Você está na página 1de 66

UM DOSSIÊ SORRY,DARLING POPULISPRUDÊNCIA

CAMUFLADO OS ARREPENDIDOS O STF E A LEIQUE AGRADA


HISTÓRIAS SOBRE DOBREXIT AO POVO EPOCA.GLOBO.COM
O QUE PENSAM por Claudia Sarmento por Conrado Hübner Mendes N° 1035 R$15

E O QUE QUEREM CARGA TRIBUTÁRIAFEDERAL


APROXIMADAMENTE4,65%
OS MILITARES ISSN 14155494

977141554902
4

dos editores

,.,,, ,
''NAOEMAIS
A ECONOMIA,
,
ESTUPIDO''
E m 1992, James Carville, estrategista de Bill
Clinton, tornou famoso um mantra repeti -
do em campanhas presidenciais mundo afora:
pulares em casa, apesar dos bons tempos eco -
nômicos que também gerem. (Aliás, as redes
sociais vibraram com as hilárias fotos do en -
"É a economia, estúpido ". Grosseiramente, di - contro "migucho" entre Trump e Macron em
zia que os resultados da eleição presidencial es- Washington.) Todos os três são vistos como refor -
tão ligados às condições econômicas do país, al- madores econômicos que produziram resultados
go que não deve surpreender muita gente. Nas relativan1ente fortes, mas todos têm índices de
eleições presidenciais, se a economia crescer aprovação em tomo de 40 %. Não se pode com-
durante o ano eleitoral, é mais provável que o pará -los com Temer, em hipótese alguma, mas
presidente em exercício (ou o partido do gover - são vozes políticas hoje também enfraquecidas.
nante) seja reeleito. A vantagem impressionan - Isso é novo. Em gera l, os eleitores das
te concedida aos men1bros do Congresso - grandes democracias recompensavam os lí-
70 % dos que concorrem são reeleitos - com - deres por economias fortes e os puniam por
plementa a moldagem dos resultados eleitorais po lít icas que prejudicavam o crescimento.
e permite prever certa facilidade na vitória da - Agora, a ligação entre boa política e boa eco -
queles que representam o statu quo. nomia parece ter -se quebrado.
Eis que, 25 anos depois do vaticínio nada es- Um especia lista americano apontou que a
túpido de Carville, as novas configurações da exp licação para essa quebra de vincu lação tal -
economia, da política e da informação n1odifi- vez esteja no que chamou de "populismo en -
cam a interpretação automática das vincula - furecido ", construído com base na rejeição da
ções entre resultados econômicos e eleitorais. ordem estabe lecida e com um foco crescente
Após a profunda recessão em 2015 -2016, a em questões de cu ltur a e identidade nacional,
economia do Brasil voltou a crescer em 2017 em vez de resultados econômicos práticos.
(1%) e espera -se que melhore para 2,3 % em Mais pessoas consomem notícias e posta -
2018 e 2,5% em 2019, impulsionada pe lo con - gens politicamente radicalizadas, o que pode
sumo privado e por investimentos mais fortes, transformar qualquer coisa - incluindo os
de acordo com relatório recente do Fundo princípios da economia - em uma questão
Monetário Internacional. A inflação prevista partidário -eleitoral.
para 2018 (menos de 3,5% ) está próxima do É por isso que precisamos falar de Jair Bolso-
mais baixo nível da história. Nesse cenário naro , pré -candidato presidencial no topo das
que parece tranquilo, apenas 6% aprovam o pesquisas eleitorais. Nesta edição, ÉPOCA ante-
presidente Michel Temer, o governante com a cipa a seus leitores movimentos que o deputado
pior taxa no mundo, sendo mais mal avaliado federal faz para mostrar -se viável eleitoralmente.
que líd eres venezue lanos e sul-africanos, para A revista tem buscado manter sob escrutí -
citar os piores entre os piores. nio os candidatos presidenciais mais diversos
A situação de Temer pode ser relativizada na que se apresentaram até agora. Acredita ser seu
comparação com as grandes economias do papel ampliar o horizonte na encruzilhada po -
mundo. Líderes como Donald Trump nos Esta- lítica que se aproxima e o fará sem vinculações
dos Unidos, Angela Merkel na Alemanha e a nomes, projetos ou partidos, permanecendo
Emmanuel Macron na França são todos impo - em vigilância crítica a todos eles.------
6

do leitor QUEM RI POR ÚLTIMO Monica de Bolle está com toda ara -
escreva para O humorista Ary Toledo fala do zão. Não há bom popu lismo, pr in -
epoca @edglobo.com.br tempo em que se buscava graça cipa lm ente num mundo globa liza -
pelo telefone do, dentro do contexto cap it alista,
A matéria revelou dois caras de pau - no qua l os graves prob lem as de dis -
EDIÇÃ01034
o Ary, ao dizer que criou mais de 60 tribuição de r enda têm de ser enca -
mil piadas. Desafio meu amigo Ary a rados com ser ie dade e não com
EPOCA citar UMA piada que seja de sua auto - meia -sola, como pretendem os po -
ria. Nosso Disque Piadas funcionou lí t ic os demagogos que pro lif eram
LORO TALANDIA
durante quase 30 anos, veiculou pouco em nosso continente .
· · "'• ••t • -.v ••··e• •
,~.....·'·
l•.'.l· ~•'-.'
~ ..
'~•_ot'\•)
~
•·10.•
mais de 10 mil piadas e só parou por - Dirceu Luiz Natal, Rio de Janeiro, RJ
que a Telebrás n os obrigou a cobrar R$
1,20 por ligação. O outro cara de pau é 19 PERGUNTAS PARA FHC
o Eduardo Cunha, querendo me pro - Em entrevista, o ex-presidente
cessar porque eu disse que ele me pe - defendeu a presença de novas
,, •
•,,•
. ··.....
V,' ,.,, ., .. , 1.1/l.',J
;1. Y,\:1$t. i G
- . ·.·.·.c·
::,r-
' ,,, ,J
-
-

__J=ffllJ iJ!J..
diu propina. Ora, ora! Se ele está preso
justamente por cobrar propinas ...
figuras na política
FHC imprimiu pragmatismo à con -
Luiz Car los Bravo, Goiânia, GO dução da econom ia, mas quase
quebrou a in dústria. E, dentro do
LOROTALÂNDIA
,
POR
,
ONDE ANDA MACARRÃO PSDB, sua ala não é a neoliberal ,
EPOCA mostrou quem comanda e EPOCA mostrou que o ex-amigo do mas sempre dia logou bem com es -
como operam os dez principais goleiro Bruno tenta uma nova vida sa. Mas h oje, assim como o PT, seu
sites de notícias falsas, financiados O fato de o sr. ex-Macarrão ser amigo in- part id o está fadado a uma redução
até com dinheiro público separável do ex-goleiro Bruno podia le- drástica de representatividade. As
A matéria "O exército de pinóquios ", vá-lo a uma melhor condição financeira forças ascendentes da po lítica a que
que relata como agem os maiores sites de vida, como ocorreu. No entanto, nada ele se refere estão longe de sua esfe -
de notícias falsas do país, é emb lemáti - justifica o mesmo ter levado a moça Eli- ra de influência .
ca destes tempos de lor otas na comu - za para a sentença de morte. Dinheiro Tony Cleber Santos, via Facebook
~ I • •
nicação virtual. A mídia impressa tra - nao e passagem para crime, e, mmto me -
dicional, como in formam pesquisas nos, amizade é passagem para crime. É notório o valor intelectual de FH C,
nos EUA, tem função saneadora na Môn ica Delfraro David, Campinas, SP mas essa postu lação sobre "outsi -
circu lação do noticiário do cotidiano, ders " parece autoritária. Na verdade ,
comprovando ou não o que divulgam A LÚCIDA LOUCURA precisamos de um candidato under -
esses veícu los nem sempre confiáveis. Em sua coluna, Monica de Bolle ground - seguindo o glamour do
José de Anchieta Nobre de Almeida, debate o paradoxo da expressão estrangeirismo.
Rio de Janeiro, RJ "bom populismo" no mundo Manica Mendes, via Twitter
7

SUS PARA QUEM?


DIRETOR-GERAL
Frederic Zogha ib Kachar
Conrado Hübner Mendes tratou DIRETORA
EDITORIAL
Ruth de Aq uino
DIRETORA
DEMERCADO ANUNCIANTEVirginia Any
do direito ao acesso à saúde e da
ausência dele no Brasil
Dinheiro tem, é só ter uma gestão
EPOCA
DIRETORA DEREDAÇ ÃO Daniela Pinheiro MERCADO ANUNCIANT EI SEG MEN
TOS- MOBILIDADE. SERV IÇOSPÚBLIC
OSE
competente. Temos muitos excelentes epocad it@edglobo .com .br SOCIAIS,AGRONEG ÓCIOS , INDÚSTR
IA.ALIMENTOSEBEB IDAS,BELEZA,
HIGIENE
EDITOR-CHEFE Plinio Fraga PESSOA L/DOMÉSTICA I DIRETORDENEGÓC IOSMULTIPLATAFORMA Renato
exemp los de como o SUS pode funcio - EDITORESEXECUTIVOS Ma ria Fernanda Delmas (coo rdenadora), Aug usto Cassis Siniscalco I EXECUT IVOSMULTIPLATAFORMAC ristiane
Soares Nogueira , Diego Fabiano, João Carlos Meyer, Priscila
Alexandre Freeland, Chi co Amaral, Diego Escosteguy,
nar bem . Basta vontade políti ca. Fernanda G odo y, Flávia Barbosa , Letícia Sorg,
Pedro Dias Leite e Viviane Co hen
Ferreira da Silva, Rodrigo G irodo I SEGMENTOS- MERCADO
FINANCEIRO,SEGUROS.EDUCAÇÃO, I MOBILIÁRIO, CONSULTORIAS E GOVERNO SPI
DIRETORDENEGóc1os MULT
IPLA
TAFORMA Emiliano Morad Hansenn 1
Janaina Iara Marques, via Faceboo k COORDENADOR ES Guilherme Evelin, Leandro Loyola e
EXECUTIVOS
MULTIPLA TAFORMA Ana Sílvia Costa , C ristiane de Barros
Marcelo Giannini Cop po la
COLUNISTASConrado Hüb ner Men d es, Helio Guro vitz, Paggi Succi, M ilton Luiz Abrantes, Selma Teixeira da Costa 1
Mon ica de Bolle e Paulo Roberto Pires SEGMENTOS- VAREJO , TELECOM
, ELETROELETRÓNICOS, TI, TURISMO
, ESPOR~
Ariel Palacios LAZER,CULTURA, ENTRETENIMENTO, MÍDIA I GERENTE OE NEGÓCIOS
Se querem economia, tirem os privi- COLABORADOR
ÉPOCAON-LINE Liuca Yonaha (editora), lsabela Kiesel (editora MULT IPLA
TAFORMA Ci ro Hashimoto I EXEcunvosMULTIPLAT AFORMA
assistente), M urilo Ramos (editor EXPRESSO ), Marcelo Rocha Christian Lop es Hamburg , Roberto Loz Junior I SEGMENTOS - MODA.
légios do s políticos e façam os milio - e Nonato Viegas DECORAÇÃO, PUE
RICULTURA. SAÚDE E OUTROS I DIR
ETORA DE NEGÕC IOS
, . . . víoEo Pedro Schimidt I WEB DES IGNERGiovana Tarakdjian MULTIPLATAFORMA Sandra Regina de Melo Pepe I EXECUTIVAS
narios pagar mais impostos. ESTAGIÁRIOS Laila Mo uallem e Matheus Roc ha Silva MULT IPLA
TAFORMA Eliana Lima Fag undes, Fátima Regina Otta viani,
Dom inique Pietroni de Freitas, Jessica de Carval ho Dias, Lilian
Ma rche Noffs I ESC RITÓRIOSREGIONA ISI DIRETORA DENEGÓCIOS
Andersen Delano Ribeiro, via Facebook EDITOR DEART
FOTOGRAFIA
E Mateus Valadares
, EDITORAndré Sarmento MULTIPLATAFORMA Lucia na Menezes Pereira I GERENTE MULTIPLATAFORMA
SECRETA RIAEDITOR IALI COORDENADOR M arco Anton io Rangel Larissa Ortiz I UNIDADES DENEGÕC IO- RIO DEJANEJRO - GEREN TE
REVISÃOICOORD ENADORA Araci dos Reis Galvão de França MULTIPLATAFORMA Roge rio Pereira Ponce de Leon I EXECUTIVOS
REVISORES Júlia Barreto e José Figueiredo MULT IPLA
TAFORMA Daniela Nunes Lop es C hahim, Juliane Ribeiro
É o tipo de libe r alismo que não inte - CARTAS Â REOAÇÂO I EPOCA
@EDGLOBO .COM .BR Silva, Ma ria Cri stina Mac hado , Pedro Paulo Rios Vieira dos
ASSISTENTE EXECUTIVA Jaq ueline Damasceno Santos I UNIDADES DE NE GÓC IO- BRAS ÍLIA- GERENTE MULTIPLATAFORMA
ressa a nin guém, exceto à classe mé- COLABORA DORES Raul Lo ureiro (pr ojeto g ráfico e supervisão de Barbara Cos ta Freitas Silva I EXECUTIVO MULTIPLATAFORMAJorge
arte); Gustavo Ama ral e Daniel Vides Veras (desig ners) Bicalho Felix Junior I OPEC ON-LINEDanilo Panzarini, Rodr igo
dica e às empresas de saúde. Pecosch i I oPEcOFF-LIN E Ca rlos Roberto de Sá, Doug las C osta,
Bruno G ranja I EGCN- CONSU LTORA DE MARC ASOlivia Cipo lla Bolonha
REDAÇÃO I RIODEJANEIROI EPOCA@EDGLOBO.COM .BR
1 DESENVOLVIMEN TO COMERC IAL EDIGITALI DIRETORTiago Joaq uim
Jorge Bastos, via Twitter Rua Ma rqués de Po mb al, 25, 3° andar, C idade Nova,
Afonso I G.LABC aio Henrique C ap rioli, Lucas Fernandes I EVENTOS
C EP 20.230-240 - Rio de Janeiro - RJ
SUCURSAIS I BRASÍLIA
I EPOCASUC
.BSB @EDGLOBO .COM .BR Daniela Valente I PRO JETOS ESPEC IAIS Luiz Claudio dos Santos Faria,
DIRETORPaulo Celso Pereira Guilherme legawa I EST RATÉGIADIGITAL- Santiago Car rilho 1
SCN , Q uadra 5 - Bloco A, nº 50, s. 301, Brasília Shopping and DESENVOLVEDORES Alexsandro Macedo , Fab io Mar ciano, Fernando
PERSONAGEM DA SEMANA Towers, CEP 70.715-900 - Brasília- DF Raatz, Leandro Paixão, Mar den Pasinato, William Antunes 1
SÃOPAULO I SUCU
RSALSPIIEDGLOBO.COM.BR ESTRATÉGIADEcoNTEúooDIGITAL Sílvia Balieiro
Aécio Neves, único senador tucano DIRETORA Leticia Sander
Avenida Nove de Julho, 5229, 9° andar, CEP 01407-907, AUDIÊNCIAI DIRETORDEMARKETI
NGCristia no Augus to Soa res Sant os
réu no STF, vive tempos sombrios ltaim Bibi - São Paulo - SP DIRET
ORDEPLANEJAMENTO EDES
ENVOLVIMENTOCOMERCIAL Ednei Zamp ese
cooRDENADORES DEMARKET
ING Eduardo Roccat o Almeida, Patr ícia
Aécio represe nt a a velha políti ca (de Ap areci d a Fachetti

compadrio, interesse privado) . Um


"p olítico " que deve ser expulso da vi- ---•
-•'-"-
r
IV<. IPP •
~POCA É UMA PUBLICAÇÃOSEMANAL DA EDITORAGLOBOS.A. A""n ida 9 de Julho, 5229 0 1407-907São Peulo SP
Dist)"ib uido-r exclusivo para todo o Brasil Dina p - Distribuidora Nacional de Publica ções
GRAFICAPlural Indústria Gráfica lt da. Av. Marc os Penteado da Ulhoa Rodrigues, 700 06543,.-001Tamboré, São Paulo, SP

da púb lica. Enganou milhõe s de elei- O Bureau Ventas Certificat1on,.c om base nos processos e proce dimentos descritos oo seu Relatóno de Verificação, a do tando um nívet de confiança
razoáv el. dec lara que o Inventário de Gases de Efeito Estufa - no 20 12, da Editora Gk>bo S.A., é preciso, confiâve l e livre de erro ou distorçã o
tores com discur sos falsos e moralis - e é uma represen tação ~ui ta tiva dos dad o s e informações de GEEsobre o período de referência, para o esco po d efinido; foi elab orado em
oonformidade co m a NBRISO 14004.1:2007 e Espe cificações do Prog rama Brasile iro G HG Protoc ol.

tas. Prati cou a política em bene fício


próprio, vive nd o nababescamente VENDAS
CORPORATIVAS
NA INTERNET
www.assineg lobo .eom.br/sac
Para se correspon der com a Redação :
Endereçar ca.rtas ao
PARASE CORRESPONDE
COMA REDAÇÃO
R
E PARCERIAS 4003-9393 Oiret or de Reda_
ção . Endereçar j:artas ao Direto r de
conforme os áudios gravados e ex - 11 3767-7226
parcerias@edg lobo.com.br ASSINATURAS
EPOCA. Ca ixa Posta l 66260,
CEP 05315-999, São Paulo, SP
Redação, Epoca.
Caixa Postal 66260,
4003.9393 Fax: (11) 3767-7003 CEP 05315-999- São Paulo, SP.
postos pela mídia naciona l. PARAANUNCIAR www.sacg lobo.c om.br E-matl: epo ca@edgk>bo.com .br Fax: 11 3767-7003- E-mai:
epoca'@edglobo.co m.br
SÃO PAULO EDJÇ ,OES ANTERIORES As cartas devem se< encaminhadas As cartas devem ser encaminhadas
Fabio Juliano Schevinski, via Facebook (11)3736-7128 / 3767-7447
37G7-7942/ 3767-7889
O pedido será ate ndido através d o
jomaleiro ao preço da edição atual,
oom assi nat ura,,.endereço e te lefone
do remetente. t:POCA reserva-se o
co m as-sinatura endereço e telefone
do remetente. ~POCA reserva-se o
3736-7205/ 3767-7557 desde que haja disp onibilidade de direito de selecionâ-1as e resu mHas direito d a selecioná- las
estoque. Faç a seu pe dido na banca para pu blicaçã o . Só podem se r e re-sumi-~as para pu blicaçã o .
RiO DE JANEIRO ma is próxima. incluídas na e diçã o d a mesma sema na Só podem ser incluídas na edição
(21)3380-5930/ 3380-5923 as cartas que chegarem à Redação da mesma se mana as cartas q ue
LICENCIAMENTODE CONTEÚDO atê as 12 horas da q uarta-feira. chegare m à Redaçã o atê as 12 horas
BRASILIA (21) 2534-5777/ 2534-5526 / da quarta -feira.
(61)33 l 6-9584 2534-5595
venda ...c onteudo®edglobo.oom.bt
Deseja fala.rcom a Editora Globo?

' , ,;.,,

.•. '~-~e-.~...
p.~,.,, '
.,...
'
.... . ..
...
. ' .

vivo.com.br/4gmais
em sua região. Saiba mais informações em www.vivo4g .eom.br/4gmais viva ,1
1111 ©º 1IT>
...: tudo
42. OS HOMENS DA CASERNA
O QUE QUEREM
OS MILITARES
Sete temas que envolvem
e movimentam as
Forças Armadas

52 e FOTOS ÁRIDAS
DESERTOEM EXPANSÃO

sumário 30.04.18 Um ensaio sobre


as terras secas

12 e PERSONAGEM
DA SEMANA
22 . NOVILfNGUA DIPLOMÁTICA
O HOMEM -LEGENDA
JOSÉ DIRCEU Tradutor de presidente
Condenado na Lava Jato sofre, mas se diverte
passa a semana em
despedida com a certeza de 28 . 11 PERGUNTASPARA...
que será novamente preso KASSAB
em breve, sem perspectiva Como se aliar a Serra,
de saída da cadeia Dilma e Temer e não se
ruborizar por isso
16. A CONVERSÃO
O INIMIGO ALIADO 34 . CONCORDANDO
Petistas fazem périplo ao EM DISCORDAR
gabinete de Gilmar Mendes HADDAD X FAUSTO
em busca de apoio O petista Fernando Haddad
que antes imaginavam e o tucano Sergio Fausto
impensáve l endurecem o discurso, sem
perder a ternura
-,

~ ~ ~
- -\

~~
(f)
,....~
<(
::ã
~
Q. tü
u.. (!)
<(
ul Õ!
u..
u..
o
-'
-' ~
ü z
~ w
>
w
~

(f)
1r
~
:,: z
w
ü (!)

62. BREXIT
SE ARREPENDIMENTO
74 e TEMPOS INFIÉIS
NUNCA FOI
COLUNISTAS

MATASSE... TÃO FÁCIL TRAIR 32. PAULO


Eleitores arrependidos NEM TÃO DIFÍCIL ROBERTOPIRES
que votaram pela saída ESCONDER A voz do outro
do Reino Unido da União Como a tecnologia mudou
Europeia querem o casamento e aqueles que 50. MONICA
a chance de voltar atrás vivem em torno dele DEBOLLE
O libera lismo
A •

68. GENTENAS RUAS econom1co em xeque


CONTRA TUDO E
CONTRA TODOS 60. HELIO
Multidões tomam as ruas GUROVITZ
da Nicarágua, convocadas O drama do Brasil
por redes sociais e longe descrito há quatro
dos partidos políticos séculos

72. LITERATURA 82.CONRADO


CONTOS PARA HÜBNER MENDES
ASSUSTAR Populisprudência
Uma coletânea
assombrosa

o
al

9
(!)
o<(
ü
z
"'(!),;:
8z
w
~
::ã
-'
w
z
~ capa: John Spring er Co llection
-

-
-

--
13

Um dos ícones do petismo passa a semana


em despedidas acreditando que voltará
à prisão nos próximos dias, sem imaginar
que possa retornar à liberdade

