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H arry G . W e st e professor de
Harry G. West • :% $■*& . ■■
Antropologia Social na Escola de
Estudos Orientais e Africanos
"l1.' ' * (SOAS) da Universidade de Londres.
Além do presente'livro, é autor de ■::
' Ethnographic Sorcery (University of
Chicago Press, 2007), co-organizador
£ de Enduring Socialism: Explorations
o f Revolution and Transformation,
Restoration and Continuation (Berghahn
y ./ Books, 2008), Borders and Healers:
BrokeringTherapeutic Resources in
Southeast Africa (Indiana University
gs-
Press, 2006) e Transparency and .
b
it . .O Poder e o Invisível , Conspiracy: Ethnographies o f Suspicion
in the New World Order (D uke

em M ueda, M oçambique University Press, 2003), e organizador


de Conflict and its Resolution in
Contemporary Africa (University Press
' ’.■ .■ yV..'
of America, 1997).

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Harry G. West

O Poder e o Invisível
em Múeda, Moçambique
Baseado numa investigação
realizada em colaboração com
Marcos Agostinho Mandumbwe
e com a assistência de
EusébioTissa Kairo
e Felista Elias Mkaima

Imprensa
de Ciências
Sociais
Im prensa de Ciências Sociais

■SlOt/.r,

yTvcÈS"
Instituto de C iências Sociais
da U niversidade de Lisboa

Av. Prof. Aníbal de Bettencourt, 9


1600-189 Lisboa - Portugal
Telef. 21 780 4 7 0 0 - Fax 21 794 02 74

www.ics.ul.pt/imprensa
E-mail: imprensa@ics.ul.pt

Instituto de Ciências Sociais — Catalogação na Publicação


W E ST , Harry G.
Kupilikula : o poder invisível em Mueda,
Moçambique / Harry G. West. - Lisboa : ICS.
Imprensa de Ciências Sociais, 2009
ISBN 978-972-671-235-0
C D U 398(679)

Tradução: Manuela Rocha


Revisão científica: João Vasconcelos

A Imprensa de Ciências Sociais agradece o subsídio


da Fundação Calouste Gidbenkian para a tradtição desta obra

Capa e concepção gráfica: João Segurado


Revisão: Manuel C oelho
Impressão e acabamento: Tipografia Guerra —Viseu
Depósito legal: 289575/09
l . a edição portuguesa: Setembro de 2009

O original deste livro foi editado por


The University o f Chicago Press, Chicago e Londres, 2005
D edicado à m em ória de
M aria C onsolata A gostinho M andum bw e
índice
Agradecimentos.................................................................................. 13
Prólogo: Provas imateriais.................................................................. 17
Introdução............................................................................................ 37

Parte 1 .................................................................................................... 59

Capítulo 1
O povoamento do planalto de Mueda e a criação
dos m acondes.................................................................................. 63

Capítulo 2
Provocação e autoridade, dissidência e solidariedade.................... 71

Capítulo 3
Carne, poder e satisfação dos apetites.............................................. 79

Capítulo 4
O reino invisível.................................................................................. 85

Capítulo 5
Visões que curam ................................................................................ 97

Capítulo 6
Vítimas ou agressores?......................................................................... 109

Capítulo 7
Carreiras complicadas......................................................................... 115

Capítulo 8
Feitiçaria de construção..................................................................... 129
Parte I I ..................................................................................................... 139

Capítulo 9
Conquistadores im aginados................ ............................................. 147

Capítulo 10
Consumir o trabalho e os seus p ro d u to s..........................................161

Capítulo 11
O cristianismo e a tradição m aco n d e................................................175

Capítulo 12
Conversa e conversão......................................................................... 189

Capítulo 13
Cristãos, pagãos e feitiçaria................................................................. 199

Capítulo 14
Gente da n o ite .....................................................................................207

Capítulo 15
Jogos mortíferos de esconde-esconde............................................... 221

Capítulo 16
Revolução, ciência e feitiçaria............................................................. 231

Capítulo 17
Reescrevendo a paisagem...................................................................249

Capítulo 18
A comunalização da feitiçaria.............................................................261

Capítulo 19
Autodefesa e enriquecimento pessoal............................................... 269
Parte III......................................................................................................283

Capítulo 20
O «ressurgimento da tradição»........................................................... 287

Capítulo 21
A reforma neoliberal e a tradição moçambicana............................. 295

Capítulo 22
Um reconhecimento lim itad o ...................... 303

Capítulo 23
Transcendendo as tradições..................... 323

Capítulo 24
Saberes incerto s................................................................................... 337

Capítulo 25
A sociedade incivil do pós-guerra..................................................... 347

Capítulo 26
Democratização e/do uso da fo rç a ................................................... 355

Capítulo 27
Governando na pen u m b ra.......................... 365

Capítulo 28
Reforma constitucional e suspeita perpétua..................................... 373

Epílogo: Linhas de sucessão........................ 385

Bibliografia........................................................................................... 393
índice remissivo...................................................................................419
Agradecimentos

O presente livro é fruto de um projecto que me ocupou durante mais


de uma década, em que tive a imensa sorte de trabalhar na companhia
de muitas pessoas de talento e generosas. Na verdade, o inventário dos
muitos indivíduos e instituições que me auxiliaram neste projecto é
uma experiência inspiradora de verdadeira humildade.
O Land Tenure Center da Universidade de Wisconsin-Madison pro­
porcionou-me as oportunidades e os recursos financeiros necessários,
quando concluí a minha licenciatura e efectuei estudos de campo pre­
liminares em Moçambique. A investigação para a minha dissertação foi
financiada pelo Eulbright-Hays Doctoral Dissertation Research Abroad
Fellowship Program, o Jennings Randolph Peace Scholar Dissertation
Fellowship Program do Institute o f Peace dos Estados Unidos da
América e o Dissertation Fieldwork Grants Program da Wenner-Gren
Foundation for Anthropological Research. Uma bolsa da Fundação
Calouste Gulbenkian financiou a investigação arquivistica em Lisboa.
Recebi um apoio suplementar, sob a forma de uma bolsa de dissertação
de doutoramento Charlotte W. Newcombe (administrada pela
■Woodrow Wilson National Fellowship Foundation) e de uma bolsa do
Institute for the Study o f World Politics, quando escrevi a minha dis­
sertação como associado do Carter G. Woodson Institute na Uni­
versidade da Virgínia. Outras pesquisas de campo no planalto déM ueda
foram financiadas pelo Economic and Social Research Council (Reino
Unido) e pela British Academy. Uma bolsa do American Council of
Learned Societies/Social Science Research Council/N ational
Endowment for the Humanities International and Area Studies, junta-
mente com uma bolsa de pós-doutoramento do Program in Agrarian
Studies da Universidade de Yale, criaram as condições financeiras e o
ambiente intelectual propícios à produção do manuscrito. A School of

13
K u piliku la

Oriental and African Studies (Universidade de Londres) deu-me apoio


na produção do manuscrito final.
Como membro do Fulbright-Hays, fui apoiado, em Moçambique,
pelo Gabinete do Serviço de Informação dos Estados Unidos em
Maputo. O Land Tenure Center proporcionou-me também um cons­
tante apoio logístico. Os Departamentos de Antropologia e de História
da Universidade Eduardo Mondlane foram os meus anfitriões oficiais
em Moçambique. As delegações dos Arquivos do Património Cultural
e da Associação dos Combatentes da Luta de Libertação Nacional em
Pemba facilitaram o meu trabalho em Cabo Delgado, ao identificarem,
entre as suas fileiras, algumas pessoas cuja colaboração foi fundamental.
No planalto de Mueda, fui ajudado, não só pelos serviços da
Administração Distrital e do partido Frelimo nos distritos de Mueda,
Muidumbe e Nangade, mas também pela Missão das Nações Unidas
em Moçambique (Onumoz), pelo projecto de Cabo Delgado da Oxfam
UK, pelos directores do projecto Internacional SIL de Mueda e pela
missão católica de Nang’ololo.
Embora tenha recebido apoio de inúmeras pessoas, desejo nomear
aquelas que mais contribuíram para o meu projecto: Jocelyn Alexander,
Maria José Artur, João Baptista Cosme, Aleixo Batime, Teresa Berry,
João Paulo Borges Coelho, Margaret Bothwell, David Brent, John
Brace, padre João Branninks, Pamela Bruton, José Luís Cabaço, João
Carrilho, Isabel Casimiro, Sven Cawley, irmã Rosa Carla Cazzaninga,
Arlindo Chilundo, Amanda Coleman, Chris Colvin, John ComarofF,
Rafael da Conceição, Margot Dias, Nuno Domingos, Elizabeth Branch
Dyson, Matthew Engelke, Angelo Fernandes, Richard Flores, Peter
Geschiere, Carol Greenhouse, Patty Grubb, David Hedges, Lorraine
Herbst, Alcinda Honwana, Sharon Hutchinson, José Kathupa, Shelley
Khadem, Scott Kloeck-Jenson, Catherine Lawrence, Benjie e Rhoda
Leach, Óscar Limbombo, Marcelino Liphola, Ana Loforte, Nicole
Lorenzini, Tracy Luedke, Luis Madureira, Adriano Malache, Kay
Mansfield, Boaventura Massiette, Aguiar Mazula, Asubuguy Meagy,
Ratna Menon, Lázaro Mmala, Rafael Mpachoka, Estêvão Mpalume,
padre Elias Pedro Mwakala, Rafael Pedro Mwakala, padre Amaro
Mwitu, Gregory Myers, António Natividade, Maria Luisa Natividade,
irmã Angela Lucas Ng’avanga, Severino Ngole, Fernando Nhantumbo,
Raimundo Pachinuapa, Deborah Poole, Rodrigues Quicho, Rayna
Rapp, Glenn Ratcliffe, Camilla Roman, Todd Sanders, Michael
Schatzberg, Lee Schoen, Jim Scott, David Smith, Lois Woestman, Eric
Worby e dois leitores anónimos.

14
A gradecim entos

O contributo de Marcos Agostinho Mandumbwe, Eusébio Tissa


Kairo e Feiista Elias Mkaima para este trabalho é demasiado grande para
ser reconhecido apenas nestes agradecimentos; as referências que lhes
são feitas nas páginas do presente livro, e na página de rosto, falam por
si mesmas. Eles não só me guiaram no percurso até à conclusão deste
projecto, como também o abraçaram como se fosse seu. Além disso,
partilharam comigo as alegrias, esperanças e mágoas que determinavam
as suas vidas e compartilharam aquelas que determinavam a minha. As
suas famílias tomaram-se a minha, e a minha a deles, o que deu origem
a um número cada vez maior de homónimos na geração mais recente.
Entre as mepiórias que me são mais queridas figuram os tempos que
com eles passei, partilhando alimentos e conversando no final de um
dia «no terreno». Agradeço-lhes o companheirismo durante os muitos,
anos em que trabalhámos juntos.
As famílias que nos acolheram, nas várias aldeias do planalto onde
fizemos investigação, e as pessoas com quem falámos e interagimos de
outras formas são demasiado numerosas para as nomear aqui, mas os
nomes de muitas delas são mencionados ao longo do texto. De qual­
quer modo, agradeço a todas por me terem permitido conviver e apren­
der com elas.
Por fim, quero agradecer à minha própria likola - Mãe, Pai, Tia Lois,
Anita, Denny, Paul, Amy e Mark - pelas suas muitas manifestações de
orgulho e confiança em mim; e à minha companheira Catherine, pela
sua paciência, incentivo e afecto, inesgotáveis e reconfortantes.

