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Histórias

exemplares

"Muita saúva e pouca saúde os males do Brasil


silo", costumava dizer o falecido poeta Mário
de Andrade. Não se negará que, dos tempos do
poctu para os nossos, muita coi�a tenha muda­
do. A suúde dos brasileiros continua precária,
mus as grandes endemias do passado se acaba­
ram, ou quase.
Quanto às saúvas, a verdade é que elas conti­
nuam mais vivas e vorazes do que nunca, em­
bora tenham mudado de roupa e de pasto. An­
dam hoje de paletó e gravata e comem as raí-
1cs, não dos pés de planta, mas do próprio
pais, muito bem-instaladas nos mais altos ga­
binetes da administração pública. Suas armas
silo a incompetência, a irresponsabilidade e a
corrupção, e suas larvas nascem do acasala­
mento de dois tipos de formigas hoje com unís­
simos: os tecnocratas e os negocistas, os esper­
talhões.
Dir-sc-á q.ue tudo isso é coisa antiga e que não
há administração pública (especialmente brasi­
leira) que não sofra desses males, ao menos
desde o tempo do Estado Novo getuliano.
Pode ser. A novidade, entretanto, é que ao lon­
go dos últimos quinze anos essas saúvas mo­
dernas assumiram o controle do governo no
pais. O que era antes apenas uma mazela da
administração tornou-se hoje (desde quando?)
a própria administração, naquilo que ela tem
de mais "criativo" e de mais rico.
São as saúvas que hoje administram de fato o
puls. Saúvas híbridas, nascidas da simbiose da
tecnocracia (civil e militar) com o inevitável
espírito empreendedor dos negocistas e dos ca­
valheiros de indústria. Quem ignorar isso que
leiu este novo livro de José Carlos de Assis, da
Pu, e Terra.
Assis conta detalhadamente, oito ou dez histó­
rias exemplares que se confundem (em boa me­
dida) com a própria história do Brasil dos anos
70 e 80. A história da Cobec, filha estremecida
do Banco do Brasil; a história da Interbrás; as
histórias da Coscafé e da Pancafé; o extraordi­
nário caso Tama; os casos da Dow Química e
da Vale e, afinal, o escândalo-rei da Capemi.
São histórias para brasileiro nenhum botar de­
feito. Histórias edificantes. Histórias que reve­
lam o grau de paroxismo a que chegaram entre
nós, sob o guarda-chuva militar do regime, a
irresponsabilidade e a incompetência tecnocrá­
tica, irmanadas à corrupção e à roubalheira
impunes e infrenes. Administradores como
Paulo Bornhausen e Carlos Sant' Anna (da Co­
bec e da Petrobrás-Interbràs), de1,1iam ter sido
interditados e internados num manicômio, ain­
da que não fosse o manicômio judiciário. Fo­
ram promovidos.
Mas, em todos os casos e especialmente no
caso Capemi, estão mais ou menos claramente
envolvidos altos ·oficiais das agências centrais
do Governo e do próprio Palácio.
Leiam o livro de José Carlos de Assis. Leiam e
pasmem. Ele precede as suas histórias de um
prólogo teórico, cujas teses parecem a meu ver
discutíveis. Mas os casos que conta são uma
dura lição, que não pode ser ignorada nem
pelo general Figueiredo nem por nenhum bra­
sileiro que ame e respeite este nosso sofrido e
saqueado país.

FERNANDO PEDREIRA
Coleção ESTUDOS BRASILEIROS
vol. 75

Direção de:
Aspásia de A !cântara Camargo
Juarez Brandão Lopes
Luciano Marlins

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Assis, José Carlos de.


A866m Os Mandarins da República : anatomia dos escândalos
na administração pública, 1968-84 / José Carlos de Assis. -
Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1984.
(Coleção Estudos brasileiros ; v. 75)
1. Brasil - Administração pública, 1964-84 2. Brasil -
Política e governo, 1964-84 3. Economia - História - Brasil 1.
Título li. Série

CDD - 330,981
354.81
CDU - 338(81 )(09)
84-0129 354(81 )(09).

EDITORA PAZ E TERRA


Conselho Editorial:
Antonio Candido
Celso Furtado
Fernando Gasparian
Fernando Henrique Cardoso
J. CARLOS DE ASSIS

OS MANDARINS
DA REPÚBLICA
( Anatomia dos escândalos na
Administração pública: 1968-84)

2� edição

Paz e Terra
e '11pyright by José Carlos de Assis

Capa: Eduardo J. Rodrigues


Lucio Gomes Machado
Revisão: Henrique Tarnapolsky
Pier Luigi Cabra
Produção gráfica: Orlando Fernandes

Direitos adquiridos pela


EDITORA PAZ E TERRA S. A.
Rua São José, 90 - 189 andar
Centro - Rio de Janeiro - RJ
Te!.: 221-3996
Rua Carijós, 128.
Lapa - São Paulo - SP
Te!.: 263-9539

1984

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Para IARA
e para
J. Maria de Assis
em memória
Sumário

Nota do autor .............................................................................. 11


Prólogo·
A feudalização do Estado................................................. 13
Capítulo 1 - O Estado comerciante........................ :....·................. 51
O "caso" Nigeriano ....................................................... 59
O ··caso" Ta,na .... .... ..................... ..· .............................. 69
O ··caso" Cobec............................................................. 79
Capítulo 2 - O Estado especulador ................... :.; ........................ 99
_O "caso" Coscafé ....... ... . . . . . . . . . ..................................... 103
O "caso " Vale ................... :.........................................
· ·111
Capítulo 3 - O Estado normatizador............................. :............ 133
O "caso" Dow Química....................... : .................. :.... 133
Capítulo 4 - O Estado degenerado............................................. 167
O escândalo da Capemi . . . . ............ .. . .. .. . ... ....... .. ....... .... 167
Apêndice ...................................................................................... 227
tórica da "revolução" de 1964, e não do que ele foi antes ou do que te­
ria sido se não houvesse o golpe. Desconfio, a esse respeito, que o au·
toritarismo recente, escrachado, apenas levou a extremos aquelas ca­
racterísticas autoritárias básicas, às vezes camufladas, que Raymundo
Faoro resgatou da História brasi"Jeira e analisou tão bem em seu Os
Don·os do Poder. De qualquer forma, tenho esperança de que a parte
factual dessa reportagem sobre os "escândalos" contribua para uma
reflexão sobre o que ainda espera a sociedade brasileira, se houver
u_ma insistência na exploração do esgotado veio autoritário em prejuí­
zo de um compromisso efetivo com a construção democrática - ainda
que tardia.
Sinto-me gratificado em poder registrar a ge11erosa acolhida dada
pelo público e por vários de meus colegas jornalistas, em críticas e re­
ferências, a A Chave do Tesouro. É verdade que isso teve um efeito psi­
cológico inibidor sobre a gestação de seu prometido complemento,
pelo receio de não corresponder à expectativa criada; mas o efeito
oposto, que acabou prevalecendo, foi o do estímulo a concluir logo o
· trabalho iniciado. Renovo meu agradecimento à professora Maria da
Conceição Tavares, pela paciência de ter lido o Prólogo e sugerido al­
gumas alterações, que não estou seguro se atendem a seu acurado sen­
so crítico. E a Rafael de Almeida Magalhães e Carlos Lessa, com
quem tenho debatido longamente as idéias aqui expostas. Os três, ob­
viamente, nada têm a ver com as insuficiências do texto ou por algum
particular viés analítico de minha exclusiva responsabilidade.
Aos que, por diversos meios, me conduziram às fontes de infor­
mação e de documentação primárias, e por motivos óbvio� preferem
continuar no anonimato, devo um agradecimento especial. Ocorre-me
que, numa sociedade em transição para a democracia, o instituto de
preservação da fonte, no jornalismo, continua sendo o instrumento
mais eficaz para romper a cidadela do "sigilo bancário" e do carimbo
de "confidencial'', quando esses legítimos mecanismos de defesa de
privacidade se tornam o apanágio da fraude e da impunidade no mun­
do dos negócios ou da Administração pública.
Rio, fevereiro de 1984.
J.C.A.

12
Prólogo
'"Serão os únicos aos quais não se permitirá manipular
ou sequer tocar o ouro e a prata, nem entrar na casa
onde se guardam. ou beber em recipientes desses metais.
Só assim poderão salvar a si mesmos e salvar a cidade,
porque se adquirissem terra própria, casa e dinheiro
logo teriam que ser chamados de empresários e de traba­
lhadores. antes que de guardiães, e em lugar de defenso­
res dos demais cidadãos se lhes aplicaria o qualificativo
de tiranos e inimigos."

Platão. A Repúhlirn. ou /)a Justiça

A feudalização do Estado

O regime de 1964 se arrogou completar de forma cabal, ·na esfera


administrativa, o objetivo e.sboçado pela Revolução de 30 no plano
político: avocou constitucionalmente para o Estado, sobre as funções
clássicas de supridor de Segurança e de Justiça, as de orientador e de
principal motor do desenvolvimento econômico e social. Para isso,
promoveu reformas atualizadoras do sistema monetário e de interme­
diação financeira, no plano institucional da economia; em sua órbita
direta, dotou a Administração pública de um poder sem precedentes
de extração de recursos, com a Reforma Tributária de 1966, e rompeu
a teia de entraves burocráticos que emperravam secularmente sua má­
quina operacional, através da descentralização executiva prescrita na
Reforma Administativa do ano seguinte.
Esses movimentos modernizantes não continham necessariamen­
te uma intenção autoritária, a despeito da inspiração positivista que
estava na origem do suporte militar à "revolução". As reformas do sis­
tema monetário e financeiro tinham caráter inequivocamente liberal.
O aparente desequilíbrio fiscal em favor d� U-nião, com a Reforma
Tributária, não conduziria necessariamente ao desmantelamento da
Federação ou à centralização autoritária dos recursos públicos, desde
que se preservasse, quanto à aplicação, o processo de transferências
fiscais automáticas e a autonomia política e administrativa de Estados
e municípios. Ao lado disso, havia outras instâncias, além das unida­
des federadas, nas quais as diferentes instituições da sociedade po­
diam, em' tese, fazer valer a vontade política da Nação, legítima e
democraticamente, na disputa dos recursos arrecadados pela União. A
principal delas, o Congresso Nacional, permanecia em 1967 ainda for­
ma.lmente independente do Executivo.
Quanto à Reforma Administrativa, não obstante fundamentar-se
em ato institucional, seu propósito básico de dar maior agilidade ope­
racional e economia de escala aos órgãos e funções do Estado dizia
respeito mais à eficiência que ao caráter político da Administração
pública. Ambas as reformas seriam propostas, aprovadas e iniciadas
sob a égide de um regime aparentemente democrático - ou no mínimo
dentro de um horizonte democrático, de vez que tanto o Legislativo
como o Judiciário, em 1967, embora ressentindo-se dos traumas das
cassações recentes, não estavam compelidos a projetar para a frente o
padrão de violência política de execução que sucedeu imediatamente
ao golpe.
Além disso, elas ecoavam os sons ainda próximos do debate polí­
tico em torno de·"réformas de base" que precedeu a "revolução" e, ex­
ceto por distinções de grau, correspondiam às aspirações de amplas­
correntes da opinião pública de variado colorido ideológico. No plano
da sociedade civil, tinham sido precedidas dos dois importantes instru-:
mentos institucionais de modernização econômica, a Reforma Bancá­
ria (1964) e a Lei do Mercado de Capitais (1965), ambas longamente
reclamadas pelos liberais. Coerente com isso, o mentor e executor ini­
cial da Reforma Administrativa, Hélio Beltrão, associou a "desburo­
cratização" com o avanço da democracia, pelo que deveria remover
de entraves cartoriais ao movimento criativo ·da sociedade e ao de­
senvolvimento da empresa privada numa ec_onomia "livre".
Contudo, essas reformas ainda não tinham produzido os primei­
ros frutos quando o AI-5 se abateu sobre a sociedade brasileira, em
novembro de 1968. A partir daí a Federação seria mutilada politica­
mente, através da ingerência do Poder central na indicação de gover­
nadores - além cie prefeitos das capitais e das áreas de "segurança na­
cional" -, com o que se cancelou uma importante instância de decisão
intermediária quanto aos destinos de recursos crescentemente concen­
trados na União, transformada agora em senhora quase absoluta tam­
bém da aplicação. Mas o ato ditatorial do regime militar cancelou,
sobretudo, a possibilidade de controle político do destino dos fluxos
de recursos manipulados pelo Executivo, de origem tributária ou não,
pois o Congresso Nacional, posto inicialmente em recesso e submetido
a novas cassações, viu-se reduzido a uma função meramente homolo-
.gatória dos orçamentos e perdeu até mesmo a capacidade de fiscalizar
sua execução de forma independente.