A pesar de ser o anfitrião da festa, José


Dirceu estava mais calado do que de
costume. Em clima de adeus, sem discursos e
A ideia inicial era fazer um jantar para
dez pessoas no escritório do advogado Ro-
berto Podval, defensor de Dirceu, na capital
com um semblante abatido, o todo -poderoso federal. O local já funcionava como QG do
da República durante o primeiro governo petista para manter a discrição de encontros,
Lula (2003-2006) recebeu cerca de 30 convi - principalmente com senadores e deputados
dados na noite do último dia 17, uma terça - do PT e outros nomes da política que queriam
feira, no salão do restaurante Tia Zélia, um debater com Dirceu o cenário atual. No en -
dos favoritos do ex-presidente do PT em tanto, o tamanho do imóvel e a trabalheira de
Brasília. O motivo do convescote: despedir - levar panelas e acessórios de cozinha fizeram
se da liberdade. Àquela altura, Dirceu tinha com que o plano fosse abortado. Além disso,
feito suas contas: seria preso nos próximos Dirceu queria um evento maior, com as pes -
dias, já que o Tribunal Regional Federal da 4ª soas que o apoiaram neste ano de liberdade,
Região (TRF4) julgaria naquela semana seus como o advogado Carlos Almeida Castro,
embargos de declaração - um dos últimos Emídio de Souza - o tesoureiro do PT, que
recursos a que tem direito - e o mandaria veio à Brasília só para o evento -, o deputa -
de volta ao presídio no Paraná onde ficou do Odorico Monteiro (PSB-CE), o próprio
detido de agosto de 2015 a maio de 2017. advogado Roberto Podval, entre outros.
No jantar de despedida, o ex-ministro in - "Não era um dia de celebração ", limitou -
cluiu no cardápio um de seus pratos preferi - se a dizer o deputado Orlando Silva (PCdoB -
dos - rabada-, além de galinha caipira. Os SP), que passou no fim da festa para ver o
escassos brindes daquela noite, que entoavam ex-ministro. Antes de chegar ao Tia Zélia,
palavras como "por dias melhores" e "salve o Silva pretendia jantar em um restaurante a
Zé", foram feitos com caipirinha e cerveja. poucos metros dali , no mesmo bairro. Ao
Um dos melhores amigos de Dirceu , o advo - chegar, deparou com o presidente Michel Te-
gado José Oscar Pereira, conhecido por fazer mer em uma reunião com a bancada do
discursos em homenagem ao ex-ministro, MDB, numa recepção para novos filiados do
i'ü
"'
o
z preferiu o silêncio. Ao final, cada convidado partido. Soube do evento de Dirceu, deu
<
"'
w
...J
foi ao caixa e pagou a própria conta, no valor meia -volta e seguiu para lá.
::,
w
:e de cerca de R$ 50 por pessoa sem bebida. Aquele jantar marcava o fim de uma sé-
'o
õ:e "Era como se o Zé estivesse indo ao pró - rie de encontros que o ex-ministro vinha fa-
a.
a.
u. prio velório", relatou um dos presentes so - zendo para se despedir dos amigos e usar as
<
'
>-
w bre o ânimo do petista, que ficou das 20h30 horas que lhe restavam para fazer política.
"'
o
z
< à meia -noite se revezando de mesa em mesa No domingo, recebeu em casa um de seus
"'
w
...J
::,
w
em conversas que iam de amenidades, como advogados e Lédio Rosa, desembargador
:e
'
~
seus olhos roxos em decorrência de uma ci- aposentado que será candidato ao Senado
o:e rurgia plástica nas pálpebras, à prisão de Lula, pelo PT em Santa Catarina, para mais uma vez
a.
a.
u.
< que acontecera dez dias antes. despedir -se e falar sobre o contexto eleitoral
14 PERSONAGEM DA SEMANA

de 2018. Na segunda -feira, participou de aguardasse em liberdade o julgamento dos


uma plenária com o líder do Movimento recursos que sua defesa impetrou na segun -
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra da instância, Dirceu foi obrigado a levar
(MST), João Pedro Stedile, em Brasília, on - uma vida muito mais modesta do que em
de invocou os cerca de 100 militantes a ser sua última passagem pela capital federal,
implacáveis com o governo de Michel Te- quando cumpria prisão domiciliar em uma
mer e a se transformar em soldados engaja - mansão no Lago Sul devido à condenação
dos na liberdade do ex-presidente Lula. no mensalão, em 2015. A ampla casa, com
Apesar de ter proibido gravações no local, sala espaçosa, obras de arte, piscina e funcio -
• • • • - f

o petista queria garantir uma apariçao pu - nárias para servi -lo, deu lugar a um aparta -
blica em sua última semana nas ruas para mento em um bairro de classe média em
dar um recado direto ao público. Horas de- Brasília que pertence à sogra do ex-ministro,
pois , reuniu -se na casa de amigos para mãe de Simone, sua atual mulher.
mais um jantar de despedida. Apesar de ter passado lá os últimos 11
Seus filhos, neta e até Clara Becker, uma meses, o petista preferia receber só os ami -
das ex-mulheres do político e mãe do deputa - gos mais próximos e familiares. Gostava de
do Zeca Dirceu (PT-PR), estiveram em Brasí- dizer que, quando estava em casa, preferia
lia para passar as últimas horas em torno do gastar seu tempo com a filha mais nova,
patriarca. Dirceu estava certo de que, com a Maria Antônia, de 7 anos. Definido por
confirmação da condenação de 30 anos e no - quem convivia com ele como "paivô ", fazia
ve meses de prisão, viria o pedido para retor - questão de ir a festas da escola, mesmo sob
nar imediatamente para trás das grades e tem o risco de ser hostilizado, e ajudá -la com o
dúvidas de que um dia possa se livrar delas. dever de casa. Um dos poucos eventos em
Solto há quase um ano por decisão do que encheu a casa foi em 16 de março, quan -
D irc eu no di a em que foi
solt o po r decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que con - do completou 72 anos e organizou um bolo
Supremo Trib unal Fed eral cedeu a ele um habeas corpus para que com salgadinhos para os mais chegados. No
15

cerca de quatro horas e terminou com a tur -


ma fazendo fotos com Dirceu. Com frequên -
cia, o ex-ministro também recebia dos esta -
belecimentos que frequentava alguns de seus
pratos preferidos, como bacalhau.
Proibido de deixar Brasília por determi -
nação do juiz Sergio Moro, que impôs medi -
das restritivas no período em que o político
está na capital federal, o petista saiu da cida -
de poucas vezes, sendo duas para trocar a
tornozeleira eletrônica com defeito. Mesmo
dentro do perímetro determinado pela Justi-
ça, o aparelho apitava, tirando Dirceu do sé-
oa, rio. Aos amigos, falava que era desumano ter
g
(!) de fazer uma viagem de 30 horas (ida e vol -
o<(
ü ta) para arrumar o aparato. Com carro em-
z
<W
(!) prestado e o motorista Sandrão, que presta
:S serviço a ele há 20 anos, foi e voltou da capi -

gi
w
Q.
tal paranaense. Outra saída de Brasília foi
~ em julho de 2017, quando passou os últimos
:,

i dias da mãe a seu lado em Passa Quatro, Mi -


nas Gerais. Com 97 anos, dona Olga não
chegou a saber que o filho foi preso pela se-
Dirceu co m a fam ília fim de semana, ganhou uma feijoada em gunda vez no âmbito da Lava Jato.
e amig os, d epo is uma chácara nos arredores de Brasília com A agenda política também foi prioridade
de t er co nquist ado
a liberdad e. Sua vo lta direito a música, garçons e bebidas. do ex-ministro neste ano que passou na ca-
pa ra cad eia é vist a "Imaginei que não fosse carismático, que pital federal. Segundo pessoas próximas, ele
agora como def init iva não era um ser humano, mas ele quebrou isso. mantinha uma média de cinco encontros se-
Tirou foto com a gente e se servia sozinho. manais para discutir o assunto, muitas vezes
Estava bem feliz, dançando", contou o gar - em casas de amigos. Um dos principais anfi -
çom José Luis de Souza Pinto, que publicou triões das agendas do ex-ministro era o advo-
em redes sociais selfie ao lado do ex-ministro. gado José Oscar, o mesmo que gostava de
Com R$ 11 milhões em bens - com leilão discursar em torno de Dirceu. Com fre -
previsto para esta semana - e com as contas quência ele abria sua residência no Lago Sul
bloqueadas, Dirceu vive dos R$ 9.600 men - e fornecia comida e bebida para os convida -
sais de aposentadoria que recebe da Câmara dos do petista. Foi também na chácara dele
dos Deputados pelo tempo de serviço presta - que aconteceu a festa de aniversário de Si-
do à Casa. Amigos também fazem doações. mone, mulher de Dirceu, em que imagens
ÉPOCA ouviu três pessoas próximas ao ex- dela dançando com o marido foram publi -
ministro que confirmaram ajudá -lo financei - cadas em redes sociais. A conta, claro, foi
ramente, mas nenhuma quis se identificar. paga pelos amigos. Até o deputado afastado
O receio de ser hostilizado fez com que o Paulo Maluf (PP-SP) chegou a ter agenda
ex-ministro evitasse aparições em ambientes marcada com o petista, mas não puderam se
em que pudesse passar por situações cons - encontrar devido à prisão do congressista,
trangedoras. Costumava visitar amigos do - que hoje cumpre a medida em casa.
nos de restaurantes na capital federal depois Com a realidade da volta à cela de 12
que os estabelecimentos estavam fechados. metros quadrados do Complexo Médico Pe-
o
a,
o Em dezembro de 2017, compareceu com a nal (CMP), na região metropolitana de Cu -
...J
(!)
o<( mulher e a filha em uma festa de fim de ano ritiba, cada vez mais próxima, Dirceu pensa
ü
z
<W
em um desses locais, e estavam presentes em estratégias para ficar mais perto da famí -
~::; apenas os garçons. Inicialmente foi visto lia e da política. Uma delas é pedir sua
<(
...J
...J
com receio pelos funcionários, mas decidiu transferência para o presídio da Papuda, em
~
w
(!)
se sentar com eles para debater política nacio - Brasília, onde mesmo encarcerado pretende
"'
o
~ nal. O bate -papo, regado a cerveja, durou manter suas reuniões .---------
16 AMOR DEVERÃO

Gil mar Mendes durante o julgamento no STF, em 4 de abril, que negou habeas corpus para Lula. O ministro votou a favor do ex-presidente

Com Lula na cadeia, o gabinete de Gilmar Mendes,


no Supremo, virou ponto de romaria dos petistas.
Para o ministro, as chances de o ex-presidente
reconquistar a liberdade só vão aumentar quando
ele se declarar fora do páreo presidencial
por Guilherme Evelin e Catarina Alencastro
17

E m público, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo


Tribunal Federal (STF), não poupa ataques ao PT Já
responsabilizou os petistas pelo "germe ruim da violên -
De acordo com os petistas, o diálogo com o ministro do
Supremo não fica, porém, só nisso. Avança também para a
discussão de cenários sobre a libertação de Lula.
cia", pela desinstitucionalização do país, pela sindicaliza - Nas conversas, Mendes tem dito que as possibilida -
ção e excesso de poderes do Ministério Público Federal e des de o ex-presidente deixar a cadeia só vão melhorar
por más escolhas para o Supremo, baseadas em critérios quando ele se declarar fora do páreo presidencial. Com
"de ligações com os movimentos MST, LGBT, basistas". Lula fora da eleição, prevê Mendes, é possível que a pena
Nos bastidores, porém, Mendes e dirigentes do partido, do ex-presidente, condenado pelo Tribunal Regional Fe-
que no passado distribuíram uma cartilha em que acusa- deral da 4ª Região a 12 anos e um mês de detenção por
vam o ministro do Supremo de "manobras e declarações corrupção passiva e lavagem de dinheiro no caso do trí -
antipetistas incompatíveis com o recato e a imparcialidade plex do Guarujá, seja diminuída pelo Supremo. Mendes
de um juiz", estão de namoro firme. O gabinete de Men - tem alardeado sua tese de que o Supremo deve rever a
des, crítico mais veemente dos métodos da Operação Lava pena por lavagem de dinheiro aplicada a Lula, crime
Jato no Supremo, virou centro de romaria de petistas. que, na visão de alguns juristas, não estaria caracteriza -
Com o ex-presidente Lula encarcerado em Curitiba, do no caso do tríplex . "É preciso discutir se os dois cri-
Mendes, desde que mudou de opinião e passou a se mes pelos quais ele foi condenado são realmente dois
manifestar contra o cumprimento imediato de pena crimes ", disse o ministro, na terça -feira dia 24.
por condenados em segunda instância (votou a favor Os petistas têm corrido também ao gabinete de Men -
num julgamento do Supremo em 2016), tornou -se uma des para municiá -lo com informações na guerra que ele
espécie de oráculo para os petistas que querem tirar o trava com o Ministério Público Federal. No dia 11 de
ex -presidente da cadeia. Quem tem batido ponto no abril, no julgamento do pedido de habeas corpus do ex-
gabinete de Mendes , quase semanalmente, é o ex-mi - ministro Antonio Palocci, Mendes elevou suas críticas
nistro Gilberto Carvalho, uma das pessoas mais próxi - ao Ministério Público e disse que o Supremo pode se
mas ao ex-presidente. ''O Gilmar é a grande esperança tornar "cúmplice de grandes patifarias que estão a ocor -
dos petistas para o Lula ganhar a liberdade. Nos corre - rer ". "A corrupção já entrou no Ministério Público, na
dores do Supremo , ele já é conhecido como Gilmar, Lava Jato", disse Mendes. Ele citou o caso do advogado
guerreiro do povo brasileiro ", disse a ÉPOCA, em tom do marqueteiro João Santana e irmão do procurador Dio -
de troça, um ministro do tribunal. Na terça -feira dia go Castor de Mattos, Rodrigo Castor de Mattos, inte -
24, Mendes ajudou a dar uma vitória à defesa de Lula. grante da força -tarefa da Lava Jato em Curitiba. Segun -
Ele foi um dos três ministros , junto com Dias Toffoli e do disse o ministro, havia exigência por parte dos inves -
Ricardo Lewandowski, a votar, na Segunda Turma do tigadores de que vários processos passassem pelo escri -
STF, pela retirada de trechos das delações da Odebrecht tório do irmão do procurador.
dos processos sobre a reforma do sítio em Atibaia e da Uma semana depois, os deputados Wadih Damous
compra de um terreno do Instituto Lula que estão nas (PT-RJ), Paulo Pimenta (PT-RS) e Paulo Teixeira (PT-
mãos do juiz Sergio Moro, em Curitiba. Para os três SP) foram a uma audiência com Mendes para abastecê -
ministros, esses casos não têm relação com a corrupção lo de informações repassadas pelo ex-advogado da Ode -
na Petrobras investigada pela Lava Jato. brecht Rodrigo Tacla Durán, acusado pela Lava Jato de
operar propinas e um esquema de lavagem de dinheiro
egundo Mendes, suas conversas com os petistas são ins- para a empreiteira. Em depoimento à CPI da JBS, Tacla
S titucionais e tratam de soluções para o quadro, na visão Durán também fez acusações de conluio entre procura -
do ministro, de "hiperativismo " do Judiciário, que faz com dores da Lava Jato e escritórios de advocacia em Curiti -
que os juízes e o Supremo decidam muito - e frequente - ba. "Quem vai botar a boca no trombone para apurar as
mente mal -, por causa da pressão da opinião pública, e denúncias? É o Gilmar Mendes. Então, assim, nós temos
invadam áreas alheias a sua competência, como a política. que aprender a perceber o jogo de xadrez e a fazer polí -
"Ele tem sido de uma lealdade impressionante. Não se exi- tica. O Gilmar hoje é nosso aliado, amanhã volta a ser
me de criticar o PT e dá muita porrada na gente nas con- nosso inimigo, mas hoje ele é nosso aliado. E nós somos
versas. Mas ele acha que não tem cabimento o que está aliados dele", disse o deputado Wadih Damous num en -
acontecendo no Ministério Público e no próprio Supre - contro filmado com militantes do PT, um dia depois da
mo ", disse um petista que tem se encontrado com Mendes. audiência, cujo vídeo circulou via WhatsApp. Em nota,
18

a Força-Tarefa da Lava Jato disse que as declarações de


Mendes sobre Castor desbordam o "desequilíbrio"e são
baseadas em imputações falsas, já que o procurador
nunca atuou em processos ligados a João Santana. Para a
Lava Jato, Tacla Durán é um criminoso foragido - ele
está vivendo na Espanha, país onde tem cidadania -
que não apresentou provas de suas acusações e cuja pa-
lavra não merece credibilidade.

casamento de Mendes com o PT é de conveniência


O - e as duas partes sabem disso. Se os petistas veem
no ministro do Supremo um aliado precioso no momento
em que Lula está na cadeia, Mendes ganha, com o apoio
do PT, um instrumento para dar eco a suas teses garantis-
tas, que privilegiam os direitos dos cidadãos diante da
ação punitiva do Estado, hoj.e em minoria no tribunal.
Natural de Mato Grosso, fã dos empreendedores do agro-
negócio, Mendes tem aversão pelas ideias petistas - e vi-
ce-versa. "Ele merece respeito pela coragem que tem de- O ex-ministro Gilberto Carvalho, um dos mais próximos interlocutores de
monstrado nesse processo. Mas a gente lembra que ele Lula, visita Mendes semanalmente

tem uma posição política muito clara contra o PT, e ele


faz questão de repetir isso a todo momento ", disse o líder para a imprensa a história de um encontro com Lula no es-
da minoria no Senado, Humberto Costa (PT-PE). critório do ex-ministro Nelson Jobim, amigo de ambos. No
Desde o começo, a relação de Mendes com o PT é encontro, o ex-presidente o teria pressionado a trabalhar
marcada por muitos altos e baixos. Quando Mendes era pelo adiamento do julgamento por razões eleitorais -
advogado-geral da União do governo Fernando Henri - aquele ano foi de disputa de eleições municipais no país. ''É
que Cardoso e foi indicado em 2002 para o Supremo, os inconveniente julgar esse processo agora", disse Lula, segun-
então senadores petistas José Eduardo Dutra e Eduardo do Mendes. O vazamento da conversa provocou escândalo,
Suplicy estiveram na linha de frente da resistência à e Lula e Mendes se afastaram - como efeito colateral,
aprovação de seu nome pelo Senado. Quando Lula ga- houve também um rompimento da relação do ministro
nhou a Presidência pela primeira vez e Mendes já estava com Jobim, grande patrocinador da indicação de Mendes
na Corte, o advogado brasiliense Sigmaringa Seixas, para a Suprema Corte. Por causa desse episódio, os dois fi-
amigo do petista, costurou uma aproximação dos dois. caram por cinco anos sem se falar. No julgamento do men-
O argumento usado por Sigmaringa foi que Mendes, salão, Mendes foi duro na condenação dos petistas.
apesar de seu estilo tonitruante , tinha "cabeça de Estado " Em 2016, num caso em que poderia ser facilmente
e seria um aliado importante do governo quando as cau- classificado de ''hiperativismo do Judiciário ", Mendes,
sas da União fossem à votação no Supremo. em decisão liminar, suspendeu a nomeação de Lula para
Mendes passou a frequentar o Palácio da Alvorada o ministério de Dilma Rousseff, fato crucial para que o
de Lula - e as mulheres dos dois, Marisa Letícia e Guio - impeachment da ex-presidente fosse aprovado pelo Con-
mar Mendes, tornaram -se amigas. A relação sofreu um gresso. Na ocasião, o ministro enxergou na nomeação
abalo com a história, em 2008, de um grampo ilegal de uma tentativa de obstrução da Justiça e dos trabalhos do
uma conversa entre Mendes e o então senador Demóste - juiz Sergio Moro na Lava Jato. "Ele sempre foi um garan-
nes Torres (DEM-GO). O ministro atribuía o grampo, tista e muito preparado do ponto de vista jurídico. Teve
cujo áudio nunca se tornou público, a uma espionagem um hiato entre o mensalão e o impeachment da Dilma.
da Abin, no curso da Operação Satiagraha, que investi - Nesse período , ele tinha muito ódio do PT e tomou de-
gava denúncias contra o banqueiro Daniel Dantas. A cisões que nos arrebentou", disse um ex-ministro petista.
agência era comandada pelo delegado da Polícia Federal "Na época da Dilma, ele dizia: 'Fala para ela renunciar .
Paulo Lacerda. Na ocasião, Mendes conseguiu que Lula Como vocês vão terminar esse governo? Tem de mandar
entregasse a cabeça de Lacerda, exonerado da Abin e todo mundo embora '." Segundo esse ex-ministro, após o
despachado para ser adido da PF em Lisboa. impeachment , o ministro voltou ao "curso normal e a ser
Recosturada com a ajuda do então advogado-geral da o velho Gilmar". Na morte de dona Marisa Letícia, em
União, Dias Toffoli, hoje ministro do Supremo, a relação de fevereiro de 2017, ele ligou para Lula para transmitir con-
Gilmar com o Lula e o PT desandou de vez com o julga- dolênci as e passou o telefone para a mulher, Guiomar,
mento do mensalão pelo Supremo. Em 2012, Mendes vazou que falou com o ex-presidente aos prantos.
20

Com petistas a seu lado,


Gilmar Mendes ganha aliados
para intensificar a divulgação
de suas teses'' garantistas''
no Supremo

reaproximação de agora se dá num vácuo. Os petistas para a Itália, as pesquisas com células-tronco embrioná-
A acumulam decepções com os ministros indicados pa- rias e o aborto para fetos anencéfalos. O governo Dilma
ra o Supremo por Lula e Dilma. No julgamento, no dia 4 avaliou que Barroso, com sua postura, contrabalançaria
de abril, em que o Supremo selou a ida do ex-presidente o antipetismo de Gilmar Mendes no STF. De fato, Barro -
para a cadeia, cinco dos seis ministros que votaram contra so virou o grande contraponto a Mendes no Supremo,
o habeas corpus apresentado pela defesa do ex-presidente mas não do jeito que os petistas imaginavam.
foram indicados para o tribunal nas gestões petistas: Cár- Enquanto esteve no Planalto, Lula não comprou a
men Lúcia, Edson Fachin, Rosa Weber, Luiz Fux e Luís ideia das indicações de Fachin e Fux para o Supremo.
Roberto Barroso. O sexto voto contra o habeas corpus foi No caso de Fachin, estranhou as pressões do MST pela
dado por Alexandre de Moraes, indicado por Temer. indicação do advogado paranaense. "Para que o MST
O maior alvo das mágoas dos petistas é o ministro quer ter ministro no Supremo? Eu já represento os mo -
Fachin. O relator da Lava Jato chegou ao Supremo com o vimentos sociais", dizia, segundo aliados . Ministro do
apoio ostensivo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Superior Tribunal de Justiça (STJ), Fux, durante o go-
Sem Terra (MST), por quem ele declarava simpatias, e de verno Lula, fez campanha para chegar ao STF, arregi-
petistas graduados, como a presidente do partido, a sena- mentando apoios que iam do ex-ministro Delfim Netto
dora Gleisi Hoffmann, e Gilberto Carvalho, ambos para - ao MST, o que provocou estranheza em Lula. O ex-pre-
naenses como Fachin. Mas há flechas envenenadas na di- sidente se irritou com a campanha de Fux pelo Supre-
reção de todos os outros. A presidente do Supremo, mi - mo quando o viu num palanque em Nova Iguaçu, ao la-
nistra Cármen Lúcia, queixam -se os petistas, recusou-se do do então governador do Rio, Sérgio Cabral, e do ho -
a pautar as ações de constitucionalidade que poderiam je senador Lindbergh Farias (PT).
mudar a jurisprudência do tribunal sobre a prisão em se- Fachin e Fux só chegaram ao Supremo pelas mãos de
gunda instância. Além disso, demorou quase duas sema- Dilma. No caso de Fachin, depois de ele ter subido num
nas para responder a um pedido de audiência do advo- palanque para declarar apoio à reeleição da ex-presiden-
gado de Lula, o ex-ministro Sepúlveda Pertence, que deu te em 2010. Fux foi nomeado por Dilma graças ao lobby
a opinião decisiva para que ela fosse nomeada em 2006 dos ex-ministros José Dirceu e Antonio Palocci. Dirceu
pelo ex-presidente para a Suprema Corte. Na ocasião, pe - esperava que Fux o absolvesse no caso do mensalão, mas
tistas influentes defendiam outra mulher , a tributarista não foi correspondido em suas expectativas. Palocci po-
mineira Misabel Derzi, para a mesma vaga. de dizer que foi igualmente frustrado. Neste mês , Fux
Indicada para o Supremo por Dilma , com o apoio de votou para que o habeas corpus apresentado pela defesa
Carlos Araújo, ex-marido da então presidente, Rosa Weber, do ex-ministro da Fazenda para tirá-lo da cadeia em
que deu o voto decisivo para a rejeição do habeas corpus Curitiba não fosse sequer analisado pelo Supremo.
de Lula, foi a única integrante do tribunal que não rece - Como presidente, Lula dizia, em tom de brincadeira,
beu o jurista Celso Bandeira de Mello para falar sobre a que o melhor ministro que ele nomeou para o Supremo
ação de constitucionalidade preparada por ele, em nome foi o "Direitão ". Ele se referia ao ex-ministro Carlos Al-
do PCdoB, contra as prisões em segunda instância. Ale- berto Menezes Direito, que ficou no STF por menos de
gou falta de agenda. Com a mesma amargura, os petistas dois anos, mas deu votos marcantes , como a demarca -
reclamam do ministro Luís Roberto Barroso, também ção da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima.
indicado por Dilma. Pesou na indicação o fato de que Conservador, ligado à Igreja Católica, Direito chegou
ele, como advogado, assumira com coragem bandeiras ao STF em 2007 com o apoio de Jobim e Gilmar Men-
polêmicas como a defesa do italiano Cesare Battisti - des e enfrentando a oposição velada do PT. Morreu em
acusado de terrorismo - no pedido de sua extradição setembro de 2009 _______________ _
22 1,2,3,TESTANDO

(/)

"'
w
1:,
w
"'
;::,
(f)
z
"'
w
z
~
';.,
z
o
~

O intérprete Sérgio Ferreira cochicha ao ouvido do ex-presidente Lula, enquanto traduz o ex-presidente Barack Obama, em 2009, na Casa Branca.
Ferreira dominava o ;,lulês"

OS, E m um momento do encontro em Roma


em 2008 com Silvio Berlusconi, o ex-
presidente Luiz Inácio Lula da Silva segurou
INTERPRETES a gravata do italiano e ficou esfregando os
dedos polegar e indicador como se avaliasse

DO PODER a qualidade da seda. Olhando para o rosto


do primeiro-ministro, disparou: "Esse aqui
tem a cara do Collor e do Maluf juntos! ".
Berlusconi não entendeu nada . "Che cosa ha
O trabalho dos tradutores dos detto ?", indagou. O carioca Sérgio Xavier
presidentes não se limita a verter Ferreira, que estava ao lado do ex-presiden-
te, atuando como intérprete, imediatamente
palavras para outras línguas - eles, atalhou. "O presidente elogiou muito sua
muitas vezes, melhoram o script gravata", respondeu. No dia seguinte, Il Ca-
valiere mandou uma caixa com 50 gravatas
por Denise Chrispim Marin daquelas como presente para Lula.
1,2,3,TESTANDO 23

