianças dessa faixa etária? que, no entanto, levam a problemas crô- agricultura sem o uso de
mero de vendas no Brasil. Que efeitos essas intoxicações nicos de saúde — tal prática é perpetrada agrotóxicos? Quais as vantagens
causam nas crianças? por mensagens subliminares que fazem e desvantagens desse tipo de
Em que consiste seu estudo, o Os efeitos de intoxicações por agrotó- supor a baixa toxicidade dos agrotóxicos. agricultura?
qual evidenciou que entre 2007 xicos sobre crianças são sempre mais ne- Sim, é perfeitamente possível desen-
e 2014 foram notificadas 2.150 fastos do que sobre os adultos, por dois Como se dá a intoxicação por volver agricultura sem o uso de agrotóxi-
intoxicações somente na faixa motivos básicos: agrotóxico no uso agrícola? Quais cos, afinal, a humanidade chegou até os
etária entre 0 e 14 anos de idade, 1. As crianças são organismos em cres- são os casos mais recorrentes anos 50 do século passado sem este tipo
em todo o país? cimento e em formação; que tem registrado em suas de uso. A justificativa para o uso massi-
Larissa Mies Bombardi – Este estu- 2. O peso corpóreo das crianças é me- pesquisas? vo de agrotóxicos na agricultura, desde o
do refere-se ao desenvolvimento de meu nor do que o dos adultos, o que significa Segundo a classificação da Anvisa so- final da II Guerra Mundial, tem sido de
Pós-Doutorado, que tem por temática a que a mesma quantidade de ingredien- bre as circunstâncias que levaram às que esta é a resposta para o problema da
questão do uso de agrotóxicos no Brasil te ativo da intoxicação (ingerido, inala- intoxicações notificadas para o período fome no mundo: a produtividade resol-
e seus impactos. Durante o desenvolvi- do, por contato, etc.) pode ter seu efeito de 2007 a 2014, o maior número de no- verá a fome. Entretanto, passado mais
mento dos mapeamentos que venho fa- ampliado. tificações está relacionado à tentati- de meio século, um terço da humanidade
zendo, passou a me chamar a atenção a Como exemplo, vale indicar a No- va de suicídio, em segundo lugar a fa- permanece na miséria, muito embora a
quantidade de intoxicações entre crian- ta Técnica da Anvisa sobre o Ingredien- tos acidentais, em terceiro lugar ao uso produção de alimentos tenha aumentado
ças e jovens. Praticamente de 20 a 25% te Ativo “Acefato”, o quinto em número habitual e, em quarto lugar, a intoxica- exponencialmente. O problema da fome
das intoxicações notificadas, ano após de vendas no Brasil, em seu processo de ções ambientais. é uma questão de acesso à terra e distri-
ano, diziam respeito a crianças e jovens, avaliação: Estes dados são gerais, para o país to- buição de renda, como já apontara Josué
com idade de 0 a 19 anos. Assim, fui fo- “Outro quadro neurológico grave, de- do, com especificidades regionais e esta- de Castro na década de 1960 do século
cando os mapas em faixas etárias ainda sencadeado por exposições aos OPs duais. Entretanto, a tentativa de suicídio passado. O que está em questão, portan-
inferiores e pude constatar que neste pe- (Organo-fosforados, que é o caso do ocupa mais de 40% do total das intoxica- to, é aquilo em que o alimento se tornou.
ríodo (2007 a 2014) houve 2.181 crianças Acefato), foi identificado mais recen- ções notificadas. Só no ano de 2013 foram O alimento tem se tornado uma merca-
e adolescentes com intoxicações notifi- temente, e passou a ser conhecido co- 1.796 tentativas de suicídio com agrotó- doria como outra qualquer para ser co-
cadas junto ao Ministério da Saúde, com mo ‘síndrome intermediária’. A Síndro- xicos de uso agrícola notificadas. Isto sig- mercializada nas Bolsas de Mercadorias
idade entre 0 e 14 anos. E, destas, nos es- me Intermediária (SI) caracteriza-se nifica que, a cada dia, praticamente cin- e Futuros e, também, tem se transforma-
tados do Centro-Sul do país, as crianças pela acentuada fraqueza dos músculos co pessoas no país tentaram suicídio com do em energia.
entre 1 e 4 anos respondem por mais de respiratórios e diminuição da força dos ingestão de agrotóxicos. A agricultura agroecológica, por exem-
30% dos casos. Em Mato Grosso e Mi- músculos do pescoço e das extremida- O entendimento da envergadura des- plo, pode ser tão ou mais produtiva que
nas Gerais, por exemplo, esta faixa etária des proximais dos membros. Esses sin- tes números nos leva a pelo menos du- a agricultura convencional. Entretanto,
(de 1 a 4 anos) responde por mais de 40% tomas aparecem algumas horas após o as explicações: a primeira é que o nú- esta demanda bastante trabalho huma-
dos casos de intoxicação neste intervalo início dos sintomas de hiperestimula- mero de subnotificações em geral é tão no, em virtude de um manejo frequente
de 0 a 14 anos. ção colinérgica (intoxicação aguda). O grande, que estes casos de tentativa que está relacionado à adaptação dos cul-
comprometimento respiratório na SI, de suicídio (devido à gravidade e toda tivos aos aspectos da natureza, entre ou-
Esses casos de intoxicação se não houver pronto atendimento em a questão formal/jurídica que eles en- tros fatores, além de envolver o bem-es-
ocorreram e ocorrem com mais hospitais equipados com aparelhos de volvem) tomam uma proporção gigan- tar dos camponeses que a praticam. O fa-
frequência por quais razões? respiração assistida, pode levar à mor- tesca no universo de notificações. A se- to de este tipo de agricultura demandar
Pelo consumo de alimentos te. [...] Outra questão preocupante é o gunda é que há uma conexão clara (em intenso trabalho humano torna-a inviá-
contaminados, por ingestão de fato de estudos experimentais sugeri- estudos realizados no Brasil e no exte- vel do ponto de vista de um empreendi-
agrotóxicos acidentalmente, rem que crianças (organismos ainda em rior) entre a exposição crônica a alguns mento capitalista, ou seja, aquele que se
pelo contato das crianças com as desenvolvimento) possam ser mais vul- tipos de agrotóxicos e neuropatias de- mantém através da exploração do traba-
plantações? As intoxicações foram neráveis aos efeitos de OPs. Há indícios correntes desta exposição, que podem lho assalariado.
mais frequentes em crianças que claros de que a exposição contínua de levar o camponês ou o trabalhador ru- Assim, estamos diante de dois mo-
residem no campo ou na cidade? animais em fase de desenvolvimento a ral à tentativa de suicídio. delos que “aparentemente” dizem res-
Deste total, uma grande parte das in- baixas doses de OPs pode afetar adver- De toda forma, observa-se, pelo restan- peito à produção de alimentos: um de-
toxicações notificadas referem-se a moti- samente o crescimento e a maturação.” te dos dados mencionados anteriormen- les em que realmente se trata de produ-
vos acidentais (primeiro lugar no tipo de Entretanto, em que pese o teor da te (excetuando-se o número de tentati- ção de alimentos, e outro em que se tra-
circunstância que envolveu a intoxicação avaliação deste ingrediente ativo, Ace- vas de suicídio), que a questão laboral es- ta da produção de commodities e ener-
para a faixa etária de 0 a 14 anos). Entre- fato, em Diário Oficial da União de tá no centro das intoxicações por agrotó- gia. (IHU On-Line)
tanto, um dado muito assustador é que o 04/10/2013, verifica-se que a decisão foi xicos de uso agrícola.
segundo motivo no número de intoxica- por manter a autorização do Acefato nas
ções notificadas para a faixa etária men- culturas de amendoim, algodão, batata, Quais são os casos mais
QUEM É
cionada é o de suicídio, que se concentra brócolis, citros, couve, couve-flor, feijão, problemáticos do uso de Larissa Mies Bombardi é graduada
entre adolescentes de 10 a 14 anos. Nes- melão, repolho, soja e tomate para fins agrotóxicos na agricultura? em Geografia pela Universidade de São Paulo
te período, mais de 300 adolescentes en- industriais, com a diferença que, a partir Entendo que o que há de muito pro- (USP), onde também cursou o mestrado e o
tre 10 e 14 anos fizeram tentativa de sui- de então, este ingrediente ativo passou blemático é o fato de termos um mode- doutorado. Atualmente é professora no De-
cídio através da ingestão de agrotóxicos a ser exclusivamente de aplicação por lo agrícola que privilegia a exportação e partamento de Geografia da USP.
de uso agrícola. meio de equipamentos mecanizados. a produção de agrocombustíveis, em de-
brasil de 1º a 7 de outubro de 2015 7

Relatório que prevê demarcação de


terras indígenas por lei é retrocesso
PEC 215 Leitura do parecer na que a bancada ruralista use seu poder de todos os entes federados no procedi- cional. Segundo ele, “a emenda constitu-
de influência nas decisões e votações da mento administrativo. cional não trará nenhum prejuízo aos di-
semana passada causou confusão e Câmara dos Deputados e do Senado so- reitos dos indígenas, que estão garanti-
bre o tema. Nova área dos na Constituição Federal, assim como
foi interrompida por pedido de vista O relatório, que foi apresentado pelo O novo texto da PEC ainda autoriza não importará em violação ao pacto fede-
coletivo. Mudança dá a deixa para que a deputado Osmar Serraglio (PMDB-PR) a comunidade indígena a optar por ou- rativo e à separação de poderes”.
– relator da PEC – só não foi submetido tra área que não seja a originalmente de- Na prática, a Fundação Nacional do Ín-
bancada ruralista use poder de influência a votação na comissão especial que avalia marcada e determina ainda que a União dio (Funai) passará a encaminhar para o
o tema na quarta-feira (23/09) diante de adote políticas especiais de educação, Congresso todas as propostas de demar-
nas decisões e votações sobre o tema um pedido de vista coletivo por parte dos saúde e previdência social para os índios. cação feitas a partir de estudos da enti-
deputados. O parecer de Serraglio, além Atualmente, as terras tradicional- dade. E o Ministério da Justiça perderá
de exigir a votação do Congresso também mente ocupadas pelos índios destinam- a autonomia que possui atualmente para
proíbe a ampliação de terras indígenas já -se a sua posse permanente, cabendo- editar decretos de demarcação baseados
Hylda Cavalcanti demarcadas. -lhes o usufruto exclusivo das riquezas nestes estudos.
de Brasília (DF) do solo, dos rios e dos lagos nelas exis- “Os setores mais conservadores da so-
da Rede Brasil Atual  Cláusula pétrea tentes. A PEC 215 retira esse caráter ex- ciedade querem nos matar por meio da
Para a deputada Erika Kokay (PT- clusivo e estabelece algumas exceções caneta, como nos mataram no passado
CASO AS ENTIDADES sociais e de defe- -DF), uma das autoras do pedido de vis- para permitir o que é chamado no tex- com suas armas de fogo. Têm o espírito
sa dos índios, bem como os parlamenta- ta, a proposta da forma como apresen- to de “ocupações de relevante interes- dos bandeirantes aqueles que usam de
res com atuação vinculada à causa e as tada pelo relator é inconstitucional, por se público da União” – como casos de seu poder para enriquecer e concentrar
frentes progressistas do Congresso Na- violar cláusulas pétreas da Constitui- instalação e intervenção de forças mi- terras, enquanto nós, povos originários,
cional não se mexam nos próximos me- ção. “Fere a separação dos poderes, en- litares e policiais; e instalação de redes continuamos nas beiras de estrada, es-
ses, a Proposta de Emenda à Constitui- quanto cláusula pétrea da nossa Cons- de comunicação, logística e edificações poliados e excluídos. Seguimos sem ter
ção (PEC 215/00) referente à demarca- tituição e fere direitos e garantias indi- (vedada a cobrança de tarifas de qual- onde dormir, sem ter onde morar, sem
ção de terras indígenas pode caminhar viduais. Significa um retrocesso no que quer natureza), entre outros. ter onde plantar”, destaca um documen-
para o mesmo desfecho que ameaçava este país já conquistou. A Constituição A proposta reconhece como definiti- to da Associação dos Povos Indígenas
ter em 2014: o de ser votada de forma a brasileira assegurou o direito às terras va a propriedade dos remanescentes das do Brasil (Apib).
representar um retrocesso na discussão indígenas pelos próprios indígenas. Os comunidades dos quilombos que ocupa- Em junho passado, manifesto assina-
sobre o tema no país. povos indígenas têm que ter direito às vam suas terras na data da promulgação do por 70 entidades que reúnem vários
terras indígenas para a gente romper da Constituição, tornando obrigatória a setores da sociedade civil foi lido, na Câ-
com esse etnocídio que existe”, afirmou emissão dos seus títulos pelo governo. mara dos Deputados, por Erika Kokay. O
A Constituição brasileira assegurou a parlamentar. Mas prevê que as demarcações em curso, texto pediu que a PEC deixasse de trami-
Diante da contestação ao parecer, o independentemente da fase em que esti- tar e voltasse a ser arquivada. Na época,
o direito às terras indígenas pelos presidente da comissão, deputado Nil- verem, devam obedecer às novas regras a índia Pierlangela Wapichana, uma dos
próprios indígenas. Os povos son Leitão (PSDB-MT), propôs que o co- previstas na matéria. muitos indígenas presentes, enfatizou
legiado discuta durante o período de vis- que a iniciativa consistiu “numa prova de
indígenas têm que ter direito às ta a proposta com o procurador-geral da que há muita gente no país interessada
República, Rodrigo Janot, e com o pre- “Nossa luta é contra mais em defender a vida dos índios”.
terras indígenas para a gente romper sidente do Supremo Tribunal Federal Agora, é grande a expectativa das reu-
(STF), ministro Ricardo Lewandowski – uma violência direcionada niões a serem marcadas para consulta
com esse etnocídio que existe” o que ajudará a dar maior esclarecimen- a Janot e ao presidente do STF sobre a
to sobre o teor da matéria e sua constitu-
aos povos indígenas, que proposta. Movimentos sociais já se arti-
cionalidade. vêm sendo secularmente culam para pedir maior conscientização
O relatório do deputado também pre- aos deputados nessa discussão e os par-
Isso porque o relatório da PEC, lido vê a indenização em dinheiro aos pro- agredidos, violentados” lamentares que defendem a causa pro-
semana passada, traz como ponto prin- prietários ou possuidores de boa-fé, ain- metem concentrar esforços para comba-
cipal os mesmos itens que foram objeto da que na faixa de fronteira, das áreas ter o parecer recentemente divulgado.
de queixas dessas comunidades: deter- inseridas em território indígena em de- “Nossa luta é contra mais uma vio-
mina que a demarcação passe a ser feita corrência das demarcações posteriores “Sem violações” lência direcionada aos povos indíge-
por meio de lei, após aprovação dos de- ao marco temporal. E, em um dos tre- De acordo com Serraglio, o objetivo da nas, que vêm sendo secularmente agre-
putados e senadores e não mais por de- chos tidos como mais polêmicos, esta- comissão é manter o diálogo com todos didos, violentados”, afirmou o depu-
creto. Na prática, repassa do Executivo belece que, em caso de conflito fundiá- os interessados e dar mais segurança ju- tado Edmilson Rodrigues (PSOL-PA),
para o Legislativo a decisão da demar- rio, passa a ser possível a troca de áreas rídica à questão. Para o deputado e rela- um dos que contestam os termos do re-
cação dessas áreas. E dá a deixa para demarcadas, assegurada a participação tor, a PEC está longe de ser inconstitu- latório de Serraglio.
8 de 1º a 7 de outubro de 2015 brasil