***·
O Estado reformado de 1967 pretendera, pois, conciliar na mes­
ma personalidade moderna o supridor de serviços públicos tradicio­
nais e o promotor do desenvolvimento. O primeiro deveria seguir cui­
dando das funções governamentais clássicas de garantidor de Justiça,
Segurança, Educação, Saúde, etc., apoiado na estrutura tributária efi­
ciente, recém-montada. O segundo assumiria os encargos crescentes da.
infra-estrutura econômica, do financiamento de setores prioritários e,
enfim, de produtor direto (ou associado) de bens e serviços essenciais
nos espaços estratégicos da ec�momia e nas áreas fora do alcance ou
do interesse do capital privado, cujo estímulo era também compro­
misso constitucional. Para isso, se apoiaria na geração autônoma de1
recursos de suas empresas ("verdade tarifária"), na capacidade de le­
vantar empréstimos e na flexibilidade operacional recém-adquirida
pela Administração indireta.
Um tinha diante de si o contribuinte; o outro, o consumidor. Mas
a unidade básica desse Estado de dupla face era garantida, nos termos
de uma Constituição ainda liberal, pela possibilidade de legitimação
política, através da manifestação da vontade do cidadão livre que a
Carta também reconhecia por trás do contribuinte-consumidor. O
trauma do Al-5 cindiu de vez a dupla personalidade do Estado brasi­
leiro: o contribuinte, despojado de cidadania, perdeu o controle políti­
co sobre o supridor de serviços públicos básicos, e a face correspon­
dente do Estado atrofiou-se. A outra face prevaleceu sobre a primeira,
hipertrofiando-se, pois o cidadão degradado à condição de consumi­
dor estava confinado a "votar", por sua participação no mercado, no
crescimento econômico acelerado, única forma de satisfazer-se. Então,
o ciclo de prosperidade esgotou-se. Já sem as compensações do "pro­
gresso", o consumidor viu-se tão despojado de estímulos como o con­
tribuinte de serviços; e o Estado perdeu sua "legitimação" também no
mercado. Restou apenas a face iluminada do autoritarismo, de um la­
do, e de outro uma cidadania a ser reconstituída sobre os destroços de
um consumidor frustrado e de um contribuinte fraudado:

***
Contrariamente ao seu propósito liberal, as reformas de 66 e 67
acabaram por preparar instrumentos novos, eficientes e poderosos
para o exercício cabal do autoritarismo, quando ocorreu o golpe do
AI-5. Foram essenciais na deformação dos objetivos das duas outras

15
grandes reformas que a precederam, em 1964 e 1965."' Com os imensos
íluxos de recursos de origem tributária, monetária e financeira concen­
trados em suas mãos, e sem contrapeso significativo na órbita política,
o Executivo pôde dar substância material ao livre devaneio na perse­
guição do sonho desenvolvimentista logo degenerado no delírio da
Grande Potência, à margem do interesse público concreto, lançando­
se à megalomania dos superproj_etos, da Transamazônica ao Programa
Nuclear. Por seu turno, os braços operacionais da vontade do Estado,
suas agências e empresas da Administração direta e indireta, desemba­
raçados dos entraves burocráticos, puderam desdobrar livremente, en­
quanto durou a pletora dos recursos de empréstimos, as iniciativas ar­
rojadas insinuadas em seus planos "estratégicos'' indenes ao controle
social. Paralelamente, protegidos de cobrança política pelo autorita­
rismo, os serviços públicos tradicionais deterioraram-se.
Procurou o Governo, com a Reforma Administrativa, liberar a si
e à sociedade de entraves cartoriais seculares ao pleno desenvolvimen­
to de suas energias. Isso aconteceu de fato. Mas com o Al-5, o admi­
nistrador estatal e o agente oficial, recém-liberados da teia burocrática
inibidora, viram-se liberados também do controle público· e político.
Muitos deles se tornaram os novos sátrapas de uma administração re­
talhada, com o princípio da responsabilidade política perante a opi- ·
riiâo pública e o Congresso substituído pelo código maf�oso de fideli­
dade ao chefe, qnico a quem se prestam contas, se acaso ele pedir. A
Presidência imperial, ela própria ilegítima, nomeia e demite a seu crité­
rio, mas não tem para isso outros canais de informação a não ser seus
próprios agentes, membros de uma mesma patota, com o que a Admi­
nistração, em seu conjunto, constitui seu próprio padrão de referência,
inteiramente alheia à Nação.
A remoção do Al-5 não alterou esse estilo de comp:>rtamento
da Administração públi.ca brasileira, mesmo porque os mecanismos
institucionais para seu controle, sobretudo através do Congresso, não
foram restabelecidos. O único condicionamento no qual esbarrou, por
enquanto, foi a própria crise econômica, que levantou limitações de
ordem material à descoordenação do Governo, como um todo, e lhe
impôs a busca de algum ordenamento interno. Esse tipo de controle de
gastos públicos, determinado por restrições físicas e compromissos ex­
ternos, nada tem a ver com os controles políticos dos órgãos estatais
que constituem instrumentos básicos de funcionamento de uma demo­
cracia. O eixo central desses últimos está no orçamento público, julga­
do e-aprovado no Parlamento por critérios político-sociais, de acordo

• O relato do processo de degeneração do Sistema Financeiro instituído com as refor­


mus de 1964/65 foi objeto de meu A Chave do Tesouro, Ed. Paz e Terra, lançado em ju­
lho de 1983.

16
com prioridades estabelecidas também politicam_ente; e não se confun­
de com os "cortes" impostos globalmente, num momento de crise agu­
do, por um Governo acuado internacionalmente - meros ajustes inter­
burocráticos para um acerto "técnico" de contas.
***
O propósito - A Reforma Administrativa (Decreto-Lei 200) foi
tlcfinida por seu implementador como uma "revolução silenciosa",
quando já havia se passado quase um decênio desde sua edição. "Re­
volução - justificava Hélio Beltrão - porque alterou profundamente o
modo de encarar e operar a administração pública; silenciosa, porque
não foi suficientemente divulgada nem creditada por suas inegáveis
conseqüências. Não foi por acaso que a partir de 1968 o Brasil teve
condições de arrancar em direção ao desenvolvimento." 1 Como a afir­
mativa data de 1976, surpreende como muitas das "inegáveis conse­
qiiências" da reforma, devidas menos a ela própria que à exacerbação
do autoritarismo, ainda não fossem percebidas. Viam-se apenas os
bons frutos. Breve, porém, o debate um tanto equivocado sobre "esta­
tização" levantaria ao menos uma ponta de véu sobre a natureza irres­
ponsável da Administração pública do País.
O próprio Beltrão fez a descrição condensada dos objetivos da re­
forma quanto à remoção de "preconceitos e vícios" que anteriormente
emperravam a máquina do Estado: "O pior deles, característica mar­
cante erri nossa história administrativa, é a centralização excessiva de
decisões. Daí havermos erigido em pedra de toque da �eforma a des­
centralização administrativa, essencial à dinamização da máquina e à
sua adequação às necessidades do País. Esse princípio foi concebido e
executado em três planos distintos: l) Dentro da própria administra­
ção, pela prática intensiva da delegação e descentralização do poder
decisório; 2) do Governo em direção ao setor privado, pela consagra­
ção, em lei, do princípio da execução indireta, declarando-se expressa­
mente que 'não deve o Estado executar diretamente aquilo que pode
ser eficientemente contratado com o setor privado'; 3) do Governo fe­
deral em relação aos governos estaduais e municipais, pela generaliza­
ção dos convênios mediante os quais 'a execução dos programas fede­
rais deverá ser delegada às administrações locais, sempre que existirem
órgãos habilitados para realizar essas tarefas.." 2
Esse movimento de descentralização em três níveis, na órbita exe­
cutiva, teria como contrapartida, na esfera de definição do investimen­
to e sua coordenação, o planejamento econômico global. Sobre este,

1. Visão, 31-8-76, "Quem é quem na economia brasileira", pâg. 29. "Eles estiveram no
poder (alguns ainda estão) e contam o que fizeram". Entrevista com Hélio Beltrão.
2. Visão, 31-8· 76. Entrevista citada.

17
,.
diria Hélio Beltrão, lançando uma visão crítica sobre o período ante­
rior ao seu: "O objetivo primordial do p\anejamento governamental
deve ser o desenvc:>lvimento, não o combate à inflação, que deve,
entretanto, ser mantida sob controle (a prioridade inversa, executada
em 1965-66 de forma um tanto drástica, além de não ter alcançado os
objetivos desejados no tocante à inflação, produziu conseqüências não
desejáveis no plano econômico e social, como a recessão, a queda do
nível de emprego, a subutilização da capacidade e a debilitação das
empresas nacionais."
A reforma estava impregnada da noção de planejamento como
instrumento de coordenação da atividade governamental direta e indi­
reta.3 Por mais autônoma que fosse a atividade executiva, em busca de
economia e eficiência o·peracional, a iniciativa do programa ou do in­
vestimento público estava condicionada sempre ao plano global e aos
orçamentos, atribuições do Governo, partilhadas entre Executivo e
Legislativo. Os órgãos da Administração direta e indireta eram livres
para agir, não para decidir quanto ao destino dos recursos manipula­
dos, nem quanto ao montante. O planejamento era concebido simulta­
neamente como coordenação e controle, sob autoridade direta do Pre­
sidente da República, assessorado pela Seplan.
A avocação de parte desse controle pelo Congresso Nacional,
transformando-o de controle burocrático em controle político, foi
uma conquista efêmera. No entanto, ilustra a tensão que já existia e.n­
tre as forças que se moviam no sentido do autoritarismo e a resistência
democrática, inclusive por parte das correntes políticas de sustentação
do Governo. O debate se deu em torno da regulamentação dos dispo­
sitivos da Constituição de 1967 que instituiu o PND - Plano Nacional·
de Desenvolvimento, e o Orçamento Plurianual de Investimento. Hélio
Beltrão, preocupado em desemperrar a máquina administrativa, apre­
sentou um projeto que dava limitada margem .,para interferência do
Congtesso na elaboração orçamentária. As duas Casas do Legislativo
reagiram. Primeiro, transformaram em Lei Complementar um substi­
tutivo ao projeto, preparado pela Comissão Mista que o examinou.
Em seguida, derrubaram por esmagadora maioria de votos os vetos
que o Presidente Costa e Silva tentou lhe opor.
A originalidade do substitutivo, promulgado como a efêmera Lei
Complementar n'? 3, logo engolfada pela vaga do AI-5, consistia na há-

3. O Título III do DL-200 determina, no Art. 15: "A ação administrativa do Poder
Executivo obedecerá a programas gerais, setoriais e regionais de duração plurianual,
elaborados através dos órgãos de planejamento, sob a orientação e a coordenação supe­
riores do Presidente da República". O Art. 16 especifica: "Em cada ano será elaborado
11111 orcnmcnto-programa, que pormenorizará a etapa do programa plurianual a ser rea-
111 11h1 1111 exercício seguinte e que servirá de roteiro à execução coordenada do programa
111111111"

IH
bil reinterpretação pelo Congresso da vedação constitucional e inicia­
tivas parlamentares que resultassem em aumento de despesa e redução
de receita no orçamento anual proposto pelo Executivo. Como a
Constituição previa a transformação em lei também do Orçamento
Plurianual de Investimentos, o Congresso entendeu coerentemente
que o orçamento anual, na sua conta de capital, devia ser uma mera
reprodução dele, adequada ao horizonte de um ano; e na conta de cus­
teio, refletiria sem maiores inovações _o padrão de orçamentação de
despesas correntes do Estado. O Orçamento Plurianual, contudo, con­
siderado como de elaboração conjunta do Executivo e do Legislativo,
era considerado o instrumento central da Administração. Nele, o Po­
der Legislativo se reservava o díreito de deliberar sobre:
"I - o mérito dos objetivos selecionados, sua compatibilidade e
adequação com os objetivos do Plano Nacional (PND);
II - o mérito das prioridades fixadas;
III - o mérito dos programas propostos, seus instrumentos de im­
plementação, desdobramento e conseqüências;
IV - a previsão dos recursos indicados para atender às despesas
de capitaJ." 4
Mantinha-se para o Orçamento Plurianual de Investimentos a ve­
dação constitucional, na fase de elaboração legislativa, a emendas que
elevassem ou reduzissem a despesa ou receita global. Mas, como se
viu, tornou-se explícita a prerrogativa do Parlamento de reorientar
projetos e prioridades dentro do teto de despesas proposto. Mais im­
portante, porém, e sobretudo à vista do descalabro posterior nesse
campo, era que todos os recursos manipulados pelo setor público, in­
cluindo-se a Administração indireta, deveriam passa{ previamente
pelo crivo da apreciação legislativa. 5
Revisitados esses dispositivos à luz da experiência do Al-5, verifi­
ca-se como o autoritarismo exacerbado foi condição essencial também
para o descontrole orçamentário e das contas públicas. Sob a vigilân­
cia do Congresso - e deve-se entender Congresso autônomo, como
provara ser o de 1967 ao derrubar os vetos impertinentes de Costa e
Silva, e ao resistir depois à cassação de Márcio Moreira Alves -, seria

4. Lei Complementar n9 3, Art. 12.


5. O Art. 79 da Lei Complementar n9 3 estabelecia: "O Orçamentõ Plurianual de Inves­
timento indicará os recursos orçamentários e extra-orçamentários necessários à realiza­
ção dos programas, subprogramas e projetos, inclusive os financiamentos contratados
ou previstos, de origem interna ou externa". E o Art. 89 era ainda mais preciso: "O Or-'
• çamento Plurianual de Investimento incluirá as despesas de capital de todos os poderes,
órgãos e fundos da Administração, direta ou indireta, sob qualquer de suas modalida­
des. Parágrafo único: Os projetos de lei orçamentária anual reproduzirãó, quanto às
despesas de capital, os correspondentes valores do Orçamento Plurianual de Investi­
mento anteriormente aprovado."