A história ilustra o papel essencial - e Corre no Itamaraty a lenda de que um jo -


nem sempre discreto - assumido pelos tradu - vem diplomata foi escolhido para servir co-
tores à medida que a diplomacia presidencial mo intérprete da rainha Elizabeth II, do Rei-
se tomou mais ativa nas ações de política ex- no Unido, durante sua visita a Brasília, em
terna. Entre os intérpretes, Sérgio Ferreira, que 1968, quando se celebrava o início da cons -
traduzia para Lula desde 1992 e era petista, tor - trução da Ponte Rio -Niterói com financia -
nou -se uma lenda porque fazia um trabalho mento britânico. Ao conduzi -la ao Hotel Na -
muito além de traduzir e interpretar o que Lu- cional , no Rolls -Royce da Presidência, o
la falava. Ferreira polia frases, sofisticava o vo- presidente Costa e Silva apontou o Teatro
cabulário, tornava compreensíveis as metáforas Nacional, obra de Oscar Niemeyer aparente -
de futebol e casamento frequentes em seus dis- mente inspirada em pirâmides pré -colombia -
cursos , assim como dava graça, em outras lín- nas, e disse ter sido o prédio construído ao
guas, às piadas de Lula, quando não as omitia , estilo grego. O tradutor, alarmado, omitiu a
como no caso da gravata de Berlusconi. avaliação arquitetônica do general. Costa e
Segundo testemunhas, Ferreira preferia Silva percebeu e insistiu: "Greek style".
fazer a interpretação simultânea, ao pé do O fim do regime militar e os primeiros
ouvido de Lula, e, depois, chegava -se ao in - anos de redemocratização não deixaram
terlocutor para fazer o caminho contrário. mais espaços para o amadorismo. Com o
Com essa técnica , economizava tempo e tor - fim da Guerra Fria, o andamento veloz da
nava a conversa entre os líderes mais dinâ - globalização e a criação de uma infinidade
mica. Como ele conhecia as expressões mais de agrupamentos de nações, a profissionali -
comuns e até frases inteiras de Lula, por zação da tradução tornou -se regra para paí -
causa do longo convívio, ia traduzindo algu - ses que, como o Brasil, tinham ambições na
mas vezes sem o esperar. "O Sérgio poderia cena internacional. Os anos 1990 marcaram
psicografar o Lula", disse um diplomata que uma mudança substancial na maneira como
acompanhou seu trabalho em muitas ocasiões. o Brasil se colocava no plano internacional,
"O Sérgio traduzia o 'lulês' como ninguém", e, de lá para cá, tradutores se tornaram tão
afirmou um colaborador de Lula no Palácio presentes no gabinete e nas comitivas do
do Planalto. "Os tradutores deram uma con - presidente quanto os chanceleres.
tribuição enorme, inestimável, ao discurso Desde 1995, com a posse de Fernando
de política externa do presidente." Henrique Cardoso no Palácio do Planalto, até
abril passado, os quatro presidentes brasilei -
ão foi sempre assim. "Não confio muito ros comandaram 449 visitas internacionais e
N em tradutores oficiais, dizia o desconfia -
do Getulio ", escreveu o biógrafo Lira Neto
receberam, no Brasil, centenas de chefes de
Estado e governo. Michel Temer deverá com -
em seu livro Getulio: do Governo Provisório à pletar a 450 ª visita ao desembarcar em Singa-
ditadura do Estado Novo (1930-1945). No dia a pura, no próximo dia 7 de maio. Só não hou -
dia, no Rio de Janeiro, Getulio Vargas recorria ve mais visitas internacionais porque Temer,
asua ftlha Alzira, fluente em inglês, para a tra - entre tantos incêndios para apagar em Brasí-
dução de reportagens e livros, assim como de lia, pouco tempo teve para despender no ex-
suas conversas com embaixadores anglófo - terior . E sua antecessora, Dilma Rousseff, ti-
nos. Em 28 de janeiro de 1943, quando rece - nha pouca disposição para se dedicar à polí -
beu em Natal, Rio Grande do Norte , o então tica externa. Esses encontros entre chefes de
presidente dos Estados Unidos, Franklin D. Estado e governo - com olho no olho, leitu -
Roosevelt, e barganhou a instalação de uma ra de expressões faciais, apertos de mãos, co-
base militar naquela ponta avançada do Nor - chichos com assessores, sinais, mensagens
deste brasileiro em troca da transferência de em voz natural - ainda não foram supera -
tecnologia para a implantação da indústria si- dos pelos engenhos do mundo virtual.
derúrgica no país, como condição para o
apoio do Brasil aos Aliados na Segunda Guer - oi nos anos 1990, com Fernando Henrique
ra Mundial, Vargas conversou com Roosevelt F Cardoso , que o Brasil deu um primeiro
em francês, língua que ambos dominavam. salto em sua exposição mundo afora, com
Apenas uma parte do diálogo se deu em in - uma política externa ativa e o início de várias
glês, com a ajuda de um intérprete. negociações comerciais. FHC fez, ao longo de
24 1,2,3,TESTANDO

seus dois mandatos, 112 visitas internacio - Sérgio Ferreira atuou em boa parte dessas
nais, o que lhe valeu o apelido de "Viajando viagens de Lula e o atendeu em inúmeras visi-
Henrique Cardoso" dado pelo programa hu - tas de chefes de Estado em Brasília e conver -
morístico de TV Casseta e Planeta. FHC en - sas telefônicas. Sempre colado no ex-presiden -
grossou o emaranhado de compromissos ex- te, era inevitável vê-lo nas fotos de capa dos
ternos na medida em que foram criadas no - jornais e imagens de televisão. Porque usava
vas alianças regionais, como o Mercosul, e barba rala, como a do chanceler Celso Amo -
pelo menos oito reuniões por diferentes afi- rim, algumas vezes foi confundido com o che-
nidades - da Cúpula das Américas à da Co - fe do Itamaraty em eventos internacionais.
munidade de Países de Língua Portuguesa Apesar da familiaridade com Lula, certa vez
(CPLP). Tantos eram esses encontros, que os engasgou quando o presidente se referiu às co-
diplomatas ironizavam faltar apenas a cria - munidades de mulheres quebradeiras de coco
ção da cúpula dos países cujos nomes come - de babaçu para uma plateia de empresários es-
çavam com a letra "b". E citavam: "Brasil, trangeiros. Rapidamente, encontrou uma versão
Bélgica, Burkina Faso, Benim, Bulgária ...". adequada em inglês: "coconut cracking women".
Fernando Henrique Cardoso incorria no Lula percebia seu esforço. Em um jantar ofi-
risco de dispensar intérpretes para francês, cial, enquanto falava com um chefe de Esta -
espanhol e inglês - línguas que ele domina - do, picou o pão em pedacinhos, passou man -
va, mesmo com forte sotaque. Ele ainda ar - teiga em cada porção e as deu a Ferreira, uma
ranhava algumas frases em italiano e ale - a uma, como se fosse seu canário do reino.
mão. Seus diálogos com o americano Bill Ferreira chegou ao Palácio do Planalto de
Clinton, o britânico Tony Blair, o francês "salto alto", lembram funcionários do gabinete
Jacques Chirac e o argentino Carlos Menem presidencial daquela época. Assinara um con-
costumavam ser fluidos, sem a presença de trato como assessor especial do gabinete da
intérpretes. Na maioria das vezes, FHC se- Presidência, cargo de confiança para o qual es-
guia o discurso cuidadosamente preparado tava prevista a remuneração como DAS-5, o se-
por sua assessoria internacional, ao contrá - gundo patamar n1ais alto. Estava orgulhoso dis-
rio de Lula, que adorava improvisar. so. Tanto que passou a corrigir os demais servi-
FHC falava com a bagagem de acadêmi - dores quando era chamado de "tradutor ". Sar-
co que se debruçara por décadas nos estudos cásticos por natureza , os diplomatas passaram
de ciências sociais. Mas isso não lhe evitava a referir-se a ele, as suas costas, como "DAS-5".
problemas. Em seu primeiro encontro com Na primeira participação de Lula na
George W. Bush no Salão Oval da Casa abertura da Assembleia Geral das Nações
Branca, em março de 2001, chegou a tirar os Unidas, que o Planalto demorara a confir -
óculos para cumprir sua promessa à im - mar, Ferreira brigou com o chefe do cerimo -
prensa brasileira de "falar olhando nos nial da Presidência, o embaixador Paulo Cé -
olhos" com o líder americano. A atitude - e sar Oliveira, no lobby do Waldorf Astoria,
a posterior conversa, sem tradutor - não porque fora hospedado em um hotel vizi -
ajudou a melhorar as relações bilaterais e nho. Com o passar dos tempos , Ferreira per -
deixou no ar uma antipatia mútua. A pro - cebeu que sua condição de "assessor especial
metida entrevista à imprensa no Jardim das da Presidência" o impedia de fazer outros
Rosas, como ocorrera anos antes em sua vi- trabalhos de tradução e diminuia sua renda.
sita a Clinton, foi cancelada na última hora. Depois de dois anos, passou a assinar
contratos de prestação de serviço com o Ita -
ula acentuou o ativismo_ brasileiro no maraty para cada trabalho com Lula, por
L campo político externo. A maioria dos meio de sua empresa Global Multilingue, o
compromissos que sobreviveu do período que também facilitou a contratação de tra -
FHC, somaram -se pelo menos mais 11 - dutores de idiomas que não dominava. Para
dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e Áfri - as viagens de Lula à Rússia e países da ex-
ca do Sul) à Diáspora Africana. No caso de URSS, a firma contratava Luiz Carlos Pres -
Lula, incluindo suas frequentes visitas bila - tes Filho, filho do "Cavaleiro da Esperança".
terais, registrou -se um total de 246 viagens Ferreira tentou salvar Lula de várias gafes.
internacionais ao longo de seus oito anos de Algumas vezes, não conseguiu. Em novembro
governo - mais do que o dobro de FHC . de 2003, em visita oficial à Narmbia , o então
1,2,3,TESTANDO 25

Por mais que o PT disparasse discursos


contra os Estados Unidos, Lula se deu muito
bem com Bush desde o primeiro encontro co-
mo presidente eleito, no fim de 2002. Sérgio
Ferreira teve sua cota de participação nesse
sucesso, a ponto de Bush elogiá-lo publica -
mente. Percebendo que o tradutor da Casa
Branca estava enferrujado, depois de oito
anos de conversa direta entre Clinton e FHC,
Ferreira dominou a interpretação dos dois la-
dos. "Lula estava nervosíssimo antes do en-
contro com Bush. Mas essa comunicação
mais ágil ajudou a quebrar o gelo", afirmou
uma testemunha da conversa no Salão Oval.
Depois disso, sempre que se encontravam,
Bush e Lula pareciam velhos amigos.
Dilma Rousseff manteve as linhas gerais da
política externa de Lula, mas foi muito menos
ativa e engajada na diplomacia presidencial.
Ela nutria uma antipatia atávica pelo Itama -
, . .- .
raty e seus temas e, em varias ocas1oes, quei -
O presid ent e M ic hel Temer presidente afirmou em discurso que estava xou -se da presença rara de técnicos entre os
usa um fone de o uvido
surpreso "porque quem chega a Windhoek diplomatas. Em público, parecia rosnar para
pa ra t raduç ão da conv ersa
co m o presid ente da não parece estar num país africano. Poucas ci- seus chanceleres - todos os três, diplomatas
Ch ina, Xi Jinp ing, em dades do mundo são limpas e bonitas (como de carreira. Dilma limitou -se a levar adiante,
enco ntr o em Pequ im. No esta)". Ferreira interrompeu o raciocínio do em câmbio automático, a política externa.
ano passado , Temer foi o
único d e q uatro presidente, dando -lhe uma chance de refazer Nos bastidores das reuniões de cúpula,
p residen te s a frase controversa, e disse que não o estava ela quase desaparecia em um canto, evitan -
lat ino -amer ic anos a usar
entendendo. Lula retomou: "A visão que se do misturar -se às rodas de conversas dos
fon e de ouvido em
conv ersa com o presid ente tem da África é de que são todos pobres ". O chefes de Estado e ministros. Cada agenda
americano Dona ldTr um p, tradutor omitiu o que Lula dissera sobre externa, como um encontro de cúpula ou a
em Nova York
Wmdhoek ser uma capital limpa, apesar de posse de um presidente latino-americano,
africana e pobre. Somente os brasileiros en- tornava -se razão de estresse para seus asses -
tenderam o deslize. Lula costumava chamar sores e de aborrecimento para ela .
Ferreira de "meu dublê" e o salvava com fre - Ela herdou também uma parte dos traduto -
quência dos seguranças estrangeiros que, qua- res de Lula, ao tomar posse em 2011. Desenten -
se sempre, barravam a passagem do tradutor. deu-se com a maioria deles e acabou formando
seu próprio time de profissionais. Entre eles,
' s vezes, a carga de humor de Lula tam - contratou a mexicana Cynthia García, para o
A bén1 se perdia na tradução. Em 2007, du - espanhol e o italiano, e Paulo Liégio, para o in-
rante uma coletiva de imprensa ao lado de glês. A presidente entendia razoavelmente as
George W Bush, em São Paulo, Lula descon - conversas em inglês e espanhol e, segundo seus
traiu -se suficientemente para dizer que o colaboradores, falava bem o francês.
chanceler Celso Amorim e a secretária de Es- Quando auxiliada por um intérprete, po -
tado Condoleezza Rice deveriam ser tranca - rém, gostava de mostrar seus dotes linguísti -
dos em uma sala até atingiren1 o "ponto G" cos para o interlocutor ao corrigir algumas
~ da negociação da Área de Livre-Comércio das palavras traduzidas. Foi o que aconteceu no
<(
>
o Américas (Alca). O tradutor verteu a expres - Salão Oval em 2011, quando Dilma decidiu
5
:e
a.
..J
são para "dot G", que nada tinha a ver com a dar uma longa bronca em Obama por causa
o
oa. conotação erótica dada por Lula que , em in - da política monetária americana - conduzida
az
~
glês, seria "G spot ". Enquanto os jornalistas pelo Federal Reserve, um dos raros bancos
N
o
~
brasileiros e o próprio Lula riam, Bush e a de- centrais independentes no mundo, e não pela
z
..J
o legação americana só entenderam a piada Casa Branca. A cada passo da tradução conse -
oz cutiva, Dilma consertava o texto. "O tradutor
mais tarde, quando propriamente traduzida.
26

~
-
,r
1 ••

(/)
w
~

"'
::;;

E
~
§a.
D ilma em uma sess ão a::
w
ü
da ONU em 2016. Ela fa la z
w
po rtunhol flue nte ®;

era sempre vigiado por ela. Mas, às vezes, ral das Nações Unidas, e Trump aproveitou a
ela pedia a tradução de perguntas para ga- ocasião para expressar diretamente suas crí -
nhar tempo e pensar nas respostas", disse ticas ao regime de Nicolás Maduro, da Vene-
um ex-colaborador direto da presidente. zuela, durante o jantar. O americano, que
Dilma virava-se também por sua conta e nada fala além de um inglês repleto de adje -
risco em algumas situações. Quando Evo Mo- tivos, pronunciou "Madero" em vez de "Ma -
rales, presidente da Bolívia, deixou um encon - duro ". Todos fizeram de conta que não nota -
tro com Dilma Rousseff no Palácio do Planal- ram. Temer, cuja assessoria diz que ele en -
to, em fevereiro de 2016, não conseguia escon- tende inglês , não se atreve a um diálogo em
der o fato de que não entendera uma palavra outro idioma sem ajuda profissional. E, ao
do que ela dissera. Para aquela reunião am - contrário de Lula, jamais sai do texto previa -
pliada, com ministros de lado a lado, a então mente redigido por sua assessoria.
presidente do Brasil cometera um erro fatal A antiga expressão italiana "traduttore,
na diplomacia: dispensara os intérpretes. Mo - traditore" não se aplica aos intérpretes. Teste-
rales, cuja língua materna é o aimará e não o munhas de conversas reservadas, como as
espanhol, olhava para seu chanceler com ares que se dão entre chefes de Estado, eles estão
de desespero, segundo assessores presentes, sujeitos a cláusulas contratuais de confiden -
enquanto Dilma falava em "portunhol ". cialidade ou a compromissos de fidelidade
Em setembro do ano passado, em Nova que vão além da prestação de serviços.
York, apenas um dos quatro líderes latino - Procurado por ÉPOCA, Sérgio Ferreira
americanos convidados para um jantar ofere - não quis dar entrevista. "No nosso meio pro -
cido por Donald Trump não se constrangeu fissional, temos um código de ética rigoroso
em colocar o fone de ouvido para acompa - que, entre tantas regras, inclui o sigilo sobre o
nhar a conversa à mesa: o presidente Michel que é dito em reuniões, conversas, conferências
Temer. Na outra ponta do aparelho estava seu etc. em que participamos ", respondeu o tradu -
intérprete para o inglês. Minutos antes, Te- tor, por e-mail. "O mesmo se aplica a quem
mer, ainda sem o fone, apenas trocou sorrisos trabalha com segurança, com psiquiatria, ou
com Trump ao apertar sua mão e esquivou até mesmo os padres, que guardam segredo
de emitir palavra audível. Ambos imediata - sobre as confissões que ouvem ", completou.
mente preferiram posar para as câmeras. Também consultado, Paulo Liégio, que atuou
Fluentes ou não no idioma da casa, os como intérprete para francês e espanhol para
presidentes da Colômbia, Juan Manuel San - Lula e Dilma Rousseff e ainda trabalha para
tos, do Panamá, Juan Carlos Varela, e do Pe- Michel Temer, preferiu igualmente o silêncio.
ru, Pedro Pablo Kuczinski, que renunciou "Eu ouço, tr ad uzo, me calo e esqueço ", escu-
em março passado, dispensaram o artifício. sou-se, pouco antes de embarcar para Lima na
Os cinco líderes estavam em Nova York para condição de intérprete de Temer na Cúpula
a abertura dos trabalhos da Assembleia Ge- das Américas, em abril passado.------
28 11 PERGUNTASPARA

11 PERGUNTASPARA

Fundador do PSD, Gilberto Kassab conta como conseguiu ser aliado de Serra, Dilma e Temer sem se comprometer com ninguém
11 PERGUNTASPARA 29

Fundador do PSD, Gilberto Kassab, de 57 anos,


é dono do maior ministério do governo Temer -
ao menos no nome. Ocupa a pasta da Ciência,
Tecnologia, Inovações e Comunicações.
Nas próximas eleições, ele vai de Alckmin
em vez de Temer
Por Letícia Sander

1. Qual a diferença em servir três líderes tão antagônicos


como Serra, Dilma e Temer?
Não foi servir essas pessoas, foi servir o país. No caso do Serra, foi ser -
vir a cidade, foi servir o estado. A questão é você fazer entendimentos,

2. alianças, e não servir.


O senhor já foi ministro de vários governos. Em 2018,
o senhor espera ser ministro de quem?
Não tenho a menor preocupação em ocupar algum cargo púb lico. Eu
gosto da vida pública, faço por vocação e, qualquer que seja a posição
do partido que seja definida para eu ocupar, vou ocupar com a maior

3. satisfação.
Em 2011, o senhor disse que o PSD não era um partido
de esquerda nem de centro nem de direita. E hoje?
Parece brincadeira, mas essa frase é atribu ída a "n" líderes políticos, em
vários cantos do mundo, nos dias de hoje. Naquele momento , a frase
tinha como tradução que o partido não estava pronto. Estavam vindo
líderes de todos os cantos do país e estávamos construindo nosso pro -
grama. Eu defendia que o partido fosse de centro, mas havia alguns que
defendiam que fosse de centro -esquerda, centro -direita. Portanto, ain -
da não havia uma definição. Hoje, passados alguns anos, o mundo tra -
balha cada vez mais para identificar os partidos como o da eficiência, da
não eficiência, da transparência, da não transparência. Mudaram um

4. pouco as bandeiras e as avaliações em relação aos partidos.


Onde o senhor quer ver Michel Temer
em 1º de janeiro de 2019?
Olh a, espero que ele tenha feito o melhor governo possíve l e que ele
possa ... Evidentemente, sou ministro e tenho de entender que ele pode
ser candidato a presidente. Ele tem , portanto, o direito de escolher seu

5. caminho. E que ele seja feliz no caminho que escolh er.


Faça uma aposta nomeando alguém
para 2018 e justifique.
Acredito que o Geraldo Alckmin tem todas as condições para se eleger
presidente da República.
30 11 PERGUNTASPARA

6. O PSD apoia Alckmin?


Sou presidente nacional do PSD. Licenciado, mas sou o presidente na-
cional . Sou também ministro do preside nt e Temer, portanto, qual -
quer manifestação minha tem de ser feita com muito cuid ado. Primei-
ro , preciso mostrar respeito a um presidente que poderá eventua l-
mente ser candidato, e não posso aqui dizer que ele não tem esse direi-
to. Em relação ao governador Geraldo Alckmi n , o que tenho dito é
que existe um sentim ento majoritário no partido de entend er que ele
tem as qualidades para ser presidente. Em relação a meu partido, nes-
te momento em que as consu ltas não acabaram, me manifestar ser ia
indevido. Nós temos uma pessoa que se apresen ta como pré -candida -
ta e tem todo o direito (de fazê-lo), que é o Afif, e temos as consu lt as
que estão sendo feitas. No enta nto , se eu não disser que existe um fa-
voritismo em relação ao Alckmin, estarei faltando com a verd ade aos

7. companheiros que estão send o cons ult ados.


Onde o senhor quer ver o Lula em 1º de janeiro de 2019?
Eu quero ver o país pacificado. Que a gente possa, até o fim deste ano e
o início do ano que vem, ter todas as no ssas divergências dissipadas e o
país, em especia l os partidos po líticos, com mais paz, para que possa -
mos con struir um Brasil mais preocupado com po líticas públicas e
não este Fla-Flu que tem hoje, de quem é melhor, quem é pior, quem

8. fez malfeitos, quem não fez.


Alvos da Lava Jato não deveriam estar fora ou longe da política?
Os condenados. Quem não foi condenado tem todo o direito de se
defender.
9. O senhor acha correto João Daria (PSDB) ter deixado a prefeitura de São
Paulo para concorrer ao governo, apesar de ter prometido que não o faria?
O Doria foi um bom prefeito à frente da cidade de São Paulo. Em seus
15 meses de gestão, ele deixou boas políticas públicas. Hoje, ele pode
dizer: "Eu fiz uma boa gestão em 15 meses da prefeitura de São Paulo ".
E as pessoas que o defendem e defendem sua cand idatura, como eu,

10. podem dizer que ele já passou como gestor.


Qual foi a última pessoa que o senhor bloqueou no WhatsApp?
Não bloqueio (risos).
11. Qual foi a pessoa mais chata que o senhor conheceu recentemente?
Nossa Senhora ...---------------------

Kassab co m Serra, em
cam panha pela pref eitura
de São Paulo ; líder do PSD
nasc eu d a cos tela do líde r
tuca no, à époc a p refei to
da cid ade
32

• • • prpires@edglobo.com.br

PAULOROBERTOPIRESÉJORNALISTAE A VOZ DO OUTRO


PROFESSORDECOMUNICAÇÃO DA UFRJ

Q uarenta e três anos separam a publicação de "O


outro", de Rubem Fonseca, e "Espiral", de Geova -
ni Martins. A seiva de raiva e rancor que irriga e ali-
Percebe ter ido lon ge demais quando , assim como o pe-
dinte de "O outro ", encurrala seu alvo na porta de casa.
Mas, diferentemente do personagem de Rubem Fonseca,
menta as fronteiras entre ricos e pobres no Brasil conti- o narrador de "Espiral" sabe bem o que está fazendo .
nua, no entanto, a correr acelerada entre os dois contos Para o executivo de Fonseca, Casa-grande & senzala é
ambientados no Rio de Janeiro . o Livro do Gênesis, a cena primordial do país em que vive
Os protagonistas de "O outro" e "Espiral" não têm no - e que nas condições fundadoras deve ser mantido , à custa
me. São definidos por seu lugar na cidade: o primeiro, um do que for preciso. Já o protagonista de Geovani é o evan-
executivo estressado que vive para o trabalho e, entre ca- gelista da insubmissão, incansável na luta para desnaturali -
sa, carro e escritório, pouco anda na rua; o segundo, um zar o preconceito e a violência de classe simplesmente por
adolescente que circula a pé e de ônibus entre a Gávea, se fazer presente. A intimidação silenciosa e ambígua dos
bairro de classe média alta onde estuda numa escola pú- passantes é a estratégia mais potente para se dar a ver e,
blica, e a Rocinha, sobressaltada comunidade onde vive. também , para expor o preconceito e a violência do outro.
O executivo de Rubem Fonseca tem medo, o menino Rubem Fonseca tem 92 anos, Geovani Martins, 26. Os
de Geovani Martins, também. O executivo tem medo de dois estrearam com notáveis livros de contos - Os prisio-
gente como o menino. O menino tem medo de quem , neiros é de 1963 e O sol na cabeça, em que figura "Espi-
como o executivo, olha para ele com medo . O medo é ral", foi lan çado no início deste ano. Um e outro repre -
pai da raiva; a raiva , mãe da covardia, como lembra Chi- sentam, em seus respe ctivos momentos , significati vas
co Buarque em "As caravanas". É nesse fogo, nada bran - ruptura s. Fonseca inau gurou e tornou -se mestre no retra -
do, que o Rio ferve há pelo menos quatro décadas. to , com palheta sórdido -sublime, da brutalidade das
No conto de Rubem Fonseca - publicado em Feliz "gentes de bem " e da poe sia do marginal ; Geovani marca
ano novo em 1975 e censurado pela ditadura um ano de - sua diferença em relação às muitas levas de vozes da peri-
pois - um homem pobre sai da invisibilidade ao inter- feria por distan ciar-se da posição de testemunha pitore sca
pelar o executivo: "Doutor, doutor, será que o senhor pelo manejo sofisticado de técnicas literárias. Seu valor e
podia me ajudar?". Coração na bo ca, sentindo -se amea- importância vão, no entanto, além de questões formais.
çado, ele responde estendendo "uns trocados ". Dali para
a frente, sucessivos pedidos de ajuda lhe parecem em- A vitimização e a denúncia
boscadas. "Súplice e ameaçador", o pedinte é, a seus
olhos, um inimi go. Adversário que , um dia , flagra na
passam longe de O sol na cabeça,
porta de sua casa. É ali, no limiar de seu território , de que tampouco joga isca para
sua propriedade, que decide dar fim de uma vez por to - discursos populistas.
das ao "outro " que tanto o atormentava.
O personagem de Geovani Martins se "assustava com Seus personagens são afirmativos e, da forma que são
o susto " de quem o via como "a ameaça". Prendia o cho - construídos, invi abilizam leituras paternalistas. São vi -
ro, humilhado, até perceber que o jogo nem sempre estava das vividas na dissonân cia radical , muitas vezes terna e
jogado. Passaria ele mesmo a ameaçar, com sua ostensiva delicada, de padrões excludentes. Ler Geovani Martins
presença, os meninos do colégio particular caríssimo ou a no espelho de Rubem Fonseca é encarar de frente "o ou-
senhora que poderia ser sua avó e, ao percebê -lo, agarra - tro ", que de exterminado nos anos 1970 vira hoje prota-
va-se à bolsa. Com o tempo, concentra -se num único ho - goni sta e narrador. E o faz de igual para igual, olhando
mem , Mário, a quem assombra com zelo de especialista. no olho. Pelo menos na literatura _________ _
34 CONCORDAMOS EM DISCORDAR

O petista Fernando Haddad


e o tucano Sergio Fausto endurecem
o discurso, mas não perdem
a ternura ao responder às mesmas
perguntas sobre políticos e política
por Letícia Sander e Sérgio Roxo

FERNANDO HADDAD, 55 anos SERGIO FAUSTO, 55 anos


Graduado em Direito, mestrado em economia Cientista político e superintendente do Instituto
e doutorado em filosofia Fernando Henrique Cardoso
Foi prefeito de São Paulo (2013 - 2017) e é coordenador Foi assessor do Ministério da Fazenda, do Ministério
da candidatura a presidente da República do PT do Desenvolvimento e Comércio Exterior
e do Ministério do Planejamento entre 1995 e 2002
CO NCORDAMOS EM DISCORDAR 35

A desmoralização da política hoje é culpa de quem?