Foram publicadas versões anteriores de vários trechos do presente


livro nos artigos seguintes: «A piece o f land in a land o f peace? State
Farm Divesture in Mozambique» [Um pedaço de terra numa terra de
paz? A privatização das Explorações Agrícolas Estatais], Journal o f
Modem African Studies, 34, n.° 1 (1996): 27-51, em co-autoria com Gre­
gory W. Myers; «Creative destruction and sorcery o f construction:
power, hope, and suspicion in post-war Mozambique» [Destruição cria­
tiva e feitiçaria de construção: poder, esperança e suspeita no
Moçambique do pós-guerra], Cahiers d’Études Africaines, 37, n.° 147'
(1997): 675-698; «‘This neighbor is not my uncle!’ Changing relations o f
power and authority on the Mueda plateau» [Este vizinho não é meu
tio! Evolução das relações de poder e autoridade no planalto de
Mueda\, Journal o f Southern African Studies, 24, n.° 1 (1998): 141-160;

15
K u piliku la

«Betwixt and between: ‘Traditional authority’ and democratic decen­


tralization in post-war Mozambique» [Meio por meio: ‘autoridade
tradicional’ e descentralização democrática no Moçambique do pós-
guerra], African Affairs, 98, n.° 393 (1999): 455-484, em co-autoria com
Scott Kloeclc-Jenson, reimpresso com autorização da Oxford University
Press; «Girls with guns: Narrating the experience o f war o f Frelimo’s
‘Female Detachment’» [Raparigas armadas: narrando a experiência de
guerra do ‘Destacamento Feminino’ da Frelimo], Anthropological
Quarterly 73, n.° 4 (2000): 180-194; «Sorcery o f construction and social­
ist modernization: Ways o f understanding power in post-colonial
Mozambique» [Feitiçaria de construção e modernização socialista: for­
mas de entendimento do poder no Moçambique, pós-colonial],
American Ethnologist, 28, n.° 1 (2001): 119-150, The American
Anthropological Association, reimpresso com autorização da
University o f California Press; «Voices twice silenced: Betrayal and
mourning at colonialism’s end in Mozambique» [Vozes duplamente
silenciadas: traição e luto no fim do colonialismo em Moçambique],
Anthropological Theory, 3, n.° 3 (2003): 339-361, reimpresso com auto­
rização da Sage Publications Ltd.; «Power revealed and concealed in the
new world orden> [Poder revelado e ocultado na nova ordem mundial],
em co-autoria com Todd Sanders, e «Tax receipts, Virgin Mary medal­
lions, and party membership cards: (Invisible tokens o f power on the
Mueda plateau» [Recibos fiscais, medalhões da Virgem Maria e cartões
de membro do partido: símbolos de poder (in)visíveis no planalto de
Mueda], ambos em Transparency and Conspiracy: Ethnographies o f
Suspicion in the New World Order [Transparência e Conspiração:
Etnografias da Suspeita na Nova Ordem Mundial], org. Harry G. West
e Todd Sanders (Durham, NC: Duke University Press, 2003); «Inverting
the Camel’s Hump: Jorge Dias, his wife, their interpreter, and I»
[Invertendo a Bossa do Camelo: Jorge Dias, a sua esposa, o seu intér­
prete e eu], in Significant Others: Interpersonal and Professional Commit­
ments in Anthropology [Outros Significativos: Compromissos Inter­
pessoais e Profissionais em Antropologia], editado por R, Handler
(Madison, 2004), reimpresso com autorização da University o f
Wisconsin Press; «Villains, victims, or Makonde in the making? Reading
the explorer, Henry O ’Neil, and listening to the headman, Lishehe»
[Vilões, vítimas ou macondes em construção? Lendo o explorador
Henry O ’Neil e escutando o chefe Lishehe], Ethnohistory, 51, n.° 1
(2004): 1-43.

16
Prólogo

Provas imateriais
»
«Rebuscámos a casa do homem toda», afirmou Simão, «mas não con­
seguimos encontrar os materiais que ele usou para os fazer». Esboçou
um sorriso forçado. «O tipo era esperto, sabe?»
«Mas ele Je-los mesmo?», perguntou Marcos.
«Toda a gente sabia que ele os tinha feito», respondeu Simão. «Os van-
tumi va ku mwitu [leões do mato] não se comportam como aqueles leões
se comportaram. Aqueles eram vantumivakuvapika [leões fabricados]!»
Marcos e eu partilhávamos uma refeição da tarde, composta por feijão
manteiga e ugwali (papas), com Simão Benjamim, o presidente da locali­
dade de Miula. Como Marcos observou depois, Simão era muito jovem
para ocupar já um tal cargo de autoridade. De facto, quando Simão e eu
nos conhecemos, Marcos informara-me que este frequentara uma das
escolas de ensino primário mantidas pelos guerrilheiros, nas zonas liber­
tadas, por que Marcos fora responsável durante a guerra da independên­
cia de Moçambique (1964-1974). Contudo, o jovem Simão era um
homem bastante seguro de si. A T-shirt com os dizeres «I Love Vegemite»
que envergava era de uma brancura reluzente. Tinha um sorriso rasgado
e uma atitude descontraída. Embora Simão nos tratasse respeitosamente,
enquanto seus convidados, também procurava ser por nós tratado como
um igual, um intelectual. Tinha continuado a estudar depois da guerra e
deu aulas no ensino básico durante algum tempo, mas acabou por rece­
ber formação para seguir uma carreira na administração do Estado.
«É uma boa carreira», asseverou-nos, «mas custa viver aqui no mato
permanentemente».
Fitou-nos nos olhos, um após outro, e depois alongou o olhar por'
sobre a praça da aldeia, para além do pátio de sua casa. Mulheres, ves­
tidas com capulanas1desbotadas, faziam fila junto ao chafariz com bal­

1Uma capukma é um pano estampado que as mulheres usam enrolado à volta do corpo.

17
K u piliku la

des de lata de vinte litros. Homens com T-sbirts esfarrapadas e calças puí­
das aglomeravam-se em redor de uma mesa de madeira, à espera que o
representante de uma das lojas da cidade de Mueda lhes pagasse as sacas
de 50 kg de milho que tinham trazido para vender.
«Há muita ignorância nestas aldeias», disse Simão. «Ninguém está
interessado em aprender. Raramente tenho a oportunidade de ter uma
conversa inteligente com pessoas como vocês.»
Não obstante o seu tom algo condescendente, Simão, como viemos
a descobrir, era estimado pelos aldeões sob a sua jurisdição. Governava
com diplomacia e bom humor, além de ser um hábil conversador, o
que o tomava querido tanto dos aldeões como dos visitantes.
Enqúanto a esposa colocava dois pratos no chão, à nossa frente, per­
guntei-lhe como é que ele tinha ido parar a Miula. A sua vinda, expli­
cou-nos, estava associada a estranhos acontecimentos ocorridos numa
das aldeias sob a sua responsabilidade.
«Só aqui fui colocado este ano [1999], quase no fim da estação das
chuvas, em Abril.» Inclinou-se para a frente no assento e empurrou os
pratos para mais perto dos pés dos convidados. «O meu antecessor não
conseguiu resolver uma situação delicada na aldeia de Kilimani.
Disseram-me para fazer disso a minha principal prioridade.»
«Conte-nos o que se passou», pediu Marcos, enquanto enterrava os
dedos no prato comum de ugwali e moldava uma bola de papa na mão,
mergulhando-a seguidamente no prato de feijão.
Simão seguiu-lhe o exemplo, metendo uma bola de ugwali com
molho na boca, antes de responder. «Tivemos conhecimento do pro­
blema quando a população de Kilimani escreveu uma carta ao admi­
nistrador distrital a comunicar o aparecimento de vários leões na
aldeia.»
«Que tipo de leões?», perguntou Marcos, sabendo que a história
dependia da resposta a esta pergunta.
«A questão é essa», respondeu Simão. «Os aldeões acusavam um dos
habitantes da aldeia de fazer os leões e de os usar para ameaçar os vizinhos.»
«Que fez o administrador distrital?», perguntei a Simão, ao mesmo
tempo que molhava uma bola de ugwali no prato de feijão.
«Mandou o meu antecessor dizer à aldeia que os aldeões teriam de
resolver a situação entre eles.»
«E resolveram?», perguntei.
«Não», retorquiu Simão, como se esse resultado fosse improvável.
«A situação só piorou. Os leões continuaram a aparecer e os aldeões
ficaram cada vez mais agitados.»

18
Prólogo

«O que sucedeu depois?», perguntei.


«O meu antecessor ordenou aos aldeões que pusessem fim às hostili­
dades, mas eles continuaram. Foi então que me enviaram para o substi­
tuir.»
Marcos e eu permanecemos imóveis, à espera que Simão prosseguis­
se o relato, mas ele apenas se riu, nervosamente, até que Marcos per­
guntou abruptamente: «E então que fizeste?!»
Debruçámo-nos todos por cima dos pratos meio vazios, como se esti­
véssemos a conspirar.
«Fui falar com os aldeões para tentar entender o que se passava.
Percebi qug a situação era muito grave. Convoquei um conselho de
anciãos da aldeia para analisar o caso. Pedi também a alguns anciãos de
fora da aldeia para comparecerem: os presidentes das aldeias de Miula
e Chicalanga e o ancião Shindambwanda.»
«Shindambwanda, o nkulaula [curandeiro]?», perguntou Marcos,
com irreprimível satisfação. Tínhamos trabalhado infimamente com
Shindambwanda, pouco tempo atrás, aprendendo com este respeitado
curandeiro tudo o que podíamos sobre wwavi (feitiçaria) e soubéramos
por outras pessoas que ele próprio era suspeito de ser um poderoso
mwavi (feiticeiro).
«Sim», respondeu Simão com naturalidade. Fez uma pequena pausa,
para compor a narrativa ou, talvez, para produzir um efeito dramático.
Prosseguiu: «Muitas pessoas testemunharam que os leões que andavam
a ameaçar a aldeia tinham sido feitos pelo homem acusado, mas nin­
guém conseguiu apresentar provas concludentes.»
«Que tipo de provas procuravam?», perguntei.
«Dizem que para fazer esses leões são necessárias certas coisas... cer­
tos tipos de mitela [substâncias mágicas]...»
«Dimikat», perguntei.
«Eeh-hee», confirmou Simão, «mas ninguém conseguiu encontrar
nada.»
Acabámos a comida que tínhamos na frente. Marcos pegou na bacia
de água que a mulher de Simão colocara silenciosamente atrás de nós,
enquanto comíamos, e segurou-a enquanto eu lavava as mãos. A seguir,
peguei eu na bacia e segurei-a para ele fazer o mesmo. Simão lavou as
mãos, por sua vez, ponderando o que ia dizer. Depois afirmou, corri
solenidade: «Não havia provas, mas os anciãos tinham a certeza de que
o homem era culpado. Eu sabia que, se não interviesse, alguém morre­
ria. Neste tipo de situações, os aldeões fazem justiça pelas próprias
mãos. Por isso, propus um acordo.»

19
K u piliku la

Que tipo de acordo?», indaguei.


«O acusado foi multado e transferido para Chicalanga.»
«E isso resolveu o problema?», perguntou Marcos.
«Sim», respondeu Simão, com um ar não totalmente satisfeito. «Os
leões desapareceram de Kilimani.»
«E o homem que foi transferido para Chicalanga?», perguntei.
«Ali não está a causar problemas a ninguém», respondeu Simão com
simplicidade.

Os acontecimentos que levaram Simão Benjamim para Kilimani, no


fim da estação das chuvas de 1999, não eram algo inaudito no planalto
de Mueda. Durante o tempo que passei na região (entre 1993 e 2004) a
fazer investigação etnográfica de campo, ouvi contar centenas de histó­
rias de leões feitos por feiticeiros, ou de feiticeiros que se transformavam
em leões. Sentado, à noite, nos círculos que se formavam em redor das
fogueiras usadas para cozinhar, ouvi os habitantes do planalto a espe­
cularem sobre a identidade dos feiticeiros que estariam por detrás des­
sas feras, bem como sobre a identidade das pretensas vítimas. Convivi
com curandeiros que me contaram o que sabiam sobre os métodos usa­
dos pelos feiticeiros para realizarem tais façanhas e que partilharam
comigo aquilo que estavam dispostos a contar sobre as técnicas que uti­
lizavam para tomar os leões vulneráveis às flechas ou às balas dos caça­
dores.
Na verdade, os habitantes do planalto de Mueda, que na sua maioria
se identificam etnicamente como macondes, conhecem os vantumi va
kuvapika (leões fabricados) desde que as pessoas ainda vivas se recor­
dam.2 As histórias de feitiçaria que eles me contaram nos últimos anos

2 D e um m odo geral, designo as populações com quem trabalhei com o «habitantes


do planalto de Mueda» e não com o macondes. A identidade étnica maconde, como
veremos na parte I, foi forjada entre povos de diversas origens que fiigiram do comér­
cio de escravos regional, a partir do século XVII. Até hoje, entre os habitantes desta região
há pequenas populações que se identificam com outros grupos étnicos regionais, como
os macuas, yaos ou agonis. N o período pós-independência, um número mais pequeno
de pessoas, que se identificam com grupos étnicos do Centro e do Sul de Moçambique,
também veio estabelecer-se no planalto, bem como um pequeno número de não
moçambicanos. Embora os habitantes não macondes da região do planalto de Mueda,
às vezes, concebessem os acontecimentos, processos e fenómenos descritos nestas pági­
nas de forma diferente dos macondes, muitos falavam e agiam, de facto, com o os seus
vizinhos dessa etnia. Simultaneamente, nem todos os macondes da região concebiam

