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•'
. P.qulpe de ruliuçlo:
Capa: Yvoty Macambln
Rc.vid.o: Eliana Antonloli
Bdltonç4u: Araide Sanche.s
Dlr-e~lo executiva: Monica Ma1alhles Selncman
l!dltores: Manoel Tosta Berlinclr.
Maria Cristina 1Uo5 Maga lhies
Informações bibliográficas
Título Helio Brasil! notas de um psicanalista europeu viajando ao Brasil
O sexto lobo
Autor Contardo Calligaris
Editora Escuta, 1991
Original de Universidade do Texas
Digitalizado 30 ago 2008
ISBN 857137032X, 9788571370326
Num. págs. 173 páginas

' \ t I
Contardo CaUigaris

·HELLO BRASIL!
Notas de um psicanalista europeu
viajando ao Brasil ·

é>
escuta
SUMÁRIO

"Este país nio presta" . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13


O escruvo . • . • . . • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . • • . . . . . . 25
Crianças . • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41
Quero goz.ar .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51
Função paterna . . . . . . . . . . . • . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59
Fundações ........................... , . . . . . 83
Marginalidade e criminalidade . . . . . . . . . • . . . . . . . . . 109
Consumo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123
Notas de viagem . . .. . ................... ; . . . . 131
O sintoma nadonal . . . . . . . . . . . . . . . . • . . . . . . . . . . 151
Olvida externa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1.57
Anivederci ... ....... . .......... , . . . . . . . . . . . 169
Em 1985, dois amigos, Raul Sdarretta, de Buenos
Aires, e Aldufsio Moreira de Souza, de Porto Alegre,
convidaram-me, junto com alguns colegas, para uma
breve temporada de trabalho na Argentina e ~o Bra-
sil. Nessu época, eu não falava sequer uma palavra de
português, e na verdade ignorava até a indicação no
mapa, se não a existência, da cidade de Porto Al egre.
Sabia, do Brasil, o que sabe um honesto leitor co-
tidiano do Le Monde. Curiosamente, desde esta pri-
meira viagem, nasceu uma paixão pelo Brasil, que me
levou a voltar três vezes em 1986, e, a partir de 87, a
cada dois meses. Isso até uma situação na qual me
transformei num impossível viajante, e tive que. deci-
dir entre não vir mais ou vir mesmo, e deixar a Fran-
ça. Decisão que tomei em janeiro de 89.
Que a paixão por esta terra se confundisse com a
paixão por uma mulher é algo que não me parece
comprometer nenhum dos dois amores. Pelo que vou
en tendendo da minha paixão brasileira, aliás, esta
12 tiELLO BRASIL!

terra, mais do que qualquer outra, talvez seja desti-


nada a ser amada como um corpo feminino.
O escrito que segue é então um escrito de amor:
ao mesmo tempo uma declaração, uma elegia e, na-
turalmente, também uma queixa. Se tivesse que per-
tencer a um gênero literário, gostaria que fosse rece-
bido como uma ..Viagem ao Brasil".
"ESTE PArs NÃO PRESTA"

No fim de 881 estou com ~ impre~s~o de me insi~


n\Jar no pafs a contrafluxo. Quanto mais vou decidin-
do me estabelecer no Brasil.. mais me deparo com a
estupefação dos amigos brasileiros. Acredito que não
tenha nada ·o u pouco de ciúmes na calorosa tentativa
de me dissuadir: parece mesmo que eles estão ante-
vendo e querendo prevenir a necessária repetição de
uma áecep.ç.a.o secular. · ·
Nesta dissuasâo volta assiduamente uma frase:
"Este país nã~ presta". É uma frase comu m até a ba-
nalidade; ela aparece na conversa ocasional com cada
motorista de táxi, e inevitavelmente ressoa nas pala·
vras das pessoas mesmas que deveriam ter e têm o
maior interesse na minha presença nc;> Brasil. Estra-
nha-me ainda a facilidade com a qual, em situações
não extremas, ~ enunciado - como prova e demons·
traçao - um projeto de emigrar: aqui não presta,
vamos embora para onde preste.
E finalmente entendo por que esta frase me deixa
a cada vez perplexo. Pouco importam, com efeito, as
)4 HELLO BRAS ILI

razOes que cada um agrega para justificar que o pafs


não presta: a enunciação mesma da frase configura
um enigma. Pois como é possível enunciá-la? De on-
de será que se pode dizer "Este país não presta"? A
frase pareceria natural se fosse de um estrangeiro,
mas como enunciação dos brasileiros mesmos, ela
surpre ende.
Parece-me que um europeu poderia afirmar que
um governo não presta, que a situação econômica
não presta, ou mesmo que o povo não presta•..mas ..d.i-
ficilmente diria que o seu pafs nã9_presta. Deve haver
alguma razão que coloca os brasileiros~ com respeito
à própria identiCiade nacional,. em urna curiosa ex-
clusão interna, que permite articular a frase que me
interpela. Esta razão não deve dafar de hoje .
.A ditadura propunha um ''Brasil, ame-o oü dei-
xe-o", que também soa estranho aos meus ouvidos.
Um fascismo europeu teria dito: "Ame-o ou te ma-
to". Também ninguém, imagino, teria achado a res-
posta fa mosa "O últ imo a sair apague as luzes", pois
um europeu antes responderia pela reivindicação de
uma filiação que não a~eita a alternativa proposta. A
história do Partido Comunista Italiano, durante a
primeira década do fascismo, é exemplo disso: 'uma
incessante reconstrução do quadro organizntivo, re-
gularmente descoberto e desmanchado, se justificava
antes de mais nada para afirmar o direito, o dever e a
necessidade de ficar.
Algo em suma me parece testemunhar, nesta fra-
se, um problema de - se me é permitido um neolo-
gismo - umtegraçáo. Não digo de integração, pois
não se trata de urna dificuldade em ocultar ou uni-
formar as diferenças originárias das diversas etnias.
"ESTE PAÍS NÃO PR6STA" IS

Tamb~m não se trata - é evidente - de uma falta


qualquer de sentiment9 patriótico. Trata-se de uma
dificuldade relativa ao UM. ao qual uma nação refere
os seus ·filhos, relativa a'O significante nacional ria sua
história e na sua s.fgnificação. . ·. ·
Em outras· palavras: se os brasileiros podiam falar
do Brasil como se fossem estrangeiros, ~ ·q ue de al-
guma forma "Brasil", o UM das suas diferenças devia·
ser algo mais ou algo menos do que um traço identifi-
catório fundando a filiação nacional. Pois um tal tra-
ço t1ormalmente não se discute, assim como normal-
mente um sujeitç não discute o seu sobrenome.
Como diabo funciona então um significante na-
cional que permite que quem se reclama dele enun-
cie "este pafs não presta"? Encontrei eco a esta ex-
pressão de uma exclusão interna em formas às vezes
extremas de execração ou ludíbrio nas páginas dos
jornais; lemhro por exemplo de uma reportagem da
revista Veja, que se impunha na capa, sobre a fuga
dos brasileiros para o extàrior, e de outra capa, de ls·
to é, inacreditável, onde sé via o Brasil derretendo e
sumindo pelo ralo do esgoto.

Resistindo ao contrafluxo, então, imaginei duas


figuras brasileiras que pudessem, nos corredores es-
treitos dos aeroportos, lançar-me 14 este pars não pres-
ta": o colonizador e o colono.
Estas duas figuras, que desde então não me deixa-
ram e com as quais fui pensando o Brasil; devem ser
entendidas como figuras retóricas~ na minha leitura,
as figuras retóricas dominantes do discurso brasileiro.
Elas têm uma relação com a história, pois certamente
16 lllELLO l.iRASJL~

é a história da nação que compõe o quadro, a estru-


tura dos lugares possfveis de enunciação no Brasil.
Se entende que o povo brasileiro não se divide em
colonizadores e colonos. Poderíamos dizer que cada
um tem em si um colonizador e um colono, mas ainda
seria psicológico e· impreciso. O certo seria dizer que,
no discurso de cada brasileiro, seja qua~ for a sua
história ou a sua posiç.ão social, parecem falar o colo-
nizador e o colono.

O coJoniz~ador

É aquele que veio impor a sua ifngua • a uma no-


va terra, ou seja, ao mesmo te~ po demonstrar a

• Esclaf'clmento te6rico
Nu piei nas q~ "C~m. trt ler..sc-i de língua ma lema. E ta.lvc;r; Yllll\a a pc·
na ~idarcccr o c:onc~ito. é una q~.ii l lo aobrc a qual butalllc se CJC:RYCII c fa·
Jou. I!tilite em par1 icular uma c:onf~riftda feita em Israel por 1.1m P'lcanaliata
(nnc&, Charlu: Mdman, que me parece 'e r o que 11e dlssc de mclboc &Obre ou-
aunto (cf. in ; ú lanta&e et l'incoiUCitnt, Aa. freudiennc, Paria, 1990). Para .a psi·
c•n"i'c, 1 J{np• matcrn• nlo ~ propritmcnlc nem a lfn&u• que a mie Calou para
a 1u1 criança, nem a lfngua na q~~&l 4"1dl 11m apre!ldcu a falar. f!la ~ a Uncua na
qual ucb um lm•;Jnama o corpo m1tcmo como lmJIO"!...:l. De1te ponto de vil·
ta, n6o 6 uma tlngua Mlural e ainda mcnOii nacional; ltlta-sc de lima llnJua 5ln·
guiar, talvez: babtlica: a Jfn,ua inconKienle •• qual adl um imti'tu1 a ~imendo
1imbdliea de um pal que o a"ite numa fili~, A rondiçlo de lnterdílu alJO que
puA a ~er o corpo matemo. Podem al i~ dc5tc ponto de vlata, ser c"amada d_e
lfoaua paterna, nlo roaac a colncldencla pela qual a Jfnpa quo inlctdlla ~ a m••·
ma que permite 50nhar no que (oi intcr<Jitado. P.la l, c:m fuma, para tida um, a
UIIC'JI da Citl"\llura l imbóliCI fundaotcntal qiJC o ru SYjeho, c a IIIIJUI do JOW
pcrúillo por Kr aujcilo. I
T!mbora em prindj)ÍO a Jln,... mutcrna nlo 1cja a munu toiu que a llnjlua
ODri!IMHI, CIIICIIIIC •5C r•pkJitnlCOIC JNir IJUC cl11 lll"llha ~ rtltlfuu d ln dll <'HIU ~la.
"ESTI! l'AfS NÃO PRESTA" 17

potência paterna (a língua do pai saberá fazer gozar


um outro corpo do que o corpo materno) e exercê-la
longe do pai. Pois talvez o pai interdite só o corpo da
mãe pátria, e aqu i, longe dele, a sua potência herdada
e exportada abra-me o acesso a um corpo que ele não
prpibiu. .
Ele é o verdadeiro explorador, no fan tástico equí-
voco que só a língua portuguesa - que eu saiba -
propõe, onde explorar uma terra é ser o primeiro a ·
c{:>nhecê-la e também arrancar os seus recursos. Ele
maneja a nova terra como se pode sacudir o corpo de
uma mulher possuída, gritando: "Goza Brasil", e es-
perando O· seu próprio gozo do momento no qu al a

ror duas rn6cs: primeiro, porque: 11 el!rvtu ra simból ica que nos fu 1ujc:itos -
por ser linaular - não deixa de ser tomwda numa rede: maior, cultu ra l, que~ pri-
vilegiadamente a rtdc que uma história nacional Ofl&Riza; accundo, porque 1c
cada um dispõe de um pai sin~:ul11 r, o:s lc: p;~i ~,C mprc: vak na n1cdida em q11c: se
ilu"re de a lc uma ma neira na n:dc soci~l. que tan1bl!m l privilc:"i ad.am~nu: na-
cional (vejam·lc, como contra-exemplo, u dilk~>ldadcs de orianiuço\o ' ubjct iva
com as quais ac: dcpua o s ujeito cujo pai ni o encontra no socia l nenhu m tipo d e
reconhecimen to, por exemplo achando-se numa mis~ria real que o pri~r& de cida·
dania). .
Tudo l51io lmplita que 1e possa, liCill cxtrapÓl ar demasiado, considerar que a
llnsua matem•/patcmalieja n:prcsc:n leda pela lin&ua u cional.
Coahecemos bem, por uemplo, o caso de eml&rln lu que procur1m a naiÍI·
lts que falem 011 pelo menos posnn1 escutar u s uas lln&uu nacionai' ori&in'·
rias. 1\ procura conccmc I ICnj,'UI mate rn11; ~ ccr1o que ela pod e b veze' 'c r 11ma
annadilha, pois, analisando-'e 1111 l uQ tlnt:ua ori&inária, o aufcilo pode fncr a
triste econ omia de lntcno ear a posi\óiO gn,ular na qual o "" csutulo de cmi-
lrlnlc o coloca. Corno " ele quiic:NiC continu ar se confrontando com a Hngua
que i.utltul11 o pai c intcrdilo11 a mie, quando j6 cu·ol heu, por uemplo, de falar
ou Ir., o, quem "bc, dé tcnlar assim um accuo poufvclao corpo matemo c: um a
desmentida do Interdito plllcrno.
l!dstcm cxcmt*>' ck «crlto rc:s (lkckcll, Nabokov etc.) que 1ó consc&ul-
ram .aollar a caneta ab1ndonando a própria Unc ua materna , c cieolhcnllo outra
na qual talvez 1 mie n'o fo"e In te rdilgdQ ou o pai u l taln•u.sc un1 JlOuco.
Jlux 1cntltlu , o.lu 1)t1111o de vista llu t•~l~·•m"4ç, ~·urniJe r•r 'I'"~ muJar Jç lln·
1~ llOUIIIICt 11 111 jcllo para muLiar <I c 1\CUI'OU.
18 lmLLO BRASIL!

mulher esgotada se npngnrá em suas mfios - prova


definitiva da potência do estuprador.
O colonizador deve ser quem inventou, ainda no
barco, us piadas de portugueses. Pois· esta extraor-
dinária proliferação de chistes ao redor de uma víti-
ma escolhida, embora seja freqüente (os belgas para
os franceses, os berneses para os genebrinos etc.),
apresenta a caracterfstica única de ter como vrtima o
povo mesmo do qual se origina a maioria dos brasi-
leiros. E as piadas de portugueses parecem-me todas
redutíveis a um denominador comum, do qual fica
emblemática a história das portuguesas de grandes
seios. Sabem por quê? Porque os portugueses, ao
invés de chupar, sopram. Os portugueses são os que
ficaram, não vieram para cá c por isso são para sem-
pre os que não sabem e nunca vão saber gozar direi-
to, pois renunciaram a gozar de um corpo que não
lhe fosse talvez proibido.

Mas o colonizador é triste também, pois, de qual-


quer forma, mesmo que o corpo entre us suas mãos
não seja proibido e goze, ele sempre saberá que não
é bem este o corpo que ele queria. O corpo que ele
queria fazer gozar era o corpo que deixou, o corpo
materno interditado. Este outro corpo que é o Brasil,
explorado, gozado até o fim, esgotado, deslocado nas
suas mãos como um manequim, lhe aparecerá ainda
como a simples lembrança de que ele só conseguiu
fazer gozar um -corpo diferente do único que contas-
se. Ele não pode deixar de multiplicar uma explo-
ração que continue ilustrando a potência da língua
paterna da qual se apropr iou, mas constata o fracHsso
desta apropriação. Pois, para exercer a potência pa-
"ESTE PAtS NÃO PRESTA" 19

terna como se fosse a .sua, teve que deixar o corpo da


mãe pátria.
O colonizador veio então gozar a América, por is-
so deve esgotá-la, mas sabe que não era América que
queria faier gozar.
Ele tem com o país enquanto corpo uma cobrança
que lhe permite dizer "este pars não presta", quer se-
ja porque deveria ser o outro (aquele que ele deixou),
quer seja porque não goza como deveria.
'Quem sabe a figura do colonizador nos explique
alguma dificuldade específica de qualquer reforma
agrária neste país. Expropriar, mesmo que não impli·
que nem de longe "privar", é de qualquer forma um
gesto polftico inaceitável para o· colonizador, pois
contradiz o essencial da sua empresa. Na época, não
enco.n trei ninguém em São Paulo, nem nas conversas
dos botecos mais humildes, que aprovasse - a não
ser por razões de militância partidária - a expro-
priação da casa dos Matnrazzo, na aven ida Paulis-
ta. Pois foi para "possuir" a terra, só por isso. que o
colonizador veio.

O colono

. O colono é quem, vindo para o Brasil, vi'ajou para


outra Ungua, abandonando a sua lfngua ~aterna. Isso
evidentemente vale também para os portugueses.
Não tanto por razões históricas (ou seja, por ondas de
imigração sucessivas nas quais portugu~ses já viaja-
ram para o brasileiro como lfngua outra): mas porque
20 IIELLO IIHASJU

ser colono ou colonizador são antes posições subjeti-


vas. O colono não é um colonizador atrasado que po-
deria esperar participar na festa do colonizador; a sua
·esperança é outra; se adere à nova língua, não é para
ter acesso a um corp.a materno fmalmente llçenctoso 3

O que o diferencia do colonizador parece ser a pro-


cura de um nome. Ele nao vem fazer gozar a Améri-
ca, mas, na América, se fazer um nome. Procura aqu~
numa outra língua, um novo pai que interdite, certo,
e de repente o reconheç_a.
Existe, em Bento Gonçalves, um admirável museu.
da imigração italiana. Nele está exposto, entre outras
coisas, o passaporte de um imigrante italiano, vindo
ao Brasil com a mulher grávida e os filhos pequenos;
como se sabe, o passaporle da ~poca é. um salvo-con-
duto, uma simples folha de papel, sem imagens, na
qual o Rei da Itália autoriza só esta viagem, e só para
esta destinação. O nosso imigrante, provavelmente
analfabeto, talvez neste começo de século encontras-
se pela primeira vez, na ata do seu passaporte, algu-
ma forma de reconhecimento da sua consist~ncia
simbólica e jurfdica. Deixar a sua lfngua materna
produzia milagrosamente um documento no qual, por
ele ser nomeado, a sua dignidade humana era reco-
nhecida.
Foi o colono certamente quem escreveu a divisa
comtiana sobre a bandeira do Brasil: Ordem e Pro-
gresso. Sobretudo 11ordem". Pois se ele pedia· algo ao
pafs, era 9 contrário do pedido do colonizador: não
um corpo de gozo além do interdito paterno, mas um
interdito paterno que, impondo limites ao gozo, fizes·
se dele um sujeito, o assujeitasse.
"I!STI: l'AÍS NÃO I'IUiSTA" 21

E o colono também pode dizer: ''Este país não


presta", mais inesperadamente, e talvez mais drama-
ticamente. Pois o seu "não presta" sanciona o fracas-
so da umtegração: o país não soube ser pai, o um na-
cional não conseguiu assujeitar o colono. Não que ele
fique fora, excluído, nada disso; mas ·algo fez e faz
qué aqui, nesta nova lfngua, o colono na·o pareça en-
contrar um interdito paterno que, regulamentando o
apetite de gozo, organize um quadro social que lhe
outorgue uma cidadania.
Sobretudo nas minhas primeiras viagens, quando
eu ainda falava um portugu~s duvidoso, era freqüente
encontrar em São Paulo e em Porto Alegre imigran-
tes de origem italiana, de segunda ou terceira ge-
ração. lnevitavelm~nte falavam deste Brasil "que não
presta", da Hngua italiana mais ou menos esquecida,
e eu colocava sempre a questão fatídica da volta. Não
a volta para sempre, mas uma volta de férias, uma
vez. E a resposta era inevitavelmente a mesma: não
dava, nunca dava pura voltar, era caro demais. Aca-
bei estranhando, pois, se a coisa podia fazer - ape-
nas - sentido para alguém com poucas condições,
· parecia incongruente para o dono de um restaurante
importante.
O imigrante norte-americano sempr'e volta e so-
nha em voltar. É verdade que há neste sonho, como
se sabe. a infantil esperança de um retorno do filho
pródigo. Mas eles voltam mesmo que não possam
desfilar nas ruas da vila como se espera que desfile o
tio americano. Eles podem voltar. Talvez os colonos
brasileiros não possam voltar porque justamente o
Brasil não conseguiu fazê-los outro~. quero dizer, não
conseguiu fazê·los brasileiros. Imagino que a dificul-
22 III::LLO BRAS IL!

d:ade em voltar seja proporcional a um fracasso que


não é econômico, é antes cultural. Como voltar para
a Itália, por exemplo, se sar renunciando a uma língua
que não me reconhecia como sujeito e a lfngua que
escolhi também não me reconheceu? ·
O colono de repente parece suspenso no meio de
urna viagem. O colonizador também: a presença de-
les aqui é só uma parada, não na perspectiva de uma
volta, mas eventualmente de um prosseguimento.
Respectivamente, se não encontrar mais o que explo-
rar ou se não houver jeito <.lo país mudar e me outor-
gar algum UM nacional que me faça cidadão, pelo
menos posso esperar encontrar uma terra a mais.
Contrariamente à lenda, os barcos não parecem t~er
sido queimados.

A frase então que me acolheu chegando ao Brasil,


"Este pafs não 11resta''.. assumia significações diíeren-
. ciadas segundo ela fosse enunciada do lado do colo-
nizador ou do lado do co[ono. Do lado do coloniza-
dor, valia: "Este país não goza (mais?) como deve-
ria"; do lado do cofono, valia: 'rEste país não interdi-
ta nada, . e por conseqú!ncia mesmo fazer fortuna
aqui nunca é se fazer um nome que não seja um no-
.mc ~coJpnizador, ou seja, cte oãncJfiJõ~. Tsso parece
j;2roduzi_r duas enJrta-çO'es: '"Go'Za Tirasil" e "Muda
Brasil"J que curiosamente tafvez se ànulem.
Com efeito, não parece fácil explicar por que
a wntegração brasileira teria fracassado. Certo, este
fracasso não é um destino de qualquer colônia; por
exemplo, nos Estados Unidos a umtegração se produ-
ziu, mesmo sem que precisasse por isso um sacrifício
"'BSTf! PA(S NÁO PRESTA" 23

integrativo das diferenças culturais das comunidades.


Quem s~he. a história da constituição da. nação ofe-
reça um indício. pois -mesmo as inconfidências minei-
ras e baianas não são nem de longe o movimento po-
pular da revolução .americana. E qual teria sido o
destino dos Estados Unidos se ~ .Decla~ação de Inde-
pendência tivesse sido, nlo o fato dos delegados em
Filadélfia, mas dos próprios ingleses? Se concordará
que "Independência ou morte.. assume, no contexto,
o valor de uma melodramática paródia.
Impressiona-me mais ainda o próprio significante
"Brarir". Que extraordinária herança do colonizador
para o colono este significante nacional, que eu saiba
o único que não designa nem. trma longínqua origem
~tnica, nem um lugar, m~s um produto de exP.loraçAo,
o primeiro e completamente esgotado. R como se o
colonizador entregasse para o colono o manequim
deslocado por um gozo sem freio, e ironicamente o
convidasse a fazer com isso o UM da nação da qual
ele quer ser sujeito.
Quem ganha entre o colonizador e o colono?
Difícil dizer: coexistem. A voz do colono se ouviu nas
últimas eleições presidenciais e não só do lado de Lu-
la, pois a exigência de moralização da vida pública e
civil foi certamente.o fundamento do fenômeno Col-
lor. De qualquer forma, o essencial não ~ inventar
consertos (a neurose ~ a ci~ncia dos consertos e das
ocul tações subseqüentes que não dão certo). O es-
sencial é indicar um real contraditório que não tem
conserto, para fazer com isso, com o inevitável, algo
in teressantc. · ·
No dia que apresentei em público pela primeira
vez estas cogitações, o cotidiano de Porto Alegre, Ze-
24 HElLO HKAS IL!

ro Hora, publicava em destaque a fotografia e a histó-


ria de Valdomiro 0Jiveira1 que de repente homena-
geei: "Sob o viaduto Imperatriz Dona Leopolilina,
nas avenidas João Pessoa e Perimetral1 estão instala-
das várias pessoas que nãÔ têm outros locais pará
morar. Isso acontece em outros pontos da cidade,
mas nenhum, como o mendigo Valdomiro Oliveira,
tem uma bandeira brasileira para marcar sua re-
sid!ncia,.
Valdorniro faz certo: ~ na beira do horror que
precisa plantar a bandeira, pois é só a partir daf, sem
esconder~ que talvez ela possa se tornar uma bandei-
ra.
O ESCRAVO

É depois de um churrasco, um domingo," que a


avó Eduarda consente em contar a história de sua
chegada ao Brasil. Ela tinha mais ou menos três anos
e vinha do Marrocos, para onde seus pais - espa-
nhóis - já emigraram.
Os primeiros anos de sua vida no Brasil estao lon-
ge, esquecidos, e o ·relato não chega a se organizar
como história antes da descida da famí1ia para o Rio
Grande do Sul ~ alguns anos depois. Mas, esçutaru:lo,
me digo que, se o relato se organiza como hisfória só
a partir da chegada no Sul, não é apenas por uma
razão de maior proximidade temporal e, geralmente
falando, pela amn~sia da qual todos parecemos sofrer
relativamen~e à primeira infância. Talvez mesmo an-
tes da chegada no Sul, a família não pudesse ter
história. ·
No Rio Grande, quando a família chegou, na.
completa miséria, não foi fáciL Todo mundo se sepa-
ra: a mãe e as filhas entram a serviço na cidade e· o
pai tenta a sorte nas minas de carvão. Encontrar~se
26 HELLO BRASIL!

uma vez por ano já é um luxo. Mas o pai não desiste


da e~pera nça de reunir um mrnimo pecúlio; e é traba-
lha ndo dois turnos cada dia na mina que finalmente
consegue voltar para a cidade e estabelecer um pe-
queno varejo ambulante de frutas e verduras.
O que acontecera antes? A chegada fora em San-
tos, e o destino inicial uma fazenda de café na região
de São Paulo. A avó Eduarda só lembra a extrema
miséria da casa atribuída à famnia, o trabalho das
crianças, ela também, na colheita do café, e mais ain-
da o cultivo de terras onde era permitido ao colono
plantar para ele mesmo. Lembra que estas terras es-
tavam cada vez ma.is distantes: duas, tr!s horas para
ir e outras tantas para voltar.
Fala de seu pai como de um homem culto, que lia
livros, e surge també m a lembrança de reuniões no-
turnas de ensino, adultos e · crianças, que o ·seu pai
talvez animasse.
Depois, um episódio estranho: uma tia chegando
de noite na casa, acordando todo mundo em uma
grande agitação e a sarda definitiva da fazenda, na
hora, no escuro, levando o que dava. Uma expulsão?
Uma fuga? \
Leio um Hvro pouco banal, Memórias de um colo·
no no Brasil (1850) de Thomas Davatz (Itatiaia &
Universidade de São Paulo, 1980) e, lendo, pareço
adivinhar o que deve ter acontecido. o drama que
nos conta Thomas Davatz em 1850 devia se repetir
àinda no começo do século, em três atos. ·
· ,.. Primeiro ato: a propaganda mentirosa do inter-
mediário que vende um sonho de felicidade. É preci-
so ler os contratos e considerar as condições que em-
purravam o emigrante europeu, para se dar conta que
, QESCitAVO 27

o sonho do futuro colono não era tanto o Eldorado


do colonizudor. mas muito mais a conquista do reco-
nhecimento da sua dignidade de cidadão. Não era um
sonho de exploração sem limite de um novo corpo,
mais o sonho de um pars que, por dar acesso ao direi-
to um dia a um pedaço de terra, reconhecesse no co-
lono ~im sujeito, um seu futuro sujeito. ·
Segundo ato: 6 a realidade da viagem, da chegada
e do trabalho. Fundamentalmente se sabe que o aces-
so aos bens, inclusive aos bens necessários à sobre-
vivência e ao cultivo da terra da qual o colono tinha
usufruto (geralmc;nte proporcional, aliás, àquela que
cultivava para a fazenda), passava por um monopólio
de venda da fazenda mesma. A circulação ffsica dos
colonos, aliás, era freqüentemente ·proibida. Por con-
seqüência, a venda da eventual sobra da sua .pro-
duçao passava pelo mesmo monopólio. De tal forma
que paradoxalmente o·colono comprava ao preço im-
posto pelo vendedor e vendia ao preço imposto pelo
comprador (lógica esta que se repete, como a vingan-
ça da história, na constituiçaà da d!vida externa ,do
pafs). Graças a taxas arbitrárias de juros e também a
verdadeiros calotes que pretendiam por .exemplo co-
brar o preço da viagem já paga ou, segundo o contra-
to europeu, oferecida, ou então cobrar o aluguel do
casebre quando o mesmo contrato garantia a mora-
dia, o colono era ligado à fazenda por lJm& dívida in-
solvível perfeitamente comparável ao preço da liber-
dade para o escravo.
Terceiro ato e final: pode ser a transformação do
colono em escravo branco. Ou então o seu apelo a
uma autoridade que reconheça a sua condição de ex-
plorado, a descoberta que a autoridade ~ a sombra do
28 HELLO ORAS IL!

fazendeiro que o explora, a revolta e a morte. Ou


então ainda a fuga -antes da morte. Uma fuga que,
graças à imensidão do país, o liberta para urna via-
gem onde conseguirá, ou não, abrir um espaço não só
de sobrevivência, mas de vida: se fazer um nome, um
mfnimo de nome, além do nome da fazenda que teria
sido a única estampilha do seu corpo.
_. As primeiras lembranças da avó Eduarda, gosto
de reconstruí-las no quadro deste drama, como se o
pai dela, Antônio, tivesse sido um outro Thomas Da-
vatz. Homem instruído, rúpidamente consciente da
armadilha que levava à escravidão, quem sabe abrin-
do "demais" os olhos dos seus companheiros de in-
fortúnio, teve qt e fugir diante de ameaça de moríe,
ou então foi expulso no meio da noite por um dono
menos cruento.
O drama, logo contado, revela uma tragédia que é
preciso articular. Pois não interessa _tanto espalhar lá-
grimas sobre um destino duro e violento, quanto
constatar, entender· como se inscreveu na história do
pafs uma decepção sem remédio. O ponto trágico do
drama não se manifesta nas condições de vida impos-
tas ao colono, mas na mentira - mentira do contrato
assinado na Europa. O que ·importa aliás não me pa-
-rece ser a privação de bens prometidos que não fo-
ram oferecidos. "É a mentirà em si que se revela trági-
ca, sobretudo se confirmando quando a resposta ao
apelo do colono a uma autoridade terceira, q~e inter-
venha no laço de escravidão que lhe é imposto, revela
que não há autoridade terceira, que a partida se joga
·a dois;·na confrontação de forças ímpares.' ·,
A tragêdia é a descoberta que a autoridade que
assinou, por intermediário, o contrato é a marionete
OESCkAVO 29

inconsistente do colonizador que pede corpos para


explorar. Tanto mais que o contrato, por ser contrato
e engaja"' o colono, já antecipava o seu sonho de re-
cm h~cimento e de cidadania. A tragédia do drama
também teria três atos.
Primeiro: (, pai fundador da <:omunjdade de ori-
gem .parece ter esquecido o seu filho. A miséria real .
. .ao mesmo tempo produz, expressa · e comprova um
desconhecimento que ameaça o filho a ser reduzido a
um corp faminto, doente e sobretudo sem nome.
Segundo: um intermediário Messias propõe ao.fu-
turo colono um Outro pni, uil)a outra ·t erra - e nasce
o sonho de um pedido de amor qué.pelo menos seria,
por este Outro, ouvido.
Terceiro: o Outro pai prometido 'desmente a sua
própria palavra. deixa cair a máscara e se-uv.ela: ele
não é autoridade nenhuma, não quer e nem pode re-
conhecer o pedido de um nome que lhe é endereça-
do, pois não tem dignidade simbólica, mas é somente
o braço armado do colonizador que pede um corpo
escravo.
Esta tragédia, inscrita para sempre na memória
do colono brasileiro, é um outro jeito de dizer o "que
já apontei: que a herança do colonizador para o colo-
no, que pede um novo nome· ao novo pai, é um signi-
ficante nacional que implica uma decepção definitiva:
queres um nome? Eis o pau-brasil, dejeto da mesma
exploração que prometo ao teu corpo. Queres um
significante nacional que te afilie? Eis "Brasil" e
serás "brasileiro"', o que, pelo menos até o século
XIX. como se sabe, não designa filiação nenhuma,
mas~ o nome comum de quem traba lha"explorado,
na exploração do pau-brasil. Entende-se que a tragé-
30 llêi.•LO DRAS IL!