FERNANDO HADDAD Acredito que da classe po lítica, em primeiro lugar, porque havia a
compreensão de que a reforma política era imperativa para sanear, sobretudo, o processo de
financiamento das campanhas. E hoje há o reverso dessa moeda, que é uma campanha puni -
tivista que coloca em risco algumas garantias const itu cionais importantes, mas se explica em
função dessa falta de iniciativa da classe política.
SERGIO FAUSTO Acho que o PT tem uma grande responsabilidade nessa conta, nessa
apuração, porque é o partido que se apoderou da bandeira da ética, que elevou mais alto a
expectativa de uma po lítica feita com honestidade, em nome dos interesses do povo e não da
elite. Na prática, foi muito diferente disso. Agora, dizer que o PT é o úni co culpado pela
desmoralização da po lítica não é razoável. Acho que, gostemos ou não , todos aque les que
tiveram protagonismo, responsabi lidade política, no Brasil nos últimos 30 anos têm sua par -
cela de contribuição para a construção de um sistema po lítico que foi financiado de uma
maneira que, quando revelada, criou a repulsa da sociedade.

O que é pior: corromper deliberadamente ou governar cego à corrupção?


FH É uma falsa escolha. Até porque a menos grave leva à mais grave necessariamente, é uma ques-
tão de tempo. A forn1a correta de governar é ser impiedoso com práticas ilegais. Montar todos os
mecanismos necessários para impedir que a corrupção corroa os processos internos ao Estado.
SF Acho que a consequê n cia é igual. Do ponto de vista moral, corromper ativamente é pior,
sobretudo porque quem corrompe tendo o poder tem uma capacidade de dano à coisa pú -
blica muito grande. Agora, é dever de todo governante não roubar e não deixar roubar.
o
ai
g Aécio réu, Serra investigado, Alckmin patinando nas pesquisas. O que aconteceu
(!)
o
<
ü
com o PSDB?
z
"' FH O PSDB vive uma crise de identidade há muito tempo . O governo Lula desconcertou o
~ PSDB do po nto de vista dE sua localização no espectro ideológico, que começou a cometer
~
z
ff, muitos erros em função desse processo, não sabia se mantinha -se no ideário socia l-democra -
oz
~
ta, se fazia concessões ao ideário até de extrema -direita, como discutir temas como a maiori -
ai

"'
w dade penal, a questão da mulher, a internação compu lsória, o combate à homofobia e direi -
o
w
z tos reprodutivos. Uma série de questões em que o PSDB efetivame nt e se perdeu. O sucesso
j
ü do Lula desnorteou o PSDB. Ele vem assim há muito tempo. E agora há essa onda moralista
que o impede de reconhecer que o prob lema era estrutura l e sistêmico de fin anciamento da
política. Havia muitas fissuras no processo que permitiam que pessoas sem nenhuma honra
se aproveitassem disso para enriquecer, inclusive pessoa lm ente.
SF O PSDB tem vários problemas que se acumularam ao longo do tempo. E foi atingido por
esse processo de desmoralização da política. Figuras importantes do partido, não quero indivi -
dualizar ... Acho que são casos diferentes, cabe à Justiça apurar e determinar as culpas individuais.
Agora, é in evitáve l a constatação de que o partido foi afetado fortemente pela Lava Jato.
36

Dilma alvo de impeachment, Lula na cadeia. O que aconteceu com o PT? Fernando Haddad
FHO PT, tanto quanto o PSDB, deixou de levar a cabo a reforma política. Não percebeu que afirma que o PT ficou
vulnerável ao não
isso era uma enorme vulnerabi lid ade. E, se aqu ilo era perdoáve l em partidos de centro-direi- realizar a reforma
ta, numa estrutura tão arcaica, não iria ser perdoado da parte de um partido de centro-es- política e por não
querda. O maior problema do PT foi não ter feito a reforma po lítica para isolar o púb lico do conseguir isolar o
público do privado
privado, que é um prob lema histórico do Brasil. quando governava
SF O PT se perdeu no meio do caminho. Acho que o PT fez um movimento interessante a partir
de meados dos anos 1990. Ele era um partido que carregava ainda marcas do sectarismo da es-
querda, tanto do ponto de vista programático quanto do ponto de vista de alianças e de entendi-
mento do que é o jogo na democracia representativa. Acho que foi positivo o fato de que o PT
passou a ocupar posições de governo, de início no nível municipal. Isso representou um amadure-
cimento do partido. O partido que desempenha funções de governo amadurece e o PT an1adure-
ceu. Agora, o PT não apenas se adaptou ao modus operandi tradicional da política brasileira co-
mo ele mudou a natureza desse modus operandi. E, portanto, organizou sistemas de corrupção
com uma escala e uma organicidade que nenhum outro partido jamais havia organizado no país.

O Brasil sairá melhor ou pior das eleições de 2018?


FH Há um grau de indeterminação muito grande na eleição deste ano porque, na verdade,
todo mundo quer que novas pessoas entrem na política, mas é verdade também que nós
queremos que esses novos atores respeitem os filtros da democracia moderna. Porque o bo -
napartismo, o populismo de direita ou de esquerda, são fenômenos conhecidos das demo -
cracias contemporâneas que trazem efeitos muito deletérios para o funcionamento das insti -
tuições. A combinação entre o novo e esses mecanismos de contro le social e institucional é
uma combinação virtuosa, que não está presente na democracia brasileira atua l porque as
instituições estão em franga lhos. Estamos vivendo uma crise institucional.
SF Depende do resultado. (risos)

O presidente Michel Temer entrará para a história como ...?


FH Ficou muito patente o papel que ele exerceu no processo: um vice que articulou a depo -
sição do titular. Isso não tem como ser um quadro edificante. E abraçando um programa
que não tinha passado pe lo crivo do eleitor.
SF Põe aí "longo silêncio, longo silêncio" (risos).Acho que é um governo partido, esquizofrênico, (/)

"'
~
::,
que tem duas metades que não se conversam e acho que isso se reflete, inclusive, no fato de que o w
"'
o
governo produziu algumas conquistas importantes e palpáveis do ponto de vista da população. ,-
~
Inflação muito mais baixa, juros nominais e reais em níveis recordes para baixo no Brasil, sem (f)
<(
z
w
que isso resulte em nenhum aumento da popularidade do governo. Acho que isso reflete o fato a,
o
o
de que a população não confia no governo Temer, porque ela olha para o governo e vê o emblema "'
<(
z
@
de práticas políticas que são hoje altamente condenadas pela sociedade brasileira . ...J
CONCORDAMOS EM DISCORDAR 37

A Lava Jato mudou o Brasil?


FH Não é possíve l não ver aspectos positivos. Agora tem um aprendizado a ser feito com a
Lava Jato do ponto de vista institucional. Entendo que, se fosse possíve l voltar no tempo,
muitas questões teriam sido encaminhadas de maneira mais cuidadosa, as delações, os acor -
dos de leniência, a preservação dos empregos, a não preservação do patrimônio dos delato -
res. No fundo, no fundo, o país pagou um preço mais caro do que os corruptores. Na questão
da política, vai depender das reformas que o próximo governo fará. O que aconteceu não é o
suficiente, de maneira nenhuma, para garantir o bom funcionamento das instituições.
SF Está mudando, está mudando. Acho que isso é inequívoco e acho que não é possíve l, no
Brasil, ser progressista no sentido de avaliar que uma sociedade decente é uma sociedade em
que há igualdade pera nte a lei, há maior respeito à coisa púb lica, que vale a regra gera l e não
o privilégio particular a este ou aque le ... Quem acredita nisso tem de olhar para a Lava Jato,
a despeito de um excesso aqui ou outro que deve ser discutido , deve ser contido ... Quem
olhar para a Lava Jato dizendo que tem esses princípios não pode olh ar para a Lava Jato com
olho s de quem denuncia uma perseguição po lítica. É hipócrita fazer isso, é inteiramente in -
consistente com valores que acho que são valores democráticos e repub licanos.

Como define o juiz Sergio Moro?


FH O Sergio Moro? Um quadro político.
SF Tenho uma extraordinária admiração pelo Sergio Moro. Acho que ele honra a magistra -
tura brasileira e acho que é inteiramente indevida a acusação de seletividade. As pessoas
esquecem que ele é o juiz que julga o caso da Lava Jato. A Lava Jato não é um caso sobre a
corrupção em gera l no país. Ela tem como foco principa l o esquema de assalto à Petrobras .
Quem ali estava envo lvido eram basicamente três part id os: o PT, o MDB e o PP. É por isso
que esses são os alvos do Sergio Moro.

Um ministro do Supremo mudar de posição é natural ou é casuísmo?


FH Estamos num período de turbulência institucional. As decisões, infelizmente, não estão
sendo sopesadas, e o holofote sob o Judiciário é sempre uma coisa muito contraproducente,
porque, sendo um poder contramajoritár io, ele necessariamente tem de estar distante dos holo -
fotes. Não deveria ser tão comum, embora possa ser desejável se for para corrigir um erro.
SF Pode ser uma coisa ou pode ser outra. No caso a que você se refere, pode escrever: eu
acho que é casuísmo.

Fernando Haddad seria um bom candidato a presidente?


FH Essa vocês não fizeram para o Sergio Fausto.
REPÓRTERFizemos.
FH Então tinha de perguntar sobre o Lula para ele. Eu não sou cand idato.
SF O melhor candidato que o PT pode ter . A meu juízo , é a melhor figura po lítica que o PT
tem hoje. O prob lema dele é o seguinte: o PT tem um discurso hoje que não se coaduna
com aqui lo que o Fernando pensa. Então, para ele, é uma situação muito difícil, porque ele
não pode ser candidato de um partido que quer fazer um discurso a favor da Venezue la,
dizendo que o que há no Brasil é o contro le do governo brasileiro pelos Estados Unidos, que
a Lava Jato é uma emanação da CIA que visa desnacionalizar a Petrobras. Isso é um discurso
delirante, retrógrado . Não me espanta que Gleisi Hoffmann diga isso. Lamento que o Lula
tenha entrado nesse discurso. Tenho certeza de que o Lula não acredita nisso. Agora, acho
que é uma pena sacrificar um quadro político da qualidade do Fer nando Haddad para repe -
tir esse tipo de baboseira na campanha eleitoral.

O Alckmin é um bom candidato a presidente?


FH Acho que o Alckrnin representa um pensamento estruturado da centro -direita.
SF Acho que é o melhor que temos no momento.
38 CONCORDAMOS EM DISCORDAR

Qual é o futuro da direita?


FH A direita sempre vai ter um papel muito importante porque o Brasil é um país onde
atuam forças muito conservadoras. Você tem oligopólios atuando no campo do imaginário,
você tem oligopólio da mídia. Tem uma interface entre mídia e política, com políticos que
são donos de rádios e de transmissoras. E estão na mão de pessoas extremamente conserva -
doras, que fazem política há décadas. A direita sempre vai ter um papel muito forte, embora
nem sempre consiga expressar isso por meio de um candidato competitivo. A desigualdade
muito grande é a grande inimiga da direita. O país sempre está à procura de um personagem
que venha a se contrapor à desigualdade.
SF Que direita? Espero que uma direita democrática e civilizada tenha espaço no Brasil, não
apenas na opinião pública, mas também eleitoralmente. Faz falta ao Brasil uma direita de-
mocrática e civilizada. Isso é componente essencial em qualquer democracia madura. Essa
direita truculenta à la Bolsonaro eu espero ver reduzida à menor dimensão possível.

Qual é o futuro da esquerda?


FH Enquanto houver essa brutal desigualdade, a esquerda sempre vai ter espaço. Por que a
direita fala tanto em parlamentarismo? É porque no plebiscito (eleitoral) a liderança que se
contrapõe a esse nível de injustiça e desigualdade vai necessariamente crescer no centro da
opinião pública. A desigualdade é um problema no Brasil. Pelo lado da concentração , dá
muita força à direita e, pelo lado da desigualdade, dá força à esquerda. Tem duas formas de
resolver isso: sem democracia ou com mais igualdade. A democracia é incompatível com
esse nível severo de desigualdade.
SF De novo: que esquerda? Acho que a esquerda tem um enorme desafio no Brasil e no
mundo. De novo, uma esquerda democrática, moderna , é essencial para o jogo democrático
e para o avanço civilizatório em qualquer lugar do mundo e no Brasil, em particular, que é
um país que tem uma enorme desigualdade. Eu lamento, mas lamento de verdade, que o PT
não tenha sido o que poderia ter sido. (O PT) Tinha atributos para isso, não realizou sua
missão histórica. Em um primeiro momento, tem um quadro de terra arrasada na esquerda.
Espero que se reconstrua e, no que depender de mim, podem contar com minha ajuda .

Quem é o político mais promissor hoje no Brasil?


FH Político mais promissor do Brasil? (pausa de 11 segundos). O problema dessa pergunta é
que para respondê -la você tem de ter horizonte de longo prazo, e o Brasil não tem longo
prazo diante de si. O Brasil tem uma questão para resolver no curtíssimo prazo.
SF Acho que você tem bons quadros em vários lugares, em vários partidos, e é curioso
notar que, inclusive, há bons quadros que vêm de tradições oligárquicas. Você pega um
caso como o do ACM Neto, bom prefeito de Salvador; Fernando Haddad é um bom qua -
dro, mais ou menos da mesma faixa etária. Há prefeitos muito interessantes, o prefeito de
Pelotas, Eduardo Leite. Um governador como o Paulo Hartung, do Espírito Santo, que já é
sessentão, não é mais cinquentão, mas tem muita lenha para queimar ... Eu acho um políti -
co da maior qualidade.

O destino do Brasil é ser ...?


FH Não me lembro de um período histórico comparável ao que nós estamos vivendo. Já
tivemos crises, ruptura institucional, mas acredito que nosso dilema seja um pouco mais
profundo do que já foi algum dia, é quase existencial. Qual a resposta que nós vamos dar
para as nossas contradições que têm 500 anos? Acho que esse dia chegou . Hoje, a própria
identidade nacional está em discussão e está em disputa. É uma crise de outra natureza,
começa na economia, vai para a política, vai para a ética e hoje transborda até no institu -
cional. Isso não significa que nos falte oportunidade de dar uma resposta coerente. Pode
significar até que finalmente essa resposta vai ser dada. Essa resposta que nós brasileiros
sempre relutamos em dar.
40 CONCORDAMOS EM DISCORDAR

o
co
g
(!)
o
<t
ü
z
.,,
(!)
<t
'
(/)
o
,_
!o
z:,
"'
co

SF Isso é mais ou menos como você perguntar qual é o destino que você quer para a mu - Sergio Fausto
lher que ama e da qual não quer se afastar, mas que você percebe que está em uma encruzi- diz que faz falta
ao Brasil uma
lhada. Acho que o Brasil tem dinâmica interna na sociedade, na economia, para ser uma direita democrática
sociedade democrática, mais igualitária, partindo de uma matriz cultural muito difícil. Mas e civilizada
acho que a gente tem a chance de construir aqui um país mais próspero, uma sociedade
mais justa e uma sociedade liberal, no sentido da aceitação do outro, da tolerância em rela -
ção às diferenças humanas . O Brasil tem muitos defeitos, mas o Brasil é um país gostoso.
Quem conhece o mundo aí fora, há países muito mais bem organizados do que o Brasil,
mas não há país mais gostoso do que o Brasil.

O que querem os militares hoje no Brasil?


FH Provavelmente , essa contradição a que estou me referindo, ela perpassa as instituições,
corta as instituições. Essa pergunta pode ser feita ao Judiciário, à Igreja, tem um dilacera -
mento pelo qual as próprias instituições atravessam. Essa resposta mais profunda, pela gra-
vidade da crise, acabará tendo de ser dada por essas instituições de Estado, que precisam ter
consciência do papel que lhes cabe num processo de consolidar a democracia, de consolidar
um regime de liberdades, ou de cair no obscurantismo. A situação é grave demais e, por ser
grave demais, é uma oportunidade bastante apreciável de dar um salto qualitativo do ponto
de vista civilizacional. Mas a ameaça obscurantista está aí pela própria natureza da crise.
SF Eu acho que os militares querem que a elite civil política do país consiga governar com
decência, probidade e eficiência de tal maneira que as Forças Armadas cumpram seu dever
constitucional nos estritos limites da lei. Acho que é um fator de grande tensão nas Forças
Armadas a sensação de que elas podem ser chamadas a qualquer momento para garantir a
lei e a ordem por conta das dificuldades, muitas vezes pela incapacidade das elites civis de
governar determinadas cidades do país. Mas acho que não há nenhum interesse das Forças
Armadas em repetir a história ,________________________ _
,
NOTICIAS
DA CASERNA
TRÊSCENAS MILITARES

pós 33 an?~
A do fim do regime militar (1964 -1985), o
papel pol1t1codas Forças Armadas ganhou nova re -
levância. Um quadro que fez carreira no Exército está
bem p0sicionado nas pesquisas eleitorais para a Presi-
dência da República; vozes pouco democráticas têm to-
mado as ruas e as redes sociais em defesa da intervenção
direta dos militares no processo político; uma declara -
ção do comandante do Exército, general Eduardo Villas
Bôas, sobre impunidade chegou mesmo a açodar o país.
Nas próximas três reportagens, ÉPOCA dá exem -
plos da atuação recente de integrantes da cúpula das
Forças Armadas. O pri1neiro texto detalha a estratégia
de aproximação e conquista de Jair Bolsonaro (PSL),
capitão reformado do Exército, para ampliar sua aceita -
ção entre militares e civis. O segundo mostra o papel
político relevante que o general Sérgio Etchegoyen as-
sumiu nos bastidores do Palácio do Planalto na gestão
de Michel Temer. A terceira reportagem trata da pri-
meira intervenção dos militares na segurança pública,
realizada em 1993. Deixou um legado de experiência,
mas foi interrompida com suspeições.
DOSSIÊ MILITARES 43

LÍDERNAS INTENÇÕESD~ VOTO


AO PLANALTONUM CEN[\RIO SEM LULA,
O CANDIDATO DO PSLJA DEFINIU
SEUSMINISTROS EVAIANUNCIÁ-LOS
EM SETEMBROPARAQUE OS ELEITORES
"VOTEM NO TIME"
por Daniela Pinheiro e Thiago Prado

OGABINE E
DO CAPITAO BOLSONARO
J air Messias Bolsonaro esperava em pé em
frente à porta de um restaurante no aero -
porto Santos Dumont, no Rio, dez minutos
ção sem o nome do ex-presidente Lula. O
par lamentar alcança 17% das intenções de
voto, seguido de perto pela ex-senadora
antes do combinado. De terno azul-escuro, Marina Silva (REDE), que osci la entre os
brochinho de deputado na lapela, ele toma - percentuais de 15% e 16%, dependendo do
ria um avião para Brasília dali a duas horas. cenário analisado.
Estava às voltas com uma extensa agenda de Nas sondagens sobre o segundo turno
eventos e efemérides, que fizeram com que também sem Lula, os indicadores tornam
começasse a matar as sessões do Congresso. amarga a situação bolsonariana. Segundo o
No total, quadruplicou o números de faltas. instituto de pesquisa, ele perderia para Marina
Foram 16 delas sem apresentar justificativa. e para o ex-governador Geraldo Alckmin , e
"Vou tirar licença", disse. estaria empatado com Ciro Gomes (PDT).
Estava acompanhado de um assessor, "Já tenho metade do ministério escolhi -
Valdir Ferraz, que cuida de sua agenda e o do", contou. Não à toa. Em setembro, um
acompanha em viagens. Também de dois as- mês antes do pleito, promete divulgar o no -
sistentes que seguravam bolsas e pastas. O me de todos os ministros para que os eleito -
local ainda estava fechado ao público, e o res votem não apenas nele - mas no con -
grupo se instalou em poltr onas de couro em junto de pessoas que, segundo diz, governa -
frente ao bar, de costas para uma deslum - rá a seu lado. "Eu falo com humildade que
brante vista da Baía de Guanabara. não entendo porra nenhuma de economia e
Ele começou a conversa elucubrando so- me dão pau ", afirmou. "Mas vou ter o Paulo
bre o que aconteceria se ele tivesse chamado Guedes, que entende muito. Não sou só eu
a pré -candidata da Rede, Marina Silva, de governando." O economista está acertado
hiena - como ela havia feito com ele na como seu ministro da Fazenda.
véspera no programa Pânico na TV. "Se é eu O general Augusto Heleno, que ficou fa-
falando, ofendeu as mulheres do Brasil", moso como comandante militar da missão
afirmou com essas exatas palavras. Depois, de estabi lização da ONU no Haiti, é quem
criticou a imprensa que, segundo ele, só lh e vai apontar o dono da pasta da Defesa. "Ele
dá "porrada ". Listou dois ou três casos de vai indicar o quatro estre las. Não vou falar
quando publicam fotos suas ao lado de ou - se vai ser da Marinha ou do Exército para
tros políticos que atualmente estão presos - criar
nao . .,
ciume. ''
Tanque du rante desfile ''só para sacanear" . E se dirigiu à única pes- Para a Ciência e Tecnologia, Bolsonaro
do Dia da Independênc ia, soa que conhecera minutos antes. "Se quiser escolheu o tenente -coronel da Força Aérea
em so lenid ade realizada me dar pancada, pode dar." Brasileira Marcos Pontes, o primeiro e único
na Esplanada dos
M inistérios, com o De acordo com o Datafolha , Bolsonaro astronauta brasileiro. Em 2014, saiu candi-
Cong resso ao fundo está no topo da corrida eleitora l na simula - dato a deputado federal de São Paulo pelo
44 DOSSIÊ MILITARES

PSB, mas obteve apenas 43 mil votos. "Está De Mandetta, ele absorveu algumas expe-
me ajudando demais. Ele mesmo me procu- riências. Por exemplo, que seria possível di-
rou querendo colaborar." Na opinião de minuir em até 70% o número de prematuros
Bolsonaro, o perfil do astronauta é ideal pa- que precisam de cuidados em Unidades de
ra o cargo. "Ele continua na ativa, NASA, é Terapia Intensiva - que custam, em média,
pesquisador, é empreendedor." R$ 5.000 por dia. Com u.ma retórica apressa-
da, ele deu como exemplo o caso de uma
s portas do restaurante foram abertas mulher que vai fazer pré-natal, mas que, se
A aos clientes. Dois funcionários de andar fosse encaminhada também ao dentista, evi-
eficiente cumprimentaram o candidato, que taria gastos futuros com doenças bucais.
acenou de longe quase num gesto de conti- ''Tem que ter prevenção! É como na frontei-
nência. "Você sabe quem é o ministro da ra onde o tenente ensina o soldado a escovar
Ciência e Tecnologia hoje?", ele perguntou o dente, a lavar o bumbum", explicou. E sol-
aos interlocutores, que estavam debruçados tou um dado estatístico singular: que, no
sobre uma pequena mesinha de madeira pa- Brasil, 1.000 pessoas tinham o pênis mutila-
ra ouvir melhor o candidato. "Ninguém sa- do por causa de falta de higiene. "Nós, ho -
be. É o Kassab, que não entende nem de lei mens, somos relaxados. Mulher não. Tá sem -
da gravidade nem de gravidez." Houve risos. pre se limpando. Nós, homens, jogamos uma
E ele passou a discorrer sobre o absurdo de cerveja no piu -pit1 e tá limpo. Isso é o que o
haver quadros inapropriados e neófitos para povo faz", disse. Quando um dos presentes
tocar importantes temas brasileiros. observou jamais ter ouvido falar de tal hábi -
Na Educação, ele acha que o deputado gaú- to, ele se virou para o assessor como se bus-
cho Onyx Lorenzoni, do DEM, é um "coringa casse apoio moral. "É verdade. Você joga
do governo" que pode se encaixar bem ao per- uma pinga, um álcool. Vai ver no fronteirão
fil da pasta. ''Tem de ser alguém que chegue do Brasil como é." O dado sobre as amputa-
com um lança-chama e toque fogo no Paulo ções penianas é real e foi publicado pela re-
Freire", disse em referência ao educador per- vista Galileu, em novembro do ano passado.
nambucano, que revolucionou o ensino nacio-
nal. Ao notar um desconforto geral, apressou- assunto resvalou para o Ministério das
se: "É linguagem figurada, linguagem figura-
da!" Ajeitou o paletó e disse: "Esse método deu
O Relações Exteriores, ninguém sabe co -
mo. Foi quando ele relatou uma recente in-
errado, tem de acabar com isso. Tem que vol- cursão pelo mundo da diplomacia. Fora
tar a pôr tabuada na régua do filho". convidado para um almoço oferecido pelo
Dos 30 ministérios, ele manteria cerca de embaixador da Espanha com outros 15 di-
metade. Segurança Pública? Acha um assun - plomatas. Sentou -se ao lado do embaixador
to fácil de resolver, que não necessita uma italiano e cochichou em seu ouvido: "Ano
pasta específica. "Não é tão complexo ", disse que vem vou te dar um presente ". Quando o
olhando para um dos jornalistas presentes. outro quis saber o que era, ele disse: "O Battis-
"Se você erra, escreve uma besteira, não vai ti (que ele pronunciou como oxítona). Já
preso. O policial erra, vai pra cadeia. Tem de tem bandido demais aqui". Depois disse que
ter retaguarda jurídica." Em sua ampla opi- teve "um pequeno atrito" com o embaixador
nião, a falta é de autoridade. equatoriano quando ele argumentou que era
Igualdade Racial e Direitos Humanos? absurdo o Brasil importar banana do país.
"Dá logo uma foiçada nisso e transforma Um rapaz se aproximou da mesa e ofere -
tudo em secretaria", disse. O mesmo vai fa- ceu água ao grupo. Ele não quis. O nome do
zer com a Cultura. "Tem que valorizar a chefe do Itamaraty também vai ser mantido
cultura para quem está começando, não pa- em sigilo. "Se eu falar, o cara vai levar pan -
ra Cirque du Solei!", comentou. cada e é capaz de ser mandado para Burún-
Na Saúde, ele já tem um favorito, mas dia." Em tom de confidência , ele disse ser
disse que não poderia mencioná-lo "porque prudente checar "se não é fake news", mas
prejudicaria" a posição do sujeito. Um de que leu contrariado que a última turma de
seus interlocutores é o deputado Luiz Henri - formandos no Instituto Rio Branco havia
que Mandetta, do DEM do Mato Grosso do homenageado a ''Marilene" (queria dizer a
Sul, onde já foi secretário de Saúde. vereadora Marielle Franco, do PSOL, assas-
. ....