20
Prólogo

reforçaram o que eu tinha lido na bibliografia sobre o passado. António


Jorge Dias e Margot Schmidt Dias - antropólogos que trabalharam
entre os macondes de Mueda nos finais da década de 1950 - relataram
que os seus informantes lhes falaram de leões fabricados por feiticeiros,
que só podiam ser distinguidos dos normais por alguns especialistas
possuidores de substâncias mágicas e do saber necessário para detectar
e vencer essas feras (Dias e Dias 1970,363). Dias e Dias também referem
ter-lhes sido contado, em determinada ocasião, que os restos dilacera­
dos de uma vítima de leão, descobertos numa aldeia do planalto
enquanto estavam a fazer a sua investigação, eram ilusórios; o verda­
deiro corpo da vítima, segundo lhes disseram, estava guardado em casa
do feiticeiro que produzira o leão e a seu tempo seria comido por esse
homem (1970, 369).
No entanto, para avaliar todo o significado do caso de Kilimani, é
preciso inseri-lo no seu contexto sócio-histórico imediato. Poucos anos
antes, os aldeões de Kilimani não se teriam atrevido a enviar uma carta
ao administrador distrital acusando um dos seus de feitiçaria. Desde o
início da luta de guerrilha para libertar Moçambique do domínio colo­
nial português que a liderança da Frente de Libertação de Moçambique
(Frelimo) condenou, energicamente, aquilo que classificava como cren­
ças e práticas «obscurantistas», incluindo as associadas à feitiçaria. Tanto
durante a guerra como depois dela - quando a Frelimo subiu ao poder,
em 1975, num Moçambique recém-chegado à independência - os diri­
gentes da Frelimo adoptaram políticas que proibiam a adivinhação
(para determinar a identidade dos feiticeiros), os julgamentos por feiti­
çaria, e a prevenção e a cura pela feitiçaria. Consideravam todas estas
práticas como formas contra-revolucionárias de «ideias falsas». Quem
insistisse em falar abertamente de feitiçaria, ou se envolvesse em práti­
cas de feitiçaria e contrafeitiçaria, era punido pelo Estado, por vezes
com extrema severidade.
Mais ainda, alguns anos antes, um presidente local da Frelimo, como
Simão, não teria permitido que um conselho de anciãos a nível de
aldeia desempenhasse um papel tão central na resolução de um confli-

estes acontecimentos, processos e fenómenos da mesma forma. Em qualquer caso, a


minha investigação centrou-se não na etnia maconde em si mesma, mas sim nas pes­
soas que viviam e contribuíam para a vida colectiva de um local específico, designada­
mente, o planalto de Mueda. Por isso, uso o etnónimo maconde unicamente nos casos
em que o tema em causa e/ou as minhas fontes de informação me levaram a realçar a
identidade étnica como uma categoria social definidora.

21
K u piliku la

to como aquele com que deparou nos seus primeiros dias de trabalho
em Miula. O poder destes anciãos provinha das posições que ocupavam
no topo de instituições políticas organizadas segundo os princípios de
parentesco. Desde que foi criada, a Frelimo encarou sempre essas figu­
ras de autoridade com grande desconfiança. Segundo as suas declara­
ções, a política colonial portuguesa de usar os «chefes» locais como
intermediários administrativos corrompera e retirara legitimidade a
essas instituições. Aò longo de toda a guerra da independência, a
Frelimo excluiu os detentores desses títulos - pelo menos enquanto tais
- de quaisquer posições formais de autoridade na estrutura de coman­
do da guerrilha. Aquando da independência, o governo da Frelimo
baniu todas as chefias tradicionais, criando órgãos de governo local des­
tinados a substituir a autoridade dos chefes em assuntos como a distri­
buição de terras e a resolução de conflitos intra e interfamiliares.
A Frelimo também proibiu os rituais de iniciação e de súplica aos ante­
passados, bem como de controlo da feitiçaria/bruxaria, práticas rituais
que tinham consolidado a autoridade desses chefes.
Quando iniciei o trabalho de investigação no planalto de Mueda, os
seus habitantes hesitavam em falar abertamente sobre temas relaciona­
dos com a feitiçaria, em grande medida porque os responsáveis locais os
proibiam, há mais de 25 anos, de o fazerem. Imediatamente antes de
partir para Mueda, foi-me dito por Isabel Casimiro, uma investigadora
moçambicana do Centro de Estudos Africanos (CEA) da Universidade
Eduardo Mondlane (UEM), que um recente projecto de investigação
do CEA tentara estudar a importância dos «leões fantasma» em Mueda,
mas que as suas tentativas para levar as pessoas a falarem sobre o fenó­
meno tinham sido infrutíferas. Tudo isto viria a mudar, porém, pois os
acontecimentos históricos que mudaram a face de Moçambique duran­
te a minha permanência no terreno permitiram que os habitantes do
planalto voltassem a falar francamente, entre si e com outras pessoas,
sobre a feitiçaria.
Após 16 anos de uma guerra civil devastadora (1977-1992) que se
seguiu à independência, o governo da Frelimo e a liderança da
Resistência Nacional Moçambicana (Renamo) chegaram a acordo em
Outubro de 1992. Quando comecei o trabalho de campo no planalto,
no início de 1994, os moçambicanos preparavam-se para as primeiras
eleições multipartidárias da história do país. A Renamo tinha poucos
apoiantes em Mueda - região por vezes apodada de «berço da revolu­
ção da Frelimo», porque esta última ali manteve a sua base central duran­
te a luta pela independência e porque muitos dos seus naturais comba-

22
Prólogo

teram pela Frelimo contra os portugueses. Ainda assim, a guerra civil


contribuiu substancialmente para o colapso do programa de «moderni­
zação socialista» da Frelimo em Mueda, tal como noutras regiões de
Moçambique.
Quando os contendores chegaram a acordo, a Frelimo abandonou o
seu compromisso com o marxismo-leninismo, adoptou medidas eco­
nómicas austeras, que acabariam por ser aceites pelo Fundo Monetário
Internacional (FMI), e alterou a Constituição de modo a permitir a for­
mação de diferentes partidos políticos. Com o fim da Guerra Fria e o
desaparecimento da ajuda do bloco soviético e da Europa de Leste,
Moçambiqqe depressa passou a depender dos países doadores ociden­
tais, bem como das agências de ajuda humanitária e de desenvolvimen­
to internacionais, para facilitar o processo de paz e ajudar a reconstruir
as infra-estruturas nacionais destruídas. Agora, enquanto os doadores
pressionavam o governo moçambicano para fazer uma «descentraliza­
ção democrática», os técnicos de desenvolvimento procuravam revigo­
rar «a sociedade civil» moçambicana. Nas zonas rurais de Moçambique,
onde o Estado socialista, formado após a independência, cooptara ou
reprimira muitas das instituições que os doadores ocidentais poderiam
considerar como sendo elementos da sociedade civil, os funcionários e
os técnicos de desenvolvimento começaram a alimentar a ideia de que
as «autoridades tradicionais» poderiam constituir uma forma moçambi­
cana de sociedade civil.
Alguns investigadores que trabalhavam para um projecto financiado
por doadores, alojado nas instalações do Ministério da Administração
Estatal moçambicano, sugeriram que as «autoridades tradicionais» pode­
riam corporizar uma espécie distinta de democracia africana, possibili­
tando uma governação local através de processos consensuais, sanciona­
dos culturalmente. Como tal, poderiam servir o país prontamente, como
um meio de expressão da «vontade popular» nas zonas rurais. Como a
revolta da Renamo ressuscitou a «autoridade tradicional» nas áreas do país
que conseguiu controlar durante a guerra - embora nomeasse, frequente­
mente, como «chefes» indivíduos locais da sua confiança que nem sem­
pre podiam reivindicar direitos históricos ou hereditários a esses cargos -
e como a Renamo utilizou eficazmente essas autoridades como interme­
diários administrativos, alguns dirigentes do partido no poder - a Frelimo'
- começaram a considerar politicamente vantajoso cultivar o apoio deste
eleitorado influente na nova era democrática.
Simultaneamente, alguns responsáveis do Ministério da Saúde, em
conversa com consultores e técnicos de desenvolvimento, começaram

23
K u piliku la

a alimentar a ideia de que os «curandeiros tradicionais» poderiam ter um


papel a desempenhar na reconstrução das redes rurais de assistência
médica, que tinham sido quase totalmente destruídas durante a guerra.
Em concomitância com a descentralização democrática, os doadores
ocidentais exaltavam a iniciativa e a autonomia locais onde quer que
existissem. Os «curandeiros tradicionais», segundo muitos argumenta­
vam, sobreviveram a anos de repressão governamental e preencheram as
lacunas da assistência médica nas zonas rurais, causadas pela falta de
pessoal com formação médica e de medicamentos, durante o período
da guerra. Muita gente sugeria què eles eram os respeitados detentores
de um profundo conhecimento da farmacopeia local e que, se recebes­
sem a formação adequada, poderiam constituir o modo mais fácil de
fazer chegar a «assistência médica moderna» às comunidades rurais.
Foi, portanto, no contexto destas mudanças, que Simão Benjamim
convocou o conselho de anciãos de Kilimani.

***
Alguns dias depois de Simão nos ter narrado, a Marco e a mim, os
acontecimentos de Kilimani, tivemos a oportunidade de falar com o
superior de Simão, o administrador do distrito de Mueda, Ambrósio
Vicente Bulasi. Ambrósio, como toda gente de Mueda lhe chamava, era
poucos anos mais velho do que Simão, mas apresentava-se de forma
muito mais cosmopolita.3 A pequena e sonolenta cidade de Mueda
movia-se a grande velocidade na sua proximidade. Quando o contactá­
mos no edifício da Administração, sugeriu-nos que nos encontrássemos
ao final da tarde em sua casa, onde teríamos mais tranquilidade.
Quando chegámos, estava a ligar o gerador no seu quintal - um dos
dois únicos geradores existentes na cidade de Mueda. Convidou-nos a
sentar no alpendre enquanto atendia vários indivíduos que, hão tendo
conseguido uma audiência no seu gabinete, o aguardavam agora,
emboscados em sua casa.
Depois de dar instruções a uma jovem que estava dentro de casa para
nos trazer cerveja, juntou-se finalmente a nós. Gritávamos uns para os
outros, alumiados por luzes fracas, enquanto o gerador rugia. Ambrósio
pediu desculpa por a cerveja estar quente, ao fim de um dia inteiro no
frigorífico desligado.

3 O próprio Ambrósio não usava o termo «cosmopolita», mas ainda assim adoptava
o estilo de vida cosmopolita definido por Ferguson (1999).

24
Prólogo

Depois de discutirmos outros tópicos, falei-lhe de Kilimani e per-


guntei-lhe se era difícil gerir essas situações. Riu-se e agitou a mão num
gesto de negação.
«Deixem que vos diga uma coisa», acrescentou. «Este tipo de coisas
acontece a toda a hora.»
Levantou o copo, brindou «Saúde!», e continuou. «Ainda hoje recebi
uma carta de aldeões de Chapa dizendo que tinha nascido um pintainho
com quatro patas. Estão convencidos de que se trata de feitiçaria. A carta
acabava com a seguinte frase: «Aguardamos as suas instruções.»
Riu-se e nós acompanhámo-lo.
«O truque para governar num sítio como este é saber como nos have­
mos de vestir para cada ocasião», asseverou, enquanto enfiava incons­
cientemente a mão entre os botões da sua camisa de seda empoeirada e
reajustava o modo como ela lhe caía nos ombros. «Não se vestem as
roupas domingueiras para trabalhar na machamba, pois não? Vestem-se
roupas de trabalho.»
Olhei-o interrogativamente.
«Aqui é essencial encontrar o equilíbrio entre a governação científica e
a tradição local», respondeu.
Só quando Ambrósio se levantou, reparei no homem que estava em
pé, atrás de nós, no quintal. Ambrósio ausentou-se por vários minutos
antes de voltar.
«Convenci o director do projecto de estradas que está a trabalhar no
percurso para Nangade a usar o equipamento, enquanto este está no
distrito, para repavimentar a estrada que atravessa a cidade de Mueda»,
informou-nos com orgulho, olhando na direcção do homem que agora
se afastava. Nas semanas seguintes, observámos, de facto, escavadoras e
niveladoras a reparar a estrada esburacada que ligava uma extremidade
da cidade de Mueda à outra. Os habitantes, habituados a veículos
pouco velozes nessas mas, em breve fugiriam para salvar a vida, quan­
do os poucos veículos existentes na cidade começassem a transitar pela
estrada a velocidades vertiginosas.
Voltámos à nossa conversa.
«Há algum tempo, aldeões de Namaua mandaram-me dizer que pre­
cisavam de armas para matar vários leões que estavam a ameaçar a
população. Arranjei-lhes algumas armas mas, quando seguiram a pista
dos leões, chegaram a um ponto em que as pegadas de leão se transfor­
mavam em pegadas humanas. Perguntaram-me a mim o que deviam
fazer.» Ambrósio bebeu um pequeno gole de cerveja.
«O que é que lhes disse?», perguntei.