Economistas querem emprego e


renda no centro da política econômica FPA
POR UM BRASIL JUSTO na. Stedile vê a opção do governo com a
política de austeridade como um “aceno
E DEMOCRÁTICO à burguesia” para tentar se proteger. Mas
Documento defende que ele também considera que quanto mais o
governo oferece, pior fica e vê como irre-
combate às desigualdades versível a necessidade de mudar a políti-
ca econômica.
volte à agenda do governo, Um dos argumentos centrais que o do-
cumento pretende desmontar é o de que
com mudanças nos juros, a culpa da recessão atual é do aumento
controle da inflação, “exagerado” de salários, ou da nova ma-
triz econômica do país, com inclusão no
atuação do BC e em um consumo e expansão da classe média,
graças às escolhas dos dois governos Lu-
debate que não seja la e ao primeiro mandato de Dilma Rous-
refém do “terrorismo de seff. “Não aceitamos esse argumento”,
afirma o economista da Unicamp Pedro
mercado” Rossi, para quem o país viveu um ciclo
virtuoso a partir de 2003, com distribui-
ção de renda e crédito e também aumen-
to de produtividade na indústria.
Helder Lima “Durante esse período, principalmen-
de São Paulo (SP) te entre 2005 e 2011, houve um aumento
da Rede Brasil Atual do mercado consumidor e da capacidade
de oferta; o investimento também cres-
CONTRA A “DITADURA do pensamento ceu sistematicamente, não foi um cresci-
único” de que somente o ajuste fiscal ca- mentos artificial”, defendeu, ressaltando
pitaneado pelo ministro da Fazenda, Jo- que a taxa de investimento no país che-
aquim Levy, pode apontar saídas para a gou a 12% em 2008. Mas ele também cri-
recessão do país, foi lançado dia 28 de se- Para o economista Marcio Pochmann, documento busca evitar a lógica de curto prazo dos mercados especulativos tica que faltou sintonia entre a economia
tembro, em São Paulo, o documento Por e o crédito, e que o padrão de consumo
um Brasil Justo e Democrático, que se Divisão “Essa iniciativa recoloca o debate em no país foi modernizado sem mudanças
propõe a ampliar o debate sobre os ru- O documento é dividido em duas par- na infraestrutura da economia.
mos do país, e apresenta alternativas de tes, uma focada em “Alternativas para o seus devidos termos, precisamos de Para Rossi, um dos erros fundamentais
política econômica para a retomada do Brasil voltar a crescer” e outra em “Subsí- do primeiro mandato de Dilma Rousseff
crescimento. dios para um projeto de desenvolvimen-
uma nova política econômica para foi a ausência de contrapartida dos em-
Os quase 200 profissionais que assi- to nacional”. O documento reúne insti- sair da crise. E só há saída se houver presários em relação às desonerações
nam o documento, entre economistas, tuições que historicamente têm desem- adotadas pelo governo, como medidas
advogados, urbanistas e outros profis- penhado papel ativo na defesa dos traba- debate e mobilização em torno de anticíclicas para reverter um quadro que
sionais formadores de opinião ligados lhadores, como a Fundação Perseu Abra- já apresentava sinais de desaceleração.
ao pensamento progressista, têm como mo, a Plataforma Política e Social, o Bra- alternativas concretas” “Os empresários engordaram suas mar-
consenso o diagnóstico que o ajuste fiscal sil Debate, o Centro Internacional Celso gens de lucro, mas não deram retorno.
prejudica a atividade econômica em vez Furtado de Políticas para o Desenvolvi- Seria mais importante ter um plano de
de tirar o país da recessão. mento e a Rede Desenvolvimentista. gastos do que desonerações”, afirmou.
“O documento se presta a evitar o ter- Pochmann também criticou que “o discussão sobre a grave crise que o país Segundo Rossi, o discurso da crise que
rorismo da lógica de curto prazo dos ajuste fiscal reduz a atividade econô- está vivendo. se tornou dominante buscou fazer um
mercados especulativos”, afirmou o pre- mica porque cortam-se gastos públi- “A burguesia apresentou como saída a clima de terrorismo fiscal já em 2014,
sidente da Fundação Perseu Abramo, cos, aumentam-se os impostos, reduz a volta do neoliberalismo e o governo está quando ainda não havia nada que apon-
o economista Marcio Pochmann. “Es- renda na economia e, portanto, a eco- equivocado”, disse ao destacar que a re- tasse para uma crise grave. Sobre o re-
se pensamento nos faz pensar pequeno. nomia cresce menos, o Estado arreca- cessão tem sido vista como um problema sultado primário negativo no ano passa-
Precisamos ter clareza de que ao apontar da menos, e não se consegue reduzir as de orçamento, o que tem como resultado do (-0,6%), depois de anos de resultados
para a lua não podemos ficar focados no despesas no mesmo nível. Então, é um ainda mais crise. “Essa iniciativa recolo- positivos, ele afirma que, apesar de ne-
próprio dedo.” problema permanente”. ca o debate em seus devidos termos, pre- gativo, esse desempenho foi melhor do
Entre as alternativas defendidas pelo O economista lembrou que, em janei- cisamos de uma nova política econômica que em outros países. “Nossa dívida caiu
documento, destacam-se mudanças pa- ro, o ministro Levy havia afirmado que para sair da crise. E só há saída se houver e hoje não estamos com o FMI na por-
ra colocar a geração de emprego e ren- haveria uma recessão de apenas três me- debate e mobilização em torno de alter- ta”, disse.
da no centro da política econômica do ses. “Agora, se fala em uma recessão que nativas concretas”. Com a redução atual nos ciclos de con-
governo, para que o país volte a comba- poderá durar até 2017, e o país não su- Para Stedile, a opção de política neoli- sumo e de crédito, as variáveis de de-
ter as graves desigualdades sociais com porta essa magnitude.” beral adotada pelo governo pode ter sur- manda estão sendo fragilizadas, diz o
vistas à distribuição de riqueza. Em ter- O líder do Movimento dos Trabalha- gido de um “susto” com a crise política economista. “O ajuste fiscal está pioran-
mos práticos, o documento defende que dores Rurais Sem Terra (MST), João que se instalou a partir das eleições do do as contas fiscais, estamos piores ho-
o papel do Banco Central seja amplia- Pedro Stedile, afirmou à reportagem da ano passado e do agravamento da crise je do que em dezembro de 2014”, afirma.
do – hoje a atuação monetarista do ban- RBA que a iniciativa do documento é no cenário internacional, que desta vez “Irresponsabilidade fiscal é jogar o país
co está focada em combater a inflação mais do que necessária para ampliar a afeta especialmente Brasil, Rússia e Chi- numa recessão.”
com elevação de juros, quando na ver-
dade deveria olhar para a proteção so-
cial; e que o parâmetro da inflação dei-
xe de ser o IPCA, “um índice ruim para O PETRÓLEO TEM QUE SER NOSSO

FUP questiona no Senado se


a inflação, porque inclui produtos sobre
os quais o governo não tem influência”,
critica o professor de economia da Uni-
camp Guilherme Mello.

é patriótico entregar pré-sal


O documento defende ainda maior
controle do governo sobre a política
cambial, “pois hoje a regulamentação é
frouxa e permite a especulação com a
nossa moeda”, afirma Mello, e também
uma visão do papel de longo prazo dos
bancos públicos, voltada ao desenvolvi- AUDIÊNCIA PÚBLICA presas multinacionais?”, retrucou o co- bilhões de dólares na General Motor e
mento, “já que hoje o que estamos ven- ordenador da FUP, criticando a argu- investiu agora 10 bilhões de dólares nas
do é um ataque do mercado aos bancos Coordenador da FUP, José mentação de que mudar a lei trará no- empresas exportados de gás dos Esta-
públicos”. Esse próprio mercado, segun- vos investimentos para o país. “O se- dos Unidos”, ressaltou.
do o economista, não teria condições de
Maria Rangel, disse que tor do petróleo no Brasil foi aberto em O coordenador da FUP fez um chama-
financiar o desenvolvimento se os ban- neste momento Senado 1997 e qual foi o investimento que as do ao Congresso Nacional, ao governo e
cos públicos acabassem. multinacionais fizeram no nosso país à sociedade para que defendam a Petro-
e Câmara deveriam nesses quase vinte anos?”, questionou bras e o pré-sal. “O que temos que fazer é
José Maria. buscar financiar os investimentos da Pe-
“Os empresários engordaram suas estar gastando energia, trobras. Não podemos tratar o pré-sal co-
margens de lucro, mas não deram buscando resolver os mo se fosse um ônus para a companhia.
“O setor do petróleo no Quantas empresas mundo afora gosta-
retorno. Seria mais importante ter um problemas da Petrobras riam de ter as reservas do pré-sal, cer-
Brasil foi aberto em 1997 e ca de 300 bilhões de barris de petróleo?
plano de gastos do que desonerações” qual foi o investimento que Portanto, a Petrobras, o governo e a so-
ciedade brasileira não podem abrir mão
de São Paulo (SP)
as multinacionais fizeram disso”, afirmou.
O debate também contou com a pre-
O documento sugere também que o go- PARLAMENTARES e a Federação Úni- no nosso país nesses quase sença do diretor da CUT Vitor Carvalho,
verno flexibilize o modelo do tripé ma- ca dos Petroleiros (FUP) confrontaram- além de representantes da NCST, da Ae-
croeconômico, com base no controle da -se, dia 28 de setembro, na audiência vinte anos?” pet e da Sociedade de Economia do Rio
inflação, câmbio flutuante e metas de su- pública promovida pela Comissão de Grande do Sul (Socecon).
perávit primário; e também mudanças Direitos Humanos e Legislação Partici- O senador Valdir Raupp (PMDB-RO)
na estrutura tributária para promover pativa, a pedido do senador Paulo Paim disse que o projeto de lei de Serra será
justiça fiscal em um país em que as elites (PT/RS), para debater a participação da “Como operadora única e sendo uma bom para o país. Disse que aconjuntura
não pagam imposto e os pobres são so- sociedade na gestão do pré-sal e os im- empresa do Estado, a Petrobras é que econômica atual inviabiliza qualquer in-
brecarregados por impostos embutidos pactos do PLS 131/2015, de autoria de vai ditar o ritmo de produção do pré-sal vestida na área, pois o custo da extração
no consumo. José Serra (PSDB-SP). O projeto retira para evitar a produção predatória”, des- pode ficar acima da cotação do petróleo
Ao ser indagado por jornalistas se o da Petrobras a exclusividade na opera- tacou o coordenador da FUP, esclare- no mercado internacional. Lembrou que
grupo defende a saída do ministro Joa- ção dessas reservas e a participação mí- cendo que a participação mínima, pre- em 2010, quando a lei foi votada, o pre-
quim Levy, Pochmann disse: “Não es- nima em 30% dos campos. vista na lei de partilha e contra a qual ço do barril de petróleo era de 135 dóla-
tamos aqui para defender esta ou aque- O coordenador da FUP, José Maria José Serra atua, é uma prática adotada res e hoje é de 48 dólares.
la pessoa. A nossa proposição é de con- Rangel, disse que a Lei nº 12.351/2010, também no regime de concessão, onde a “Essa lei foi votada e aprovada num
teúdo sobre os rumos do Brasil. Nós já que estabelece o regime de partilha pa- orientação da ANP é de que a operadora momento em que o Brasil atravessava
tivemos experiência no período recen- ra o pré-sal, foi amplamente discutida tenha pelo menos 30% do campo. um céu de brigadeiro. A Petrobras es-
te com as mesmas medidas aqui defen- no Congresso Nacional, durante 15 me- José Maria provocou os parlamenta- tava com as finanças em dia e era jus-
didas e que deram resultados fundamen- ses, antes de ser aprovada e que, portan- res: “Neste momento, o Senado e a Câ- to que se lhe atribuísse tal encargo. Mas
tais: o país conseguiu o grau de investi- to, não se pode querer “mudar algo que mara deveriam estar gastando energia, hoje a situação mudou e mudou radi-
mento (durante o governo Lula) fazendo é estruturante para o nosso país por um buscando resolver os problemas da Pe- calmente para pior. Os fatos divulgados
outro tipo de política”, afirmou em refe- problema conjuntural pelo qual a Petro- trobras”. Afirmou ainda que o governo pelas operações e investigações, os pre-
rência a “medidas voltadas para o cresci- bras está passando”. tem que assumir sua responsabilidade juízos causados à Petrobras nos últimos
mento e não para o aprofundamento da José Maria indagou o senador José como acionista majoritário da Petrobras tempos dificultam a plena aplicação do
recessão, com receituário neoliberal, que Serra, que tem alegado que o seu pro- e financiar os projetos da empresa. “Is- dispositivo previsto na Lei 12.351 de
deseja corte de empregos e de renda para jeto é patriótico. “É patriótico a gente so não é novidade. Na crise do capital, 2010”, argumentou Raupp. (RBA, com
combater a inflação”. entregar nossas reservas para as em- em 2008, o governo Obama investiu 30 FUP e Agência Senado)
cultura de 1º a 7 de outubro de 2015 9

“O pior de tudo é não querer saber” Arquivo Público do Estado de São Paulo
ENTREVISTA na Penitenciária de Linhares. Era im-
portante? Para compor a minha história,
Com reportagens era. Eu queria ver onde o Milton pisou,
contundentes tentar entender um pouco o que ele sen-
tiu naquela clausura, como era aquele lu-
transformadas em livros, gar, qual era o seu cheiro. Claro que is-
so é importante. Estamos perdendo um
jornalista Daniela Arbex pouco essa prática pela pressa dos fecha-
mentos e também pelo desinteresse, por
dá um “pito” em parte essa ideia de fazer jornalismo de gabine-
da sociedade brasileira te. Isso não existe. Quem quer ser jorna-
lista de gabinete nem seja!
que lida com episódios
A cena em que você descreve o
dramáticos de sua história encontro com a família do Milton
com cabeça de avestruz em Porto Alegre é forte (na roda
de chimarrão, Daniela perguntou
aos familiares como eles gostariam
que Milton fosse lembrado. O
Paulo Hebmüller  irmão Edelson respondeu: “Como
de São Paulo (SP) está sendo agora”).
da Rede Brasil Atual Milton Soares (destacado) e outros guerrilheiros do Caparaó após serem presos Exatamente. Em 2002, entrevistei a
família por telefone, porque o jornal não
COVA 312 “é uma Comissão da Verda- podia me mandar e eu não tinha dinhei-