1 9'
difícil imaginar a proliferação dos projetos megalômanos dos anos do
"milagre" e do 29 PND, entre outros motivos porque o endividamento
interno e sobretudo externo, fonte de recursos para a sustentação de
quase todos eles, estaria sujeito à prévia aprovação legislativa no Or-
çamento Plurianual de Capital.
Portanto, ficariam sob controle legislativo os investimentos das­
estatais, quando dependessem de recursos orçamentários ou de em­
préstimos. E como a geração de recursos próprios dessas empresas,
mesmo quando de economia mista, estava formalmente sujeita ao Pla­
no global via política de preços, entendia-se que todo o seu investi­
mento ficava transparente na programação submetida ao Legislativo.
Também as contas ativas do Orçamento Monetário deviam ser explici­
tadas no Orçamento Plurianual e reaparecer anualmente, como despe­
sa de capital, no Orçamento da U n·ião, junto com os demais programas
anualizados da Administração direta e indireta. Foi a eliminação des­
sa obrigatoriedade - e do controle legislativo que implicava na reda­
ção original da Lei Complementar n9 3 - que está na origem da prolife­
ração de contas em aberto no Orçamento Monetário, cujos "estouros"
.viraram rotina a partir da segunda metade dos anos 70, apesar do em­
penho retórico em sentido contrário das correntes ideologicamente
monetaristas que estavam no comando da política econômica.
Na prática do regime autoritário, a expans-ão das contas em aber­
to e do investimento público suportados pelo crédito oficial ou. por
empréstimos externos obedeceu, parl} cada agência ou empresa estatal
em particular, à ótica da eficiência privada, do lucro, da economia de
escala, do interesse estratégico inferido em escala microeconômica
como legitimador da megalomania. Não havia nada a costurá-los num
plano global. Perdeu-se a perspectiva até mesmo da coordenação bu­
rocrática do investimento governamental e a idéia do planejamento in­
tegrado, embora em seu início o Governo Geisel tentasse, com o 29
PND, recuperar no plano administrativo essa noção que a Carta de 67
tornara um princípio constitucional do Estado.
Contudo, diante do progressivo distanciamento entre os objetivos
audaciosos do Plano e a realidade material da economia, já na fase de
descenso do ciclo econômico, tor.nou-se ainda mais patente o desca­
labro das contas do Governo, incapaz de recondicionar em metas mais
modestas os ideais de grandeza de seus sátrapas. A agência formal­
mente encarregada da coordenação e controle, a Seplan, limitou-se a
acompanhar de longe a evolução das contas e os "estouros", determi­
nando cortes em bloco, sem legitimidade e sem os instrumentos de
coação para impor a outra instância do Governo, de igual nível de hie­
rarquia e com igual acesso ao Presidente da República, um reordena­
mento seletivo de despesas.

• ••
20
Quando, mais recentemente, esse descontrole revelou-se respon­
sável pela disfuncionalidade básica da economia brasileira, assistimos
ao espetáculo grotesco da denúncia, a partir de agências do próprio
Governo como o Banco Central e a Seplan, dos gastos exagerados das
estatais, das mordomias, dos subsídios oficiais ao consumo e ao crédi­
to. Perante a sociedade civil e sua representação pólítica no Congres­
so, ambas desarmadas desde ·O AI-5 de qualquer instrumento de con­
trole e inibição desse descalabro, a mão direita da Administração acu­
sa a esquerda, com um discurso patético. À sociedade brasileira, es­
pectadora perplexa, cabe a solução do enigma sobre a função que cou­
be durante tanto tempo de descontrole ao cérebro desse corpo que, no
centro do Governo federal, supostamente comandava a ambas!
A aguda crise da segunda metade dos anos 70 tornou transparen­
te o desarranjo das contas públicas pelo que representou como condi­
cionamento econômico da atividade governamental e privada. Não
suscitou, contudo, entre os corifeus do regime, maiores reflexões
quanto ao condicionamento político que o exercício autoritário de de­
cisões sobre o investimento público, depois do Al-5, representou para
a sociedade brasileira, sonegada no direito de participar, através da re­
presentação legislativa, do processo de escolha do montante e do desti­
no das inversões oficiais. Mas a dimensão quantitativa do descontrole
era de tal ordem, na virada da década de 80, que o então presidente do
Banco Central, Carlos Langoni, tornou-se um vigoroso chefe de quin­
ta coluna dentro da Administração pública contra os exageros dos.
subsídios, das contas em aberto, das aplicações a descoberto das em­
presas públicas.
Assim, pontificava ele em palestra na Escola Superior de Guerra,
em 4-8-81: "O crescimento desordenado do setor· público e, em espe­
cial, do conjunto de empresas estatais, lado a lado com a multiplicação
de subsídios e incentivos, reflete de maneira insofismável a falta de
uma base institucional que crie limitações naturais (grifo meu) à ex­
pansão do setor público e, muitas vezes, para a própria ação gov.erna­
mental, quando ela conflita com o limite representado pelos recursos
disponíveis."
O conferencista não explicou o que entendia por "limitações na­
turais", mas dava números impressionistas do descontrole: "Em 1981,
o orçamento programado das empresas estatais é de Cr.S 6 100 bilhões,
dos quais Cr$ 1 519 bilhões em investimentos, em contraste com o or-
. çamento da União que totaliza Cr$ 1 888 bilhões dos quais CrS 303 bi­
lhões em investimentos. Isto é, os investimentos das empresas estatais
representam aproximadamente cinco vezes os investimentos efetuados
com recursos do orçamento da União."

21
Quanto aos subsídios, e a despeito da equívoca metodologia utili­
zada para estimar os chamados subsídios implícitos de crédito,6 os nú­
meros do Banco Central não eram menos impressionantes: "Em 1980,
esses subsídios totalizaram Cr$ 745 bilhões, correspondendo aproxi­
madamente à receita conjunta do imposto de renda, IPI, IOF e a cerca
de 78% do total da receita tributária." Considerando-se também a
"multiplicidade de incentivos fiscais", o montante correspondente às
duas rubricas, em 1980, atingiu "cerca de Cr$ 950 bilhões, quantia
praticamente idêntica à totalidade da receita tributária (Cr$ 958 bi­
lhões). Em 1981 - estimava Langoni -, esses valores poderão alcançar
Cr$ 1,3 trilhão, ou seja, 65% da estimativa da receita tributária."
Na interpretação do ex-presidente do Banco Central, "a combi­
nação desses dois. fatores" - dispêndio global descontrolado das esta­
tais e expansão dos subsídios/incentivos - "vem retirando o significa­
do da lei orçamentária que exige equilíbrio entre receita e despesa, já
que sua aplicação está restrita às contas da União, aliás, diga-se de
passagem, as únicas apreciadas pelo Congresso". Exceto por essa refe­
rência, .feita de passagem, não existe outra menção na conferência de
18 páginas à forma de controle natural sobre os gastos globais do setor
público. Na verdade, deposita:. se exclusivamente na Sest - Secretaria
Especial de Controle das Empresas Estatais a esperança de recupera­
ção, pelo Governo, do comando sobre o movimento global de seus
dispêndios.
Implícita nesse diagnóstico, sobressai uma concepção intrinseca­
mente burocrática e politicamente autoritária do gasto público. O má­
ximo que se permitia o presidente do Banco Central, coerente com sua
fu.nção num regime ainda autocrático em matéria econômica, era
apontar como "essencial a integração e harmonização entre orçamen­
to monetário, orçamento fiscal e orçamento das empresas estatais, a
fim de que o próprio Governo tenha uma idéia mais precisa de seu dé­
ficit global e possa decidir de maneira mais consciente acerca de suas
grandes prioridades."
Como Governo, no Brasil, em matéria de polltica econômica, se
traduz por Executivô, o que Carlos Langoni pregava era a atribuição a
uma agência estatal, de preferência o próprio Banco Central, de uma
função rigidamente controladora de todas as demais, quanto aos dis­
pêndios globais de recursos oficiais. Já se viu como isso deveria ser a

6. Mede-se este "subsidio" como a diferença entre a taxa efetiva do crédito e uma su­
posta "taxa de mercado". O equivoco consiste em ignorar o crédito como um fator de
custo, sobre o qual se formam os preços, e portanto a própria inflação. Generalizar ta­
xas reais de juros para toda a economia, numa situação inflacionária, não resulta elimi­
nar o "subsidio"; significa apenas deslocá-lo do consumidor do produto agrlcola trans­
formando-o em ganho do setor financeiro, tanto maior quanto maior for a taxa de juros
rcul arbitrada.

22
missão básica da própria Seplan de acordo com a concepção de plane­
jamento da reforma administrativa, incorporada ná Constituição de
1967. A criação da Sest, no Governo Figueiredo, veio apenas tornar
patente a impossibilidade desse con.tr.ole pelos meios convencionais, e
seus três anos de insucesso quase total ainda não bastaram para con­
vencer que a existência de uma instância formal de coordenação não
resolve, por si, uma questão que é fundamentalmente política. Ou seja,
controle requer, antes de mais nada, legitimidade.
***
A crítica exercida pelo antigo presidente do Banco Central, oriundo
da escola neoclássica da Fundação Getúlio Vargas, contra uma mol­
dura institucional a que ele próprio estava obrigado a prestar fidelida­
de como homem do Executivo, reflete o grau de disparidade objetiva
entre a Administração pública do País, tal como ela é, e a Administra­
ção ideal imaginada pelos homens públicos que a dirigem. Retalhada
em satrapias, a Administração real se organiza por blocos de ir:iteresse,
articulando o privado e o público na sua atividade específica sem ou­
tros condicionamentos externos a não ser o mercado, e internos a não
ser a autoridade do Presidente da República; a Administração imagi­
nada supõe a integração dos projetos particulares desses blocos de in­
teresse num programa global, não conflituoso, supostamente conduzi­
do coerentemente pelo Governo, personalizado no Presidente.
É essa organização do Estado brasileiro, onde os diferentes feu­
dos administrativos se ligam verticalmente à Presidência mas não· es­
tão integrados horizontalmente num plano governamental, legitimado
politicamente, que permite a muitos altos burocratas e administrado­
res púl;>licos não se reconhecerem no Governo, ou mesmo crjticarem o
Governo sem deixar transparecer que criticam a si próprios. Obvia­
mente, seria necessário um Presidente onisciente - e em muitos casos
isso parece ser o mínimo que se requer dele - para dar coordenação
efetiva às iniciativas tomadas nos diferentes planos administrativos.
Enquanto a economia estava em crescimento, esse descontrole estrutu­
ral passava despercebido pois a expansão global da renda cobria natu­
ralmente as ambições burocráticas mais desvairadas; na crise, sobretu­
do agora quando caminhamos para o terceiro e quarto anos consecuti­
vos de queda real da renda per capita, a descoordenação dos gastos
públicos aparece em toda a sua nudez sob a forma dos "estouros" or­
çamentários e da escassez de recursos para fazer face até mesmo a
compromissos assumidos. Dentro desse quadro, não surpreende que
tenha vindo da parte de um presidente dô Banco Central o apelo paté­
tico pela imposição de freios "naturais" à expansão do gasto público
global.
De todas as agências públicas brasileiras, o Banco Central é a que
se deixou levar ao estágio mais avançado da esquizofrenia provocada