dia inscreva, no discurso brasileiro, um cinismo J .adi-


cal relativamente à autoridade. Uma espécie de im-
possibilidade de levar a sério as instâncias simbólicas,
como se sempre inevitavelmente elas fossem a ma-
quiagem de uma violência que promete a escravatura
dos corpos.
O corpo escravo se constitui assim como ó hori-
zonte fantasmático universal' das relações sociais, co-
~ se o colonizador tivesse conseg11ido instaurar a
sua exploração do corpo da terra como metáfora úl-
tima das relaÇões sociais. E de fato o corpo éscravo é
onipresente. Os jornais ·nos falam regularmente da
escravatura que ainda existe e que a polícia persegue.
E há aquela que a polícia não persegue. Um mal-es-
.tar permanente nas classes ptiviiegiadas, relativo às
condições de indig!ncia de uma grande parte da po-
pulação, manifesta o sentimento de que algó, no vín-
culo empregatício, ainda parti~ipe ou possa participar
da escravatura.
.. O fantasma do corpo escravo também deve ser
pensado na sua complexidade. O hóspede europeu,
por exemplo, sempre começa escandalizando-se com
os salários míseros das empregadas d9mésticas. E,
geralmente, acaba escandalizando-se com o lugar de
dignidade "excessiva" que elas lhe parecem ocupar
no quadro familiar. Gostaria de pagar mais e COJ)Ver-
sar menos, ou entüo pagar mais,· mas não se respon-
sabilizar pelos filhos, a saúde, o futuro, a casinha para
a aposentadoria da empregada etc...
· · O problema é que o hóspede europeu pensa a es-
cravatura, da qual pretende se indignar, nos moldes
da exploração do trabalho no capitalismo nascente. O
corpo escravo, fantasma brasileiro, não exclui uma
O ESCRAVO 31

(orma de integração familiar ou mesmo de paródia


de nominação (os enteados) que mais propriamente
s'e deveria chamar de marcação (os fazendeiros en-
tendem): O escravo nAo é uma extensAo instrumental
do colonizador, como o proletário europeu do século
passapo podia ser um suplemento instrumental, como
era o tear. Ele é mais urna extensão e talvez mesmo o
melhor repre~11tante do corpo da:!erra, de ·u m corpo
permitido, aberto, por efeito da potência da Hngua
que o .explora e que nele, portanto, se in~creve .. ·

. Lembro-me 'do estranhamente experimentado,


num carnaval baiano, escutando os blocos àfros can-
tar um plausível Senegal, um impossível Madagascar
e um grotesco Egito dos faraós, presumidos todos
"originários'~. Lembro·me também de ter comentado
com o meu amigo baiano Euvaldo que não havia nis·
so nada de cômico: o importante não é.a origem efe·.
tiva. O que conta é o ~.sforço para fundár, me.~mo na·
mais imp~ovável· das lendas, um significante UM.
Betty Milan não seria a única aliás a me dizer,
imagino, que é neste esforço comovedor da cultura ·
afro-brasileira que talvez esteja se propondo uma cul-
tura nacional.
A idéia que a cultura miticamente originária dos
escravos poss·a vir constituir o.u pelo menos sustentar
o significante nacional, parece só testemunhar um vi·
sionarismo que, por ser simpático,· não 6 ·menos pro-
blemático. É como se o colono, decepcionado, justa-
mente vingativo, esperasse que um Outro pai possível
surgisse na memória do escravo que· ele mesm·o foi
chamado a ser.
32 lll!LLO URASII.!

o discurso afro-brasil~iro deste ponto de vista fa-


la a mesma coisa que o colono: o anseio de wn pai. É
verdade que o escravo africano tem uma boa razão
de recorrer à memória do pai de origem, pois dele foi
tirado àforça, quando o colono deixou o seu país pe-
lo silêncio do seu pai. Mas ambos~ o escravo e o colo-
no, conheceram a escravidão: que na chegada ao Bra-
sil o primeiro já fosse e 9 scf.!uodo se encontrasse pri-
vado da esperança de um nome._não me parece _pro-
duzir uma substanciafdiferença de discurso. Pois am-
bos__pedem uma cidadania que realize o fim, não tan-
to de uma eseravatura já aC'dbada. mas do corpo es-
cravo como horizonte fantasmático da relação com
um pai que desconheceu os nomes e quis os coq~os.
Que ambos também, desprovidos e irremediavelm-en-
te desconfiados de um novo pai fundador, possam re-
correr à nostalgia do pai perdido ou. deixado do outro
. lado do oceano, é natural. Deste ponto de vista, Blu-
menau, Nova Dréscia, Garibaldi etc. são quilombos,
como Palmares. Mas o UM nacional dificilmente po-
de surgir como efeito da problemática suma dos UNS
perdidos que a lenda e a memória celebram. Os UNS
das origens . ~esgatadas não constituem, a princípio,
impedimento .nenhum: não 6 por ter sido e ainda ser
alemão, português, italiano, sencgalês que não se
conseguiria ser brasileiro. E não é àlorça de unifor-
mização integrativa das diferenças .que s.e. constitui
qualquer UM nacioiUtl. Mas tamb6m o resgate das di-
ferenças originárias, se oferece o consolo da nostalgia
de uma referência simbólica perdida, não garante
suma nenhuma. · ·
A questão. aliás, não é de produzir uma ~uma.
Que o UM nacional valha ou não como referência
OESCkAVO 3)

para todos, talvez dependa das condições da sua insti-


tuição. E no Brasil, éle parece ter sido proposto ao
colono, rião como valor simbólico onde ser reconhe·
cido e se reconhecer, mas como marca de uma pre-
potência exploradora. ·
Uma vez mais a comparação com os Estados
Unidos se impõe. Pois ela indica que a ·importância
do fantasma do corpo escravo no discurso brasileiro
não pode ser um simples efeito do passado escrava-
gista. Precisou uma repetiçao: ou seja, que o colono
encontrasse, na sua chegada, .a ameaça, às vezes rea-
lizada, da sua . escravatura. Precisou disso para que
por um lado a escravização permanecesse como hori·
zonte das relações discursivas e sociais, e que por ou-
tro lado .o pedido de cidadania do escravo se encon·
trasse com o discurso do colono, expressão do mesmo
pedido. ·
. Se o fantasma do corpo ·e.scrávo não ~um fantas-
ma norte-americano, é porque o colono norte-ameri-
cano encontrou resposta ao seu pedido. É suficiente
lembrar que o governo federal dos Estados Unidos,
no século XIX, interveio legalmente contra a impor-
tação de escravos brancos. E tamb~m que a fronteira
norle-americana ofereceu, ao colono, a propriedade
das terras bandeiradas e não a simples posse. Em ou-
tras palavras: a escravizasão do seu corpq, proposta
ao colono em busca de um nom~z eterniza a escrava-
tura como modelo de assuJeitamento ao próprio sig-
níficante nacional. O qual, por sua vez, pela signífi·
cação que acarreta, não deixa de repetir o equívoco
que já se consumou na descida do barco. S!!r "brasi-
leiro, em que sentido?
)4 IIELLO HRASILI

Existe uma solução conhecida às dificuldades


aparentes do significante nacional brasileiro: o antro-
pofagismo.
Cansei de ouvir falar do manifesto de Oswald de .
Andrade, tanto preventivamente quanto, se posso as-
sim me expressar, pos-ventivamente. Ou seja: antes
que decidisse me estabelecer no Brasil, alguns amigos
brasileiros previam que eu seria comido, destino
normal de qualquer eüropeu, ainda mais se portador
de algum projeto cultural. Era um jeito de me dize-
rem que a palavra que eu já trazia em cursos e con-
ferências seria escutada, respeitada e cuidadosamen-
te digerida num processo quCmico que a privaria de
.toda aspereza para conciliá-la e amalgamá-Ia num
bolo estomacal que· - graças à. potência dos seus
ácidos - não se espanta. nem de uma feijoada ao
meio-dia de verão.
Eles previam em· suma uma variante interessante
da aventura da psicanálise nos Estados Unidos. Se,
neste caso, parece que ela teve que se adaptar aos
ideais nacionais locais, no Brasil ela não precisaria se
adaptar nem um pouco, pois a digestão nacional se
encarregaria de adaptá-la.
· Aliás, algo nestes propósitos preve.ntivos se reve-
lou certo, pois, pelo menos no campo da psicanáli-
se - mas quem sabe a mesma consideração valha
para a polftica .... a idéia do amálgama conciliatório é
a melhor vinda. É raro que a questão se coloque em
termos de adesão a uma orientaÇão, mais natural·
mente a tendência seria beliscar o suposto melhor de
cada prato num rodfzio de antepastos. A desconfian·
ça no significante nacional como referente se reper-
cute, é normal, na desconfiança em qualquer signifi-
O 13SCRAVO 35

cante que poderia vir a ser paterno: a escolha é me-


nos se filiar do que tentar escolher o próprio coquetel
de . referências.
·Mas é interessante que a postura antropofágica
pos~a ser e tenha sido positivamente evocada como
uma solução para a identidade brasileira. A solução
assim proposta consiste em deslocar a questão mes~
. ma de um significante nacional: em suma, disso não
precisaríamos, PC?rque o que faz UM' entre nós é que
somos devoradores de UNS.
Freud, como se sabe aliás, expressou a primeira
identificação, fundante e paterna, nos t~rmos das
pulsões orais, batizando~n de 'incorporaçãO.. Mas ele
reconheceu a esta primeira ucomlda" um caráter de~
cisivo e pontual: o que foi incorporado inicialmente
foi sirnbólizado e assim contribuiu para fundar o su-
jeito; o que não foi, fica de fora. Qual seria um sujei-
to que estendesse indefinidamente esta voracidade de
leitão? Se significantes paternos transitassem diaria-
mente pelo seu corpo como amanteigados na boca de
um boxer, como conseguiria se apoiar firme num de~
les e em qual? O remédio evidentemente seria esco-
lher como valor nacional a voracidade m·esma.
O projeto antropofágico parece propor·a unidade ·
d~ um tubo digestivo como sotu.sâ~l..à falta_c.le..Y.ID..Iiig-
nificante nacional. Deixando de considerar as tristes
conseqüências previsíveis do lado da prod~çAo, resta
que se pediria de fazer ~M a um corpo e as su~s
funções. Q~e corpo será e~se, se nào_. o corpo escravo
que justamente .foi prometido a quem pedia filiação?
o colonizador só conseg~ dar ao corpo da. terra o
noJTle de um resto exangue. O colono pede reconhe-
cimento e recebe, junto com a herança deste nome, ~
36 JH!LLO IIR AS IL!

ameaça de escravatura. Como não surgiria a tentação


de proclamar que o UM nacional é este corpo escra-
vo mesmo, alérgico e impermeável a toda nomi-
nação?
A escolha justifica um exotismo que não é só para
os turistas (o Brasil não seria um nome, mas um cor-
po que goza - ótimo para as férias), mas também
para os brasileiros, que contemplariam assim felizes e
contentes as pragas mesmas pelas quais o colono
acha que o país não presta, certos que estas pragas -
ao preço "módico" da falta de um significante pater-
. no .;.. reservariam um espaço de gozo sem limites.
O dra.ma é que, se o corpo sem nome, do qual
fadamos assim o nosso nome, é o corpo escravo, o
gozo .sem limites não seria tanto deste corpo, quanto
do Outro que o explora justamente sem Hinites. Se
reduzir a um corpo é se entre&ar a qu.em queira gozar
de nós.
É assim, talvez, que o colonizador, por não querer
nomear a terra mas só explorá-la, e por n4o reconhe·
cer no colono senão uma extensão do corpo explora·
do, poderia acabar definindo o pa!s como corpo es-
cravo ofertado ao gozo de quem pense ainda poder
lhe extirpar um gemido.

O meu amigo Luiz Tarlei de Aragão, em um texto


· recente, "Mãe preta e tdsteza branca" (in: C/fnica do
Social.: ensaios, Escuta, O sexto lobo, São Paulo,
1991) .analisa a função da babá preta (estruturalmen-
te preta mesmo quando branca) e escrava ( estrutu-
ralmente escrava, mesmo cem anos depois da Abo·
lição) na formação das elites brasileiras. A id6ia es-
O ESCRAVO 37

~encial é que o jovem estaria _tomado entre dois cor-


pos, maternos: o da mãe branca, interditado, e o da
mãe de lei.te, licencioso. Ucencioso, aliás, no sentido
que a liberdade com o corpo da mãe preta seiia
mesmo o que o pai encoraja, como se a licença do fi-
lho demonstrasse a potência paterna transmitida.
~ ·vals_a entre as duas mães nQs lembra· a viagem
do colonizador, da mãe interditada à nova terra per-
mitida. E não estranha que a vida familiar colonial
acabe reservando um espaço onde o filho possa· exer-
cer a Ungua paterna sobre um corpo materno mila-
grosamente perm,itido.
Aliás, não é necessário Tecorrer aqui à clássica
função de iniciadora sexual da babá e da empregada.
Basta lembrar - mais pertinentemente talvez - a
extraordinária possibilidade de comandar que a
criança se reconhece. A hierarquia de idade na edu-
cação burguesa européia antecede absolutamente a
hierarquia social. A idade a partir da qual será pos·
s(vel pédir autonomamente à empregada um copo
d'água, parece quase ter valor iniciático de entrada
na vida .adulta. E que o laço é empregatício, jurídico,
não um domínio hereditário escravagista.
· Ainda quase turista no Brasil, lembro-me de uma
minha intervenção espontânea na briga entre urna
criança e uma empregada. A. rebeldia da criança de
seis anos à autoridade delegada à empregada se ex·
pressou assim: 11 Voc! é minha empregada"-. Eu corri-
gi: "Não. e1a é a empregada dos teus paisn. Hoje não
estou certo de que a minha intervenção fosse mais do
que uma ortopedia etnocêntrica~
Enfim, o texto de Luiz permite pensar uma
transmissão original do discurso do colonizador: não·
38 IJE LLO UKI\SII.!

precisa que o filho do colonizador procure num outro


pafs ainda um corpo materno não interditado, pois
ele lhe é oferecido em casa, no corpo escravo e licen-
cioso da mãe preta; Se transmite e se mantém assim,
. de pai para filho, o discur.so do colonizador: o projeto
inicial de exploração não se esgota nas gerações; ele
se confirma. E a observação não concerne só às ditas
elites. ·
É freqüente, ou mesmo tradicional, que uma
famflia burguesa brasileira aceite e sustente a even-
tu ai prole de uma empregada, a qual prole pode se si-
tuar, na ~strutura familiar, numa variedade de po-
sições qüe vão da quase adoção até a uma exclusão
cuidadosamente mantida.
O surpreendente é que nesta situação, seja qual
for a posição da criança, pseudo-adotada, enteada ou
mesmo excluída, a relação dela com o .corpo <.la mãe
parece ser licenciosa, a mãe interditada se situando
na famflia burguesa. É apenas surpreendente, pois
por que a criança não consideraria como licencioso
um corpo materno que ela constata exposto à licença
<.l os outros?
Assiste-se assim ao curioso espetáculo de uma
empregada servindo na mesa primeiro a famflia na
sala de jantar e depois - na cozinha - a própria fi-
lha Oü o próprio filho. Se o colonizador oferece para
a sua criança o fantasma de um corpo escravo licen-
cioso que é metonfmia do corpo da terra. ele transmi-
te o mesmo fantasma para a descendência dos corpos
que ele explora.
Por isso não parece que exisJa um discurso do es-
cravo na retórica brasileira. Onde ele poderia se
constituir, se articulam de fato, ora o pedido de ci<.la-
OCSCRAVO 39

·dania do colono, ora a pretensão .exploradora. do co-


lonizador.
O escravo não é tanto um agente de. enunciação,
qu·anto o· fantasma que parece sustentar o discurso de
todos os agentes. Ele se origina no sonho do incesto
possível com uma mãe terra dócil.e nãQ interditada,
· se prÓlonga ·na dominação de corpos explorados co-
mo. metonímias . desta terra submissa e oferecida.
No discurso do colono mesmo, ele não é só uma
ameaça, mas também se torna uma espécie de espe-
rança: a armadilha que o colono encontra, quando
ameaçado de esc~avatura, e talvez também a escrava-
tura mesma produzem um efeito de sugestão. A
quem ped·e reconhecimento e nome, corno a quem foi
arrancado de seu pai originário, a escravatura ou a
sua ameaça parecem indicar um outro caminho
possível: aqui. não encontrarás um nome, m.as--.t.ahez
seja esta a ocasião de esquecer a procura de um pai e
expcrim~n1.aL US delfcias de quem poderia tentar UÍS·
por do corpo da terra e, por que não, de seus seme-
lhantes sem interdito nenhum.
A ameaça da escravatura, e a escravatura mesma,
parecem introduzir no pedido do colono e na rebel-
dia do escravo o fantasma de poder eles mesmos es-
cravizar.
.
CRI ANCAS

O Brasil me aparece como o pararso das crianças.


Estranha-me o sorriso do garçom de um restaurante
luxuoso tragicamente atrapalhado no serviço por uma
lurma de meninos correndo entre as mesas. E
tamb~m que nenhum cliente pareça se incomodar
com o barulho do qual não dava para·suspeitar que
estivesse inclurdo no preço.
Surpreende-me, durante uma festa em casa. a
chegada de mais um cas~ l convidado. com crianças
pequenas implicitamente não convidadas. Aqui é
uma graça. Na Europa, salvo laços de amizade fér-
reos, seria uma imperdoável grosseria.
Num hotel cinco eslrelas é exigido que exista uma
sala de jogos eletrônicos para as crianças e qu e sejam
previs tas atividades infamis. Assusta-me a insistên-
cia - p~dagogicarnente justificada com um requinte
de.rousseauísmo - sobre a necessidade do lúdico na
aprendi~gem. Em algumas das melhores escolas pri-
vadas, decorar ~ considerado tortura. Assombra..me a
importância que a~sume o programa das crianças na
42 I H!LLO llltASILt

vida cotidiana: os pedidos alimentares de praJos e


bebidas especiais, as sardas, as vindas dos amigos ... O
adulto brasileiro parece constantemente preocupado
com o prazer da~ suas crianças
Brevemente: a crianÇ_a é rei.
Curioso, tanto mais num pars cuja reputação no
estrangeiro está comprometida com legiões de crian-
çns ab.andonadas na ru a.

Evidentemente toda educação - como Freud já


apontou - é reacionária, pois cada um não educa
como foi educado, cada um pretende educar como os
seus pais imaginavam que os pais deles teriam pre-
tendido educar. E, o mesmo valendo para os avós, se
entende q~e a educação seja sempre fundamental-
mente restaurativa de uma ordem passada, que por
sinal nunca existiu.
Esta constatação, porém, não é uma crítica, pois
parece - op pelo menos me parece - que a restau-
ração tentada.desta ordem passada que nunca existiu
é justamente o que permite ao último chegado de en-
contrar, nesta ordem, um lugar. Explico-me: foi·me
contado que nn inmncia de meu pai, as crianças,
quando excepcionalmente tomassem as suas rcfeiçOcs
na mesa com os adultos, precisavam ficar em pé·, não
lhes sendo permitido sentar. Pouco importa que esta
história seja verdadeira ou falsa, de fato presumo ho-
je que já fosse, para o meu próprio pai, uma lenda do
seu pai criança. Pouco importa também que ela possa
parecer a testemunha de um costume bárbaro. Pouco
importa, pois, separando a criança do adulto, esta
lenda e outras similares constituem a mitologia possr-
<.'Rit\NÇAS 43

vel de uma ordem de filiação necessária para a crian-


ça. Por exemplo, o que mais pesou na minha infância,
ou seja, a subordinação de qualquer aspiração minha
à paixão incondicional do meu pai para as obras de
:.arte (subordinação que transformou os domingos e as
férias da minha infância em passeatas artísticas e cul-
turais quando sonhava com piscinas, Beatles, beisebol
e quadrinhos), tudo isso nao·acredito que tenha sido
trauma nenhum. Poderia alegar . que devo a um tal
. aparente abuso de autoridade paterna o meu gosto
peJa -arte. Mas, bem além disso, acredito que o efeito
de um tal apare}lte abuso seja a sólida inserçâ~. num
registro de filiação. O importante nA~ ~ tanto poder
ou não nadar, escutar música e jogar beisebol, o im-
portante é dispor de um lugar a partir do qual poder
pelo menos querer nadar etc., quer ~e ;possa 'ôu não.
De .fato, parece que o preço de .um tal lugar - ne-
cessário à vida - seja justamente uma interdição. O
que me é proibido, os limites que me são impostos
como criança é justamente o que me outorga e me
permite reconhecer o meu lugar, o lugar de filho.
Um dia talvez, mas pode ser que já seja o caso, se
concorde em dizer que quem derr~tou os Estados
Unidos no Vietnã foi o Dr. Spock. Ou seja, que a de-
sistência da juventude americana relativamente à
guerra .no fim dos anos 60 não foi o efeito de uma
propaganda comunista sonhada por um novo McCar-
thy e aliás estrangeira aos ideais norte-americanos da
época, mas muito mais . o efeito de u111a orientação
pedagógica permissiva que corroeu as condições da
idealidade, jogando uma ou mais gerações fora da U-
nha de filiação.
Tanto melhor para o Vietnã, dir-se-á naturalmen-
44 IIELLO BRASJLI

_te, ainda que o Vietnã do Sul não seja apenas o Viet-


cong. E, sobretudo, embora se possa pensar que a
guerra teria sido outra se os combatentes norte-ame-
ricanos não fossem eles mesmos, pela falta de ideali-
dade que, acredito, parou a guerra, convertidos em
sádicos autorizados.
Tudo isso para defender a idéia segundo a qual o
que há de necessariamente reacionário nuq1a edu-
cação é mesmo o que- permite que ela tenha o seu
efeito essencial: constituir uma filiação simbólica.
Agora, que o Brasil seja o paraíso das criançns
não fmpiíca necessariamente que a educação seja um
fracasso. Poderia imaginar que milagrosamente aqui
se consiga reconhecer à criança uma cidadania pre-
coçel que freqüentemente lhe t negada na "E"urqp~E
que, também milagrosamente, o ·preço em interditos
desta cidadania, deste lugar reconhecido consiga aqui
ser menor. Assisto com emoção crianças de seis, sete
anós encomendar o prato de sua escolha, comprar
mer~adorias em lojas. quando sei que o simples in-
gresso de uma criança, mesmo acompanhada, numa
loja em Paris poderia s~r considerado como uma
ameaça, ou então que na mesma loja uma criança so-
zinha veria .negligenciar a sua vez na fila. Mas a
emoçãó cessa quando ouço uma criança de seis, sete
anos convocar imperiosamente o garçom: "Mooooo-
ço!l" Algo me incomoda, e nao sei bem o qu!. Certo,
a licença sobre o corpo de uma adulto lembra ~m
·passado escravagista, onde a diferença adulto/ cri;.mça
só podia valer no campo dos homens livres, o escravo
senda escravo tanto para a criança quanto purlcl o
adulto. Mus há algo a mais na imperiosidade dope-
dido infantil e na dedicaç.ã o tanto parenta! quanto
CRIANÇAS 45

educacional e geralmente social em responder a este


pedid~. Curiosamente, acredito que aquito que me
incomoda deve ter algum laço com o· exército de
crianças di tas abandonadas na rua. Pois é estranho,
depois de tudo, que a criança seja rei e ao mesmo
tempo dejeto. Não acredito ou mesmo descuido e
descÓnfio, neste caso, das explicações soc.iológicas: se
a· criança dispusesse de um estatuto simbólico parti-
cular, se fosse um sujeito precocemente rééonhecido,
isso valeria para qualquer criança. E me interrogo
sobre uma majestade cuja alternância com a dejeçáo
assinala que talyez ela nao esteja fundada em ~ma
excelência simbólica.

Confrontado com uma crimínalidade de n1enores


e de menores muito jovens inédita para mim, acabei
estranhando a impunidade que o código reserva ao
crime do menor. Mas estranhei sobretudo de estra-
nhar, pois não há nisso nada de especial é não conhe-
ço código que preveja uma responsabilidade penal
para os menores. Também me parece insuficiente
considerar que se trate de uma reação "normal", à
vista da violência da criminàlidade infantil.
Por exemplo: escuto um dia um relato triste e es-
pantoso que envolve uma conhecida. Algumas crian-
ças · de sete, oito anos, numa esquina paulistana, tal-
vez por ter-lhes sido recusado' o troco que pediram,
cortam com uma gilete - aproveitando o vidro aber-
to - a garganta do bebê de poucos meses, na sua ca-
deirinha no lado da mãe. A minha reaçã,o indignada
explode contra a impunidade, mas ao mesmo tempo
o meu horror do crime, por grande que seja, não me
parece justificar uma tal posição.
46 IIELL(.) IJRASIL!

Se, cuidadoso como sempre sou da sociedade de


direito, surpreendo-me protestundo pl\rn que n pu-
nição seja exemplar e sem atenuantes relativos à ida-
de, é que a impunidade dos menores talvez seja aqui
no Brasil outra coisa do que um princípio de direito.
A Febem, por exemplo, aparece, pelo menos na len-
da popular, mas também na página de crônica dos co-
tidianos, como o porto de mar de onde se entra e sai .
seguindo os ventos. Tudo acontece como se a socte·
dade não soubesse, mais por uma impo.ssibiHdade de
estrutura do -que por uma impot~ncia, reprimir os
menores, as crianças. E quem não sabe reprimir,
também não ·consegue reconhecer um lugar e uma
dignidade simbólicos.
Confirma-se, dessa forma, a dúvida que o lugar de
majestade que a criança parece ocupar não seja uma
excelência simbólica, mas algum tipo de incondicio-
nal exaltação fantasmática da criança. O que aliás ex-
plicaria como, quando esta exaltação fantasm~tica
não a sustenta, a criança seja um simples dejeto.
É como se, faltando um reconhecimento simbóli-
co, frente à sua impotência a garantir para cadu
criança o parafso, a sociedade deva escolher deixar
impunes as tentativa5 criminais (de ter acesso ao pa-
rafso) das crianças as quais os pais não poderiam ga-
ranti-lo.
Mas a questão se desloca: o que ê, de onde surge
esta aparente impossibilidade de reprimir, que parece
testemunhar um verdadeiro fantasma relativo à
infância?

Clinicando no Brasil, encontrei, é certo, uma


CRIANÇAS 47

quantidade impressionante de exemplos de promis-.


cu idade dom~stica. O acesso das crianças à ·cama pa-
" rent.al é freqüente, até épocas tardias, assim corno a
extrema tolerância de fobias e enureses noturn·as. A
psicologização ajuda por sinal a desaconselhar uma
sonora interdição. · que seria . salutar. É curioso
tamb~m como, na gestão do lazer da criançá, o gozo
prima: é raro que, quando u~a criança descobre que,
por exemplo, aprender piano, inglês, balé, tênis, hi-
pismo, xadrez etc. não cai do céu, ela encontre .a in-
junção necessária para considerar com interesse o
gozo limitado e trabalhoso de uma aprendizagem. A
alternativa parece 'ser aceita pelo adulto assim como
a criança a coloca: ou dá para gozar na hora ou então
não vale a pena.
"Le goOt de l'effo~t", literalmente "o gosto pelo
esforço", ''o prazer da dificuldade": não parece haver
uma expressão consagrada que possa traduzir esta
peça-chave da pedagogia europ~ia, onde o que se tra-
ta de transmitir é uma espécie de espírito qlfmpico
permanente; importa participar, não ganhar. Qual o
interesse do ''gout de l'effort"? Ele vale como prind-
pio pedagógico num quadro simbólico claramente or-
ganizado ao redor de um impossível interditado: o
gozo do corpo materno é impossível e o gozo que te é
permitido é relativo ao exerdcio dos teus esforços
(vãos) para atingi-lo. E a excelência de uma vida é re-
lativa à nobreza dos esforços: ser alguém, ou seja, um
filho digno, é se distinguir no esforço, não é alcançar.
Por isso, aliás, na Európa a manifestação aparente de
gozo - signos externos de riqueza, como os define o
Estado que os penaliza fiscalmente - ainda não eno·
brece o sujeito.
48 IIELLO UkAS I.l.!

Mas se o colonizador veio para gozar, não para


exceler no exercício da língua paterna, mas para ten-
tar com ela o acesso a um corpo não interditado, o
"gout de l'effort" t~qui não tem vaJor. Só vale gozar,
Talvez o paraíso das crianças. te_stemunhe um cui-
<laáo do co1onlzador, triste e detepctonado: o _&.ozo
que eTé veio procurar e que necessariarn~não en-
controu, sonna para seus filhos. Na .Sransmissão desta
es2eranç_a de ~ o colonizador dê:sisM ctJmo pai.
Se ser pai é sustentar um interdito sobre o corpo.ma-
ternOdlUe de ~nte permita à cnan_ç_a se situar e-ser
reconhecida como filha ou filho, .a coisa parece mtftil
desde que à crfança é dele.iªdo nada menos queo
fantasma paterno de um gow sem limites.
O projeto de um pararso para as crianças pode as-
sim virar um inferno, onde - sem interdito - a
criança receberia uma injunção nadá irrisória: goza
l!-1, meu filho, pelo menos. lU, é isso que eu quero.
Responder ao J!1andamento pat-erno seria então
paradoxalmente burlar a lei, qu_alquer lei, numa ine-
vitável desintegração do tecido social. E para quem,
por çriança que fosse, as portas do paraíso estivessem
fechadas, restaria ser dejeto. A impunidade, neste
quadro, corresponde à única legitimidade reconheci-
da: responder a um mandamento de ,gozo.
Se- considerarmos que um sign~ficante nacional
poderia se transmitir e valer como qualquer signifi-
cante paterno, ou seja, como um tr_aço ideal inspira-
dor, que abre_ um campo de possrveis a partir dos li-
mites que coloca, é curioso notar que, pa'ra a criança
1
do colonizador, ser brasileiro significaria ter que rea-
lizar o sonho paterno ou anceslral de um gozo sem
CRIANÇAS

limites. E o gozo sem limites é um projeto que impli-


ca o desrespeito de qualquer ~ignificante paterno ...

Mas concluir apressadamente aqui que faltaria no


Brasil função paterna seria uma besteira, pois seria
esquecer a esperança do colono que veio para encon-
trar um pai e cujo discurso é o contraponto do discur-
so do colonizador. ·
O mesmo Brasil parafso das crianças, sonho de
impunidade do menor crirrunoso, ~ também um lugar
onde a maior esperança parece estar depositada na
instância pe9agógit:a. Como já mencionei, a pedago-
gia dominante é vagamente rousseauísta e parece
desconfiar de uma transmi,ssão do "gout de l'effort".
Mas, de qualquer forma, dos progressos da escola to-
do mundo espera o milagroso surgimento de um ci-
dadão novo. Jules Ferry e todos os arUfices da escola
obrigatória européia no começo do século seriam
aqui bem-vindos, pois se respira uma verdadeira fé
nos efeitos possrveis do ensino. É o colono certamen-
te quem espera que o ensino constitua magicamente
para seus filhos o nome que ele não encontrou nesta
etapa Brasil da sua viagem. .
Deste ponto de vista, aliás, para ambos, coloniza-
dor e colono, a cdança é portadora de um fantasma
de esperança. Que· as decepções dos dois sejam dife-
rentes e, portanto, que os fantasmas delegaÇos à
criança também sejam, pouco importa. ~ Não deixa de
ser preocupante um ingresso na filiação nacional no
qual pareça decisivo responder, ou melhor, ser encar-
regado de responder a uma frustração ancestral, seja
aquela do colonizador ou aquela do colono.
50 HELI.O ORASlL!