25
K u piliku la

«Respondi: ‘Pediram-me armas para matar leões; se não conseguem


encontrá-los, o problema é vosso, não meu.’» Levantou as mãos. «O que
podia eu fazer?»
Em anos anteriores, os administradores teriam intervindo energica­
mente em casos deste género, admoestando ou castigando os aldeões
que falassem de tais coisas como promotores do «obscurantismo».
Agora, o Estado agia com muita cautela.
Ambrósio fitou-me nos olhos. «É claro que as pessoas não conse­
guem fazer leões e mandá-los atacar outras pessoas. Estas coisas são
resultado de querelas entre famílias. As tensões levam a acusações de fei­
tiçaria.» Acabou a cerveja e gritou para a jovem, que estava dentro de
casa, para trazer mais três, embora nem eu nem Marcos tivéssemos bebi­
do sequer metade das nossas.
Dirigiu novamente a atenção para nós: «É essencial não nos deixar­
mos arrastar para essas questões. Se tentarmos fazer um julgamento, aca­
bamos sempre por tomar partido. É melhor deixá-los encontrar uma
solução sozinhos. Eu digo-lhes que devem ser eles próprios a resolver
estas coisas.»
Seguramente que a técnica administrativa de Ambrósio poderia ter
sido interpretada como uma forma de «descentralização democrática».
À medida que prosseguimos com a conversa, porém, tomou-se claro
para mim que a estratégia de Ambrósio também tinha outros motivos.
Num ambiente mültipartidário, Ambrósio e o seu partido, a Frelimo,
receavam perder votos. «A democracia», disse-me Ambrósio, «significa
que cada um tem o direito de acreditar no que quiser.» Se os aldeões
acreditavam que os seus vizinhos fabricavam leões que ameaçavam
matá-los, quem era Ambrósio, no novo Moçambique democrático,
para lhes dizer que estavam enganados?
Ironicamente, os anciãos de Kilimani, como muitos habitantes do
planalto de Mueda, interpretaram a atitude «liberal» de Ambrósio face
à feitiçaria de maneira bem diversa da que este pretendia. Um aspecto
fundamental daquilo que acreditavam e, agora, exprimiam livremente
acerca da feitiçaria era o de que a boa governação implicava não só a
administração dos assuntos terrenos, num mundo visível para todos,
mas também o exercício do poder sobre perigosos agentes - feiticeiros
- que operavam num reino invisível. Antes de a Frelimo reunir a popu­
lação do planalto em «aldeias comunitárias», estes anciãos, à semelhan­
ça de muitos outros da sua geração, viviam em povoações dispersas.
Aqueles que exerciam a autoridade nessas povoações estavam incumbi­
dos de vigiar e estruturar tanto o reino visível como o invisível, que esta­

26
Prólogo

vam ambos incluídos na sua jurisdição. De facto, desafiavam as formas


destrutivas de feitiçaria nas suas povoações através da prática da sua pró­
pria forma de feitiçaria. Os anciãos chamavam-lhe uwavi wa kudenga
(feitiçaria de construção). Muitos anciãos contaram-me que, quando a
ocorrência de feitiços atingia limites intoleráveis, o chefe da povoação
colocava-se no centro da mesma, a meio da noite, e gritava para todos
ouvirem: «Estou a ver-vos! Sei quem vocês são, feiticeiros que andam a
matar gente na minha povoação! Se não pararem, eu próprio tratarei de
vós! Estou a ver -vos! Sei quem vocês são!»
Os anciãos de Kilimani enviaram a sua carta a Ambrósio sabendo de
antemão que ele não os puniria por identificarem o feiticeiro que se
ocultava entre eles. Acompanhavam a evolução política em Mo­
çambique pela rádio, todas as noites. Sabiam que o socialismo da
Frelimo era coisa do passado - que a democracia tinha chegado a
Moçambique. Sabiam que os seus direitos à liberdade de expressão esta­
vam protegidos - que agora podiam falar abertamente sobre os feitiços.
Até ouviam notícias de incidentes relacionados com a feitiçaria nos
noticiários do serviço local da Rádio Moçambique emitido a partir de
Pemba.
O que pediram a Ambrósio não foi que «respeitasse as suas crenças»,
como ele dizia. Em vez disso, pediam-lhe que desse o tratamento devi­
do ao feiticeiro que tinham identificado. O partido de Ambrósio cons­
truíra as aldeias onde os habitantes do planalto viviam e continuava a
nomear os respectivos administradores. Por isso, concluíram os
anciãos, competia ao representante da Frelimo fazer aquilo que os
anciãos responsáveis faziam nas povoações de antigamente, ou seja,
policiar o reino invisível e pôr termo às actividades nefastas que os fei­
ticeiros nele desenvolviam. «Aqueles que governam a vida das pes­
soas», diziam muitos anciãos do planalto de si para si, «também devem
ser feiticeiros.»
Afinal, afigurava-se que Ambrósio não era tão perito como julgava
em vestir-se adequadamente para cada actividade exigida pelo seu
cargo. Muitos elementos da população entendiam as directivas com
que normalmente respondia aos pedidos para intervir em casos de fei­
tiçaria não como tolerância em relação à «tradição local», mas sim
como uma recusa a praticar contrafeitiçaria para travar os feiticeiros-
destrutivos que proliferavam em Mueda no período pós-socialista. Se
um homem com a posição de Ambrósio não praticava feitiçaria de
construção, pensavam eles, que tipo de feitiçaria praticaria? Talvez, insi­
nuavam por vezes, as suas roupas finas e outros objectos indicativos de

27
K u piliku la

riqueza pessoal fossem produto das suas próprias actividades depreda-


tórias no reino invisível.

Simão também era um homem de autoridade, ainda que a sua posi­


ção hierárquica fosse inferior à de Ambrósio. Muitos consideravam-no
igualmente capaz de realizar actos de feitiçaria, pois de outra forma
como poderia um homem tão novo ter atingido um estatuto tão pode­
roso? Porém, ele escutou as queixas dos aldeões de Kilimani. Em últi­
ma análise, foi ele que castigou o alegado feiticeiro. A admiração e o res­
peito que lhe eram demonstrados pela maioria das pessoas sob a sua
administração eram indissociáveis das decisões tomadas em casos como
o do incidente do leão em Kilimani.
No entanto, quando Simão nos fez o seu relato, perguntei a mim
mesmo o que teria o acusado pensado de tudo isto. Poucos dias depois,
Marcos e eu fomos a Kilimani para ver se conseguíamos obter uma ima­
gem mais ampla do que ali se tinha passado.
Simão tinha-nos avisado que a estrada para Kilimani tinha troços em
areia onde não conseguiríamos passar com a camioneta baixa e de caixa
aberta, sem tracção às quatro rodas, que tínhamos pedido emprestada
ao sobrinho de Marcos, Nelito, para a nossa pesquisa; teríamos, por
isso, de percorrer vários quilómetros a pé desde um acampamento de
madeireiros situado à saída da estrada Mueda-Ng’apa. Por este facto e
porque Marcos não conhecia ninguém em Kilimani, hesitando em apa­
recer por lá e começar a fazer perguntas delicadas sem ser apresentado,
aceitámos a oferta de Simão para nos acompanhar.
Quando chegámos perto da aldeia, Marcos pousou a mão no ombro
do seu antigo aluno e disse: «Simão, quando fazemos este tipo de tra­
balho, normalmente é melhor trabalharmos sós.» Simão, que estava cla­
ramente ansioso por participar na nossa equipa de investigação, pareceu
sentir-se traído.
Marcos reforçou a nossa solidariedade com Simão, ainda que à custa
dos aldeões: «Sabes como são as pessoas. Às vezes, ficam confusas se há
demasiadas ‘pessoas importantes’ por perto. Procuram dizer o que
acham que essas pessoas querem que digam, em vez de se limitarem a
contar as suas histórias e a responder às perguntas.»
Simão concordou.
Quando entrámos na aldeia, Simão apresentou-nos a Silvestre
Vintani, um homem de quarenta e muitos ou cinquenta e poucos anos,

28
Prólogo

supus eu, que segundo nos disseram era o juiz que presidia ao tribunal
da aldeia. Sentámo-nos em frente da casa de Silvestre e juntaram-se
alguns aldeões à nossa volta. Simão disse que tinha de se ausentar para
«tratar de outros assuntos», mas como a aldeia só tinha oito ou dez casas
e a maioria dos residentes estava a trabalhar no campo, havia pouco
para ele fazer e nenhum sítio onde pudesse desaparecer facilmente.
Deixou-se ficar debaixo de uma árvore, à vista, mas suficientemente
longe para não poder ouvir o que dizíamos.
Marcos e eu conversámos um bocado com Silvestre sobre a história
da aldeia que, segundo descobrimos, apenas tinha sido fundada no iní­
cio dos anos 80. Kilimani estava situada na orla descendente a sudoes­
te do planalto, perto de uma estação de bombagem de água das nas­
centes situadas nas terras baixas para abastecer as aldeias da planície.
Quando essa estação foi ameaçada pela Renamo durante a guerra civil,
o governo permitiu que quem tivesse terras nas redondezas deixasse a
sua aldeia comunitária (denominada Lunango), a duas horas de marcha,
e formasse uma pequena aldeia própria. Os aldeões seriam protegidos
pelas milícias governamentais que guardavam a estação de bombagem
e contribuiriam para a alimentação destas.
A certa altura, mudei o tema da conversa. «Ouvimos dizer que tive­
ram problemas com leões recentemente.»
«É verdade», confirmou Silvestre. «Começaram a aparecer no início
do ano passado. Vieram das terras baixas à volta de Nambali», disse,
apontando por cima do ombro.
«Nessa zona há muitos animais?», perguntei.
«Há macacos, mas pouco mais. Algumas gazelas.»
«E também não há lá leões e leopardos, normalmente?», perguntei,
lembrando-me do que tinha aprendido sobre a região em anteriores
conversas com caçadores do planalto.
«Às vezes, ficam leopardos presos nas armadilhas que fazemos para
os porcos do máto.»
«Então há lá porcos do mato?»
«Muitos. Dão-nos cabo dos campos, por isso fazemos armadilhas
para os apanhar.»
Pensei no que os caçadores me diziam: «Onde há carne, há carnívo­
ros.»
«Então», disse eu, «os leões foram vistos pela primeira vez no ano pas­
sado...»
«Leões e hienas. Vieram dos lados de Lunango. Esses animais ameaça­
ram-nos. Vieram direitos à nossa aldeia, às nossas casas, até às nossas por-

29
K u piliku la

tas. Foi uma luta para os afugentarmos. Uma luta renhida, garanto-vos.
O presidente da aldeia andou por aí de noite, a dizer às pessoas: «Não
quero essas feras por aqui! Se matarem alguém, eu mato essa pessoa!»
O relato feito por Silvestre da proclamação do presidente era uma
descrição inequívoca de uwavi wa kudenga (feitiçaria de construção).
Com a minha pergunta seguinte, dei a entender a Silvestre que o
tinha compreendido: «O presidente da aldeia sabia quem era o feiticei­
ro?»
«É possível», respondeu Silvestre. «Não sei. Não sei quem andava a
fabricá-los. Talvez o presidente da aldeia dessa altura o saiba, mas ele
reformou-se e já não está cá.»
Fiquei surpreendido. «Não houve aqui um julgamento?», inquiri.
Silvestre fitou-me de frente. «Como ninguém foi identificado, não
podia haver julgamento.»
Recostei-me na cadeira, sem saber como continuar. Viéramos falar
sobre o julgamento, mas o juiz da aldeia dizia-nos agora que não hou­
vera julgamento nenhum. Marcos devolveu o meu olhar de espanto
com uma expressão de confusão e frustração e, depois, reformulou a
pergunta, mas Silvestre voltou a invocar ignorância.
Esquecera-me completamente de Simão, que surgiu de repente no
meio de nós. Interroguei-me, por instantes, se a sua presença não seria
a causa das reticências do ancião, mas com Simão no nosso círculo,
Silvestre recomeçou a falar com confiança.
«A minha casa foi cercada por quatro leões», afirmou ele. «Vários
anciãos da aldeia concluíram que aquilo era obra de um certo homem
suspeito, que vivia entre nós. Esse homem foi confrontado e, pouco
depois, deixou a aldeia.»
Marcos acenou com a cabeça, em sinal de assentimento, a Simão,
que já estava sentado ao pé de nós. Isto fez-me entender como o caso
continuava a ser complexo e delicado para os habitantes de Kilimani,
mesmo nesta era democrática. Perguntava-me agora se Silvestre falara
porque tinha medo de Simão ou, talvez, dos superiores.de Simão. Em
caso afirmativo, será que os temia por serem funcionários do governo
ou por serem feiticeiros? Ou seria sequer possível fazer essa distinção?
Por outro lado, pensei, talvez ele tivesse receio de Marcos ou de mim.
Talvez ele tivesse medo por Simão. Talvez suspeitasse que o nosso inter­
rogatório podia levar à revogação da decisão em que ambos tinham
estado envolvidos.
Enquanto estes pensamentos me passavam rapidamente pela mente,
apercebi-me de outra figura que se aproximava. Ergui os olhos e vi um