23
pela ambigüidade entre a Administração pública real e a Administra­
ção idealizada. Construído um pouco à imagem dos bancos centrais
convencionais, mas com alguns trejeitos tropical'istas, não lhe falta
uma gerência de mercado aberto para o controle "fino" da liquidez
monetária, quando não dispõe dos instrumentos mais elementares
para o controle "grosso"; na essência, contudo, ele "pensa" a econo­
mia de acordo com os cânones da teoria quantitativa da moeda, embo­
ra permitindo-se alguns pecados keynesianos nas suas funções de fo­
mento. Na atual Administração, seu presidente neoortodoxo, por ins-·
piração acadêmica ou por dever de ofício, teve de reagir, exasperado,
diante de uma situação de contas públicas tornada aberrante pela cri­
se. Ê que, tal como se concebe, faz parte da coerência funcional do
Banco Central - da sua "personalidade" no' çonjunto da Administra­
ção pública - exigir que, de alguma forma, se ponha ordem nos orça­
mentos governamentais, pois do contrário ele perde sua própria razão
de ser como "controlador da liquidez" - ou seja, da disponibilidade de
moeda e de crédito na economia e, através desta, ·da própria inflação.
Depois de três anos de "fracassos" da Sest em relação ao controle
das estatais poder-se-ia supor que também �la estivesse sujeita a esse
tipo de "crise existencial". De fato, mesmo após os dispositivos amea­
çadores de um decreto presidencial prevendo punição exemplar e até
demissão de administradores públicos que não cumprissem a austeri­
dade orçamentária determinada no programa comum, negociado com
a Sest, ouviu-se o surpreendente reconhecimento por parte de altas
personalidades do Governo de que não conseguiram disciplinar as
suas empresas. Contudo, no caso da Sest, existe um orçamento conso­
lidado, regis.tro contábil das intenções de 317 autarquias e empresas
públicas e mistas, e isso dá uma ilusão de controJe,que o pobre Banco
Central ainda não tem. Este, segundo seu desolado ex-presidente la­
mentou na ESG, em 1981, convive com "a esdrúxula situação atual em
que o orçamento monetário é, por definição, imprevisível, na medida
em que 70% de suas rubricas não têm na realidade limite efetivo, mas
são tratadas como 'contas em aberto'. Isto faz com que a dosagem de
liquidez na economia varie, não em função de uma programação mo­
netária voltada aos objetivos fundamentais de combate à inflação e
equilíbrio do balanço de pagamentos, mas em resposta ao comporta­
mento, muitas vezes aleatório, da demanda por crédito."
***
A forma eficaz numa economia de mercado - certamente imperfei­
ta, mas assim mesmo a única - de controlar dispêndioi).globais do ·se­
tor público é submetê-los à aprovação legislativa. Claro, sem Congres­
so independente do Executivo não há possibilidade de· controle orça­
mentário, razão pela qual uma efetiva "abertura" econômica exige a
prévia devolução das prerrogativas de fiscalização e controle ao Parla-

24
rnento. Aqui, política e economia se confundem, ficando clara a su­
bordinação da segunda à primeira: em 1968, comojá mencionado, tão
logo a vontade de autonomia do Congresso Nacional foijugulada pelo
guante do Al-5, o autoritarismo em escalada tratou de remover os me­
canismos legislativos - mesmo os formais, porque já não havia Parla­
mento livre - de controle do dispêndio público, votados pouco antes.
Agora, passados cinco anos da -derrogação do Al-5, um Congres­
so renovado e gozando de relativa autonomia política ainda não en­
controu o caminho de recuperação daqueles controles, por maior que
tenha sido seu esforço até o momento. Na realidade, mediante a estra­
tégia da "abertura" gradual, o autoritarismo mudou de cara, mas seu
conteúdo substantivo, nas questões essenciais de controle político da
sociedade e domínio institucional da economia, está preservado na
presença dos "biônicos" no Senado, na rede intacta da subterrânea
"comunidade" de informações e no aparato "legal" explícito que ga­
rante ao Executivo total autonomia na definição da política tributária
e de gastos· públicos, pelo expediente do decreto-lei. Em novembro úl­
timo, o Presidente da República vetou a lei que devolvia ao Congresso
a prerrogativa de fiscalizar a Administração indireta. Em dezembro,
mediante um "truque" burocrático, o Ministro Delfim Netto neutrali­
zou a redistribuição, em favor dos Estados, do Imposto (Jnico sobre
Lubrificantes e Combustíveis Líquidos e Gasosos, prevista na longa­
mente debatida Emenda Passos Porto (minireforma tributária), pela
simples eliminação do tributo original e sua recuperação, exclusiva­
mente para a União, através da cobrança de IOF - Imposto sobre
Operações Financeiras - na importação de petróleo. 7 O autoritarismo,
na verdade, só dispensou os atos de exceção p'or ter descoberto que já
estavam c�istalizados na legislação ordinária.
A omissão desse aspecto essencial no prolixo discurso com que o
antigo tecnocrata Roberto Campos inaugurou a etapa parlamentar de
sua vida. pública, no Senado brasileiro, em junho de 1983, denota até
que extremos chegou a capacidade de mistificação da elite dirigente
brasileira - sobretudo dessa elite que se confunde com a gestão autori­
tária do País. Campos não poupou críticas contundentes à imprevi­
dência e à megalomania do Governo Geisel, à expansão descontrolada
das empresas estatais, à hipertrofia do Estado empresarial. Não men­
cionou, porém, uma vez sequer, a situação caótica dos serviços estatais

7. O IULCLG era repartido entre a União e os Estados/municípios na proporção de


60% e 40%. Pela Emenda 23, de 1-12-83, foi invertida a divisão, num esquema progressi­
vo, a completar-se em 1988. "Contudo, hecha la ley, hecha la trampa. O CMN, órgão
executivo, reduz a zero o imposto que, por lei, deveria ser repartido entre a União, os
Estados (Distrito Federal e Territórios) e municípios, e em seu lugar passa a cobrar o
IOF, pertencente à União e só a ela". Paulo Brossard, "Me.teu a mão no bolso alheio",
Folha de S. Paulo, 11- 1-84.

25
gestões para o Plano. Estava nessa fase quando sobreveio o golpe. O
primeiro e único PND com chance de ser.elaborado com efetiva parti­
cipação do Parlamento ficou em rascunho; no seu lugar, Velloso edita­
ria, após o A to, a cartilha burocrática do l 9 PND, que, o pragmático
Ministro da Fazenda do Governo Médici atirou. simbolicamente no
lixo enquanto administrava o "milagre"; em 1974, Geisel mandou fa­
zer a segunda edição, revista e desmedidamente ampliada, e por tentar
executá-!� de qualquer forma, sem êxito, contribuiu adicionalmente
para a desmoralização da idéia do Plano; finalmente, quando coube ao
próprio Delfim Netto editar uma terceira versão, em 1979, nem se deu
ao trabalho de fazer contas: eliminou dele as metas quantitativas, re­
duzindo-o a sentenças declaratórias. Ou seja, manifestou no Plano a
intenção de sua ineficácia.
No Governo Geisel, um programa de desenvolvimento ambicioso
orientou a gestão autocrática da Administração pública e do conjunto
da economia. Aparentemente, não poderia haver melhores condições
para a eficácia do planejamento, ali concebido como instrumento de
coordenação da estratégia global de ação do Governo em matéria eco­
nômica e social. No entanto, o 29 PND revelou-se um ensaio desastra­
do de perseguição de metas fugidias, e deve-se debitar um tanto a isso
a tentativa posterior de desmoralização da noção de planejamento e a
reabilitação dos valores momentaneamente esquecidos do liberalismo
entre as correntes conservadoras da opinião pública, empresários e
acadêmicos. A inépcia do planejamento, mesmo quando aplicado com
mão de ferro, parecia a alguns demonstração inequívoca de sua inutili-
dade ou ineficácia sob quaisquer condições.
Não era o autoritarismo imanente ao 29 PND o fator responsabi­
lizado pelo fracasso deste, mas o planejamento em si. Num outro nível
de critica, corno a q'ue transparece no discurso de Campos no Senado,
chega-se à denúncia da "imprevidência" governamental ou de sua in­
sensibilidade aos avisos de crise, já evidentes na época, mas desconsi­
dera-se que estavam literalmente bloqueados os canais de influência e
comunicação entre a sociedade e o Estado e, em conseqüência, a possi-
bilidade de mudança de rumo na orientação do Plano que não a gesta­
da na intimidade do próprio Executivo. Quebra-se agora uma regra
sagrada do regime, com a exposição pública de suas dissenções inter­
nas, para preservar da crítica exatamente o lado mais pervertido dele,
sua ilegitimidade básica, para a qual também concorreram esses mo­
dernos fariseus: a prerrogativa no Executivo de agir segundo seus pró­
prios critérios, transcendentes à sociedade, na perseguição quimérica
do projeto de Grande Potência.
***
Numa análise exaustiva do esforço de execução do 29 PND, o
economista Carlos Lessa mostrou como a concepção estratégica· mili-

1()
tar, aplicada à questão do desenvolvimento econômico-social, consti­
tuiu a ossatura básica sobre a qual se modelou o Plano e se tentou le­
vá-lo às últimas conseqüências. Era a inversão cabal da idéia de plane­
jamento democrático, substituída pela do positivismo salvacionista.
Como escreveu Lessa:
"Estratégia é atribuição de Alto Comando, do supremo exercício
de autoridade. É uma decisão vital em qualquer campanha. O Estado
faz as opções, elege prioridades e traça as diretrizes conseqüentes. Aos
comandados é fixada a ordem de batalha e lhes compete executar as
tarefas correspondentes. (... ) O comandante supremo dispõe que todos
os dirigentes públicos e privados dévem perseguir os objetivos prefixa­
dos. Quanto aos subordinado·s delimita campos e atribuições específi­
cas. O pronunciamento da primeira reunião ministerial fixa o espaço e
atuação para os sindicatos. Será perseguido 'o fortalecimento da estru­
tura sindical tanto na cidade como no campo, possibilitando-se a sele­
ção de uma liderança autêntica e mobilizando-se os sindicatos para sa­
Jia cooperação às atividades culturais e educativas, inclusive a educa­
ção sanitária e educação física'.
"Outro parágrafo enquadra toda a chamada Sociedade Civil ao
dizer: 'Aos organismos intermediários que, nos mais variados setores
de âtividade, comp0em todo o rico complexo da sociedade brasileira,
não só lhes reconheceremos e garantiremos o pleno exercício dentro
das limitações estatuídas em lei, mas poderemos até aceitar-lhes a co­
laboração desinteressada, leal e nunca impositiva, ou mesmo incenti­
var e auxiliá-las em seus nobres propósitos, desde que julgados de be­
nemerência ou utilidade real para o País'. Em tom benévolo o Estado
garante a existência da Sociedade Civil, porém adverte: 'O que lhes
não poderemos nem devemos outorgar, no resguardo da própria dig­
nidade do Poder Federal, será a intromissão, sempre indevida, em áreas
Je responsabilidade privativa do Governo, a crítica quando desabusa­
da ou mentirosa, as pressões insistentes e descabidas que partam de
quem não tem o mínimo compromisso inerente ao múnus público'." 12
Essa concepção profundamente autoritária de Governo soaria
ameaçadora se a sociedade brasileira já não tivesse experimentado o
efeito concreto de sua prática na condução da política econômica des­
de 1968. O General Geisel jamais poderá ser acusado de ter mascarado
snb uma retórica política liberal sua noção de exercício do Poder
público, como bem demonstra a releitura dessas suas mensagens; tam­
bém não pode ser acusado de incoerência entre sua retórica autoritária
e a prática do Poder. Assim, a lição política que se pode extrair de seu
, período de Governo_ é que, ao contrário do que os epígonos do regime

12. Carlos Lessa, "A Estratégia de Desenvolvimento 1974-1976 - Sonho e Fracasso",


tese de 1978, concurso de pr1Jfessor titular da UFRJ, mimeografado, p. 71.

31
tentam fazer crer, o autoritarismo não constitui antídoto eficaz para
crises econômicas. Ao contrário, costuma, por falta de flexibilidade ou
de sensibilidade social para alterações de rumo, com o entupimento
das vias de comunicação com a Nação, levá-las a limites extremos.
***
.
No plano estratégico do regime de 1964, e de forma acentuada a
partir do AI-5, o desenvolvimento econômico passou a ser uma meta
de campanha traçada por um limitado comitê administrativo que se
arvorou em intérprete das aspirações sociais. Çoijl o paradigma da ob­
jetividade do desenvolvimento podia-se justificar tudo, e em especial a
prática de decisões autoritárias também em matéria econômica, por­
que, como pontificou o Presidente Geisel em uma de suas mensagens
ao Congresso, em 1976, "antes de tornar-se um ente político, o cida­
dão precisa ter sido um indivíduo de físico sadio e limpo, precisa ser
também consciente, racional e sociabilizado." Ou de "escovar den­
tes", como sugeriria mais tarde seu sucessor.
As divisões de elite lançadas à batalha do crescimento pelo esta- 1•
do-maior da tecnocracia foram as empresas públicas. Ao lado das an-- '
tigas, como as da área siderúrgica, de mineração e de petróleo, surgi­
ram novas, algumas delas simples funções tradicionais de Governo
que assumiram a roupagem de empresa por economia operacional e
maior eficiência. Naturalmente, por responderem ao comando �ireto
do Executivo, as empresas públicas eram os entes mais moldáveis ao
seu plano de campanha, mas no seu movimento elas arrastavam atrás
de si todo um bloco de interesses privados que se articulavam em tor­
no delas, como fornecedores de insumos ou como clientes. Assim, en­
quanto a economia esteve em expansão, a expansão do setor público
empresarial não pareceu em conflito com o interesse privado, nem que
lhe tivesse roubado espáço. Na realidade, vinha abrindo ·espaço pará si
e para ele.
Tanto as "estatais" como as empresas privadas, contudo, tinham
de subordinar sua marcha ao ritmo imposto pelo acesso às linhas de fi.
nanciamento, definidas pelo Governo em suas políticas financeira, de
preços, de créditQ e tribtJ.tária. A partir de 1968, o Executivo concen­
trara em suas agências de Administração indireta um crescente volume
de recursos, que redistribuía sob a forma de programas subsidiados,
incentivados ou simplesmente indicados como prioritários aos agentes
da economia. Por outro lado, através de seu poder de normatização do
crédito interno e da entrada de recursos externos, pela manipulação
cambial, comandou uma política de endividamento público e privado
segundo uma concepção cuja pr.emissa básica consistiu em admitir
como indispensável ao desenvolvimento acelerado a incorporação de
poupança externa sob a forma também de empréstimos monetários,
além dos investimentos diretos.