Henrique Viard/Divulgação
de”, disse a militante Amelinha Teles du- ro para ir ao Rio Grande do Sul. Agora
rante debate de lançamento do livro da foi totalmente diferente, e por isso dedi-
jornalista Daniela Arbex em São Paulo. quei um capítulo àquele encontro. Ali foi
Para Amelinha, que foi presa e tortura- possível ver e abraçar. A Gessi (irmã de
da na ditadura e assessorou a Comissão Milton) estava curiosa em relação a mim
da Verdade Rubens Paiva, da Assembleia e eu em relação a ela, e ela disse que eu
Legislativa paulista, se houvesse uma estava trazendo o Milton comigo. Essas
Daniela trabalhando em cada um dos ca- coisas só acontecem estando junto, ven-
sos de mortos e desaparecidos deixados do e conhecendo as pessoas, e compõem
pelo regime todas essas histórias esta- a história que você vai contar.
riam esclarecidas.
O livro recupera a trajetória de Milton Você menciona a sempre
Soares de Castro, morto em 1967, aos presente argumentação de que
26 anos. Um dos militantes capturados determinados temas já são “velhos
na desastrada tentativa de implantação e batidos”, que ninguém quer mais
da guerrilha do Caparaó, na divisa en- Cova no cemitério de Juiz de Fora onde estava enterrado Milton Soares saber deles e que é preciso trazer
tre Minas Gerais e Espírito Santo, o gaú- um “fato novo”. Você trouxe,
cho foi o único preso político encontra- Só tive acesso 12 anos depois do início mandava você ir “buscar a lua” e, mas o livro conta também uma
do morto na Penitenciária de Linhares, da investigação. As fotos fizeram toda a quando conseguia, dizia que história “velha” pouco conhecida
em Juiz de Fora (MG). O hoje governa- diferença porque eram as provas funda- “você pode ir além”. Estão – Linhares foi uma prisão política
dor de Minas Gerais, Fernando Pimen- mentais. Eu tinha o local e a documen- faltando esse rigor e essa busca importantíssima e ainda funciona.
tel (PT), e o atual prefeito de Belo Hori- tação do sepultamento, mas não tinha o no jornalismo praticado Esse conceito é um erro. Linhares tem
zonte, Márcio Lacerda (PSB), estiveram cadáver. As fotos do cadáver me permi- atualmente? Temos apuração de uma história paralela incrível e apagada.
entre os encarcerados em Linhares du- tiram provar não só que o Milton real- menos e opinião demais? Existe no nosso imaginário a ideia de que
rante a ditadura. mente foi morto em dependências do Acho que sim. No congresso da Abraji, tudo já foi falado sobre a ditadura. Não
A versão oficial da morte de Milton Estado, como também que as lesões que assisti a uma palestra da Fabiana Moraes foi – ou não teríamos uma lista de 434
apontava suicídio por enforcamento, e ele trazia eram incompatíveis com suicí- (repórter especial do Jornal do Commer- mortos e desaparecidos políticos no re-
o Exército nunca informou à família on- dio. Mais do que isso: um perito da épo- cio, de Recife, e autora do livro O nasci- latório da CNV. Só teremos tudo falado
de estava o corpo. Numa investigação em ca volta atrás. mento de Joicy – leia reportagem na edi- e esclarecido quando todos os corpos ti-
2002 para o jornal Tribuna de Minas, de Acho que é uma confissão histórica ção 107). Ela faz um trabalho maravilho- verem sido localizados e todas as histó-
Juiz de Fora, Daniela localizou a sepultu- que precisa ser levada em conta: qua- so, com reportagens incríveis pela ousa- rias resgatadas. Estamos longe de conhe-
ra do jovem – a do título do livro –, o que se 50 anos depois a pessoa diz que estão dia e pelos temas super-controversos e cer a ditadura. A gente não sabe de nada.
mudou os registros históricos sobre o ca- caracterizadas a asfixia e o enforcamen- delicados, como transexualidade, e con- Acabei de fazer uma matéria sobre o re-
so em publicações como Direito à Me- to, mas não o suicídio. Ele só não dis- segue um grande espaço. Ai alguém fa- latório da Comissão Municipal da Verda-
mória e à Verdade, da Comissão Espe- se: “O Milton foi assassinado”, porque aí lou: “Ah, mas o jornal dá esse espaço pa- de em Juiz de Fora. Todo mundo fala que
cial sobre Mortos e Desaparecidos Polí- também era demais – e nem precisava. ra ela”. Eu respondi: “Não, isso é fruto do conhece tudo sobre a ditadura em Juiz de
ticos da Secretaria de Direitos Humanos Creio que foi uma grande descoberta fa- esforço individual da repórter de brigar Fora porque o golpe partiu de lá e o gene-
da Presidência da República. Doze anos zer uma pessoa daquela época pratica- por esse espaço, de ter sensibilidade, de ral Mourão (Olympio Mourão Filho, co-
depois, a jornalista retomou a investiga- mente confessar. conseguir convencer o entrevistado a se mandante da 4ª Região Militar e 4ª Divi-
ção e teve acesso em Brasília ao inquéri- deixar fotografar em determinadas situ- são de Infantaria) saiu de lá com as tro-
to sobre a morte de Milton, desmontan- Como você recebe as afirmações ações”. Eu sei porque vivo muito isso no pas. Mas é só isso que a gente sabe!
do finalmente a tese de suicídio. da Amelinha Teles, dizendo que jornal. Consegue-se o espaço porque nes- Se você perguntar a alguém: mas en-
Daniela Arbex, 42 anos, é autora tam- o seu livro “é uma Comissão da se esforço pessoal você traz uma infor- tão, o que mais você sabe? “Bom, o gene-
bém de Holocausto Brasileiro (assim co- Verdade” e que com uma Daniela mação que o jornal não tem como dizer ral Mourão partiu de lá com as tropas...”
mo Cova 312, da Geração Editorial), um para cada caso todas as histórias que não vai publicar. As dificuldades são E é só. As pessoas não têm ideia do que
relato das décadas de abandono e vio- estariam esclarecidas? grandes em todas as redações, principal- é ser perseguido, perder familiares e em-
lência a que foram submetidas milha- São superelogios, claro, mas acho que mente porque o jornalismo diário é mas- prego, viver na clandestinidade, mudar
res de pessoas no manicômio Colônia, ela exagerou. O livro levanta a versão sacrante e sempre falta tempo. Mas tam- de carreira e nunca mais resgatar essas
na cidade mineira de Barbacena – esti- mais próxima da verdade, e não posso bém faltam interesse e disposição. coisas. É um grande equívoco achar que
ma-se que cerca de 60 mil morreram ali. me furtar de dizer que mudou um capí- conhecemos essa história. O Cova 312
Lançado em 2013, Holocausto já vendeu tulo da história – de uma pessoa, mas já está me mostrando que as pessoas não só
mais de 100 mil exemplares e será trans- é importante. Não conseguimos avançar “Há em nosso imaginário a ideia de que não sabem como resistem a saber. E isso
formado em documentário da HBO. Em mais porque há famílias altamente mo- é uma pena, porque quem vence a resis-
São Paulo, onde participou, em julho, do bilizadas e outras completamente des- tudo já foi falado sobre a ditadura. Não tência de conhecer esse período se apai-
10º Congresso Internacional da Associa- mobilizadas. Precisaríamos ter uma vi- xona e conhece um Brasil e personagens
ção Brasileira de Jornalismo Investigati- gilância e uma busca permanente em re-
foi. Só teremos tudo esclarecido quando que a história oficial não contemplou. O
vo (Abraji), a repórter concedeu esta en- lação ao tema. Mas o Brasil não tem es- todos os corpos tiverem sido localizados pior de tudo é não querer saber.
trevista. Fala sobre seus livros, o futuro sa cultura de investigar, de buscar e de
do trabalho dos jornalistas e a resistência questionar, como na Argentina ou no e todas as histórias, resgatadas. Estamos Como você avalia a crise do
de boa parte da população em conhecer Chile. Simplesmente são aceitas as ver- jornalismo, ou do modelo de
o que de fato aconteceu na ditadura. “O sões mais esdrúxulas. longe de conhecer a ditadura” negócios da imprensa?
pior de tudo é não querer saber.” Não sei onde essa crise vai dar e não sei
As famílias não são um bloco se daqui a 15 anos vamos ter jornal im-
Sua investigação mudou a história monolítico, há posturas presso como hoje. Tenho certeza absolu-
no caso do Milton e é citada em diferentes entre elas, não é? E parece que os mais novos ta, e saí do congresso da Abraji com ela,
publicações oficiais sobre os É verdade, existe muita mágoa e muito querem resolver tudo pela de que temos que zelar pelo conteúdo,
mortos e desaparecidos. Você sofrimento em relação à ditadura. A pró- internet, ou, quem sabe, por em que plataforma for. A questão não é
espera mudanças com o Cova 312, pria família do Milton não quis a exuma- telefone... discutir se vai morrer o jornal impresso
que praticamente comprova o ção, o que para mim é um erro. Ao mes- Pois é. O pessoal diz que quer me en- ou coisa parecida. A questão é discutir se
assassinato? mo tempo, entendo o sofrimento de não trevistar, aí dou meu telefone e eles fa- estamos fazendo jornalismo de qualida-
Daniela Arbex – Talvez não. Creio que querer passar por tudo aquilo de novo. lam: “Ah, vou te mandar as perguntas de, onde quer que estejamos. Temos de
pode ser corrigida a versão final do rela- O Milton foi enterrado numa cova rasa por e-mail”. Sem olho no olho, sem vir achar um caminho, porque o jornalis-
tório da Comissão Nacional da Verdade que a cada cinco anos era revolvida para me encontrar, como você fez! Fico im- mo não vai morrer – a democracia preci-
(CNV), que dá o Milton como desapare- receber novos corpos. Na cova dele, até pressionada com essa ideia do esfor- sa dele. O foco da nossa preocupação tem
cido. É um equívoco histórico que preci- 2002, foram enterradas mais sete pesso- ço mínimo e digo que não vou respon- de ser o risco de deixarmos de fazer jor-
sa ser corrigido, porque o corpo está lá. as. A informação relevante veio depois, der por escrito. Acho absurdo. O meni- nalismo de qualidade, porque aí a socie-
Você tem a imagem da necropsia, o ca- com as fotos da necropsia e com a confis- no diz: “Eu sou seu fã!” E eu respondo: dade estará lascada.
dáver, o local onde foi enterrado e, por- são de um envolvido. A exumação nesse “Então você não quer olhar no meu olho,
tanto, tem o corpo. Muito mais do que caso não fez falta. vir me conhecer? Isso é o mínimo para Seu livro anterior, Holocausto
corrigir versões, o livro faz justiça à me- descrever um entrevistado”. Fico preo- Brasileiro, teve vários
mória do Milton. Além disso, pode mos- Como se pode avançar em cupada, porque sem gastar sola de sapa- desdobramentos: você viajou o
trar ao Brasil que é possível continuar relação à questão dos mortos e to não se faz reportagem. A internet é in- Brasil inteiro falando dele, houve
encontrando nossos mortos e desapare- desaparecidos? crível, ajuda a pular etapas e a localizar o lançamento em Portugal e
cidos políticos. Essa foi uma investiga- Acho que o Brasil esperava mais do coisas, mas o corpo a corpo é insubstituí- agora está sendo produzido um
ção individual, relativamente simples, e trabalho da CNV. Existia uma expecta- vel. Por exemplo: eu briguei para entrar documentário a respeito. Como
que consegui fazer sem grandes recur- tiva muito grande de que se resolvessem Divulgação anda esse processo?
sos. Creio que há vários Miltons por aí mais casos, o que não aconteceu. Na ver- Foram 40 dias de filmagem de um do-
a serem localizados. O Cova mostra o dade, isso não desmerece o esforço im- cumentário para a HBO, que deve ir ao
tamanho do abismo entre a nossa his- portante e sério feito pela comissão, mas ar no ano que vem. Vai ser um trabalho
tória e a população brasileira. É muito também mostra que os arquivos do país surpreendente até para o leitor do Ho-
grave rejeitar o passado e deixar de que- continuam fechados, porque nem a CNV locausto porque há personagens novos
rer saber o que aconteceu. Somos talvez teve acesso a tudo. Para ter acesso ao in- e histórias que eu conheci depois do li-
o único país da América do Sul que te- quérito do Milton, tive de pedir autori- vro. O que me orgulha muito é que o Ho-
ve uma ditadura em que não há empe- zação ao presidente do Superior Tribu- locausto conseguiu colocar no centro do
nho da população em continuar desco- nal Militar (STM) e justificar meu pe- debate público a questão da saúde men-
brindo seus mortos, e no qual há uma dido. Fiquei à mercê de uma autoriza- tal, que estava muito periférica. O livro
resistência a querer saber. Como pode- ção que poderia ser negada. Como isso interferiu inclusive na formação dos no-
mos não nos interessar pela nossa his- é possível? Tem de haver um esforço co- vos psicólogos e psiquiatras, e mesmo de
tória recente? letivo para abrir esses arquivos. Se não quem já está no mercado de trabalho.
conseguimos acessá-los, como vamos Várias faculdades, de várias especialida-
Ter acesso ao inquérito e resolver os casos? des, adotaram o livro, e isso é maravilho-
às fotos da morte do Milton so. O maior presente que o livro pôde me
fez toda a diferença em sua Você conta que a editora-executiva trazer é ver essa história sendo lida e sen-
investigação, não é? do jornal, Denise Gonçalves, A jornalista Daniela Arbex do útil. (Revista do Brasil)
10 de 1º a 7 de outubro de 2015 brasil 11

Caminhões-pipa no Ceará entregam água imprópria à população Fotos: Marilia Camelo

ESPECIAL Moradores

Quando chega o tratamento?