30
Prólogo

homem idoso, de cabeleira branca e barba branca pouco cuidada, com um


andar rígido e um olhar intenso e ameaçador. Trazia uma espingarda apoia­
da no braço direito dobrado, com o cano comprido virado para mim. Um
rapaz que estava sentado num toro de madeira, por si trazido para o nosso
círculo, levantou-se e o velho sentou-se no seu lugar, à minha frente.
Marcos inclinou-se para ele, pousou-lhe a mão na pema e perguntou-
-lhe o nome. Era Francisco Shityatya Namalakola Ndomana Muen-
danene, informou-nos; e depois, de algum modo sabedor do tema da
nossa conversa, começou a falar.
«Os leões vieram três vezes à nossa aldeia. Da primeira vez, veio um
leão e roubou porcos da aldeia. Deixou ficar os chispes e os intestinos
deles ali perto. Isto fez-nos desconfiar. Que tipo de leão faz isto? Um
leão normal come tudo quando mata um porco, mas este leão deixou
os chispes porque tinham matacanhas [espécie de pulga, também cha­
mada bicho-do-pé].»
O cano da arma de Shityatya foi baixando à medida que ele se entu­
siasmava a contar a sua história. «Da segunda vez, quatro leões cercaram
a cabana deste aqui»,4 disse Shityatya, apontando para Silvestre.
«Aconteceu tudo de tarde, ao pé do campo dele.»
«Da terceira vez, entrou um leão na aldeia, mas não levou animal
nenhum. Só apanhou um par de calças que estava pendurado numa
corda a secar ao sol. Fora da aldeia, rasgou as calças e depois fugiu.»
Shityatya abanou a cabeça. «Só um ntumi kulambidyanga [falso leão]
faria tais coisas.»
«Chegou a saber quem andava a fazer essas coisas?», perguntei a
Shityatya.
Fitou-me intensamente, passando a mão no cano da espingarda.
«Porque não nos diz?», perguntei.
Olhou para a máquina fotográfica pousada em cima do meu saco de
viagem.
«Porque não usa a sua áênàdt Olhe para dentro da sua máquina e
diga-nos quem é o leão. Aqui, nós sabemos quando morre alguém e
sabemos quem são os que matam. Você tenta juntar uma coisa com a
outra. Nós não fazemos isso.»
Fiquei surpreendido. Aqui estava eu, a tentar estabelecer as ligações
que esperava que os aldeões estabelecessem enquanto eles me negavam
o que devem ter esperado que eu negasse.

4 Uma cabana é uma barraca provisória que serve de abrigo junto dos campos, no
auge das épocas agrícolas.

31
K u piliku la

«Ninguém fezyangele [adivinhação]?», perguntei.


«Não», respondeu firmemente. «Ayangele às vezes mente.»
O semblante de Shityatya mantinha-se carrancudo. As nossas per­
guntas não estavam a levar a lado nenhum. O cano da espingarda do
velhote estava de novo apontado para mim. Perguntei-me se estaria car­
regada e, depois, se ainda seria possível comprar munições para uma
arma daquelas.
Marcos percebeu a minha crescente ansiedade e aproveitou a ocasião
para desarmar Shityatya - de mais de uma maneira. Inclinou-se e pousou
a mão no cano da espingarda como que a identificá-la como objecto do
seu discurso, enquanto, subtilmente, a apontava para longe de mim.
«Espera-pouco», anunciou.
A expressão significa literalmente em português «aguarda um
momento», mas Marcos repetiu-me o que eu já tinha aprendido em
conversa com outros anciãos. Espera-pouco era a alcunha dada pelos
habitantes do planalto às espingardas de carregar pela boca que muitos
tinham adquirido na época do tráfico de escravos. Recarregar estas
armas com chumbo e pólvora após cada disparo revelava-se ineficaz no
calor da batalha. Os naturais de Mueda troçavam dizendo que os com­
batentes tinham de gritar para os inimigos «Espera-poucol», após cada dis­
paro, enquanto se apressavam a preparar o seguinte. A frase, transfor­
mada em nome, provocava invariavelmente o riso quando pronuncia­
da em conversa entre os anciãos. Quando a ouviram, as pessoas reuni­
das à nossa volta riram-se, como era previsível.
Shityatya olhou para Marcos. «Ehhh», disse, afirmativamente.
Marcos disse então: «Parece que estiveste muito tempo à espera,
nang3oh [ancião].»
A pequena multidão à nossa volta riu novamente, desta vez do velho
Shityatya.
Este lançou um olhar indignado a Marcos, que lhe sorria vitoriosa-
mente. O ancião retorquiu: «Não voltei a ter notícias do meu inimigo
desde que ele me mandou esperar. Parece que fugiu com medo. Mas
continuo à espera!» A multidão ria agora com o ancião, à custa de
Marcos.
Ainda assim, o curso do nosso encontro tinha mudado, como
Marcos pretendia. Os rivais tinham ganho respeito mútuo no seu curto
duelo de palavras. A cara de Shityatya suavizou-se com um sorriso,
enquanto deixava Marcos examinar a sua espingarda. Enquanto eu tam­
bém dava uma vista de olhos à arma, percebi que Shityatya se estava a
dirigir a nós mais uma vez.

32
Prólogo

«Sim, houve aqui um julgamento, no ano passado, por causa desses


leões.»
Falou, repentinamente, com franqueza e despreocupação, dando
pormenores. «Levou a que um homem fosse expulso da aldeia. Ele
tinha vindo há pouco tempo de Chicalanga, para cuidar dos campos de
cana-de-açúcar do pai. O pai dele era Assani Kuva, da likola dos
Malavoni [matrilinhagem], como o Silvestre. Estas terras são terras
Malavoni. Assani Kuva tinha aqui terras, mas foi obrigado a mudar-se
para Lunango, com o resto das pessoas, aquando da independência.
Pertenceu ao grupo que negociou com o governo a permissão para
podermos regressar para estas terras, mas morreu antes de nos mudar­
mos. O irmão dele, Mashalubu Kuva, informou o filho de Assani, Sefu
Assani Kuva, da morte do pai. Sefu estava, na altura, em Chicalanga
com a mãe, mas Mashalubu convidou-o a vir tomar posse dos campos
do pai aqui em Kilimani. Os campos são extensos e muito produtivos.
Por isso, ele veio.»
«Era bom agricultor?», perguntei.
«Era», confirmou Shityatya, a contragosto. «Tinha uma grande plan­
tação de cana-de-açúcar e também tinha bananeiras. Vinha gente de
Mueda para lhe comprar a cana-de-açúcar, as bananas e a lipa [bebida
alcoólica] que produzia. As terras do pai dele eram muito boas.»
«Como era o comportamento dele?», perguntei.
«Bebia muito e, quando estava bêbedo, costumava dizer, ‘Não se
metam comigo! Se eu quiser, posso fazer um leão e matar-vos!’ Toda a
gente que tinha plantações à volta abandonou-as com medo dele.»
«Então as ameaças dele eram a sério?», inquiri.
«Quando os leões começaram a aparecer, as pessoas foram ter com o
presidente da aldeia, que também era nhdaula [curandeiro]. Não sei se
ele fez adivinhação ou não, mas convocou todos os anciãos para se
encontrarem com ele nas terras baixas, e identificaram o criminoso.»
«O que lhe aconteceu?», perguntei.
«Foi sovado seis vezes com um chamboco5 e as terras foram-lhe tira­
das. Voltou para Chicalanga.»
Dias depois eu e Marcos fomos à procura de Sefu Assani Kuva em
Chicalanga, mas disseram-nos que estava longe da aldeia, em Nampula.
Não se previa que voltasse em breve.

5 U m chamboco é uma espécie de pá de fom o em madeira introduzida pelas autori­


dades coloniais para aplicar castigos corporais (Lopes, Sitoe e Nhamuende 2002, 45).

33
K u piliku la

Quando Marcos e eu deixámos Simão, após a nossa viagem a


Kilimani, e regressámos à cidade de Mueda no final do dia, encontrá­
mos uma tenda de venda de cerveja à beira do mercado e pedimos duas
garrafas.
«Então o que achas?», perguntei-lhe finalmente. «O Sefu Assani Kuva
fez os leões?»
«Ouviste o velho», respondeu Marcos num tom de brincadeira seme­
lhante ao meu.
Bebi um trago. Percebi que a jovem que servia na tenda estava à escu­
ta da nossa conversa. Quando olhei para ela, virou rapidamente a cara.
«Não fiquei convencido», disse a Marcos
Este defendeu a sua posição: «Aqueles leões foram à aldeia como se
andassem à procura de alguém. Demoraram-se perto das casas. Os leões
do mato não fazem isso. Deixaram partes do porco na aldeia porque
não quiseram comer matacanhas. Os leões do mato não fazem isso.
Levaram um par de calças do estendal e rasgaram-no. Alguma vez ouvis­
te falar de um leão do mato que fizesse isso!?»
«É verdade», admiti. «É estranho um leão do mato fazer coisas dessas.»
«Mas sabes qual é a prova decisiva?», perguntou-me Marcos.
«Não, qual é?»
«O tipo disse que sabia fazer leões. Disse-lhes que ia fazê-los! É um
feiticeiro, de certeza.»
Deixei-me ficar calado por momentos, preparando o que ia dizer.
Finalmente, retorqui: «Temos um tipo que vive com a matrilinhagem da
mãe em Chicalanga. Um dia, é-lhe dito que o pai morreu, mas que lhe
deixou muitas terras produtivas. Muda-se para Kilimani e começa a cul­
tivá-las. Mas ali vive entre pessoas de outra matrilinhagem, muitas das
quais ficaram aborrecidas por aquelas terras boas terem ido parar às
mãos de um estranho - não pertencente à matrilinhagem Malavoni.»
«Ehhh.» Marcos continuou a beberricar a sua cerveja.
«O tipo é insultado e maltratado desde o dia em que chegou. Talvez
seja um bom tipo, ou talvez seja um bêbedo insuportável, mas está cer­
cado de opositores e tem de se defender o tempo todo. Talvez os outros
o ameaçassem. Talvez lhe dissessem coisas que ele entendia como amea­
ças - como conversa de feiticeiros.»
«Então responde às ameaças deles com outras ameaças?», concluiu
Marcos, antecipando os meus argumentos.
«Sim.» Fiz uma pausa para beber um golo da minha cerveja. «A linha
entre defenderes-te a ti e ameaçares alguém - entre a coragem e a pro-

34
Prólogo

vocação - é muito ténue. Quem sabe o que disse o homem? Mas dis­
sesse o que dissesse, se lá ficasse no meio de tanta hostilidade, eles iam
preocupar-se com a sua coragem - preocupar-se com o que ele sabia.»
A expressão «saber alguma coisa» equivale, na língua shimakonde, a
um eufemismo para designar a feitiçaria. Os feiticeiros, segundo os habi­
tantes do planalto costumam dizer, receiam poucas coisas porque
«sabem algo» que os protege.
«Então e os leões?», perguntou Marcos.
«Sabes tão bem como eu que há leões por lá. Os caçadores estão sem­
pre a dizer-nos que existem leões - leões do mato, quero eu dizer -
naquelas planícies. Aquilo passou-se durante a estação das chuvas,
quando os léões gostam de sair das terras baixas e subir para o planalto.
Os Malavoni aproveitaram os leões para se verem livres do tipo.»
Marcos ficou calado por instantes. Depois disse: «Tens razão. Estas
coisas têm de ser estudadas cientijicamente.»
Fiquei calado, satisfeito por Marcos ter percebido a lógica da minha
interpretação do caso.
«Sabes o que se diz», acrescentou Marcos. «Onde há raios, os feiti­
ceiros usam-nos. Onde há guerra, os feiticeiros usam-na. Onde há doen­
ça, os feiticeiros usam-na. Estes Malavoni usaram leões.»
Vendo que estávamos a acabar as nossas cervejas, a empregada levan­
tou-se do banco e tirou outras duas do frigorifico. Limpou com a capu-
lana as gotas de condensação que molhavam as garrafas, abriu-as e pô-
-las na mesa baixa entre nós.
Lembrei-me que não sabia exactamente o que Marcos queria dizer
quando sugeria - coisa que fazia com frequência - que era necessário
estudar a feitiçaria «cientificamente».
«Talvez fossem apenas leões do mato», sugeri, sentindo o meu triun­
fo interpretativo a desvanecer-se.
«Mano», disse Marcos, com alguma exasperação. «Eles tiraram roupas
do estendal. Deixaram os chispes dos porcos. Alguém fez aqueles leões!»