32
Nesse plano geral de batalha, a empresa pública ou de economia
mista ajustou seus movimentos em dois níveis: primeiro, pautou suas
intenções de crescimento de acordo com regras de eficiência econômi­
ca e de gestão tomadas de empréstimo à empresa privada, cuja roupa­
gem lhe fora imposta; segundo, definiu uma tática de financiamento
de suas inversões perfeitamente adaptada à estratégia de extroversão
financeira da política econômica do Goyerno, tomando empréstimos
em dólar para gastar também e sobretudo em cruzeiros, internamente.
Enquanto as condições de crédito no euro-mercado estiveram
francamente favoráveis ao tomador, as estafais puderam participar,
sem restrições, do carnaval do endividamento externo, sem prejudicar,
e provavelmente favorecendo com encomendas, os interesses internos
privados a· elas coligados. No entanto, quando o ciclo da atividade
econômica global se reverteu, a partir de 1975, o que antes parecia um
equilibrado exercício de cooperação entre o privado e o estatal em
prol do crescimento, começou a ser visto como odioso privilégio, uma
vez que a austeridade imposta pelo mercado ou pela política econômi­
ca atingia desproporcionalmente os dois setores. Datam de então os
primeiros vagidos da mais recente campanha antiestatizante.
Cada um dos vários "feudos" em que se retalhou a Administra­
ção pública brasileira articula um segmento definido de interesses pri­
vados, e representa a si e a estes últimos perante o Governo central.
Essa foi a forma particular encontrada pelo Estado autoritário para
"legitimar-se" perante a sociedade dos negócios sem necessidade de
instituições democráticas formais: muitas das agências públicas fun­
cionam como foros de negociação e de intermediação de interesses pri­
vados, uma espécie de parlamento burocrático, corporativista, que
prepara as decisões de última instância a serem encaminhadas à esfera
superior do Governo, mediante o debate prévio das questões entre os
"executivos" estatais e os representantes das associações de classe dos·
empresários.n Isso dá à empresa estatal uma dupla identidade, uma
associada à função específica que lhe atribui o estatuto legal e o progra­
ma de Governo, como produtora de bens ou serviços; outra, enquanto
instância de mediação de interesses, que embora não entrando em coli­
são direta com suas funções legais explícitas, pode conflitar com os ob­
jetivos gerais de política econômica conjuntural.
Não se trata, aqui, da identificação da burocracia com uma classe
ou categoria social autônoma em relação à sociedade e ao Governo.
Entendo que a burocracia estatal brasileira, enquanto categoria social,

l .l Do lado dos empresários, houve adaptação ao esquema corporativo, só repudiado,


cm favor da luta pela democratização, quando esse processo de negociação nos níveis
intermediários do Estado deixou de ser eficaz. Como mostrou Renato Raul Boschi na
sua excelente tese transformada em livro, Elites Industriais e Democracia, Edit. Graal,
1979.

33
tem o mesmo grau de "neutralidade" frente às classes sociais como a
de qualquer outro país capitalista. Também não acredito que esteja
próxima de tornar-se uma "nomenklatura" do tipo da soviética, capaz
de impor como gerais os seus próprios interesses de grupo. Temos vis­
to, sobretudo depois que explodiu a crise do balanço de pagamentos,
como o ·Governo é capaz de reorientar rapidamente as ações de suas
"poderosas" empresas quando existe de fato uma determinação nesse
sentido.
A Q.issonância política entre setor público e setor privado, tradu­
zida no acalorado debate ideológico que sempre renasce nas crises,
ocorre geralmente porque segmentos isolados da comunidade empre­
sarial não reconhecem a articulação de interesses com o setor público,
a não ser quando a articulação se dá com eles próprios. A Petrobrás
tornou-se um símbolo hostilizado de estatização, mas não para os em­
presários de bens de capital, muitos dos quais surgiram, desenvolve­
ram-se ou tornaram-se grandes a partir de suas encomendas de equi­
pamentos. Fenômeno semelhante ocorreu com a Vale do Rio Doce,
cm cuja órbita giram várias indústrias brasileiras de equipamentos de
mineração. O oligopólio da construção pesada, por sua vez, seria o úl­
timo a reclamar dos gastos públicos exagerados, cobertos por crédito,
enquanto os projetos correspondentes das grandes obras ci_v is de estra­
das, de usinas hidrelétricas e até nucleares estavam sendo carreados
para suas carteiras. "O fato é que a opção hidrelétrica do nosso siste­
ma de energia elétrica muito contribuiu para a formação de um setor
de construção pesada na economia brasileira, a ponto deste setor ter
um peso decisivo na escolha das futuras usinas, onde muitas vezes o
critério do custo não deve ter sido prioritário", escreveu uma especia­
lista.14
A! partir de 1976 começaram a rachar os blocos de interesse tam­
bém internamente, o que está na origem de um maior vigor retórico na
campanha antiestatizante. Contudo, não por força da expansão autô­
noma das "estatais", de seu avanço sobre espaço privado, e sim por
causa do seu ajustamento disciplinado à política econômica global.
No Estado "feudalizado", o Governo central praticamente delegou a
seus sátrapas a definição das políticas setoriais de investimento, limi­
tando-se a agregar num frouxo registro de intenções orçamentárias a
consolidação das despesas pretendidas. A rigor, não existia orçamento
de investimentos consolidado, porque não faz sentido atribuir esse
nome a uma encadernação de contas onde a receita global se ajustava
pela rubrica "recursos a definir", enquanto a despesa correspondia a
um aditamento de estimativas de gastos estabelecidos à margem de de·
cisões políticas pelo critério de prioridades econômicas globais.

14. Hildete Pereira Melo Hermes de Araújo, "O Setor de -Energia Elétrica e a Evolu­
çilo Recente do Capitalismo no Brasil", Tese de Mestrado na Coppe-UFRJ, 1979.

11\
No 2Y PND, a plasticidade orçamentária fundamentava-se numa:
implícita expectativa de crescimento econômico nos mesmos padrões
do lustro anterior. "Diversos programas e projetos haviam sido de­
marcados com esquemas de financiamento onde a rubrica 'fundos a
definir' era fonte substantiva. Para não fazer referência ao fato de que
no Programa Ferroviário 16" 0 dos seus 30,5 bilhões de cruzeiros te­
riam como origem a enigmática fonte de 'acréscimos esperados na re­
ceita operacional'. Em segundo lugar.já era transparente ao nível ma­
croeconômico a suspeita de que os programas e projetos enunciados
pelo 29 PN D não somente supunham a manutenção da taxa de investi­
mentos flOS níveis alcançados no auge cíclico, mas de fato exigiriam a
necessidade de sua elevação para um novo patamar em torno de 35��
do PIB. A materialização sincronizada das diretivas estratégicas públi­
cas e privadas seria possível no Japão, mas dificilmente poderia ocor­
rer no Brasil, à luz dos pactos e restrições estruturais já enunciadas."')
As metas excessivamente ambiciosas do Plano eram razão sufi­
dente para seu fracasso. Porém, a economia brasileira defrontou-se,
desde 1974, com condições externas extremamente adversas que tive­
ram profundo impacto interno. O recurso ao endividamento, que no
período 1968-73 refletia uma deliberada política de extroversão finan­
ceira, sem relação direta com as necessidades de financiamento de im­
portações, tornou-se uma necessidade premente no triênio 1974-76,
cm face do elevado déficit comercial e de serviços. Agora que era uma
necessidade real, revelava-se extremamente oneroso, com a elevação
dos juros e dos spreadr (margens de risco) cobrados a tomadores brasi­
leiros pelos banqueiros internacionais. Além disso o estoque da dívida
previamente acumulada começou a pesar nos serviços financeiros cres­
centes. atados às taxas de juros ascendentes no euro-mercado.
Enquanto no mercado financeiro doméstico adotavam-se, desde
1974. alguns remendos ortodoxos sobre um tecido institucional esgar­
çado - em especial a desvairada política de uso do mercado aberto
com propósitos de controle de liquidez monetária, pelo enxugamento
da entrada de recursos externos-, a política industrial, ou o que exis­
tiu dela nas formulações do 2<.> PND, manteve-se expansionista pelo
menos até 1976. Jú em 1975, ressentido com a queda de seus investi­
mentos em relação aos do setor público e ao mesmo tempo assustado
com os sinais de recrudescimento inffacionário, o setor privado au­
mentara suas críticas à "estatização", à ocupação dos espaços priva­
dos pelo Estado e ú concorrência desleal das empresas públicas na cap­
tação de recursos no mercado interno.
J\ despeito da falácia desses argumentos, em 1976 o Governo as­
�umiu os pressupostos búsicos da crítica e começou a delinear um pro-

15. Carlos Lessa, lese cilada, p. 163.

35
grama metódico de cortes de gastos públicos e de "desestatização". A
implementação dessa política implicou a reorientação dos investimen­
tos estatais de acordo com o objetivo básico da política econômica
global: a captação de recursos no exterior para equilibrar o balanço de
pagamentos. Em alguns poucos setores, como nos de transportes e co­
municações, os cortes alterariam de fato os programas traçados pre­
viamente. No geral, as "estatais" readaptaram suas fontes de recursos
ao objetivo de política econômica, extrovertendo-se mais ainda.
Assim, a participação do setor público na captação de recursos
externos evoluiu de 24% em 1972 para 51 % em 1976, em relação aos
empréstimos ao amparo da Lei 4131 (tomados por empresas não fi­
nanceiras). A tendência seria reforçada nos anos seguintes, até atingir
77% em 1980. Para empurrar suas empresas para fora, o Governo não
apenas criou empecilhos institucionais ao acesso delas ao mercado fi­
nanceiro doméstico como reduziu sua capacidade de geração de recur­
sos próprios, limitando a 20% os aumentos de tarifas e de preços de al­
guns insumos básicos produzidos pelas estatais nos anos de 1976 e
1977, quando a inflação foi de 46,3% e 38,8%. Manteve-se dessa forma
o ritmo do programa de expansão siderúrgica (estágio 3), de insumos
agrícolas, de não-ferrosos, de hidreletricidade e nucleo-eletricidade,
apoiado basicamente em créditos do exterior.
***
A divisão da Administração pública em satrapias, nas quais as
empresas estatais figuram como instrumento de poder político dos
mandarins da República, deixou na opinião pública e equívoca im­
pressão de que tínhamos um regime tecnocrático. Certamente o argu­
mento técnico tem lastreado muitas decisões políticas na órbita admi­
nistrativa, e contribuído dessa forma para mistificar o propósito últi­
mo dessas decisões. Contudo, não existiu em nenhum momento da
história recente brasileira uma tecnocracia do tipo francês ou italiano.
O Governo sempre conseguiu sobrepor-se aos quadros técnicos das
empresas públicas quando, por motivos estratégicos ou por simples
reajustes conjunturais de política econômica,. quis enquadrá-las numa
nova orientação.
Durante o "milagre", sobretudo depois que a Reforma Adminis­
trativa permitiu a generalização de critérios privados como parâmetro
de avaliação das empresas estatais, cujo financiamento podia apoiar­
se na "verdade tarifária" e na capacidade de alavancagem de emprésti­
mos externos, a política econômica global e a política microeconômica
das "estatais" convergiram na mesma direção da exploração cabal das
possibilidades de crescimento. Avaliadas por critérios de eficiência pri­
vada, as administrações públicas indiretas tenderam a comportar-se
como tal, e isso foi reconhecido como positivo enquanto perdurou a
prosperidade. Era a evidência de que o Estado também podia ser efi-
ciente. Na reversão do ciclo econômico, a partir de 1974, desacelerou­
se o investimento privado em relação ao público, preparando o terre­
no para o conflito entre as duas órbitas. Nos dois primeiros anos de
tentativa de implementação do 29 PND ainda conviviam, no interior
do aparelho de Estado, os objetivos de política econômica global e os
objetivos específicos das empresas públicas e mistas, até o momento
cm que o Governo rendeu-se à idéia de que era necessário cortar os
gastos de investimento do setor público para reduzir as pressões infla­
cionárias.
Nesse momento, ficou claro que o poder decisório na Administra­
ção indireta era de fato uma extensão do Governo, e não que o Gover­
no fosse uma extensão do poder tecnocrático, encastelado nas "esta­
tais". A propalada resistência do segµndo escalão às decisões do Exe­
cutivo sucumbiu sempre, sem exceção, quando foi posta à prova. A
burocracia da Eletrobrás, ou melhor, seus quadros técnicos especiali­
zados se opuseram tenazmente ao Acordo Nuclear com a Alemanha, e
foram simplesmente derrotados. Tentaram de fato sabotá-lo parcial­
mente dentro da programação de longo prazo da expansão do setor
elétrico, no chamado Plano 92, mas novamente tiveram de render-se à
força política maior. 16 Poder-se-ia supor que o Acordo, subõrdinado a
interesses estratégicos maiores, não seja um bom exemplo. Mas a bu­
rocracia especializada da Eletrobrás também se opôs à construção de
Tucurui e, de novo, não teve êxito, embora neste caso nenhum interes­
se estratégico estivesse em jogo ou pudesse sobrepor-se aos argumen­
tos técnicos levantados. Na Petrobrás, sua burocracia francamente
contrária aos contratos de risco teve de engoli-los silenciosamente,
como mais tarde engoliria os contratos tecnicamente ainda mais injus­
tificáveis com a Paulipetro de Paulo Maluf.
Mesmo naquelas agências públicas tradicionais, como o BNDES
e o Banco do Brasil, cujo corpo especializado sobrevivia imune às flu­
tuações de política econômica e, portanto, parecia capaz de manter:
uma política própria de longo prazo a despeito dos assaltos conjuntu­
rais a seu poder de decisão, não creio que tenha se caracterizado uma
tecnocracia. No caso do antigo BNDE, logo após o golpe de 1964 hou­
ve uma tentativa de Roberto Campos de fazê-lo curvar-se à orientação
ortodoxa da política econômica recessionista, e embora circule desde
então uma fábula segundo a qual o presidente Garrido Torres, ali co­
locado para dobrar a vontade do monstro, tenha sido cooptado pela
burocracia do banco e assumido seu ponto de vista, o fato realmente

16. O Plano 92, de 1977, que insistia em indicar a instalação de quatro usinas nucleares
para funcionamento até 1992 como a opção mais econômica, dentro do programa ener­
gético, representou uma discreta discordância técnica em relação às projeções do Acor­
do Nuclear e por isso ficou confinado dentro da Eletrobrás, somente vindo a público
como ,documento clandestino. No Plano 2000, oficializado, foram feitos os devidos ajus­
tes para compatibilização do programa com os compromissos com os alemães.