reclamam da água
distribuída na operação
de combate emergencial
à seca que se arrasta há aporte de recursos do Banco Mundial,
da região do Sertão Central do Ceará que já financia outros projetos de com-
quatro anos; crianças e bate à seca no Estado, para aquisição e
idosos têm adoecido por Com a perspectiva de chuvas abaixo distribuição de filtros biológicos às fa-
da média para 2016, o número de mu- mílias das regiões onde os índices de in-
causa da contaminação nicípios atendidos por caminhões-pipa fecção por doenças de veiculação hídri-
deve aumentar ainda mais. O projeto do ca são maiores.
governo do Estado – que nunca saiu do O coronel do Exército, Claudemir
papel – é que sejam adquiridas 29 Esta- Rangel, responsável pela Operação Car-
Thays Lavor ções de Tratamento Móveis (ETAs) pa- ro-Pipa no Ceará, admite que as pers-
da região do Sertão Central do Ceará ra finalmente tratar a água distribuída pectivas do programa não são muito
à população. O Plano Estadual de Con- positivas. Segundo ele, atualmente são
“AS PESSOAS se arretiravam de um lu- vivência com a Seca, finalizado em fe- utilizados 138 mananciais superficiais
gar pra outro com as famílias, não ti- vereiro deste ano, prevê medidas emer- para a coleta de água. “Entretanto, de-
nham recurso, chegavam nas fazen- genciais, estruturantes e complementa- vido à estiagem prolongada, os manan-
das e pediam dinheiro, comida. Mui- res para cinco eixos de atuação: segu- ciais estão em colapso. Cada dia os pi-
tos morriam, principalmente crianças, rança hídrica, segurança alimentar, be- peiros têm ido captar água em lugares
desnutridas e com diarreia. Seca mes- nefícios sociais, sustentabilidade eco- mais distantes, a uma distância de 100
mo, quando não chove, não tem nada”, nômica e conhecimento e inovação. km das localidades abastecidas. Isso ge-
conta o agricultor aposentado Manoel Dentro das ações previstas, a Opera- ra um custo três vezes maior.”
Dias Tavares, cujos 72 anos são marca- ção Carro-Pipa deve receber um inves- Rangel explica que o Exército não tem
dos pelos ciclos de seca no sertão do Ce- timento de R$ 43,8 milhões, dos quais como intervir no tratamento e monito-
ará. A mais grave, lembra-se, foi a estia- 88% serão para a contratação de 200 ramento da água – essas são responsa-
gem de 1978, com cinco anos de dura- carros em 82 municípios. O restante do bilidade do Estado e dos municípios.
ção. A atual é a oitava seca testemunha- dinheiro, R$ 5,2 milhões, seria destina- “Quanto mais baixo o nível dos reserva-
da por seu Manoel, morador de Quixa- do à aquisição de 29 ETAs Móveis. Em- tórios, pior a qualidade da água e a con-
dá, no sertão cearense. bora a notícia seja animadora, o recur- centração de bactérias existentes. Por
Há quatro anos, 5,3 milhões de habi- so ainda não chegou, segundo o Portal conta da estiagem, até essa água está di-
tantes vivem em 176 cidades que estão, da Transparência e o Comitê Integrado fícil de encontrar.”
oficialmente, em situação de emergên- de Combate à Seca no Ceará. Além dis- A Portaria 2.914, de dezembro 2011,
cia – 96% dos municípios do Estado. so, o dinheiro para tratamento repre- do Ministério da Saúde diz que toda
Ali, seja por meio de projetos como as senta apenas 1,3% do total a ser investi- água destinada ao consumo humano,
cisternas de placa ou de plástico, perfu- do em segurança hídrica no Ceará, que distribuída coletivamente por meio de
ração de poços, abastecimento por car- Distribuição de água contaminada tem causado problemas de saúde na população é R$ 385,9 milhões. sistema ou solução alternativa coleti-
ros-pipa, a população rural tem conse- O que já está garantido, segundo o Co- Mãe e crianças em São João dos Pompeu, em Quixadá va de abastecimento deve ser objeto de
guido sobreviver. Mas nem sempre da dos para a retirada da água pelos pipei- Das fases de tratamento pelas quais gem, já fiquei doente, com dor de barri- mitê e o Ministério da Integração Na- controle da vigilância da qualidade.
maneira adequada. ros, e ao Exército contratá-los e inspe- ga e de cabeça, fiquei ruim”, afirma Al- cional, são R$ 22 milhões para a con- em novembro de 2013 pelo Ministério tões”, explica a advogada Viviane Peixo- Com relação à qualidade, a portaria é
“Antigamente ninguém falava em cionar os tanques. deveria passar, somente a desinfecção é mir. Hoje em dia, o reflexo da escassez é tratação de mais pipeiros. da Integração Nacional. Dedé Teixei- to, responsável pelo Projeto São José, li- clara: a água deve ser segura, isenta de
água, hoje toda água é poluída. Naque- A operação também tem gestão esta- feita, com a aplicação de pastilhas de cloro uma água cada vez mais escura. ra, presidente do Comitê Integrado de gado à Secretaria Estadual do Desenvol- microrganismos e de substâncias quími-
le tempo, há mais de 30 anos, a gente ia dual, que é liderada pela Defesa Civil. O Patu ainda é um dos reservatórios Combate à Seca no Ceará, conta que a vimento Agrário. Ela mesma admite que cas que possam constituir potencial de
trabalhar na mata, pegava uma cabaça e Esta capta água das estações de trata- diretamente nos tanques de 7 mil litros indicados para a captação de água pa- “Quanto mais baixo o nível dos intenção é adquirir sete ou oito equipa- a transação ainda se encontra em estágio perigo para a saúde humana – além de
enchia de água do poço, bebia e não da- mento da Companhia de Água e Esgoto ra os caminhões-pipa. Somente em uma mentos. “embrionário”. possuir sabor, odor e aparência agradá-
va nada. Hoje não se pode mais fazer is- do Ceará (Cagece) e do Serviço Autôno- manhã, a reportagem contabilizou 32 reservatórios, pior a qualidade da Mas para isso é preciso resolver um “A partir do momento que eles [Odis veis. Enquanto as soluções não chegam,
so, seja em poço ou em açude mesmo. mo de Água e Esgoto (Saae). carros no local, com destino aos municí- entrave burocrático: a empresa israelen- Filtering] realizarem contrato com algu- Joana d’Arc, a moradora da localidade
Agora a água é poluída, faz mal”, recla- Puxada por um motor acoplado aos moradores – que a apelidaram de “qui- pios de Pedra Branca, Senador Pompeu,
água e a concentração de bactérias se que detém a expertise para fabricação ma empresa aqui e que tenha know-how de São João dos Pompeu, continuará a
ma o aposentado, da varanda da sede carros-pipa, a água é captada em seu boa”, ou água sanitária – quanto pelos Milhã, Irapuã Pinheiro e outras cidades. existentes. Por conta da estiagem, até das ETAs almejadas, Odis Filtering, não para fazer isso, daí a gente vai para as tra- tentar driblar a chegada de doenças, se-
da fazenda onde é caseiro há dez anos. estado bruto e levada à população pe- próprios pipeiros. Após um levantamento feito em par- possui representante no Brasil. “Fizemos tativas da contratação”, diz a advogada. ja fervendo a água ou gastando o pouco
los pipeiros da Operação Carro-Pipa, “De manhã a gente chega aqui no açu- ceria com a Associação Contas Aber- essa água está difícil de encontrar” uma análise da empresa e vimos que ela Indagada sobre qual o tempo que du- que tem para comprar a lata de água. Os
do governo federal. Das fases de trata- de do Patu e é tudo verde, é uma capa tas, a reportagem da Pública identifi- tem know-how. Só ela tem esta tecno- ra esse processo, ela informou que é im- filhos, com ela, vão atravessando a estia-
“Antigamente ninguém mento pelas quais deveria passar, so- de lodo grossa, e é assim em vários re- cou que, desde o começo de 2014 até o logia de transformar qualquer água em previsível. “É outra língua, eles tem que gem, que para eles, mais do que falta de
mente a desinfecção é feita, com a apli- servatórios. São poucos os que estão dia 15 de julho deste ano, foram gastos condições próprias para o consumo. Os mandar o representante aqui, talvez es- água, significa água turva, doença e mi-
falava em água, hoje toda cação de pastilhas de cloro diretamen- bons”, afirma o pipeiro Manoel Almir R$ 269,1 milhões com os carros-pipa. A Efetivamente, o que se tem em cai- equipamentos dela são utilizados tam- tes processos também tenham que ser séria. (TL) (Agência Pública)
água é poluída. Naquele te nos tanques de 7 mil litros. Elas va- Pinheiro Filho, em Senador Pompeu, maior parte desse montante, provenien- xa para a compra dessas ETAs Móveis bém pela ONU. Entretanto, mesmo que feitos no idioma deles, e isso tudo de-
riam de uma a quatro, dependendo do enquanto mostra para a reportagem on- te dos Ministérios da Integração Nacio- é pouco mais de R$ 1,1 milhão, recur- a lei permita que a gente faça uma dis- mora muito tempo, ou seja, não temos Essa matéria é resultado do
tempo, há mais de 30 anos, estado do manancial: quanto mais se- de era o nível do reservatório do Patu, nal, Cidades e Defesa, foi usada para pa- so captado ainda em 2013 pelo Progra- pensa de licitação ou inexigibilidade de como prever.” concurso de microbolsas para
co, mais pastilhas. A desinfecção é fei- pelo menos umas quatro marcas acima gamento de “pipeiros”, diárias de pes- ma Água para Todos. Porém, o dinhei- contratação, a empresa precisa ter uma reportagens investigativas sobre
a gente ia trabalhar na mata, ta pelos próprios motoristas com o clo- da atual, quando atinge apenas 10% da soal militar, contas de telefone e alugu- ro está parado. O projeto para aquisição representação no Brasil. Sem isso, difi- Outras alternativas Crianças e Água promovido pelo
pegava uma cabaça e enchia ro que recebem do Exército. Entretan- sua capacidade. “Se o Exército diz que éis de carro. Não consta nenhuma ver- dessas estações foi elaborado pela As- culta até o ingresso dos documentos nos Ao mesmo tempo que busca solução projeto Prioridade Absoluta do
to, a qualidade do produto levado em é pra gente retirar água daqui, a gente ba para o tratamento ou monitoramento sociação do Prefeitos do Estado do Cea- sistemas corporativos, a questão da ma- para o impasse, outras alternativas são Instituto Alana em parceria com a
de água do poço, bebia e não cada tanque é questionada tanto pelos faz. Mas beber dela eu não tenho cora- da qualidade da água. (Agência Pública) rá (Aprece), e os recursos empenhados nutenção do produto, entre outras ques- cogitadas pelo comitê. Uma delas é o Agência Pública.

dava nada”

Olhos verdes, mãos grossas e pele cas-


Para as crianças, dores de barriga, diarreia e prejuízo no desenvolvimento Testamos a água do maior
reservatório do Ceará
tigada do sol, ele se lembra com tristeza
das secas que ultrapassou. Hoje, debai-
xo dos juazeiros e ao lado dos dois ca-
chorros, da esposa e de uma das filhas, pa. Todos têm o hábito de ferver e coar A pesquisadora do Laboratório de Ge- Castelo Branco acredita que ele não re- parasita que provoca infecções intesti-
Manoel observa os dias, ele tenta dri- da região do Sertão Central do Ceará a água captada da chuva, já que não be- ologia Marinha e Aplicada da UFC, Dio- presenta a realidade. “É claro que exis- nais e representa alto risco para crianças,
blar o quarto ano de estiagem. “A gente bem a dos caminhões. “Meu pai ferve e lande Ferreira Gomes, atenta para riscos te a subnotificação da doença, pois exis- idosos e pessoas com imunidade baixa. A pedido da Pública, a Nenhuma das coletas passou nos tes-
vai levando como pode, planta um fei- Ao percorrer 2.800 quilômetros no coloca em uma garrafinha para eu levar ainda mais graves, originados da reação tem aqueles que sequer vão ao médico. tes de potabilidade, seja na análise físico-
jão ali, vende, apura um trocado, mas Sertão Central do Ceará, uma das re- pra escola, que é pra eu não beber a de lá entre água turva e o cloro. “Em um pro- Mas estes números já nos dão uma ideia Ministério Público Universidade Federal do -química ou microbiológica. Ou seja: são
sem água não tem produção, e nem tem giões mais atingidas pela estiagem, se- e ficar doente. Agora até que parou mais cesso de tratamento-padrão, toda água da magnitude da situação.” Após a avaliação do documento, a impróprias para o consumo humano.
o que beber. Graças a Deus, tem esse guindo as rotas dos pipeiros às comuni- as dores de barriga. A última vez que fi- passa primeiramente pela filtragem, por Itabaraci Nazareno Cavalcante, dou- promotora de justiça e coordenadora do
Ceará comprovou que Foram testadas amostras com cloro e
dinheirinho da aposentadoria, que dá dades atendidas, a reportagem conver- quei doente foi de dengue, mas tem ami- conta da turbidez elevada, para depois ir tor em hidrogeologia e professor da Centro de Apoio Operacional da Ecolo- água do Castanhão não sem cloro, ou seja, antes da desinfecção
pra gente comprar a água de beber; ca- sou com diversas famílias e registrou go meu que sempre fica doente de dor para a desinfecção, pois o cloro, reagin- UFC, vê uma relação direta entre os ca- gia, Meio Ambiente, Paisagismo e Pa- feita pelos “pipeiros” e depois de acom-
so contrário, teria que tomar mesmo a relatos de dores de barriga e de cabeça, de barriga”, conta o menino. do com a matéria orgânica, pode gerar sos de doenças diarreicas no Ceará e a trimônio Histórico (Caomace), Socorro é potável. Patu e Pedras panhar os pipeiros até as comunidades,
que vem dos carro-pipa. Aí num dá, né.” coceiras, enjoos, além de crianças que substâncias tóxicas, como os trihalome- qualidade da água distribuída. “Não so- Brilhante, afirmou que o Ministério Pú- coletamos as amostras já com o cloro
A fala de seu Manoel reflete as polí- deixam de ir à escola por estar doentes. tanos, que são comprovadamente cance- mente as diarreias, mas outras doenças blico do Estado (MP-CE) entraria com
Brancas também foram dissolvido.
ticas emergenciais mal orquestradas, Antônio Carlos Firmino da Silva, de “Dos meus três filhos, a rígenos.” diversas, desde estomacais, dores de duas recomendações ao Estado, uma reprovados Somente as águas do Patu não tinham
adotadas nos últimos anos para o com- 7 anos, mora na comunidade de Mora- Segundo Ivo Castelo Branco, infec- garganta e cânceres. A política do car- delas referente ao tratamento, controle presença de coliformes fecais.
bate à seca. Do pouco que ganha em da Nova, em Senador Pompeu; Marile- Marilene, de 10 anos, é a que tologista e coordenador do Núcleo de ro-pipa é nociva, leva uma água que não e fiscalização imediato das águas trans-
aposentadoria, algo em torno de R$ 770 ne de Sousa Gonçalves, 10 anos, reside sofre mais. Tem dor de cabeça, Medicina Tropical da UFC, a popula- é tratada, não passa por uma análise portadas pela operação, seja ela do go-
por mês, ele tem que tirar o valor da em São João dos Pompeu, em Quixadá. ção que bebe água imprópria pode vir microbiológica, por nada. Então, mes- verno federal ou estadual. Além disso, da região do Sertão Central do Ceará Nenhuma das coletas
água mineral – o garrafão de 20 litros é Ambas as localidades ficam na zona ru- dor no estômago, vomita. É a ter várias doenças, entre elas a des- mo que emergencial, não é uma políti- solicitará ao Estado que comece a pu-
passou nos testes de
vendido nos mercadinhos a R$ 3,00. Os ral, e as duas crianças já foram acometi- nutrição, devido à ingestão da água que ca que leva vida nem saúde para a po- blicar em seus meios de comunicação o A Operação Carro-Pipa (OCP) abaste-
carros-pipa são um sistema alternativo das por doenças como dengue, diarreia todo tempo assim. Ela conta não é tratada. Mas, para além disso, ele pulação, mas sim é um outro modo de resultado das análises dessas águas so- ce 1,3 milhão de cearenses – e com pre- potabilidade, seja na
de abastecimento coletivo e funcionam ou pneumonia. Em casa só consomem ressalta a necessidade de ter a análise levar doenças e aumentar custos gover- bre os dados referentes às doenças diar- visão de aumento desse contingente po-
desde 2012, como política emergencial água da chuva, acumulada pelas cister- que o suco distribuído na da composição mineral desses reserva- namentais com saúde pública”, afirma. pulacional. Por isso, a reportagem deci- análise físico-química ou
dos governos estadual e federal. Porém, nas; já na escola, a que chega é do car- merenda, feito com esta água, tórios e assim ter mais precisão sobre O último monitoramento realizado pe- diu conhecer de perto como é o proces-
microbiológica. Ou seja: são
nunca houve nenhum investimento pa- ro-pipa. outras complicações possíveis. “Inge- la Secretaria Estadual da Saúde (Sesa), “É claro que existe a subnotificação so de captação e os principais reserva-
ra tratar essa água. “A gente faz o que pode. Aqui em ca- tem gosto de azedo” rir água que não é tratada pode levar de 2012 a 2014, sobre qualidade da água tórios. Em nossa primeira parada, nos impróprias para o consumo
sa a gente coa e ferve a água, mas não a uma série de doenças, principalmen- distribuída pela Operação Carro-Pipa – à da doença, pois existem aqueles que deparamos com o açude do Patu, locali-
adianta nada se quando eles chegam na te a desnutrição, e uma criança desnu- qual a reportagem da Pública teve acesso
sequer vão ao médico. Mas estes zado no município de Senador Pompeu, humano
“De manhã a gente chega aqui no açude escola a água que tem pra beber não se trida é sensível a doenças por conta da por meio do Ministério Público Estadual um reservatório agonizando, com ape-
do Patu e é tudo verde, é uma capa de lodo sabe de onde vem. Todo mundo aqui Imprópria baixa imunidade, tais como tuberculo- (MP-CE) – identificou casos de contami- números já nos dão uma ideia da nas 10% da sua capacidade e uma capa
no município já ficou doente. Dos meus A falta de tratamento da água preo- se, calazar, diarreia, pneumonia. Coar nação por E. Coli, turbidez e cloro. de lodo sobre as águas.
grossa, e é assim em vários reservatórios. três filhos, a Marilene, de 10 anos, é a cupa especialistas, que são taxativos ao ou passar em filtro essa água não é o A conclusão do documento é que a magnitude da situação” Questionando se a água é própria para Nem as águas do Castanhão, o maior
que sofre mais. Tem dor de cabeça, dor classificarem-na como imprópria pa- suficiente. Tudo isso vai ocasionar um operação contribui para exposição hu- o consumo, descobrimos que não há da- reservatório do Ceará, passaram no tes-
São poucos os que estão bons” no estômago, vomita. É todo tempo as- ra o consumo humano. “Pela Resolução baixo desempenho intelectual. Ou se- mana a água contaminada, pois não dos públicos sobre isso. O governo se ne- te. O laudo acusa tanto a presença de
sim. Ela conta que o suco distribuído na 2.914, de dezembro de 2011 [do Minis- ja, o aprendizado e o desenvolvimento atende aos mecanismos efetivos para ga a publicar as análises rotineiras feitas coliformes fecais quanto níveis altos
merenda, feito com esta água, tem gos- tério da Saúde], uma água para ser po- destas crianças ficam comprometidos.” tratamento e controle da água ofertada reicas agudas. na água. Assim, a população, na maioria de amônia, turbidez e ferro. Segundo o
to de azedo”, queixa-se a dona de ca- tável tem que atender a determinados à população. Ao todo, de 2012 a 2014, “Não basta só ofertar, tem que se pen- das vezes, não faz ideia da procedência laudo, o elevado teor de amônia indica
Retirada da água sa Joana d’Arc Sousa da Silva, 47 anos, padrões. Um deles é o aspecto físico, ou Dados alarmantes 43 municípios coletaram 1.418 amos- sar também na qualidade desta água, da água que está recebendo. Só pelo as- poluição da água por matéria orgânica,
Com gastos de cerca de R$ 90,8 mi- moradora de São Miguel dos Pompeu. seja, a turbidez. E por este ponto essa Os dados do Ministério da Saúde mos- tras para vigilância da qualidade da pois, se ela não atinge o seu objetivo, que pecto e pelo cheiro, sem a análise labora- e a elevada turbidez da água é preocu-
lhões apenas desde janeiro até meados Joana tem cinco filhos e é a chefe da água já não passaria no padrão de pota- tram que, nos últimos dez anos, 3.040 água. Nessas amostras foram encontra- é o de ser própria para o consumo huma- torial, todos reprovam essas águas. pante, uma vez que substâncias tóxicas
de julho deste ano, a Operação Carro- família, a qual sustenta com uma ren- bilidade”, afirma a diretora do Labora- pessoas morreram de doenças diarrei- das contaminação fecal e turbidez aci- no, identificamos aí um desperdício. Por- Por meio de uma parceria com os la- podem ter sido absorvidas.
-Pipa (OCP), dos governos federal e es- da de R$ 200 provenientes do Bolsa Fa- tório de Microbiologia de Alimentos da cas no Ceará, a maioria idosos e crian- ma dos padrões permitidos. Em 706 tanto é um problema que o governo te- boratórios de Geologia Marinha Aplica- Os altos níveis de sódio e cloreto do
tadual, possibilita a 1,3 milhão de pesso- mília. Desse dinheiro, além de pagar R$ Universidade Federal do Ceará (UFC), ças. O número de notificações de casos (50%) foi determinada a não conformi- rá que enfrentar, pois temos provas con- da e Microbiologia de Alimentos, am- açude de Pedra Branca, que abastece os
as o que antes era inimaginável para o 100 em aluguel, ela gasta R$ 30 com a Evânia de Figueiredo. da doença também é grandioso: apenas dade quanto à presença de coliformes, cretas que existe, sim, a contaminação, e bos da Universidade Federal do Cea- municípios de Quixadá e Quixeramo-
sertanejo em época de estiagem: acesso conta de energia e reserva R$ 50 para Segundo ela, aplicar pedras de clo- de 2007 a 2015, foram 2 milhões. Nos o que, segundo o documento, é sinal de acima do permitido. Tendo em vista a si- rá (UFC), resolvemos tirar a prova. Le- bim, entre outros, chamaram atenção
à água. Atuando em 166 cidades, um to- a compra da lata de água vendida pelos ro nos tanques dos carros-pipa não primeiros quatro meses deste ano, o falhas no tratamento ou de não integri- tuação, iremos fazer as devidas recomen- vamos para análise amostras das águas de especialistas. “A repercussão destes
tal de 1.456 “pipeiros” – motoristas con- carroceiros da região, que ela acha me- tem poder germicida. “Um dos princi- Estado notificou 101.971 mil casos e 70 dade do sistema de distribuição. Tam- dações para que se cumpra a Portaria nº dos açudes do Patu, Pedras Brancas e resultados é muito séria. Pessoas hiper-
tratados para trabalhar nos caminhões- lhor para o consumo da família. O que pais meios de veiculação de doenças é óbitos pela doença – quase 20% do to- bém foi comprovada a ocorrência da 2.914/11 do Ministério da Saúde. Fora is- Castanhão – este último o maior do Es- tensas, com insuficiência renal, que to-
-pipa – corta o Estado no leva e traz da resta para a passar o mês são R$ 20. a água, e os principais grupos atingidos tal de mortes no Nordeste – 385 – e um bactéria Escherichia coli em 293 amos- so, é preciso que estes dados de potabi- tado, responsável também por abaste- mam corticoides, por exemplo, não po-
água de 153 reservatórios, monitorados Na casa onde o pequeno Antônio mo- pelas bactérias e protozoários são crian- quarto das notificações (429.714). Hou- tras (21%), o que, segundo o estudo, é lidade e doenças diarreicas sejam dispo- cer a capital, Fortaleza. Nesse caso, po- dem beber desta água, que em vez de hi-
pela Companhia de Gestão dos Recur- ra com os pais, os avós e os tios, existe, ças e idosos. Em um primeiro momen- ve 1.498 internações de crianças de até inaceitável para o consumo humano. nibilizados para toda a sociedade, para rém, a água passa antes pelo tratamen- dratar causa a desidratação”, avaliou o
sos Hídricos (Cogerh). Cabe à Cogerh além da cisterna para a água da chuva, to, vão sentir problemas no estômago, 9 anos nos primeiros seis meses do ano. O estudo revela também a presença de que ocorra um controle e a realidade se- to da Companhia de Água e Esgoto do infectologista Ivo Castelo Branco. (TL)
indicar quais os mananciais apropria- um tanque para a água do caminhão-pi- diarreias, azias.” Embora o número seja alarmante, Giardia lamblia e de Cryptosporidium, ja exposta”, concluiu a promotora. (TL) Ceará (Cagece). (Agência Pública)
12 de 1º a 7 de outubro de 2015 cultura

