Você está na página 1de 10

L A Y M E R T G A R C IA D O S S A N T O S

TEMPO DE ENSAIO

C o m m n h ia Da s L e t r a s
Dado» d a C atalo g aç A o n a P ublIcaçA o (CIP) Internacional
(C â m a ra B ra a ila lra do Livro. S P , B raall)

S a n to » , L a y m e rt G a r c i a d o s , 1 9 4 8 -
Tempo da e n s a i o / L a y m e rt G a r c ia d o s S a n t o s . —
S ã o P a u lo : C om panhia d a s L e t r a s , 1 989.

ISBN 8 5 - 7 1 6 4 —0 4 9 - 1

1 . E n s a io s b r a s i l e i r o s I . T i t u l o .

8 9 -0 6 2 7 C 0 0 -8 6 9 .9 4 5

Indcea p ara catálogo slstamático:


1 . E n s a io s : S é c u lo 20 : L i t e r a t u r a b r a s i l e i r a
8 6 9 .9 4 5
2 . S é c u lo 2 0 : E n s a io s : L i t e r a t u r a b r a s i l e i r a
8 6 9 .9 4 5

Copyright© Laymert Garcia dos Santos


Capa:
João Baptista da Costa Aguiar
sobre Fonte na corrente (19Í4),
de Paul Klee
Preparação de originais:
Mário Vilela
Revisão:
Édson de Oliveira Rodrigues
Eliana Antonioli

1989
Editora Schwarcz Ltda.
Rua Tupi, 522
01233 — São Paulo — SP
Fones: (011) 825-5286 e 66-4667
ÍNDICE

A experiência da a g o n ia .................................................... 13
Juruna.................................................................................. 35
Em torno das dificuldades de singularização no Brasil .. 53
Leitura de Deleuze e Guattari .......................................... 59
Apontamentos sobre o Apocalipse.................................... 71
Canetti e a urgência do presente........................................ 95
Entrevista com Heiner Müller .......................................... 99
A escultura do tempo ........................................................ 111
O veículo e a máquina de m o rar........................................ 123
São Paulo, janeiro de 1988 ................................................ 137
Sobre a desvalorização da linguagem .............................. 143
Da a u r a ................. 151

Sobre os textos 161


SOBRE A DESVALORIZAÇÃO
DA LINGUAGEM

O tema que nos reuniu aqui é “ Informação: violência,


terror e ideologia” . Um título um tanto quanto intrigante,
pois entre o primeiro tema e os três últimos há dois pontos.
Que não sei bem a que vieram. Em todo caso, concentrando-
me nessas quatro palavras impôs-se, quase que naturalmente,
para mim, a situação da Alemanha nos anos 20 e 30.
O historiador, o cientista político, o sociólogo já podem
estar pensando: lá vêm comparações abusivas. O Brasil nos
anos 80 não é a Alemanha de 20 e 30. A relação existente pode
ser, no máximo, o trocadilho infame que transforma o nome
daquela república num comentário caipira sobre a nossa con-
dição: Vai mar.
É claro que o Brasil de hoje não é a Alemanha de ontem.
No entanto, por que cala tão fundo a leitura de algumas obser-
vações feitas naquele tempo? Por que temos essa sensação
incontomável e incômoda de que estão falando da nossa pró-
pria experiência?
Ouçamos algumas dessas observações:
“ Impossível viver numa grande cidade alemã, onde a
fome força os mais miseráveis a viver das notas com as quais
os passantes procuram cobrir uma nudez que os fere.”
“Os homens que estão encurralados no recinto deste país
perderam o olhar para o contorno da pessoa humana.”
“Quando havia trabalho que alimentava o homem, havia
também a pobreza que não desonrava. [...] Mas é desonra,
sim, essa penúria, na qual milhões já nascem dentro, e em que

143
são enredados centenas de milhares, que empobrecem. Su-
jeira e miséria crescem como muros, obras de mãos invisíveis,
em torno deles.”
“Das coisas desaparece o calor. Suave mas persistente-
mente, os objetos de uso diário repelem de si o homem. Em
suma: todo dia ele tem de fazer um trabalho descomunal para
superar as resistências secretas — e não apenas as abertas —
que se opõem a ele.”
Essas observações tensas, intensas, são de Walter Benja-
min, num texto que ele intitulou “ Panorama imperial — via-
gem através da inflação alemã” . Se elas nos tocam, é porque
não são análises, conceituações, comentários, interpretações.
São a observação direta dos fatos, são informação pura a res-
peito dos efeitos devastadores da inflação. Como as observa-
ções que fazemos diariamente na nossa vida, mas que procu-
ramos recalcar, não queremos nem pensar.