37
relevante é que houve uma alteração fundamental que se traduziu, de
saída, por uma perda de substância política e econômica da institui­
ção. A autonomização crescente das outras estatais, a passagem de
parte do corpo técnico planejador para o IPEA e as restrições orça­
mentárias limitaram-no a simples repassador de recursos.
Em 1974, o Governo Geisel conferiu ao banco uma fonte de revi­
talização financeira, o PIS-Pasep, e uma parcela de poder para a im­
plementação do programa de substituição de importações de insumos
básicos e de bens de capital. Com isso, acentuou-se uma tendência já
antes manifestada de evolução do banco público de investimento para
agência negociadora e repassadora de recursos, por delegação do Te­
souro. Assim, de financiador por excelência da infra-estrutura econô­
mica, dos transportes à siderurgia, o BNDE tornou-se progressiva­
mente um suporte do setor privado produtor de bens de capital, arti­
culado ou não aos grandes blocos liberados pelo setor público. O S
que lhe foi acrescentado recentemente apenas acrescenta mais um elo
de ligação entre a caixa do Tesouro, os governos estaduais e os "forne­
cedores" selecionados mediante discreta, mas decisiva, interveniência
da Seplan. 11
***
Talvez o único corpo efetivamente tecnocrático embutido na Ad­
ministração seja o do Itamarati, assim mesmo limitado à diplomacia e
excluído da política econômica internacional, também_avocada pela
Seplan. Por isso mesmo a diplomacia externa é o único setor do regime
onde se nota alguma coerência. É verdade que, no Governo Castello
Branco, o Brasil enviou tropas para legitimar no âmbito do Continen­
te a decisão norte-americana de liquidar a revolução populista de São
Domingos, mas naquele momento os militares estavam próximos de­
mais do golpe de 64 pàra não se sentirem tentados a impor à política
externa suas concepções estratégicas de alinhamento incondicional a
um dos blocos. Desde então, o ltamarati foi impondo ao conjunto do
Governo sua visão do mundo e estruturando uma diplomacia inde-

l 7. A criação do Funpar, com urna linha de CrS 100 bilhões para aplicação em 1983,
ilustra até que extremos se levou esse processo de desvirtuamento operacional do
BNDES. O enquadramento de projetos nesse programa passou a ser decidido direta­
mente em Brasflia, por urna comissão com representantes da Seplan e do Ministério da
Fazenda, a fim de escapar à apreciação do corpo especializado do banco. Essa comissão
reve!ou-se particularmente sensível à atuação de "consultores" privados, como o notó­
rio Alvaro Leal, antigo sócio do secretário-geral da Seplan, José Flávio Pécora, no escri­
tório Pécora & Leal, sucedido pela Expande. Assessor da Cornexport nos negócios espe­
ciais com a Polônia, intermediário de Assis Pairn Cunha nas especialfssimas relações en­
tre o Grupo Coroa-Brastel e·a área econômica do Governo, antes da intervenção, Álva­
ro Leal foi o mais ativo "liberador" de operações Funpar em 1983, na qualidade de con­
sultor remunerado dos grupos beneficiados.

38
pendente cuja singularidade é a aberrante contr!1diçâo com a política
interna e a própria extensão internacional da política econômica, esta
excessivamente dependente dos vínculos econômicos e sobretudo fi­
nanceiros com o Primeiro Mundo. 18
***
O efeito interno "modernizante" da Reforma Administrativa e de
sua coirmã, a Reforma Tributária, limitou-se ao setor "empresarial"
da burocracia do Estado. Sua estrutura de financiamento, autônoma
cm relação à própria Administração central quando as fontes de recur­
sos não transitam pelo Orçamento Fiscal, reflete-se no que se conhece
como orçamento consolidado das "estatais", só recentemente reunido
num esquema contábil formal pela Seplan. Esse orçamento constitui a
hase material da intervenção direta do Estado na economia; ao lado
dele, as contas ativas do Orç?mento Monetário representam a base de
financiamento da intervenção indireta, através de subsídios e incenti­
vos financeiros, aos quais vieram açrescentar-se os crescentes favores
tlc ordem fiscal.
Os dois orçamentos inflaram a partir de deformações institucio­
nais gestadas à sombra do AI-5, ainda no primeiro mandarinato do
Ministro Delfim Netto. O "empresarial" cresceu sobretudo pelo re­
curso ilimitado ao financiamento externo; o rr:onetário, pela explosão
da dívida interna e mais tarde do crédito subsidiado. Mais grave, po­
rém, a estrutura tributária, remontada em 1966 já com um viés centra­
lizador e concentrador do poder fiscal da União, tornou-se um instru­
mento de ação tópica nas mãos do gestor do "milagre", armadas do
instituto do decreto-lei e inteiramente livres em face de um Congresso
impotente. A combinação de subsídios creditícios e incentivos fi�cais
deslocou do orçamento fiscal para os dois outros, ambos abertos, os
encargos do financiamento estatal da expansão econômica, dando às
contas públicas "visíveis" uma aparência de ordem na época do "mila­
gre". Com efeito, o Orçamento da Uniãó, que chegou a apresentar em
1962 e 1963 déficits superiores a 4,2% do PIB, equilibrara-se no fim da
década e já era superavitário em 1973.
Esses dois tipos básicos de orçamento delimitaram as fronteiras
de evolução do funcionalismo público no Brasil, em todos os níveis,
cm correspondência direta com a evolução de suas fontes de recursos.
O orçamento "encoberto", financiado pelos resultados operacionais·

18. Exatamente por aparentar ser um reduto de autonomia num Governo já rendido
110 sistema financeiro internacional, o Itamarati tem sido indicado como uma alternati­
vu conveniente para a condução da renegociação, cm termos menos subservientes, da
divida externa brasileira. Em setembro de 1983, o Senador Albano Franco, presidente
da Confederação Nacional da Indústria, fez uma convocação pública nesse sentido.

39
da própria atividade "empresarial" do Estado e por empréstimos, livre
de controles centrais, ajusta-se à disputa de mão-de-obra qualificada
no mercado de trabalho com a mesma flexibilidade do setor privado.
O orçamento "visível", formalmente submetido ao Congresso e limi­
tado pela receita fiscal progressivamente aviltada, bloqueia a possibili­
dade de se garantir um mínimo de dignidade ao servidor público tradi­
cional, pelos baixos níveis de remuneração, pelas condições péssimas
de trabalho, pelo recurso recorrente ao expediente mesquinho dos rea­
justes de vencimentos aquém da taxa inflacionária.
Servidores por excelência da população pobre, porque os ricos
obviamente recorrem a serviços particulares pagos, essa ampla faixa
de funcionários concursados, que vai dos professores aos médicos, tem
muito pouco a oferecer em qualidade de serviço e muito menos a espe­
rar da sociedade em respeito por sua função. Por aí, gera-se um terrí­
vel círculo vicioso de deterioração do serviço público. Escaparam ape­
nas os "DAS" - os admitidos sem concurso para funções de "Direção
e Assessoramento Superior", eufemismo que encobre a distinção do
funcionalismo direto entre a casta dos apaniguados � a dos deserda­
dos. Também escaparam os militares, "comprados" através de expe­
dientes como os adicionais cumulativos, reajustes mais generosos de
proventos e a transformação da parte preponderante do soldo em "in-
denizações" isentas de Imposto de Renda.
Em face desses servidores, os "celetistas" da Administração indi­
reta apresentam-se como ·privilegiados - como se o neologismo não
significasse apenas que se dá a eles os direitos básicos assegurados pela
CLT ao trabalhador comum no setor privado. Claro que também aqui
houve deformações, mas em sentido contrário: são as mordomias, as
participações no lucro, os salários adicionais, os planos de aposenta­
doria suplementados generosamente à custa do Estado, etc. Contudo,
os reais privilégios e mordomias não costumam descer abaixo do
nível dos mandarins � de seu séquito mais próximo. Quando descem,
numa ou noutra empresa isolada, apenas refletem a deformação bási­
ca de não ter-se submetido a Administração indireta a um estatuto ou
código de trabalho comum, da mesma forma como não foi submetida
a contróle de espécie alguma em suas outras dimensões.
***
A disfuncionalidade - A crise de 1975/76 suscitou o agravamento
do conflito sempre latente entre setor público e privado, e num segun­
do nível expôs as contradições internas na própria Administração
pública, sobretudo entre as empresas produtivas do Estado e o Gover­
no. Este último, que pela Reforma Administrativa havia soltado as ré­
deas da administração descentralizada, eximindo-se de seu controle
polltico quando dispensou a apreciação legislativa de seu orçamento
consolidado de investimentos, passou a desconhecer a si e a seus obje-

,1()
tivos nos programas das "estatais". Num primeiro momento, embora
capitulando à idéia de comprimir tarifas e cortar gastos públicos glo­
bais, Reis Velloso ainda tentou estabelecer uma linha de defesa do se­
tor estatal, de inequívoca importância na sustentação do investimento
global na economia, através de um documento onde procurou expor a
posição do Governo em relação ao tema da estatização. 19
No entanto, na costura dos interesses concretos entre empresas
estatais e o setor privado, este último, cegado pela ideologia da estati­
zação, não compreen,deu imediatamente que a origem do descompasso
entre a retórica oficial privatizante e a prática do regime autoritário es­
tava menos na política empresarial do setor público que na condução
da política econômica global. Na medida em que as estatais eram em­
purradas para o exterior, como_ instrumentos de captação de divisas,
perdia-se o elo essencíaf na cadeia de repercussões do investimento
público na economia, desde que ao crédito externo passou a vincular­
se crescentemente o suprimento de equipamentos do exterior.
Ao contrário do que seria de esperar-se de uma tecnocracia, as
"estatais" se curvaram disciplínadamente à reorientação da poHtica
econômica, cujo resultado, hoje amplamente reconhecido, é o da esta­
tização da dívida externa, por um lado, e por outro a desestruturação
l'inanceir.a das empresas públicas. Tudo isso se fez também à custa da
desarticulação entre inversões públicas e o sistema produtivo interno,
acentuada desde 1976, com a ruptura dos blocos de interesse que se su­
punham sólidas estruturas mistas criadas pelo neocapitalismo brasilei­
ro como força política autônoma. Na realidade, esses blocos resisti­
ram apenas enquanto o tênue esforço burocrático pôde exprimir-se em
algumas agências oficiais melhor aparelhadas, como o antigo BNDE e
sua Finame. Em outras, a aguda necessidade de recursos "livres" fez
com que o princípio de fidelidade aos interesses coligados privados, in­
ternos, cedesse lugar à sujeição às imposições do sistema financeiro in­
ternacional e da indústria exportadora a ele vinculada.
Assim, já "em dezembro de 1976 foi baixado um decreto-lei libe­
rando a RFFSA das exigências da Lei do Similar Nacional na impor­
tação de equipamentos para a Ferrovia do Aço. O. protocolo de finan­
ciamento com bancos ingleses estipulava a compra de 50% dos equipa-

19. "Ação para a Empresa Priva�a Nacional", documento de princlpios aprovado


pelo Presidente da República, em 1976, quando se criou também um Grupo de Traba­
lb, para sugerir alternativas práticas de fortalecimento da empresa privada nacional.
llm dos curiosos resultados foi a reafirmação do modelo "tripartite" como fórmula
mais eficaz de conciliação de esforços de investimento em algumas áreas prioritárias,
a1ravés da Resolução n9 9 do Conselho de Desenvolvimento Econômico, no exato mo­
mento em que o modelo estava sendo objeto de mais uma sabotagem da Dow Química
.:0111 a cumplicidade de altos dignitários da República. Ver "caso" Dow Química, adian-
1<.:.