Ser fã
CRÔNICA Alguém já disse que um fanático
é um sujeito que não muda de opinião nem
de assunto. O impulso de ser fã – de ter uma
admiração incondicional e permanente por
algo ou alguém – não está somente em quem
gosta de “Star Trek” ou de “Senhor dos Anéis”

Braulio Tavares

ERA UM COQUETEL de lançamento. A certa altura fui à longa mesa co-


berta de toalhas brancas para devolver ao garçom um morto e receber um
vivo. Um cara que eu conhecia de vista aproximou-se. Brindamos, lustra-
mos algumas frases polidas encontradas nos bolsos, e daí a pouco ele me
veio com essa: “Estou até lhe devendo um pedido de desculpas. Uma vez
fiz um mau juízo do seu caráter”. Era um cara corajoso, porque na minha
terra dizer isso é motivo para execução sem reza. Ainda bem que a barbá-
rie da metrópole me civilizou.
“Mas, por que?!”, exclamei, misturando surpresa e bom humor. Ele dis-
se: “Um amigo nosso me mostrou uma crônica sua em que você escarne-
ce de Borges. Ora, escarnecer do maior escritor do século 20 é uma coi-
sa inadmissível, não acha?”  “Eu, escarneci de Borges?”. Meu espanto não
tinha limites. Eu faço piadas até com a minha falecida mãe, quanto mais
com Jorge Luís Borges.
“Devo ter dito alguma ironia”, falei, “mas não houve intenção de ofen-
der, eu sou um grande fã de Borges”. Pensei que isso era o bastante, mas
ele voltou à carga: “Não, você não é fã de Borges. Você é um leitor casu-
al. Se fosse fã estava vestido como eu”. Só então reparei que, sob o casa-
co de couro, ele estava usando uma camiseta com a imagem do autor de
O Aleph, uma daquelas fotos dele sentado, com as mãos pousadas sobre o
castão da bengala.

“‘Devo ter dito alguma ironia’, falei, ‘mas não houve


intenção de ofender, eu sou um grande fã de Borges’.
Pensei que isso era o bastante, mas ele voltou à carga:
‘Não, você não é fã de Borges. Você é um leitor casual.
Se fosse fã estava vestido como eu’.”

Alguém já disse que um fanático é um sujeito que não muda de opinião


nem de assunto. O impulso de ser fã – de ter uma admiração incondicional
e permanente por algo ou alguém – não está somente em quem gosta de
“Star Trek” ou de “Senhor dos Anéis”. Existe também entre os admirado-
res da arte erudita. Basta ver as cerimônias que os fãs de James Joyce re-
alizam todo ano no “Bloomsday”, 16 de junho, o famoso dia em que trans-
correm os acontecimentos do livro Ulisses. No mundo inteiro o pessoal se
fantasia, se reúne em pubs, toma cerveja Guiness, recita e canta coisas re-
lativas a Joyce e à Irlanda. Muitos são eruditos, PhDs, críticos vetustos,
autores premiados; mas nesse dia adolescem todos, todos se tornam tão
fãs quanto um guri fantasiado com os óculos e a vassoura de Harry Potter.
Já escrevi aqui sobre um depoimento de Antonio Cândido confessando Temos uma tendência a achar que a instituição do
as brincadeiras de fãs que eles e seus colegas, jovens, faziam tendo por te-
ma os romances de Eça de Queiroz. Temos uma tendência a achar que a fandom foi criada por Hollywood, a qual apenas a
instituição do fandom foi criada por Hollywood, a qual apenas a industria- industrializou e reexportou. Fãs, nesse sentido, já eram
lizou e reexportou. Fãs, nesse sentido, já eram os estudantes paulistanos
que em 1886 foram aplaudir Sarah Bernhardt no Teatro São José, e desa- os estudantes paulistanos que em 1886 foram aplaudir
trelaram os cavalos de sua charrete, puxando-a eles mesmos até o Grande
Hotel, com a diva dentro. (Texto publicado em sua coluna diária no Jor- Sarah Bernhardt no Teatro São José, e desatrelaram os
nal da Paraíba – Campina Grande-PB) cavalos de sua charrete, puxando-a eles mesmos até o
Braulio Tavares é escritor, poeta e compositor de Campina Grande (PB). Grande Hotel, com a diva dentro

www.malvados.com. br dahmer

PALAVRAS CRUZADAS
Horizontais: 1.Empresa alemã que denunciou um esquema de propinas pagas, há 20 anos, por
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18
11 transnacionais ao PSDB de São Paulo, para que elas vençam licitações, que envolvem o metrô 1
e os trens, com valores superfaturados – Primeiro papa latino-americano. 2.Segunda nota musi-
cal. 3.Proposta feita por Dilma para tratar da reforma política que em poucos dias foi engavetada. 2
4.Ordinário – Em alemão, diz-se “Farbe” – Doei – Interjeição de frustração. 5.A Organização Mun-
dial da Saúde – Computador pessoal – Presidente dos Estados Unidos. 6.Divisão de uma escola 3

de samba – Interjeição de nojo – Interjeição de dor. 7.Modinha – Na matemática, o MMC se re-


4
laciona com ele. 8.Diferentemente do referendo, que é convocado para que o cidadão ratifique
ou rejeite uma lei já criada, “ele” é convocado para sondar a opinião do cidadão antes de uma
5
lei ser criada – A capital deste estado (sigla) é a cidade de Rio Branco. 9.Vaso grande de barro,
ordinariamente destinado a armazenar água – Resultado de um processo criativo de seis anos, 6
esta é a última sinfonia completa composta por Beethoven, quando ele já se encontrava quase
totalmente surdo. 10.Maneirismo mineiro. 11.Críticos do PT insistem no discurso seletivo de que 7
ela não existia no Brasil antes de Lula e Dilma assumirem o comando do país – Ameno.
8
Verticais: 1.Mascote do PSDB – Maior organização de artes marciais mistas do mundo. 3.Fôrma.
4.O primeiro dos números inteiros. 5.Coordenação dos Movimentos Sociais – Organização das 9
Nações Unidas. 6.Repetição de um som – Partido dos Trabalhadores. 7.Jornal popular que era
conhecido pela expressão “se espremer, sai sangue” – Interpreta o que está escrito. 8.Pedido 10
de socorro – Placa de trânsito. 9.Trabalho de Conclusão de Curso – Em que há beleza. 10.Diz
o ditado popular que “a vingança é um prato que se come (?)”. 11.Recuos. 12.Quem nasce na 11

capital deste estado (sigla) é chamado de soteropolitano. 13.O contrário de “volta” – Na lingua-
gem informal “ter aparência de”. 14.Chamado de sétima arte, seu nome tem origem na palavra
grega que significa “movimento” – O nome deste estado (sigla) vem de um termo em tupi que 16.AR. 17.Placa. 18.Osso – Cama.
significa “bico de tucano”. 15.Em inglês, diz-se “aunt” – Um dos mais citados na história do Brasil 9.TCC – Belo. 10.Frio. 11.Retrocessos. 12.BA. 13.Ida – Pinta. 14.Cinema – TO. 15.Tia – Monte.
é o “Castelo”, tomado por tropas brasileiras durante a Segunda Guerra Mundial. 16.Aviso de re-
Verticais: 1.Tucano – UFC. 3.Molde. 4.Um. 5.CMS – ONU. 6.Eco – PT. 7.NP – Lê. 8.SOS – Pare.
11.Corrupção – Suave.
cebimento dos Correios. 17.Todo o carro precisa ter uma. 18.Na linguagem informal, diz-se de – PC – Obama. 6.Ala – Eca – Ai. 7.Onda – MDC. 8.Plebiscito – AC. 9.Pote – Nona. 10.Trem.
Horizontais: 1.Siemens – Francisco. 2.Ré. 3.Constituinte. 4.Comum – Cor – Dei – Pô. 5.OMS
algo “difícil” – Leito.
cultura de 1º a 7 de outubro de 2015 13

O Preço da Fama
CINEMA Filme coproduzido pelos irmãos Dardenne presta tributo a Charles Chaplin
Divulgação

Maria do Rosário Caetano


de São Paulo (SP)