Os psicanalistat; sabem que quanto mais um sujei-


to cuida das suas frustrações (que são também aque-
las que lhe foram transmitidas), tanto menos ele CQn-
segue propri<!mente exercer o seu desejo. Normal-
mente, a palavra paterna que - interditando - ou-
toJga um lugar, ajuda a desejar. Mas o que acontece
quando a patavra paterna transmite privilegiadamen-
te .a tarefa ·de realizar gozando o sonho paterno?
Acontece, no mínimo, que ela se abstém de interditar
por medo d~ frustrar a criança, ou seja, sobretudo de
frus trar o próprio sonho do pai.
QUERO GOZAR

Salvador, praça Castro Alves na noite de terça de


carnaval, estamos sentados~ eu e Eliana, ao lado de
uma barraca tomando cerveja, olhando e escutando
passar os blocos e os trios, esperando a ~anhã.
Eliana está sentada de pernas cruzadas, tornozelo
sobre o joelho, com uma bermuda larga. Um negro
alto e sorridente pára na frente dela, olha fascinado
para a fenda que sobe entre o tecido e a perna e fi-
nalmente enfia a sua mão. Embora um natural bri-
guento, a situação surpreendentemente não me aba-
la, como se não me sentisse chamado a ocupar o lu-
gar fálico que me competiria, ou então como :se não
estimasse que a investida pesada se endereçasse indi-
retamente a mim que visivelmente acompanho a mu-
lher. Eliana, com um sorriso, pára e des~ia a mão do
pretendente e lhe dedica um '•pega leve", ao qual ele
responde desistindo, sacudindo a cabeça com uma
expressào de infinita tristeza. Abana para nós dois e
se afasta.
52 IIELLO llRASIL!-

A cena é atípica porque, até mesmo no carnaval


baiano, a mulher acompanhada é tanto mais respei-
tada, a ser evitada, que cada um deve supor que o
acompanhante engaje na relação com a sua mu-
lher - mesmo ocasional - toda a ambição de pos-
sessão exclusiva do colonizador. Mas 6 atípica
também pela minha reação ou aus~ncia de reação,
como se estivesse de repente fascinado por uma pre-
tensão ao gozo que se legitimaria fora da competição
entre irmãos para um corpo interditado a todos.
Um pouco mais tarde, o sol já batendo na praça
Castro Alves, o bloco da limpeza já descendo de
Campo Grande, DadO e Osmar tocam um "quero go-
zar", que decidimos dançar e abrimos um .caminho na
massa compacta dos últimos foHões. Uma mão se en-
fia a fundo no bolso da minha bermuda, penso na
burrice de quem imaginaria que numa hora dessas eu
circularia com dinheiro no bolso, seguro com a minha
mão o braço anônimo. que me sonda e com força o
levanto. Virando-me, descubro um jovem que, com a
mão mesma que aprisiono, fecha o punho e levanta o
polegar em signo de cumplicidade e me lança um sor-
riso divertido. o movimenta·· da massa o afasta e eu o
solto s~m saber se ele queria·roubar meu dinheiro ou
um instante de prazer. Logo toca o hino a Nosso Se-
nhor do Bonfim, todos cantam.
Voltando para Campó Grande, atravessamos o
bloco da limpeza e atrás dele a cidade já está de novo
funcionando. O sentimento é de tristeza, normal no
fim de um carnaval.
O carnaval no Brasil nao deixa de ser
.mversão um rito de
\
como em qualquer lugar no mundo. Nesse
sentido,. o .meu amigo Alfredo Jerusalinsky foi quem
QUERO GOZAR 53 .

me falou as coisas mais bonitas sobre o desfile das es-


colas, me fazendo notar a função de destaq~e da por-
ta-bandeira e do mestre-sala, único .casal, geralmente
vestido com roupas .que evocam a melhor época da
escravatura. O casal abre o desfile e a mulata solista
parec~ apresentar o fruto dos amore.s do colonizador
com.o corpo escravo. .
Mas, neste carnaval, penso mais na contaminação
d~ uma extraordinária determinação a gozar, herança
do colonizador, que de repente parece se enunciar
para todos. A tolerância inesperada às investidas ao
corpo da minha ~uiher ou ao meu próprio testemu-
nham que participei de uma festa onde se celebra a
abertura dos corpos, todos, a um gozo finalmente sem
impedimentos.
No carnaval carioca e geralmente nos desfiles de
carnaval, já foi notada muitas veze!uu:.ela.~ilo narcfsi-
ca, quase especular, entre a escola_gue passa e a ar- _
qui~ancada que explode. Olha como go.zo que olho
c()mo gozas: a festa está na mútua sustentação da
ef~mera certeza que estamos gozando.
A tristeza da última hora é ligada ao hino ao Nos-
so Senhor do Bonfim. Pois, se gozamos, nos resta a
no~talgia de um pai desmentido que nos deixou go-
zar, melhor: desmentido por ter nos deixado gozar; se
gozamos, mas, como :sempre, não foi hem o que deve·
ria ter sido, nos resta o apelo a um pai que seja o bom
fim da nossa viagem, o par.S impossível de um pai que
valha não por interditar, mas por permitir gozar. Ou
então, que nos perdoe a nossa viagem e nos ace ite de
volta como filhos. . .
O imperativo de gozo não é, verdade seja dita,
nem ui'JUl. invenção nem uma especificidade brasilei-
54 llfiLl.O flRAS II.I

r.a. Mas o colonizador parece ter imprimido· aqui


marca especial.
Q11_erer gozar poderia ser uma "razão de ser" uni-
versal, que normalmente. se resolve num gozo insa\.is.-
fatório mas não sem prazer, relativo ao .exercício dos
~tossos limites. De urna maneira· simples, poderia di-
zer por exemplo que, minha "razão de ser" sendo go-
zar, ela se resolve no gozo de um "ser filho", que se
mede como insatisfatório · do pontó de vista de um
eventual possfvel acesso a um outro gozo que me é
proibido. A minha vida de repente se organiza .ao re-
dor da questão do ~nbe.cim ento pelo pai interdi-
tor. É certo aliás que não penso nem um segundo que
a sólida sujeiçã~ a uma função paterna seja um sin-
toma social particularmente invejável - a prova é
que escolhi viver no Brasil. De qualquer forma, mes-
mo que ser filho seja o centro das minhas preocu-
pações, posso dizer ·que querer gozar continua sendo
a minha "razão de se r": por ser filho, o meu gozo
é impedido, e assim descubro um gozo necessari a-
mente amputado relativo ao exercício dé!.....minha fi-
liação (aqui -surge o "goút de l'effort"). E há. mais:
mes mo que eu goze amputadamente de ser filho, con-
tinuo sonhando num gozo outro, aquele que o pai
ter-me-ia interditado.
Mas o colonizador fez uma aposta contra a a.mpu-
ta~ão do seu gozo que lhe impunha o fato de ser fi-
Ih~ ele escolheu ir para ou tro lugar onde a lfngY.a Jlª-·
tçrna lhe permitiria gozar plenamente. Disso, umas
conseqüências: gozar, para quem aposta contra os li-
mites impostos pela sua fil iação, não pode ser uma
"razão d.e ser". Se transforma necessariamente em
uma "razão de es tar" onde o gozo seja possível, urna
QUERO GOZAR . .5.5

razão, aliás, que no gozo predsa se justificar. Por isso


o "estar", embora contingente, é mais imperativo do
que o "ser". Para quem "é daqui", o "ser'~ , é uma ne-
cessidade,· talvez chata mas sem outras obrigações do ·
que a simples determinação ·simbólica; para quem
"está aqui", o "estar'' 6 uma co~tingência que precisa
ser justificada a cada instante, gozando. Se gozar é
. minha razão de estar, por que não ir embora quando
não gozo como previsto ("este pafs não presta")? Por
que não procurar sem tréguas um lugar outro onde
possa estar gozando?

Num determinado momento necessitei escolher um


funcionário. Fiz nessa ocasião uma pequena aprendi-
zagem sobre triagem e fiquei impressionado com as
carteiras de trabalho: seis meses à esquerda, três à di-
reita, cinco no meio ... Não entendia o porqu! de uma
tal mobilidade da mão-de-obra. Justificava-a pensan-
do nos salários eventualmente medíocres, nos am-
bientes de trabalho etc. Mas conhecia também ·a ex·
traordinária mobilidade da mão-de~obra norte-ame-
ricana, e, por outro lado, a extraordinária estabi-
lidade da mAo-de-obra européia. Na Europa, em caso
de declínio econômico de uma região, as propostas
eventuais de transfer!ncia para zonas mesmo limítro·
fes de nova industrialização encontram sempre uma
resistência feroz das instâncias sindicais que defen-
dem a inserção cultural local do trabalhador como
um valor vital. E a coisa acaba custando preços ele-
vadíssimos aos governos·que inventam projetos quase
sempre inviáveis de industrialização fo rçada, quando
não decidem a nacionali~ação de empresas já mortas.
. !

56 HE LLO BRASIL!

Nos Estados Unjdos, é outra coisa~ o trabalhador vi-


vendo em "mobíl-home", a casa amarrada ao seu car-
ro, correndo atrás da fronteira de trabalho, parece
uma espécie de herói de sonho americano, meio Walt
Whitman, meio Jack Kerouac; o amor dos vastos es-
paços, de uma terra grande onde a mobilidade se
transforma num ideal que sublinha a filiação simbóli-
ca aos mitos nacionais.
Aqui ainda é outra..coisa: algo diretamente relati-
vo à hipótese ou ao sonho de um ganho apenas maior
ou de um tempo de trabalho menor. Ou, mais exata-
mente, nada de tudo isso: trata-se do anseio de uin
outro lugar; 6 impossfvel deter-se na viagem para
Passárgada. Os laç-os que tecem a yida no meio do
trabalho não entram, ou entram pouco na conta da
decisão. Pois o que conta é o sonho de gozo e ele é
sempre razão de estar. Mas onde? .

Encontro no Brasil os motéis. Parisiense durante


mais de quinze anos, conhecendo Alemanha, nor-
malmente os motéis não deveriam me estranhar. Mas
os motéis brasileiros são . bem aiferentes dos hotéis
"de passe, franceses. Mesmo nos mais requintados
destes, com a tradicional escolha de quartos - me-
se
dieval, oriental, nollywoodiano etc. - não deixa de
réspirar um ar de pecado, de algo ilegftimo e repre-
ensfvel. Por exemplo, nada indica exteriormente que
tal hotel seja um "hotel de passe". A discrição é are-
gra._
Os "Eros centers" alemães não obedecem neces-
sariamente a estas regras de discrição. mas ao mesmo
tempo se pretendem prostfbulos modernos. Eles são
consagrados ao exercício da prostituição.
QUERO GOZAR 51

O mote) brasileiro se anuncia de longe, com car-


tazes e néon, com oferta de almoço executivo, teto
solar e cadeira erótica. Mais importante ainda, quan-
do recorre à publicidade na imprensa, por exemplo
em São Paulo ou no Rio, ele chega a se propor como
alternativa de lazer ao casal casado. Pois é anunciado
.um lugar onde a tranqüilidade, as maravilhas da téc-·
nica, "water-bed'', vídeo, cama vibrante,· luzes estro-
boscópicas, pisdna individual... oferecem uma estada
no mundo do gozo, uma visita à Disneylândia da
transa amorosa. Em poucas palavras: a questão não
parece ser ofere,cer a oportunidade de uma transa
ilegítima oü de uma excursão prostibular~ trata-se de
ve~der a ilusão de um lugar onde haveria uma boa
razão de estar.

. O "tudo bem" português já supõe mais felicidade


no interlocutor do que qualquer outra fórmula de
cortesia que eu conheça. A versão . mais carioca e
paulista, 44 tudo jóia", impressiona ainda mais: a supo-
sição é paradisíaca. Por que será que é necessário
enunciá-la mutuamente num encontro? Mais do que
uma pergunta, aliás, o "tudo jóia" parece uma con-
firmação recfproca.
Uma idéia da sua significação me vem de um pa-
ciente particular e dramaticamente preocupado pelas
escolhas possíveis dos rumos de sua vida profissiomil.
Ele me cumprimenta, apertando vigorosamente a
minha mão e perguntando: "Firme?".
DigO-me, daf, que para quem se encontra aqui,
prociamar "tudo jóia" vale uma pleonástica decla-
ração de "razão de estar": se estou aqui, firme, se
ainda.nâo viajei, só pode ser, tem que ser "tudo jóia".
FUNCÃO

PATERNA

Gosto, chegando num pafs, antes e além mesmo


de investigar seriamente a sua história e cultura, de
mergulhar na imagem básica que ele parece ter dele
mesmo, e sobretudo na versão da sua história que ele
ntcsmo se conta.
Não me privei, chegando no Brasill... de ler os llvros
escorares· de fiistóría, por exemplo para a 5 1 série. A
leitura foi instrutiva e· angustiante pelo extremo ci-
Ilismo dos textos. Trata-se de livros recentest efeito
da safda da insuportável retórica de qualquer ditadu·
ra militar. E também, por alguma alquimia mental
que já revelou num texto bem conhecido C·'Nardsis~
mo em tempos sombrios", in Percursos na história da
psicanálise, Rio de Janeiro, Taurus, 1989} o meu ami-
go Jurandir Freire Costa, o marxismo e geralmente o
progressismo acham bom, nesses dias, se vestirem de
cfnicos, como se qualquer ideal fosse reacionário.
Procuro, por exemplo, o capftulo que introduz o
momento - inaugural para o Brasil - das grandes
IJ EL LO JII{J\.SIL!

viagens e des.cobertas. Na minha lembrança, nos


meus livros de texto, um tal capítulo tecia um laço
desde o Ulisses homérico àquele da Divina comédia,
até os navegadores, interrogando o anseio de conhe-
cer, a paixão de aventura, o apelo e o fascfnio do ho-
rizonte marítimo. Não sem lembrar os · efeitos · inci-
pientes do declínio do un iverso ptolomaico e a nova
angústia de um mundo infinito. Bobagens e não: pois,
o imperialismo fornecendo eventualmente os inves-
timentos necessários, trata-se de um momento-chave
na transformação da visão básica do mundo do ho-
mem ocidental. Procuro então o capítulo em questão
e encontro o título "Os europeus procuram novas ri-
quezás". E basta.
Outro exemplo instrutivo: 1806, a Europ~ está
quase inteiramente napoleonizada, e Napoleão de-
o
creta bloqueio continental da Inglaterra. Como se
sabe, Dom João decide ajudar a Inglaterra, o que vai
lhe custàr nada menos que a perda da sua terra (com
a conseqüente instalação no Brasil). Ajudar a Ingla-
terra nesta 6poca era sem dúvida um ato de grande
coragem e de fidelidade ~ uma tradição já cumprida
de intercâmbio comercial e cultural. De tudo isso
nem uma menção: "Dom João não poderia agir de
outro modo, uma vez que tinha dívidas com a Ingla-
terra e grnndes in.teresses comerciais.,, e basta: ·
Nem udlanta continuar: tudo acontece como se o
ónico motor da ação humana pudesse ser o apetite de
um gozo direto da coisa. ·

Pensando bem, não 6 nada estranho: já constata-


mos que a decepção do colono para com a autoridàde·
FUNÇÁO I'A'i'I.!I{NA 61

que dava legitimidade ao seu sonho faz do cinismo o


m_pdo dominante da... relação . brasileira com toda
instância simbólica. Nada estranho também que de
repente o colono, na sua busca contínua qe uma
função paterna que lhe outorgue a filiação procurada,
acabe medindo qualquer função paterna possfvel pelo
gozo ao· qual ela poderia dar acesso. É evidentemente
. paradoxal, pois uma função paterna normalmente se
mede pelo gozo que interdita e eventualmente imagi-
nariza e não pelo gozo que permite. Mas se o signifi-
cante ao qual peço filiação me designa o corpo exan-
gue e gozado da mãe pátria, se a autoridade preten-
sarrtente simbólica ·à qual recorro se revela como a
expressão obscena do gozo do dono, como acreditar
que um Nome do Pai possa se medir a outra coisa
que não à regozijante potência que ele exibe e even-
tualmente pelo acesso que ele mesmo me reserva na
festa?
O aparente cinismo dos livros de história talvez se
explique assim: o motor da ação é certamente ainda
uma referência paterna, mas aqui a referancia não é
ideal, um pai só se sustenta à medida que det~m o
bolo e promete a maior fatia.
A coisa aparece na vida cotidiana, na escolha de
uma profissão, por exemplo, no discurso das crianças.
O qu~ fazer quando for grande? :B raro que, mesmo
no momento das identlflcaçOes edfpicas, se manifeste
a escolha de um "ideal" que não seja me~ido à parte
do bolo que promete.
Impressiona-me, por exemplo, como uma família
inteira parece desconsiderar um pai que não conse·
guiu enriquecer como se esperava, por não ter ~'apro·
veitado" das suas chances. O capital incrível de ami-

.'
62 HELl.O BRASIL!

zades, estima, valor d.e um nome respeitado que ele


deixa, pouco parece valer.
É inevitável por conseqüência que o exercício do
poder seja, digamos, 1'exibido" numa espécie de
potlach necessariamente infinito (no sistema de
potlach - como lembram certamente us leitores de
Marcel Mauss .- o dom, a dádiva é o que sus tenta a
autoridade do doador, impondo aliás, a quem recebe,
dádiva semelhante ou maior). Um cargo, uma função
p~~tensamente simbólica parecem poder se sustentar
tanto rnel'hor quanto mais quem os c::xerce, gastando,
exibe a medida da riqueza da qual dispõe. Isso abre
necessariamente as portas do clientelismo e da cor-
rupção: se o cargo, que ocupo vale na medida em que
posso dar prova patente do meu poder e da minha
disponibilidade de recursos, só posso sustentá-lo nu-
ma indefinida demonstração; o exercfcío do éargo se
confunde com o gasto que comprova o seu valor. Um
exemplo clássico conti nua sendo a viagem a Momba-
ça do famoso presidente interino: no espaço breve e
contingente do ínterim rclalivo a uma ausência do
presidente Sarney, urna volt~ grandiosa à cidade natal
sustenta o valor ' 1simbólico" de um cargo, comprome-
tido pelo seu caráter interino. Nasce, aliás, assim um
neologismo: "fazer uma mombaçatla", para indicar
um gasto exibido que tenta sustentar uma função
problematicamente simbólica.
A vida poiCtica do país é uma mornbaçada atrás
da outra, por necessidade. Por exemplo, o clienlclis-
mo local e familiar, ou seja, o fato esperado que um
homem poHtico ou um funcionário no poder devolva
riqueza para a sua cidade na tal e para o seu cf rculo
familiar, não é tanto uma retribuição dos votos que
I'UNÇÁOPATERNA 63

lhe foram eventualmente acordados, nem o signo de


seu amor para a terra natal e a famflia. O problema é
que'· nestes lugares, onde, mais do que em outros, o
nosso poirtico ou funcionário gostaria de encontrar o
justo reconhecimento da dignidade do seu percurso e
do seu cargo, ele descobre que esta dignidade só será
reconheéida à medida que ele a ilustre com uma pro-
digalidade qué demonstre os seus recur~os.
É instrutivo deste ponto de vista o episódio Sílvio
Santos na campanha presidencial de 89. Por um 'l ado
parecia · que distribuir presentés no baú da felicidade
era justamente urna prodigalidade suficiente para fa·
zer um plausível candidato. fo.LOllJJP lado, mais as-
sustador, aparentemente o fato que a candidatura se
revelasse possível a partir, não de uma filiação poUti-
ca ou ideal, mas dii compra manifesta de uma legen-
da política. uão comprometia a candidatura. Pergun-
tava-me: mas como po.de ser? Como esta compra
simplesmente por ser pública ·e conhecida não invia-
biliza a candidatura? Quem poderia querer votar em
alguém que sustenta sua posição de candidato em seu
poder de compra? A minha interrogação era ridícula,
pois justamente a força da candidatura residia na
amostra produzida do poder de compra.
Paralelamente, quando nos primeiros tempos da
minha estada as pessoas tentavam me explicar o fun-
cionamento do sistema dientcHstico, os ditos grnndes
eleitores, as obrigações que constituem os privilégios
acordados, ainda que irrisórios, evidentemente não
entendia. Parecia-me óbvio que, se o segredo do voto
fosse respeitado - e em alguma medida devia ser -
nenhum favor poderia garantir uma fidelidade prati-
camente invcrificável. De fato a fidelidade não é ga-
llcLLO DRAS IL!

rantida por razões r~tributivas (tipo "Devo o meu vo-


to a fulano porque pagou para todos uma extração de
dentes"); ela é garantida porque a tentativa de me .
corromper não só e não tanto me beneficia, mas so-
bretudo me permite reconhecer no corruptor uma au-
toridade.
Uma referência paterna que valesse simbolica-
mente seria imediatamente desacreditada pela. sua
pr~pria (suspeita) prodigalidade; aqui acontece ·o
contrário: a exibição da potência real e, em última
instância, da corrupção valida a autoridade e impõe
uma fidelidade que é signo de respeito.
Sem isso seria impossível entender alguns slogans
oficiosos de uma recente campanha política para a
eleição dos governadores. A proposta de um candida-
to conhecido como prolífero sugere: ''Vote X, ele po-
deria .ser o seu pai". Outro candidato -deixa circular o
mote: "Rouba, mas f.az". Cumulando perfeitamente
cinismo . e amor de uma autoridade simbolicamente
indigna, encontro uma frase pichada num muro,
que - se prevalecendo da rima: - · diz: "Bosta por
bosta, voto no... ". O incrível é que estes slogan.s ofi-
ciosos possam ser considerados e funcionem a favor
do candidato que apontam.

Falo com um visitante português de alguns pro-


blemas relativos.à gestao de um hospital psiquiátrico.
problemas suspensos à mudança iminente de direção
nas próximas eleições. Só no meio da conversa nos
damos conta do equrvoco: estou falando das eleições
do governo estadual e ele está imaginando que se tra-
te de eleições internas no hospital. Descubro assim
que, e.I ll.JlQU.C.O tempo de permanência. já está me pa-
t-UNÇÃO J>AT I::RNA 65

recendo normal um tipo de atribuição L.le cargos pQr


via política, que deveria ser naturalmente por via de
cooptação ou por concurso. Cada governo distribui
cargos no segundo escalão administrati vo, o qual em
outros países é de termi nado por competência especí-
. fica.
O drama é que esta sustentação do poder ·se
transmite, pois quem foi assim escolhido terá ele
mesmo um cuidado de qualquer forma pr~vio ao
exercício da sua competência: o cuidado de sustentar
por ·sua vez a própria posição de poder com uma de-
monstração de poder, ou seja, nomeando. Realiza-se
assim uma cadeia que destina toda a função pública a
uma inevitável incompetência, ocupada com a neces-
sidade de demonstrar o bem fund ado do seu exercício
do poder; como? Exercendo o poder de distribuir
cargos. Por esse caminho a função pública se sustenta
crescendo exponencialmente · e se distingue pela sua
ineficiência a preencher uma função .o utra que a de
sua própria sustentação.

O princfpio dominante segundo o qual uma


função paterna vale pelo gozo que e~ibe e promete
acaba tornando difícil uma análise honesta do coti-
diano.
Chega ao ponto que a distinção se torna pro-
ble~ática senão impossível, para a opinião pública,
entre as exJg!ncias normais da dignidade de um cargo
e_ a sua paradoxal sustentação numa prodigalidade
exibida. Assim se, sentado na frente da televisão, con-
sigo apenas acreditar no relato tragicOmico da viagem
de Paes de Andrade, de repente também não consigo
entender as contas feitas no bolso de Fernando Col-
66 IIELLO ORAS! L!

lor almoçando "chez Lipp.. ou baixando no Ritz em


Paris. Será que o presidente eleito do Brasil deve
descer neste hoteJzinho da rue de Turenne, que acon-
selho freqüentemente, ou almoçar no chinês da es-
quina?
Do mesmo jeito, querendo moralizar a vida públi-
ca, se instaura, por exemplo. uma verdadeira caça ao
parente favorecido. A cura não é muito diferente da
doença e manifesta de. qualquer forma o exflio do
critério normal da competência. Ouvida num boteco
paulistano, a discussão entre dois clientes motivada
pela coincidência de sobrenomes entre o presidente
Collor e a Ministra da Economia, acaba assim: "Bom,
talvez não sejam mesmo parentes, mas é o mesmo
nome".
Pior ainda no equfvoco - . embora o fenômeno
não seja só brasileiro - lembro-me da polêmica ao
redor da construção do Memorial da América Latina
em São PauJo durante o governo Quércia. O argu-
mento crítico tradicional concerne aos custos que
sempre parecem astronômicos. De fato este tipo de
obra pode também ser considerada como utn potlach
e de uma certa forma é. No final das contas, t-rata-se
de um gasto que parece sustentar uma função simbó-
lica; mas a distinção merece ser feita entre ·um gªsto
que sustenta uma função simbólica e uma função que
pretende ser simbólica à força de gastos. Os gastos
para sustentar uma função simbólica são propriamen·
te os gastos culturais, e eu sempre os acho insuficien-
tes, sendo insensfvel aos argumentos que colocam as
necessidades ditas básicas como prioritárias. As
· razões históricas que poderia trazer são conhecidas:
se as necessidades básicas fossem prioritárias, a histó-
FUNÇÃO PATERNA 67

ria dos seres falantes não teria simp,esmente produ-


zido a incrível proliferaç~o cultural da qual os huma-
nistas diriam que ela assintoticamente produz uma .
definição do humano e da qual preferiria dizer que é
o lugar de onde, por ser interrogado. o sujeito ganha
a su~ identidade. Aliás, aqui no Brasil. o ~rgumento
das necessidades básicas, por justificado que seja,
acaba produzindo um.efeito especialmente. pernicio-
so, pois é só do investimento cultural que se pode es-
perar, acredito, a milagrosa invenção de uma instân-
cia simbólica verdadeira que não ~enha mais que se
sustentar na prndigalidade. Uma instância simbólica
verdadeira seria aquela, entende-se, que permitiria a
çada um finalmente ser e não estar brasileiro; e daria
a "brasileiro" ~ma significação definitivamente outra
do que a proposta pelo colonizador. ..
A crítica comum ao investimento cultural enquan-
to "desnecessário" pode melhorar o nosso entendi-
mento do que é o gasto exigido do .poder no Brasil.
Este gasto é exigido e parece valer eomo sustentação
d;t função do poder só na me.dl"da em que ele distribui
l!m ·ganho efetivo e material. Em outras pal..aYw....Que
o homem poHtico gaste, isso sustenta a sua função, só
se este gasto também me reservar uma parte de gozo.
E. sobretudo, não de qualquer gozo: não pode se
tratar do gozo do ser que nos ofereceriam, por exem-
plo, as obras de arte dos museus nacionais, mas
támbém decisões políticas corajosas, embora às vezes
pouco rentáveis; o go.zo exigido se espera que seja de
consumo direto, que justifique o estar aqui.
A diferença novamente aparece. entre dois pedi-
dos que podem se endereçar a uma função paterna:
q~e me dê um nome o que me dê um pão. Que para
68 II EI.I .O IIKASII .I

dar nome precise dar pão, testemunha de uma fra-


queza específica da função que nomeia. O ditado fa-
moso diz ''Não só de pão vive o homem."; se a distri-
buição milagrosa dos pães lhe for necessária para
acreditar no seu De us, ele terá como deus os Pães (de
Andrade) que merece.