sinada há quase dois meses num crime ain - zer algo para o Brasil. "Ele quer estar comigo Jair Bolsonaro é festejado
da sem solução). "Pelamor de Deus, cara, porque sou de confiança. É igual casamen- por alunos do Colégio
Militar de Brasília;
pelamor. Aquilo foi absurdo ", rangiu . to", disse. Mais uma vez, valeu-se de exem- campanha em escolas
Quando se trata de Esportes, ele ouve o ex- plos de seu entorno para ilustrar seu pensa - militares tem sido uma das
nadador carioca Luiz Lima - que já foi secre- mento. "É que nem um deputado que conhe- estratég ias para
crescimento eleitoral
tário de Alto Rendimento do Ministério do Es- ço que casou com uma prostituta. É daqui
porte e pediu demissão no ano passado, du - para a frente, porra. Zerou o passado, lavou,
rante a gestão de Leonardo Picciani, alegando tá novo. " Depois, citou o caso de Jordi, um
"razões pessoais". Ainda que ninguém pergun- ex-travesti que havia feito dinheiro na Fran-
tasse, ele continuou a dar pistas sobre seu futu- ça, voltou para o Brasil, converteu-se, casou
ro gabinete. "Pra que Ministério das Cida- com uma evangélica. "É daqui pra frente."
des?", disse. "Pega o dinheiro e manda para Quando indagado se o ministério teria
um prefeito em Resende, e ele se vira, cara." mulheres, negros, LGBTs, ele aumentou un1a
oitava na voz. "Não estou procurando gay,
conversa se voltou novamente para Pau - mulher, negro para ser ministro. Tô procuran -
A lo Guedes, o nome mais vistoso de seu do gente competente", respondeu lacônico.
futuro mini stério. Ele contou que o econo- Faltavam alguns mint1tos para o voo, e ele
mista estava trabalhando , havia dois anos, passou a olhar o relógio a cada minuto.
numa possível candidatura do apresentador Agradeceu o encontro e encerrou a conversa.
Luciano Huck. "Eles já tinham cheirado que A caminho da porta , Bolsonaro cruzou com
vinha um outsider ", disse. Quando o projeto uma moça baixinha e dois rapazes com bar -
Huck foi abortado, Guedes, segundo contou, bas longas estilo hipster. Um deles levantou
procurou-o. Já no primeiro encontro, ele o braço direito em sua direção e falou em
disse ter sido muito franco co1n o economis- voz alta sem olhar para a cara do candidato.
ta . "Olhei para ele e falei: 'Que que tu viu "Vou votar em você, hein? " Ele riu. Na porta
em mim? "', afirmou nessas exatas palavras do elevador, alguém do grupo comentou que
dando uma gargalhada. "Porque eu não sou o rapaz tinha um leve tom afeminado na voz
nada, cara, tô mentindo? Sou nada! ", disse e havia virado a mão como que desmunhe -
replicando o diálogo passado. cando quando declarou o voto. "Porra , eu
Segundo ele, Guedes riu, contou também fico impressionado com a quantidade de
ter cursado o Colégio Militar, falou que pas- gay de direita que vai votar em mim! ", disse
sou dos 60, "tava no lucro " e que queria fa- entremeando um largo sorriso, _____ _
46

para o governo Temer-, o general de quatro

APONTE estrelas, portador da mais alta patente do


Exército, achou melhor informar o presidente
sobre a restrição ao uso de um avião oficial
COM O PLANALTO pelo ex-ministro. ''Não é papel do presidente
pensar em tudo sozinho. É para isso que ele
tem equipe", disse Etchegoyen a ÉPOCA.
UM GENERALNOS BASTIDORES O chefe do GSI é o responsável por zelar
por Débora Bergamasco pela segurança presidencial, pela área de inteli-
gência e informá -lo sobre todas as questões
com potencial de risco à instabilidade institucio-
nal do país. Mas o militar assumiu funções que

N o início da noite de sexta-feira 6 de


abril, Sérgio Etchegoyen, ministro do
Gabinete de Segurança Institucional (GSI),
vão muito além dessas questões por si só estra -
tégicas e relevantes. Assenhorou -se também de
questões do dia a dia do Palácio do Planalto,
despachava do 4° andar do Palácio do Pla- como o voo do ex-ministro da Fazenda desde
nalto quando um auxiliar abriu a porta do Salvador, e tornou -se assim um dos mais in-
gabinete e lhe passou o telefone celular. Do fluentes conselheiros do presidente, com di-
outro lado da linha estava Michel Temer, reito a opiniões inclusive sobre qt1estões polí-
presidente da República, que ligava de Salva - ticas. Hoje, o general é convocado até para ler
dor. Temer estava com Henrique Meirelles, e previamente discursos de Temer. No mês
este, por motivos de agenda, queria decolar passado, aconselhou o chefe a não partir pes-
da Bahia em aeronave diferente do "Aerote - soalmente para o embate com o ministro Luís
mer". Etchegoyen interrompeu seus despa - Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal,
chos, afastou-se para um canto da sala e depois que o magistrado autorizou a quebra de
atendeu a chamada presidencial. sigilo bancário de Temer. Barroso é relator do
"Alô? Oi, presidente. Tudo bem e o se - caso que apura o suposto pagamento de propi -
nhor? Obrigado pelo retorno. Sim, liguei. Eu na em decreto relacionado ao setor portuário.
só queria alertar que agora ele não é mais Em novembro passado, Etchegoyen opi-
ministro. É ... tem de ver como será feito esse nou também sobre o programa partidário do
retorno. Claro, claro. Exatamente, não terá MDB. A equipe mais próxima ao presidente
mais direito, não. Sim, senhor. Claro, presi - Temer estava reunida para discutir o progra -
dente. Outro. Obrigado. " ma de propaganda do MDB que iria ao ar na
Etchegoyen calculou que não seria adequa - televisão em meados daquele mês. Havia pou -
do o poder público fornecer um avião da For - cas semanas que Temer se livrara pela segun -
ça Aérea Brasileira para Meirelles sair de Sal- da vez de uma denúncia da Procuradoria-Ge-
vador, pois ele anunciara naquele mesmo dia ral da República, graças ao apoio de 251 depu -
sua saída do cargo de ministro da Fazenda pa - tados federais. O marqueteiro Elsinho Mouco
O ministro do Gabinete ra filiar-se ao MDB e talvez concorrer à Presi - defendia a necessidade de levar à rede nacio -
de Segurança Insti tucional dência da República. Para evitar qualquer insi - nal de rádio e televisão uma resposta dura da
da Presid ência, gene ral nuação de favorecimento a Meirelles ou o uso legenda às acusações contra Temer. Dois pro -
Sérgio Etchegoyen,
em sol enidad e no Palácio da máquina federal por um possível candidato gran1as com o mesmo nome - A trama -
do Planalt o do MD B - e criar assim mais um desgaste estavam prontos para que a cúpula emedebis-
ta escolhesse qual deles deveria ser exibido.
Um era mais incisivo e atacava abertamente
personagens do cenário nacional. O outro ga-
nhou tons mais brandos. Os dirigentes eme -
debistas assistiram aos dois vídeos e se dividi - o
a,
g
ram. Temer mandou chan1ar o general. Quis (!)
<(

ouvir a opinião do auxiliar, que não é filiado a ü


z
w
(!)
nenhuma sigla partidária e nunca teve nada a io
ver com o MDB. Ao militar, foram mostrados a,
~
a,
os dois filmes. Ele apontou sua preferência o
g
pelo mais suave. Foi a versão que prevaleceu. ~
(!)
DOSSIÊ MILITARES 47

maior demonstração de influência de goyen tinha experiência en1 lidar com políti-
A Etchegoyen junto ao presidente se deu na ca e políticos. Representou o Brasil em mis-
intervenção federal no estado do Rio de Janei- são das Nações Unidas em El Salvador, traba -
ro, decidida por Temer em fevereiro. Nos me- lhou como assessor no gabinete dos generais
ses anteriores à decretação da intervenção, Zenildo de Lucena e Gleuber Vieira, minis-
Etchegoyen passou a alertar o presidente so- tros do Exército dos governos Itamar Franco
bre a gravidade do quadro de segurança pú- e Fernando Henrique Cardoso. Depois, asses-
blica no Rio. Incentivou Temer a chamar sorou Nelson Jobin1 no Ministério da Defesa.
para si responsabilidades na questão. Não Logo no início da gestão como ministro de
foi o único. Mas sua colaboração foi impres- Temer, Etchegoyen adotou um ritual próprio
cindível, segundo assessores de Temer, in- da caserna que contribuiu para reforçar a liga-
clusive para vencer as resistências do Exér- ção com o presidente. O general não dispensa
cito ao uso de tropas militares no Rio, ver- o hábito de sempre estar no Palácio do Planalto
balizadas pelo comandante da força, general antes de o presidente chegar e sair somente
Eduardo Villas Bôas. após a partida do superior. Como recebe todas
Etchegoyen ganhou posiç ão de destaque as informações sobre a localização presidencial,
junto a Temer, apesar de ser praticamente um assim que Temer rumava para o Palácio do Pla-
novato no círculo de assessores mais próxi- nalto, Etchegoyen o aguardava na garagem, es-
mos do presidente no Palácio do Planalto. Te- perando pelo desembarque do chefe. Após tro -
mer cercou-se no Planalto de pessoas que fa- carem cordiais cumprimentos matutinos, o mi-
zem parte de seu convívio há muitos anos, co- nistro aproveitava a viagem por quatro andares
mo o ministro-chefe da Casa Civil, Eliseu Pa- pelo elevador para passar os informes que jul-
dilha, e o chefe da Secretaria de Comunicação gava necessários. Caso o assunto tivesse de se
Social da Presidência, o jornalista Márcio Frei- estender, ele era convidado a entrar no gabinete
tas, que o assessora na área de imprensa há presidencial. Se fosse uma questão rápida, a
mais de 15 anos. Etchegoyen conheceu Temer porta da sala de Temer era o local de despedi-
há pouco mais de dois anos, meses antes do da. Com o estreitamento da relação, hoje são
in1peachment que tirou Dilma Rousseff da ca- raras as vezes em que Etchegoyen fica do lado
deira presidencial. Quem fez a aproximação de fora em reuniões importantes. Caso não seja
foi o escritor, articulista e professor universitá - convocado diretamente por Temer, sempre aca-
rio de filosofia Denis Rosenfield, que atuava ba tendo um assunto para despachar e é convi-
como consultor informal de Temer quando dado a se acomodar entre os presentes.
este exercia a Vice-Presidência, com direito a
visitas ao Anexo I do Palácio do Planalto. Ro- ex-ministro Nélson Jobim , que é ami-
senfield tem boa relação com oficiais das For-
ças Armadas da ativa e da reserva - especial-
O go de Etchegoyen e conterrâneo
mesma cidade no Rio Grande do Sul, Santa
da

mente os conterrâneos gaúchos Etchegoyen e Maria, diz que o general, apesar de circular
Villas Bôas, o comandante do Exército. com desenvoltura entre os políticos, é "ri-
Meses antes do afastamento de Dilma, Ro- gorosamente apolítico" e é uma "figura
senfield ajudou a organizar jantares na casa de muito preocupada com a consolidação da
Villas Bôas para que Temer fosse recebido e in- democracia no país". Nesse capítulo, o ge-
formalmente "sabatinado" pelos militares. Etche- neral pode contar que foi preso da ditadura
goyen, que era chefe do Estado-Maior do no Brasil. Em 1983, quando tinha 31 anos e
Exército, participou de todos. Já com a rela- era capitão , Etchegoyen ficou preso por oi-
ção mais azeitada, chegou a vez de o próprio to dias por ordem do então comandante
Etchegoyen oferecer em sua casa um encontro militar do Planalto, general Newton Cruz.
em torno de Temer, antes da queda de Dilma. Durante uma reunião num auditório no
Dali para a frente, seu nome foi uma indicação Palácio do Planalto , Cruz chamara de
majoritária da cúpula do Exército para o Gabi- "mau -ca ráter " quem fosse depor no Con-
nete de Segurança Institucional, quando Temer gresso sobre militares. Era o caso do pai do
decidiu recriar o ministério, que havia sido ex- hoje chefe do GSI, o general Leo Etchego-
tinto por Dilma - uma forma de o presidente yen. O capitão se insurgiu contra o insulto,
mostrar que os militares teriam prestígio em disse que não admitiria. Acabou sendo pu-
seu governo. Além de sua carreira militar, Etche - nido com a prisão, assim como seu pai, que
também foi encarcerado. --------
.. • ..- •..
,. •• ••
p b

- ., -
il ~

-- - .. •

- •
• •
- t; •• -

·,• ' ., • ,
• • •
1 .. 4

f • 1 4 1 •

-••
•'
' ·~
y
~.-,L .-.
'"'
,, ,. •
•-

- - --- dos olhos, o segundo ajudava a descarregar



•• • •
T"

. ..
- •
• . -À
' -· \
""'t \{
--- - • botijões de gás de um caminhão; o terceiro
consertava as tubulações de esgoto, disfar-
çado com o uniforme da prefeitura. "Em
três dias eu tinha 47 nomes na minha
mão", afirmou o corone l.
"Juntei cinco homens da Polícia Civil, cin -
co da PM, cinco da PF, cinco do Batalhão de
Forças Especiais do Exército e cinco meus ",
contou. "Dei o nome de Centro de Operações
Táticas, o CO T." Além disso, cerca de 40 ho -
mens da PM e dos Bombeiros, além de médi -
cos, agentes da Defesa Civil e veterinários , fo-
ram cedidos pelo governador Leonel Brizola e

''ARM~RAM PARA pelo prefeito Cesar Maia , a pedido do coronel.


A operação foi marcada para 1h45 da

O TRAFICO VOLTAR'' madrugada. Houve quem achasse me lhor


por vo lta das 6 horas, mas o corone l tinha
justificativa : o horár io que escolheu era o
O FRACASSO DA 1ª INTERVENÇÃO EM FAVELA "pico do movimento da droga ", disse. "Era
quando o cara estava começando a receber o
por Bruno Abbud
dinheiro , a fazer a contabi lidade e a vender
para os clientes remanescentes de um tráfico
que havia começado às sete horas da noite. "

N a noite de 11 de outubro de 1993 , o coro -


nel Carlos Frederico Cinelli, atual porta -
voz do Comando Militar do Leste, era o oficial
No horário combinado, as equipes foram
divididas para capturar os alvos espa lhados
pe la favela. "Só coloquei uma imposição ",
de dia no 24° Batalhão de Inf antaria Blindado lembrou Guedes. "Não quero nenhum mor -
(BIB) quando m ais de 50 traficantes começa - to. " Caso houvesse a necessidade de usar as
ram a trocar tiros perto do campo de futebo l armas, a ordem do corone l era sucinta: "Joe-
da favela Roquete Pinto, na Zona Norte do lho e perna ", dizia aos soldados . "Se quiser
Rio de Janeiro. ''Era antes do piscinão de Ra- dar continuidade a um traba lho desse, você
mos, onde tinha uma rua que fazia a divisão não consegue começar em cima de um ba -
entre os territórios de cada facção", disse oca - nho de sangue ", disse . No fim, não houve
bo Joel Carlos Santana , que integrava a segun - mortos, mas 17 feridos foram levados para o
da companhia na "guarda leste" no momento H ospital Getu lio Vargas , na Penha. Segundo
do tiroteio. Aos 45 anos, atualmente trabalha o m ilitar, todos eram ligados ao tráfico.
como eletricista. Uma bala acabou acertando Guedes acompanhou o tratamento de ca-
a perna do soldado André Barbosa Pegado, da um. Na visão do corone l, os traficantes
que aguardava sentado a sua vez de assumir o eram também "filhos, amigos, irmãos, côn -
posto de sentinela no 24° BIB. Esse fato mu - juges ou empregadores da comunidade " - a
dou o destino da favela Roquete Pinto. desgraça de les significaria comprar briga
O comandante militar do Leste à época, com a população da Roquete Pinto, o que
genera l Rubens Bayma Denys , mandou abrir Guedes queria evitar. "Você nunca vai domi -
um Inquérito Policial Militar para investigar nar uma comu n idade sem o apoio total da
a ocorrência. O documento serviu de álibi popu lação." O método do corone l inc luía
para o coronel Marco Antonio Auvray Gue - convencer os delegado s a indiciar os presos
des, aos 47 anos, iniciar - e manter por 11 por formação de quadrilha , tráfico e associa -
meses - a primeira incursão do Exército ção para o tráfico. "Para não serem soltos
contra o tráfico de dro gas numa favela do logo em seguida. "
Rio de Janeiro : a chamada Operação Fênix. O pro bl ema é que a quadri lh a era tam -
O corone l Marco Antoni o Em vez de usar armas, infiltrou três espiões bém composta por 62 crianças, que atuavam
Guedes comand ou a
prime ira interven ção na favela : um se passava por vendedor de como vapores, aviões e soldados . Com exce -
militar em favela carioca bonecos de pelúcia com câmeras no lugar ção de Pedri n ho - que tinha quatro assassi -
DOSSIÊ MILITARES 49

natos no currículo e foi mandado para uma Franco, em Água Santa. "Ele estava se refe -
casa de correção - todas as outras foram rindo ao capo daquelas favelas ", disse Gue-
obrigadas pelo coronel a participar de um des. Segundo conta, eram 19 as bocas de
grupo escoteiro. fumo na Roquete Pinto e em Ramos na -
Como as familias das crianças viviam com quela época. "Ele disse: 'C oronel, 1neu clien-
a renda do narcotráfico, Guedes decidiu ne- te disse para oferecer ao senhor uma quan-
gociar, com uma vereadora, vagas em cursos tidade de dinheiro para o senhor dar um
profissionalizantes, além de mapear oportu - mole para o tráfico voltar. Estamos com
nidades no comércio local. "Não abria uma prejuízo de milhões de reais com a venda
vaga profissionalizante se não tivesse o em- de droga nessa área aí'", contou Guedes,
prego garantido", contou. Conseguia atender acrescentando: "Foi muito dinheiro, mais
uma média de 30 adolescentes por curso. de um milhão ". Mas o coronel recusou. Na
Com a favela livre dos principais geren- sequência, ouviu: "Até agosto, o senhor es-
tes e chefes do crime - quem não foi preso tá fora do comando".
fugiu para a favela da Varginha, ali perto -, Com as mãos sobre o tampo de vidro, o
Guedes teve passe livre para entrar na co- coronel Guedes fez uma pausa, respirou e
munidade. Descobriu que a cocaína era dis - admitiu: "O que ele disse aconteceu. Em
tribuída em quentinhas, todas as sexta-fei- agosto, saí do comando".
ras. Encontrou lixo espalhado pelos becos e A remoção do coronel do comando do
organizou grupos de limpreza. O esgoto 24° BIB veio por ordem do ministro do Exér-
corria a céu aberto. Doenças de pele, viroses cito, o general Zenildo de Lucena. Não houve
e tuberculose eram comuns. Buscou muti - despedida nem passagem de comando. "Fi-
rões e atendimento médico comunitário. quei surpreso. Foi de repente." A justificativa
veio por meio do comandante da 5ª Brigada
té agosto de 1994, os militares passaram de Cavalaria Blindada, general José Gualter
A a entrar todos os dias na comunidade,
dia e noite, de surpresa, incluindo os feria-
Pinto, desafeto de Guedes: "A desculpa que
me deram foi a seguinte: 'Você está sendo
dos . Quando notavam uma multidão reuni - exonerado para te preservar"', disse o coro-
da em bares ou praças, convidavam os mo - nel. "Naquele primeiro momento, achei que
radores a posar para uma "foto grafia para a era porque queriam me matar. Mas melem-
posteridade", nas palavras do coronel Gue- brei do telefonema na mesma hora ", conti-
des - tática para mais tarde localizar crimi- nuou. "Sei que armaram. Sei que foi feita
nosos remanescentes. uma grande armação para o tráfico voltar."
O lixão do batalhão se transformou em Os trabalhos na comunidade foram ime-
horta comunitária. O lixo da comunidade foi diatamente interrompidos. O Exército proi-
resolvido com dois latões por beco, recolhi- biu operações dentro das vielas. "Começara m
dos pela Comlurb, a pedido de Guedes, todas a desmontar lá dentro tudo o que eu tinha
as manhãs. Quarenta toneladas deixaram a feito", declarou Guedes. "Soube pelos jornais
favela no primeiro dia. Guedes mandou ana- que tudo foi destruído." Depois que foi re-
lisar o lixo para descobrir mais sobre o estilo movido do posto, seis moradores que eram
de vida dos moradores da comunidade. próximos ao coronel foram assassinados.
Em 11 meses, a vida na favela mudou. Os Guedes foi transferido para o comando
jornais anunciavam o sucesso da empreitada da 2ª Brigada de Infantaria Motorizada, em
de um homem solitário. "O coronel Guedes Niterói. Seis meses depois, recebeu a visita
mudou o batalhão" , lembrou o cabo Joel. "E do ministro Lucena. "Ele pediu desculpas ",
mudou a cara da Roquete Pinto da água pa - declarou. "Disse que co1neteu u1n grande erro
ra o vinho sem disparar um tiro." e que foi enganado, mas não disse quem o
Numa tarde de julho de 1994 , por volta enganou." O coronel foi então levado ao 24°
das 15 horas, o coronel Guedes recebeu um BIB, uma despedida oficial foi organizada
telefonema em seu gabinete. Do outro lado em sua homenagem, e ele recebeu a Meda-
da linha, uma voz masculina se apresentou lha do Mérito Militar, a mais alta do Exérci-
como advogado do chefe do tráfico na re - to. Lucena morreu em março de 2017. Atual-
gião, alguém a quem chamou de John mente, a favela Roquete Pinto é dominada
Wayne, e que estaria preso no presídio Ary por milicianos, ___________ _
50

• • mbolle@edglobo.com.br

MO NICA DEBOLLEÉ DOUTORA EM ECONOM IA EPROFESSORA O LIBERALISMOECONÔMICO


DAJOHNS HOPKINS UNIVERSITY, EMWASHINGTON
EM XEQUE

O liberalismo econômico que predominou até a crise


de 2008 não nasceu de repente, mas veio ao mundo
aos poucos. Primeiro apareceram os compromissos com a
a ver a China como a antagonista que havia conseguido
explorar e contornar todas as regras do sistema interna -
cional em benefício próprio. Passaram, portanto, a ques -
liberalização gradual do comércio e dos fluxos de capital, tionar - nem sempre de forma tão aberta - por que
acompanhados de maior cooperação internacional e en- não poderiam todos fazer como a China. Pitada de in -
raizados na criação das instituições de Bretton Woods, em tervencionismo ali, punhado de protecionismo acolá.
1944, e do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (o GATT),
em 1947, precursor da Organização Mundial do Comér- A defesa do liberalismo econômico
cio (OMC). Nos anos 1950 e 1960, espalhou -se gradual - por economistas e membros das
mente pelo mu.ndo o modelo norte -americano para as
políticas de concorrência. No início da década de 1980, instituições multilaterais é simples,
consolidou -se a ideia de que o objetivo principal dos ban - direta, mas infelizmente pouco
cos centrais deveria ser estabilizar os preços, em vez de convincente para o público geral.
direcionar crédito para setores específicos, ou mesmo ter
como meta única o nível de emprego. Em meados dos Trata-se de apertar a regulação fmanceira, tornar as regras
anos 1980, o modelo completo daquilo que veio a ser co- do sistema mais difíceis de serem burladas, de entender
nhecido como "liberalismo econômico" chegou aos países que as perdas de empregos são indissociáveis das mudan -
em desenvolvimento: abertura comercial e financeira, po - ças tecnológicas, nem todas provenientes da globalização.
líticas para a livre atuação do mercado com regras para Quanto à vilificação da China, trata -se de entender que o
garantir a concorrência, políticas macroeconômicas que país é não apenas um competidor do resto do mundo, mas
priorizassem a estabilidade inflacionária, o crescimento um importante consumidor e fornecedor de partes e com -
econômico equilibrado e a sustentabilidade das contas ponentes para as cadeias globais de produção. Tudo perfei-
públicas. Lá para 1995, estava consolidado o paradigma. tamente sensato, lógico, racional. Infelizmente, o mundo
Claro que houve exceções. Países que passaram por de hoje não é movido pela sobriedade da reflexão, mas pe-
graves crises econômicas e tensões sociais escolheram los instintos mais primitivos do cérebro - pela intuição ,
outras formas de capitalismo, como o kirchnerismo diri - tantas vezes equivocada, e pelas emoções, que servem para
gista -nacionalista da Argentina, que desembocou em muita coisa, mas raramente ajudam a encontrar caminhos
mais do mesmo. Houve também países que, à moda do razoáveis para solucionar grandes problemas.
que fizeram a Coreia e Taiwan nos anos 1960 e 1970, opta- Em países como o Brasil, onde o ceticismo em rela -
ram pelo capitalismo de Estado chinês, tremendo suces - ção ao liberalismo econômico sempre foi grande, o de -
so desde 1990 na China . Contudo, nos países desenvol - bate travado é especialmente pobre. Trata -se de formar
vidos, o liberalismo parecia plenamente consolidado. tribos: os defensores do Estado contra os defensores do
Tudo mudou com a crise financeira global de 2008. De mercado. Já escrevi neste espaço sobre os equívocos dos
lá para cá, o liberalismo anda sob intenso questiona - defensores do Estado intervencionista. Dedico estas últi-
mento em pelo menos três frentes distintas. A primeira mas linhas aos defensores do mercado, custe o que cus -
resultou da própria crise, sob a constatação de que gran- tar. Li dia desses entrevista com candidato liberal em
des instituições financeiras haviam transformado os que foi ele perguntado sobre tema dos mais importantes
imensos lucros de uma minoria em perdas gigantescas no debate mundial: o que faria para resolver a persisten -
para os contribuintes. O fato de ter a crise ocorrido na - te diferença de salários entre homens e mulheres com a
queles países onde o liberalismo econômico parecia fun - mesma qualificação acadêmica e profissional. Disse ele:
cionar muito bem foi um abalo de credibilidade para as "O Estado não deve interferir". Com a devida vênia, o
ideias dominantes. A segunda veio da visão de que a liberalismo econômico do século XXI, este que está em
globalização e o comércio deixaram para trás segmentos xeque inclusive por posições retrógradas de seus ditos
da população. Por fim, críticos do liberalismo passaram defensores no Brasil, discorda com veemência, ___ _
TEMPO DE ESTIO 53