QUEM LÊ O TÍTULO brasileiro (“O


Preço da Fama”) ou o original francês
(“La Raiçon de la Gloire” – o resgate da
glória) do novo longa-metragem do re-
alizador Xavier Beauvois não imagina a
surpreendente história que eles emba-
lam. E o mais impressionante é que es-
tamos diante de história real, recriada
e transformada pelo realizador francês
em delicada comédia dramática.
O filme, que estreia dia 1º de outubro,
conta a história de dois imigrantes – um
belga e um argelino – que vivem em uma
pequena cidade suíça, às margens de um
grande lago. Na primeira sequência da
trama, vemos Eddy (o belga Benoît Poel-
voorde, de filmes como “Três Corações”
e “A Grande Noite”) saindo da cadeia.
À espera dele está o amigo argelino Os-
man (Roschdy Zem, de “Indigene - Dias
de Glória” e “Fora da Lei”, um dos atores
cult do cineasta árabe Rachid Boucha-
reb). Os dois amigos seguem para a hu-
milde casa de Osman, onde ele vive com
a filha de sete anos, Samira. A menina es-
tá entristecida pela ausência da mãe, a
faxineira Noor (interpretada pela cine-
asta e atriz Nadine Labaki, de origem li-
banesa), internada em um hospital com
grave problema nos quadris.
Osman pede a Eddy, que tem boa ins- Ilustração do cartaz do filme O preço da Fama (La raiçon de la gloire), de Xavier Beauvois
trução e adora ler romances, que aju-
de a menina no estudo do francês, pois

História verdadeira
ela vem cometendo muitos erros de or-
tografia. Enquanto isto ele vai visitar a
mulher e é informado pelo médico que
Noor necessita de repouso absoluto e de
cirurgia nos quadris. A operação custa-
rá uma pequena fortuna (para os pa-
drões monetários da família). Até a TV
transmitir uma notícia muito impor- O circo do filme de “O Preço da Fama” cometem falha grave e são pegos com fa-
tante (a morte de Charles Chaplin, no de São Paulo (SP) é comandado por Rosa, uma bela mulher cilidade. Confessam e mostraram onde
Natal de 1977) o filme parecerá mais um (Chiara Mastroianni) e por integran- haviam enterrado o caixão de “Carlitos”.
tocante drama sobre imigrantes pobres. Xavier Beauvois, de 48 anos, diretor te da verdadeira família Chaplin (Eu-
de “Homens e Deuses” e “Não Se Es- gène). Outro membro da família (Dolo- Julgamento
Maquinações queça que Você Vai Morrer”, recriou res Chaplin) interpreta uma das filhas O melhor do filme acontecerá no julga-
Os noticiários suíços e as sessões es- com muita liberdade o que realmente se do cineasta, que participa do processo mento dos imigrantes que ousaram se-
peciais dos filmes do pai de Carlitos, o passou em março de 1978, poucos me- de negociação com os sequestradores. questrar o caixão de Chaplin. O acusador
eterno vagabundo, vão alimentando a ses depois da morte de Chaplin, já que lamentará ato tão vil. O defensor, com a
engenhosa cabeça do ex-presidiário. Ele seu intento era realizar um drama hu- verve dos grandes advogados, lembra o
ouve um locutor de telejornal dizer que manista, com pitadas de comédia. Pa- O melhor do filme homem pobre que Chaplin fôra e a mi-
Chaplin morrera, aos 88 anos, milio- ra tanto, buscou apoio dos irmãos Dar- séria vivida em especial num de seus fil-
nário. Que só de direitos autorais pro- denne, os mais respeitados cineastas da acontecerá no julgamento mes mais famosos (“Em Busca do Ouro”,
venientes de seus filmes, recebia fan- Bélgica. Eles se tornaram, então, copro- 1925). Quem conseguirá esquecer – per-
tásticas somas em dólares. Fragmen- dutores de “O Preço da Fama”.
dos imigrantes que gunta o defensor – “do Carlitos que, em
tos das obras do genial criador britâni- A primeira atitude de Beauvois, ao es- ousaram sequestrar o situação de fome extrema, come os ca-
co se somam a hilariante trecho do mé- crever o roteiro, foi mudar a nacionali- darços dos próprios sapatos”?
dia-metragem “O Balneário” (“The Wa- dade dos imigrantes que sequestraram caixão de Chaplin A família Chaplin, pelo que nos mos-
ter Cure”, de 1971, 31 minutos). o caixão de Chaplin: um polonês (Ro- tra o filme, perdoou os ladrões e até pa-
Criador (Chaplin) e criatura (Carli- man Vardas) e um búlgaro (Gantscho gou pela cirurgia de Noor. Mas a jovem
tos) começam a fertilizar as maquina- Ganey), dois mecânicos de automóvel Mas quem comanda, para valer, a ope- mãe árabe, por princípios e para dar bom
ções de Eddy, que quer ajudar o ami- que viviam em Corsier-sur-Vevey, cida- ração, é o secretário particular da famí- exemplo a Samira, fez uma exigência ao
go a arrumar dinheiro para a cirurgia de às margens do Lago Léman. lia, interpretado pelo ator norte-ameri- marido Osman. Exigência explicitada em
de Noor. Ele tem, então, uma “gran- Para que a homenagem a Chaplin cano Peter Coyote. Ele aplica seus co- frente ao túmulo restaurado de Chaplin.
de ideia”: roubar o caixão de Chaplin e fosse ainda mais explícita, o realizador nhecimentos adquiridos na Força Aérea Aos espectadores mais afoitos, uma
pedir um milhão de dólares de resgate abriu espaço nobre para o circo, a gran- dos EUA, para endurecer o jogo com os recomendação: não saiam antes dos
a Oona O’Neill Chaplin, viúva do artis- de escola do criador de Carlitos, nasci- sequestradores. A polícia, constrangida créditos finais, pois gag visual virá ar-
ta, e a seus muitos filhos. Num primei- do e criado em ambiente miserável, nu- com o roubo do caixão do grande artista rematar a trama.
ro momento, Osman resiste. Mas acaba ma Inglaterra monárquico-classista. E que, perseguido pelo macarthismo, es- “O Preço da Fama”, de Xavier Beau-
concordando com o amigo. Os dois vão que, talentoso, foi trabalhar em circos colhera a Suíça como morada definiti- vois – Coprodução franco-belga (2014).
ao cemitério e retiram o caixão de Cha- mambembes. E, mais tarde, realizar va, agiu com muita cautela. Com Benoît Poelvoorde, Roschdy Zem,
plin da tumba. E vão enterrá-lo em lugar dois de seus grandes filmes “O Circo” Na primeira tentativa de pagamento Nadine Labaki, Chiara Mastroianni,
desconhecido. O que se seguirá são inú- (1928), e “Luzes da Ribalta” (1952), no do resgate, tal qual numa comédia cha- Peter Coyote, Dolores Chaplin e Eugè-
meros contatos, via cabines telefônicas, qual interpreta Calvero, um velho pa- pliniana, o acaso se impõe. Na segunda, ne Chaplin. Duração: 1h54. Lançamen-
e insistente pedido de resgate. lhaço alcóolatra). os dois sequestradores, já desgastados, to Mares Filmes (MRC)

O genial vagabundo Divulgação


ao imaginário cinematográfico muitas
de São Paulo (SP) outras sequências notáveis: a da dança
dos pãezinhos fincados em dois grafos,
Até o dia da morte de Chaplin, 25 de o pavor da perda do garoto (Jack Coo-
dezembro de 1977, portanto, em pleno gan) levado por uma carrocinha, o dis-
Natal, momento de ternura e congra- curso do barbeiro-judeu-sósia de Hitler
çamento para os cristãos, ajudou a am- que prega a fraternidade (não o exter-
pliar a aura mítica que sempre cercou o mínio), o operário que enlouquece com
artista. E sua morte se deu numa Suí- a repetição gestual da linha de monta-
ça gelada, sua terceira pátria. A primei- gem e entra nas engrenagens da máqui-
ra fôra a Inglaterra, onde nasceu e vi- na, o desempregado que pega por aca-
veu até migrar-se para os EUA, em 1913. so uma bandeira vermelha de sinaliza-
Tornou-se um bem sucedido ator, músi- ção e é preso como agitador político, o
co, diretor e produtor da mais badalada encontro com a florista cega em “Luzes
arte-indústria norte-americana: o cine- da Cidade” (perfeccionista ao extremo,
ma. Desde seus primeiros filmes, conhe- Chaplin rodou esta sequência centenas
ceu grande sucesso popular. Com os in- de vezes). Mesmo os que têm o criador
fluentes David Griffith, Mary Pickford e na conta de “um incurável sentimental”
Douglas Fairbanks montaria a United serão incapazes de negar a força, a be-
Artists. E ficaria milionário. leza e o teor crítico destas irresistíveis
A riqueza, porém, não fez de Cha- Roman e Gantscho, a dupla de sequestradores incompetentes imagens.
plin um empresário insensível à misé- Charles Chaplin – cuja vida ren-
ria humana. Até porque o artista viveu O’Neill, para a Inglaterra, em 1952, pa- tográficas de Hollywood, com um Os- deu diversas biografias, filmes (um fic-
um tempo de grandes causas. Um tem- ra lançar “Luzes da Ribalta” no mercado car honorário. Teve em dois franceses cional, dirigido por Richard Attenbo-
po conflagrado por duas grandes guer- britânico. Como sua situação nos EUA brilhantes – o católico André Bazin e o rough, vários documentários, incluin-
ras mundiais. Homem de ideias liberais, tornou-se muito difícil e seus bens fo- comunista George Saduol – seus maio- do um que mostra a implacável perse-
mostrou simpatia por causas defendi- ram confiscados, ele resolveu fixar-se na res defensores. Dele, Sadoul dizia: “é guição feita a ele por outro implacável
das inclusive pelos comunistas. Por is- Suíça. E lá viveu até morrer. o maior gênio que o cinema produziu, direitista, J. Edgar Hoover, diretor do
to, caiu em desgraça junto ao Comitê comparável a Molière a Shakespeare”. FBI), centenas de ensaios e gigantesca
de Atividades Anti-Americanas, que ti- Oscar honorário Além da inesquecível sequência em fortuna crítica – é tema neste momento
nha no senador Joseph McCarthy o seu Chaplin, que não ganhara nenhum que come os cadarços do próprio sapa- de um musical, em cartaz em São Pau-
Torquemada. Partiu com a mulher, Oo- Oscar, foi reconhecido, em 1971, pela to para matar a fome – citada no filme lo, protagonizado pelo ator Jarbas Ho-
na, filha do grande dramaturgo Eugène Academia de Artes e Ciências Cinema- “O Preço da Fama” – o cineasta legou mem de Mello. (MRC)
14 de 1º a 7 de outubro de 2015 américa latina

Democracia na AL em situação de alerta Reprodução/Facebook

CONJUNTURA
Trabalho, que contou
com 37 especialistas de
diversos países – incluindo
brasileiros –, aponta
quatro cenários para os
países da região até 2030:
“mobilização, tensão,
transformação e agonia”

Hylda Cavalcanti
de Brasília (DF)
da Rede Brasil Atual

A DEMOCRACIA na América Latina tem Foto de capa do Facebook do evento de lançamento da pesquisa Alerta Democrático
previsão de atingir quatro estados pos-
síveis nos próximos 15 anos, caso os go- Inovação e reformas ro”, avaliou Mille Bojer, diretora da en- conduzir a um empoderamento do cida-
vernos não revejam situações de violên- Para 2022, por exemplo, o estudo tidade internacional Reos Partners, res- dão mais amplo e transparente ao longo
cia, estratégias de cooperação horizon- aponta que o cenário previsto pode vir ponsável pelo trabalho. de 15 anos, levando a “benefícios concre-
tal, casos de corrupção, outras tomadas a ser de uma demanda generalizada por Integram o grupo de estudos que ela- tos no campo da mobilização da pressão
de decisões políticas e medidas para for- essa reforma das instituições democrá- borou o documento acadêmicos, parla- e da criatividade popular diante do poder
talecimento de suas instituições. O “aler- ticas, com inovação e superação de pro- mentares, sociólogos, advogados, prefei- tradicional”.
ta”, que traçou um cenário permeado por blemas estruturais, além de mais inves- tos, ex-prefeitos e ex-ministros da Bolí- “Se os tempos são de desconfiança dos
fases de “transformação, tensão, mobili- timentos no capital humano e na cultu- via, Brasil, Peru, Guatemala, Honduras, políticos, é necessário se pensar em co-
zação e agonia” do processo democrático ra do empreendedorismo. Em 2028, ca- Estados Unidos e México. mo institucionalizar essa desconfiança.
nos países da região até o ano 2030, es- so essas reformas sejam bem-sucedidas, As instituições democráticas modernas
tá sendo feito por trabalho que resultou tais mudanças começarão, de acordo Poder concentrado (o parlamento, os freios e contrapesos, o
num ciclo de debates com 37 lideranças e com o documento, a impactar em proble- Segundo esses organizadores do estu- judiciário independente, a imprensa) são
pesquisadores latino-americanos, nos úl- mas como drogas e crime organizado le- do, o cenário da “democracia em trans- instituições de desconfiança. Encontrar o
timos seis meses. Contou, por aqui, com vando a uma redução desses problemas. formação” é de uma conjuntura de redis- difícil equilíbrio entre novas instituições
a participação de nove parceiros, dentre E a América Latina poderá ter um poder tribuição do poder, com fortalecimento de desconfiança que permitam o funcio-
eles, o deputado Jean Wyllys (Psol-RJ) e econômico mais diversificado, com mais da democracia e sistemas mais distan- namento de um Estado capaz de respon-
o advogado e ex-secretário do Ministério responsabilidade corporativa. tes da corrupção e do crime organizado. der, com políticas públicas, às demandas
da Justiça, Pedro Abramovay, e que foi Se esses caminhos forem seguidos, a Já o da “democracia sob tensão” aborda sociais é o grande desafio desse proces-
lançado dia 29 de setembro, na Câmara região poderá chegar a 2030 com uma a possibilidade de países, nos próximos so. Ninguém disse que seria fácil”, enfa-
dos Deputados. liderança política mais diversificada e a anos, cada vez mais com uma democra- tizou, em artigo onde fala sobre as ins-
Com o título de Alerta Democrático, o relação entre governos e sociedade civil cia apenas aparente, onde o poder está tituições, a democracia e a internet, Pe-
estudo será divulgado simultaneamente mais colaborativa. Mas esses efeitos va- concentrado e em disputa com diversas dro Abramovay – diretor da Open Socie-
em cinco países e já adianta a perspecti- riam dependendo das escolhas a serem forças políticas e econômicas, causando ty Foundation e um dos brasileiros inte-
va de que, num cenário até 2020, a de- feitas pelos governos, das condições eco- frustração social. grantes do “Alerta”.
manda pela reforma das instituições fará nômicas e do nível de resistência das eli- O cenário intitulado “democracia em Já o deputado Jean Wyllys lembrou,
surgir novas propostas políticas e meca- tes em cada um dos países latino-ame- mobilização” prevê a atuação e pressão ao abordar num texto o cenário da de-
nismos de participação, com um eleito- ricanos. O grupo que elaborou o traba- populares em movimentos que desafiem mocracia em tensão, que continuam
rado cada vez mais exigente por mudan- lho destaca a formação de quatro cená- as estruturas tradicionais de poder. E o predominando em países latino-ame-
ças que os levem a resolver seus proble- rios possíveis, nem todos positivos. Pas- da “democracia em agonia” mostra um ricanos “lógicas inerciais de concentra-
mas estruturais. Aponta, como avaliação sam tanto pela democracia fortalecida sistema dominado pelo crime organiza- ção ou de reconcentração do poder po-
sobre este ano de 2015, que os escânda- pela equidade na participação política, do, provocando medo e sentimento der- lítico e econômico, em uma região que
los de corrupção e abuso de poder (ob- com deliberação política e instituições rotista entre os cidadãos. continua marcada por uma cultura polí-
servados não apenas no Brasil) e combi- mais robustas, até a que se encontra no “São perspectivas que devem ser leva- tica caudilhista, clientelista e com vícios
nados com deterioração nos indicadores chamado “limite”, com modelos à beira das em conta, inclusive para outros estu- autoritários”.
de pobreza e desigualdade nos últimos da exaustão por fatores como corrupção, dos, de forma a serem catalisadas discus- “Em alguns países e sub-regiões, re-
anos têm levado ao declínio na confiança crime e desejo de poder centralizador. sões estratégicas que levem a mudanças gistram-se avanços sem precedentes em
da população nos líderes e instituições. nesses países”, avaliou o sociólogo Fer- matéria de direitos econômicos, sociais e
“A América Latina está em uma encru- “Democracias reais” nando Rezende, do Centro de Estudos culturais, mas sem alterar completamen-
zilhada, mas a consolidação da democra- “Se desde a leitura e revisão desses ce- Josué de Castro, que tem doutorado em te o padrão de desenvolvimento concen-
cia é um auspicioso processo que, entre- nários tivéssemos conseguido, na Amé- trabalhos e avaliações sobre conflitos na trador nem as lógicas da corrupção e da
tanto, ainda está muito longe de ser ir- rica Latina, que diversos atores sociais América Latina. violência, e ainda sob o patrocínio de es-
reversível. Dessa forma, chegamos a um e autoridades em exercício impulsionas- quemas de poder que apostam delibera-
ponto de bifurcação do qual emergem sem democracias reais e não apenas pro- Pressão e criatividade popular damente em subordinar as instituições
múltiplos caminhos que a região poderia cessos eleitorais, fortalecessem as ins- Um dos pontos mais positivos traça- democráticas”, afirmou o parlamentar.
percorrer. Os cenários do “Alerta Demo- tituições democráticas e motivassem a dos pelo trabalho é o de que, no chama- Segundo a ReosPartners, os quatro ce-
crático” são uma jornada por essas possi- transformação dos partidos políticos, do cenário da “democracia em mobiliza- nários tendem a fornecer subsídios para
bilidades futuras”, enfatiza o trabalho em por exemplo, talvez estivéssemos atin- ção”, a análise feita é de que esquemas de o aprofundamento do diálogo em torno
sua abertura. gindo cenários promissores para o futu- cooperação com vários atores tendem a da América Latina.