Desde as minhas primeiras viagens ao Brasil,


quando a minha atividade· era principalmente de cur-
sos e palestras, algo me seduziu no trabalho aqui.
Em hora eu chegasse com todo o "charme" de uma
formação estrangeira e prestigiosa, parecia que os
auditórfos conseguiam ultrapassar a inibição que
qualquer idealizaçáo produz e por conseqüência in-
terrogar mais o que eu estava propondo do que a mi:-
nha pessoa.
Isso era, para o meu próprio trabalho de pesquisa
e invenção, de uma importância notável. E parecia
marcadamente mais interessante ensinar no Brasil do
que na França, pelo menos no ca~po da psicanálise.
Tumb6m, e no mesmo sentldÇ), achava que us
. questões ·dos ~eus interlocutores preferiam ser tími-
das ou arriscadas do que fundadas em argumentos de
autoridade. Para quem vinha de uma cultura (sobre-
tudo psicanalítica) onde a citação reina soberána, ·era
mesmo um pouco de ar .fresco.
Isso é também um efeito - mas positivo desta
vez - da exigência de medir uma função paterna no
que ela traz e permite. A que_stão t complicada, pois,
se por um lado era estimulante constatar'que o qu-~
eu trazia, sobretudo no registro da clínica, podia ser
considerado e discutido independentemente dos efei-
FUNÇÃO J'ATI:KNA 69

tos de autoridade do meu nome, eis que surgiam dois


problemas.
Um primeiro problema relativo ao tipo de urgên-
cia com a qual o saber que eu produzia era solicitado.
Pois era facilmente pedido que as considerações clf-
nicas v_iessem acompanhadas das justas regras de suas ·
aplicações práúcas, com garantias de resultados. Essa
postura pragmática, .e mais geralmente americana do
que· especificamente brasileira, deve ser certamente
versada ao capítulo das dificuldades da psicanálise no
Brasil. Dito brevemente, a psicanálise é uma prática
que pressupõe fundamerualmente que naja um psica-
'nalista. Ou seja, não há uso .cHnico possível da psi-
canálise por quem não seja analista. E um psicanalis-
ta se forma, fundamentalmente, não na transmissão
âe um saber, mas numa experi!ncia efetiva que trans-
fllttna o ...ser" 1emÓQJ1 ~m um sentido paradoxal,
pois se trata de uma certa forma de reduzir o "ser"
do sujeito ao mfnirno). Oeve-se poder entrever?- difi-
culdade: como produzir _e fazer valer um.saber que se
funda numa experiência de despojamento, quan_do
qualquer saber parece dever ser medido pelos efeitos
Çe gozo que pro~ete, e como engajar alguém em
urna experiência que certamente não se sustenta nu-
ma promessa desta natureza?
O segundo problema era uma forma atípica de
plágio. Só no Brasil me aconteceu de presenciar - u
convite - a conferência de um aluno para escutá-lo
apresentar publicamente fragmentos do meu ensino
que eu mesmo eventualmente considerava como
bipótes·es corajosas e ainda precárias. Digo uma for-
ma atípica de plágio, pois tanto o convite quanto a
tranqüilidade do palestrante, e mais ainda o estilo da
70 HCLLO BRASIL!

apresentação me deixavam pensar que não se tratava


de um exercício simples de cara-de-pau. Parece mais
que - para o aluno em questão - ficava desaperce-
bido, no._meu . .ensino~ o laço entr~ o que eu p_odia
propor e a minha enunciação de sujei to. o que eu
podia ensinar não era considerado como o fruto su-
posto da minha singularidade. Desde que enunciado,
ele podia ser apropriado pois não erà mais de nin-
guém, não carregava assinatura nenhuma.
Fiz a mesma experiência repetidas vezes em con-
versas mais restritas, onde conceitos que me são pró-
prios podiam voltar na boca de um interlocutor como
.se fossem seus. Não acredito na propriedade intelec-
tual; a linguagem" j;lOr s1naf" não é de ninguém Mas a
questão aqui não é tanto a da pro~riedade: o ex-
traordinário e ra constatar que um sujeito pudesse fa-
zer uso de um conceito ou de uma teoria com uma
perreita e assídua in'diferença à sua origem subjetiva,
que~o dizer... à simples marca que a assina.
Nenhum descaramento. então; mas uma certa im-
possibilidade de reconhecer marca singular num sa-·
ber. Pois reconhecer esta marca seria, na eventual
adoção deste saber, reconhecer uma . forma de fi-
liação no "autor", a qual contraria pelo menos a po-
sição do colonizador. O colonizador veio desconhe-
cendo o pai e ao mésmo tempo usurpando a própria
Hngua dele, para impô-la a um corpo terra que ele
não interditasse. Este esquema parece então conco-
mitantemente privilegiar a interrogação da· eficácia
de qualquer saber e resistir ao reconhecimento da fi-
liação que a adoção deste saber implica. Pouco im-
portaria, se esta resistência niio produzisse obstáculos
· específicos 'na rel ação com o saber: em particular, a
fUNÇÃO PATEMNA 71

preferência - sensfvel na relação com o ensino psi-


canaHtico - para a comida pré-digerida. Os alunos -
eventualmente famintos - não se jogam na leitura,
por exemplo, de Freud ou de Lacan. ou de I<Jein, mas
parecem preferir naturalmente a solução do media-
dor. Assim o projeto de ler um texto desemboca privi-
legiadamente na procura de um grupo de leitura on-
de o texto seja pré-digerido pela pessoa que · ensina.
Não consigo acreditar em explicações que aponta-
rfam a pretensa- õim:ulõaúe do Texto ou então uma
atávica escassa tradiçlo nacional de leitura: essas
duas justificativas me parecem por sua ~ me.r..ecer
uma explicação. Ou sc:ja: um saber pré-digerido por
uma medfaçao, um saber de se~nda ou terceira·mão, ·
se presta meThor ao esquecimento da marca ..singylar
que o assina. O ideal seria então poder dispor·de um
saoer s~m ter .que pagar o preço de ser, por exemplo,
freudiano, poder pegar o que convém - um pouco de
cada lado - negligenciando o vínculo de filiação im-
plicado. No campo da. psicanálise, especificamente,
isso é dramático, pois produz psicólogos repletos de
uma maionese psicanalítica, mas completamente es-
trangeiros a uma prática aceitável da disciplina.
Uma história que me foi contada por uma analista
paulista sintetiza perfeitamente a questão. Ela super-
. visionava semanalmente o trabalho de uma terapeu-
ta; e é importante saber que uma supervisão psica·
nalftica é uma prática que questiona as resistências
singulares do terapeuta e como tal é, para e~e, muito ·
mais uma experiência subjetiva do que uma·aula par-
ticular. Esta colega recebeu um dia um telefonema da
supervisionanda que se desculpava por não poder
comparecer ao seu horário marcado, por algum cons-
n tii:LLO IJ RAS IL!

trangimento na sua vida familiar. Sabendo que tradi-


cionalmente os horários marcados são de qualquer
forma pagos, a supervisionanda propunha: "A senho-
ra ·se importaria então se, para ocupar o meu horário, .
eu mandasse uma amiga que está precisando de uma
supervisão?"
Com efeito, por que um paciente "muito ocupa-
do'' não aproveitaria dos horários que ele falta para
mandar a mulher, ou o -filho, ou mesmo o seu moto·
rista? A história~ reveladora de um deliberado des-
conhecimento do que envolve singularmente um su-
jeito numa experiência.
Outro exemplo. Uma analista, ppr sinal respeitá-
vel e respeitada por mim, me liga um dia explicando
que foi convidada a dar uma conferência sobre um
tema que ela desconhece e do qual. não tem expe-
riência prática, e que ela aceitou; o que já é pouco
banal e supõ(! uma vez mais uma curiosa desvincu-
lação de saber e sujeito. Ela sabe que poucos meses
antes eu administrei um curso inteiro sobre o tema
·em questão e desenvolvi algumas id~ias int~ressantes,
lamenta não ter assistido ~ me pede uma "sup_ervisão
teórica.., "paga, natur~lmente", na qual eu pudesse
lhe resumir estas minhas idéias para ela orga!lizar a
sua conferência. Resolvi a coisa de tim jeito que. me
pareceu o único analiticamente possfvel: recusei, e a
atendi só para emprestar alguns livros. A história é
indicativa da mesma problemática: a da resistência a
· pa1.ar o preço de uma filiação no acesso a um saber, e .
do pressuposto que o saber (a língua pate,r na)·nruL.te-
nha pai (entende-se: não tenha pai que não seja'\o
próprio usurpador do saber paterno).
Para quem conhece a tragicomédia que é a si-
fUNÇÃ O PAT ERNA 73

tuação da psicanálise, lacaniana particularmente, em


São Paulo, estas indicações podem ser preciosas. Pois
se trata de uma vasta comunidade ana.lítica que, à
primeira vista, pode parecer unicamente preocupada
com as condições de gozo que lhe reserva o exercfcio
de uma disciplina da qual se trata naturalmente de
desconhecer a filiação. Não seria diferente da posição
do colonizador: o pai da Hngua está longe, na França
por exemplo, ele pode ser esquecido, e a sua língua
pode nos servir aqui.
As lutas intestinas da comunidade não seriam des-
te ponto de vista. propriamente fratricidas,· embora
violentas: sem a referência implícita a um pai ca:
mum, só se trataria de guerras para a posse e a explo-
ração da nova terra entre colonizadores sem lei. De
fato é mais complicado, pois inevitavelmente, na
competição, cada um ou cada grupo acaba tentando
se prevaJ·ecer de uma referência a um pai. E é no uso
desta referência que se desdobra uma valsa engraça-
da que - se valesse a pena ser contada em detalhes
- talvez fosse exemplar do drama inteiro das dificul-
dades nacionais com a função paterna. Só vale a pena
articular a complicação que parece constituir o esfor-
ço repetido para, ao mesmo tempo, ter acesso a um
ensino, se prevalecer eventualmente do privilégio
imaginário que ele outorgaria e desmentir qualquer
forma. de filiação.
Um conjunto de grupos de analistas convida um
analista estrangeiro - conhecido por uma.série de
valiosas e importantes contribuições; cada um assina
nominalmente uma convocatória pública. O,. líder lo-
cal de um destes grupos se prevalece da situação para
transformar u.ma apresentação do convidado em uma
74 HELLO BRASIL!

incrível exi bição retórica do seu próprio lugar de po·


der (que evidentemente a presença do convidado sus·
tenta implicitamente), e eis que o conjunto inteiro se
nega a pagar honorários ao analista convidado inter-
rogando·se comicamente sobre o lugar de onde a
demanda emanou. Ou seja: mas será que nós o con·
vidamos ou que ele quis nos ensinar? O exemplo é
excelente: convida~se um pai p~tra prevalecer-se da
sua sustentação, mas no mesmo momento precisa de-
negar qualquer dfvida com ele, re.p.e.tir a desmentida
da fi liação do colonizador, como se reconhecer um
fiozinho de filiação pudesse privar-nos de algum go-
zo. Mais especificamen te do gozo que o saber do pai
nos promete, se soubermos usurpá-lo.
Outra história: na ocasião da viagem prevista de
um amigo para o Brasil, proponho a uma instituição
paulista h ospedar e promover algumas conferências
que ele se d isporia a dar. De fa to, por razões de tem-
po. a proposta sendo bem em cima da hora., a coisa
não se revela possível, embora a dita instituição se
mostre muito interessada pelo trabalho teórico e clf-
nico do meu amigo. P ouco tempo depoi~, antes da
viagem, ele toma na França. algumas posições públi-
cas cortantes no campo da vida institucional~ E
aprendo Jogo depois que a dita instituição paulista fi-
cou retroativamente tão apavorada à idéia de qve ela
poderia ter convidado o meu amigo, desconhecendo
os seus últimos engajamentos polftico~institucionais,
·que ela resolve ficar estupefata comigo pelo ~isco ao
qual eu a teria exposto. Para entender a história. é
necessário lembrar que a dita instituição se envaidece
da sua falta de filiação definida; ela adota a solução .
já mencionada: tomar um pouco de tudo e de todos
FUNÇÃO PATERNA 1S

· seria o que permite o acesso a u_m sa_b er, ~Qnhe·


ce.ndo a singularidade. que_Q__assina e, portanto, evi-
tando;o risco dos limites (ao quê?) que uma filiação
imporia. DaJ a pãilico retroativo relativo a uma mani-
festação na qual o comprometimento político do pa-
. lestrante poderia ter jogado a sombra de um com-
prometiménto análogo sobre a instituição. Se petguri·
tará por que, pois, se a instituição se coloca suspensa
no limbo que antecede as filiações, deveria poder de
repente freqüentá-las•todas sem que nenhuma a con-
tamine e de todas absorver só o saber que elas trans-
mitem. Mas este lim~o é frágil. A denegação sobre a
filiação só consegue se mantq _no contato com pais
distantes, fracos e um pouco insípidos. O preço pago
é a pobreza do,limbo~que, se a ocasião se apresentas- ·
se, não poderia convidar nem Freud, nem Lacan, nem
Klein. A solução. melhor sendo que a comparsa cha-
mada a ocupar a função p~aterna conforte a platéia na
idéia que o pai estaria morto de verdade, por exem·
plo que ele mesmo participe de uma impotência fren-
te a um "imponderável" real da clínica que nos impo-
ria a todos o recurso a uma incerteza de saberes ne-
nhum dos quais nos comprometa. A solução do lim-
bo, aliás, não é necessar.iame~te institucional; . at~, em
São Paulo, ela é a posição individual standard.
A exceção ao lir_nbo também oferece um exemplo
de um tipo de soluç!o ao transtorno da função pater-
na que nos interessa. Existem também grupos que se
constituem ao redor de uma filiação reconhecida ex·
plicitamente. O engraçado é que - neste caso - a
preferência é de repente para os laços afiliativos mais
pesados e coercitivos e mais "exteriores". Deixo a ex-
plicação deste fenômeno para o momento em que
76 UELLO BRASIL!

· tentarei me interrogar sobre a inversão histórica que


parece transformar o colonizador, uma vez a sua em-
presa fracassada (e só poderia ser), em devedor ex-
temo.
Estas observações, se valem para a psicanálise la-
caniana em São Paulo, ·não deixam de constituir uma
parábola que talvez valha mais geralmente para
grande parte da vida cultural no pais. O limbo da
.maione~e é só um efeito do já mencionado antropo-
fagismo: comer todos os pais na ilusão que, neutrali- ·
zados no bolo digestivo, se transformem coletivamen-
te em sangue e forças .
.A escolha é evidentemente preventiva, pois, se
precisa comer todos os pais, é porque Q colonizador
SÓ imagina um pai à sua imagem e semelhança, e O
colono só o imagina à imagem e semelhança do colo-
nizador. Apelar para um pai sempre comporta o risco
da própria escravatura: ~ vai querer nos comer e
pre.cjsn portanto ser comido. Não por isso os órfãos
param de chorar lágrimas de crocodilo.

A primeira vez que uma paciente brasileira me fa-


lou da decisão, tomada de comum acordo no casal,
que seu marido sofresse uma vasectomia, pensei que
eu estava lidando com alguma patologia do laço con-
jugal. Aos poucos, as vasectomias projetadas e feitas
se sucedendo, devia me dar conta que a operação era
uma prática culturalmente comum. Não sem estru·
nhar.
Um amigo, em São Paulo, por exemplo, me COJ\·
fessa estar satisfeito com a sua (mica filha, levando
também em conta sua precária situação financeira, e
FUNÇÃO PATERNA 77

projeta então uma vasectomia. Faço-lhe observar


que, com os seus 26 anos, ele me parece curiosamen-
.. te jovem para uma tal decisão sem retorno; e ele me
responde brincando que, ao contrário, a operação 'só
facilitará suas aventuras extraconjugais.
Fico pensando que, num contexto onde um ho-
mem pode' decidir uma vasectomla, 6 difícil imaginar
que se trate de um rem6dio a alguma car!ncia cultu-
ral que dificultaria a contracepção feminina.
Por que então esta curiosa importância da contra-
cepção masculina, irreversível, quando a feminina
pode ser temporária e reversível? · .
A história se complica e se agrava quando um pa-
ciente casado e sem filhos me comunica o mesmo
projeto do meu amigo pauHsta, pelas mesmas razões
- financeiras por um lado e aventureiras pelo outro.
Acabo me interrogando sobre o que pode justifi-
car uma tal desist!ncia frente à possibilidade da pa-
ternidade. Poderia me satisfazer. com cons~deraçOes
malthusianas que aliás os dois exemplos alegam: o
custo dos filhos. E se trataria então de uma simples
desistência da paternidade renl, da função de genitor.
Mas a brincadeira do meu amigo paulista me vol-
ta à memória lendo um curioso classificado no · cor-
reio dos leitores de Ele e Ela: um "garanhão" se ofe-
rece a jovens e velhas, brancas e pretas, gordas e ma-
gras, promete o paraíso e acrescenta: 4'vasectomiza-
do". Será que as leitoras de Ele e Ela interessadas pe-
lo anúncio silo suficientemente ignaras para ter que
dar preferência a um amante vasectomizado? Ou se-
rá que 4'vasectomizado" vale no amlncio como um
qualificativo a mais que concernc às prestações eróti-
cas do · garanhão? De repente, confrontado a este
711 llliLtO DRASU.'

oxrmoro, onde o garanhão, para garantir melhor o


gozo, não pode rcproduz.ir.. me digo que a desistência
. não concernc aqui à paternidade real, mas à patcrni-
.dade simbólica. Pois a brincadeira do meu amigo
paulista, as razões aventureiras do meu paciente c o
anúncio do garanhão parecem concordar: é para go-
zar - e nno para não ter filhos - que precisa evitar a
paternidade. 12vi ta r ser_ pai vnle aqui cvlt:tr a tu rc f a
de sustentar e transmitir uma filiação, cujo preço só
pode ser um limite ao gozo.
E surge uma complicação u mais: se para gozar é
preciso evitar a paternidade, parece também que pa-
ra ser um pai credível é necessário aqui gozar sem
limites, gozar como se não houvesse pai. Em outras
palavra~: s.er pai depende do meu gozo, e o meu gozo,
por_ter que ser sc.m limites, implica que cu (iesista de
ser filho. E como poderia querer ser pai, se não me
reconheço filho? · .
No entanto, nada impede que as mulheres sigam
sendo mães.

Em época de eleição, a mobilidade de muitos


políticos brasileiros é fora de série. Não estou falando
da mobilidade geográfica imposta pela extensão do
território, mas das eXtraordinárias migrações de de-
putados, senadores, governadores, vereadores etc. de
um partido para outro e para outro ainda.
A leitura da imprensa é surrealista: se mantém,
por exemplo, durante selJl~mas
o suspense sobre a
troca de legenda do governador de um Estado, que
aliás dispõe de uma popularidade certa e portanto de
um potencial relevanre de votos. E a imprensa espe-
f-UNÇÃO I'ATIZRNA 79

cuia sobre a hesitação do mutante: ele estaria espc·


rando uma última pesquisa para avaliar as chances do
cnndidato presidenciável que escolheria, ou então
negociando· alguns privilégios estaduais com o mesmo
candidato. o discurso aqui nem parece hrutal, quan-
do na Europa talvez chegaria a ser matéria para t.nn
processo' por difamação. O curioso não é tanto a mo·
livuçf\o do govcmauor, que, por ser dcscuradumcntc
confessada1 teria pelo menos o mérito da sinceridade.
O curioso é que este discurso descarado não com·
promete nem a popularidade do governador, nem a
do presidenciável. O polftico europeu,. mesmó o mais
dnico, seria, frente à opinião pública, levado a consi·
dera r necessário justificar ideologicamente a sua hesi-
tação e a sua escolha.
Aparentemente o mistério só se explica conside-
rando que o que parece sustentar, melhor dito, legi-'
timar o poder é o seu exercício mesmo e o mais ex-
plfcito; deste ponto de vista, a desfaçatez é uma ne·
cessidade. E mal se entrevê como mesmo o polrtico
melhor intencionado poderia resistir a esta necessi·
da de.
A referência ideal, assim marginalizada desde. que
a função paterna se mede à parte do bolo que prome-
te, impossibilita uma vida polftica. Pois nestas con-
dições um partido acaba sendo ou uma associação de
· mútua troca de favores (onde o favor sustenta quem
o acorda e permite ao favorecido se sustentar, acor-
dando outros favores), ou então o fato de um homem
- e nunca de uma idéia. Esta figura de um homem
providencial, como recurso possfvel, merece expli·
cação.
Uma função paterna - já foi dito - é algo que
80 IIELLO IJRASIL!

me limita. me coibe e) por assim dizer, em troca, me


outorga uma cidadania, um lugar simbólicoe alguns
ideais básicos de referência. E fui desenvolvendo a
idéia que a uma função paterna, aqui no Brasil. ê pe-
dido que se legitime não me limitando, mas ao con-
trário me presenteando com a sua prodigalidade. O
Pai ao qual se aspira seria aquele que não interditas-
se a mãe, mas que ao contrário organizasse festiva-
mente uma pródiga repartição de seu corpo. De re-
pente esta função paterna se parece singularmente
com uma função mais materna, pois o homem de po-
der no final das contas vira vaca leiteira. É à mãe,
como se sabe, que cada um não pára de pedir até o
que ela visivelmente não tem para dar. ·
O inconveniente desta situação - além do des-
perdício e da falta eventual de leite - é que ela é
simbolicamente improdutiva. Ninguém consegue ser
alguém a não ser mi troca de favores, e valor e lugar
simbólicos se evaporam deixando cada um num so-
frimento certo.
Quem quer encontrar um pai que o alivie deste
angustiarit~ circuito materno - e é certamente o caso
do colono - terá que escolher como recurso um pai
mesmo, que valha, como dizem os nossos vizinhos,
pelos seus cojones e, finalmente, nos interdite algo.
Des;te ponto de vista não estranhou ninguém que a
popularidade do presidente Collor se mantivesse inal-
terada depois das medidas do seu plano econômico;
ao contrário, o pai que estamos esperando se reco-
nhecerá às privações que saberá finalmen,te nos im-
por.
Assim a oscilação parece s~r constante entre mer-
cado de poder e homem providencial. E não se vê
FUNÇÃO I'AT EI{NA IH

como um sistema parlamentarista poderia, neste con-


texto, celebrar outra coisa do que uma generalização
definitiva do exercício pródigo do poder. Ele só pare-
ce possível onde o poder delegado se legitime nas
idéias supostamente compartidas entre eleitor e elei-
to.
Assim: a indignação é um corolário onipre~tln t e
da corrupção que implica u,m a função paterna med i-
da pela sua prodigalidade. Todo mundo lamenta a
falta de vergonha na cara do vizinho, o que não im-
pede a imediata disposição de cada um em participar
da festa, venerando ~ respeitando aquele que o con-
vide. ·
Aqui nenhuma contradição, po is to.dó mundo po-
de sonhar, tal como o colonizador, com um pai de
brincadeira que abra o decolleté materno e querer, tal
como o colono, que um pa i de verdade nos restitua a
dignidade de filhos, fechando o mesmo decolleté. Por
isso, se o colonizador pode ser, em uma versão mo-
derna. tecnocrata, o colono - mesmo se democrata
- dificilmente deixará de ser caudilhista.
· FUNDACÕES

Minha fainflia é atestada em Barbaniia, uma cida-


dezinha do Canavese, no norte do Piemonte, desde o
século XVI, com um Bernardino Calligaris, nome
aliás que se transmitiu até o meu tio - primogênito
da fratria do meu pai - e é agora do meu irmão mais
velho. Barbania ainda tem algumas fazendolas que se
chamam "calligárias" e também a casa dita Calligaris
que a família já deixou há muito tempo. A história da
linhagem se perde por at, pouco antes que ela eno,
brecesse.
Este umbigo da cadeia simbólica que chega até a
mim é mais uma bruma na distância do que uma ori-
gem. Lembro-o porque sem isso não se entenderia
meu estranhamento frente a uma fotografia exposta
no museu da imigração italiana em Bento Gonçatm.
Na foto aparece uma dezena de homens e mulheres
plantados no meio do mato, literalmente, com poucas
ferramentas básicas e rudimentares. É o momento da
fundação. A quilômetros da cidade de Porto Alegre,
qultometros sem estrada, num lugar que imagino es-
84 HEU.O URASil.!

colhido segundo uma sabedoria da terra - peno da


água, mas sem risco de inundação, perto da madeira
para construir, mas não longe do que poderia ser
campo para cultivar - de repente a decisão que, ape-
sar destes critérios, nada pode justificar plenamente:
é aqui. E o museu é hoje, cem anos depois ou talvez
menos, uma casa entre outras numa cidadezinha que
justamente, pela graça de seus habitantes, as caras, os
gestos, se parece com Barbania ou outra cidadezinha
italiana.
Uma emoção finalmente análoga, embora num
contexto diferente, surge em mim visitando o mau-
soléu e o museu de Juscelino em Brasflia. Não é tanto
a rapidez com a qual a cidade foi const'rufda que me
impressiona, quanto a .proximidade do ato da sua
fundação. Que JK se prevalecesse de alguma inspi-
ração mística não me atrapalha. Os fundadores da fo-
tografia de Bento Gonçalves também talvez - embo-
ra nenhuma história que eu saiba registre o fato -
tenham recorrido a algum critério desta ordem. Ao
final seria normal, no momento de um ato de tal con-
seqü!ncia e 'q ue nada justifica na sua contig!ncia:
aqui pararemos e construiremos.
A fundação de uma cidade é para mim, europeu,
o exemplo mesmo do que se perde na noite dos tem-
pos. No Brasil pode ser memória de duas gerações ou
menos. Se houvesse mesmo memória histórica - e
talvez haja - da fundação de Barbania, certamente
ela se apagaria numa n~hulosa temporal, onde o
eventual envolvimento de um Calligaris !!áO resolve-
ria problema de origem alguma: nem da cidade, n~m
c.la minha linhagem. Ambas se alimentam numa com-
plicaçao de ramificações que - respectivamente -
FUNOAÇÓI!S 85

nem um instituto de heráldica, nem um historiador


especialista em distribuição de acampamentos roma-
nos teriam a pretensão de esgotar. Aqui no Brasil o
momento inicial da cadeia parece surpreendentemen-
te próximo e de repente a cadeia parece direta, sim-
ples. amarrada num momento originário que pode
ser evo_çado na memória do sujeito.
A história familiar dos pacientes, por exemplo;
parece efetivamente começar com a cfiegada mi-
gratória. ffo melhor dos casos o romance familiar
acarreta uma lembrança - facilmente incerta - do
nome de uma cidad.e ou de uma vila européias, mas o_
início da memória é aqui mesmo, como se a travessia
do oceano tivesse necessitado de uma verdadeira re-
fundação dá linhagem familiar concomitante à fun-
·dação de uma nova estadia.
Que as cidades freqüentemente levem um nome
que evoca a origem esquecida (novo aquilo, novo
aquele) só confirma aliás a repressão imposta. O no-
me funcionaria como um oxímoro, onde ·o adjetivo
"novo., recalca Bréscia, Hamburgo, Friburgo perdi-
dos. Mas por que a memória recente da fundação de
urna moradia acarretaria o sentimento de uma ori-
gem definida e próxima também da cadeia simbólica
da linhagem? A considerar a memória do colono, pa-
rece que a viagem emigratória ao Brasil tenha pedido
úm esquecimento específico, que talvez se justifique
pelo emigrante ser ele mesmo um esquecido na sua
pátria de origem, e sobretudo que se confirma por al-
guma necessidade imperativa. chegando a recorrer a
um ato autônomo de fundação não só da moradia,
mas do sujeuo mesmo.
86 IIELLO UKASII.!

Há uma exceção ao esquecimento da filiação que


qualquer migraçfw comporta: os judeus. E a exccç:1o
permite distinguir, corno duas figuras, o judeu errante
do emigrante. O racismo, por sinal, nunca parou de
acusar o judeu de ser errante e não emigrante, ou se-
ja, de continuar sendo judeu apesar de viajar. Com
efeito, corno os membros de um povo que é um ver-
dadeiro monumento erigido à função patern~ do po-
vo que sustentou a idéia monotefsta, poderiam, mu-
. dando de cultura, abandonar a referência paterna
que os subjetiva?
O e.migrante, o colono da nossa história parece
ser o antinômico do judeu errante. A fala dos seus
descendentes testemunha uma viagem para a qual o
Atlântico se fechou atrás do colono, não para impedir
a passagem dos perseguidores, mas decidindo um cor-
te radical e forçando uma verdadeira re-fundação
simbólica originári"a do seu nome.
O cúmulo é que o Brasil conseguiu - numa época
decisiva da sua história - transformar mesmo os ju-
deus em emigrantes.

Tempo de descanso em Veneza, passeamos por


um -pequeno brique perto de Campo Santo Stéfano.
Está à venda, numa banca, um candelabro de sete
braços. Eliana se entusiasma, achando que seria per-
feito para as velas - ·ela me diz - que se acendem,
uma cada dia, na semana anterior ao Nal~l. Eu estra-
nho, e ela ainda mais, ao descobrir que o costume
que na sua família se transmite não é nada universal
e, mais especificamente, é judaico. Compramos o
candelabro para celebrar a descoberta que algo na
f' UNOAÇÓES 87

sua famflia é certamente jucleu. O sobrenome Carva-


lho, do lado da sua mãe, devia aprender depois, tes-
temunha uma origem cristã-nova, como quase sempre
ocorre com os sobrenomes de plantas.
Começamos a interrogar juntos o destino dos
cristão~-novos, aos poucos encontrando ao redor· de
nós uma série de exemplos deslumbrantes de um ju-
da{smo esquecido, do qual curiosamente (mas, aliás,
coerentemente com a idéia de uma aliança que o rito
sozinho, mesmo sem crença e sem saber, pode man-
ter) sobreviveram alguns restos rituais. O avô que
nem sabia o que era sinagoga, mas aos sábados insis-
tia para sair só com os homens da famOia. Uma ami-
ga cuja velha doméstica exclamava de vez em quan-
. do, sem saber por que, ununca ao sábado!" E a outra
história, que me foi contada na Sociedade Hebraica
em São Paulo, de um pretenso goy engajado como ca-
seiro de uma comunidade judaica, convidado para a
festa da hanuká com a sua famflia e gritando, ao en-
trar, também sem saber por que, "vocês estão loucos,
escondam isso, não dá para fazer assim, em público".
Aos poucos fomos descobrindo que, se os
cristãos-novos e os seus descendentes voltassem a se
pretender judeus, o Brasil poderia bem contar com
uma das maiores comunidades judaicas do mundo.
·O laço pode parecer àbusivo entre a conversão
forçada e a colonização do Brasil. ·Mas a história pro-
duz suas ironias e não deixa de impressionar que o
decreto de Dom Manuel seja no ano mesmo da des-
coberta da América. Como se a prepotência da con-
versão forçada de um povo obrigado a renunciar à
sua filiação fosse o primeiro ato de uma colonização
incumbente que pediria ao colono renunciar sua fi-
IIELLO URASIL!

liação, queimar, não tanto os navios, como os laços


simbólicos do seu nome. Ou ainda, como se esta de-
monstração de potência fálica que priva de nome e
renomeia fosse um primeiro ato do drama, onde se
afirma·a língua do pai; o segundo ato esperado sendo
a colonização do outro mundo, onde a mesma Jfngua
se afirmaria, explorando livremente um corpo outro
que o corpo materno.
E o primeiro ato parece preparar o segundo em
dois sentidos: primeiro, porque a exibição da pot!ncia
paterna encoraja os futuros colonizadores a procurar
um corpo onde fazê-la valer só para eles; segundo,
porque a conversão forçada joga uma massa inteira de
colonos na aventura da·busca de um novo nome.
Os meus amigos historiadores vao se horripilar
com estas observações. E me farão notar que a colo-
nização do Brasil n~o foi s6 de cristãos-novos, longe
disso. Aliás - con.lo demonstra a história da comuni-
dade de Recife, que voltou ao judaísmo graças à che-
gada dos holandeses e viajou para Nova York nu vol-
ta dos portugueses - a ren6ncia à filiação judaica
não foi nem simples nein rápida, ao contrário, preci-
sou da ameaça da Inq.uisição .. E sobretudo eles me di-
riam que não existe, e de· fato nã·o existe Jaço com-
provável entre o decreto de Dom Manue.l e a desco-
berta do novo mundo. Eles .tAm :z:erAo..
Mas resta que a conversão forçada fé uma origina-
lidade portuguesa (outros. prq-'feriram a expulsão, por
exemplo) e que talvez esta originalidade tenha algu-
ma relação tanto com a pre1otente sede de gozo do
colonizador lusitano, quanta com a radicalidade d.o
corte que a viagem do coldno brasileiro parece ter
produzido na cadeia simb61i4a do seu nome.
FUNDAÇÓC.S 89

Deste ponto de vista a filiação esquecida dos


cristáos~novos seja talvez exemplar.