35
I
Introdução

No decurso da investigação antropológica de campo que realizei de


1993 a 2004 entre a população do planalto de Mueda, estive presente e
participei com frequência em conversas centradas no tema da feitiçaria.
Esses diálogos são a fonte e a substância deste livro.
Quando participava nestas conversas, assumia por vezes - mas nem
sempre - uma atitude céptica. De vez em quando, os próprios habitan­
tes do planalto contestavam as ideias expostas pelos conterrâneos que
sugeriam, por exemplo, que alguns dos seus podiam fabricar ou trans-
formar-se em leões, converter outras pessoas em escravos zombies, ou
sabotar automóveis, camiões e helicópteros colocando neles os crânios
invisíveis de bebés cuja came tinham devorado.
«Isso é verdade?», ouvia-os perguntar.
«Impossível!», ouvia, por vezes, outros exclamar.
«Conheço uma mulher que assistiu a isso!», podiam responder
outros.
Ou, ocasionalmente: «Vi-o com os meus próprios olhos!»
Esses diálogos geravam muitas vezes outras perguntas - umas expres­
sas abertamente e outras implícitas nas expressões e acções subsequen­
tes dos interlocutores: Quem é o feiticeiro que está entre nós? Por que
razão foi escolhida esta vítima e não outra? O que pode ser feito para
eliminar ou deter estes feiticeiros ou, pelo menos, para nos protegermos
deles? Como se podem identificar os efeitos dos ataques dos feiticeiros
antes que seja tarde demais? O que se poderá fazer para reverter os pade­
cimentos que estes feiticeiros nos causam?
Em momentos de reflexão, estas perguntas suscitavam outras mais
vastas: Que mundo criámos para nós, com todos estes feitiços? Se não
fossem a nossa inveja e os nossos medos - se não fossem as nossas sus­
peitas e acusações - seria possível eliminar a feitiçaria do nosso mundo?

37
K u piliku la

Os debates sobre a feitiçaria que os naturais do planalto de Mueda


travavam e continuam a travar alastram muito para além das orlas do
planalto. No entanto, quando esses temas têm sido abordados nos cír­
culos governamentais, por exemplo na capital moçambicana, Maputo,
fazem-se perguntas diferentes. Enquanto alguns decisores políticos
questionam se uma maior tolerância oficial face às «crenças e práticas
locais» não poderia aliviar as tensões entre o Estado e as comunidades
rurais, outros perguntam se tais crenças e práticas não serão susceptíveis
de constituir um terreno fértil para o oportunismo e o charlatanismo,
além de poderem entravar o desenvolvimento económico, ao alimen­
tarem o medo de forças niveladoras sobrenaturais. Enquanto uns suge­
rem que as «autoridades tradicionais» podem servir para veicular a
expressão pública da «vontade popular» nas zonas rurais, outros adver­
tem que outorgar poder a instituições como estas é passível de minar o
Estado de direito e pôr em risco os direitos individuais consagrados na
nova Constituição moçambicana.
Há muita coisa em jogo nestes debates, não só para a democracia
moçambicana, mas também para inúmeras pessoas de carne e osso,
como o administrador do distrito de Mueda, Ambrósio Vicente Bulasi,
o presidente da localidade de Miula, Simão Benjamim, o juiz do
Tribunal de Kilimani, Silvestre Vintani, e o alegado feiticeiro Sefii
Assani Kuva. Enquanto os moçambicanos procuram consolidar a paz e
encontrar a prosperidade depois da guerra civil, tanto os responsáveis
governamentais como as populações sob a sua responsabilidade têm
procurado formas de assegurar a participação popular nos processos de
governação e de desenvolvimento económico. Dessa participação
dependem as vidas, as carreiras, as posses materiais e a dignidade huma­
na dos moçambicanos de todas as classes.
st-st-n-

O historiador camaronense Achille Mbembe defendeu que o projec­


to de democratização da África contemporânea depende não da aplica­
ção de um modelo ocidental de poder às realidades africanas, mas sim
de se cultivarem em África «outras linguagens de poder» que exprimam
uma ética política africana emergente. Estas linguagens, assevera
Mbembe, «devem emergir da vida quotidiana das pessoas [e] responder
aos medos e pesadelos de todos os dias, bem como às imagens com que
elas os exprimem ou sonham.» (citado em Geschiere 1997, 7)1

1 Ver também Ellis e ter Haar (1998,201); Palmié (2002,20). Compare-se esta posi­
ção com o apelo feito pelo escritor camaronense Daniel Etounga-Manguele para que se

38
Introdução

Na senda de Mbembe, considero que o discurso da feitiçaria presen­


te no planalto de Mueda é uma dessas «linguagens de poder». Com este
livro, procuro contribuir para que os decisores políticos, analistas,
comentadores eruditos e estudiosos dos assuntos africanos em geral
ponderem mais a fundo a importância da uwavi (feitiçaria) para a con­
cepção e o funcionamento do poder no planalto de Mueda e, por exten­
são, a relevância política dessas linguagens de poder noutras zonas da
África contemporânea e fora dela. Se Mbembe tiver razão - como acre­
dito que tem - este é um objectivo que urge alcançar. Enquanto os deci­
sores políticos e os cidadãos usarem linguagens de poder mutuamente
ininteligíveis, o projecto da democracia é impossível. Espero, por isso,
que o livro informe e desafie até os pontos de vista dos decisores polí­
ticos (quer estejam no governo, em agências internacionais ou em orga­
nizações não governamentais) que procuram promover a liberalização
política e económica de Moçambique - para não falar dos seus homó­
logos envolvidos em transições de regime noutras regiões do mundô.
Quando a diferença de perspectivas entre governantes e governados
resulta não só de uma má compreensão mas também de divergências de
interesses, alimento ainda a esperança de que um entendimento mais
profundo das linguagens de poder que as pessoas comuns usam para
exprimir os seus medos e os seus sonhos - parafraseando Mbembe -
equipe melhor os analistas políticos e os comentadores eruditos para
formularem as suas próprias perspectivas críticas sobre a reforma neoli-
beral em Moçambique e noutros países. Com esse objectivo, pretendo
que o livro contribua para os debates académicos sobre a cultura, o
poder e a governação na África contemporânea e noutros contextos
pós-coloniais e pós-socialistas. Espero que ele contribua para o surgi­
mento de um novo domínio de pesquisa: o estudo comparativo do
neoliberalismo e das cosmologias políticas que continuam a encontrar
expressão na esteira da expansão global do primeiro.
Espero, igualmente, que este livro tome mais próximos e acessíveis
aos estudantes alguns debates e questões que há muito animam as dis­
ciplinas de antropologia e filosofia política comparativa. Ao analisar o
discurso da feitiçaria entre os habitantes do planalto de Mueda, espero
ilustrar não só o carácter distintivo da cultura local, mas também a
humanidade que essas populações partilham connosco, num mundo'
contemporâneo profundamente complexo e interligado.

adopte um «programa de ajustamento cultural» africano destinado a resolver os actuais


males do continente {in Chabal e Daloz 1999,128).

39
K u piliku la

Por ironia, a interligação existente no nosso mundo dificulta o man­


dato de Mbembe para que se identifiquem e «cultivem» outras lingua­
gens de poder, pois, como veremos, muitos habitantes do planalto de
Mueda falam múltiplas linguagens de poder, tendo adquirido vários
graus de fluência nas que lhes foram sendo apresentadas ao longo dos
anos pelos seus Outros, incluindo a linguagem do tráfico de escravos, a
linguagem do colonialismo português, a linguagem do nacionalismo
revolucionário, a linguagem do socialismo científico e, por fim, a lin­
guagem da democracia neoliberal.
Os naturais do planalto de Mueda não se encontram de modo algum
sozinhos na utilização das linguagens dos Outros. Na verdade, como o
linguista russo Mikhail Bakhtin afirmou, as palavras que qualquer pes­
soa profere já são sempre pertença de outrem e vão sempre tomar-se
propriedade de outrem ainda (Todorov 1984, x): «Nenhum membro de
uma comunidade verbal pode jamais encontrar palavras nessa língua
que sejam neutras, isentas das aspirações e avaliações do outro, não
habitadas pela voz do outro. Pelo contrário, recebe a palavra pela voz
do outro e a palavra fica impregnada dessa voz. Intervém no seu pró­
prio contexto a partir de outro contexto, já penetrado pelas intenções
do outro. A sua própria intenção encontra um mundo já habitado.»
(citado em Todorov 1984,48)2 Segundo Bakhtin, não só cada elocução
é formada dialogicamente, intersubjectivamente, mas o mesmo aconte­
ce com as línguas. Consequentemente, o universo linguístico, tal como
Bakhtin o concebe, compreende «uma multiplicidade de línguas, que se
animam mutuamente» (Todorov 1984,15).
Embora as fronteiras que delimitam várias línguas, bem como as
comunidades dos que as falam, possam ser frágeis fantasias sociais, a uti­
lização da língua (para não falar do seu estudo) exige, no entanto, que
se imaginem essas fronteiras, que se presuma a existência de um «nós»
em cujo seio a experiência e o significado sejam partilhados (Voloshinov
citado em Todorov 1984, 42),3 e que a língua seja utilizada, de um
modo geral, como se fosse um sistema estável.4 Segundo Bakhtin, essas
fantasias dão origem a «esferas de linguagem» que incluem «elocuções
relativamente estáveis», que classifica como «géneros discursivos»

2 Cito o trabalho de Bakhtin a partir de Todorov devido à qualidade da tradução.


3 Vários estudiosos têm posto a hipótese de Voloshinov, o associado de longa data
de Bakhtin, ser, de facto, autor de muitos trabalhos publicados com o nome deste, ou
de Bakhtin ter usado o de Voloshinov como pseudónimo.
4 Ver também Leacli (1954) e Wagner (1975) sobre a cultura como um sistema «como se».

40
Introdução

(Todorov 1984, 82). «Cada género», escreve Medvedev, «tem os seus


métodos, as suas maneiras de ver e compreender a realidade, e estes
métodos são a sua característica exclusiva.» (Todorov 1984, 83)5
Procurando cumprir o mandato de Mbembe, concentro-me, neste livro,
no género discursivo da uwavi, ou discurso da feitiçaria.6
Traduzo uwavi como «feitiçaria», mas também uso este termo shima-
conde ao longo do texto para recordar aos meus leitores o carácter dis­
tintivo das «maneiras de ver e compreender o mundo»7 próprias da

5 Medvedev, tal com o Vòloshinov, era membro do círculo de Bakhtin; e os estudio­


sos questionam, igualmente, se os trabalhos publicados em seu nome seriam da sua
autoria ou da de Bakhtin.
6 Incluo no conceito de linguagem da feitiçaria {qua linguagem de poder) não só as
trocas verbais mas também - de um m odo mais foucaultiano - as práticas não verbais
conexas. John Bowen (1993,179) e Diane Ciekawy (2001,182-183) também adoptaram
o «discurso da feitiçaria» («discurso utsai» no segundo caso) com o objecto de estudo.
7 A tradução de uw avi por feitiçaria não está isenta de problemas. Quando os natu­
rais de Mueda com quem trabalhei traduziam uw avi para português, usavam a palavra
feitiço, derivada de uma forma antiquada do verbo «fazer» e que significa, literalmente,
«coisa feita» (ver Rosenthal 1 9 9 8 ,1 ).,0 termo portuguêsfeitiço, no entanto, pode ser tra­
duzido em inglês com o «witchcrqj» (bruxaria), «sorcery» (feitiçaria) ou «magic» (magia).
N o seu trabalho inovador entre os azandes, Evans-Pritchard faz a distinção entre m angi,
que traduziu com o «feitiçaria», e ngwa, que traduziu com o «magia». A mangu, segundo
entendia, baseava-se em «poderes hereditários psicofisicos» (por vezes desencadeados de
forma inconsciente). Pelo contrário, a ngwa baseava-se no uso consciente de substâncias
mágicas e de fórmulas encantatórias que tinham de ser aprendidas (Evans-Pritchard
1976 [1937], 176). De acordo com as definições azandes, segundo Evans-Pritchard, a fei­
tiçaria era maléfica. A magia, porém, dividia-se em duas categorias. A magia usada para
vingar o homicídio de um familiar por um bruxo - «magia de vingança» - era uma
forma de «magia boa» (que Evans-Pritchard também denominava «magia branca»). Em
contrapartida, a magia usada para prejudicar ou matar outras pessoas, sem provocação
da sua parte, era uma forma de «magia má» (a que ele também chamava «magia negra»).
Evans-Pritchard traduzia igualmente esta última categoria com o «feitiçaria» (Evans-
-Pritchard 1976 [1937], 176,189; 1970 [1931], 2 5 ,2 6 ; 1970 [1929]).
N ão obstante o facto de os habitantes do planalto de Mueda me terem sugerido, por
vezes, que a uw avi pode ser passada de pai para filho (como a «bruxaria» azande defi­
nida por Evans-Pritchard), davam geralmente mais ênfase à ideia de que a uw avi deve
ser aprendida (como a «magia» azande definida por Evans-Pritchard). Além disso, aque­
les com quem trabalhei entendiam que determinadas substâncias físicas (chamadas mite-
Idj eram essenciais para a prática da uwavi, mesmo que não fossem só por si suficientes
para essa prática. Considerando tudo isto, afigura-se que «magic» seria o melhor termo
da língua inglesa para traduzir o conceito de uwavi. N o entanto, ao traduzirem uwavi
pelo termo português feitiço, os habitantes do planalto de Mueda evitaram explicita-
mente o termo português m aga - palavra cuja forma e significado estão mais inequi­
vocamente ligados à palavra inglesa «magic». De qualquer m odo, o termo inglês «sorce-
iy» transmite mais eficazmente o sentido «sombrio» (Geschiere 1997, 58), até sinistro,
atribuído ao conceito de uw avi (ver também Ciekawy 2001, 158-159). Embora, como
iremos ver, a sua prática nem sempre seja considerada perversa, a uw avi é sempre reco­
nhecida como potencialmente ameaçadora.