OPINIÃO

O escândalo Volkswagen visto de perto


FIASCO PLANETÁRIO de West Virginia, uma das melhores no O diretor-presidente da Volkswagen Agora tingiram mortalmente a Alema-
ramo tecnológico, nos Estados Unidos. alemã, a matriz, Martin Winterhorn, nha sobre rodas, a empresa que, fundada
Coréia do Sul, Japão, Um dos carros escolhidos foi da Volks- sob pressão, se demitiu, acusado de sa- no período nazista, em 1937, sobreviveu
wagen. E a discrepância constatada era ber de tudo e não ter feito nada para pa- a ele, à Segunda Guerra, e tornou-se um
Alemanha, França enorme, muito maior do que a europeia. rar o esquema. símbolo do chamado “milagre alemão”
e Itália começam a O caso foi parar na Agência de Prote-
ção ao Meio-Ambiente do governo fede-
Graças à fraude, estima-se que esta fro-
ta de carros possa ter lançado um exce-
do pós-guerra.
Um fiasco de grandes proporções.
investigar se montadora ral, e daí seguiu ao Ministério da Justiça. dente de 1 milhão de toneladas de po-
No começo, a Volks norte-americana ter- luentes na atmosfera – por ano! Que po- Um detalhe
fraudou veículos em giversou. Apontou problemas técnicos, luentes? Sobretudo dois: o óxido de ni- O motor diesel foi inventado por um
seus mercados. A pátria itinerários etc. Mas muitos etc. depois,
com o avanço das investigações, a poeira
trogênio (NO) e o dióxido de nitrogênio
(NO2). O primeiro causa danos ambien-
engenheiro alemão, embora nascido
em Paris, em 1858, Rudolf Diesel. Seu
interior dos alemães se dissipou e o problema veio à luz. tais, mas o segundo, além disto, causa pai era de Augsburg, na Baviera, para
A empresa instalara um software mali- danos às vias respiratórias dos seres hu- onde ele foi enviado, ficando na casa de
está mortalmente ferida cioso nos carros, que detectava quando o manos e outros bichos. um tio que era professor na Escola de
e mortificada carro seria submetido a um teste (já que
os modelos eram escolhidos ao acaso).
Engenharia.
Rudolf tornou-se engenheiro e, em
Neste momento, o software malandro Agora a Volks norte-americana 1890, mudou-se para Berlim, onde de-
mudava o sistema de leitura, apresen- senvolveu o motor que acabou levan-
Flavio Aguiar tando índices mais baixos de poluentes. vai ser processada, com uma do seu nome. Em 1913, Diesel desapare-
Agora a Volks norte-americana vai ser indenização à vista que pode chegar ceu, depois de embarcar no navio Dres-
TUDO COMEÇOU com a melhor das in- processada, com uma indenização à vis- den, na cidade de Antuérpia, na Bélgica,
tenções. Em meados de 2014, Peter Mo- ta que pode chegar a 18 bilhões de dóla- a 18 bilhões de dólares. Além disto, que seguia para Londres. Na noite em se-
ck, militante do International Council of res. Além disto, teve de ordenar o reco- guida ao embarque, em 29 de setembro,
Clean Transportation, na Europa, deci- lhimento de 482 mil unidades de carros teve de ordenar o recolhimento Diesel se recolheu a seu camarote, e nun-
diu fazer alguns testes para provar que produzidos nestas condições. O CEO da de 482 mil unidades de carros ca mais foi visto. Dez dias depois um ca-
os carros movidos a diesel poluíam me- empresa deu uma declaração que foi tra- dáver em adiantada decomposição foi
nos do que os outros. Pôs-se na estrada duzida de diferentes maneiras, indo des- produzidos nestas condições recolhido por um navio holandês perto
com um deles, e ficou surpreso com o re- de “nós fizemos bobagem” até “nós ferra- da Noruega. O cadáver foi devolvido ao
sultado: havia uma discrepância grande mos tudo”, embora eu imagine que, pelo mar, mas alguns objetos foram recolhi-
entre os índices de poluentes na estrada menos em particular, ele tenha dito “we dos (caixa de óculos, um canivete, uma
(o que compreende também ruas urba- fucked it all over”. Outro problema correlato (colateral, carteira de identidade, pílulas, uma car-
nas) e aqueles obtidos nos laboratórios Mas o problema não parou aí. Diante como os mercados gostam de dizer): a teira) e foram identificados por Eugene
de fiscalização. Por “laboratório” enten- das notícias, a Coreia do Sul, o Japão, a Volks está para a identidade coletiva ale- Diesel como pertencentes a seu pai. A es-
da-se uma situação que envolve circula- Alemanha, a França e a Itália começaram mã assim como a Petrobras está para a tranha morte deu lugar a várias teorias
ção, mas em condições artificiais. Outra também a investigar. Um detalhe: os car- brasileira e o xisburguer para a norte-a- conspiratórias sobre uma possível elimi-
coisa é o carro nas mãos do cidadão co- ros a diesel, nos Estados Unidos, repre- mericana, ou a baguete para a francesa. nação de Diesel por razões militares ou
mum, com dívidas a pagar (inclusive a do sentam 3% da frota. Na Europa, são 50%. A pátria interior dos cidadãos da terra de concorrência, mas a hipótese hoje aceita
próprio carro), premido pelo tempo, es- De imediato, as ações da Volks caíram Goethe está mortalmente ferida e mor- como mais provável é a de suicídio. (Re-
premido no trânsito (imagine em S. Pau- 20% nas bolsas em um único dia, bolsas tificada. Já não bastava o caso intermi- de Brasil Atual)
lo ou outra metrópole brasileira), redu- que, “nervosamente” como sempre, já es- nável do aeroporto de Berlim, cuja cons-
zindo revisões e ajustes do motor etc. tão pressionadas pela crise dos refugia- trução não termina nem vai terminar em Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS),
Peter comunicou o fato a seu cole- dos, da Grécia etc. Outras empresas do breve, tendo sido postergado sine die em 1947, e reside atualmente na Alemanha,
ga norte-americano John German. Es- setor também tiveram desvalorizações: a e sine preço, uma vez que parece haver onde atua como correspondente para pu-
te, por sua vez, resolveu fazer testes nos GM, a Ford, a Fiat Chrysler, a BMW, a partes que terão de ser demolidas e re- blicações brasileiras. É colunista quinzenal do
Estados Unidos, a partir da Universidade Daimler-Benz, a Renault construídas. Blog da Boitempo e da Carta Maior.
américa latina de 1º a 7 de outubro de 2015 15
Cuba Debate

Francisco reacende a fé em Cuba


RELIGIÃO Calcula-se que, entre ve e vi as armas expostas, agora transfe- tirreligiosos incutidos pelos soviéticos.
O papa Francisco desfila em rua de Havana, em Cuba

cuidado de nossa casa comum, é o mais


ridas a um museu. Em quase toda a América Latina des- contundente documento até hoje emiti-
a população de pouco mais de A guerrilha de Sierra Maestra con- pontava um catolicismo progressis- do sobre o tema socioambiental. O pa-
11 milhões de habitantes, apenas tou com um capelão, o padre Guillermo ta nas Comunidades Eclesiais de Ba- pa associa devastação da natureza ao
Sardiñas, que após a vitória, em janei- se, que deram origem à Teologia da Li- crescimento da miséria e da pobreza,
5% podem ser considerados ro de 1959, mereceu o máximo título de bertação. Na Colômbia, em 1966, o pa- e aponta a ambição de lucro e a econo-
“Comandante da Revolução”. E foi au- dre Camilo Torres tombara como guer- mia de livre mercado como responsá-
católicos, embora seja bem torizado pelo papa João XXIII a trajar rilheiro, de armas nas mãos. No Brasil, veis por isso. Raúl estava seguro de que
batina verde oliva... em 1969 descobriu-se que frades do- Francisco não causaria surpresas.
maior o número dos que foram As tensões entre Igreja Católica e Re- minicanos colaboravam com a guerri-
batizados na Igreja Católica volução se iniciaram quando as medi- lha urbana de Carlos Marighella. Em
das de estatização de propriedades na- El Salvador e Nicarágua, cristãos par- Os cristãos foram proibidos
cionais e estrangeiras emitiram sinais ticipavam da luta revolucionária om-
de que o país caminhava para o comu- bro a ombro com marxistas. A Revolu- de exercer determinadas
Frei Betto nismo. O catolicismo pré-conciliar, de ção Cubana passou a rever seus concei-
de Havana (Cuba) forte conotação franquista, se posicio- tos frente ao fenômeno religioso.
profissões, como o
nou ao lado dos que defendiam o capi- magistério, e rompeu-
AO ENCERRAR sua visita a Cuba, no talismo como mais adequado à liberda- Abertura religiosa
dia 22 de setembro, papa Francisco de- de religiosa, e identificavam no comu- Em julho de 1980, conheci Fidel, em se o diálogo entre bispos
clarou, em Santiago de Cuba, “me senti nismo o anjo exterminador da fé cristã. Manágua, no primeiro aniversário da
em casa, em família”. De fato, tinha mo- Revolução Sandinista. Fiz-lhe duas per- católicos e dirigentes do país
tivos para comemorar. Atualmente são guntas. Qual a atitude da revolução
excelentes as relações entre a Igreja Ca- A chamada Operação Peter frente à Igreja Católica? Antes que res-
tólica e o governo cubano, após décadas pondesse, adiantei-lhe três hipóteses:
de conflitos. Pan transferiu para os EUA 14 perseguir, o que comprovaria a acusa- O presidente de Cuba se equivocou. O
Dias antes de o papa desembarcar em ção de incompatibilidade entre revo- papa surpreendeu por sua empatia com
Havana, no sábado 20/9, o cardeal Jai-
mil crianças, na esperança de lução e religião; manter indiferença, o o povo cubano, cristãos e ateus. Dis-
me Ortega teve acesso ao programa de que o socialismo cubano seria que favoreceria os contrarrevolucioná- pensou o Mercedes blindado reserva-
entrevistas de maior audiência televisi- rios que, sem poder sair da ilha, se abri- do a seus deslocamentos e, pressiona-
va no país. Quando se trata da delica- derrotado em breve e, assim, elas gariam à sombra das sacristias; dialo- do a receber os guerrilheiros das FARC
da questão de liberar presos políticos, gar, como ente político, com todas as que, sob mediação cubana, negociam
Raúl Castro recorre à mediação dele, regressariam a seus lares instituições cubanas, inclusive a Igreja em Havana um acordo de paz com o go-
gesto que comprova a admiração recí- Católica. Fidel concordou que a terceira verno colombiano, optou por incluir em
proca que os une. era mais sensata, e que a revolução pre- sua homilia, na missa na Praça da Re-
Embora tenha merecido, em prazos cisaria mudar sua atitude. volução, seu apelo pelo bom êxito das
relativamente curtos (em se tratando de Em 1961, após a derrota dos merce- negociações.
pontífices), a visita de três papas – João nários que, patrocinados pelo governo Ao escutar, na catedral, o depoimen-
Paulo II (1998), Bento XVI (2012) e, Kennedy, tentaram invadir Cuba pela As tensões entre Igreja to de uma jovem religiosa que cui-
agora, Francisco – a ilha socialista não Baía dos Porcos, Fidel declarou o cará- da de pessoas portadoras de deficiên-
abriga uma nação católica. Sua religio- ter socialista da revolução. Pressionada Católica e Revolução cias, a emoção levou Francisco a aban-
sidade lembra a nossa Bahia. Predomi- pela bipolaridade da Guerra Fria, Cuba se iniciaram quando as donar o texto escrito de sua preleção e,
na o sincretismo, que mescla cristianis- se abrigou sob as asas da União Sovié- de improviso, reforçar a opção pelos po-
mo com espiritualidades oriundas da tica. Sacerdotes fizeram correr a notí- medidas de estatização de bres da Igreja Católica e a misericórdia
África, trazidas pelos escravos que vie- cia de que a revolução enviaria à Rús- frente aos pecados alheios. Os cardeais
ram trabalhar nos engenhos de açúcar. sia milhares de crianças destinadas a, propriedades nacionais e da Cúria Romana que o acompanhavam
Calcula-se que, entre a população de longe de seus pais, serem educadas co- devem ter ficado em pânico, pois o pa-
pouco mais de 11 milhões de habitan- mo militantes comunistas. A chamada estrangeiras emitiram sinais pa, revestido de infalibilidade em ques-
tes, apenas 5% podem ser considerados Operação Peter Pan transferiu para os de que o país caminhava tões de fé e moral, não pode correr o ris-
católicos, embora seja bem maior o nú- EUA 14 mil crianças, na esperança de co de omitir uma opinião considerada
mero dos que foram batizados na Igre- que o socialismo cubano seria derrota- para o comunismo equivocada.
ja Católica. do em breve e, assim, elas regressariam
a seus lares...
Antes de Francisco embarcar
Embora tenha merecido, em prazos Mudança de rumo Em seguida, indaguei-lhe por que o
Francisco comemorou, em Havana, Estado e o Partido Comunista de Cuba em Santiago de Cuba,
relativamente curtos (em se tratando os 80 anos de relações ininterruptas en- eram confessionais. Fidel se espantou:
tre a Santa Sé e o Estado cubano. De fa- “Como confessionais?”. Fiz ver a ele que
rumo aos EUA, Raúl Castro
de pontífices), a visita de três papas – to, graças às boas relações entre Fidel tanto a afirmação da existência de Deus soprou-lhe ao ouvido que
João Paulo II (1998), Bento XVI (2012) e o núncio apostólico Cesare Zacchi, ja- quanto a negação são meras confessio-
não lhe beijaria a mão, mas
mais um sacerdote foi fuzilado ou um nalidades, e que a modernidade requer
e, agora, Francisco – a ilha socialista templo fechado. No entanto, a influ- Estado e partidos laicos.
o traria sempre no coração.
ência soviética introduziu nas escolas Aceitei o seu convite para empenhar-
não abriga uma nação católica a disciplina do “ateísmo científico”, e a -me na reaproximação entre bispos ca- Francisco retribuiu com
prática religiosa refluiu para dentro dos tólicos e dirigentes cubanos e, pouco
lares e das igrejas, com exceção da san- depois, mudanças na Constituição do igual promessa
tería, equivalente ao nosso candomblé, país e no estatuto do partido introdu-
A Revolução Cubana não se fez con- que se salvou por ser enquadrada na ca- ziram a laicidade. Em 1985, Fidel me
tra a Igreja. Fidel e Raúl estudaram, tegoria de “folclore”. concedeu a longa entrevista publicada
por longos anos, como alunos inter- sob o título Fidel e a religião (livro com No encontro com os jovens, Francis-
nos em escolas de lassalistas e jesuítas. o qual presenteou o papa Francisco, a co ouviu um deles criticar a revolução
Na missa celebrada pelo papa Francis- O papa associa devastação da ser reeditado em breve, no Brasil, pela por ver seus colegas irem de pé nos ôni-
co na Praça da Revolução, no domingo Companhia das Letras). Era a primeira bus a caminho do trabalho e da escola.
21/9, em Havana, Raúl, ao cumprimen- natureza ao crescimento da miséria vez na história que um líder comunista Com óbvia sutileza, o papa fez ver a ele
tar-me, comentou com quem o rodea- no poder falava positivamente do fenô- que, em Cuba, ao menos há ônibus e jo-
va: “Já assisti a mais missas do que Frei
e da pobreza, e aponta a ambição de meno religioso. A partir daí, como ob- vens ainda podem se dirigir ao trabalho
Betto”. Na primeira metade do século lucro e a economia de livre mercado servou um bispo cubano, decresceram e à escola. Quantos no mundo não têm
20, alunos internos de escolas católicas o medo dos cristãos e o preconceito dos nem ônibus, nem trabalho, nem escola.
eram obrigados à missa diária. como responsáveis por isso comunistas. Antes de Francisco embarcar em San-
Lina, a mãe de Fidel e Raúl, fez os fi- tiago de Cuba, rumo aos EUA, Raúl Cas-
lhos prometerem que, se sobrevivessem Francisco surpreendeu tro soprou-lhe ao ouvido que não lhe
à guerrilha de Sierra Maestra, cumpri- Raúl Castro, ao receber o papa, sabia beijaria a mão, mas o traria sempre no
riam a promessa que ela fizera à san- Os cristãos foram proibidos de exer- tratar-se de um “companheiro”. Fran- coração. Francisco retribuiu com igual
ta de que depositariam suas armas aos cer determinadas profissões, como o cisco fizera duras críticas ao capitalis- promessa.
pés da Virgem da Caridade do Cobre, magistério, e rompeu-se o diálogo en- mo, qualificado por ele de “ditadura su-
padroeira nacional, cujo santuário fica tre bispos católicos e dirigentes do país. til”, em seus encontros mundiais com Frei Betto é escritor, autor de Paraíso
próximo a Santiago de Cuba. Em minha Na década de 1970, a Revolução viu líderes de movimentos populares. Sua perdido – viagens ao mundo socialista
primeira visita à Ilha, em 1981, ali esti- abalado seu apego a preconceitos an- primeira encíclica, Louvado seja – o (Rocco), entre outros livros.
16 de 1º a 7 de outubro de 2015 internacional