41
mentos em mercados europeus. Os empresários nacionais, alegando
poder fornecer 85%, não liberaram a RFFSA dos preceitos do similar.
Veio o decreto impondo o esquema. A respeito, um empresário co­
mentou: 'O Governo faz o que bem entende. Quem é que vai ter a co­
ragem de contestar um ato do Presidente?' No mesmo mês houve a
discussão do Projeto Açominas. Apoiado no protocolo de financia­
mento de US$ 1 bilhão com um poo/ de bancos liderado por Morgan
Gransfell, a Açominas propunha para a indústria nacional. 50%. A
ABD 1B e ABINEE pretendiam 80%. Sacrificando o esquema de finan­
ciamento da Açominas foi arbitrada uma percentagem de 60%. 'Niti­
damente insatisfeito, (Cláudio) Bardella conseguiu somente, e em
princípio, que o equipamento de sinterização seja retirado dos italia­
nos em favor dos nacionais'. Uma participação de 60%, segundo ele,
restringia a indústria nacional a fornecer apenas equipamentos de bai­
xo avanço tecnológico, uma vez que o 'filé mignon' estaria comprome­
tido com os europeus." 2° Conflito igualmente agudo ocorreu entre a
A BD 1B e o Governo na definição do índice de nacionalização da side­
rúrgi<.:u de Tubarão, também considerado insatisfatório.
Ao ludo da reorientação para o exterior de suas empresas, na du­
pla dimensão da articulação financeira e industrial, o Governo impôs
cortes gerais nos gastos públicos após 1976, quando a política do Mi­
nistro Mário Simonsen passou a prevalecer sobre a de Reis Velloso.
Isso afetaria necessariamente a indústria de bens de capital, que havia
mais do que duplicado sua capacidade instalada no período 1973-75,
em parte induzida pela sinalização otimista do 29 PND, com o concur­
so estimulante de generosos financiamentos estatais. Não surpreende,
pois, que tenha sido a indústria de bens de capital que forneceu o prin-
. cipal contingente social crítico, do lado dos empresários, contra a polí­
tica econômica extrovertida, as decisões fechadas e o próprio regime
autoritário, enfim interpretado também por parte do patronato como
responsável, em última instância, pelo arbftrio contumaz em matéria
econômica.
O� cortes globais nos gastos do setor público, inclusive a redução
de 25% das importações das estatais em 1976, relativamente a 1975,
não obedeceram a qualquer propósito seletivo ou de reorientação de
prioridades, quanto aos primeiros; ou de substituição por encomendas
internas, quanto aos segundos. Como se repetiria nos anos seguintes,
limitava-se o Governo a atuar sobre a demanda global, a pretexto de
reduzir pressões infl_<!�_ionárias. Não submeteu à discussão pública os
critérios de investimento adotados, sua prioridade econômica ou so­
cial, até mesmo porque não haveria um foro adequado a esse tipo de
debate, pois o Congresso, mesmo que tivesse vontade para isso, sob os

20. Carlos Lessa, tese citada, p:ig. 140.

42
estímulos das eleições de 1974 e 1978, não tinha poderes efetivos sobre
os orçamentos. Como regra geral, o Executivo manteve os projetos
com capacidade de alavancar empréstimos externos, subvertendo até
mesmo a ordem normal de execução para apressar a entrada das divi­
sas correspondentes.
Contudo, a eficácia dos cortes, na execução orçamentária gtobal,
era tanto mais desprezível quanto mais se estimulavam algumas "esta­
tais" a cobrirem com empréstimos externos os seus programas de in­
versões. Isso dava uma aparência de equilíbrio tanto ao orçamento
consolidado das unidades empresariais do Governo, como ajudava a
compor a posição superavitária do Balanço de Pagamentos, que fe­
chou em 1979 com um saldo espetacular de reservas superior a US$ 9
bilhões. "Fechava-se, assim, um círculo vicioso no qual a ampliação
dos investimentos públicos gerava as necessidades de mais emprésti­
mos externos, de um lado, e as necessidades de se equacionar o finan­
ciamento do Balanço de Pagamentos gerava a necessidade de novos
projetos governamentais suficientemente atraentes para seduzir os
banqueiros internacionais a aplicarem recursos de empréstimo no Bra­
sil. "21
* **
A degeneração - Na mudança de Governo, em 1979, o Ministro
Mário Simonsen, que parecia investido de todos os poderes para a
condução da política econômica, revelou-se menos preocupad� de iní­
cio com as unidades empresariais do Estado que com o Orçamento
Monetário, a fonte mais visível das pressões deficitárias nos gastos
globais do setor público. Esbarrou, porém, no trator agrícola do Mi­
nistro Delfim Netto e, hostilizado como recessionista, desceu a rampa
do Planalto de volta ao remanso acadêmico, para tornar-se aí um dos
críticos de maior vigor aos descalabros orçamentários que até há pou­
co ajudara a administrar.
Quanto ao novo titular da Seplan, que assaltou o posto com a
promessa de "encher a panela" do brasileiro e a recomendação aos
empresários para "esquentarem as máquinas", também não demons­
trou, no começo, coerentemente com o neodesenvolvimentismo,
maior empenho em pôr sob controle os orçamentos públicos. Deixou
ao antigo presidente do Banco Central, Carlos Langoni, as querelas
impotentes sobre equilíbrio orçamentário, soltando as amarras do in­
vestimento sobre uma estrutura de financiamento estuporada. Em
conseqüência, ao crescimento de 8'%; da economia de 1980, uma taxa
espetacular no mundo em crise, contrapôs-se o salto do patamar da in-
11ação, dos 50% para os 100%, e o esgotamento virtual das reservas in-

.!l. Affonso Celso Pastore, pronunciament<'

·43
ternacionais, ambos os efeitos acelerados pela maxidesvalorização
cambial de novembro de 1979.
No entanto, ainda não seria aí que se alteraria o padrão funda­
mental de relação, no campo orçamentário, entre o Executivo central e
as agências e empresas da Administração pública indireta. As "esta­
tais" continuaram, até o "setembro negro" do sistema financeiro in­
ternacional, em 1982, como excelentes instrumentos de alavancagem
de empréstimos externos "livres" e seus programas de investimento,
um bom pretexto para atrair banqueiros privados a financiarem o
combalido Balanço de Pagamentos do País como contrapartida de
crédito de fornecedor, obtido à custa da ociosidade da indústria do­
méstica no permanente rodízio externo das autoridades econômicas
brasileiras. Somente com a derrocada externa, a partir de 1982, quan­
do a comunidade bancária cancelou as possibilidades de financiamen­
tos novos a empresas brasileiras e passou a exigir "ajustamentos" ii;i­
lernos para a rolagem da dívida passada, é que o Governo empénhou­
se efetivamente em controlar os gastos globais do setor público, sobre­
tudo os da Administração indireta.
Com efeito, o investimento das unidades empresariais não finan­
ceiras do Estado controladas pela Sest ainda cresceu, em termos reais,
5,6% em 1981 e teve um decréscimo de apenas 0,5% em 1982. Em 1983,
porém, a queda estimada era de 24,5% e em 1984, de 20, 1%. Para o to­
tal das unidades controladas pela Sest, aí incluídas autarquias sem
fontes de recursos próprias, o investimento cresceu 4,2% em 1981 e
teve queda de 1,6% no ano seguinte, mergulhando em 22,3% negativos
em 1983 e -23,9% em 1984 (estimativos). 22
Trata-se agora de política de terra arrasada, o último ato de dege­
neração das empresas estatais desde a Reforma Administrativa. Pouco
antes. de ser derrubado do Banco Central, ao receber o troco por sua
mal-sucedida tentativa de reorientar o processo de renegociação da
dívida externa brasileira, Carlos Langoni acusava a política econômi­
ca, de cuja responsabilidade ainda partilhava, de "socialmente injusta
e economicamente ineficaz". Exprimia o ponto de vista do FMI, pelo
menos quanto ü segunda parte da sentença. Quanto à primeira, mes­
mo que não íosse seu propósito, exprimia o reconhecimento óbvio de
que o "ajuste" orçamentário proposto, aplicado às cegas como cortes
globais, sem critério de prioridade, levará à derrocada da estrutura do
emprego e da renda, num País desprovido dos mais elementares ins­
trumentos de proteção social, geralmente a cargo da parte do Estado
que, no Brasil, foi exatamente a que se atrofiou diante do Estado­
empresarial. Como Cronos, o deus mitológico que devorou seus fi-

22. Conjuntura Econômica, janeiro de 1984, pág. 51. Dados extraídos das "Notas à
murgcm do orçamento Sest 1984", por Margaret Hanson Costa.

44
lhos, o Estado brasileiro, raivoso com a desordem das próprias contas,
destrói suas criaturas indiscriminadamente, as sadias e as atrofiadas,
na compulsão de não cometer o quinto perjúrio seguido diante do
FMI.
Inútil, porque a herança genética atrofiada do regime autoritário
já não está apenas reproduzida em todo o tecido econômico, mas per­
verteu-se. A correção monetária, cuja origem longínqua está associada
ao propósito de garantir o valor real da receita tributária em favor da­
quele esquecido Estado prov,edor de serviços básicos, acasalou-se com
a dívida acumulada, externa e interna, base de expansão do Estado­
cmpresarial, para produzir os mais espetaculares défícits do setor
público de que se tem notícia, só que agora pelo lado das contas finan­
ceiras do Governo.23 Como a dívida externa assumida de fato pelo
Banco Central adquiriu existência própria, independentemente do to­
mador nominal, ela tende a produzir déficit mesmo se a base empresa­
rial do Estado for liquidada em sua existência física. Pior do que isso,
o resultado tem sido mais custo financeiro, de um lado, e queda de re­
ceita fiscal, de outro, porque o corte brutal do investimento público,
agora efetivo porque existe um primeiro-ministro investido de plenos
poderes sobre o conjunto do Governo, desencadeia um efeito recessivo
cumulativo em toda a economia.
A perversão retrata-se por inteiro nas intenções orçamentárias de
1984: corte de 23,9% reais no investimento das unidades empresariais
do .Estado, não financeiras; aumentos reais de 5% para tarifas de ener­
gia elétrica (um contra-senso diante da oferta abundante e da contra­
ção da demanda); corte dos subsídios diretos e extensão da correção
monetária integral aos empréstimos das linhas prioritárias do Orça­
mento Monetário, com a quase total eliminação do chamado subsídio
implícito de crédito agrícola e de exportação; elevação real da carga
1 ributária através de "truques" diversos, desde aumento de alfquotas à
imposição de impostos novos em caráter retroativo, até a simples ante­
cipação de receitas de tributos e taxas.
Todo esse esforço de caráter não mais recessivo, mas depressivo,
tem como objetivo final a transferência, no orçamento consolidado, de
< 'r$ 5 trilhões - metade de todo o investimento previsto das unidades

n. A correção monetária e cambial dos títulos públicos respondeu, em 1983, por 78%
da expansão nominal do déficit consolidado de todo o setor público, segundo o Informa·
riro Mensal de janeiro·84, do Banco Central. Foi tendo em vista essa situação que o
"Documento dos Empresários" do Forum Gazeta Mercantil, em agosto de 1983, preco-
111zava a transferência de jure para o Estado dos débitos em dólares: "Esta medida é ne­
,·cssária para o saneamento financeiro das empresas públicas - responsáveis por dois
lcrços �a dívida total-, das empresas privadas e para a salvaguarda do sistema bancá­
rio. Ê mister que ao se adotar esta decisão se acautele o interesse das finanças do Estado
�0111 contrapartidas adequadas."