O equivalente do decreto de -Dom Manuel pode~


ria ser para os colonos do século passado um nfvel de
miséria que constituía por si só desmentida da cida~
dania originária e por conseqüência do valor simbóli-
co da filiação do sujeito, do seu sobrenome. ·
. Por isso o colono viria se fazer um nome. se sub-
meter a uma outra língua para que esta reconhecesse
no seu nome o valor de uma linhagem transmissíveL
Impressionou-me .no Brasil.~ desde o começ_Q, a
prevalência do nome em_relação ao sobrenome.
"Você conhece Euvaldo em Salvador?" Mas qual
Euvaldo? O sobrenome pode at~ ser esquecido, e o
incrível 6 que funciona. Lembro-me tamb~m de listas,
por exemplo, de membros de uma associação, em or-
dem alfabétka de nome, e nílo de sobrenome. No
banco, pedindo talões de cheques, nas reservas de
teatro, e mais banalmente na troca social ~ sempre
ucontardo11 : nunca escutei tanto o meu nome, em de-
trimento de meu sobrenome.
Em compensação a variedade de nomes é ex-
traordinária e excede de longe qualquer calendário
litúrgico: nomes estrangeiros, inventados, nomes que
são de fa'to sobrenomes famosos ... e> nome, individual
e não herdado, parece contar mais que o ·sobrenome
que é familiar e sempre transmitido. E de repente a
sua singularidade deve ser exaltada.
A escolha do nome pelos pais.a...como cada psü;aoa-
Jista sabe, é de peso. Por ~r decidido pelos pais.. o
nome· designará para o filho ou a filha o "X'~ ,para
sempre desconhecido, do desejo da linhagem inteira
III!LLO DR,\SJL!

com respeito a ele ou cht. Em outras palavras. de


uma certa forma, o sobrenome assinala-me a fillasão
à qual pertençoj o nome desi.,gnaJ sem nunca poder
revelá-la, a significação mis teriosa do meu lugar pró-
prio nesta filiaçã.o.
A escolha dos pais não pode evidentemente levar
em conta um desejo que os pais mesmos desconhe-
cem. Os europeus parecem portanto confiar em al-
guma determinação simbólica. A mais simples sendo
o calendário: o nome poderia ser o nome do santo do
dia do nascimento. Curioso, aliás, como o coloniàlis-
mo francês ~xportou esta referência litúrgica, ao pon-
to que ainda se encontra nas Antilhas uma série de
"Fetnat", nome nada exótico, mas simples efeito da
abreviação, nas agendas, do Féte nntionale (festa nn-
cional) que acompanha o 14 de Julho e outras datas
sagra-das para a nação.
Mais elaborada; existe a escolha de um nome de-
cidida por uma lei simbólica inte.rna à linhagem, por
exemplo o Bernardino de todos os primogênitos da
minha farnfli a. Ou ainda os nomes votivos, homena-
gem à linhagem mesma na pessoa de um ancestral
que ilustrou de alguma forma o sobrenome.
O essencial, de qualquer forma, é que, no costu-
me europeu, além ela prevalência do sobrenome, o
nome mesmo - embora individual - parece se justi-
ficar na sua referência a uma articulação simbólica:
litúrgica, familiar, histórica ele. Surge a idéia que,
aqui no Brasil, tanto a prevalência do nome indivi-
dual, quanto a sua singularidade são testemunhas da
espécie de corte forçado da cadeia simbólica da fi-
liação, que parece produzir a viagem do colono. E
também sejam um efeito da necessid~de, na chegada,
FUNOAÇÓES 91

de operar umaJundação que se sustente pelo ato do


sujcho sozinho, separado da sua e de qualquer fi-
liação.
É claro que se trata de uma interpretação que po-
de parecer tendenciosa e à qual seria possível opor
uma séri.e de aparentes objeções. Por exemplo, a e!-
colha de sobrenomes de homens famosos, de w~­
shington a Nelson, passando por Edison, poderia s. ~
entender como uma escolha pr Jpriamente votiva
Aliás, tratando-se de ·sobrenom':s · famosos usado .
como nomes, se poderia pensar q Je se espera da es·
colha do 'nome assi.m de~idida c ue estabeleça um:
espécie de filiação ideal com o grande homem, fi
liação que o sobrenome familia•· transmitido, ma
amputado da sua história, talvez não conseguisse ga
rantir. Também se podena consta ar que é freqilent'
o uso do nome paterno ou ancestr.1l acompanhado d1
Filho ou Neto, o que constituiria um exemplo de .fi
liação pelo nome.
Mas chama a atenção que na i 1aioda dos casos ;
interrogação dos meus pacientes 'Jrasileiros sobre :
escolha parental do nome deles acaba logo com i
constatação que se tratou de um nome que os pai:
gostavam. Além da justificativa, qre é eventualmentt
a simpatia para a personagem <'e uma novela ot
de um romance ou de um fato de 1.rônica etc., é inte·
ressante notar que a interrogaçãc é imediatament(
confrontada a algo que certamentf. a escolha do no·
me designa: a incógnita do desejt·· parental para a
criança.
Embora esta confrontação seja neludível para to·
dos, resta que raramente para um paciente europeu
esta confrontação é imediata, poi · quase sempre o
92 HELLO llRt\Sil!

nome - embora designando em última instância a di-


ta incógnita do desejo parentâl - parece decidido .pe-
la mediação de um sistema de necessidades simbóli-
cas, quer seja o calendário litúrgico, os deveres para
com a tradição, ou mais geralmente um sistema··
simbólico de dívidas. Esta mediação liga, além do so-
brenome, pelo próprio nome individual, ·o sujeito à
sua .filiação e introduz assim uma distância entre o
seu destino singular e o desejo p,~rental que na esco·
lha do nome sem dúvida se expressa. Não tenho me-
lhor exemplo do que o meu próprio. Contardo foi um
nome pesado, por ser raríssimo na Itália. Tocou-me
pelo seguinte caminho: .o meu avO paterno se chama;
va Giuseppe, e tinha um amigo queri~o, Contardo
Ferrini, que morreu muito jovem e foi rapidamente
beatificado. A promessa do meu avO de chamar o .seu
próprio filho de Contardo não foi respeitada, pois. o
meu pai nasceu póstumo e de repente foi chamado
como o seu próprio pai· morto. A promessa do avô se
transmitiu para o meu pai, mas ele nao pôde cumpri-
la com o seu primogênito, pois o primogênito ~ ne-
cessariamente Bernar-dino. ~u, segundo gênito, cum-
pri então uma promessa do meu avô herdada pelo
meu pai. Aliás, embora o clima familiar fosse bem .
mais maçônico do que católico e li.túrgico, desde cedo
fui instruído sobre todos os santos Contnrdos do fir·
rnamento (que são só dois, na verdade: o beato Fer-.
rini e um tal cadete da famflia d'Este). Esta conste-
lação não responde à questão que o nome coloca ~e
qualquer forma enquanto continua designqndo miste-
riosamente o destino que me foi desejado, mas intto-
du2: certamente, entre o "X" do d~sejo parenta! que o
nome designa e o meu destino, uma f!ICdiação. Ou se-
F~ NDAÇÕES . 93

ja: se o nome é uma escolha parentál e por isso de-


signa· o "X" do fantasma parenta! que eu deve.ria
cumprir, simultaneamente ele lembra que este mes·
mo fantasma parenta! é submisso a imperativos de
ordem simbólica.
Quando assim não é, ou não parece ser, quando a
escolha çlÓ nome não parece obedecer a um ·cons-
trangimento simbólico, mas só ao "gosto" dos pais
11
( 6 um nome que eles gostavam", ou "era o nome de

fulano que eles gostavam,.), al.o ~antasma parental se


impõe com toda força e de um'l_m.aneira particular-
mente violenta. Por quê? Todos os pais - ou quase
tQdos ·- esperam que s.uas crianças~ ou melhor, "en-
carregam'' suas crianças de realizarem a fantasmática
felicidade que eles acreditaiJl - com razão, aliás
- não ter alcançado. Mas os pais · (quase todos), ao
mesmo tempo que mandam ser · feliz, ·geralmente
transmitem às crianças as condiçõ"es necessárias para
que elas se. salvaguardem d·e um tão enigmático e
ameaçador imperativo de felicidade. Estas condições
se resumem na ordem simbólica de filiação na qual
eles tamb~m se reconhecem e a cuja dívida introdu-
zem as crianças. Em outras palavras, um "seja feliz"
sempre (quas"e sempre) se acompanha de um "ilustre
o nome que te é transmitido". Assim, se. o anseio de
um gozo enigmático, ao qual seria destinado a ..llQ.SsO
coq1.0. funda a nossa eterna insatisfação e ·a .. no..ssa
angústia, não por isso ele norteia sozinho as nossas
vidas, que tamb~m se dirigem em referência aos
ideais que se. ~ransmitem com nome. e sobrenome.
Teríamos então um destino para o nosso corpo e ou·
tro para o nosso nome. Condição humana, esta, noto-
riamente chata que talvez tenha contribuído e ainda
94 IIHLLO DRASIL!

contribua a nos convencer da separação do corpo c


da alma.
O que acontece quando a transmissão da ordem
que nos liga, pelo sobrenome e às vezes também pelo
nome, às dívidas simbólicas da nossa vida pesa menQS
do que o mandamento de ser feliz? Clinicamente,
acontece que o sujeito se lança na procura de um sa_.
criffcio do seu corpo que valha como o gozo que pa·
rec:e.. lhe ser destinado (a toxicomania aos opiáceos é
um bom exemplo); procura aliás ambivalente, pois
nela sempre ressoa o apelo a algum pai que permita
ou mais propriamente imponha que o serviço do no-
me volte a prevalecer. Socialmente, o que acontece é
uma socialidade onde os ..Jnços simhólicos negligen-
ciados deixam o campo a uma lutn frutriclda direta
para...o . acesso._.a.. .l.lm gozo aliás impossrvel, por ser
apenas a implicação fantasmática da insatisfação pa-
renta!.
O projeto frustrado do colonizador e a decepção
do colono contam aqui para que a criança receba a
herança de uma injunção a gozar antes do que de
uma ..dívida simbólica, ~. aliá.~. pQd..e..dificilmente..ser
reconhecid.a para com uma riação que enganou o seu
imigrante. E que dívida anterior à viagem poderia ser
transmitida se por um lado o colonizador teve que
usurpar a potência do pai originário para exportá-la e
por outro lado o colono veio por se achar justamente
esquecido pelo seu pai?

Escrevo estas linhas entre o 16 de abril e o 26 de


maio: a primeira é a data do meu onomástico, a se-
gunda do meu aniversário. E constato a po.rteriori que
os meus pais ligaram-me da Itália no dia. do meu
r UNDAÇÓUS 95
'
onomástico e esqueceram - por estarem viajando -
o meu aniversário. Aliás, alguns amigos brasileiros
's equer s.a bem o que é um onomástico. O fa to surpre-
end'e numa cultura onde o amor da festa é grande, e
não ~credito que baste uma explicação pseudofun--
cionalista apontando que a ·singularidade e a varieda-
de dos nomes impediria aqui que se celebre o dia do
·santo patrõno. Com efeito, por que o meu amigo Wil-
so~ não celebraria a data de nascimento do presiden·
te americano, ou ainda a da fundação da Sociedade
das Nações?
A resposta deve ser outra: o esquecimento brasi- ..
Jeiro do onomástico déve ser relativo à extraordinária
importância do aniversário no Brasil. Descubro que
ns festas de aniversário merecem lojas específicas e
setores relevantes das estantes de supermercados, e.
que aliás é impensável não celebrar o aniversário de
uma criança e mesmo de um adulto. A data é forte-
mente marcada e pela primeira vez encontro um uso
próprio para as páginas que certas ~gendas propõem
para os dias de aniversário de pessoas próximas e
amigos - pois a lembrança dos parabéns é de praxe.
E quem esquece é lembrado: o nosso Ramiro, por
exçmplo, aos seis anos, depois de. uma festa ani-
madrssima, sabe com cuidado enumerar quem dos
amigos respondeu ou não ao convite.
Difícil não pensar que a celebração tão viva da
data de nascimento insiste deliberadamente .sobre o
que, no destino de um sujeito, seria independente da
sua filiação. Tanto mais q~e é negada a festa onomás-
tica que justamente visa o efeito contrário: ligar o
nome mesmo, por individual que seja, a uma filiação.
De fato, onomástico e aniversário não deveriam ser
IIELLO I)J{ASIL!

necessariamente opostos: a festa de aniversário que


celebra a continuidade da vida temporal do indivíduo
acharia no onomástico, que ·celebra o patrono, o qua-
dro. simbólico no qual esta vida poderia se resolver
como outra coisa que uma corrida para o gozo e a
morte.
Qual o recurso quando uma fraqueza da dívida
com o patrono, quero dizer, uma fraqueza da propos-
ta de filiação, cancela o onomástico?
Na sua segunda viagem ao Brasil comigo, meu fi-
lho Maximiliano ia passar em Porto Alegre seu ani·
vers.ário. Ligam-me antes da nossa chegada e me p'e r-
guntam: "Qual poderia ser o tema da festa?" E sem
entender, respondo: "Mas o aniversário já não seria -
um tema suficiente?'' Surgem, então, como recursos,
estranhos patronos, os ditos temas das festas de ani-
versário, os Rambos, Super-homens, Batmans, He-
Mans. As meninas se salvam um tempo com Branca
de Neve, mas a Batgirl e She-Ra as espreitam. Total
surpresa para mim, inéditos na minha cultura nativa e
nas outras adotivas, os "temas" das festas de ani-
ve~~~rio pare.cem suprir._o esquecimento do onomás-
tico. Mas o supleme~to é, como a maçã da história,
bichado, pois na falta 'de transmissão de ideais p{ó-
prios ao home e sobrenome, os patronos se impõem a
partir de uma cultura massificada, q\le justamente
constrói como ideais e propõ~_ à identificação de to-
dos as mais triviais expressões de uma pot!ncia fática
que - quem sabe - possa nos reservar o acesso ao
gozo__cQrn~nd ado. A cultura de massa oferece como
mo'delo uma referência que, por não est~r inscrita na
história de cada um, só pode encontrar valor preten-
samente simbólico graças à exibição da sua pot!nchl.
FUNDAÇÕES 97

Se difundindo, ela agrava e confirma aqui os efeitos


de uma história para a .q.ua.l . o_ y~lor simbólico da
instância paterna já é precário. Mais propriamente: a
massificação encontra aqui o terreno mais propício,
pois, propondo ideais que necessariamente só valem
p.ela expressão da sua potência, r~p.ete e.~_ssina em-
baixo a cadcatura de. pai que o colono encontrou (se
valia, era por poder até escravizar, e não por transmi-
tir um nome).
E vale a pena notaz: a inversão temporal que isso
produz, com suas implicações. A filiação a um patro-
no arma no passado uma referência mítica que não
· · demanda uma identificação (não se trata de ser nem
Contardo Ferrini, nem Contardo d'Este), mas, a par-
tir ,de um mito de filiação, permite inventar ideais. A
proposta do tema, que supriria a falta de filiação, -
projeta no futuro uma identificação simples e barba-
ramente explícita e direta (trata-se de vir a ser He·
Man, Super-homem etc.).

Aliás, uma expressão de ódio (da qual não conse-


gui - apesar de consuhar colegas portugueses - sa-
ber eficazmente se ela é lusitana ou propriamente
brasileira) me impressiona no mesmo sentido. "Vou
acabar com a tua raça" me surpreende em um pri-
meiro momento pela extrema violência que promete:
não se trafa de matar algu6m, mas de matar o seu so-
brenome, ~ ·sua estirpe. É isso: não cortar um ramo,
nem a planta, mas abolir a esp6cie. Mesmo na_maior
raiva o projeto me pareceria difícil demais para en-
dossá-lo; estou convencido demais da imortalidade
simbólica do sobrenome, nl6m da mo.r.tc. frsica d~ to-
dos os seus portadores. Um sobrenome não me pare-
91! IIEL.LO URASIL!

ce poder ser morto, ele é eterno na marca que deixa,


mesmo que esta se limite a umas inscriçôes nos ar-
quivos diocesanos ou municipais.
Para prometer acabar com a raça de alguém, é
necessário que o sobrenome da estirpe não pareça
imortal, ou talvez que a raça coincida mais com o
nome individual do que com o sobrenome, ou ainda
qu·e cada indivíduo pareça ser uma raça em si, c de
repente que a morte física do inimigo seja mesmo a
morte de sua estirpe.

Talvez o privilégio do nome com respeito ao so-


brenome, do indivfduo com respeito a sua filja,ção, e
de uma identificação futura com respeito ao mito de
um passado, nos explique também a notável .acele-
ração da vida brasileira. O Brasil é um pafs jovem, a
idade média da população é - comparada à européia
- muito baixa. Trata-se de um efeito eslatfstico clas-
siCamente terceiro-mun<..lista que tem, como se sabe,
uma série de razões, desde o drculo vicioso cam-
ponês da neces'sidade de braços para cultivar uma
terra que não alimenta os braços, até razões ideológi-
co-religiosas, ou mesmo a "falta de informação e de
meios anticoncepcionais. Mas não é isso que me im-
pressiona. O Brasil por sinal não é um campeão de-
mográfico. A diferença que noto é no ingresso na vi-
da adulta, ou mais propriamente na idade na qual so·
cialmente se espera que um sujeito, como se diz,
"chegue".
O europeu é,mais paciente, considera com calma
uma formação que lhe reservaria um exerdcio profis-
sional consistente .após os trinta anos, ou· mais. ·A ·.
FUNDAÇÓES 99

exigência é aqui mais rápida. A justiça aliás restabe-


lece a paridade mandando o brasileiro médio morrer
maig cedo do que o europeu.
Esta'prêssà de viver parece decorrer de uma visão
da vida que a circunscreve no tempo outorgado a ca-
da sujei!o, como se a nossa significação se decidisse
na nossa efetiva permanência em terra (de ·novo o
"estar"), e não na fileira das geraçõ~s. Cansei de en-
contrar aposentados europeus que, depois de uma vi-
da de sacrifrcio constituindo um patrimônio, atraves-
sam uma velhice miserável para preservar do gasto
algo cuja transmiss~o aliás pouco importa a filhos e
filhas já Instalados na ..sua própria existência, ou
mesmo inexistentes. Pouco invejável aparentemente,
mas vale a pena notar que a extensão do sentido da
vida à cadeia das gerações diminui o alcànce de uma
frustração amarga, inevitável quando a conta da vida
só concerne ao tempo consentido áó.sujeito.

O colono, êíesenraizaddi responde à decepção que


lhe proporciona o encontro com o colonizador se di-
vidindo entre uma nostalgia imprecisa da cadei_a
simpólica originária que o expulsou, um apelo infinito
a algum pai q~e nesta nova te.rra surja e cuja palavra
valha para reconhecê-lo, e a tentativa incessante de
produzir uma marca no corpo da terra com a qual ele
:'))esmo se outorgaria sozinha· uma origem simbólica:
uma fundação. Deste ponto ·de vista, a nominaçâo de
Brasnia parece a resposta adequada e possível à ir-
risão do significante "Brasil, transmitido pelo coloni-
zador. .
Não é por ser desenraizado qu• o colono teria
100 HELLO BRASIL!

que fracassar o seu ato de fundação. As fundações


radicais talvez sejam sempre assim: sustentadas.__por
um sujeito avulso da sua filiação. autor do próprio
ato. Se Rômulo e Remo estivessem na história com
um sobrenome. o primeiro· talvez não precisasse ma-
tar o segundo, e talvez também não fundasse Roma.
O milagre de qualquer forma é que um nome - tanto
mais singular que ele se afirma num crime fratricida
que coloca o ato do sujeito acima das Jejs da sua fi-
liação - nomeia uma cidade e produz uma nova fi-
liação, a romana, que, como se sabe, numa certa épo-
ca, não foi brincadeira. .
Deste ponto de vi st~ o colono, perdida ou renun-
ciada a sua filiação originária. indivíduo ·consistindo .
mais do seu nome do que do seu sobrenome, por que
não conseguiria a fundação exitosa de uma nova li-
nhagem e de uma nova nação? ·
Imagino assim a diferença entre uma fundação
exitosa e uma fundação fracassada: .é exitoso o ato._de
fundação que permite aos que seguem que se n~cla­
me.m desta fundação inicial. O. ato fracassa quand9 se
verifica - a posteriori. ·naturalmente - que ele não
constitui uma filiação, mas deixa cada um com a ne-
cessidade de repetir a fundação. A exitosa, em suma,
vale para todos que eventualmente se .r econheçam
nela; a fracassada manda cada um continuar se.iun-
dando pelos seus atos. Ou ainda: a exitosa se transmi-
. te e a fraa~ssada não.

As conseqüências devem apenas ser lémbradas:


uma fundação exitosa institui uma ordem simbólica
que, no caso de um país, se sustenta .no significante
nacional. E uma fundação fracassada deixa o sig.nifi-
FUNl>AÇÓES 101

cante nacional ao estatuto de signo do quadro topo-


gráfico onde lutam vontades singulares de gozo; isso,
naturalmente, na espera de um ato fundador a mais.
Não tenho qualquer sonho pós-hegeliano .de uma
unidade que milagrosamente conciliaria os interesses
· particulares, soldando sociedade civil e sociedade
política: o que uma fundação exitosa ofereceria ~yen - .
tualmente não é nada mais - e nada menos - que
um significante que não implica paixão patriótica ne-
. nhuma1 só uma referênda simbólica para a· lei •que
P.çrmitiria a convivência da comunidade.
· Parece que nós vivemos no Brasil os efeitos de
uma fundação fracassada .
. Do lado da necessidade, que este fracasso implica,
de re.fundar cada dia, me impressiona .a~.xtraordiná­
ria proliferação do adjetivo "novo" para definir atos
políticos: estado novo, nova república, cruzado novo,
plano Brasil novo etc. É uma escolha triste pelo que o
"novo•• vai ª _çabar acarretando de sentimento de per-
da e fracasso, com o passar do tempo. "Novo" é uma
espécie de performativo no sentido de Benveniste, ou
seja, uma palavra cuja significação depende do mo-
mento no qual é enunciada, como os pronomes de
pessoa e algúns advérbios de tempo: "hoje", "ama-
nhã.., "agora" etc. O ato de fundação "novo" par:~ce
assim lembrar que ele só vale e produz o seu efeito
no t~mpo mesmo da sua énunciação.
Mas o fracasso se mede também de outro jeito:
viajçi ao Brasil durante o tempo todo dos trabalhos
da Constituinte, que seguia regularmente na impren-
sa. Logo, a leitura me deixava uma impressão de de-
cepção um pouco amarga. A duração dO$ trabalhos já
era o sintoma de algo que não conseguia ser um ato,
102 · Ul!t,LO BRASIL!

mas caminhava seguindo uma lógica de negociações .


entre privilégios e vontades particulares. E o resulta-
do final, pelo seu próprio tamanho, parecia revelador
do fracasso. Pois o documento produzido era uma es-
tranha mistura de código civil e administrativo no
qual um europeu ou mesmo um norte-americano di-
ficilmente reconheceria uma Constituição. Onde _ es-
perava ver surgir as fórmulas básicas que simbolica-
mente regeriam a vida do país, uma espécie de breve
repertório de ideais inspiradores, eis que surgia um
compêndio de disposições e regulamentações qye
enquanto tais, pela própria prevalência delas na
Constituição, independentemente do conteúdo jurfdi-
co, testemunhavam que no ato constituinte a ocasião
se perdera ue enunciar princípios fundadores que
desse m ao significante nacional valor de referência.
Que a Constituição se apresente como regulamen-
tação das vontades partkulares, implica de qualquer
forma que estas foram reconhecidas primeiro e de-
pois (laboriosamente) conciliadas, o que inverte a or-
dem de uma fundação possivelmente cxitosa.
Mas o que decidiria do êxito e do fracásso de uma
fundação? No caso, por que se conseguiria. ou não
instituir um signifiCante nacional?

Na história de Davy Crockct - uma das primeiras


séries que a televisão italiana importou - havia algo
que, quando criança, me impressionava. Davy, caça-
dor perdido no oeste pouco hospitaleiro, sustentan-
do-se mais pelas suas proverbiais força e coragem do
que pelo seu nome ou pela sua fala (embora fosse
homem de palavra), eis que se torna deputado, se
fUNOAÇÓES 103

bem me lembro, pelo Tennessee. E eis também que


acaba morrendo na resistência impossível de Alamo.
Aliás, considerando as seqüências que figuravam as
corridas de Da.vy para o Congresso (galope, canoa,
caiaque, por que não .cavalgando um urso selvagem?),
ele aparece como o antideputado federal (pois este,
apesar das· passagens gratuitas da Varig, aparente-
mente consegue ser omisso). Davy Crocket em suma
pareda conciliar mil agrosamente a autofundação do
bandeirante e a obediência a uma referência outra,
simb61ica.
Na ordem das razões históricas do fracasso da
fundação brasileira, aS hipóteses como se sabe são
numerosas. Continuando um paralelo privilegiado
com o destino dos Es.tados Unidos - pois na Europa
o significante nacional ganha o seu valor simbólico
por aparecer desde. sempre "herdado" - já foi dito
que a ética protestante ajudou, não só do lado
econômico - notório desde o escrito clássico de Max
Weber sobre o esprrito do capitalismo - mas
também (como Octavio Paz entreviu) por colocar
u_ma dimensão mais distante e por isso eficiente da
transcendência. Também é notável que a história foi
avara de mitos fundadores para o ·Brasil. A decisão
mesma da sua independência foi roubada ao povo, e
deixada a uma escolha soberana que, no seu enuncia-
do heróico inapropriado à situação, não deixa de ter
um ar de farsa.
Mas continua me parecendo decisivot como uma.
mancha inapagável, o engano perpetrado ao colono,
onde quem veio pedir um nome encontrou o p.roj_eto
de escravizar os corpos e recebeu como sig__nifican-
le ao qual se afiliar a designação de um saque. O
104 IIELLO IJKASIL!

engano se confirma na separação de propriedade e


posse na colonização brasileira. Separação específica,
ignorada pelo bandeirante norte·americano. Nq pe-
dido de ..terra, parece assim._não ser escutada a de-
manda de um nome e de cidadania que seria reco-
nhecida ·pela atribuição da propriedade. Propor a
quem quer terra a simples posse já é interpretar o seu
pedido como se demandasse o acesso a um gozo, e à
filiação nenhuma.

Quando um amigo está de visita em Porto Alegre,


um churrasco no Centro de Tradições Gaúchas 35 é
quase obrigatório.
Um casal da fronteira apresenta uma· noite uma
bonita e impressionante dança das boiadeiras. Luiz
Tarlei, que está conosco, entra nos camarins depois
do espetáculo e pergunta - talvez desconfiado - à
muiher: "Você 6 de onde?" ~esposta imediata:
"Gaúcha, graças a Deus...
Ficamos depois conversando sobre a extraordin~­
ria vivacidade da cultura tradiciqnal no Sul, conti-
nuando aliás uma discussão começada quando, pere-
grinando a cavalo no n"orte de Goiás, encontramos
em Buritis justamente mais um CfG. E a questão
surge de saber se, lá onde Brasil falha a ser um signi-
fic~nte nacional, "gaúcho" não conseguiria. O que me
explicaria o porquê da minha escolha de re.sidir em
Porto Alegre. Por razões diferentes, talvez a mesma
questão pudesse surgir para "sertanejo,..
É certo que gaúcho e sertanejo - para tomar es· ,
tes dois exemplos (talvez haja outros) - são signifi~ ·
cantes· referenciais de uma filiação, que nAo se con-
FUNUAÇÓES IO.S

fundem nem com a unidade tópica que outorgaria o


simples fato de explorar o corpo da mesma terra mãe .
("estamos aqui")t nem com a nostalgia do pai perdi·
do ("viemos de lá,).
Alguém me conta de uma colona alemã que, já
aos trinta anos e nascida no Brasil, esperou a entrada
em guerra ' de Getúlio ao lado dos aliados para
aprender forçosamente o português, já que o alemão
fora proibido. A idtia da comunidade fechada sobre
si mesma, defendendo à força de endogamia a pró-
pria língua de origem não me parece modelo nenhum
de um-tegração. Não ~ei bem se é para entender este
microeosmo··-s'Ó como Um quilombo, onde a fuga da
escravatura reuniria os colonos na nostalgia e no cul-
to da linhagem originária. Ou então - .talvez mais
provável - como um espaço o~de se afirmaria e re-
sistiria por um tempo o discurso, não de um colono,
mas de um segundo colonizador que evidentemente
não pediria nome à língua do colonizador originário,
mas tentaria colocar ao trabalho sua própria língua
sobre o corpo da nova terra. O microcosmo cultural
assim formado se sustenta e se apresenta como uma
caricatura kitsch da pátria perdida, tanto esteticamen-
te, quanto socialmente. Os laços aparentemente
simbólicos não são produzidos, nem propriamente
mantidos; parecem ser apenas imitados segundo a re-
cordação. . :
O caso de "gaúcho, e ·"sertanejo" é outro, pois
nenhuma das duas çulturas é imitação. "Gaúcho, tal-
vez seja o efeito de uma história e de um mito funda-
dor farroupilha que por sua vez seria o possível efeito
de uma colonização menos marcada pelo fantasma
do corpo escravQ. "Sertanejo" talvez seja ainda um~
106 II ~LLO URASIL!

out ra história, aquela que conta João Cahral.de Melo


Neto: a histó ria de uma mãe terra tão dura que m\o
precisa de pai para interditá-la; como se os filhos não
ganhassem o nome "sertanejo" por respeitar o inter-
dito pate rno ma.~ por · conseguir viver. e morrer de
uma mãe que se interdita sozinha.

A necessidade de se funda r e r~fundar a cada din


encurta a memória. Falo com uma amiga de histórias
da minha famfl ia durante a última guerra e ela me
expressa o sentimento de uma falta, como se não
houvesse para ela, embora gaúcha, um repertório
tpico mntsico de mesma importância. Fnço-lhe ob-
servar que o espfrito farroupilha talvez ainda vivesse
na Revolução de 1930. e ela me responde: "Mas eu
não tinha nascido ainda!"
Fico perplexo e silencioso. me perguntando se
aparento uma idade suficientemente venerável para
ela pensar que eu tenha vivido a Segunda Guerra
Mundial. Ela entende o meu estupor e ri da sua ex-
clamação precedente. Resta nos darmos conta assim
que falo de um passado que· não vivi como se fosse
meu e de fato é me_u; para que seja meu não preciso
tê-Jo vivido. E que para ela o que não esteve na sua
vivência parece não ser - embora presente na
memória - o seu passado.
A consideração excede a questão da . memória.
Noto, clinicando, que é raro que um paciente traga
em análise, aqui no Brasil, um evento -polftico ou so-
cial; pelo menos é raro que um tal evento seja trazido
sem uma espécie de desculpa - implícita ou cxplfcita
- por não responder ao que seria esperado numa
sessão de análise. Em outras palavras, parece vigir
FUNDAÇÕES 107

·uma distinção entre esfera privada e pública, na qual


a pública supostamente não teria por que contar na-
quela subjetividade fntima da qual deveria se tratar
na análise.
Pode ser que isso seja só o efeito de uma tradição
analítica esp~dfica, mas talvez haja algo mais. Talvez
esta separação participe do mesmo movimento que
parece limitar a memória à vivência. Para quem d~­
pende menos de uma filiação do que do dever de se
fundar sozinho. o mundo pára à porta da sua ~sa . .
Encontro, aliás, uma dificuldade especffica no
exercício da psicanálise no Brasil. Uma dificuldade
que me empurra às vezes a abandonar.. a reserva. de
escuta e interrogar ou mesmo encorajar os meus pa-
cientes a reconstruírem o que se pode da história fa-
mil iar pré-migratória.
A necessidade de ~utofundaçã~ que se impõe ao
colono· desde que .o seu pedido de filiação encontra a
irrisão do colonizador, esta necessidade parece cons-
truir forçosamente um sujeito psicológico maciço;
cuidadoso da sua convicção de liberdade e autono-
mia. Um sujeito às vezes impermeável à indicaç_ãq_de
uma determinação simbólica que o ultrapasse. Como
se, para ser colono, e se subtrair à escravatura, preci-
sasse não abdicar· nem um momento a própria con-
vencida consistência egóica.
Um analisante europeu, confrontado com uma
palavra perdida e equivocada que, atravessando ge-
rações, vem bater e decidir com rigor sua vida sem
que ele saiba disso, poderia se abandonar um instante
a umà experiência _q ue reduz a sua subjetividad'e ao .
que ela é: um efeito imponderável das falas dispersas_
108 fiELLO UJ(ASIL!

ao redor do seu berço. Aliás, é desta experiência que


ele sairia aliviado.
Aqui me parece que esta experiência, que poderia
aliviar o sujeito, é facilmente vivida como a ameaça
de uma entrega arriscada. Confrontado a uma es-
cansão do analista, o ''colono" parece resolver logo
lhe atribuir um sentido qualquer, por consternador
que seja para ele,· mas tentar evitar de perder mesmo
um instante uma pretensa controlada autonomia. É
que talvez parar de (se) fundar seja se expor a uma
captura.
A análise se debate ~ssim freqüentemente entre a
resistência do colono a qualquer destituição subjetiva
e a reivindicação do colónizador que pede à cura um
ganho imediato de g-ozo. Os dois aliás· ameaçando às
vezes uma desistência, como se, se submetendo à
análise - ou seja, a um-a transferência .inevitavelmen·
te paterna - sempre receassem expor o próprio cor-
po à exploração de um colonizador a mais.
MARGINALIDADE E CRIMINALIDADE

Num texto dos Escritos (não incluído na edição


portuguesa)j "A criminalidade em psicanálise", Jac-
ques Lacan recorre a uma citação de Mareei Mauss.
Em suas "Notas sobre delinqü!ncia" (in: Le trimestre
psychanalytlque, n° 3, 1988, Paris), Charles Melman,
psicanalista francês, faz referência à citação de La-
can.
Neste percurso a dtação inicial sofre algumas
modificações. A versão que me interessa é: "Quando
os laços sao reais, os atos devem ser simbólicos;
quando os laços são simbólicos, os atos podem ser
reais". DesrespeÜando um pouco Mareei Mauss e se-
guindo os rastros de Melman, a frase se revela extre-
mamente interessante.
Entendo-a assim: quando os laços sociais - quer
dizer, os laços que deveriam outorgar a um sujeito o
seu lugar, por exemplo, de filho ou de cidadão ~ são
reais, ou seja, simbolicamente pouco consistentes,
então os atos do sujeito devem ser simbólicos. Ou se-
ja: o sujeito vai ter que esperar de seus atos que eles
I lO lll!LLO URASil.!

gan hem para ele algum lugar simbólico que os laços


não lhe garantem. Tomemos um exemplo no quadro
familiar, que é o espaço dos laços sociais básicos. Um
pai pode se sustentar como pui pela via da violência
real (você me obedece porque eu sou mais forte e
você apanha) ou então pela via simbólica (você me
obedece porque sou o seu pai). No segundo caso, re-
conhecer a autoridade paterna é ao mesmo tempo
ganhar o lugar de filho. No primeiro, se submeter à
violência exercida não significa ganhar lugar nenhum,
a não ser o da espera de poder - crescendo - preva-
lecer um dia pela mesma violência. E há destituições
da via simbólica que não passam necessariamente pe-
la violência; por exemplo, o pai .roft-modemo: você
me obedece porque a ciência razoavelmente demons-
tra qué a minha interdição é bem fundada. Há uma
diferença relevante entre proibir a um menino de se
dependurar na janela porque está proibido, ou, então,
explicar-lhe que, sendo o peso da cabeça comparati-
vamente maior do que o peso do corpo, Arquimedes
demonstrou que não é aconselhado se dependurar na
janela. A versão soft compromete o valor simbólico
dos laços, pois o próprio do simbólico é que ele é ar-
bitrário: a justificação o enfraquece. Há outros casos:
por exemplo, o de uma extrema miséria familiar, na
qual o pai não é reconhecfvel socialmente como ci-
dadão. Será então impossível que ele valha sjmboli-
camente P.ara o filho, e só poderá valet, realmente,
como simples genitor ou como déspola.
Em um tal quadro, onde os laços sejam reais, eles
não poderiam garantir ao sujeito um valor simbólico
- nem que sejam os valores rnfnimos de filiação e ci-
dadania. De repente a filiaçãÓ e à cidadania deve-
MAitUINALll>ADU li CRIMINALIJ)AOE 111

riam ser conquistadas pelo sujeito graças aos seus


atos.
E çstcs atos seriam necessariamenfe marginais,
fma da lei,, pois eles estariam respondendo a uma
ausência de lei simbólica, procurando encontrá-la,
suscitá-la, de uma certa forma fundá-la.
A marginalidade assim produzida pode se con-
fundir com a delinqüência, quer seja porque os atos
marginais se situam neces~ariamente fora de uma lei
que não reconheceu o sujeito, quer seja porque o
crime aparece como um caminho cert.o para encon-
trar uma lei que ofereça ao sujeito um pouco de des-
canso. O ato criminoso pretende ser simbólico: é com
ele que o sujeit.o espera se fazer um nome que não
lhe foi dado {pensar no apelido dos assaltantes), e é
graças a ele que paradoxalmente o sujeito espera en-·
contrar a lei, mesmo sob a forma de uma s~nção.
Ao contrádo, quando os laços são simbólicos, não
é necessário esperar dos atos que o sejam, eles po-
dem se contentar em ser reais, pois os laços já garan-
tem ao sujeito o reconhecimento da sua filiação e da
sua cidadania.