* * *

As perguntas que me ocorrem são as seguintes: por que


não formulamos o que estamos vivendo? Por que nos falta
“essa linguagem de prontidão” , como diz Benjamin, a única
que se mostra à altura do momento? Por que não escrevemos
em estado de emergência, já que é essa a situação? E ainda: se
fosse possível redescobrir essa linguagem, será que ela ainda
seria atuante?
Digo isso porque tenho a impressão de que não só não
estamos sendo capazes de dizer o que está acontecendo co-
nqsco, como sequer desconfiamos da magnitude da crise que
estourou na linguagem, aqui, no Brasil.
Tudo se passa como se a inflação desvalorizasse violenta-
mente não só o dinheiro, mas também os homens... e as pala-
vras. O cruzado vale o que se sabe, o homem não vale o que
come, ou melhor, o que já não come; como querer que as
palavras ainda façam sentido, ainda digam alguma coisa?
Denunciar a corrupção e os desmandos, protestar contra
as violações dos direitos, alertar contra os crimes que se co-

144
metem contra os índios, exigir explicações das autoridades,
pedir justiça, reclamar contra a alta do custo de vida — tudo
isso foi ficando inócuo. As palavras parece que caem num
pântano e são engolidas pelo esgotamento e indiferença geral.
Num tempo em que as agências de publicidade treinam os
candidatos a cargos públicos a ouvirem os maiores insultos e
acusações sem mexer um músculo, e a mudarem de assunto
— que efeito pode ter a linguagem senão a satisfação catártica
de quem desabafou? Ora, até essa satisfação não vale nada,
pois logo é substituída pela constatação de impotência e pelo
ressentimento que essa constatação suscita.
Que se considere, por exemplo, o que tem sido a prática
política e a informação que dela veiculam os meios de comu-
nicação. Seria o caso de perguntar: a palavra política ainda se
aplica? A resposta deveria ser: não — a polis e a res publica se
encontram separadas dos assim chamados políticos por um
fosso cada vez maior. Continuamos chamando política o que
os políticos fazem apenas por uma questão de hábito, de mau
hábito. Porque a rigor o que eles fazem, com as exceções que
confirmam a regra, deveria figurar na página policial, no ca-
derno de espetáculos, no espaço destinado às competições es-
portivas, ou na coluna de mexericos. A rigor, portanto, a pa-
lavra política não se aplicaria mais — seu sentido foi esva-
ziado. Há quem diga que o que vemos é trans-política. Mas
em vez de uma nova denominação ou definição, prefiro ir ver
como o poeta descreve a matança do verbo e o sentido totali-
tário que ela secreta.

* * *

Que se tenha em mente o caso da ferrovia Norte-Sul e o


que Sarney disse a respeito em seu programa Conversa ao pé
do rádio. Para comparar com o exemplo evocado por Armand
Robin em seu livro A falsa fala.
Robin escreve: “Em 1945 e 46, a colheita na Ucrânia foi
excepcionalmente ruim; muito depois, um balanço oficial pu-
blicado em Moscou reconheceu isso. A partir de outubro de 46

145
as rádios internas russas, na abertura de todos os seus boletins
informativos, bombardearam incessantemente durante uns
quinze meses uma massa de mensagens, relatórios e resolu-
ções destinados a obter dos colcoses um esforço intenso para
garantir para o país boas colheitas em 1947. Ora, enquanto a
fome grassava na Ucrânia, o ouvinte, embora bastante acos-
tumado com os hábitos soviéticos, ouviu estupefato as rádios
de Moscou e a rádio de Kiev comemorando as maravilhosas
colheitas obtidas na Ucrânia em 1946. [...] Em suma, tudo se
passa como se a realidade não devesse existir, ou pelo menos
como se o verdadeiro objetivo que se tem fosse o de corrigir a
humanidade de sua indesejável propensão para constatar que
o que existe, existe. Por mais terrivelmente paradoxal que
pareça, diríamos de bom grado que, em comparação com essa
empresa, a mentira é algo simples, até são.
“ Habitualmente, quando um governo lançava pelo rádio
(ou por outro meio) uma inverdade, era na esperança de que a
proposição que avançava fosse recebida como verdadeira e
permitisse o sucesso de tal ou tal empresa política. Agora não
se trata mais disso.
“Chegamos a uma certa constatação que não está longe
de ser uma verdadeira revelação: enquanto o mentiroso deseja
que se acredite em sua mentira, aqui sente-se que muitas das
falas difundidas pelas rádios russas são escolhidas exatamente
na medida em que se sabe que não se pode acreditar nelas.
Quem não vê que estamos num plano muito superior ao do
engodo?
“Para compreender a operação, imaginem que todos os
parisienses levam uma vida de escravos miseráveis e que todo
dia têm de ouvir [... ] as rádios afirmando que a vida em Paris
é deliciosa, maravilhosa, paradisíaca — que só essa voz aérea
possa se fazer ouvir, que cada dia os parisienses se enterrem
mais ainda em sua miséria e que cada dia a voz proclame mais
alto e mais enfaticamente que os parisienses são felizes... feli-
zes... ainda mais felizes. Essa voz acabaria se tornando o pró-
prio símbolo da prisão e da escravidão — e uma ameaça de
loucura.