A porção de terra seca,


sem vida e sem salvação,
cresce no Nordeste
por Ana Luc ia Azevedo

As ruínas da de legacia de
Santo Inácio (ao/ado), em
Gent io do Ouro, no sertão
N uma das curvas que o São Francisco de -
senha ao atravessar os sertões onde Bahia
e Pernambuco se encontram, cresce um de-
Humberto Barbosa, coordenador do Labo -
ratório de Análise e Processamento de Ima -
gens de Satélites (Lapis), da Universidade
do São Francisco, Bahia,
são uma lembrança do serto. A cada sopro do vento, que quase nun - Federal de Alagoas , e integrante do grupo de
sécu lo XIX, época em que o ca cessa, suas dunas despejam areia e sufo- especialistas em desertificação do Painel In -
lugar vivia das riquezas da
mineração e era conhecido cam lentamente o rio. Ele se chama Suruba- tergovernamental de Mudanças Climáticas
como a capital dos bel e fica em Rodelas , Bahia. Chama a aten - (IPCC, na sigla em inglês ) da ONU .
j agunços. Hoje, das j ane las ção porque se debruça sobre o São Francis - Os pesquisadore s do Lapis observaram
quebradas, vê-se apenas a
Caatinga minguada de uma co, a principal fonte de água do Semiárido. imagens de satélites do período de 2002 a
das áreas mais secas do Mas não é um ponto isolado. Inte gra um 2017. Analisaram dados de Bahia, Pernam -
país. Ali, o turismo histórico buco, Paraíba , Alagoas , Rio Grande do Nor -
mapa em expansão, o das terras que viraram
é visto como um sonho de
fonte de renda. desertos no Semiárido do Brasil. Um estudo te, Ceará, Piauí, Sergipe e Minas Gerais. A
Os Cariris da Paraíba inédito revela que elas somam 126.336 quilô - partir daí, a equipe do Lapis classificou a de -
(nas páginas seguintes) se
metros quadrados - qua se três vezes o ta- serti ficação em três níveis: muito forte ( de
estendem por 29 mun icípios
e estão entre as áreas mais manho do estado do Rio de Janeiro ou a me - 75% a 100 % da vege tação perdida ), forte
ating idas pela tade do de São Paulo. São desertos criados (50% a 75% de perda ) e moderada (25% a
desertificação. A seca
pelo homem. Terras estéreis, sem salvação. 50%). Os dois primeiros constituem terras
iniciada em 2012 só
agravou um processo O mapa mostra o que já é deserto . Não esterilizadas e mortas - caso de Surababel.
causado pela degradação se trata de área em risco, mas de fato consu- Lugare s sem sombra, água e vegetação, de
do solo por desmatamento
o mado. Desertos são terras mortas . Não res - "sol em vazios", como o mítico Liso do Sus-
ai e criação extensiva de
g suscitam, m as se expandem nutridos pela suarão em Grande sertão: veredas, de Gui-
(!) cabras e ovelhas.
o
<3
A Caatinga que resta dá a destrui çã o que os gerou. "À medida que marães Rosa. As áreas consideradas mode -
z ilusão de que o milagre das
"'(!) avançam, ameaçam a segurança hídrica, ali- radas podem ser recuperadas, mas a cus to
chuvas fará tudo rebrotar.
§z Mas o solo morto não mentar e energética do Semiárido mais po - economicamente questionável.
w
a:: carrega esperança de voado do mundo, onde vivem 28,6 milhões Em silêncio, por anos a desertificação tem
~ recuperaçao -
w
..J
de pessoas (14,5% da população brasileir a)", seguido lenta e gradativa. Mas, quando se ma -
z
~ alertou o prin cipal autor do mapeamento , nifesta, é como a metástase de um tumor que
- •. -
--..-..~
• - --
. ---~ .-



- •

-·-,
- ,
.,..:.,...

,,,


,{' •·-
-. '
·, ~
56 TEMPO DE ESTIO

(/)

A TERRAARRASADA
g
I
'.5
NO SEMIÁRIDO w
<
a
~w
Seca e mau uso do solo a
w
MA u.
criam desertos • w
a
i3
(/)

"'
w
>
z:,

• •
... i3
~
ã:

• . . PI ~
• • (/)

~
I• ·
• ...J

"'
-' AL ~w
a
(/)
z
~
<
2
BA . w


.. •
. a

,~ : ...r
. " .'-. o
,_
: • • z
• w
2

• ' ....
-#,, .._
·..1-· -,...~ ..
;li
(/)
w
ü
"".":,'it· ~
·-. ••
a.
w
w
(/)


.. .

{ ; --
-- Semiá rido w
a
o
::J

z
<

, ã:
MG -o
Areas em diferentes graus
~o
de d esert ificação a,
'.5
~
z
o
u.

já tomou boa parte do organismo e para a Há desertos em formação por todo o Se- Numa cena típica do
qual não há remédio. "O deserto é o câncer da miárido , mas Barbosa desta cou os núcleos de sertão da Bahia, as
criações de cabras e
terra. Ele tem de ser prevenido. É irreversível desertifica ção dos Cariris da Paraiba - uma ovelhas vivem junto
uma vez instalado . Nem com a chuva deixa área de 29 muni cípios parti cularmente casti- a casa e são fonte de
de ser deserto ", salientou Barbosa, do Lapis. gada pela seca até 2017 - e o dos sertões do subsistência (acima, à
dir.) . Os animais que não
A chuva semeia má gica no sertão. "O São Francisco, onde fica Surubabel. "Os deser- têm quem os sustente
brot ar das folha s quase por encanto se pro- tos se expandiram em funç ão do mau uso do muitas vezes morrem d e
duz ", escreveu há quase dois séculos o natu - fome e sede, como este
solo, da devastação da Caatinga e da seca se-
cachorro (abaixo, à dir.)
rali sta alemão Carl von Martius, autor da vera dos últimos anos", explicou Barbosa, co- na Caatinga baiana
Flora brasiliensis, ao percorrer os sertões do autor do recém -lançado Um século de secas:
São Francisco. Quando chove em áreas não por que as políticas hídricas não transf arma -
desertificadas, até arbustos sem folha s, de ram o Semiárido brasileiro? (Editora Chiado).
galhos quebradiços e contorcidos, começam A seca r ecorde dos últimos sete anos, a pior
a responder em 15 ou 20 dias. O que parecia em 100 anos de registros, foi a pá de cal num
morto volta à vida. A Caatinga acorda do processo de degradação de séculos. Em 1901,
sono imposto pela estia gem e exp lod e em na nota de intro dução de Os sertões, Euclides
folhas nova s, cobre -se de flores. Vive como da Cunha disse que sua obra havia perdido a
se não houvesse amanhã, até que a estiagem, atualidade. Estava enganado. Qua se 120 anos
que opera no DNA do Semiárido, condene -a depois, o ciclo de secas e destrui ção ainda apri-
de novo à decrepitude e à letargia. siona o Serniárido. E o homem é o responsá - o
a,

Mas, no deserto , a chuva não traz nada, vel. "Esquecemo -no s, todavia , de um agente g
(!)
o
nem mesmo esperança. "Pode desabar o geológico notável - o homem. Esse, de fato, <3
z
céu, chover o que for, que não há resposta. não raro reage brutalmente sobre a terra e en- "'(!)
Nada brota . Nada ressurge porque a camada tre nó s, nomeadamente , assumiu, em todo o §z
fértil do solo foi erodida e destruída. No de - decorrer da história, o papel de um terrível fa- w
"'
~
serto, o solo não retém nem mais a água da zedor de deserto s", escreveu Cunha , anteci - w
...J

z
chu va", afirmou Barbosa . pando em mais de um século o conceito de i3
,
. '
.. :r:

.'- -- .
• ...
, •
~
....
..,~-


- --- ,.. • •


• • • •
- •

~-
~



,. •
¾
-•• • .,..,.
_... ...-
• :r.;:.,.
••
..
• e'
A -
-• • -

• ...

=~ ~
~
~

•.: - -
"•
- --
• ~
• • _.,.•


,
- ...

'
.-..
~
' i\l;- •
.. •• ... • • •
- : • "<•' •- J,~--A
• ..,:-:.t,,

• -- ; .. ·'--"

, ., •, •
a,,-- •• •
'\,
.. • • •
-. .. -
-
• • • •• • •

, • • ~
• ~


"',dJ' • •

• •
• •
..- • ... ...

-
• • .,


-
.. ...

'

...
..
'
,.,,.,.
f • J "
• •
-
,,. ,.,
.. •

.. •
... ~



,. ..
..,
,.
.. J
-
, ~-.

.. -,.

• ..
'fi,•ç,.
.,, --:r • .,. .. cJ
"lf,JI-' •; . ...
• ... .. .. ...,, .,._'f-



-• • ,. -; -.
.. . -: ',:·~
~. . .,,.
• - r
•• • r4 •
58 TEMPO DE ESTIO

A transformação do Semiárido
em deserto não precisou de
mudança climática. É produto
da exploração sem limite de terras
já castigadas pela seca

Antropoceno, a era do homem como força versidade Federal de Pernambuco e um dos A cerca de troncos de
geológica transformadora do planeta. maiores estudiosos da Caatinga do Brasil. árvores da Caatinga
muitas vezes é tudo o que
De acordo com dados do Ministério do Mas, com os cenários de mudança climá- resta em pé das áreas que
Meio Ambiente, 16% do território brasileiro tica, igualmente associada à ação humana, a viram deserto, como esta
(à dir.) no sertão baiano,
- ou 1,34 milhão de quilômetros quadrados desertificação tende a ganhar velocidade e ta -
nas proximidades de
- corre risco de desertificação. É uma área manho. "Está prevista uma redução de 40% Juazeiro. O rio perene
que abarca 1.490 municípios, a maioria no do volume de chuvas nos próximos 50 anos", voltou com as chuvas do
início deste ano, mas
Nordeste, onde vivem cerca de 35 milhões de acrescentou Barbosa. "A tendência é de mais
cientistas dizem que a
pessoas. O trabalho do Lapis mostra quais aridez. O Brasil está na transição para um pe- chuva não detém a
dessas áreas já saíram de risco para realidade. ríodo mais árido. E haverá mais gente. A so- desertificação em áreas
j á esterilizadas
Surubabel, como os demais desertos do lução está no planejamento, na educação e
Semiárido, é resultado da devastação da Caa- no acesso a tecnologias de adaptação. São
tinga, segundo o Plano de recursoshídricos da tecnologias que existem, mas não chegam aos
Bacia do Rio São Francisco2016-2025. É uma mais pobres. Veja o caso de alguns produto -
terra estéril reclamada pelos tuxás, povo in- res rurais que empregam agricultura de pre -
dígena da Caatinga. Tem 400 hectares de du - cisão no Vale do São Francisco . Eles se man -
nas de 5 metros de altura, às margens do re - têm eficientes com menos água. Mas esse ti -
servatório da hidrelétrica de Itaparica, um po de tecnologia nunca foi disseminado. A
dos grandes barramentos do São Francisco. eficiência só chega ao agronegócio."
O significado de Surubabel se perdeu na "E o que há a combater e a debelar nos
história, contou Wtlton Tuxá, cacique da aldeia sertões do Norte - é o deserto. O martírio
principal de seu povo, em Rodelas. O nome do homem , ali, é o reflexo de tortura maior,
vem de um tempo em que não havia deserto. mais ampla, abrangendo a economia geral
Esse é uma criação humana recente, começou a da Vida. Nasce do martírio secular da Terra",
se formar nos anos 1980. O local, descreve o alertava, em Os sertões, Euclides da Cunha.
plano da bacia, foi exaurido pelo "pastoreio ex- Referia -se à situação em fins do século XIX
cessivo e sofreu desmatamento acentuado". das terras junto a Canudos, no entorno do
No sertão, cabras e bodes pastam soltos e Raso da Catarina, não muito distantes de
comem o que conseguem da vegetação nati - Surubabel, a pouco mais de 100 quilômetros
va. O desmatamento é feito principalmente em linha reta dali.
para a extração de lenha, que representa en- Tinha razão. Mesmo com todo o conheci-
tre 60% e 70% da energia consumida no ser- mento do século XXI, recuperar desertos é o o
ai

tão. Sem a proteção das plantas, o solo areno- equivalente a enxugar gelo, salientou o espe- g
(!)
o
so perde a fertilidade e entra em erosão. Vira cialista em recuperação da Caatinga José Al- <3
z
areia sem vida ou rocha nua. "A transforma - ves Siqueira, da Universidade Federal do Va- "'(!)
ção do Semiárido em deserto não precisou de le do São Francisco. Só que, diferentemente §z
mudança climática. Resultou de séculos de do que pensava o autor de Os sertões, os de- w
a::
~
exploração predatória associada à miséria" , sertos não fazem "uma invasão periódica" w
...J

z
destacou Marcelo Tabarelli, professor da Uni- em "paragens infelizes ". Chegam para ficar. ~
TEMPO DE ESTIO 59