Agora imaginemos colonizador e colo.no num mí-


tico encontro na beira do mar, o colonizador tendo
supostamente que propor ao colono uma nova fi-
liação brasileira. Como o nosso colonizador sustenta
esta função paterna que o encontro mítico lhe atri-
bui?
..--- Geralmente o pai vale por ter sido e de uma certa
forma por ainda ser filho, em outras palavras, por es-
tar inserido numa cadeia de filiação. Mas o coloniza~
dor (mesmo quando não veio e só mandou o seu no-
I 12 llliLLO liRAS I L!

me) se sustenta numa demonstração real do poder da


língua do pai que exportou justamente para se sub-
trair a ela. Na alternativa entre converter os índios ao
cristianismo e capturá-los como escravos, os jesuítas
sonhavam com um colonizador que valesse no si mbó-
lico e afiliasse os habitantes da nova terra. Os coloni-
zadores não quiseram nada <)isso, pois pretendiam,
no uso do corpo índio, marcar realmente a potência
paterna. Só poditam, aliás~ pois como .seriam pais se
vi ajaram para não serem mais filhos?
O laço que o colonizador parece oferecer ao co-
lono como laço de filiação é um laço real, como t pa-
tente na proposta de escravatura, onde o modelo de
filiação é a captura ffsica.
Recusar a vio lência proposta como filiação t p ara
o colono escolher inventar atos que fnaugurem, fun-
dem ·uma dimens!o $imb~lica por um lado já perdida
no começo da viagem, e_cuja procura na chegada se
encontra. por outro lado, frustrada. Atos simbólicos
então. De repente marginais, pois eles não aderem a
nenhuma lei, procu ram fundar uma ou milagrosa-
mente encontrá-la.
A malandragem assim não fica sendo o lote do co-
lonizador explorador, pois quem - tomado em laços
reais - procura a lei ou tenta fundá-la por si só, se si-
tua também fora da Jei.
Luiz Tarlei de Aragão me lembra um ditado:
"Aos amigos tudo, aos ini migos a lei". É perfeito para
resumir uma situação de marginalidade generalizada,
na qual a lei necessariamente só pode apa.recer como
a expressão de uma violência e sustentada por el~.
Mais ainda: a lei vigente, a lei que eu não fundei, ne-
cessariamente aparece como a lei que me des~itui
MARGINALIDA J)l! E CIUMINALIDADE 113

simbolicamente, pois quando ela exige algo de min1,


não me designa como cidadão, mas me escraviza, me
explora. De repente eu só espero ser sujeito quando
lido com os amigos, fora desta lei, inventando outra.

A traqição do jeitinho é um epifenOmeno da mar-


ginalidade. Mas a sua nobreza tem que ~ ser conside-
rada numa estrutura onde a origem da lei aparece
como uma prépotência escravizante e o ato nas mar-
. g~ns é o lugar de onde se espera uma dignidade de
sujeito. Deste ponto de vista, o jeitinho não parece
ser o símbolo de lJffi crônico subdesenvolvimento
simbólico: ele é também uma esperança.
Recorrer ao amigo do amigo do parente para evi-
tar a fila do INPS não pode ser considerado como a
simples· realização de uma injustiça Parece às vezes
valer como uma afirmação subjetiva, frente a uma lei
que - vivida como escravizante - me reduz ao meu
corpo. Graças ao jeitinho, saio do anonimato do cor-
po escravo, sou "alguém''.-
Neste contexto é evidente o impasse tributário. A
sonegaçã~ é a única solução aceitây~_s.e a exigência
tributária legal é vivida como exploração sem retorno
simbólico. Nem acredito que a questão seja a de urna
devolução efetiva, tipo: pagarei imposto o dia que o
governo garantir mesmo escola, saúde, transporte,
habitação etc. A questão não é quantitativa.
A metáfora usual com a qua l aqui se designa a
instância tributária do governo resume perfeitamente
a situação: não se trata de dívida alguma com a co-
munidade, o leão nos come - em todos os sent idos -
e basta.
1 14 IIELLO UK/\SIL!

Se a lei se funda na exploração do colonizador1 a


solução do colono quanto à sua fundamentação de
sujeito só pode ser a evas;io, por exemplo fiscal. A
quest<ió não é nem de egoísmo, nem de descuido com
o social. O mesmo que sonega será perfeitamente ge-
neroso e gastará o dobro para a educação, a saúde1 o
transporte do filho de um funcionário seu. Ele ale-
gnrá como razão a sua desconfiança com o destino do
dinheiro público.
E é esta desconfiança que precisa ser entendida:
ela não é conjuntural, mas estrutural. É verdade que
a corrupção reina soberana nas engrenagens adminis-
trativas, mas não se trata só disso. Mais propriamen-
te: esta corrupção é por sua vez um efeito da necessi-
dade de fundar e sustentar no potlach de riqueza a
própria função pretensamente simbólica; e a sone-
gação é o resu ltado da constatação que uma função
assim fundada não é simbólica, é real e só me inter-
pela como explorado. Prefiro então me fundar eu
·· mesmo como lei.
O drama é que a generosidade do sonegador
também não produz no beneficiado um efeito de fi-
liação, pois a generosidade não é menos real do que a
exploração. O que deixa cada $ujeilo preso entre uma
lei que, originando-se na violência da e)Cploração e
comportando a ameaça da escravaturat só vale como
expressão de força, e a procura de um ato singular -
fora desta lei e portanto da lei - que devolva ao su-
jeito um verdadeiro estatuto simbólico.
·Aparece aq ui, aliás, um impasse próprio a qual-
quer marginalidade, pois o marginal, procurando en-
contrar quem possa reconhecer em seu ato valor
simbólico, só pode acabar encontrando a mesma lei
MAIWINALil>AUf; ECRIM INALI DADE II.S

que - por parecer sustentada numa violência real


-já fracassou em fazer dele um sujeito.

No fim de '88 houve uma série de violentos motins


nos presídios. O estado do sistema penitenciário é de-
teslável já, pela sua insuficiência quantitativa. Então
nada de extraor<linário: a coisa é crônica no pafs;

Lembro-me particularmente de uma revolta, no
Rio Grande do Sul, onde um número relevante de
presos, mais de cem, se apoderou do presfdio e de
numerosos rcf~ns. A história terminou com um ala-
que violento da Brigada Militar, que deixou dezenas
de mortos entre os presos. A imprensa levantou al-
gumas dúvidas sobre a legitimidade da atuação re-
pressiva c acabou mostrando que a grande maioria
dos mortos no "ataque., foram executados com um ti-
ro na nuca. Imaginei que o escâ~dalo seria violento,
mas a imprensa - nesta ocasião - publicou também
a lista dos presos mortos acompanhada do catálogo
dos crimes de cada um. E não houve escândalo al-
gum. A coisa me indigna tanto menos pofs eu mesmo
me surpreendi a pensar que não há que se preocupar
com os direitos civis de um bando de assassinos rein-
cidentes. Surpreendi-me porque · normalmente, em
épocas européias, não teria espon.taneamente subor-
dinado o respeito da lei à natureza do crime dQ cul-
pado, por atroz que fosse, convencido automalica-
mente que o meu dever cfvico está' do lado do direito
independentemente do fato. :
A estru tura se respira, se transmite aqui por pre-
sença (não é próprio da imigração: aliás?), pois reagi
como um brasileiro. Ou seja, como se a lei - embora
r r6 IIELLO flf(AS IL!

neste caso me protegendo - fosse de qualquer forma


naturalmente uma violência; o que evidentemente
deixa pouco espaço à necessidade de respeitar a sua
letra para garantir a cidadania simbó lica de todos. Se
a Jei é uma violência, como se indignar que assim se
expresse?
Uma história que me foi contada em uma das mi-
nhas primeiras viagens, se non é vera é ben trovata.
Um profissional de classe média paulista é assaltado
na sua casa. Acidentalmente, ele consegue dominar,
desarmar o assaltante e fina lmente amarrá-lo. O ho-
mem o ameaça, se ele entregá-lo à po!Ccia, de re·
presálias radicais contra ele e sua fa mrlia, certo que
de qualquer forma ele permanecerá preso um tempo
limitado. O profissional, perplexo, ch~ma um amigo
que ocupa um cargo importante na adm in istração da
justiça da cidade para pedir conselho. E o amigo con-
firma CJUe o tempo de prisão não será ·cumprido, que
as .ameaças poderiam ser realizadas, e o aconselha
· matar o assaltante.

A marginal idade generalitada, ou seja, tanto a


criminalidade quanto a corrupção viraram uma glória
nacional. E las estão no discurso como as favelas do
Rio estão na paisagem urbana: impossível evitá-las,
tanto mais que não há visita turfstica que não as mos-
tre ao estrangeiro.
São permanentemente evocadas, cantadas e lem-
bradas ao visitante apavorado, e também no convfvio
entre bras ileiros. Para preveni-las, sem dúvida. Mas
deve haver algo a ma is na recorrência desta apaixo-
nada exibição.
MAitGINALIUADE ~ CRIMINALIDAL>E '17

A exibição faz parte, certamente, da retórica do


país que não presta; é mesmo uma demonstração
conclusiva: o gozo que o país nos outorgou, ele -
evidentemente - não pode gara ntir, e, portanto, está
exposto à violência dos outros que tiveram menos ou
nada. A marginalidade generalizada, e ainda mais a
criminali<.lade, é assim apresent ªd4l como o preÇü_que
pagamos pela· nossa esperança. Se esperamos gozar
sem lei, como a lei protegeri~ o nosso direito de go-
zar?
Se o gozo ao qual temos acesso é o herdeiro do
gozo sonhado pelo colonizador, aliás, é difrcil esque-
cer que ele se sustenta numa exploração sem limite
do outro. A culpabilidade de repente se expressa na
necessidade de temer: se gozamos, o nosso medo -
expostos à vingança direta do explorado - nos des-
culpa.
E também é uma glória: o povo brasileiro não
bandeira mais terras desconhecidas, encarando o ris-
co do canibalismo de índios ferozes. Mas ele gradeia
bens e famrlia num castelo onde noite e dia ele vigia,
mantendo os índios na mira de um R ossi •38.
Nenhuma, ou quase nenhuma, ironia: eu também
já vigio armado, e os índios estão em frente às portas.
Mas é certo que deste horror de a lguma forma nós
nos fazemos uma glória, quase um nome. Pre tende-
mos detectar, na expressão dos amigos europeus es-
cutando o relato do nosso cotidiano, um fundo de
ad'm iração, de reconhecimento: estamos mesmo que-
rendo um nome de colonizador. Ou seja. que saibam
que atrás da nossa aparência burguesa e tranqüila
ainda somos um Cabral da vida.
Antes de me estabelecer no Brasil, com Eliana
li/i IIELLO llll/\SIU

decid imos passar um fim de semana de inverno na


casa de praia de seus pais. O meu futuro sogro, Va-
lentim, com a chave da casa, me entrega um S&W
'32, como uma necessidade para viajar à noite e so-
bretudo dormindo na praia fora de estação. Impres-
sionado, levo o '32 comigo e o coloco, uma vez che-
gado, sobre a mesinha de cabeceira.
No meio da noite acordo umas três vezes com a
vaga impressão de um barulho suspeito. As três vezes
passeio armado pela casa e volto para a cama. Mais
tarde, após o amanhecer, descubro com um certo
horror que o alfvio de que não tenha acontecido nada
se acompanha de uma vaga decepção, como se tivesse
perdido a ocasião de matar alguém.

Via de regra, a marginalidade é sempre desespe-


radamente conformista. O ato que tenta compensar a
inconsistência dos laços simbólicos, o ato do qual se
espera algum reconhecimento parece obedecer ne-
çessariamente ao tipo de ideal socialmente dominan-
te, o mesmo que é responsável pelo declínio dos laços
simbólicos.
É um círculo vicioso que aliás excede d e longe as
fronteir as do Brasil. Simplificando, por exemplo: 1) o
ideal social dominante parece se situar do lado do
acesso a bens de consumo; 2) que o valor do sujeito
seja suspenso à sua riqueza exibida, por exemplo, des-
titui de possível paternidade quem está na pobreza, e
- coisa mais grave e mais geral - deixa prevalecer o
real nos laços que organizam a nossa vida social, pois
ser "alguém'' não parece mais ser um efeito de nome,
mas o efeito da possessão rca_l de coisas; 3) os atos
Mi\R(õiNi\I.IOAnH ECiti MINAI .Ini\ 0~ 119

prctcnsamcnle si mhó)icos com os quais se letitará ser


"alguém" perseguirão o mesmo ideal social dominan-
te; ou seja, a captura de bens na bolsa ou nos bolsos;
4) por conseqüênciat estes atos fracassarão em ser
simbólicos, pois produzirão um valor que,se sustenta
do lado do real, confirmando o que está no item 1. E
' .
se recomeça. ·
Deste ponto de vista, a especificidade brasileira .
consistiria só numa extraordinária desigualdade na
distribuição dos bens e uma subseqüente hipertrofia
da criminalidade.
Mas, desde o começo, me apareceu uma particu-
laridade da crinÍinaHdade brasileira que eu atribuía
apressadamente ao subdesenvolvimento cultural dos
criminosos.
Surpreendia-me, por exemplo, que ladrões de car-
ro pudessem correr o risco penal de um assalto à mão
armada para se apoderarem das chaves de um carro,
antes de abrir facilmente · a porta com um canivete e
estabelecer o contato reunindo os fios. Do mesmo jei-
to achava estranho que num pafs de tanta criminali-
dade as portas das casas e dos apartamentos fossem o
sonho de um ladrão europeu: nunca blindadas, fe-
chadura simples - uma brincadeira. E de novo
aprendia que a preferência não era para o arromba-
mento de apartamentos e casas va2ias, mas para as
residências ocupadas, e que o assalto padrão era to-
cando a campainha, arma na mão, mais do que
abrindo a porta com um pé-de-cabra.
O delinqüente europeu parece não esquecer a lei.
De regra, ele aplica uma proporção entre o ganho es-
perado e as conseqü~ncias possíveis do ato. Por
exemplo, se assalto à n1<io armada custa dez anos de
I:!O II ELLO URASJL!

presídio, só vale a pena para a arrecadação que pode


prometer um banco ou uma grande loja.
E me dizia que talvez, num quadro de marginali-
dade generalizada, o delinqüente não pudesse ante-
cipadamente medir os seus atos por uma lei que jus-
tamente eJe nunca encontra a não ser como violência.
Ou ainda que, estando à procura desesperada de um
substituto de reconhecimento simbólico, o qual, como
se sabe, é acordado a quem mais ousa, mais vale as-
saltar e matar com convicÇão. Com efeito, quem ga-
nha apelido é assaltante furioso, violento e homicida.
Mas há algo mais nesta escolha do ladrao de carro
e de casa. É corno se no roubo e no assalto a questão
não se resumisse na tentativa de se apoderar de um
bem: subtraí-lo a um outro presente, privar o outro
em presença parece majs importante do que se apo-
derar do bem.
Em outras palavras, o gozo do criminoso parece
aqui se situar mais na privação do outro do que no
g~nho obtido. Matar o outro privado é o fim do fim:
aJém de privá-lo do gozo do objeto roubado, é colo-
car um fim no ten~po que ele tem para aproveitar:
não gozarás mai~.
Assim, ladrões assaltam uma cas~. sem encontrar
resistências. No momento de sair, um fala para o ou-
tro: "Mata o menino". E o outro atira.
Assim se populariza o assalto a motéis, acompa-
nhado ou não de estupro. O essencial, uma vez mais,
não parece ser o arrecadado (quem vai para um mo-
tel com uma fortuna no bolso?), nem a facilidade (os
motéis têm guardas): é mesmo interromper o outro
I1Q. s.t~u gozo. Atingir o corpo do outro ou a sua possi-
MARGINALI DADI! cCI{IMINALlDADI! 121

bilidade de gozo - que é a mesma coisa - parece


mais importante do que se apoderar de bens.
Talvez, para ficar mais claro, seja necessário for·
mular de um outro jeito o circulo vicioso que men·
cionei antes. Se o ideal social dominante, herança do
colonizador, não fosse tanto a possessão de bens,
quanto ó gozo, qual melhor maneira de alcançar uma
possível dignidade simbólica do que gozando sem li·
·mite do corpo do outro? Assaltando, o que importa
não é tanto se apoderar do bem do outro, quanto -
no instante do assalto - escravizá-lo segundo o proje-
to do colonizador. Roubar em ausência é sem efeito,
pois é do outro que precisa se apoderar, como se o
delinqüente esperasse a sua dignidade de sujeito do
poder afirmado de declarar ao assaltado: "Non lw-
beas corpus". ·
CONSUMO

Nas minhas primeiras viagens a Porto Alegre, en-


contrei um auxfJio singular para me orientar na cida·
de ainda desconhecida. Pois quase a cada esquina.
pelo menos na zona que eu freqüentava mais, apare-
cia um sinal - sempre o mesmo - que facilitava a
minha circulação de recém-chegado. Embora igno-
rasse o lugar designado pelo sinal, com efeito este me
permitia, quando estava perdido, reintegrar-me ao
fluxo de circulação indicado pelas flechas, o que aca-
bava me levando a terra conhecida. Supunha natu-
ralmente que se tratasse de algum centro simbólico
da cidade ou do bairro.
Penso, já há bastante tempo, que a melhor metá-
fora da rede simbólica que organiza o funcionamento
psfquico seja uma .cidade, com suas regras de circu·
!ação, suas mãos únicas, a série de obrigações sociais
às quais se sobrepõem os constrangimentos que a
história de cada um produz: os caminhos habituais, os
lugares ligados às lembranças agradáveis ou não etc.
E, como em · todas as cidades, os lugares idealmente
124 IIELLO llRASIL!

dominantes: a catedral, o palácio do governo, o mu-


seu, o melhor teatro, em suína os diferentes "centros"
em re)ação aos quais se calculam as distâncias e se
distribuem as significações.
Mas o centro que parecia organizar distâncias e
significações em Porto Alegre não era nem igreja,
nem Assembléia, nem Casa de Cultura, pois o sinal
dizia "Iguatemi é por aqui".
Numa zona diferente da cidade, aliás, teria encon-
trado o sinal do Carrefour. Parece que os shopping·
centers orientam o mapa da cidade, surgem e se afir-
mam como os verdadeiros centros, de onde responde
e irradia o ideal social. Neles se confundem o merca-
do, o fórum romano e a "ágora" grega.
A constatação só serve para lembrar uma evidên·
cia genericamente amerkana: a descarada confissão
que o ideal dominante coincidiria com a possessão de
bens. Onde se entende que especificamente america·
no é sobretudo o descaramento.
Mas, apesar das flechas do Tguatemi, a coisa assim
enunciada parece inadequada para o Brasil.

Dia de compras em um supermercado brasileiro.


Conheço os preços da mercadoria, a mentira da cesta
básica, a miséria do salário médio e vedfico a ânsia
do comprador no momento em que a soma se inscre-
ve no visar do caixa. Mas o carrinho está' cheio de re·
frigerantes para as crianças, que devedam, aliás, to·
mar água, de salgadinhos certament~ químicos e fe·
dorentos, de biscoitinhos caríssimos que um bori). pão
com manteiga substituiria facilmente, balas, chicletes,
um brinquedo irrccusável, iogurte com frutas ou com
CONSUMO 125

mel. A panóplia toda que na minha infância burguesa


só aparecia no melhor dos casos numa festa.
E não é só às crianças que não se recusa nada.

Numa churrascaria - éstupefato - vejo os ami-


gos pedirem normalmente um outro chope quando o
primeiro. ainda está pela metade, mas não está mais
geladinho como deveria. Imagino a cara do garçom se
lhe pedisse, no estilo europeu, para colocar o meu
copo de volta no freezer um momento.

Em casa, tr'ava-se uma luta tácita e subterrânea


entre nós e a nossa empregada doméstica. Sem nos
·aventurarmos em demasiadas recomendações, que
poderiam comprométer o bom clima familiar, a cada
incursão na cozinha, silenciosa mas ostensivamente,
arrumamos o invólucro dos frios, protegemos o to-
quinho.de sala me, fechamos o saco plástico ao redor
do pão, guardamos o guisado desesperadamente
·abandonado numa panela de alumfnio esco ndida no
forno, verificamos as datas dos iogurtes, descobrimos
insuspeitados tesouros de legumes murchos esqueci-
dos e decretamos uma sopa para o menu da noite etc.
O meu med(ocre racionalismo se confronta inicial-
mente com a idéia que a pobreza deveria ensinar na-
turalmente uma gestão cuidadosa dos alimentos, e es-
tranho portanto uma tamanha indiferença pelo· des-
perdício.
Um dia, descendo a rua da Praia, em Porto Ale-
gre, deparo com uma mendiga, uma criancinha nos
braços. Dou-lhe um dinheiro e vejo·que a criança está
•ornando uma mamadeira de Coca-Cola. Resis to ao
126 III.:LLO BRASIL!

impulso de aconselhar leite e entrar numa absurda


conversa sobre o supérfluo e o necessário, resisto tan·
to mais que constato, observando, que, ao lado do
miserável grupinho familiar, há um embrulho de co-
mestíveis e. ao lado do embrulho, no chão. um pe-
queno amontoado de restos visivelmente destinados
ao lixo - um quarto de sandufche, um biscoito mor-
dido ... - que faria a felicidade de qualquer mendigo
parisiense.
Lembro uma visita com meu filho M3J(imiliano ao
mercado de São Joaquim, em Salvador. No fim da
tarde assistimos ao fechamento: sobra no chão, ma-
chucado mas ainda apetitoso, um exército de frutas,
sobretudo abacaxis e laranjas, suficiente para satisfa-
zer as necessidades vitamínicas de todas as crianças e
os adultos ~arentes da cidade. Sei que a observação é
mal-vinda onde a carência é sobretudo de proteínas.
Mas ficamos, Max e eu, perplexos frente à estranha
contradição entre a necessidade e o desper.dfcio. A
mesma impressão de algo que não fecha direito surge
contemplando, nos supermercauos, o dejeto podre
elas montanhas pantagruélicas de frutas que vHlem
como amostras.
Aos poucos vem se formando a id~ia que o ideal
social para o qual apontam as flechas do Iguatemi
não é tanto a possessão de bens, quanto o consumo
mesrrio, ou, mel hor ainda, o "consumir".
Descubro um dia que, no Brasil, uma casa, um
apnrtamento, embora se valorizando, como se sabe,
segundo o preço do CUB, mais ou menos, se desvalo-
rizam co m o tempo. O novo vale mais, bem mais do
que o usado: Como se mesmo o bem tradicionalmen-
CONSUMO 127

te considerado como acumulativo seja t'ambérri ab-


sorvido na lógica do "consumir'~ . Por que não trocar
de ap~rtamento como se troca de carro?

Viajando comigo para a Europa e visitando ami-


gos e faijlflia na Itália e na França, Eliana descobre
que uma parte relevante da arte culinária da· classe
média e média alta européia é a arte de reutilizar os
restos. O cuidado na conservação dos alimentos, tan-
to em casa quanto nos pontos de amostra e venda, a
parcimônia, não no consumo, mas no cálculo do ne-
cessário surpreende.m-na: a eventual fartura não pa-
rece justificar nem admitir o risco ·de desperdrcio.
Eliana faz a suposição que a guerra e o ra cionamento
possam ter incutido nos europeus um especffico res-
peito aos alimentos. E a consideração se estende
além dos alimentos, ao vestuário e geralmente aos
bens ditos de consumo.
Se não há dúvjda que a possessão contribui para
decidir o status, o gasto e o consumo dos bens não pa-
rece m constituir, na Europa, uma dignidade subjeti-
va. Ao contrário, a aquisição de um bem é uma glória
quando ela é o fruto de uma ponderação perfeita en-
tre a sua necessidade, a sua duração e a sua chance
de valorização.
Em outras palavras, parece que gozar de um bem
se situa mais, para um europeu, no registro de um
usufruto que possa preservar o bem, do que no regis-
tro de um consumo que o queime.
O fisco francês investiga como ,.signos aparentes
de riqueza, sítios, barcos, cavalos etc. O leão talvez
devesse investigar os signos apare ntes de gozo, qu em
128 Hl.iLLO BRASIL!

sabe as lixeiras onde se acumulam os re.stos do con-


sumo.
A palavra de ordem é gastar, para adquirir, mas é
também gastar o adquirido, certamente para adquirir
de novo, como se o gozo consistisse privilegiadamen-
te no exerdcio do gasto. Parecemos estar aJém ou
aquém do império dos objetos, numa festa um pouco
trágica onde se afirma ·e vale quem pode e sabe gas-
tar. E gastar como exercício puro, não finalizado,
coincide com desperdiçar. Com raz4o qualquer poH-
tica econômica de contenção do consumo interroga
preocupada a reação popular.

Pechinchar: 6 a palavra de ordem na última pro~


posta do governo. A dificuldade aparece, consideru.n-
do a fala cotidiana sobre os preços.
A queixa é contínua e alimenta a convúsa convi-
vai: as coisas estão cada dia mais inverossimllmente
caras. Mas surge a suspeita de que o consumidor bra-
sileiro encara os preços e·seus aumentos como verda·
deiros desafios à sua potência. De repente comprar
não é mais, ou não é só conseguir dispor de um bem
necessário ou querido, embora despropositadamente
caro, mas é demonstrar ao mundo a própria capacl·
dade de gastar.
De novo aparece o potlach:· a dignidade se afirma
na queima dos recursos do sujeito. E, se comprar não
t. acabar possuindo, mas poder gastar, o aumento do
_p~eço, embora dificulte a aquisição, satisfaz o anseio
d~.gastar mais. ' .
Impressiona-me a facilid.ade com a qual se estabe-
lece no Brasil o famoso ágio, desde que um produto
CONSUMO 129

escasseie mesmo temporariamente no mercado: Pa-


rece que a eventualidade de .substituir o produto, de
temporizar ou mesmo de renunciar não seja contem-
plada. O que é irrenunciável? A aquisição do bem ou
a ocasião de gastar mais? Como explicar, com efeito,
que o consumidor aceite p_ugar um carro até 30 ou
40% á mais do seu valor normal de tabela para evitar
uma espera, mesmo que seja de meses?
A classe média alta mal esconde, no seu aparente
lamento, a satisfaçAo: ela chega - chorando, mas de
prazer, acredito - no paraíso quando verifica preços
comparáveis aos de Paris ou Nova York. A identifi-
cação esperada é alcançada com o consumidor euro-
peu não concerne tanto ao acesso a produtos equiva-
lentes (a queixa, no contrário, deste ponto de vista 6
permanente, sobre a pretensa e às vezes verdadeira
mediocridade do produto nacional); o que importa é
que o gasto seja o mesmo. O bem adquirido é de pior
qualidade, menos durável, e o preço é um ro"ubo in·
justificável (considerando o absurdo pelo qual é ven-
dido, ao preço de Paris ou Nova York um produto,
cujo custo de matérias-primas, de produção e de dis-
tribuição ê um quarto ou um terço do custo europeu
ou norte-americano): tudo isso só aumenta o gozo do
gasto, que aparece como a única verdadeira aposta
em jogo. Pois o nosso gasto de repente se revela não
só igual, mas de fato superior ao dos nossos homólo-
gos do Primeiro Mundo. O que deve demonstrur que
valemos .mais ...
As classes menos favorecidas. quando se precipi-
tam nas filas ou nas agitações dantescas das ofertas
especiais, para liquidar em poucas; horas o estoque .
limitado da promoção, também não são vftimas da
130 HELLO BRASIL!

sedução dos objetos. Não é desses - desnecessários e


freqüentemente miseráveis - que eles esperam sta-
-tus, mas do gasto.
Na corrida inflacionária copulam assim incesuw-
samente dois irmãos cujo_.pai comum é o imperativo
de gozo, herança do colonizador. Do lado empresa- ·
rial um apetite de lucro desenfreado, onde talvez o
gozo se situe mais na exploração direta da mfio-dc-
obra e do consumidor do que na acumulação de capi-
tal. E por outro lado um ideal social para o qual vale
quçm goza sem os limites que impõe a preservação
de si mesm.o, dos próprios recursos e do bem do qual
se goza.
O produtor e o dis'tribuidor têm razão em consi-
derar que o preço de um bem deve ser estabelecido
no limite extremo tolerável por quem deste bem po-
deria querer gozar. Com efeito, por que calcular um
preço relativo ao custo, se o consumidor só va.i medi-
lo pelo desaforo que ele coloca às suas possibilidades
de gasto e não pelo suposto valor do bem?
O consumo parece a.qui mimar a relação do colo-
nizador . com a terra, co~ o corpo escravo e talvez
com o seu próprio corpo·; escravo do imperativo de
gozo: no consumo assim · configurado, como explo-
ração sem o limite da preservação, é necessário que o
sujeito se gaste para vaJer (com todo o equfvoco da
expressão).
NOTAS DE VIAGEM

Uma Viagem de Táxi

Carnaval 87. Greve geral· das companhias aéreas,


salvo a Transbrasil. Eliana, que milagrosalnente esta-
va com uma reserva da Transbrasilt chega a São Pau-
lo, de onde deveríamos continuar juntos - no sábado
de carnaval - para Salvador. O aeroporto de Guaru-
lhos é um acampamento e parece claro que nada ·
acQntece~ antes de segunda.
Informo-me sobre o aluguel de um carrot e encon-
tro Anselmo, que se propOe a nos levar a Salvador de
táxi. O preço é pouco superior à passagem a~rea e
rapidamente embarcamos, sábado às 11 horas da noi-
te, com Anselmo e um amigo dele que poderia alter~
nar na direção, num Santana quatro portas marcado
aeroporto de Guarulhos. A Rio-Santos desmoronou
por causa da chuva e escolhemos passar por Belo Ho··
rizonte e Gove rnador Valadares.
Anselmo d,á uma parada de cinco minu tos em sua
132 IIELLO URASILI

casa para pegar uma troca de roupa e avisar a famí·


lia, e já estamos na estrada.
O gosto da aventura é compartilhado: não acredi-
to nem um pouco que Anselmo tivesse como único
interesse o preço, consistente mas correto, do seu
trabalho. O que atraiu a todos foi mesmo a idéia.de
. uma travessia um pouco louca. A noite, o tamanho do
país, os companheiros desconhecidos, tudo contribuía
para uma vontade de pegar a estrada, que é propria-
mente americana.
De fato, o amigo de Anselmo se revelou rapida-
mente um medfocre motorista, e acabamos alternan-
do na direção só ele e eu. Eliana preenchendo para
ambos a essencial função do segun~o piloto: bater
papo para afastar o sono.
Anselmo, ao volante na noite de domingo, cansou
na madrugada, muito perto da meta, e tomei o volan-
te por volta das' cinco, em Feira de Santana, para os
últimos quilOmetros até Salvador.
Tenho uma lembrança comovida da faixa deserta,
indo reto para a aurora e finalmente o mar: e reco-
nheço uina emoção já ·conhecida numa outra traves-
sia, num outro pa!s, mas mesmo continente - de Dal-
las para Los Angeles. É uma emoção diferente da- .
quela que oferece uma vi~gem de carro na Europa ou
mesmo no Oriente Médio ou na África. Na Europa,
percorre-se um espaço aJtamente simbolizado, como
se a estrada fosse uma passagem aberta ao público
pela cortesia dos proprietários das terras que ela
atravessa. Mesmo em lugares relativamente selvagens
o sentimento é que a terra nunca se oferece virgem a
nossa passagem, ela sempre já tem nome. A viagem
na Europa é uma leitura.
NOTAS DE VIAGEM 1)3

No Oriente Médio, como na África aliás, mesmo


quando civilizações antigas· deixam. traços consisten-
tes de um universo simbólico fora do comum, a im-
pressão é mais a de um percurso de um oásis de
grande densidade simbólica a outro; um percurso em
um no man,s land que reafirma o nomadismo even-
. tual dos povos. Mas mesmo onde o nqmadismo não
prevalece, permanece a impressão de uma. página
onde, como no jogo do ratinho, se espalham os pon-
·tos que os percursos vão reunindo. ·A impressão se ·
éonfirma na chegada em cada aldeia que se -transfor-
ma numa festa das crianças e dos adultos: a festa, pa-
ra quem se deixa participar, se vive com a celebração
de quem demonstrou que há um caminho onde ainda
havia apenas uma estrada. Viajar é assim próximo de
escrever ou desenhar.
A impressão americana sentida e lembrada na
chegada a Salvador é diferente. Lembro-me da coin-
cid!ncia no discurso dos brasileiros e dos norte-ame-
ricanos (os texanos em particular) da apologia do es-
paço (o país é grande, imenso) e··dos recursos ainda
ignorados, inexplorados, mas generosamente guarda-
dos pela natureza. ·
E a Amazônia, aliás, que funciona no Brasil como
o fantasma da oferenda inesgotada da terra. E que o
resto do mundo se preocupe de repente por preservar
a ~azOnia, por dolorosa que seja a ameaça real de
destruição, constitui uma ameaça mais dolorosa ain-
da a algo essencial no discurso nacional. Dolorosa e
paradoxal, pois a queixa não deixa de ser produzida
do lugar mesmo onde presumivelmente queimou a
brasa do pau-brasil.
Este sentimento de terra oferecida, não só a uma
134 lf ü LLO fli{ASJL!

escritura, mas também a um gozo prometido aquém


ou além das escrituras, transforma a travessia ameri-
cana num gesto erótico consumado sobre um corpo
vivo.
Aprendo com Anselmo um verbo que me parece
perfeito no seu equívoco: tocamos dois dias. Tocamos
a terra, como um instrumento musical, com carinho
ou algo mais.