41
K u piliku la

uwavi. Por «distintivo» não quero dizer «exclusivo». Os discursos do ocul­


to estão disseminados não só pela África mas também por outras partes
do mundo e, não obstante a ideia de Medvedev de que os géneros dis­
cursivos possuem «características exclusivas», os discursos do oculto par­
tilham muitas características.8 Consequentemente, por «distintivo» não
quero dizer ininteligível para os outros. Entendo que é possível apren­
der géneros discursivos como o da uwavi através de um empenho dia-
lógico. Na verdade, podemos aproximar-nos das maneiras de ver e com­
preender o mundo próprias da uwavi noutra língua, embora algo se
perca inevitavelmente na tradução.9 Porém, tal como os habitantes do
planalto de Mueda se relacionam com o seu mundo através de múlti­
plas linguagens, o mesmo devem fazer aqueles que procuram aprender
alguma coisa sobre as suas perspectivas e experiências distintivas. Deste
modo, Mbembe não nos insta apenas a traduzir ou a explicar as lingua­
gens africanas de poder para públicos não africanos. Desafia-nos, em
vez disso, a relacionarmo-nos através dessas linguagens com as realida­
des africanas das quais elas dificilmente podem ser destrinçadas. Peço,
por isso, aos meus leitores que me acompanhem neste diálogo com a
uwavi do planalto de Mueda aprendendo alguns termos em shimacon-
de - que participem no projecto de desenvolver um léxico comum mais
amplo, através do qual possam aprender mais sobre as realidades desse
povo, para não falar da realidade que com ele partilhamos - embora eu
limite o número de palavras em shimaconde utilizadas no texto para
assegurar a sua legibilidade.10
À medida que abordo o discurso da uwavi nestas páginas, através de
múltiplas linguagens de poder, apresento aos leitores questões que os
habitantes do planalto de Mueda reconheceriam como suas e outras
que eles não reconheceriam desse modo. Entre as perguntas que for­
mulo no género discursivo da antropologia sociocultural, incluem-se as
seguintes: Em que contextos culturais e históricos surgiu e floresceu a

8 Em conjunto com Todd Sanders, abordei este tema na introdução a um livro publi­
cado que apresenta etnografias contemporâneas de discursos do oculto, que vão desde
a feitiçaria e o xamanismo até aos mitos urbanos e à teoria da conspiração (West e
Sanders 2003).
9 Wyatt MacGaffey (1980) argumentou que conceitos com o uw avi vãa são, em últi­
ma análise, passíveis de tradução. Ver também Tumer (1964); Fadiman (1993, 14-15);
Abrahams (1994, 10); Saler (1967, 72). Geschiere, pelo contrário, alega que os próprios
africanos traduziram esses conceitos para as línguas europeias que conhecem e que os
estudiosos podem, e devem, seguir-lhes o exemplo (1997, 14).
10 Ao aderir ao envolvimento dialógico com outras línguas, inspiro-me em Rosaido
(1980, 20) e Limón (1994). Ver também Pels (1998, 201).

42
Introdução

uwavi na região? Em que medida o discurso da uwavi constitui uma


forma distintiva de «conhecimento local» sobre o funcionamento do
poder em Mueda, e em que medida é produto da participação dos seus
habitantes no «mundo moderno»? Em que é que as concepções de
poder dos habitantes do planalto, tal como são expressas através do dis­
curso da uwavi, diferem das concepções de poder expressas nos discur­
sos mundiais que actualmente inspiram a reforma democrática e a libe­
ralização económica em Moçambique ou se assemelham a elas? As
declarações das pessoas de Mueda no género discursivo da uwavi escla­
recem estes acontecimentos e processos contemporâneos? Ou será que
elas ficam confusas devido à sua «crença» na uwavi? E, finalmente, quais
são as implicações do discurso da uwavi para o actual projecto de refor­
ma económica e política em Moçambique?
Quando relato as conversas em que participei sobre pessoas que se
transformam em animais, voam invisivelmente através da noite e devo­
ram a came dos vizinhos e parentes, também recoloco as perguntas que
os habitantes do planalto de Mueda faziam no género discursivo da
uwavi - perguntas que podem ter inflexões únicas, mas que deverão ser,
ainda assim, compreensíveis para os leitores. Na linguagem da feitiçaria,
os habitantes do planalto refleçtem sobre a natureza da realidade em
que estão imersos, perguntando' se é possível que alguns dos seus des­
frutem, de algum modo, de um acesso privilegiado a essa realidade, que
lhes permite controlá-la. Interrogam-se se, e como, algumas pessoas
conseguem obter e utilizar formas de poder exclusivas - ou mesmo
indetectáveis - enquanto outras não o conseguem. Ao discutir os even­
tuais motivos, meios e identidades dos feiticeiros, perscrutam as insti­
tuições e as normas que regem o mundo em que habitam. Perguntam
quem infringe estas normas e quem sofre as consequências das infrac-
ções. Interrogam-se, em voz alta, se as instituições e disposições políti­
cas existentes ou propostas são suficientes para proteger o bem comum
- se, na verdade, tais instituições e disposições se destinam mesmo a
fazê-lo.

tf* * *

Como o discurso da uwavi constitui um diálogo social situado no'


espaço e no tempo, o seu carácter distintivo está ligado à história social
específica daqueles que o produziram e mantiveram. Na senda de
Balchtin, que nos diz que «os géneros discursivos... são as correias de
transmissão entre a história social e a história linguística» (Todorov

43
K u p ilik iã a

1984, 81), e de Medvedev, que afirma que «a verdadeira poética do


género só pode ser uma sociologia do género» (Todorov 1984, 80), o
meu estudo do discurso da uwavi é necessariamente uma sociologia his­
tórica dos que participaram na conversa que é a uwavi. Nestas páginas,
conto a história de um mundo social feito e refeito pelas forças sociais
do tráfico de escravos, da conquista e da administração coloniais, do
nacionalismo revolucionário, da modernização socialista e da neolibe-
ralização pós-socialista. Conto também a história da relação dialéctica
dos habitantes de Mueda com este mundo em mudança - a história de
como, através da reprodução do discurso da uwavi, reproduziram: o seu
mundo. Nesse processo, o próprio discurso da uwavi foi-se transfor­
mando, na interface com outras linguagens de poder que se tornaram
correntes no planalto. Na verdade, muitos dos seus habitantes cujas his­
tórias narro são notoriamente fluentes noutras linguagens de poder
além da uwavi, invocando múltiplas lógicas interpretativas no meio de
experiências históricas concretas.11 O meu relato da dinâmica histórica
do discurso da feitiçaria constitui, segundo creio, um dos principais
contributos do livro para a literatura sobre as cosmologias do oculto em
África e não só.
Em última análise, concluo, com Balchtin, que embora o «género
viva no presente... recorda-se sempre do passado... garantindo a uni­
dade e a continuidade da [evolução da memória criativa]» (Todorov
1984, 84). Assim, enquanto vão reproduzindo o género discursivo da
uwavi, os habitantes do planalto de Mueda vão mantendo sensibilida­
des distintivas sobre o funcionamento do poder no mundo onde
vivem. Interpretam e interagem com o seu mundo através de um esque­
ma cultural dinâmico mas duradouro (Ortner 1990), historicamente
sustentado no género discursivo da uwavi. De acordo com este esque­
ma, o poder é, por definição, a capacidade excepcional de transcender
o mundo que a maioria das pessoas conhece, com o objectivo de obter
influência sobre ele para fins extraordinários. Os feiticeiros movem-se

11 Helen Verran, que estudou a aprendizagem e a lógica entre estudantes de mate­


mática na Nigéria, sugere que, mesmo m m âmbito como o da matemática, «[são] possí­
veis muitas lógicas, em resultado de diferentes métodos de utilização de símbolos na
representação», e que os mundos emergentes destas lógicas distintas não estão «herme­
ticamente separados uns dos outros» (2001, 218-219). Verran afirma que as lógicas dis­
tintas «constituem mundos de conhecimento nos quais os indivíduos conhecedores
podem entrar e dos quais podem sair», consoante a sua experiência, e que, consequen­
temente, «esses indivíduos conhecedores podem aprender a trabalhar em múltiplos
domínios simbólicos e formular métodos de tradução precisos entre os códigos».

44
Introdução

num reino para além do mundo visível. Deste ponto de observação pri­
vilegiado, visionam o mundo diferentemente das pessoas normais e tor­
nam as suas visões realidade, geralmente ao serviço dos seus próprios
interesses egoístas e em detrimento de vizinhos e parentes. Embora o
poder produza, de facto, disparidades visíveis em termos de riqueza e
de bem-estar, segundo este esquema, os mecanismos e a dinâmica explí­
citos do poder permanecem ocultos das pessoas comuns, que são, por
definição, relativamente destituídas de poder.
Este esquema cultural não postula, todavia, que todo o poder é des­
trutivo. Na verdade, ele é essencial para a produção e a manutenção do
bem-estar spcial. O poder manifesta-se de forma benéfica nos actos de
figuras de autoridade responsáveis, que - tal como os feiticeiros malé­
volos - possuem a capacidade de entrar no reino invisível para formu­
lar e realizar visões transformadoras do mundo. O exercício benéfico do
poder implica, de facto, que se transcenda o mundo produzido pelos
feiticeiros maléficos e que se desfaçam os seus actos de poder destruti­
vos. O poder é, assim, uma série infindável de manobras transcenden­
tes e transformadoras, cada uma das quais ultrapassai contraria, inverte,
derruba e/ou reverte a precedente. Na verdade, é sinónimo de tais
manobras: o desfazer e refazer decisivos (ainda que temporariamente)
do exercício do poder de outrem, aquilo que no discurso da uwavi se
denomina kupilikula.
Mesmo estando expostos a outras linguagens de poder, que em
alguns casos passaram a dominar, os habitantes de Mueda têm com­
preendido e interagido com um mundo em mudança inspirados pelo
esquema cultural da uwavi. De facto, eles consideram geralmente que
aqueles que falam linguagens de poder não familiares sãofeiticeiros que
proclamam visões transcendentes de um mundo transformado. Assim
aconteceu, como veremos, com os administradores coloniais, os mis­
sionários católicos, os guerrilheiros nacionalistas e os planificadores
socialistas.
Por ironia, ao conceberem essas figuras de poder como feiticeiros, os
habitantes do planalto vão articulando as suas próprias visões do
mundo - visões que fixam essas figuras de poder no seu olhar. Têm par­
ticipado, de forma tentativa, cautelosa, nos diálogos travados no seu
seio, contrariando, invertendo, derrubando e/ou revertendo muitas das
afirmações feitas por interlocutores com mais voz e mais poder. Têm
efectuado eles próprios, discretamente, as suas próprias contramanobras
(kupilikula), apesar de dizerem - tal como os feiticeiros e contrafeiticei-
ros - que não possuem poder para isso.