"Desertos são fins de linha. Sua recuperação sem seca. Ali fica o Raso da Catarina, conheci -
teria um custo impossível de pagar. O me - do pela extrema resistência da vegetação à falta
lhor é não produzi -los", afirmou Siqueira. de água. Fica também na área conhecida como
A desertificação une a natureza pouco Polígono da Maconha, onde assaltos são fre-
gen erosa dos solos da Caatinga, que são ra - quentes nas estradas e na balsa que atravessa o
sos, com a ação humana. Quando a vegeta - rio a partir de Belém do São Francisco, em Per-
ção é removida e o solo fica exposto, começa nambuco. "É uma terra dura, que depende do
a erosão. Em média, perde -se um centíme - rio. Ainda assim, faz parte do território ances-
tro de profundidade de solo exposto por tral do meu povo. Aprendemos a viver aqui,
ano . Em 40 anos, não se tem mais nada. E é com todas as dificuldades", frisou Wilton Tuxá.
. (( . . . . .
preciso recuar 1ncont1nente ante o 1n1m1go Os índios do deserto vivem da pesca, cada
invencível e eterno - a terra desolada e es- vez mais escassa no São Francisco, e do plantio
téril ", de Os sertões. "Muitas vezes, resta a de coco verde para os n1ercados do Rio de Ja-
quem vive ali se mudar . São migrações silen - neiro e de São Paulo em terra s irrigada s nas
ciosas, paulatinas, já que a população rural é imediações do Surubabel. Lutam pelo direito à
dispersa. Essas pessoas vão engrossar os cor - terra no Supremo Tribunal Federal e aguardam
dões de pobreza em Petrolina (PE), Campi - que a União faça o levantamento fundiário.
na Grande (PB), Juazeiro do Norte (CE) e Largado à própria sorte, Surubabel se tor -
nas capitais do Nordeste ", disse ledo Sá, en - nou atração turí stica local, já que suas mar -
genheiro flor estal da Embrapa Semiárido. gens formam praias de areia branca sob um
Mas, para os tuxás, o Surubabe l é um lar. quase permanente céu azul. É uma beleza que
Eles estão entre as 35 comunidades indígenas engana e exaure o São Francisco. Levada pelo
do Submédio São Francisco. Vivem numa das vento intenso, a areia avança sobre o rio, asso-
regiões onde menos chove no Brasil - abaixo reia suas margens e o deixa cada vez mais raso.
de 400 milímetros por ano - mesmo em anos Lá só o que cresce é o próprio deserto ___ _

~~~~~~ ;:;'~~~~-5::-~-~-
-:-;;-~~_:--2..._~"'-'-'-"'-"f·~~
; ~~

' ... •


- - .
• .
- - - --
L1'°
•.
~


-.. _ -, .. ........
"'
,_ •• - ..:.!

-- - . -..... -.... . .. -- ...


.,J ~ ... ... : ..,.

_._


- -·- - -
-
- --.
• - •
• - ...
-
• - .- . ..-
- -


- • -
.-
-....

• •


--
• j -



-
• #'

- •
-- -
- •


- - -
• - -
-- - - - - -
·- - - ..
-
• •
-· -·--- ~

--
---.
- --·- -

,--. -
-
-----
i . ...
- - =-
-
- •
- -
- - ...,_

- •
...
,.
- - •
-- - - •

-- •
60

• • hgurovitz@edglobo.com.br
@gurovitz

HELIOGUROVITZÉJORNALISTA O DRAMADO BRASILDESCRITO


EBLOGUEIRODO PORTALG 1
HÁ QUATROSÉCULOS

Q uatrocentos anos é tempo demais. Será? Quatro sécu-


los cingem minha família mais próxima - meus
avós nasceram no XIX; meus netos, se houver, chegarão
Menênio e Volúmnia imploram -lhe por clemência. Corio-
lano cede ao apelo materno. Firma a paz com os roma -
nos, apenas para cair refém de cilada armada por Aufídio.
ao XXII. Quatro séculos também nos separam dele. Ou Shakespeare apresenta os dois princípios em tensão
talvez devesse escrever Ele, com maiúscula mesmo, qual na formação da República romana: a aristocracia, repre -
divindade suprema. Ele, o maior de todos nós, que um sentada por patrícios e generais como o imbatível Corio-
dia já nos debatemos com as palavras na tentativa , sempre lano; e a democracia, pelos tribunos que manipulam a
vã, de deixar rastros escritos. De nada adianta. Ele já es- plebe como forma de garantir seu quinhão de poder.
creveu tudo, pouco mais de quatro séculos atrás, nem faz "Os homens de ambos os lados são apaixonadamente
tanto tempo assim. Ele quem? William Shakespeare, oras. sinceros, porém são guiados pelo extremismo míope ",
Que teria Shakespeare, cujo nascimento e cuja morte escreve o crítico David Bevington. "Os tribunos insis -
são lembrados neste final de abril, a dizer ao Brasil de tem , em nome da multidão, que as vozes das pessoas se-
hoje? Meu palpite é que encenaria aqui sua última tra - jam a lei última de Roma. Coriolano, numa resposta fu-
gédia, aquela que o crítico Harold Bloom chamou de riosa, vê a multidão e seus tribunos eleitos como inimi -
"sua peça política", que o poeta T. S. Eliot preferia a gos da prerrogativa hierárquica, ameaçando a própria
Hamlet - e que o próprio Shakespeare não teve tempo existência do Estado. " As vozes moderadas de Menênio
de montar em vida: Coriolano, a tragédia do general ro - e Volúmnia soam ridículas diante dos dois extremos: o
mano incapaz de se curvar às regras do jogo político pa- populismo que acredita ser possível distribuir comida de
ra conquistar o poder. "O protagonista é um exército de graça a todos e o militarismo que vê no governo aristo-
um homem só, a maior máquina de matar em todo crático a única forma de manter a paz e a ordem.
Shakespeare", diz Bloom. Imbatível no campo de bata - Coriolano já se prestou a leituras antagônicas. O
lha, incorruptível, Caio Márcio derrota o arquirrival marxista Bertolt Brecht celebrou a revolta da plebe con-
Aufídio, general dos volscos, e conquista praticamente tra o general esnobe. O ator e diretor Ralph Fiennes fez
sozinho a cidade de Coriolo, de onde empresta o sobre- do protagonista, no filme ambientado em Belgrado, um
nome. Retorna aclamado como futuro cônsul, líder má - aliado de esquerdistas radicais.
ximo da incipiente República romana.
Em Roma, não vê sentido em distribuir comida de A tragédia de Coriolano é,
graça ao povo que passa fome. Não esconde enxergar a no fundo, a tragédia daqueles que,
plebe como uma multidão de vira-latas fétidos, depen -
dentes das altas castas para sua segurança e prosperida - reféns de orgulho ou ideologia,
de. Aristocrata, orgulhoso, aceita apenas a contragosto, são incapazes de compreender
sob pressão da mãe, Volúmnia, e do senador Menênio, a natureza ambivalente da política.
trajar as vestes rituais da humildade para discursar dian -
te da população que despreza. O malogro é completo. "Se uma conclusão emerge, é que o violento conflito po-
Fora criado para a guerra, não para a política . Mentir pa- lítico conduz somente à anulação das instituições civili-
ra agradar a turba era-lhe impossível. "Um papel que ja- zadas que as poucas pessoas com moderação, como Me-
mais farei bem ", diz. Não tarda a emergir uma conspira- nênio, esforçam-se, no meio do fogo cruzado, inutil -
ção urdida por tribunos da plebe, que veem no desdém mente por preservar", diz Bevington. Eis o recado de
de Coriolano a semente da tirania. É julgado traidor e Shakespeare ao Brasil do século XXI,______ _
expulso da cidade. Como vingança, alia-se a Aufídio e
CORIOLANO
aos volscos para atacar sua Roma natal. Antes do embate William Shakespeare, Lacerda Editora
final, em que destroçaria seus antigos compatriotas, 2000 121Opáginas I R$25
OS-ARRE BENDIDOS
DO BREXl ffi -
Eleitores britânicos que votaram a favor da
saída do Reino Unido da Comunidade
Europeia começam a se movimentar em
defesa da revisão do re sultado do plebiscito
por C laudia Sar m ento , de Londres
-


_/
) ..
.
ti.
64 OPS, FOI MAL

britânico Will Dry, estudante Nada indica que o idealizado conceito de w


u.
u.
de política e economia , tinha autonomia - também impulsionado por ::J
ü

18 anos quando votou pela um forte sentimento anti -imigração de um ~


~

/fJ
ã:
saída do Reino Unido da lado e pelo desprezo pelas elites políticas e :e

União Europeia (UE) no ple- econômicas de outro - trará prosperidade. -5


ü
o
:e
biscito de 2016. Na região de "Votei no Brexit por achar que isso signi - a.
a.
~
onde ele vem, na costa sul da Inglaterra, os ficaria mais liberdade para novos acordos de
defensores do Brexit são maioria. Dry nasceu comércio e mais dinheiro para investimen -
um cidadão europeu, mas seguiu a maré da tos públicos. Mas está claro que ficaremos
antiglobalização. O estudante de Oxford, po - mais pobres e teremos ainda menos controle
rém, não precisou chegar à meia-idade para sobre tratados comerciais e sobre nossas
entender as implicações do rompimento com leis", reconheceu Dry. A própria equipe de
o bloco continental. Ele hoje admite que co- May admitiu que o Brexit terá um impacto
meteu um erro há dois anos ao acreditar que, negativo no crescimento econômico britâni -
livres das regras impostas por Bruxelas, os co de mais de 2%, embora as catastróficas
britânicos teriam uma vida melhor. consequências imediatas previstas pelos es-
Dry faz parte de um grupo de arrependi - trategistas da campanha pró -UE ainda não
dos, identificados com uma onda que já tem tenham ocorrido. O desemprego se mantém
sua hashtag: "Bregret" (acrônimo que com - baixo e a libra esterlina já recuperou parte
bina as palavras Brexit e regret, arrependi - de sua desvalorização. "Minha reação inicial
mento). São eleitores que se dizem engana - foi culpar o governo pela falta de avanço nas
dos pelas promessas da campanha em defesa negociações, e acho que muitas pessoas ain -
da retirada da UE, principalmente a ideia de da pensam assim. Mas essa bagunça toda
que o Reino Unido poderia manter o status significa fundamentalmente que o Brexit
de inserção e influência no plano europeu e não é uma boa ideia", resumiu o estudante.
mundial sem ter de se submeter à burocracia Rever uma posição política e assumir
de uma entidade supranacional. Os últimos publicamente que cometeu um erro de ava-
meses, marcados por uma angustiante queda liação grave não é fácil. No caso do jovem
de braço entre o governo da primeira -minis - Dry, o voto no Brexit foi uma mola que im - M anifestan tes fa zem
prot est o contr a o Partido
tra Theresa May e o comando de Bruxelas, pulsionou uma mudança de vida: ele inter - C o nservado r e a
vêm confirmando que a propagada "reto - rompeu os estudos em Oxford para se dedi - p rimeira- ministra Theresa
mada do controle " por parte dos britânicos car à campanha contra a saída da UE. Re- M ay, qu e p rete nde levar
ad iante p ro cesso d e
(era esse o principal lema da campanha do solveu transformar o arrependimento em saíd a do Reino Unid o
Brexit) não passava de retórica vazia. militância, ajudando a fundar a organização da União Europe ia

f'J:-..STANO
UP
~10 RAC1SM

Fightagainst
lslamophobia

s
íflmen
I
65

Saída oficial do Reino Unido da União Europeia blico. Ele não quer ver sua iniciativa perso -
está marcada para as 23 horas do dia 29 de março nificada por um londrino, já que a capital
não representa os que votaram no Brexit, e
de 2019, seguida por um período de transição de por isso mantém o anonimato. Quem acom -
21 meses; há pontos de impasse em temas como panha a conta no Twitter, que recebeu o
fronteiras, segurança, comércio e Justiça apoio de diferentes movimentos organiza -
dos a fim de parar o Brexit, pode ver relatos
quase diários de pessoas que acreditaram
que poderiam viver no melhor dos mundos,
Our Future, Our Choice (Nosso Futuro, ou seja, continuar usufruindo as vantagens
Nossa Escolha) para conscientizar os jovens do bloco europeu sem precisar se submeter
da importância de acompanhar criticamen - as suas diretrizes. Elas agora admitem sua
te o processo de separação e, se possível, miopia diante da complexidade do processo.
barrá -lo. Will está certo de que não é tarde
demais. "Democracia significa ter mais in - saída oficial da UE acontecerá às 23 horas
formações, e hoje entendemos muito me - A do dia 29 de março de 2019, seguida por
lhor o que o Brexit significa. O povo tem um período de transição de 21 meses para
direito a um novo voto para dizer se aceita permitir que os diferentes setores da socieda -
ou não a ruptura com a UE nos termos ago - de britânica se adaptem às legislações do pós -
ra conhecidos ", justificou. Brexit. Antes disso, em outubro, May precisa
Para o advogado Andy (ele pede para não submeter ao Parlamento os termos das nego -
ter o sobrenome divulgado), o plebiscito ciações com Bruxelas. Ainda há vários pon -
também foi o catalisador de uma reflexão tos sem definição, principalmente nas áreas
mais profunda sobre seu país. Como a maio - de comércio, segurança e Justiça, além do im -
ria dos moradores de Londres, votou contra passe em relação à fronteira entre a Irlanda
a saída da UE e teve um choque quando o do Norte (parte do Reino Unido) e a Repú -
resultado do referendo de 23 de junho de blica da Irlanda (membro da UE).
2016 foi divulgado - em meio a uma ma - Nas ruas de Londres, manifestações a fa-
drugada interminável, difícil de esquecer . vor de uma nova votação começam a ser
Com o passar dos meses, começou a ouvir vistas com mais frequência, na medida em
relatos de pessoas próximas que assumiam que fica claro que os britânicos perderão o
seu arrependimento por ter contribuído para acesso livre ao mercado europeu, responsá -
o divórcio entre Londres e Bruxelas. Decidiu vel pela metade de seu comércio. Os organi -
criar uma conta no Twitter (@Remainernow) zadores da campanha People 's Vote (Voto
para encorajar os "bregreters" a falar aberta - do Povo), que reuniu 1.200 pessoas semanas
mente sobre por que mudaram de ideia. É atrás, evitam a expressão "segundo referen -
um fórum virtual para promover tolerância do", que soa como um desrespeito à decisão
no lugar de conflito e ressentimento. "Sem- popular de 2016. Eles defendem , porém, o
pre vi o Brexit como um desastre e, quando a direito de os eleitores voltarem às urnas para
separação acontecer, o país continuará bri - dizer se aprovam o acordo final sobre o Bre-
gando. É um debate muito agressivo. Para xit ou se preferem permanecer na UE. Nada
promover a união, acho que a melhor saída é indica , no entanto, que o resultado de dois
tentar um consenso em direção à permanên -
, - . .
anos atras nao se repet1r1a.
cia na UE. Tenho visto muita gente se dizen - A realização de um novo plebiscito ainda
do arrependida e eu quis criar um espaço co- é considerada uma possibilidade remota, re -
munitário para reunir evidências dessa mu - jeita da tanto pelo governo conservador
dança de mentalidade", explicou Andy. quanto pela oposição trabalhista. O único
Seu objetivo final é mobilizar os arrepen - partido que apoia a ideia é o Liberal Demo -
didos e pressionar os parlamentares a votar crata, que teve apenas 7% dos votos nas últi -
por um pacto final que realmente beneficie mas eleições. A mais recente pesquisa do
o Reino Unido, fornecendo dados para rejei - YouGov mostra que a maioria dos que vota-
tar um acordo que não seja do interesse pú - ram a favor da saída da UE (o grupo do Leave)
66 OPS, FOI MAL

continua a defender essa posição, enquanto a liberar ajuda aos gregos. Alguns meses de-
maioria dos que eram contra ( o campo do pois da vitória do Brexit, Tanner visitou a
Remain) define o Brexit como um erro desas- Croácia e Portugal e enxergou o outro lado
troso. Em relação ao ano passado, a sonda - da moeda da União Europeia . "Quando des -
gem aponta um crescimento dos opositores ci do avião na Croácia , uma região que sem - (/)

;1:
da separação: para 45%, os britânicos erraram pre considerei insegura por causa das lem - ..J

em deixar a UE, enquanto 42% aprovam ore - branças da guerra, vi a bandeira da UE e re- 5:
~
..J
..J
sultado do plebiscito . Levando em conta a laxei imediatamente. Eu me dei conta de w

margem de erro, não é possível dizer com que, apesar de tudo, se você estiver num país !
~
certeza que o jogo virou e que o Brexit passou da comunidade europeia, pode ter certeza de o:e
a.
a.
a ser condenado pela maioria. "Não há nada que haverá padrões de segurança decentes ", u.
<
(/)

muito convincente. A manchete continua contou o britânico . Em seguida, foi a Portu - :::l
~
z
sendo que o Reino Unido está dividido, meio gal, e uma cena que presenciou em Sintra o :;;
::,
a meio. Há uma movimentação entre os elei- marcou. "Conhecemos uma moça alemã que ~

õ
tores que estavam indecisos e, agora, se mos - dirigia um tuk -tuk como emprego nas férias õ
:e
a.
a.
tram mais propensos a apoiar a permanência de verão. Pensei em como era maravilhosa u.
<
na UE ", esclareceu o pesquisador Simon essa possibilidade de poder trabalhar em
Usherwood , vice-diretor do centro de estudos qualquer lugar da Europa, como cidadão da
especializado na relação Reino Unido -União UE, e lamentei profundamente ter negado
Europeia UK in a Changing Europe. essa oportunidade a meus filhos", admitiu.
Dan Tanner , morador do sul da In glater -
an Tanner, de 50 anos, é outro eleitor ra, onde os eleitores que votaram no Brexit
D que votou no Brexit para protestar con - são maioria, é um pseudônimo. Muitas das
tra o que considerava políticas antidemocrá - pessoas que declaram seu arrependimento
ticas da UE. Ele cita a crise financeira na nas mídias sociais preferem não ter seus no -
Grécia como um símbolo do abuso de poder mes divulgados, em tempos de polarização
por parte de instituições europeias que exigi- e haters. É u.m pedido sintomático de uma
ram medidas de austeridade drásticas para sociedade fraturada.

A primeira -ministr a
b ritâ nica, Theresa M ay,
cheg a à sed e d a União
Europe ia, em Bruxelas,
para encon t ro em
q ue dis c utiu parâ met ros
para o Brexit

mma Knuckey também está entre os que ean (apenas o primeiro nome do entre -
Manifestante com
boneco da primeira -ministra
Theresa May (acima),
E se arrependem do voto no Brexit. Ela en - S vistado foi autorizado para publicação)
teve a chance de fazer duas escolhas em rela -
em protesto em frente tende que uma decisão popular não pode
ao Parlamento britânico ser ignorada, mas defende uma nova vota- ção à UE ao lon go da vida. Em 1975, votou a
em Londres. Adireita, ção para que os britânicos possam dizer que favor da permanên cia do Reino Unido no
defensores da permanência
do país na União Europeia tipo de acordo querem , além de ter a opção mercado único. Quatro décadas depois, deu
querem possibilidade de rejeitar a saída do mercado comum e da seu voto para o Brexit. "Senti que, com o
de revogar plebiscito que união aduaneira. Knuckey apoiou o rompi - passar do tempo, a UE ficou mais poderosa e
aprovou o Brexit
mento com a UE por acreditar, entre outras a ideia ori ginal do mercado comu .m se per-
razões, na promessa de que, sem os com- deu. Achei que era hora de uma mudança,
promissos financeiros determinados pelo mas, depois da vitória do Brexit, percebi que
bloco europeu, o Reino Unido poderia in - a campanha havia sido contaminada com
vestir 350 milhões de libras esterlinas (cerca mentiras e falsas promessas ", afirmou . "O ti -
de R$ 1,7 bi) semanais no NHS, o sistema me que negocia o Brexit é amador e vai iso-
público de saúde britânico. O compromisso lar o Reino Unido. Vivi da crença de que o
foi descartado assim que Theresa May assu - país estaria melhor fora do bloco e agora me
miu o comando do governo. "Eu me arre - sinto arrasado. A UE precisa ser reformada,
pendi muito rapidamente. Percebi não ape- mas todos os seus defeitos ficam insignifi -
nas que sabia muito pouco sobre a UE, co- cantes diante do desastre que nos aguarda
mo também que houve inverdades durante em março de 2019", prevê, sem acreditar que
a campanha do Brexit ", relatou Knuckey. ainda há chances de reverter o estrago.
"A questão mais alarmante para mim é o Num trem lotado a caminho do sul de
subsequente tratamento aterrador que os ci- Londres nesta semana, um grupo de jovens
dadãos da UE e os britânicos que vivem em apostava no contrário. Eles tentavam achar lu-
países da UE vêm recebendo. As pessoas de - gar entre a multidão da hora do rush com su-
veriam vir antes da política e eu nunca quis as bandeiras da União Europeia. Haviam aca-
que indivíduos , famí lias ou nações fossem bado de sair de uma manifestação em frente
atirados ao limbo, à insegurança, à inf elici- ao Parlamento, em Westminster. As faixas e
dade ou ao medo. Nunca", disse ela, referin- camisetas que portavam deixavam clara sua
do -se a imigrantes europeus que não se sen- mensagem: "Pare o Brexit". Ou, menos sutil-
tem mais bem -vindos no Reino Unido e aos mente , "F***-se o Brexit". São os representan -
britânicos que vivem em países da comuni- tes da geração que foi minoritária na votação
dade europeia e enfrentam a incerteza sobre de dois anos atrás, mas que terá de arcar com
seus direitos de ficar onde estão. as consequências do que está por vir,___ _
.,_
!z
:,
N
o
o
w
"'
u.

~
5
.,_
:e
.,_
<
Multidão nas ruas de Manágua contra a reforma previdenc iária proposta pelo governo de Daniel Ortega

o II u m alucinante personagem, que depois de comandar a


Revolução Sandinis ta contra a ditadura dos Somoza,
foi gradualmen te se transformando, ele próprio, em um
NOVO CONTRA Anastácio Somoza moderno." Com essas palavras o escri-
tor peruano e Nobel de Literatura Mario Vargas Llosa des-

AVELHA creveu o presidente nicaraguense Daniel Ortega, que dias


atrás, ao anunciar uma impopular reforma da Previdência,

MESMA COISA desatou a pior crise política do país desde que retornou ao
poder há 11 anos. As manifestações, reprimidas com fero-
cidade pela polícia e pelos militares, deixaram o saldo de
Longe dos partidos e convocadas mais de 30 mortos, entre os quais o jornalista Ángel Gahona,
do telejornal El Meridiano, morto por uma bala enquanto
por redes sociais, multidões vão fazia uma transmissão ao vivo pelo Facebook Live.
às ruas na Nicarágua em protestos Além disso, a polícia feriu 430 civis. Mais de 100 pes -
contra reformas do governo soas que estavam se manifestando no bastião estudanti l de
Manágua, a Universidade Politécnica, foram detidas ou
que nasceu marxista e tornou-se estão desaparecidas. Diversos manifes tantes, para fugir
conservador das forças de segurança, precisaram se refugiar em tem -
plos da Igreja Católica, tal como faziam os sandinistas há
por Ariel Palacios quatro décadas, antes de derrubar a ditadura somozista.
Ortega, um ex-guerri lh eiro marxista que na última
década adotou a cartilha do Fundo Monetário Interna -
cional (FM I), havia anunciado uma reforma previden -
ciária que implicava o aumento de até 22,5% dos encar-
gos de trabalhadores e empresas para a Previdência So-
cial. Além disso, a reforma determinava a redução das
aposentadorias em 5%.
70 FANTASMAS LATINOS

A Previdência Social, que até 2007, ano da volta de Zoilamérica Narváez Murillo, está ausente das reuniões
Ortega ao poder, tinha um superávit de US$ 32,6 milhões, familiares, já que denunciou que havia sido abusada se-
atualmente padece um déficit de US$ 75 milhões. xualmente pelo padrasto desde os 12 anos de idade, isto
No entanto, a reação popular contra o ajuste na Previ - é, desde 1979 - quando Ortega era o todo -poderoso
dência (liderada por estudantes universitários) aliada à chefe da vitoriosa Revolução - até o fim dos anos 1980.
condenação mundial (desde o governo de Donald Trump Mas, em 2001, a Justiça da Nicarágua considerou que a
até o Papa Francisco) levaram Ortega a recuar pela pri - ação penal havia prescrito, e Ortega salvou-se das acusa-
meira vez em sua carreira política. ções. Zoilamérica, ao ver que sua própria mãe respaldava
Mas a marcha a ré de Ortega foi insuficiente para seu padrasto, partiu para o exílio.
acalmar os ânimos dos nicaraguenses. Um dia após o a- Nos últimos anos, enquanto que no âmbito externo
núncio do cancelamento da reforma previdenciária , os mantinha os laços com Cuba e com a Venezuela boliva -
estudantes universitários declararam que a mobilização riana - com longos discursos defendendo o socialismo
permanece. Segundo eles, os protestos passam para uma caribenho - , na frente interna Ortega arquivou o falató -
segunda etapa, a de exigir liberdade de expressão e o rio marxista e guevarista e protagonizou uma guinada
combate à corrupção que se alastrou no atual governo. Os para a direita , aliando-se com o empresariado conserva-
manifestantes também exigem a renúncia do presidente. dor da Nicarágua em uma espécie de "cog overno" bati -
Na sequência, os movimentos camponeses convoca- zado de "Diálogo e Consenso", que propiciou aos em-
ram uma greve até que Ortega acate as demandas dos presários grandes privilégios e isenções tributárias.
. . , .
un1vers1tar1os. Os sandinistas ortodoxos, horrorizados com a guina-
A mulher de Ortega, Rosario Murillo, que também é da de Ortega , afastaram-se do presidente.
sua vice-presidente e mistura conceitos de marxismo Em seu novo papel conservador, Ortega impediu to -
com filosofia new age, chamou os manifestantes de do tipo de lei de despenalização do aborto (inclusive o
"vampiros em busca de sangue" e afirmou que as mar - terapêutico). Em sua terceira Presidência, o líder sandi-
chas de protesto eram "minúsculas ". nista passou a usar o slogan de "Cristão, socialista e soli-
Irritados, estudantes e aposentados derrubaram e dário ". Também fez as pazes com um antissandinista
queimaram uma dezena de "árvores da vida", denomi - por excelência dos anos 1980, o cardeal Miguel Obando,
nação das enormes estruturas metálicas instaladas por que em 2005 oficiou o casamento formal, na Igreja, de
ordem de Rosario ao lado das principais avenidas, que , Ortega e Rosario, juntos desde os anos 1970.
pintadas de lilás (a cor favorita da vice-presidente), si- Dentro do tom religioso do regime, Rosario - abar-
mulam árvores da obra do pintor simbolista austro- rotada de anéis, pulseiras, colares e lenços - aparece
húngaro Gustav Klimt (1862-1918). quase todos os dias ao vivo nos quatro canais de TV de
seus filhos, citando a Virgem Maria e realizando fervoro-
rtega entrou na guerrilha do movimento sandinista, sas orações para a nação, além de dar a lista dos santos
O de esquerda, em 1969 . Uma década mais tarde havia
se tornado o líder da revolução que derrubou o regime
católicos do dia.
Os protestos ao longo das últimas semanas na Ni -
do ditador Anastácio Somoza. Dessa forma, em 1979 as- carágua não tiveram a participação dos partidos políti-
sumiu como "presidente da Junta de Governo de Re- cos de oposição, já que - bem como o governo - são
construção Nacional da República da Nicarágua", ali- impopulares. As manifestações foram autoconvocadas
nhando o país com Cuba e a União Soviética. pelas redes sociais.
Entre 1985 e 1990 foi presidente da República. Voltou Prevendo que no mundo virtual estaria sua nova
ao poder em 2007 e foi reeleito em 2011. Em 2016 conse- frente de batalha, Rosario Murillo havia anunciado em
guiu na Justiça (controlada por seu governo) a anulação março que estava avaliando a implantação de uma lei pa-
da candidatura do principal nome da oposição. Assim, ra "revisa r" o uso das redes sociais no país, já que essas
Ortega foi naquele ano o único candidato com chances estariam "influenciando negativamente " os nicaraguen -
concretas de vitória nas urnas. ses. Murillo sustentou que as redes estavam "afetando a
A vice-presidente na chapa foi Rosario Murillo. Desde capacidade de convivência das famílias" da Nicarágua.
que o argentino Juan Don1ingo Perón colocou sua tercei - Segundo a socióloga nicaraguense Elvira Cuadra, os
ra mulher, Isabelita Perón, como sua própria candidata a manifestantes são majoritariamente "pess oas que nasce-
. . , . .
VIce, em 1973, nunca n1nguem no continente americano ram depois da guerra civil e da revolução, ouvindo e acre-
com chances eleitorais reais havia feito uma jogada simi- ditando que, após a derrubada de Somoza, a Nicarágua
lar. Ortega foi reeleito com 72% dos votos úteis. havia se transformado em uma democracia e que os cida-
Daniel Ortega e Rosario Murillo governam em con- dãos possuem direitos". Não é à toa que, nos protestos
junto enquanto os filhos do casal ampliam sua presença contra Ortega, os estudantes tiveram como principal slogan
no mundo empresarial. No entanto, a enteada de Ortega, a frase "Daniel y Somoza son la misn1a cosa!",____ _
Em meio a autores clássicos estrangeiros,
brasileiros se destacam com textos sobre
loucura,alucinaçãoe canibalismo
porAlessandro Giannini

er contos de terror escritos pelo america- O livro, de acordo com o editor Fabiano
L no Edgar Allan Poe ou pelo alemão E. T. A.
Hoffmann, dois expoentes da literatura que
Curi, foi inspirado nos dois volumes de
Ghost stories, publicados pela editora britâ-
floresceu entre o século XIX e o início do sé- nica Everyman em sua coleção Library
culo XX e especialistas na arte de criar enre - pocket classics series. As coletâneas originais
dos de assombrar, é sempre um prazer - se ativeram aos critérios de seleção expostos
mas um prazer conhecido. É claro que ambos no título, com histórias de autores tão insus -
estão entre os 18 autores reunidos na antolo - peitos como Elizabeth Bowen e Jorge Luís
gia Contos de assombro ( Caramba ia, 224 Borges, Eudora Welty e Vladimir Nabokov,
págs., R$ 89,90 ). A lista, no entanto, vai além Ray Bradbury e Edith Wharton , entre ou -
do cânone. Traz autores pouco ou nada asso- tros . A versão brasileira tem uma ambição
ciados aos gêneros pós -góticos do fantástico e maior . Além de tentar se afastar da ideia de
sobrenatural, como o russo Ivan Turguêniev, gênero ao assumir "assombro " como tema,
o dramaturgo italiano Luigi Pirandello, a in - demonstra como a expansão do fantástico e
glesa Vrrginia Woolf - e até os brasileiros João do sobrenatural no período abrangido foi
do Rio e Medeiros e Albuquerque . Torna -se, ampla e atingiu uma grande variedade de
assim, uma leitura interessante. idiomas e tradições culturais.
CONTOS ASSOMBROSOS 73

<f)
Em meio aos estrangeiros, três brasileiros A coletânea traz nomes insuspeitos, mas
w
(!)
<(
:;;
se destacam, com contos de alucinação, lou - incomuns na área do terror, como o russo
E cura e canibalismo. São textos pouco ou na- Ivan Turguêniev, conhecido principalmente
~ü da conhecidos de cada um deles. O flaneur pelo romance realista Pais e filhos, de 1862.
o,- João do Rio, um dos primeiros a transportar Em "O cachorro", de 1864, Turguêniev desen -
<f)

"'
z
para a literatura técnicas jornalistas e vice-
i!: volve uma narrativa em que um funcionário