Noite, antes de chegar a Belo Horizonte, Eliana e


eu, ansiosos por estar juntos depois de um .afastamen-
to de vários dias, nos abraçamos no banco traseiro. E,
silenciosamente, discretamente, aproveitando o sono
do co-piloto e a atenção de Anselmo para a estrada,
fazemos amor. O que muda, parece, embora a nuan-
ce seja mínima, é que Anselmo será, a partir daC, sem
ironia, respeitoso com Eliana até um formalismo
qua ~ e devoto. Durante a viagem toda conversará
muito com ela na sua funç.ão de co-piloto e sempre
na forma extrema do respeito na língua pprtuguesa: a
Senhora . .
Penso depois que o gozo impõe aqui respeito, ou
então, sem mediação, o desrespeito total. Como se
frente ao semelhante que pega o seu gozo a alternati-
va fosse ou considerar que se celebra af o essencial
do mistério da razão de ser, ou então decidir privar
brutalmente o outro.
Um outro exemplo pode parecer singular neste
contexto: fico impressionado com o respeito dos bra-
sileiros para os carros alhéios. Os carros são roubados
freq Uentemente, mas é raro encontrar seu carro arra-
nhado pela manobra apressada de quem estacionou
do lado. O respeito pelo objeto de gozo do outro ou é
NOTAS OU VtAüi!M ll.S
total ou é nulo. O que se explica dado que o gozo é a
aposta essencial.

Domingo, depois de Belo Horizonte, paramos só


para almoçar e encher o tanque. E Anselmo aprovei-
ta para tomar banho. Os postos de gasolina escolhi·
dos pelos caminhoneiros oferecem esta facilidade. A
ducha é agradável. ·
Os brasileiros· são extremamente limpos· e du·
vidam - aliás com razão - da higiene dos euro-
peus e sobretudo dos franceses. O banho é, como se
sabe, uma prática cotidiana e freqüentemente pluri·
cotidiana.
O clima não é razão nenhuma. Lembro-me de
uma Expointer em Esteio, Rio Grande do·Sul, mês de
agosto. Um dia frio e úmido: os gaúchos mais pobres,
trazidos do intedor para cuidar dos animais expostos,
dormem ao lado do animal, na baia ou na frente da
baia, numa cama dobrável, e todos começam e aca-
bam o dia de trabalho com uma ducha gelada.
A tradição não parece ser portuguesa. E é um.a
portuguesa, Maria Belo, que me fala da tradição ín·
dia do banho, pintando-me não sei como a visão su-
gestiva do colonizador descido do barco, hfspido, hir~ .
suto e fedorento sentado em um rio, sendo lavado e
penteado por uma mulher índia. Como se o banho ti-
vesse sido o primeiro carinho da nova terra para o
corpo do invasor, e o rito do banho continuasse como
lembrança da promessa de gozo da nova teria. Se o
rio fosse calmo e a luz ajudando, quem sabe Cabral
pudesse se espelhar nas águas, entregue aos cuidados
da rndia. Seria a perfeita fase do espelho do coloni-
!J 6 II E LLO IIHASIL!

zador: miragem de. uma comple tude erótica e mater-


na que para sempre - e exclusivamente - ocuparia o
campo da sua possível idealidade. Um triunfo em
suma - em termos freudianos - do eu ideal sobre
qualquer eventual ideal do eu.

Domingo a tarde. Depois de Governador Valada-


res a BR é perigosa. Men if!OS que brincam ao lado da
rua inv,•.ntam um jogo com a morte: atravessar cor-
rendo no último minuto. Mais tarde, no meio da noi-
te, lançados na estrada quase deserta, várias vezes os
faróis encontrarão, na safda de uma curva, crianças
sentadas no meio <.la pista.
Dia e noite os ônibus nos apavoram, tanto que ju-
ro que nunca aceitarei viajar num ônibus-leito no
Brasil: correm assustadoramente no mais total des-
respeito da prudência básica, ultrapassam na subida
de um morro, numa curva cega etc. De noite, de cor-
tinas fechadas, me parecem caixões coletivos destina-
dos ao inferno. Por sinal, é nisso que - segundo os
jornais - eles freqüentemente se transformam.
Mas é de dia, logo depois de Governador Valada-
res, que ficamos um momento atrás de um caminhão
de mudança, carregado de móveis e objetos. Em cima
de uma incrível pirâmide, três homens agarrados às
cordas .e a uma garrafa de pinga. De repente uma ro·
da do caminhão encontra um buraco na calçada, o
veículo desvia, e um dos homens, surpreso, cai de ci-
ma da pirâmide na frente do nosso carro.
Anselmo consegue milagrosamente parar a tem-
po, diferentemente do caminhão que só pára, aos gd-
tos, trinta metros depois. O homem quebrou o braço,
não mexe, mas parece mais b~bado do que morto.
NOTA!> l>E VIAUEM 137

E isso nos leva, Anselmo e eu, no contínuo papo


para lutar contra o sono, a elaborar uma brincadeira
macabra que, atravessando vilas onde a cada ve~ evi~
tamos por pouco o homicídio culp.oso, nos alivia. A
idéia é que os mortos atropelados em lugares estra.lé·
gicos de cada vila não seriam removidos nunca e que,
com o tempo, se acumulando nos mesmos lugares, ·
eles constituiriam naturalmente os quebra-molas que
encontramos. Contada. assim a história não é piada
nenhuma, mas de alguma forma imaginar que cada
quebra-molas era uma concentração de corpos nos
permitia conviver com <> medo de ma tar. .
No Brasil, a vida vale pouco. Não só por causa do
trânsito; há também o incrível atraso dos socorros, o
valor material ridículo que os seguros obrigatórios
reconhecem a uma vida, a medíocre qualidade da
medicina póbtica, a mortalidade infantil, a taxa de
acidentes do trabalho etc.
E não acredito que o valor da vida seja um efeito
dos cuidados com ela. Ou seja, que, por exemplo,
uma medicina pública medrocre barateie a vida. Pen-
so o contrário, qu~ a medicina pode ser medíocre
porque a vida .é barata.
P~ra a psicanáli.se a vida não é um valor natural.
Ela se transmite como valor de pai para filho, cpm a
missão de perpetuar o nome - mais propriamente o
sobrenome - . tanto assinando embaixo as próprias
obras, quanto transmitindo ~ mesma missão para um
filho a mais. Deste ponto de vista, quanto menos a
vida~ vivida na continuidade das gerações de uma fi-
liação, tante menos ela vale. Embora de repente
aproveitar dela pareça indispensável, pois, não se jus-
131\ IIELLO BRASIL!

tificando na missão de transmitir uma filiação, ela


deve valer por si só . .
É uma balança: onde a vida vale menos é ne-
cessário aproveitá-Ia mais. E também: onde a vida va-
le menos, o suicídio é mais raro.
Não disponho de estatísticas brasHeiras de suicí-
dios, mas noto que a erotização do suicfdio incum-
bente é curiosamente quase ausente no discurso dos
pacientes. Entende-se: se a vida não é um valor, co-
mo erotizar um suicídio? E se o pai não me impõe a
transmissão da vida, quem ameaçar com a minha
morte?

Sertões

Já suspeitava que o Sertfio fosse, no Brasil, um


mundo à parte, desde que Aldufsio Moreira de Souza
tinha-me introduzido a Guimarães Rosa, vibrando da
sua origem mineira sem que nada de um .. não presta"
surgisse na sua fala. ·
Foi mais tarde, quando Luiz Tarlei de Aragão me
convidou para uma semana a cavalo ao redor de sua
fazenda no norte de Goiás, que conheci o Sertão.
Luiz já tinha me relatado que, conversando com Lé-
vi-Strauss em Paris e lhe perguntando qual era a
inesquedvel lembrança que ele teria guardado dos
"tristes trópicos", ele respondeu: as noites do.Sertão.
E agora estava Luiz, o capataz da fazenda dele, o
carvoeiro, um casal de amigos franceses, eu e alguns
outros sentados na noite, no meio do cerrado, ao re-
NOTAS DE VIAOI!M 1)9

dor de um fogo e de uma brasa onde ia cozinhando


uma carne de veado recém-caçado. A fala dos ho-
mens não parava; o tema era a presença dos rastros
da onça, a caça, as mulheres e os outros das fazendas
vizinhas e longfnquas. nomes inacreditáveis, como
tantas tragédias gregas. . .
Tragédias, aliás, quase sem drama: destinos con-
frontados pela radicalidade de· um impossível huma-
no. · mas sem a dimensão queixosa e atrapalhada do
quotidiano que se alimenta de esperanças e compro-
missos.
Assim se falou, nessa, noite, de J. B. que, para evi-
tar a sua mulher não mais ou talvez nunca amada.
viajava a p6, noite e dia, atravessando o Sertão. E
devíamos dois dias depois vê-lo surgir e cruzar com
ele num caminho de terra, passageiro das suas per-
nas, viajante pedestre e obstinado, obedecendo a uma
inquestionável necessidade de solidão.
Aliás, nem saberia explicar o que faz do Sertão
um Brasil diferente. Talvez o tipo de escravatura,
pois a prática da servidão liga o homem à terra e não
entrega o seu corpo para outro, como se fosse terra.
Mas há algo mais, algo próprio talvez a todos os
lugares onde a natureza seja pouco generosa e os
homens se engajem numa disputa diária com ela para
a· própria subsistência. Os povos do deserto africano,
as populações ·insulares das ilhas italianas e também ·
os habitantes da estepe nórdica me pareceram sem-:
pre•. ao freqüentá~los, particularmente sensíveis . ao
valor da palavra. Como se a terra mesma, resistindo,
forçasse quem pretenderia gozar dela a reconhecer o
impossível do seu projeto, e por conseqüência a culti~
var as relações simbólicas que podem dar à vida uma
140 IIELLO DRASIU

significação outra daquela que promete o gozo da


terra. Como se, no Sertão, a exigência do gozo - que
desde o projeto. do colonizador atravessa e mina os
laços simbólicos brasileiros - se suspendesse por de-
creto da terra mesma; e os homens voltassem a res-
peitar a palavra que os constitui. ·

M. tem um nome curioso, nunca ouvi!lo antes,


que afirma uma virilidade excepcional. Pequeno,
miúdo, ele não parece o seu nome. Sentado ao lado
do seu curral, onde estou cuidando dos nossos cava-
los, ele conta paru Luiz como matou o amante tle sua
mulher. Ele tinha deixado umas terras inutilizadas na
sua pequena fazenda para alguém cultivar Hvremen·
te. O homem foi primeiro estendendo .a .superfkie
que cultivava e finalmente freqüentan'do a casa de M.
até obter os favores de sua mulher. ·o problema não
era ·de ciúmes, mas de desafor-o. Mais propriamente
de posse que vira propriedade. Pois, escutando M.,
parecia evidente, embora nenhum jurista possa dar
conta desta evidência, que se o homem ficasse com os
favores da mulher e o cultivo da terra, ele seria dono.
M. afastou o homem ·da terra e da sua mulher, .e
quando o homem volto~, o matou.
No momento da escuta, se lmpOe a transitividade
do corpo da mulher à terra. Assim como a transição
da posse da mulher e da terra para uma propriedade
indiscutida. Mais tarde a coisa me estranha e pergun-
to para Luiz: Mas de qualquer forma o homem· nun-
41

c~ seria .dono mesmo, ele nno poderia transmitir n


propriedàde da terra, mesmo que conseguisse .se ins-
talar no campo e na cama?" Luiz tenta me explicar e
NOTAS DE VIAGEM 141

e'ntendo que estamos num país diferente, onde o ato


do sujeito consegue, de uma certa maneira, ser simbó-
lico, onde a posse - da mulher e da terra - não se
transformaria só numa propriedade "de fato", que
não passaria de uma troca de posse, mas ..em uma
espécie de propriedade de direito. Isso jnum regislro
do "direito.. que transcende a aplicação da lei ·da pólis .
e se funda nas relações simbólicas do microcosmo ser-
tanejo. É certamente a título deste direito, aliás, que
M. não foi culpado pelo homicídio. Não precisou in-
vocar atenuantes relativos ao crime passional; em
nome deste direito, ele defendeu, com efeito, a sua
propriedade e de uma certa forma agiu em legítima
defesa, não do seu corpo e da sua vida, que não esta-
vam ameaçados, mas de algo mais radic~l: de umJu-
gar simbólico que odesaforo do outro ameaçava. .
Os atos e as palavras engajam, parecem morder.
sem medlaçOes de papo furado, na rede trans-subjeti-
vu que organiza as relaçOes. E salmos apavorados da
fazenda de M., que sacrificou para nós uma galinha,
desd~ que a mulher dele atravesspu a cozinha de gar-
fo na mão para depositar no prato de Luiz o coração
do animal.

Se a palavra engaja, as hisLórias contadas podem


dispensar a psicologia.
O jovem G. parece carregar no seu silêncio uma
verdadeira condenação. Pergunto sobre ele e a res-
posta ~ direta, despojada de comiseração e falsa
compreensão, uma narrativa com poucos adjetivos ou
então uma tragédia pura, sem drama inútil. G. tem
. um irmão e está com o irmão quando este, brincando
IIELLO URAS IL!

de roleta mssa, se mata. Acorre o pai e à vista do fi-


lho morto, pergunta a G.: "Por que mataste o teu
irmão?" Nada mais. A economia de palavras vazias
parece possível para quem en tende como uma frase
decide um destino.

A palavra exigida do visitante não é diferente da


palavra que engaja o hóspede. Na fazenda de Dona
D. somos acolhidos com um banquete. Antes, as mu-
lheres nos confiam uma toalha e nos mandam direto
para o rio tomar banho.
Depois da janta, Luiz e os amigos se retiram e fico
na mesa para um último copo com Dona D. e sua
mãe. A mãe me mostra primeiro as fotos de infância
de Dona D. e me convida a apreciar a beleza.da filha .
Ela sabe pela conversa precedente que estou gostan-
do da regi ão e pensando em talvez comprar· terra no
Sertão . De repente me pergunta sem desvios qual ~ o
capital de que disponho. Surpreso, respondo com
precisão e também sem desvio. E ela me rebate que
este dinheiro permitiria uma série detalhada de me-
lhorias na fazenda de Dona D., investimento bem
mais produtivo que a compra de terra. E me propõe
então um casamento razoável e vantajoso.
O uso da pal avra é forte demais, mesmo para
mim, e me retiro gaguejando.
Uma menina adolescente varrendo o pátio chama
a nossa atenção, na fazenda de Dona D., pela sua
grande beleza. Perguntamos sobre ela e aprendemos
que é filha de uma empregada com algum viajante,
que a empregada foi internada em um hospital psi-
quiátrico por ter en louq~ecido depois do parto. Per-
NOTAS DE VIAGEM

gunto qual é a situação jurídica da menina, se foi .con·


fiada pela assistência pública, adotada etc. E de novo
a miflha pergunta não faz sentido. Pois, por não ter
existência juddica, a menina não deixa de ter existên-
cia simbólica, na fazenda. O colono parece aqui ter
co nseguido, se não fundar uma lei, pelo menos orga·
nizar um ·mundo (que de repente é parecido com o
mundo de antes do grande encerramento do qual fala
Foucault), onde os laços teriam valor simbólico sem
precisar de um·recurso juddico, ou mesmo legal, aliás
inapropriado. ccA menina está conoscou vale uma fi-
liação, se a frase
. ressoa
. numa enunciação que engaja.
Deixando o Sertão, voltando a Brasília, é difícil
não sucumbir a uma renexão vagamente passadista.
Talvez o tradicional extravio de fundos, pretensamen-
te consagrados a programas de exploração ccracional"
das terras sertanejas, não seja só o efeito da gula de
uma administração corrompida por um anseio de go-
zo que caracteriza a nação; talvez seja também para-
doxalmente a autodefesa de um mundo onde a dure-
za 41scverina" da sobreviv!ncia foi que situou e man-
teve inesperadamente a dignidade subjetiva na pala-
vra que organiza os laços.

Incerteza c Certezas do Ser

As primeiras vezes que atendi o telefone no Brasil


foram traumáticas. Custei a me habituar com a·
violência da interrogação de quem liga: "De onde fa-
144 HELLO URASJL!

la?" Para um psicanalista, ainda mais de orientação


lacaniana, a questão é drásti ca: parece que uma voz
desconhecida, anônima, do fundo dQ campo da lin-
guagem; vem pergu-ntar sobre o mais fntimo. Pergun-
- tar-me o que eu digo, quem eu sou, ainda seria
aceitável, mas "de onde falo., é como me perguntar
sobre o meu desejo inconsciente. Cada telefonema
produzia um efeito parecido com a aparição da cabe-
ça do diabo em forma de camelo perguntando ao pro-
tagonista do Diabo apaixonado de Cazotte, livro co-
nhecido dos tacanianos: Che vuoi? Que queres?
As minhas primeir_as respostas deviam parecer
impertinentes e gozadoras, pois tentava evitar a per-
gunta não a entendendo. Assim respondia geografi-
camente: "De onde fala?,, "De Porto Alegre". Do
outro lado um silêncio perplexo. Com o tempo achei
a solução ideal e por sinal banal, que. ·consiste em
responder enunciando o meu número de telefone.
Na Europa espera-se que quem liga enuncie pri-
meir<> quem ele é e com quem quer falar, deixando
ao interpelado a possibilidade, por exemplo, de assi-
m~lar que foi engano sem por isso declinar a sua id~n­
tidade.
Mas n~o se trata de uina questão de etiqueta.
Acabo me lembrando, aliás, das dificuldades que
freq Uentemente coloca ao telefonante europeu a ne-
cessidade de declinar a sua identidade e dizer "quem
está falando,, A oposição me parece entre uma con-
duta telefônica, a européia, que pede a quem liga o
esforço de se resumir no próprio nome (e, de repente,
sobrenome) e outra, a brasileira, que parece suspen·
der a enunciação da identidade de quem liga à des·
coberta da identidade do .seu interlocutor.
NOTAS U~ VlAUEM 145

Seria o telefonema do colono: diga-me onde foi


parar, que daí eu posso te dizer quem eu sou, se é
que sou. Imagino o primeiro "De onde fala?" Res-
ponde o colonizador: "Do (pau) Brasil (esgotado)".
Será que o nosso colono se autorizaria dar a se reco-
nhecer um nome e finalmente dizer _quem está cha-
mando? ' ·
Era minha segunda viagem ao Brasil. Parei em
Salvador, no Hotel Othdn precisamente. U m moço
bem jov~m, 14, 15 anos, servia o café da manhã. Ou-
viu-me certamente falar franc~s e um dia, com vergo-
nha e visivelmente tentando disfarçar a .conversa aos
olhos do mattre, pediu em um ingl!s incerto, mas efi-
caz, se podia falar comigo. Respondo que sim. E ele
me explica que ali não dava, que era confidencial.
Convido-o a passar mais tarde pelo meu quarto e ele
agradece satisfeito.
Um pouco surpreso e, como sempre, aventureiro
de espfdto, acabo o meu café imaginando as mais di-
versas razões de um tão estranho pedido: oferta de
drogas, prostituição, ou outros inícios possíveis de
uma novela Jnédita de .Josepl) Conrad. Na hora mar-
cada o moço bate timidamente na porta do meu
quarto com uma caix~ tipo sapatos embaixo do braço,
entra, levanta a · tampa e me mostra o seu tesou ro:
uma coleção de cartões posta is do mundo inteiro, to-
dos endereçados a ele por turistas passados por Sal-
vador. .
· Ele pretende absolutamente que o envio que me
pede seja uma t~pca e de fato trocamos endereços.
Quase dois meses depois, limpando minha cartei~
ra em Paris, acho o cartão onde tinha marcado o en-
dereço dele e decido fazer meu dever. Escolho na
!46 IIELLO llRASJL!

minha papelaria preferida cinco ou seis cartões, cui-


tlam.lo para que sejam ao mesmo tempo representati-
vos de Paris e não completamente banais para evitar
oferecer imagens duplas. Preencho com uma palavra
stmulard, tipo greetÍirgs, Contardo c m<mdo. A resposta
chega umas três semanas depois sob forma de uma
avalanche de cartões, cada um inteiramente escrito:
How are you? I lzope you are very we/L I low was your
trip /Jack home? We lzad .scmshine. How is tlze weatlrer
in your town? etc., etc. Mas a surpresa é completa
quando constato que todos os. luxuosos cartõe~ colo-
ridos representam flores. Não se trata de flores tropi- .
cais que de alguma forma proporiam uma lembrança
da Bahia, não: só flores bonitas de diferentes lugares
do mundo. Lembro-me aliás de um edcJvais bem
pouco brasileiro.
Dou-me conta de repente que minha escolha ti-
nha sido errada ou pelo menos inútil, pois o que ele
queria não eram imagens de Paris, o que ele colecio-
nava não eram cartões-postais, mas sim corres-
pondência. Uma correspondên~ia que lhe fosse ende-
reçada, a ele, cartas que atesta~em o reconhecimen-
to do seu nome e urna 'certa coalescência do seu no-
me com o lugar do mundo onde ele morava.

'
O Hotel da Bahia durante o carna·val é - como se
sabe - particularmente procurado. Os foliões de Sal-
vador (os ricos) chegam a alugar um quarto .no hotel
durante a s~mana para poder morar mesmo, noite e
dia, no centro do carnaval. Com efeito, o hotel no
carnaval dá a impressão de um forte cercado por um
sftío férreo: não tem nenhum lado poupado pelas
correntes do povo no carnaval baiano. Nem um lado
NOT AS DE VIAGEM 147

poupado pelos trios-elétricos; existem até lugares


centrais de onde numa total _confusão é possfvel escu-
tar at~ três trios simultaneamente ou mais, se mais de
um tocar em Campo Grande. Aliás, é impossrvel
dormir, salvo umas lr~s horas de manhã, quando o
carnaval re1toma fôlego.
Justamente a piscina do hotel - que é também
bar - é uma sacada nherta sobre o Campo Grande.
Estamos sentados numa mesa, com amigos. A rua to-
ca forte, mas nfio parece atrapalhar a conversa. Eis
de repente uma música - o leitor deve lembrar -
que entona um "Eu sou brasileiro - oh-oli-oh-oh!" e
eis que - o tempo 'destas letras - todo mundo na
mesa e nas mesas vizinhas se anima, mexe, levanta os
braços e escande pelo menos o "oh-oh-oh-oh!".
A coisa é contagiosa, pois mesmo as mesas dos ra-
ros turistas estrangeiros mexem com estas letras. A
vibração é forte e bonita, o sentimento é denso, como
se tocasse o hino. ·
Por um lado penso que as músicas italianas ou
francesas que, sem serem os hinos, evocam de perto
ou de Íonge a identidade nacional são incrivelmente
bregas, e qlle um auditório socialmente comparável
ao do Hotel da Bahia, numa situação análoga, nor-
malmente s·e envergonharia de manifestar alguma
emoção. Penso também que há muitas músicas brasi-
leiras bonitas que promovem ou mexem com o signi-
ficante nacional, muito mais do que na Europa. E fico
achando que para encontrar na Europa tanta emoção
ou mesmo interpelação direta da nação, seria ne-
cessário voltar à época da consolidação mesma do
significante nacional, bem antes - no caso da Itália
- da constituição própria da nação. Diverte-me pen-
148 II ELLO llltASIL!

sar que o "Muda Brasil" de Marina possa participar


do mesmo espírito que o antigo "Itália mia,. do meu
querido Petrarca.
. Em outras palavras, o colono pode testemunhar
uma paixão nacional nada brega porque ainda está
fundando sua nação, ou mesmo o significante nacio-
nal da nação que ele espera; e já sabe que isso ele
não pode espe~ar do colonizador.

A separação de propriedade e posse é - como se


sabe - característica da colonização brasileira. Ela é
exemplar das dua~ f!guras com as q~ais venho lidan-
do: o colonizador goza do poder da sua língua e do
seu nome (usurpados) .sobre a nova terra, e o colono
- privado de nome, de título - chega na esperança
de conquistar o nome trabalhando uma .terra que
ainda não é sua, na .mesma medida em que ela ainda
não permite que o colono seja dela. Então, a proprie-
dade ao colonizador e a posse ao colono. ··
Luiz Tarlei de Aragão conta de uma tentativa de
obra social, que consistia em oferecer assessoria jurf-
dica gratuita a pequenos posseiros do planalto, para
que pudessem ter acesso a ·uma propriedade à qual
por Jei eles já tinham direito. O extraordinário é que
os posseiros recusavam a ajuda proposta, embora cla-
ramente informados. EJes achavam que de qualquer
forma os documentos de posse eram suficientes para
assegurar os seus direitos. Pressionados, acabavam
rev7lando impli~itnmente uma esp~cie de inibição
subjetiva a passar de posseiro para proprietário.
, Se eram posseiros e nao simples ocupantes. espe-
ravam do seu trabalho ndo só os frutos, mas tamb~m
algu.m reconhecimento que os vinculasse à terra.
NOTAS OE VIAGEM 149

Enlão por que não queriam ser proprietários? Por


que resistiam a uma aparente promoção social?
Obrigado, não é para mim, respondiam, revelando
aliás que mesmo uma reforma agrária radical e im-
posta não saberia resolver urna separação inscrita na
ordem q~e a história do pafs produziu. Propri~tário é
o colonizador, e a recusa do posseiro, paradoxal por
parecer recusar justamente o nome que ele quer, ma-
nifesta uma suspeita quanto ao que está sendo pro-
posto: o nome que o colono pede não quer se con-
fundir com o do proprietário de sesmaria, e não pode
lhe ser transmitido pela mesma prepotencia que lhe
propôs o significante de uma terra esgotada.
O anseio do colono parece não poder se satisfazer
com um reconhecimento que uma vez mais poderia
desconhecer o seu ser e só equivaler a um· convite a
constatar as boas razões de estar aqui. A incerteza
quanto ao ser procura em suma uma palavra paterna,
que se revela quase impossível por se supor sempre,
quando ela se enuncia, que seja a enunciação trai-
çoeira do colonizador.
Aliás a oscilaç~lo de Incerteza e certeza do ser é o
efeito do conúbio do colonizador e do colono em ca-
(/u brasil~iro. ·
O engajamento, por exemplo, é sempre difícil : o
colonizador prefere desconhecer uma lei outra da-
quela que ele mesmo encarnaria e o colono esqueceu
u lei que ele deixou e aposta numa fundação que se
sustente só do seu próprio ato. À força de freqüe ntar
o colonizador, ele J~ em cada proposta de filiação a
tentativa de gozá-lo como corpo, mais do que reco-
nhec~-lq como nome.
I SO lléLLO llRASILl

O colonizador em cada u ~n manda o colono supor


- atrás de qualquer proposta simbólica - o projeto
apenas escondido de exploração.
Por isso, por um cin~smo es~rutural, o vai e vem
impera: colono, me engajo, me filiar é mesmo o que
quero, mas desconfio pois eu mesmo, colonizador, só
pediria que os 011tros se filiem a mim para gozar dos
seus corpos.
O SINTOMA NACIONAL

Encontro em todos os meios sociais meninas de


três a dez anos vestidas e pintadas como inverossr-
meis sex simbols. Digo inverossímeis pois dificilmente
mesmo profissionais da prostituição achariam uma tal
caricatura adequada a~ delicado mecanismo da pro-
vocação.
Só depois descubro a .origem desta mascarada in-
fantil: o programa da Xuxa.
A idéia é genial e inédita: organizar um programa
para crianças, aliás assíduo e comprido como a fome,
animado por uma mulher que comprovadamente, no
discurso dos adultos, parece animar o clesejo mascu-
lino.
O essencial não é que o programa agrade às
crianças ou as divirta. O essencial é que Xuxa· agrade
aos homens. Pois isso não deixa escapatória às crian-
ças. Para as meninas: como não se identificar a ela, se
vestir como ela, dançar e cantar como ela, se ela é
objeto do desejo paterno? Xuxa responde à pergunta
básica de qualquer menina: como ser mulher? pois a
152 II ELLO UllASIL!

pergunta sempre se completa assim: c_omo se r a lllll-


lher que o pai queria, alé_m_da mãe? E_o menino mais
facilmente descobre um acesso fácil à identifi cação
com o desejo paterno. Gostar de Xma é um jeito
aparentemente certo de ser como o pai, ou melhor
ainda, de interpretar o seu desejo.
O mecanismo é simples e funciona tanto melhor
onde os sujeitos estejam na necessidade (histérica) de
agradar um pai. O que pres·supõe que se interroguem
sobre qual rumo poderia tomar o seu querer.