Eleição catalã, passos finais


para independência? Joan Grífols/CC

ESPANHA
Processo pela
independência da
Catalunha vem ganhando
força desde o início da crise
que assolou a Espanha
nos últimos anos, com
a votação dos partidos
nacionalistas (à esquerda e
à direita) crescendo

Raphael Tsavkko Garcia


de Bilbao (Espanha)

NO DOMINGO, 27 de setembro, a Ca-


talunha deu mais um passo no caminho
da independência em uma eleição de ca-
ráter plebiscitário em que a coalizão na-
cionalista Junts pel Sí (Juntos pelo Sim)
venceu com larga margem as demais for-
ças políticas e poderá, junto com a es-
querda nacionalista das Candidaturas
de Unidade Popular (CUP), ter a maio-
ria absoluta necessária para buscar a in-
dependência ainda em 2016.
O Junts Pel Si é uma coalizão compos-
ta por duas das forças majoritárias na Catalães vão às urnas: independência vem ganhando força desde o início da crise
região, os liberais da CDC (Convergên-
cia Democrática da Catalunha), cujo lí- alguns focos de confronto o processo so- Catalunha, seu líder, Albert Rivera, é ca- Prognósticos
der Artur Mas é hoje o presidente de go- beranista na região tem corrido em geral talão. Em outras palavras, mesmo os Um governo liderado pela coalizão en-
verno, e os social-democratas do ERC de forma pacífica, com grandes mobiliza- eleitores que preferem permanecer jun- tre CDC e ERC (Junts pel Sí) deve se de-
(Esquerda Republicana da Catalunha), ções do campo nacionalista catalão e ten- tos à Espanha o fazem através de um par- senhar no horizonte com o apoio pontual
além de outros grupos menores que se tativas frustradas de reação por parte do tido catalão e não, por exemplo, do PP das CUP em busca de uma rota pela inde-
uniram depois do fim da coalizão libe- campo nacionalista espanhol. espanhol. pendência. Pontualmente, a coalizão Ca-
ral-conservadora CiU (composta por As CUP, por sua vez, aproveitam o voto talunya Sí es que pot pode dar também
CDC e os cristãos da UDC) em uma am- Votação de muitos decepcionados com a ERC que um apoio ao processo soberanista, como
pla aliança para além de fronteiras ideo- A coalizão Junts pel Sí chegou perto decidiu concorrer em conjunto com a di- a Esquerda Unida vem fazendo até este
lógicas com o objetivo único de alcançar da maioria absoluta, terminando com 62 reita triplicando seus votos, além de te- momento, pese o outro sócio da coalizão,
a independência da região frente à resis- das 68 cadeiras necessárias para a maio- rem atraído muitos votos anti-sistema e o Podemos, ser menos simpático à causa
tência espanhola.  ria absoluta que, porém, pode ser alcan- mesmo eleitores que poderia acabar vo- soberanista.
O processo pela independência da Ca- çada em conjunto com os nacionalistas tando na coalizão que une Podemos, Es- O fato é que as duas maiores forças na-
talunha vem ganhando força desde o iní- catalães das CUP que conseguira 10 ca- querda Unida (IU), Verdes e outras for- cionalistas no parlamento tem o poder,
cio da crise que assolou a Europa e de deiras. O resultado do Junts pel Sí, pese ças de esquerda não alinhadas com o na- sozinhos, de decidir  como o PSC que de-
forma dura a Espanha nos últimos anos, ser muito bom – mais que o dobro frente cionalismo catalão (mas que em geral de- fende a autonomia catalã não tem for-
com a votação dos partidos nacionalistas ao segundo colocado –, denota uma que- fendem o direito à população catalã ser ça suficiente para, dentro do parlamen-
(à esquerda e à direita) crescendo, pese da no número de votos e cadeiras no par- consultada sobre seu destino) na coalizão to, impedir a independência da região
não terem alcançado os 50% de votos ou lamento em relação à eleição anterior Catalunya Sí Que es pot ou votos de insa- da Espanha, mesmo que setores do Po-
conquistado a maioria absoluta. Fatores quando a CiU conseguiu 50 cadeiras e a tisfeitos do PSC (seção catalã do PSOE). demos na coalizão com a Esquerda Uni-
culturais, sociais, além de econômicos, ERC 21, somando os 71 cadeiras, ou seja, da se somem. Todas as fichas estão, nes-
marcam a luta catalã por sua indepen- a votação do partido foi aquém do espe- te momento, nas mãos do nacionalis-
dência, que a cada 11 de setembro (dia da rado - pese em número de votos a queda A coalizão Junts pel Sí chegou perto mo catalão e da sua capacidade de cos-
Catalunha, chamado localmente de Dia- ter sido de menos de 50 mil votos. turar acordos e de se livrar da pressão es-
da) vê milhões saírem às ruas em defe- Dois dos partidos que mais cresceram da maioria absoluta, terminando com panhola e de suas chantagens, em espe-
sa de seu direito a decidir o futuro da re- foram as já mencionadas CUP, que de 62 das 68 cadeiras necessárias para cial das ameaças explícitas feitas pelo go-
gião. Neste ano, tomaram as ruas de Bar- apenas 3 cadeiras pulam para 10, com verno de Mariano Rajoy nos últimos me-
celona mais de 1,8 milhão de pessoas em votação muito próxima a dos dois adver- a maioria absoluta que, porém, pode ses desde um foco econômico até mesmo
defesa da independência (os organizado- sários imediatamente acima, e o parti- uma não abertamente anunciada inter-
res da manifestação falam em pelo me- do de neodireita Ciudadanos-Ciutadans - ser alcançada em conjunto com os venção militar.
nos 2 milhões). Como comparação, a po- que também pode surpreender nas elei- nacionalistas catalães das CUP que Segundo Artur Mas, em caso de vitó-
pulação da cidade é de 1,6 milhão. ções espanholas do final deste ano – que ria, uma declaração de independência se-
sexta força com 9 cadeiras pulou para se- conseguira 10 cadeiras ria inevitável para 2016, mas se sabe que
gunda força e 25 cadeiras, se tornando o não é tão simples. Os próximos meses se-
Fatores culturais, sociais, principal partido de oposição. rão de intensas negociações, não apenas
A insistência das duas maiores forças com a Espanha e a União Europeia, mas
além de econômicos, nacionalistas catalãs, CDC e ERC, em se O PSC se mantém como terceira força também dentro da própria coalizão ven-
unir em uma única candidatura pese su- no parlamento catalão, porém, perde vo- cedora, extremamente heterogênea, não
marcam a luta catalã por as imensas diferenças ideológicas pode tos, enquanto a quinta força seria o es- baseada em linhas ideológicas, mas com
sua independência, que a ter contribuído para a votação menor panholista PP que pode se considerar o o único objetivo em vista: Independên-
que em eleições passadas mais do que maior perdedor das eleições, caindo e 19 cia. Esta eleição foi mais que apenas uma
cada 11 de setembro (dia um rechaço explícito à defesa da inde- para 11 cadeiras e vendo seu eleitorado eleição autonômica (ou regional), mas
pendência em si. Ainda assim é visível migrar para o Ciutadans. A coalizão Ca- um plebiscito pela independência. O que
da Catalunha, chamado que não apenas as CUP receberam par- talunya Sí que es pot entre Podemos, IU e será feito com o resultado deste plebisci-
te desses votos, mas outras forças não- outras forças de esquerda locais não con- to, porém, é uma incógnita, ainda que se-
localmente de Diada) vê -soberanistas. seguiu sequer manter a votação conse- ja possível especular. 
milhões saírem às ruas A votação somada da coalizão Junts guida na eleição anterior antes da entra-
pel Sí e CUP, é bom ter em mente, che- da do Podemos em cena (é válido notar
em defesa de seu direito a gou a pouco mais de 1.9 milhão de votos, que esta candidatura é apoiada por Ada Segundo Artur Mas, em caso de
número dentro das estimativas de pre- Colau, prefeita de Barcelona e personali-
decidir o futuro da região sentes na última Diada em Barcelona e dade de grande relevância local), o que é vitória, uma declaração de
pouco maior que o número de votos pelo um resultado decepcionante para os an- independência seria inevitável para
“sim” na consulta realizada em 2014, que seios do Podemos em vencer ou ao me-
foi de mais de 1.8 milhão de votos. nos ser capaz de influenciar os resultados 2016, mas se sabe que não é tão simples
O governo espanhol tem insistido na O Ciutadans surfa na onda do descré- das eleições espanholas do final de ano.
ilegalidade de qualquer declaração unila- dito do PP que vem perdendo votos em A participação nas eleições alcançou os
teral de independência, assim como tem toda a Espanha e chegou a perder diver- 77%, cerca de 10% a mais que nas elei-
convencido grandes empresários a ame- sas prefeituras e governos regionais pas- ções anteriores, em 2012 e a maior par- Sobre Mas e sua coalizão, recaem o me-
açar as forças nacionalistas com uma re- sadas as eleições locais de 2015. É inte- ticipação desde 1980, as primeiras elei- do de um bloqueio econômico espanhol,
tirada de seus negócios da Catalunha ca- ressante notar que pese o Ciutadans ser ções após o fim da ditadura de Francis- a saída do euro, a perda de qualidade de
so esta se torne independente, mas todas um partido pró-Espanha, ele nasceu na co Franco. vida, porém a firme vontade dos catalães
as ameaças tem esbarrado na firme von- Joan Aureli Martí/CC pode empurrar o governo a ser formado
tade do povo catalão e na resolução apa- para a independência apesar de todas as
rente de seus líderes. Em novembro do preocupações. O saldo dessa eleição é di-
ano passado uma consulta pela indepen- fícil de conceituar. Por um lado a opção
dência foi declarada ilegal pela justiça es- pela independência da Catalunha é am-
panhola, pese ter sido levada a cabo com pla e majoritária em termos de represen-
um saldo positivo para o campo sobera- tação parlamentar, ao passo que roça a
nista, mas sem o mesmo efeito de uma maioria em termo de votos, ficando na
consulta oficial. casa dos 48% da cidadania catalã. A vo-
Analistas acreditam que o líder espa- tação dos partidos contrários à indepen-
nhol Mariano Rajoy esteja preparado pa- dência fica em 39%, enquanto a votação
ra oferecer imensas concessões à Catalu- da coalizão Catalunya Si es que pot, que
nha, como ampla autonomia fiscal, pa- defende a consulta e o direito de decidir,
ra convencer as lideranças nacionalistas mas não necessariamente a independên-
a adiarem ou mesmo abandonarem seus cia, ficou abaixo dos 9%. Por outro lado,
planos soberanistas, mas pode ser tarde os resultados ficaram aquém do espera-
demais diante de uma eleição com par- do para as forças nacionalistas catalãs,
ticipação recorde de eleitores e um clima fazendo-os caminhar com cautela daqui
de decisão que se aproxima do clímax. pra frente, pese a intenção das CUP de
Durante a jornada eleitoral simpati- acelerar e mesmo radicalizar o processo.
zantes do direitista pró-Espanha PP e A alegria pela vitória do polo sobe-
do ultradireitista Vox tentaram provocar ranista foi aparentemente contida pe-
o presidente catalão Artur Mas com gri- la incapacidade de ultrapassar a barrei-
tos a favor da Espanha e bandeiras des- ra dos 50% de votos, mas o processo de
te país em um princípio de tumulto com independência parece seguir adiante.
apoiadores da independência. Apesar de A coalizão Junts pel Sí poderá, aliada à CUP, ter a maioria necessária para buscar a independência em 2016 (Opera Mundi)

Você também pode gostar