versa, comparece com "Pavor", publicado no público, um burocrata do Estado - persona -
jornal O Commercio de São Paulo, em no - gem inescapável em romances russos daquele
vembro de 1911,e posteriormente inserido na período -, convence-se de que um cão está
coletânea Rosário da ilusão, de 1921.No con - atrapalhando seu sono. Em seu pensamento, o
to, um homem chega em casa na alta madru - hipotético animal está embaixo de sua cama.
gada, após vagar a esmo pelas ruas "apressa - Há também o britânico Robert Louis Steven-
do e sem destino ". ''Vibravam -lhe os nervos , son, associado a romances de aventura como
tinha a boca amarga, o lábio seco. A passeata o clássico A ilha do tesouro,que apela para as
perdida sob a chuva entristecera-o, enche- lendas em "Janet, a troncha", escrito original-
ra -o de uma dor inquieta, de um receio in- mente em dialeto escocês e considerado por
deciso. E estava ali, querendo dormir, só dor - Henry James "uma obra-prima em 13 pági-
mir, senão dormir." Nesse estado de excita- nas". Ou ainda as três mulheres selecionadas:
ção e em estado de vigília, ele começa a deli - Virgínia Woolf, que assina o conto "A mulher
rar com os sons e barulhos da casa. no espelho - Uma reflexão"; Emilia Pardo
Autor da letra do Hino da Proclamação da Bazán, com "Irmã Aparición", e Edith Whar-
República, o pernambucano Medeiros e Al- ton e seu "A plenitude de uma vida".
buquerque, que se dividiu em sua carreira li- Entre aqueles autores já esperados, o ensaio
terária entre o Simbolismo, a narrativa deca - "Adeus, mistérios", de Guy de Maupassant,
dentista e o Parnasianis1no, assina "O soldado publicado em 1881no jornal Le Gaulois, foi o
Jacob", publicado anteriormente numa coletâ- escolhido. No texto, o escritor francês, conhe-
nea intitulada Um homem prático, de 1898. cido por ser apadrinhado de Gustave Flaubert
Ambientado no fim de um ano qualquer em e por formular o conto moderno, faz uma es-
Paris, o conto se traveste na crônica de um es- pécie de ode aos temas que giran1 en1 torno do
tudante de medicina que faz uma visita a um fantástico e do sobrenatural, que ainda flores-
hospital psiquiátrico onde está internado há ciam na época da publicação. Maupassant, no
23 anos o tal Jacob. Veterano da Guerra Fran- entanto, lamenta que esses escritos estejam
co-Prussiana, o militar sofre com um trauma perdendo espaço para o racionalismo científi-
permanente, o que lhe confere gestos bruscos: co que também abria caminho na trilha para o
"Sentia -se bem, à mais simples inspeção, que novo século. "Com o eu gostaria de acreditar
• . I • • •
o velho tinha diante de si um fantasma qual- nessas coisas vagas e terr1ve1sque 1mag1namos
quer, qualquer, alucinação do seu cérebro de- perceber passando nas sombras!", disse.
mente - e forcejava por afastá-la". No posfácio, intitulado "As estranhezas
O escritor maranhense Humberto de insuspeitas e inexpugnáveis", o professor
Campos, poeta neoparnasiano, era jornalista, Alcebíades Diniz escreveu: "Há contos em
foi membro da Academia Brasileira de Letras inglês, francês, espanhol, alemão, russo e
e deputado federal - até ser cassado pelo go- português cobrindo tradições culturais va-
verno de Getulio Vargas. Prolífico cronista, re- riadas, desde o Romantismo ( que tanto co -
pórter e crítico de arte, ele flertou com os con- laborou para uma elaboração mais sofisti-
tos, como o selecionado na antologia, "O jura- cada do sobrenatural empregado no fan-
mento ", que fez parte da coletânea Monstros e tástico) até o Decadentismo fin de siecle".
outros contos, de 1932. Na história, também O leque coberto pela antologia mostra que
ambientada na Europa, dois passageiros con- as tendências literárias, longe de serem lo -
versam durante um cruzeiro. Um deles, um calizadas, são reflexos de um estado de
argentino de nome Ramon Gonzalez y Gonza- coisas que se move e reage de acordo com
lez, narra para o outro a história de uma via- aspectos sociais e históricos . O medo do
gem feita com a mulher de seus sonhos, que desconhecido, o medo do outro, o medo
termina numa emboscada de índios antropó- das diferenças e outros medos parecidos
fagos - e um inescapável banquete canibal. estão na raiz de todas essas histórias __ _
74

z
o
ti
'j
...J
o
ü
I=
w
"'
~
i,;
~
::,
o
ü
AVIDA COMO ELAÉ 75

Nunca foi tão fácil trair.


Nunca foi tão difícil esconder
por Valéria França

A mulher está cismada com a quantidade


de mensagens que o marido recebe por
dia. Também está intrigada porque ele não
graças à tecnologia e às redes sociais. Uma
busca rápida na internet sobre o assunto traz
informações que corroboram a ideia de que
desgruda do celular nem quando vai ao ba - imaginar uma relação imune ao adultério é
nheiro. Somados a isso, outros indicadores quase um devaneio. Um estudo do periódico
fermentam seu desconforto: ele trocou a ar- Archives of Sexual Behavior, de 2017, obser -
mação dos óculos, voltou a correr, aumen - vou 500 adultos que tiveram dois casamen -
tou o número de viagens a trabalho. Sur- tos. Quem traiu no primeiro tem três vezes
preendentemente, está mais carinhoso. mais chances de trair o segundo cônjuge. En1
Uma noite - das raras que passam jun- 2011, a mesn1a publicação demonstrou que a
tos-, ela bola um plano: vão a um restau - infidelidade é tão comum entre homens
rante, ela insiste para que tomem a segunda quanto em mulheres. Um levantamento da
garrafa de vinho (na verdade, ela bica a be - American Sociological Review em 2015 mos -
bida, quem bebe é ele), voltam altinhos para trou que dependência financeira não protege,
casa. Cansado, de pileque, ele capota na ca- pelo menos as mulheres, de serem traídas:
ma. Ela pega o celular, segura o polegar do 15% dos homens que são fmanceiran1ente de -
marido desacordado e o comprime com cui - pendentes das parceiras as traem. No caso de-
dado no botão que liga o aparelho. Tcha - las, só 5 % relataram ser infiéis. Um estudo
ram! A tela se abre no WhatsApp e ela pode publicado pelo Journal of Personality and So-
ver a troca extensa de recados dele com ou - cial Psychology em fevereiro mostrou que as
tra mulher. É o fim do casamento? pessoas com alto grau de satisfação sexual
O que no passado dependia de uma mar - eram mais propensas a trair os parceiros. Os
ca de batom na blusa, de um flagra, de um pesquisadores acreditam que quem está sexu-
dedo -duro, de uma foto roubada, hoje acon - almente satisfeito é, em geral, mais aberto a
tece com apenas um delicado toque no celu - ter novas experiências sexuais.
lar - o guardião dos segredos mais precisos Diante do quase inevitável, vem a pergunta:
e mais evidentes (fotos, nudes, mensagens o que fazer? Se ser pego no flagra ficou muito
românticas, azaração) da infidelidade. Des- mais fácil e a humanidade não parece ter mu -
cobrir uma traição se tornou muito mais fá- dado o pendor por pular a cerca, é de se pen -
cil. Entrar num relacionamento extraconju - sar que mais relações amorosas vão acabar e
gal também. Há sites feitos sob medida para isso acontecerá ainda mais cedo? A pesquisa-
isso (como o extraconjugais.com ou o aman - dora belga Esther Perel rebate com outra per -
tediscreto.com), há aplicativos talhados para gunta: e se a infidelidade for algo bom?
esconder o que não pode ser revelado (como Perel, de 59 anos, loira, vestida com rou -
o Vaulty Stocks, que parece um aplicativo pas bem nova -iorquinas e com um leve e
para checar o mercado financeiro, mas fun - sensual sotaque do francês materno, atende
Em Cenas de um
casam ento (1973), ciona para armazenar fotos e vídeos pican - casais em um consultório em Manhattan há
o cin easta sueco Ingma r tes), sem falar no pior inimigo da união está - 34 anos. Seu livro Sexo no cativeiro, lançado
Bergm an con ta a histó ria vel: o Telegram - cujas mensagens são en- em 2006, foi um fenômeno mundial de ven -
d e um mat rimô nio
apa rentem ente f eliz que criptadas e onde é possível definir um tempo das e suas duas últimas conferências em ví-
aca ba qu ando)o han para que sejam destruídas automaticamente. deo - TEDs - tiveram mais de 20 milhões
(Erland Jos ephson) conta Casos acontecem, sempre aconteceram, de visualizações.
a M arianne (Liv Ullmann)
que pre te nd e viv er co m
mas, aparentemente, desenvolvem -se e to - No novo livro, Casos e casos - Repensan -
sua jov em amant e mam corpo com mais rapidez e facilidade do a infidelidade (já disponível em português
76 AVIDA COMO ELAÉ

em e-book e com lançamento em papel pre- meu marido na cama com outra", contou.
visto para maio, pela editora Objetiva), a gu- Mas, como a dar razão às ideias de Perel,
ru internacional dos relacionamentos amoro- Siequeroli acredita que o que parecia uma
sos diz que a infidelidade é mais comum do tragédia mudou sua vida para melhor .
que se imagina, muito mal compreendida e, "Fo i um choque, mas ao mesmo tempo
sim, perfeitamente defensável . Com a elo- senti um grande alívio", lembrou . O casal
quência e a propriedade que lhe são caracte- tinha uma amiga em comum, de quem a
rísticas, ela vai além: empresária sempre teve ciúmes. "Eu me
"A infidelidade tem a tenacidade que o sentia mal com isso e não sabia se era coi-
.
casamento apenas 1nveJa . '' . sa de minha cabeça ou se de fato acontecia
Perel defende que, apesar do peso trági - algo. Quando vi os dois juntos, percebi
co que carrega, a traição pode ser uma gran- que eu tinha razão. Foi ruim, mas foi bom
de chance para a reconstrução de um matri - porque pelo menos a tortura da desconfian-
mônio mais feliz. "Muitas pessoas tiveram ça terminou ali."
experiências positivas com a infidelidade, Depois de muito choro, dor, discussões
passaram por mudanças transformadoras e conversas intermináveis, Siequeroli deci-
tão grandes quanto passam os doentes ter - diu não se separar. "Perdoei . Sabia que ele
minais. Mas eu não aconselharia ninguém a me amava muito. Nosso casamento era
ter um caso, como não aconselharia nin - ótimo em vários campos . Muitos critica-
guém a desenvolver um câncer." ram minha decisão. Houve pressão para
A empresária Carolina Siequeroli des- que me separasse."
cobriu que era traída da maneira mais cli- Perel afirma que os relacionamentos
chê que existe. "Logo que me casei, peguei são como "uma colcha de regras" que co-
meça a se esticar desde o primeiro dia pa-
ra se moldar à realidade. Siequeroli mu -
Disfarçado de dou o tecido da colcha. ''Pa ra mim, trai -
calculadora, o aplicativo ção passou a ser estar ao lado de alguém
KYMS é ideal para quem Choose a new 4 digít passcode
pretende esconder fisicamente por obrigação, mas desejando
mensagens ou nudes. and press %(do11e). estar com outra pessoa." O casal decidiu
É preciso digitar uma "revelar desejos e vontades sem falsa mo -
senha para ter acesso
aos arquivos ral". "Passei a ser a única em minha tur -
ma de amigas que não controlava o mari -
do, mas que tinha a relação mais transpa -
rente de todas ." Carolina teve dois filhos
e viveu feliz por 11 anos. A separação veio,
+;_ AC segundo ela, porque o amor foi acabando.
"Hoje, além de pai de meus filhos, ele é
meu melhor amigo. Quem mais me ajuda
na vida", disse.
7 8 9 gerente comercial Roberta Grillo, um
A belo dia, quando já tinha nove anos de
um bom casamento e pouco depois do nas-
cimento do primogênito, viu mensagens de
4 5 6 uma mulher no celular do marido. Ela, que
é workaholic e nunca fez o tipo controlado-
ra, teve "quase certeza" de que ele estava
tendo um caso, mas não rastreou mais nada.
1 2 3 Decidiu também não fazer perguntas. "Po-
dia ser algo passageiro e eu não queria me
separar. A gente sempre acha que é reversí-
o 00 •
vel." Nesse caso, não foi. O marido tinha se
apaixonado por uma terceira pessoa, e os
dois se separaram amigavelmente.
77

pesar de detestadas, relações extraconju -


%
::,
a
~
A gais são mais frequentes do que se admi-
Q.
w te. Uma pesquisa do Hospital das Clínicas de
"'
São Paulo, feita há dois anos com 8.200 pes-
soas, apontou que 50,5% dos homens e
30,2% das mulheres já foram infiéis no rela-
cionamento. As estatísticas nos Estados Uni -
dos variam de 26% a 70% para elas e 33% a
75% para eles. Os estudiosos do assunto, po-
rém, garantem que os números devem ser
maiores. No consultório de Perel, a maioria
Gigica18 • •bia26535
dos pacientes diz que é horrível esconder um
28, Rio dê Janeiro,... 27, Rio de Janeiro,... caso extraconjugal do parceiro, mas que faria
o mesmo se tivesse um amante.
[ ~ Mensagen1 l [ ~ Mensagem ] O modelo cearense Lucas Fernandes, de
27 anos, participava de um reality show.
"A vid a é cu rta . Tenha um
caso. " Esse é o slogan do
Ashley Mad ison , apl icativo
Por isso mesmo, não conseguiu esconder cr iado par a f aci lita r
dos milhões de telespectadores do Big Bro - tr aiçõe s mat rimon iais.
O Brasil foi o se g und o país
ther Brasil deste ano que, no mínimo, tinha co m mais usuár ios
se encantado pela personal trainer catari - inscr itos no an o passado
nense Jéssica Mueller, de 26 anos. Foi o que
Extracon j ug ais é um ent re
bastou para ele ser expulso. O público sabia muit os site s cri ados nos
que Lucas tinha uma noiva, a modelo Ana últimos an os para faci litar
Lúcia Vilela - que era uma dos milhões de encon tr os adúl teros

• Sedutora2721 • AJêlefe2018 telespectadores que acompanhavam o pro - Ab aixo , à direit a, o


37, Duque de Gruda•.. 47, Rio de Janeiro, ... grama. Ao ser enviado para o "paredão", ap lic at ivo l nvis ible Text
Fernandes foi eliminado por ter jogado mal p ermite enviar
sec ret am en te te xtos, fotos
Q e pela infidelidade. A noiva não apareceu e víd eos , sem que sejam
para recebê -lo na saída da casa. A cantora arm azena dos no c elu lar

Nas palestras que Esther Perel dá ao redor


do mundo, ela costuma perguntar se alguém
já passou por uma experiência parecida. Nin -
guém nunca levantava a mão até que, recen -
temente, na França, alguns o fizeram. Admi -
tir em público ser vítima ou autor de uma
traição é raríssimo. Mal con1preendida, se-
gundo Perel, a traição segue tabu. Durante a
apuração desta reportagem, foi perguntado se
alguém teria uma história do tipo para contar
em um grupo de adultos, ex-colegas do colégio
paulistano Bandeirantes. Havia 150 pessoas
presentes, ninguém se manifestou. O silêncio
foi o mesmo en1 outro grupo com cerca de
20 mulheres, todas com nível superior. Na
verdade, uma disse, quase em desabafo: "De-
ve ser horrível passar por isso, não desejo pa -
ra ninguém". Numa pesquisa feita pelo Insti-
tuto Gallup nos Estados Unidos, 91% dos en-
trevistados disseram que a infidelidade é mo-
ralmente condenável - mais detestável do
que a poligamia, o divórcio e o suicídio.
78

Roberta Miranda o condenou numa rede o mercado trabalha duro


social: "Se sou noiva desse moço, meto -lhe para garantir a
chifre com o melhor amigo dele" . Os noivos
- sao
nao - mais. noivos
.
. privacidade de quem quer
esconder o que não pode
infidelidade já não tem mais o peso ser revelado
A de uma tragédia shakespeariana, mas
ainda desestabiliza qualquer um. Em Otelo,
o general mouro enlouquece com o ciú -
me provocado por uma suspeita de que a
mulher, Desdêmona, o traía . Otelo mata a
mulher e, ao perceber que ela era inocen -
te, suicida-se. "A sociedade moderna con-
tinua impregnada de uma enorme culpa
cristã", disse a psicoterapeuta de casais
Lídia Aratangy, que há mais de 30 anos li -
da com dilemas conjugais. "Nas gerações
passadas, muitos homens se vangloria-
vam dos casos extraconjugais. Hoje, não
mais , até porque houve uma valorização Telegram
'
do vincu 1o amoroso. ,,
T™!y,Q111i
'!iil<llilesl ~9 é!W•
A valorização do amor, porém, não sig- lt Isfl'ée~d setute.

nifica que eles estejam traindo menos do •


que antes. Nem que elas, depois de muitas
conquistas sociais, mudaram de comporta-
mento. Ainda há mais preconceito contra
as mulheres que traem do que quando se Contirniarem Português
trata dos homens.

Esther Perel cita pesquisas que indicam


AMANTE DISCRETO -~ que a infidelidade por parte das mulheres
Saio da rotina. Tenha um coso.'~ aumentou 40 % de 1990 para cá. Esse da -
do, ela explica em seu livro, "não inclui
apenas relacionamentos sexuais fora do
casamento, mas também outros contatos
físicos, envolvimentos platônicos, encon-
tros em salas de bate-papo, grupos do
WhatsApp, exibicionismo pela internet , O Amante Discreto
visitas a sites pornográficos, entre tantas permite que os casados
procurem novos amores a
outras formas modernas de relacionamen - partir de critérios como
tos que existem hoje ". id ade, interesses e reg ião
O mercado está trabalhando duro para
Com o Slydial (acima,
garantir a privacidade de quem quer manter à esq.), amantes podem
uma história escondida no celular. Há inú - deixar recados
meros aplicativos e ferramentas on -line, co- diretamente na caixa
postal de seus parceiros,
mo o KYMS, que tem cara de calculadora, sem precisar falar com
mas ao digitar uma senha aparece o conteú- eles. As desculpas ficaram
do escondido - seja ele mensagens ou nu - muito mais fáceis
Sele-clone e des. Há o Private SMS & Call - Hide Text, No Telegram, o usuár io
que esconde as chamadas realizadas. Ou o pode definir o tempo
Já é un, men1bro?
Confide, em que as mensagens desaparecem para que a mensagem,
criptografada,
Logln após serem lidas. É como um Snapchat de seja destruída
texto. Há ainda o Black SMS, que transfor - automaticamente
AVIDA COMO ELAÉ 79

o consultório da psicoterapeuta Lídia


N Aratangy, são comuns os desentendi -
mentos gerados por trocas de mensagens
com terceiros. "O ciúme é um problema do
ciumento, mas acho também que o sofri-
mento da pessoa amada deve ser levado em
conta", disse ela. Aratangy conta o caso de
Tentativa de captura de tela uma paciente que, apesar dos apelos do ma -
rido, não parava de conversar no WhatsApp
Espere aí, não tão rápido! com um amigo de faculdade que reencon -
trara havia pouco. A mulher só teve a di -
O Confide previne as capturas de tela com a
nossa tecnologia ScreenShield, a ser patenteada . mensão do sofrimento que estava causando
Paratrazer ainda mais privacidade,apenas uma quando o marido chorou durante a sessão.
linha dê uma men~gem, ou uma pequena par te Querer controlar o desejo do outro para
e
ae uma imagemou documento, exibida por
não sofrer, no entanto, também não funcio-
voz . O nomo do romotonto tombóm é ocultodo
durante a leitura da mensagem. na. Até os casais mais monogâmicos, segun-
do Esther Perel, precisam reconhecer que
Depois Queuma tentativa de captura de tela for ninguém tem a posse da sexualidade do par-
detectada, voe~ seráexcluídoda mensageme
elaserádelatada
. O remeten
te tambémserá
ceiro. "Na tentativa de impedir traições, o
notificadode que a tentativarol feita. controle excessivo da vida do outro acaba
. , . , .
com o m1ster10, que e Justamente o que man -
O Confide apaga
Entendi tém o desejo aceso." Na utopia romântica automaticamente as
dos tempos moderno s, existe a expectativa de .
mensagens assim que sao
-
que miraculosamente o desejo por outras lidas pelo destinatário,
como se fosse um
pessoas evapore, segundo ela, em nome de Snapchat de texto, e
o
'6-
::,
uma única atração. "A monogamia é a vaca dificulta a captura de tela
o
~
sagrada do ideal romântico ", escreveu Perel.
Q. O Black SMS (abaixo, à
w
a:: Ela discute o fato de que hoje ser feliz esq.) transforma as
no casan1ento "é mandatório". Segundo ela, mensagens em imagens
os laços agora se formam muito mais em pretas que só podem ser
exibidas com uma senha
ma suas mensagens de textos em imagens torno da atração e do amor. Só que laços
pretas que só podem ser exibidas com uma assim são mais frágeis do que os que seba- O PeeperPeerer cria
senha. E até o PeeperPeerer, que fotografa seiam em bens materiais, que lastreavam atalhos fakes de
aplicat ivos e, quando um
quem tent a bisbilhotar o celular alheio. O muitos dos relacionamentos antigos. Os la - enxerido tenta acessá -los,
caso relatado na abertura da reporta gem não ços atuais são mais fáceis de se romper é fotografado
aconteceria se o marido tive sse um iPhone
X, que passou a contar com um scanner de
reconhecimento facial para desbloquear o
telefone. E o dono tem de estar de olho Whet's up mike? Alias
~

aberto. Não adianta postar o aparelho no


rosto do suspeito quando ele estiver dor -
mindo. O Galaxy 8 também escaneia a íris ._lolsame,..
do dono do aparelho. 1love how lhese
l lNí Fact>book Whal~,App l'll'Cha!

Edval Domingues, um designer de 42 moGGOgOGootuolty


contQlll
~M1íd•lwkw
anos, fez um escândalo quando chegou em
lllVJ:iible
_______
secrets ..
casa e viu o então namor ado com o compu-
tador ligado e o sofá manchado de esperma. -lkr. $Qndmeaplc?
Discutiram até o parceiro, aos prantos, con-
fessar que estava em um site de pornografia
se divertindo. Os dois fizeram as pazes, mas
a sensação de traição não passou. "Ele en-
tendeu quanto isso me magoou e prometeu
mudar de conduta", lembrou ele, já separa-
do, ma s ainda hoje chateado.
B Alias
80

o
o Esther Pere l durante
palestra no festival
South by Southwest 2018,
realizado em Austin, Texas.
A guru dos relac ionamentos
afirma que a infidelidade
é ma is comum do
que se imagina e pode
ser úti l na reconstrução
de matrimônios

também porque a expectativa em torno do empresário italiano Paolo, de 40 anos


casamento é gigante. "Esperamos que uma
pessoa consiga dar coisas que só uma cidade
O (ele pediu para ter o nome trocado na
reportagem), conta que , bem antes de se ca-
inteira seria capaz de prover", afirmou. Perel sar há dez anos, combinou com a mulher
conta que os pacientes chegam ao consultó- que cada um poderia fazer o que bem enten-
rio dela em Manhattan como "consumistas desse. Existia apenas uma regra: não deixar
decepcionados com o romantismo ". Eles se que o outro soubesse. Paolo explica assim o
casam e depois acham que levaram gato por trato : "Não sou dono do desejo de minha
lebre, comportam-se como consumidores mulher, como ela não é proprietária do
enganados. "Eles percebem que a expectati- meu . E você não vai passar uma vida inteira
va do romantismo não se ajusta à crua reali - querendo apenas uma pessoa ".
dade, que não é nada romântica. A visão O acordo foi rompido quando a moça ,
utópica do amor ideal transforma -se em tomada pela culpa ou talvez querendo uma
uma grande arma que desperta o desencan - mudança forçada no combinado, contou
to." Aí, levam o produto com defeito para que tinha traído o marido com um colega
ser consertado no divã . E traem. do escritório. Foi além e contou o que havia
Como gosta de lembrar em sua TED sobre feito para toda a família. Paolo ficou tomado
infidelidade, o adultério existe desde que o ca- de ciúme e vergonha. Sentiu-se humilhado,
samento foi inventado - assim como o tabu em vasculhou o co mputador da mulher , leu
tomo dele. Tanto que, ela diz, o adultério é o úni- mensagens, grampeou o telefone dela . Che-
co pecado que tem dois mandamentos na Bfblia, gou a ameaçar o amante, exigindo que ele
um para não praticá-lo e outro para nem pensar não se aproximasse mais da mulher. Fez tu -
nele. Em algumas culturas, porém, adultério do o que nunca imaginou que faria . Até que:
nem existe. Para o povo Lozi, que vive na Zâm- "Depois de sofrer, de me torturar , pensei na
bia, ter um relacionamento sexual com quem vida boa que sempre tivemos , pensei em
quer que seja não é traição. Entre os kofyar, da meu filho e resolvi continuar casa do . Eu a
Nigéria, se a mulher não está satisfeita com o amo". E continuaram a relação .
marido e não quer se separar, fica oficialmente "É muito difícil superar uma infidelidade.
liberada para encontrar um amante. Os esqui- Na experiência de consultório, percebo que os
mós têm o costume de emprestar a mulher a um casais demoram mais de dois anos para conse-
visitante como prova de boa hospitalidade. guir isso", disse Magdalena Ramos, que é psi-
AVIDA COMO ELAÉ 81

A traição pode ser uma grande chance


para tornar o matrimônio mais feliz,
diz Esther Perel, a guru internacional
dos relacionamentos amorosos

canalista, autora de vários livros sobre familia Mesmo perdoando, ninguém esquece a
e casais e professora de psicologia na PUC de traição, dizem terapeutas e pesquisadores
São Paulo. Os homens, segundo ela, ainda têm do assunto. O motivo é simples: a dor é
mais dificuldade na superação do que as mu- enorme e desperta crises profundas de
lheres. "Eles acham que a traição reflete a in - identidade e de autoestima. ''Uma traição
competência deles como machos. Quando o necessariamente leva o parceiro a se sentir
homem diz que perdoa, depois transforma a excluído. Isso remete àquela sensação da
vida do casal em um inferno, ataca e despres- primeira infância quando os pais fecham a
tigia a mulher", disse. A outra especialista, Lí- porta e você fica de fora ", disse Aratangy.
dia Aratangy, completou: "A mulher que per- Para Magdalena Ramos, quando o caso é
doa muitas vezes faz o mesmo". traição, as pessoas chegam ao consultório
magoadas e com muita raiva. "E chegam
cineasta Domingos Oliveira, diretor e sempre com um discurso fechado, de cul-
O ator do filme Separações, é taxativo:
"Infidelidade não se perdoa. Essa é uma
pado e de vítima", disse.
Mas, para terminar com uma afirma-
mentira milenar". Casado há 30 anos, ele ção da guru Esther Perel: "A moral se aco-
acha que as pessoas só conseguem aprovei- moda de acordo com os papéis". Por isso,
tar o amor plenamente se forem fiéis. "A é bom lembrar que, se em um momento a
monogamia tem vantagens enormes. O pessoa está no papel do traído, em outro,
problema é que o homem não é monogâ - inesperadamente, pode estar em outro dos
mico, por isso sente culpa, paga o preço três lugares de um triângulo amoroso que
.,
com a dependência." Jª execrou.--------------

Roberta Grillo flagrou


mensagens de uma
mulher no celular de seu
marido, mas decidiu
ignorar para manter o
casamento. Não adiantou.
Separaram -se
82

• • • chubner@edglobo.com.br

CONRADO HÜBNERMENDESÉDOUTOREM POPULISPRUDÊNCIA


DIREITOEPROFESSORDA USP

E ntramos na era da populisprudência, a versão judicial


do populismo. A populisprudência sintoniza sua an-
tena na opinião pública e no humor coletivo e "transcen-
muitos estudos, na neutralização desse fenômeno em
estágios preliminares. O sucesso das cortes dependerá
da reputação e da imagem de imparcialidade que con-
de" a lei quando esta não estiver afmada com uma causa seguirem construir ao longo do tempo; da capacidade
maior. Convoca apoiadores e lhes agradece pub licamente de ser levadas a sério, portanto.
pela mobilização em defesa da "causa". Adere à cultura O Brasil assiste a processo inverso: em vez de mode -
de celebridade, aceita prêmios em cerimônias chiques, rar o canto populista por meio da aplicação isenta da lei,
tanto faz quem as organize ou quem sejam seus compa- juízes resolveram surfar a mesma onda na companhia de
nheiros de palco. Frequenta gabinetes políticos e a im - Ministério Público e de agentes policiais. Apostaram
prensa, onde opina sobre a conjuntura política, alerta so- num jogo cujo custo pode ser mais alto que o eventual
bre decisões que poderá tomar em casos futuros e ataca ganho imediato. O movimento vai da cúpu la, sob lide-
juízes não aliados à "missão". A populisprudência é tele- rança do STF, à primeira instância. Mistura personalis -
visionada e tuitada, não está só nos autos. mo, o culto à personalidade do líder - ingrediente típico
O desafio populista que se abate sobre regimes demo- do populismo clássico -, com um ingrediente impessoal
cráticos ao redor do mundo ganhou no Brasil uma cor sutil, expresso no carimbo da instituição de justiça.
peculiar, pois recebe contribuição significativa dos apli- Sergio Moro, Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes e Luís
cadores da lei. O termo "populismo" é rodeado de ambi- Roberto Barroso são encarnações mais recentes do ele-
guidades e povoa o jargão da análise política. Entendido mento personalista. Cartazes de passeatas os tratam co-
como ameaça à democracia, o fenômeno tem dois traços mo heróis ou inimigos, e seus nomes já entram em pes -
elementares: é antipluralista, pois ignora a diversidade de quisas de popu laridade. O elemento impessoal, por sua
opiniões e impõe uma visão monolítica de povo; e anti - vez, aparece nas decisões escritas, que mesclam o juridi-
institucional, pois instiga as massas contra todas as re- quês com frases de efeito sobre a calamidade brasileira e
gras e todos os procedimentos que impeçam a prevalên - o papel messiânico do Judiciário. Há juízes que preferem
cia da "vontade do povo", uma entidade idealizada, livre não aparecer, mas se somam na "missão institucional ".
de constrangimentos ou mediações. No resultado, essas decisões parecem oscilar conforme os
Todo líder populista seleciona um povo para chamar ventos da comoção pública, não por divergências plausí-
de seu, e dele exclui os que não têm sua cor, sua cara e sua veis de interpretação da lei.
visão de mundo. O "povo" é uma espécie de clube privé,
cujos sócios passam por teste de admissão. Converter o Assim como a hipocrisia é a
grupo de sócios numa entidade superior e se autoatribuir o homenagem que o vício presta
rótulo de "povo" é seu truque retórico, sua violência. A ci-
são entre cidadãos "genuínos " e dissidentes atiça os afetos, à virtude, a aparência jurídica
alimenta o antagonismo e corrói o diálogo democrático. é o tributo que a populisprudência
Cortes são imaginadas como antídotos contra o po - paga à jurisprudência.
pulismo, não como parceiros ou órgãos auxiliares das
maiorias. Recebem ferramentas para zelar pela separa- Ou seja, a populisprudência vende uma jurisprudência
ção de poderes e proteção de direitos. Costumam estar, de fachada para ocu lt ar escolhas de ocasião. É um jogo
por essa razão, entre os primeiros alvos do ataque de de alto risco, pois, quando o argumento jurídico passa
líderes autoritários. Nunca serão fortes o suficiente pa - a ser percebido como disfarce de posição política, e
ra subsistir a uma prolongada escalada populista, mas não consegue se diferenciar desta, o estado de direito
podem desempenhar papel relevante , como mostram atinge seu precipício, _____________ _

Você também pode gostar