Os amigos europeus que conhecem de perto ou


de longe o Brasil~ sobretudo os amigos analistas, se
encantam com a constatação que no Brasil "falta
pai". Para os franceses, aliás, a constatli\ção só con-
firma a presumida palavra de De Gau)le pela qual
"ce pays n'est pas s~rieux". A afirmação, por se sus-
tentar freqüentemente em acrobáticas confusOes e
fabulosas ignorâncias, deixa entrever perspectivas
diagnósticas sombrias que reservariam aos brasileiros
uma escolha dolorosa entre a loucura .e uma.._per-
versão eventualmente alegre por ser, não necessa-
riamente a mesma para todos. mas a singular de cada
um.
A resposta instintiva e certa a este peremptório e
irrisório diagnóstico consiste em objetar que, s_c; "faJta
Pai", não é por falta de pedir que algum Pai se mani-
feste.
Em um escrito recente e já clássico sobre a histe-
ria, de novo Charles Melman nota que a 'imigraçÃo,
qualquer imigração (a viagem do colono, então, pbr
exemplo) produz uma esp~cie de histeria experimen-
O SINTOMA NACIONAL 153

tal (Novos estudos sobre a histeria, Porto Alegre, Artes


Médicas, 1985, pp. 162-163). _
o
Com efeito, o emigrante deixa seu país de ori-
gem e com ele deixa e reprime a filiação em nome da
qual é ou poderia ter sido sujeito, por razões homólo-
gas àquelas que levam a histérica a desmentir a sua
própria rmação. A miséria prometida pela conjuntura
sócio-econômica no país de origem. desde que ela
comprometa a cidadania, vale ·tanto quanto, por
exemplo, um discurso materno que prive o Pai da sua
capacidade de sustentar simbolicamente a linhagem.
Quando ele vir~ imigrante, abordando uma nova
·terra, ele solicita alguma filiação a um novo Pai que
- por não ser o Pai simbólico que ele deixou - lhe
aparece como Real. Entende-se porquê: o pai da li-
nhagem é um nome ao qual nos liga uma dívida
simbólica; deixá-lo e sair à procura de outro significa
pedir filiação a alguém que - justamente por não ser
ainda o nosso pai - encontraremos no real e com o
qual talvez precise lidar no real para que nos acorde
enfim reconhecimento simbólico. Resta então à histé-
rica, como ao imigrante, a tentativa de agradar o no-
vo Pai, e o risco que este novo Pai peça no Real um
tributo para aceitar o novo filho.
A posição é incômoda, e se sabe que a histérica
pode acabar escolhendo uma espécie de exílio per-
manente onde evita pagar ao novo pai um tributo que
lhe parece sempre exorbitante. Ela se instala numa
posição de alteridade a qualquer filiação, sem por is-
so parar de pedir ingresso. O drama é que o custo de
tal exnio ~ a repressão do desejo que só a aceitação
de uma filiação permite.
A homologia entre histérica e imigrante é tanto
154 LI Li l.I.O li!( fi SI LI

ma is oportuna quando a ameaça de ·escravatura reali-


za o medo de um trihuto real exorbitante pedido pelo
novo pai e justifica a escolha de um cxflio permanen-
te. Trata-se aliás de uma escolha que se repele ad in-
Jinitwn: o sujeito m1o vai parar de conclamar e tentar
agradar um Pai, mas sempre fugirá para a alteridade
desde que este se mànifeste. Uma vez o Pai simbólico
reprimido no começo da viagem, qualquer pai que se
apresente, mesmo sob pedido, com efeito aparecerá
corno. . q.uercndo alg.u do nosso corpo. Oruk..a..histérica
o
const rói o fan tasma de .sedução, nosso emigrante
não constrói, mas constata o fantasma de escravi-
zação.
Em suma, todo mundo quer um Pai simbólico que
forçosamente deixou e reprimiu, e o pedido pode ser
escutado só por um novo Pai que, por ser novo, ainda
é real e necessariamente se supõe que peça:·um tribu-
to real para valer (e-assim .reconhecermo-nos) simbo-
licamente.
A oscilação transcende o indivíduo: pois o pafs
também parece viver, por exemplo, entre a tent.ativa
de agradar obedecendo ao FMI e a tentação de ser,
para o mes!llo, o eterno devedor inadimplente.

Uma <.las <.lescohertas clínicas fundamentais de


Freud nos mostra que, o _qu.e. o. .sujeito reprime, ele
acaba pedindo c.omo .s.e. <liss.o _o outto o frustrass_e.
Este mecanismo histérico talvez nos permita vol-
tar à queixa do pafs que não presta. Se o imigrante,
deixando a sua filiação, deixa e portanto reprime o
desejo que esta filiação permitia, ele acabará neces-
sariamente apelando a um novo pai. Como reconhe-
r:er um pai possfvet?. Ao gozo que e Ie exibe, certo. E
O SINTOMA NACIONAL I~S

de repente o pedido de filiação se transforma ern pe-


dido de participar do gozo dele.
- . A rmstração inevitavelmente concernirá ao gozo
que o novo pai não distribui generosamente como
poderia (tanto mais que ele pede um tributo para re-
conhecer os seus filhos). Mas concernirá sempre
tambéln ao desejo primeiramente re·primido:
Deste ponto de vista o problema não é só que co-
lonizador e colono teriam desistido do desejo, que
era possível (mas será que era?) nos limite.s da sua fi-
liação originária, para perseguir um sonho de gozo
s_em limites. Mas também que, quem desiste do dese-
jo possível, necessariamente reivindica para sempre,
como se fosse frustrado de um gozo ao qual ele teria
direito. E a frustração (o novo pafs não presta nunca)
é a express.ão da trágica repressão do desejo no co-
meço da viagem.
O exflio inicial e a suspeita legítima de que qual-
quer. .nrum Pai .que se apresente exija um tributo real
são suficientes para produzir um universo sem re-.
ferência moral. Ccimo articular a necessidade de um
limite, como sustentar uma lei, um sistema mínimo
de valores se por um lado deixamos o Pai da nossa fi.
liação e pelo outro podemos acreditar que qualquer
Pni que possa substituí-lo só quer de nós um tributo
de sangue?
Pior ainda: para que um novo Pai valha aos olhos
do imigrante, é necessário que apareça capaz do gozo
que lhe pedimos para outorgar-nos; mas que seja ca-
paz de tal gozo eis que basta para considerarmos que
só quer gozar de nós e de novo exilarmo-nos.
Somos sempre outros: irremediavelmente exóti-
cos.
156 U.ELLO BRASIL!

Qualquer pafs colonial deveria ser uma terra de


eleição para a psicanálise. E é o caso do Brasil. Ao
final, a psicanálise foi inventada com as histéricas, e
.certamente ninguém tanto como a histérica ou o imi-
grante está disposto a supor - com razão, aliás -
que a sua verdade esteja do lado de um passado es-
quecido.
Apenas paradoxalmente, esta excelente dispo-
sição inicial para a psicanálise não mant~m as suas
promessas: a histeria imigrante (como toda 'histe~ia,
talvez) parece irremediável.
Por um lado é diffcU acha c o caminho de um dese-
jo perdido se a procura não pára de se expressar cá-
mo uma insistente exigência (frustrada) de gozo. Por
outro lado, como lidar com quem busca, sedento, um
pai, mas sémpre, desde que ele enfim se manifeste,
aposta que o dito pai só queria gozar do corpo dos
seus filhos?
Nos termos da ciCnica psicanalítica, se poderia di-
zer que, se o colonizador está perto de ser perversó·
(ele usurpa a lei do pai para propô-la a um corpo sem
interdito), o colono é necessariamente histérico.
DfVIDA EXTERNA

Julho de 89. a Msociation Freudienne e a Casa da


Am~rica Latina organizam em Paris 'o Encontro
Franco-brasileiro de Psicanálise. O tema ~ "Os efei-
tos da psicanálise.., e o argumento propo$tO dá desta-
que à questlo dos efeitos possíveis da psicanálise no
sintoma social, ao menos na sua interpretação.
É o último dia e eis que se dirige à mesa para
apresentar seu trabalho uma colega brasileira que
tomou o caminho de uma formaçlo no exterior, e por
quem tenho a maior estima.
O congresso 6 bilfngüe com trad~ção consecutiva,
e a palestrante anuncia que, por pensar·doravante em
franc~s. vai apresentar a sua contribuição nesta ICn-
gua. A tradutora por ela escolhida, entre os numero-
sos brasileiros biUngües presentes, 6 justamente a
única convidada portuguesa.
O estranhamento entre os brasileiros presentes
chega ao seu cOmuto quando percebem que o vestido
floreado escolhido nesta ocasião pela palestrante 6
branco, vermelho e azul: uma bandeira francesa.
IH IIEtLO ORASI L!

A exposição, aliás brilhante, concernirá - n·atu-


ral mente - à proverbial in~ufici! ncia da função pa-
terna no Brasil, e surtirá o efeito de agradar ao públi-
co fra ncês. Outro efeito, menos esperado, será a irri-
tação dos visi tantes brasileiros.
Pouco depois, um colega francês toma a palavra
para apresentar a sua contr!buição, também sobre o
Brasil (o que deveria surpreender, mas no contexto
parecia, de repente, normal). Cautelosamente, ele
designa no discurso dos-seus pacientes brasileiros na
França a fonte que autoriza as suas teflexOes.
O circulo se fecha num equfvoco irresolvido, pois
se o discurso do "brasileiro do exterior" ao europai
pode tes temunhar o destino da. função paterna no
Brasil, não é pelo que nele se enuncia: é porque o seu
endereço mesmo constitui uma certa solução sin-
tomática ao impasse da emigração e da histeria na-
cional. O colega francês mais do que fundar suas re-
flexões sobre o que lhe dizem seus pacientes brasi-
leiros na França, talvez devesse fundá-las sobre,
as razões e as modalidades do amor que eles lhe de-
claram.
Deste ponto de vjsta, aliás, seria necessário distin-
guir entre o brasileiro do exterior americano, particu-
larmente norte-americano ou homólogo, e o brasilei-
ro do exterior europeu.
O primeiro deixa o pafs em busca de uma melhor
razão de estar; ele continua a viagem, na espera im-
possfvel de um "ser" como efeito do gozo que Jhe se-
ria enfim permitido: um ser, então, que nunca passa
de um ·~estar". f! só um emigrante que carrega a sua
mesma questão para outra terra. ·Se desembarcar
num _pafs onde á imigração - .como na América do
I>ÍVIL>A EXT~NA IS9

Norte - conseguiu fundar um signUicante nacional,


levará gerações para sair de uma marginalidade que é
efeito da inadequação entre a procura de uma .boa
razão de estar. e o acesso a uma filiação. Não é por
acaso que as nações norte-americi}nas tentam policiar
mais especificamente a imigração Sul-Norte: elas de-
vem saber que quem imigra para gozar melhor cus-
tará a ser sujeito da nação que o acolhe. .
O segundo renuncia ao projeto de gozo, pois volta
ao lugar que é a moradia do pai ~eixado e reprimido,
aquele que - por insatisfatório que fosse o destino
q~e prometia - talvez valesse simbolicamente. A to-
nalidade do discurso desta volta é inevitavelmente a
queixa arrependida, ou seja, a designação do Pai im-
possfvel da nova terra e a lisonja do Pai antigo para,
agradando-o, tentar ter novas graças na sua filiação.
Viajando a Paris para o Congresso, eu estava (jus-
tificadamente, como apareceu depois) irritado. Pare-
cia-me saber de antemão, por exemplo, que o único
sintoma social interrogado, apesar do argumento que
era explicitamente genérico, seria o brasileiro. Qual
mefhor ocasiAo, com efeito, oferecida aos queixosos
do "pars (ou do pai) que não presta" para tentar
agradar o antigo pai europeu? Qual melhor ·ocasião
também de confortar os amigos europeus na con-
vicção de deter o monopólio da função paterna? O ir-
ritante era prever que a lisonja histérica dos brasilei-
ros - transformados em brasileiros do exterior -
serviria à repressão de qualquer questão que os eu-
ropeus pudessem, nesta ocasião, vir a se colocar so-
bre o sintoma social que os espreita.
A história do filho pródigo que saiu em busca de
um novo pai, não encontrou e volta, conforta o euro-
160 III!LI.U UKASIL!

pai na certeza de ser o detentor patenteado de um


exclusivo e benéfico falo simbólico.
Pagou a conta da minha irritação meu filho Ma-
ximiliano, que · - em uma Paris que comemorava o
bicentenário da RevoluÇão Francesa - me recebeu
e
vestido de sans-culolle cantando a "carmanhoJa". E
teve direito de repente ·a meia hora de história sobre
o Terror e os massacre!i da Vandea.
Era um jeito, poucb hábil sem dúvida, de respon-
der antecipadamente 4fos efeitos previstos do discurso
do brasileiro do exterfor. Não se trata tanto do es-
quecimento brasileiro: das falhas do pai antigo ao
qual se pretende volfàr. O pretenso órfão, pedindo
readoção ao genitor que o deixou sair para outra ter-
ra, produz nesse úJljmo mesmo uma cegueira, ne-
cessária para poder ·exercer a mestria quê lhe ~ atri-
buída. ;
Como os amigos franceses poderiam, com efeito,
se interrogar sobre ! o sintoma europeu quando se
achavam investidos por um amor ilimitado que os co-
locava na pouca invejável posiç.ão do pai ideal?

<

O slogan de Lula era bonito: "Sem medo de ser


feliz, . Não sei se Lula teria nos feito felizes.
Mas o medo de; ser feliz certamente.deve circular,
pelo menos no discurso do colonizador. Talvez a in-
sistência de "este país não presta" seja também uma
medida cautelar, fóbica, um jeito de se assegurar que
ser feliz, isso nao vai acontecer.
O queixume brasileiro, que por sinal ~ · sempre·
1
alegre e gozador, talvez preencha esta função.
Já pensaram o que aconteceria se o colonizador
enco ntrasse mesmo o sucesso: se a terra oferecida a
UÍVIDA I!XTEJ(NA 161

um gozo sem limite gozasse mesmo ao seu toque co-


mo ele queria?
Qual o Brasil, se por alguma razão os colonizados,
os índios, tivessem se deixado docilmente escravizar?
Que tipo de sonho louco pareceria ter-se realizado?
Alguma praia tropical, espécie de holograma propa-
gandfstico onde do fundo de um~ rede tenderfamos
os membros aos cuidados de escravaS ajoelhadas? Ou ·
então os 120 dias de Sodoma ? Ou ai_nda, mais prova-
velmente, uma forma inédita de horror, onde, uma
vez os fndios acabados e os escravos· liberados, só so-
braria a confrontação direta de vontades singulares
de gozo?
Um analista cuidadoso talvez tivesse desaconse-
lhado a Lula o uso deste slogan bonito, assinalando
que só podia suscitar o maior pavor de ser feliz. O
conselho teria um valor geral, pois qualquer sonho de
felicidade se aHmenta. no projeto - universal - de
responder adequadamente à demanda materna, num
projeto então mortífero para o desejo. Como Lacan
. notava bombasticamente, se identificar com o falo
·imaginário materno é desaparecer pela razão, intuiti-
va, que equivale a se identificar com nada, pois o falo
materno não existe.
Geralmente os nossos sonhos de felicidade não
levam a tanto, pois tomamos a precaução de colocar
entre eles e nós um pai, do qual esperamos alguns
ideais talvez menos regozijantes, e também menos
perigosos. Mas para quem persegue um sonho de fe-
licidade sem limite, e por isso abandona a proteção
paterna, o sonho, por gran~e que seja o seu atrativo,
inspira um terror justificado e encoraja a um salutar
fracasso.
162 IIELt.O JIRt\SIL!

Thomas Jefferson teve urna idéia genial quando,


ao redigir a Constituição dos Estados Unidos, reco-
nheceu o direito à procura da felicidade. Q . acento
sobre procura~ re-instaura (e aparentemente deu cer·
to) no'!onho 'emigra tório uma dimensão de impossf·
vel, suspende o desfecho do drama e dilata as re·
!ações, deixando o espaço de uma referência terceira.
Há uma diferença notável entre viver segundo os
ideais da melhor procura e viver na urgência da feli-
cidade.

Ao se aproximar do sonho, resta tentar acordar


rápido. De duas maneiras: ou fracassamlo, ou então
restaurando um Pai. E qual melhor caminho do que o
apelo ao Pai antigo? Nem todos podem voltar de on-
de saíram, e de qualquer forma, mesmo voltandG, o
pai antigo terá que ser reconquistado pagando um
tributo real, pois já não é mais o pai simbólico de
quem abandonou a sua filiação.
Este apelo ao pai antigo encontra a sua expressão
mais simples nas filas frente aos consulados para pe-
dir nacionalidade e passaporte aos países da origem
da linhagem que emigrou. A corrida de obstáculos
burocráticos desencoraja muitos, inclusive os que lc·
galmente teriam direito a .recuperar a filiação perdi-
da. Aliás, a exigência que é colocada - documentar,
provar - ressoa equívoca ao emigrante, corno q_p~­
tlido de uma prova de amor, onde ele carrega o peso
da culpa do filho que fugiu de casa. Mas, o essencial
talvez não seja tanto obter o passaporte, quanto en-
treter o son ho de um recurso paterno possfvel.
Existem escolhas mais colcti~as, propriamente
DÍVIDA I!XTcl{NA 163

nacionais~ por exemplo a dfvida externa. Quem sabe,


preferíssemos uma dfvida simbólica, mas é justamen-
te ess~ o problema: se queremos de volta uma fi-
liação si mbólica, a nossa dfvida simból_ica perdida, is-
so não é mais possfvel sem tributo real.
E a hesitação prolifera, entre a indignação pelo
tributo pedido excessivo e explorador, e a necessida-
. de de pagar .mais ainda .por ser enfirtt (filhos) reco-
nhecidos. É uma posição subjetiva e ·polftica incon-
fortá vel: ·Collor -falando na ONU com. a dignidade
efetiva do presidente de uma grande nação e os ou-
Iras perguntando quando o Brasil retom~ o pagamen-
to dos juros. E a lmprerisa nacional faz eco à irrisão
com a qual o pai solicitado trata a pretensão brasilei-
ra: ela ironiza sobre as pretensões do Presidente que
não pareceriam lembradas das nossas misérias, ou
passa de um ridfculo heroísmo da moratória à mais
ridfcula ainda vergonha do devedor inad!mplente.
A história da formação da dfvida po<.:eria revelar
uma curiosa cumplicidade entre uma fe:.·oz vontade
de exploração do lado dos credores (e por que não, se
não somos mais filhos?), e, por outrc Jado. uma
paixão equivalente do endividamento do lado do de-
vedor (tanto maior se é peJa vontade de f)(plorar que
se reconhece um pai. possfvel). A dfvid~ impagável
parece assegurar em suma um Jaça indi~olúvel com
os pais antigos: na falta da dfvida simbólic~ perdida,
pelo menos ternos urna dfvida real impagável e vamos
para sempre poder negociar as condiçõ~ do nosso
· reconhecimento. Não é uma solução? ·

Conversando, freqüentemente encontre interlocu-


164 IIEU.O BRASIL!

tores brasileiros, mesmo intelectuais, que inserem o


país no genérico conjunto das "colônias". Parece
propriamente reprimida a diferença radical entre
uma colônia de tipo cl~ssica, por exemplo africana ou
asiática; onde há uma repartição entre colonizados e
colonizadores, e uma colônia americana, sobretudo
não-andina, onde esta repartição não existe (mais).
Várias vezes tive que lembrar a evidência q,ue
aqui, salvo os raros índios, não há colonizados. Mas
parece existir uma paixão - que a história da dívida
confirma - de se conceber e_apresentar como um co-
lonizado. -
Para quem vem do exterior, esta paixão _modula o
.amor e o ódio que o espera. Custou para que fosse
recebido como um colono a mais. pois a ocasião era
bonita para me amar peJo reconhecimentQ _qy~qdia
twcr comigo, e me odiar pelo tributo que suposta-
mente eu iria sem falta cobrar. O ódio, aliás, não im-
plka aqui nenhuma recusa. Ao contrário, era fácil
constatar a decepção à descoberta que eventualmen-
te eu não cobrava tributo nenhum. -Um exemplo en-
tre muitos, escolhido no campo da psicanálise, pode
ser interessante.
Numa recente reunião latino-americana de psi-
canálise (prevalentemente argentina e brasileira), in-
tervém uma série de psicanalistas franceses, todos de
diferentes instituições. Eles estavam viajando interes~
sados justame~te na_experiência dificilmente realizá-
vel na França, que cpnsistia em reunir a comunidade
dentCfica lacaniana independentemente das quadro_s
instituídos diferentes e às vezes opostos. Eis qu4
aprendo que o ruído se espalha e circula que a pre-
sença dos colegns franceses seria só a expressAo da
D(VIOA EXTERNA J6S

oculta manobra de uma instituição francesa para se


apoderar da reunião. O leitor, àliás, perguntará o que
pode ser se "apoderar" de uma.reunião, e francamen-
te eu não saberia lhe responder; é mais interessante
constatar que numa situação onde do exterior é pro-

posta uma troca entre pares, surge - apenas camu-
flado pela projeção - o pedido: "Ppr fav~r, te apode-
ra..de mim, me pega.,. Como se uma linha simbólica
de filiação tão desejada só pudesse ser pedida como
dominação real.
Não por acaso a América Latina continua sendo o
terreno de eleição para quem, continuando no exem·
pio do campo psicanalítico lacaniano, gosta de impor
relações de filiação fundadas na exploração real. No
. eixo Paris-Brasil, em matéria de psicanálise, SCL'lc.rifi-
C1t.que propor uma relação de paridade ~ dificilmente
praticável, pois o que está sendo pedidq. é ·um pai;
propor uma relação de filiação é também diffcil, pois
o pai que está sendo pedido é suspeito pelo tributo
real que supostamente ele deve exigir. Mas, se não o
exige, será que é um pai? O caminho mais praticável
e tranqililo ainda talvez seja realizar as piores supo·
siçOes e exigir mesmo o tributo mais alto pois sempre
esta exigência encontrará alguma adesão. ·
A confusão entre filiação simbólica e submissão
real - efeito da história e da histeria nacional -
constitui um panorama onde por um lado fazer laço,
no caso entre analistas, é difrcil na ausência de um
lugar simbólico terceiro, e por outro lado é fácil, des-
de que um terceiro do exterior imponha um verda-
deiro dizimo.
•.
111!1.1 ,0 UIIASIL.!
l66

O recurso ao Pai antigo levanta uma dúvida tanto


no colonizador quanto no colono: se o nosso sonho
de gozo fracassou, será que não houve equívoco? Se
nós não gozamos, será que o gozo, o único possível,
não terá ficado com os que não viajaram?
É as!iim que surgem, antinômicas às piadas de
portugueses, as "piadas de brasileiros". O meu amigo
alfaiate, Paulo Nardim, me conta um fato real que vi-
rou, na rua da Praia, piada. Ele estava provando uma
roupa a um cliente português, entra um amigo - ig-
naro - e lhe pergunta: ''Paulo, ouviste a última do
português?" Paulo, embaraçado, assinala: "O senhor
X aqui ~ português", e o amigo acha uma saída inter-
rognndo o cliente: "Mas vocês também têm piadas de
brasileiro, ·não é?" O cliente, sem dúvida uma pessoa
espirituosa, olha para ele e pergunta: "Será que pre-
cisa?" ·
A história vale por ser agora uma piada brasileira.
Mas seria bom acrescentar que, mesmo a piada
invertento os lugares, · o ideal de gozo parece conti-
nu ar idêntico. Em outras palavras, duvidando que
talvez o gozo tenha ficado com o Pai antigo, não por
isso s·e modifica a natureza do gozo do qual se trata.
Ou seja, do Pai antigo rc-procurado se espera, receia
e anseia, natu ralmente, que goze como sonhava gozar
o co lon izutlor, ou seja, explorando. A nostalgia dQ .
emigran.te .sus..cü.a..!!.m. ..novo colonizador que nem pre·
ci~a viajar; pode e deve, de longe, cobra.r .o seu tributo.

A questão, dila em outras palavras aind<.~, é que o


colonizador, embora detestado por ter proposto ~o
colono a escravatura e nflo uma nação, se constitui
I>ÍVli>A EXTHKNA 167

CQDlO modelo de paternidade. Uma vez renunciando


o vínculo simbólico originário, só parece possfvel re-
conhecer um pai ao qual apelar para que nos reco-
nheça, nos .traços de uma violência real (jue precisa
pelo menos lhe supor. ··
A mesma violência é uma boa razão para recus~·~
lo, mas quem recusa a sua cobrança, por .escravizante
que seja. continua órfão. Pois de alguma forma s·abe
que não levaria a sério um pai que não cobrasse.
ARRfVEDERCI

Na sala de jantar da minha casa de Porto Alegre


há um porta-retrato, com urna fotografia: Eliana e eu
sorrindo na frente de um restaurante de Bento Gon-
çalves, cujo letreiro aparece atrás de nós, Casa colo·
nial felicitd . ·
A escolha emigratória é sempre o fato de um so-
nho de felicidade. O sonho de felicidade ~ banal, a
mesma psicanáli.s.e .não cura dtss.o. O que é menos
bin*'l ~ viajar atrás de um sonho. E curiosamente é
nas gerações seguintes à viagem que o efeito da esco-
lha emigratória se revela.
Nasci na Itália porque os meus pais são italianos.
O traço identíficatório que este enigmático acidente
me outorga, ser italiano, ~ um impo·nderável fato do
acaso, uma fantasia da cegonha ou um imperscrutável
desenho divino. Mas se tivesse um filho ~o l3rasil, ele
e seus filhos e assim os filhos dos seus filhos, todos
seriam brasileiros por um ato que não é enigma e que
se imobiHza neste instantâneo na frente da "Casa co-
lonial felicitá". ·
170 lli!LLO DitAS II.!

Na necessária e contingente itaJianidade se funda


ou não uma razão de ser. Quero dizer, por ter nascia
do onde nasci, os meus deveres para com a minha fi-
liação. são da ordem do respeito (ou do desrespeito)
de ideais que podem inspirar a minha vida, mas não
parecem se constituir como uma foto instantânea on-
de deveria um dia - imobilizando-me - conhecer a
sat isfação cuja procura daria sentido a minha linha-
gem inteira.
Na necessária e não conti{lgente, mas jostificada
brasilianidade dos meus eventuais descendentes aqui
nascidos, ser brasileiro ·em última instância valerá
como uma razão de estar aqui. Mais propriamente,
como a obrigatória esperança de estar um dia no ins-
tantâneo impossível cujo protótipo é o colonizador se
espelhando no rio entregue aos cuidados da índia.
Não-se .trata. de um prindpio. Jn.~irador. mas sim do
horizonte inicial e final de um sonho perdido.
Se. o traço identificatório nacional é um sonho de
gQ~o. como inventar aq~i u_ m discurso poHtico q4e
não seja da ordem da promessa que sempre engana?
Como inventar um ideal qualquer que não se sustente
necessariamente na disputa pelo acesso ao mortffero
e impossrvel instantâneo?
A pergunta, nada retórica, concerne à vida nacio-
nal inteira, desde o apetite infinito de lucro de quem
lucra, até a escassa solidariedade sindical ou a cômica
pretensão de greves pagas.
No meu co'risult6rio~ acima da minha mesa de tra-
balho, há uma 5·érie de retratos dé-pessoas .de minha
famnia . Sobretuoo mortos que eu não conheci. Con-
o
te mplo neles e'nigma elo meu nome, o que há de Ífl· .- .
171

sondável nas vias pelas quais deles até a mim se


transmitiram valores e ev·entualmente um destino.
A foto da sala não é necessariamente oposta aos
retratos do·consultório.
Uma amiga brasileira recebe pelo correio, de um
membro desconhecido da sua famrtia, a carta seguin-
.te, que ela me comunica:
Porto Alegre, agosto de 1990.

Caro P. (trata-se da Inicial do sobrenome)

Eu, D.J.P., casado' c:om L.H ., funcionAria público, rcsi·


dente na rua X, nD Y, bairro Z; em Pono Alegre, sou descen-
dente de ...

A.P. (pai)
R.D.P. (avô)
G.B.P. (bisavô)
G.B.P. (tataravô)
L.V,P. (tctravô)
T .l". (pcntavô)
No momento, estou Jcvantlo adiante a empreilada de le-
vantar c estabelecer o parentesco de todos os P. no Brasil c
no n1unüo, com vistas a escrever ujn livro da famllia, de sorte
a perpetuar para os nossos descen~entet a saga da nossa gen-
te.
Paralelamente, um tio meu, o J.D .P. (rua X) cstj empe-
nhado em oba,cr a doc:umcntaçlo lc'gol ncccsdria pura adoçllo
do dupla nacionalidade (brasíleira e Italiana). Se tiveres algo
1
neste sentido, noa ajude.. '
Quanto ao livro, o primeiro passo que catou fazendo ~
lcvantor todos os P. que for pos.sivcl. No Itália, já c5tubclcci
cnntuto com o R.l'., o I.Ht., a M.l'. c a L.l'. Mornrn em Trcn-
to.
No Brasil, consto que deram entrada dois imigrantes P.,
trazendo alguns filhos . Chegaram no ano de 1876. O O.D.P.,
cuado com M.T., com os fi lhos G.D., L. e G. (outro• rtlhos
nu~cidos no Urasil: A., Lu., M., AI. c Ar.), tendo ido morur
undc hoje 6 Marcorama (cx-SAo Marcos), no munlcfpio de
172 lll!LLO URASIU

Garibuldi, RS (antigo Conde D'Eu), onde atualmente reside


o 0.1'., filh o de L., c que conscJVa as terras adquiríli!l~ nu
~p oca. o OUITO P. se chamava C.P. (conhecido lllmbém ror
Cl.), ca$éldo com T.F. Trou~ee os filhos F., Li. c An. (no Brasil
tivcrt~m rnau o C., o J., o E., a R., a F., a M., a O. e a L.). f'i-
x~-se no Trlivcullo llcrrnlniu, Silo Vigílio, na 6• Légua, n\u·
nidpio de: Cwcius du Sul, RS. Aindil existe 11 cusa de pctlru
ori~tinat, que t um vurdadciro monumento praticamente in·
tacto c que merece ser vlsto e, principolmcnte, conacl"t'ado. O
Cl. era filho de B.P. c B.D.L.
Nilo ac tem ccrtc:.r.a absoluta, mas tudp indica que o C. c
o O. eram ptimos-irml'los ,(isto e~r A sendo investigado rut Irá-
lia).
A emprcitadd ~ grande. Sem a colaboraçllo de alguns
abnegadoa, se nl'lo for totalmente inviável o projeto, certa·
mente rc.tllrdará a conclus4o.
Por i.uo, peço a coluboraçllo, no que for P,OUÍvcl, paru os
ICIJUIOICj dctalhca:
a} o formulAria anexado dever aer reprodu:.r.lde» o diJilri-
buldo a cada P. que for encontrado, com orlcnt•çlo de ser
preenchido por cada um (nlo vale fazer uma ficha para vários
P. - tem que ser uma para cada um, do muis velho uo muis
ncwo/nenO);
b) enviar foto&antigas, doa P. mnls velhos, 111 quais, em
principio, servirlo puna llust r1tçAo do livro;
c) enviar informações ou ratoalmportuntcs, a nm de que
seja registrado tude> no livro, para isto ficar perpetuado c para
conhecimento das futurlll gerações P.
Conto c:om a ~crtcza que em Ti tenho a boa vontade c
colaboraçlo. O que ut• sendo feito nlo tem nenhum interes-
se pcuoal. é apcnu com o sentimento de idcntlrlcur quem
aomos c Juntar a noua história, antes que se perca no tempo
c pura quo 01 que vlrlo depois d4.1 nós possam continuar cstu
obta.
Fórlo abruço, D.J.P.

Ê uma carta de esperança pela qual um dia "bra-


sileiro" poderia ser também uma razão de ser. ou pe-
la qual talvez a ·raz4o de estar fundadora se transfor~
. me um dia numa razão de ser. A carta me reporta às
h iUU Vt:UERCI

noites passadas conversando em São Pauto com


Valéria Pennacchi, quando, ainda viajando periodi-
camente para o Brasil, eu me hospedara na sua casa
- se falava naturalmente do pafs q~e não presta··mas
sobretudo de uma história, a de sua família, da qual
ele mantinha cuidadosamente o fio simbólico de am-
bos os lados do oceano - O que me fazia pensar que
era possível ser brasileiro.

· A algu~m que me pergunta um dia: ''Então, pres-


ta ou não presta?", ocorreu-me responder com uma
observação que devia a Octavio Souza. "Este pafs
não presta" talvez se ouça no equívoco, como quan-
do, tentando seduzir uma mulher que se mostra surda
às nossas propostas, podemos carinhosamente protes-
tar: "Mas voe~ nAo presta''.

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