45
controladas pela Sest - do orçamento fiscal para o monetário e deste
para a cremação final na conta financeira. Assim, no orçamento coor­
denado pela Sest, o acesso ao crédito interno das unidades empresa­
riais e autarquias do Estado está limitado à expansão nominal de 89%,
"enquanto os encargos financeiros internos têm uma expansão previs­
ta em 153% nominais, e as amortizações, em 90��". Do lado das con­
tas extern·as, os gastos se elevarão em "181 % para os encargos finan­
ceiros e 209% para as amortizações", enquanto o acesso aos eventuais
empréstimos externos contratados sob a guarda do FMI se limitarã9,
ao necessário "para rolar 70'.%, em média, dos serviços da dívida". 24
Com isso, inverte-se de forma perversa a função antes atribuída às "es­
tatais" no processo de desenvolvimento, internalizando poupança ex­
terna e gerando renda interna. Agora, a economia como um todo está
sendo compelida a transferir, via sistema tributário e restrições de cré­
dito, recursos reais, e numa escala sem precedentes, para o setor públi­
co empresarial, que funciona como bomba de recalque para as transfe­
rências líquidas de recursos ao exterior, também de uma forma como
nunca vista antes, sob a forma de serviço da dívida.*
***
Não passa de uma simplificação, porém, culpar genericamente as
empresas estatais pela política desastrada de gastos e de endividamen­
to, que leva uma estrutura como a da Eletrobrás, por exemplo, a quei­
mar um bilhão de dólares no altar do serviço da dívida este ano. Fazer
delas agora o bode expiatório dos crimes cometidos pelo "regime"
que não se permitiu, nem a elas, qualquer balizamento ou controle
político externo, atribuindo-lhes uma autonomia em relação ao Exe­
cutivo que jamais tiveram como entidades orgânicas, não passa de des­
viacionismo. Quando o Governo quis, elas entraram em linha, mesmo
sem recurso ao SN 1 ou ao decreto famoso de 1981 que'chegou a amea­
çar com demissão os administradores desobedientes. Contudo, a dis­
cussão do tema, mesmo sob esta forma mistificada, serviu para lançar
o foco das atenções públicas sobre essa imensa parte sombreada da
Administração do País, sob o aspecto político.
De fato, ·em torno de estruturas gigantes como Petrobrás, Vale do
Rio Doce, Siderbrás, Eletrobrás, Telebrás, etc., formam-se sólidos blo-

24. Conjuntura Econômica, janeiro de 84, artigo citado.


*. O citado "Documento dos Empresários" reconhece, implicitamente, a disfuncio­
nalidade do sistema tributário atual, resultado do mesmo processo de degeneração que
atingiu o sistema financeiro e o aparato administrativo do Estado, sob o nutoritarismo.
Assim, preconiza: "A carga fiscal terá que ser reformulada por ser insuficiente, mal dis­
tribuída e seus recurso� mal administrados. Além disso, nos últimos anos, ampliou-se a
diferença entre a carga bruta e a carga líquida, por conla da multiplicnçilo dos incenti­
vos e subsídios. Ê preciso extirpar de vez o casuísmo tributário coibindo-se a criação de
novos impostos durante o exercício fiscal."

46
cos de interesses que necessariamente condicionam o plano político,
não como uma tecnocracia mas como uma espécie de partido adminis­
trativo que assegura a linha de continuidade do regime, com a utiliza­
ção dos postos de comando nas "estatais" como um meio de acomo­
dar aspirações das suas correntes de sustentação, inclusive militares.
Nesse sentido, as "estatais" têm sido um instrumento poderoso
de autopreservação do autoritarismo, também pelo papel que sua ad­
ministração politizada, mas sem qualquer sentido de interesse público,
desempenha direta e indiretamente no jogo sucessório. Com efeito, o
"regime" autoritário se explica, em grande parte, pelas relações de in­
teresse e de poder configuradas na ocupação do espaço administrativo
por determinado grupo, no golpe de 64, e renovadas mais adiante, de
forma cada vez mais discricionária, com a supressão completíl das li­
berdades públicas pelo AI-5. Hoje, este "regime" está personalizado
no pequeno grupo encastelado no Governo e nos altos postos da Ad­
ministração indireta, determi�ado a compensar sua vulnerabilidade a
um processo político aberto e democrático pela manipulação dos ins­
trumentos de poder que ainda conserva intactos.
Temos assistido, recentemente, em grandes estatais como. Pe­
trobrás, BN DE e BNH deslocamentos de dirigentes motivados exclu­
sivamente pelas correntes submarinas da sucessão presidencial, sem
qualquer reJação com o interesse do serviço dessas empresas. 25 Portan­
to, houve uma linha progressiva de degeneração do exercício de Poder
público no País que d�cai do aspecto institucional para a intriga ma­
fiosa. Começou com a deformação das ínstituições, a começar da
maior delas como instância de representação política e da vontade na­
cional, o Congresso, a que se subtraiu a capacidade de controlar e fis­
calizar a Administração indireta. Depois, ao utilizar como instrumen­
to de política econômica de curto prazo, para efeitos conjunturais, a
programação de investimentos das grandes empresas governamentais,
o "regime" fez com que se perdesse o sentido objetivo do investimento
público na economia. Finalmente, o "regime" produziu a deformação
do próprio munus público, ao fazer da estrutura administrativa do Es­
tado uma rede de acomodação de interesses no jogo do Poder político.
* * *

Esse processo de degeneração das instituições públicas no País,


ilustrado nos episódios adiante narrados, acompanha como uma

25. Na Petrobrás, Ueki derrubou Sérgio Barcellos da subsidiária lnterbrás numa ma­
nobra política, cujo efeito era enfraquecer na empresa a influência remanescente do ex­
Presic,lente Geisel. No BNDES, transformado em feudo de Antônio Carlos Magalhães,
Luís San9e foi fulminado sob suspeita de aurelianisrno. No ·ff�H, José Lopes de Olivei­
ra foi esmagado pela pressão da "equipe" de Andreazza, determinada a transformar to­
das as instâncias ligadas ao Ministério numa base de conquista de convencionais do
PDS.

47
:;0111bra o movimento de afirmação do próprio autoritarismo polltico,
sendo <lc fato sua expressão na órbita operacional do Estado. Os "ca­
sos" mostram, além disso, como tinha razão Pedro Aleixo ao advertir
n Ucneral Costa e Silva de que o arbítrio que temia não era aquele a
ser exercido pelo Presidente, impositor do Ato 5, mas a execução prá­
tica que lhe daria o sargento da esquina. Mesmo um Governo "mora­
lista" como o do General Geisel não conseguiu impedir que grassas­
sem pelos subterrâneos da Administração episódios· recorrentes de
.:nrrupçilo e de trúl'ico de influências. É o que ocorreu no "caso" Co­
be.: ou no "caso" Dow Química, po exemplo.
Pelo que permitiu aos "executivos" estatais, desobrigados de
prestação de contas de suas iniciativas, por mais audaciosas que sejam
e por maiores volumes de recursos públicos que comprometam, o au­
toritarismo abriu de fato o leque das grandes negociatas ou da mal­
versação de recursos do Estado ou da sociedade. Isso seria facilitado,
sobretudo, pelo exercício direto e injustificável, através de agências es­
tatais, de operações comerciais autônomas e de jogo em bolsas, como
ocorreu com a lnterbrás, a Cobec, o Banco Central e o IBC, eventual­
mente com cobertura do próprio Conselho Monetário Nacional.
Dir-sc-ú que a possibilidade de uma semelhante degeneração existe
sempre onde quer que haja atividade social, e notadamente atividade
econômica numa sociedade em grande parte movida pela moral do ga­
nho. Contudo, só um regime fechado pode fazer da delinqüência ou da
irresponsabilidade administrativa um padrão, pela impunidade dos
agentes degenerados do Estado, seja no plano político, seja no da lei
penal comum. Sobre a garantia dessa impunidade cristalizou-se um
hábito. Perdeu-se, aos poucos, o sentido do munus público, ou a ele­
mcntar noção dc dever nos níveis de comando das agêncins do Esta­
do. /\té a terminologia adaptou-se: surgem "executivos" estatais no
1111•.ar de ru11cionúrios públicos; são os mercadores de serviços, não ser­
\ idon:s do btado.
J >c:,;1parcccra111, assim, com as restrições externas, também os
c1111diut111i1n1e11los étkos 1w interior da Administração estatal, ao pon-
11> d1: 11111 p�>st11la11tt.: :\ l'rcsidôncia da República ser considerado por
11111 prún;r do rcgi111c excessivamente ético para o exercício do cargo. O
hL1dt> deixa de ser a rcr,rcscntação do interesse geral e se transforma,
:'1�. dara:;, numa ,:o.w 110.1·tm. 1'· (� a cosa nostra que, pela força do hábito,
�;ohrcvivc :to /\1-5 e púdc produzir, sem escrúpulos e sem temor de san­
çíio, u 111 cspctúculo repulsivo como o escândalo da Capemi, final épico
na Jcgcncração das instituições da sociedade e do Estado no Brasil.
Nu China autocrática, um sistema de concursos públicos adotado para

26. Tltulo de um editorial de O fatado de S. Paulo, em fevereiro de [983, sobre o en­


volvimento do S:'Jl nos cscflndalos Baumgarten e Capemí.

48
no comportamento dos preços se atuasse também do lado da deman­
da. Por simulação, naturalmente, porque o Brasil de fato não iria im­
portar café: tratava-se de simples manipulação, com todas as letras. E,
nessa condição, sujeita às sanções rigorosas das comissões reguladoras
das bolsas de mercadoria, das quais nem mesmo o Estado brasileiro
poderia escapar.
Mesmo se não houvesse o risco da contravenção no mercado ex­
terno, a atuação cm bolsa de organizações estatais, com fins de mani­
pulação, está sujeita permanentemente a degenerar em corrupção in­
terna. Entre a decisão política de intervir e a execução da ordem, abre­
se um espaço para a informação privilegiada, o ·recado aos apanigua­
dos, o favorecimento de amigos. Conhecendo previamente a determi­
nação de um Governo, ou acordo de governos, em segurar o preço de·
um produto primário, o corretor bem informado pode adiantar-se na
compra com a segurança de que terá imediatamente alguém a quem
repassar o lote a melhor preço. No caso do café, a cada movimento do
antigo presidente do IBC, Camilo Calazans, no sentido de acionar a
Pancafé como compradora internacional, um enxame de corretores
privados se adiantava nas bolsas internacionais do café, abarcando
milhões de dólares em contratos, à espera do momento exato de repas­
sá-los a bom preço aos agentes da multinacional dos produtores.
Com ou sem corrupção evidente, as intervenções de caráter mani­
pulatório do Estado brasileiro, interna ou externamente, redundaram
em retumbante fracasso. No mercado acionário interno, ao prejuízo
econômico sobrepôs-se o· desgaste político da instituiçâo. Nas bolsas
de primários no exterior, infensas ao ataque impertinente de um espe­
culador de limitada eficácia, restou também o vexame da exposição de
funcionários estatais brasileiros à investigação da comissão de ·regula­
mentação da Bolsa de Nova Iorque, além de todos os ônus financei­
ros, um pesadíssimo custo de aprendizagem.

102
taneamente segundo maior consumidor, como o Brasil. Sobretudo
porque não hú barreira à entrada de novos concorrentes, em qualidade
e quantidade, não existe uma fórmula definitiva ·de proteção do produ­
tor nacional de café. E não é outro o motivo por que, apesar de todo o
seu decantado poderio político, ainda real, o setor cafeeiro não conse­
gue impor uma política estável de autoproteção, que concilie todos os
interesses e a ação do Governo, desde o Acordo de Taubaté de 1906 ao
recente Aviso de Garantia. As políticas mais agressivas costumam ser
meros expedientes de defesa de renda do exportador a curto prazo, ge­
ralmente contraproducentes a prazo longo.
Pois bem. Não obstante a complexidade da secular economia ca­
feeira, e da inexperiência da neófita Interbrás nestes e em outros mer­
cados de commodities, seu vice-presidente executivo Carlos Santana
decidiu, em 1976, que era ch_,gado o momento de iniciar-se uma "nova
filosofia" na comercialização externa do café brasileiro. Sob o argu­
mento de que "não existe, infelizmente, uma OPEP do café e por isso é
importante que o Brasil atue ativamente no mercado", ele anunciou
orgulhosamente, em fins de julho, e para surpresa geral do País, que a
Interbrás comprara nada menos que 561.200 sacas de cafés suaves cen­
tro-americanos, por cerca de USS 100 milhões. As primeiras 57.500 sa­
cas, esclarecia, seriam embarcadas imediatamente para o Brasil vindas
de El Salvador, e outras 158. 700 viriam dos estoques de Hamburgo. 42
No ano anterior, como os intermediários do café se recordam
com indisfarçável satisfação, uma devastadora ,geàda reduzira drasti­
,camente a expectativa de safra brasileira, liquiciando com vastas zonas
cafeeiras do Paraná e do Sul de São Paulo. Essas perdas, que para o
produtor direto costumam representar verdadeiras tragédias; consti­
tuem sempre uma excepcional oportunidade de lucro rápido para os
especuladores estocados. Contudo, o mercado mundial ainda estava
abarrotado de café, com a entrada recente de volumes recordes de ca­
fés colombianos e africanos, não se fazendo sentir imediatamente os
efeitos da geada brasileira sobre os preços. Os estoques asseguravam
oferta abundante a curto prazo, e a longo prazo era preciso esperar
como se comportaria a produção futura dos principais concorrentes
brasileiros.
A Interbrás, contudo, tentara ser mais rápida. Agindo por ordem
do presidente do IBC, Camilo Calazans, em coordenação com uma
empresa de economia mista de El Salvador, a Coscafé-Companhia
Salvadorenha de Café, retirou do mercado 46 mil sacas de café salva­
dorenho; e, sozinha, mais 76.707 sacas de café procedente da Repúbli-

42. O regi�lro sumúrio da opcraçiio apareceu no Jornal do Brasil, em 27-7-76. Os nú­


meros crum um blcf'e. como se ver:í. mas mio a intenção. Depois disso, um véu de discri­
çüo baixou sobre as operações, alé que estourou um inquérito contra a lnterbrás cm
Nova Iorque.

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