146
“Quem mente deseja ser acreditado, isto é, respeita nos
outros o sentido da verdade, e freqüentemente até o corteja.
Mas uma empresa gigantesca, cuja essência é a vontade de es-
colher sistematicamente as falas na medida mesma em que se
tem certeza de que não se acredita nelas, dissolve radical-
mente a faculdade de compreensão do real fazendo com que
este pareça infinitamente desprezível e inútil. Por maior que
seja a nossa imaginação, é difícil conceber melhor maneira de
fazer os homens sentirem que sua consciência não tem
mais nenhuma razão de ser, que ela não passa de um vestígio
grotesco. Trata-se de uma liquidação do entendimento hu-
mano.”
O exemplo é extremo, é um caso-limite. Para onde ten-
dem vários outros exemplos que poderíamos coletar na euforia
de plástico da voz dos locutores das FMs, nas aparições sinis-
tras dos ministros, na hipocrisia imperturbável da imensa fila
de eternos candidatos a candidatos. Nossa linguagem não
surte mais efeito; mas a deles tem um efeito perverso. Todos
eles parecem dizer: Aconteça o que acontecer, vejam que nós
continuamos aqui, falando o que queremos e quando quere-
mos — e vocês têm de aturar, pois nem podem retrucar, muito
menos contrapor a verdade ao que estamos dizendo. Esta fala
não é nada; e no entanto ela é mais real do que o real. Porque,
sem dizer nada, ela diz a realidade da nossa presença imposta
a vocês e a realidade da nossa impunidade.

* * *

Parece-me que estamos despreparados para lidar com os


porta-vozes do niilismo e sua linguagem perversa. Prendemo-
nos a conteúdos, ficamos procurando o sentido oculto das pa-
lavras, tentamos desmascarar as intenções ideológicas dissi-
muladas — quando na verdade deveríamos buscar apreender
os processos.
Nosso tema é “ Informação: violência, terror e ideologia” .
Ora, o livro de Jean-Pierre Faye, Linguagens totalitárias, trata

147
precisamente desse tema. Isto é: de como a crise e as trans-
formações da linguagem — que Faye detectou paciente e pri-
morosamente nos jornais, nos livros, nos discursos, nos enun-
ciados escritos durante a Alemanha de Weimar — vão tornar
possível a criação de uma “ nova língua” — a língua de Joseph
Goebbels.
Como é essa língua? É o próprio futuro ministro da Pro-
paganda quem observa: “Nós não falamos para dizer alguma
coisa mas para obter um determinado efeito” . Que efeito?
Goebbels responde: “Quem consegue conquistar a rua tam-
bém conquista o Estado” . “Para nós, a massa não passa de
um material informe.” “ Nosso objetivo era a conquista da
rua — através da rua queríamos ganhar as massas.” “A con-
quista da massa. É bom todo meio que servir a essa fina-
lidade.”
Conquistar a rua para conquistar as massas para con-
quistar o Estado. Usando uma língua que não diz nada para
obter um determinado efeito. Mais de meio século se passou.
E nós ainda não conseguimos perceber que hoje nem é preciso
mais conquistar a rua. Não conseguimos perceber que um de-
terminado efeito pode ser obtido no tempo e não no espaço —
o tempo da transmissão do rádio e da televisão. Não consegui-
mos perceber que já é possível mobilizar as massas sem pre-
cisar reuni-las no espaço: basta mobilizar desmobilizando.
Como foi feito, talvez pela primeira vez, na Copa do Mundo
do governo Médici e, posteriormente, na morte de Tancredo,
na votação das diretas pelo Colégio Eleitoral, no Plano Cru-
zado etc. etc. Não conseguimos perceber que o que a televisão
faz hoje, no Brasil, é administração eletrônica de população.
E que para tanto não é necessário dirigir-se à consciência, ao
entendimento das massas. Muito pelo contrário: na massa in-
forme e atomizada é preciso mobilizar o espectador engatando
nos seus sentimentos mais baixos, e desmobilizá-lo alimen-
tando a sua impotência e o seu ressentimento, o seu desânimo
e a sua indiferença. É preciso mantê-lo ligado no que o desva-
loriza, pegando essa onda, sintonizando essa inflação de ima-
gens e palavras que não valem nada, mensagens do nada.

148
Não se trata evidentemente de fazer crítica de televisão.
Trata-se de perceber que informação, violência e terror já são
bem mais que uma questão de ideologia. São uma questão de
tecnologia. E uma questão vital.

Você também pode gostar