45
K u piliku la

No período pós-socialista, durante o qual realizei a minha investigação


de campo, os habitantes do planalto depararam-se com mais uma lin­
guagem de poder: o discurso da reforma neoliberal. Os que falavam esta
linguagem sugeriam que, ao fim de anos de guerra civil debilitante e cres­
cente corrupção, o poder em Moçambique poderia ser racionalizado atra­
vés da abertura dos mercados, da realização de eleições multipartidárias e
da consolidação constitucional dos direitos dos cidadãos. Os reformado­
res neoliberais, à semelhança dos seus predecessores - fossem eles admi­
nistradores coloniais, missionários católicos, guerrilheiros nacionalistas ou
planeadores socialistas - proclamaram a sua visão de um mundo trans­
formado. Ao contrário dos antecessores, sugeriram que o mundo que
projectavam concedia espaço às visões - «tradições» - daqueles que gover­
navam. Na verdade, estes reformadores sugeriam que, com o estabeleci­
mento da democracia, os moçambicanos se podiam governar com eficiên­
cia de acordo com as suas próprias visões do mundo (desde que o vissem
como os reformadores esperavam). Apesar dessas afirmações, os habitan­
tes do planalto detectaram uma dinâmica perturbadora na ordem políti­
ca emergente. Menos do que dar-lhes poder como cidadãos, a retirada do
Estado de várias esferas da vida do planalto deixava-os vulneráveis ao exer­
cício desenfreado do poder por indivíduos, locais e estrangeiros, que só se
preocupavam com os seus próprios interesses. Nos «espaços» concedidos
por um regime mais «tolerante», os habitantes do planalto viram os pode­
rosos saciar os seus apetites à custa dos outros. Entenderam que esse
poder maléfico estava ligado à recusa das autoridades governativas de
vigiar e controlar a dinâmica invisível do poder e de o exercer em nome
de todos. Na realidade, a população observou nos processos da reforma
neoliberal a transformação de autoridades benéficas em agentes malévo­
los. Enquanto os reformadores afirmavam, no género discursivo do neo-
liberalismo, uma visão do mundo em que o funcionamento do poder era
tomado transparente e, logo, passível de controlo popular, a população
do planalto manifestava uma suspeita persistente e uma profunda ambi­
valência em relação ao poder, através do género discursivo da uwaui. No
preciso momento em que os reformadores tentavam (ou diziam estar a
tentar) eliminar os «conflitos endémicos», os «abusos de poder» - e até a
própria «política» - do domínio da governação, os habitantes de Mueda
preservavam, através do discurso da uwavi, o seu entendimento de que a
vida social é, inevitavelmente, uma luta infindável entre forças rivais
potencialmente perigosas.
Ao contradizerem a linguagem da reforma neoliberal com as suspei­
tas expressas na linguagem distintiva da uwavi, os habitantes do planal-

46
Introdução

to, como sugeri, não se revelaram excepcionalmente desconfiados. Nem


demonstraram que o discurso da uwavi era uma linguagem que predis­
punha os seus utilizadores a olharem o poder com excepcional ambiva­
lência. Defendo que nem os habitantes do planalto, nem o discurso da
uwavi resistiram sequer aos olhares regulamentadores do poder - fosse
na era colonial, no período socialista ou na época contemporânea de
reforma neoliberal. Pelo contrário, no meu entender, o discurso da
uwavi dotou estas populações de um órgão sensorial (Cassirer 1946: 8),
através do qual percepcionam profundas contradições na ordem neoli-
beràl emergente. Através do discurso da uwavi, os habitantes de Mueda
(re)fizeram o seu mundo, ainda que não da forma desejada. Visionaram
um mundo dentro dos limites do historicamente concebível. Na reali­
dade, articularam visões de um mundo que percebiam não ser, decidi­
damente, obra sua, ao mesmo tempo que o encaravam com insatisfa­
ção e alarme. Continuaram, assim, a revirar (kupilihtla:) os poderes com
que iam deparando - para espreitarem o seu perigoso lado oculto e
verem, ainda que vaga ou momentaneamente, aquilo com que estavam
confrontados.

O que sei da uwavi resulta, como disse, do meu próprio envolvi­


mento dialógico no discurso que lhe é característico - das inúmeras
conversas em que participei desde que iniciei o trabalho de campo em
Mueda, no ano de 1993. O meu entendimento da uwavi está tão asso­
ciado a estas conversas que optei por utilizar alguns diálogos exemplifi-
cativos como módulos constitutivos do presente livro. Em vez de expor
os meus argumentos em capítulos dimensionados como artigos, ofere­
ço aos meus leitores capítulos mais curtos, cada um deles enquadrado
por excertos narrativos de uma ou mais conversas partícularmente esti­
mulantes em que participei. Destas descrições, surgem questões que se
convertem na substância da minha argumentação.
E claro que o conhecimento da feitiçaria não pode ser adquirido atra­
vés de meras conversas sobre o assunto. Embora falar de feitiçaria possa
colocar uma pessoa inevitavelmente no seu domínio (Favret-Saada
1980), ela é vivida de forma subjectiva por diversos tipos de actores em
registos muito diferentes e através de vários sentidos (Stoller 1995). Tal
como as referidas descrições mostram, o meu «diálogo» com os habi­
tantes do planalto de Mueda compreendeu vários tipos de interacções
e intercâmbios verbais e não verbais, incluindo a participação em práti-

47
K u piliku la

cas socialmente significativas, que me proporcionaram vários tipos de


experiências subjectivas.
Muitos dos que realizaram investigação antropológica sobre feitiçaria
tomaram-se aprendizes de feiticeiros, ou de curandeiros que combatem a
feitiçaria (Castaneda 1968; Stoller e Olkes 1987; Stoller 1989; Plotldn
1993; Prechtel 1999).12 O etnomusicólogo John Chemoff alegava que a
aprendizagem permite que o investigador «traga algo de uma ordem dife­
rente para o seu próprio mundo de compreensão, ao mesmo tempo que
o reconhece e aprecia nos seus próprios termos» (1979, 3). No entanto,
como praticamente ninguém em Mueda confessa ser feiticeiro, tomar-me
aprendiz de um deles teria sido impossível. No passado, os curandeiros
que combatiam a feitiçaria eram, de um modo geral, treinados e iniciados
por mestres, mas a aprendizagem da contrafeitiçaria está a ceder terreno,
em Mueda, a curandeiros autodidactas. Quase todos os habitantes do pla­
nalto «aprendem um pouco de curandeirismo» ao longo da vida, e eu fiz
precisamente ò mesmo junto de pessoas comuns e de curandeiros espe­
cializados. Embora se possa dizer que as minhas extensas (e em alguns
casos intensas) perguntas sobre a feitiçaria constituíam uma espécie de
aprendizagem, nem eu nem os meus interlocutores entendíamos habi­
tualmente que eu me estava a treinar como curandeiro antifeitiçaria,
embora mais de um curandeiro tenha acabado por me considerar como
um «colega» em matéria de conhecimentos nessa área.
Como muitos estudiosos da feitiçaria, insiro-me na minha narrativa,
produzindo aquilo que James Clifford - na senda de Bakhtin - deno­
minou «etnografia dialógica» (Clifford 1988, 41-44). Porém, enquanto
outros estudiosos de feitiçaria usaram a história da sua aprendizagem
como fio condutor da narrativa - muitas vezes sob a forma de relatos
da sua caminhada pessoal da incompreensão ao entendimento - eu
rejeitei este tropo narrativo. Fui levado a fazê-lo pela tensão incómoda
que descobri existir entre a minha experiência de estudo da uwavi no
terreno e o entendimento da uwavi que desenvolvi ao longo dos anos,
tanto no terreno como «na minha terra». No terreno, o estudo da uwavi
era, com frequência, profundamente desorientador. Os conhecimentos
adquiridos num dia perdiam-se no dia seguinte, quando eu recolhia
dados contraditórios ou me dava conta da existência de perspectivas dís­
pares. A minha viagem não só não era linear como parecia não levar a
um destino final. Quanto mais estudava a uwavi, menos parecia saber.

12 Evans-Pritchard colocou o seu assistente de campo com o aprendiz dos feiticeiros


que estudou. (1976 [1937]).

48
Introdução

Os naturais do planalto com quem trabalhei - incluindo alguns curan­


deiros antifeitiçaria afamados - diziam-me, muitas vezes, que eles pró­
prios não sabiam o caminho para o entendimento da uwavi. O que o
discurso da uwavi dizia aos habitantes do planalto era que o mundo é
feito, desfeito e refeito num reino oculto. Aquilo que a maioria deles
sabia sobre a uwavi era que não sabia uwavi. Esta situação - para não
mencionar a minha experiência dela enquanto antropólogo - pode ser
trivial (Taussig 1987; Stoller e Olkes 1987; Stoller 1989) mas, através do
tropo da aprendizagem, os antropólogos deram, com frequência, uma
impressão bastante diferente.13
Na construção de uma narrativa etnográfica, é difícil não atribuirmos
algum tipo de sentido ao tema em causa. De facto, como dificilmente
podemos viver num mundo sem procurarmos compreendê-lo, tentei, tal
como os habitantes de Mueda com quem conversei, ver o invisível,
conhecer o incognoscível e compreender o que não tem sentido. Algo
bastante diferente, porém, é sugerir que esse sentido se revelou, como tal,
durante a investigação no terreno. O meu esforço para compreender a
uwavi não se confinou ao tempo que passei no planalto. O meu enten­
dimento da uwavi era continuamente transformado em vários outros
contextos - na biblioteca, na sala de seminário e em frente do ecrã do
computador. O presente livro transmite esse entendimento no momen­
to em que o escrevi. Embora contenha descrições de acontecimentos e
conversas ocorridos durante a investigação de campo, a cronologia destes
encontros conduziu, na minha narrativa, a outra ordem de apresentação,
pois cada um dos episódios que a constituem acabou por coexistir, na
minha memória, com outros que se questionavam entre si, através das
fronteiras do espaço e do tempo, cada um deles esclarecendo ou lan­
çando a confusão sobre os restantes. A narrativa não só acompanha
diversas vertentes da história do planalto, como abre caminho através da
lógica da uwavi, tal como acabei por as conceber a umas e a outra,
andando continuamente para trás e para a frente entre a simplicidade e
a complexidade, a clareza e a ambiguidade, a certeza e a dúvida.
O livro divide-se em três partes. Os capítulos da parte I oferecem aos
leitores uma descrição sucinta da lógica que caracteriza genericamente

13 Veja-se Stoller, que oferece um relato bastante matizado de uma viagem de inves­
tigação repleta de interrupções e desvios, que abandonou sem ter completado, dizendo
aos seus leitores: «ter persistido naquele caminho desconhecido impedir-me-ia de vos
contar a minha história» (Stoller e Olkes 1987,229). (Cf. Van Binsbeigen, que informa
os seus leitores de que, depois de «se tomar um sangoma», o discurso antropológico pas­
sou a ser irrelevante para ele; 1991, 333).

49
K u piliku la

o reino da uwavi, bem como do modo como a uwavi reflecte e refracta


as relações sociais. A parte II conta-nos a história das transformações
sofridas pela uwavi num mundo sujeito ao colonialismo português e à
evangelização cristã, seguidos pelo nacionalismo revolucionário e pela
modernização socialista. A parte III regressa aos dilemas do presente,
que apresentámos no prólogo, resultantes da reforma neoliberal da eco­
nomia e da governação moçambicanas. Cada uma das três partes é ante­
cedida por um breve resumo do que será tratado e das conclusões a
extrair dos capítulos nelas contidos. Os leitores que quiserem ter ante­
cipadamente uma descrição mais pormenorizada do livro deverão ler
agora estes três resumos seguidos, antes de prosseguirem.

A minha compreensão da uwavi foi produtivamente inspirada e rigo­


rosamente posta em causa pelas pessoas que me assistiram na investiga­
ção de campo e comigo participaram mais intensivamente no diálogo
sobre o poder e o seu funcionamento em Mueda. Quando, em 1993,
informei Estêvão Mpalume - director do núcleo dos Arquivos do
Património Cultural, ou Arpac, de Cabo Delgado, instituição que foi
minha anfitriã enquanto estive no terreno - de que desejava trabalhar
com dois assistentes de pesquisa, um homem e uma mulher, ele apre-
sentou-me a Felista Elias Mkaima. Felista tinha então vinte e poucos
anos. Era casada com um funcionário do governo provincial e tinha
dois filhos pequenos. Não tinha tido trabalho desde que terminara a
escolaridade, mas Mpalume garantiu-me que depois de adquirir expe­
riência de pesquisa trabalhando comigo, seria contratada pelo
Arpac-Pemba, que não tinha quaisquer funcionários do sexo feminino
na altura.14 Durante o período de pesquisa para a minha dissertação
(1993-1995), paguei um salário diário a Felista, que ela umas vezes usava
para aumentar o rendimento do agregado familiar e outras dava ao pai,
um oficial militar reformado. Felista era a minha principal assistente de
campo quando eu estava em Pemba, capital da província de Cabo
Delgado, fazendo contactos em meu nome, marcando entrevistas, reco­
lhendo dados e copiando documentos. Acompanhava-me frequente­
mente quando eu ia ao planalto de Mueda. Hesitante no início, Felista
rapidamente aprendeu a fazer investigação no terreno. Veio a tomar-se

14 Isto não chegou a acontecer, pois Mpalume saiu do Arpac antes de Felista ter ter­
minado a colaboração comigo.

50
Introdução

perita na condução de entrevistas, conseguindo que os pequenos gru­


pos de mulheres com quem trabalhámos falassem sobre as suas vidas na
presença de um homem estrangeiro e branco - o que não era tarefa fácil
no Moçambique rural.
Para completar a minha equipa de investigação, Mpalume dispensou
um dos seus investigadores, Eusébio Tissa Kairo, para ir trabalhar comi­
go no terreno durante longos períodos. Quando cheguei à província de
Cabo Delgado, Tissa tinha vinte e poucos anos e estava a estudar para
concluir o ensino secundário, na esperança de conseguir entrar na uni­
versidade. Ficou entusiasmado com a ideia de trabalhar com um «pro­
fessor americano», com quem poderia falar um pouco de inglês de vez
em quando. Tissa utilizou os salários que lhe paguei para custear as pro­
pinas e sustentar a mulher e os filhos. No terreno, Tissa mostrava uma
curiosidade inesgotável pela cultura e a história do Norte de Moçam­
bique. Depois de participar comigo em entrevistas estruturadas, costu­
mava contar-me histórias e informações conexas que recolhera em
investigações anteriores, ou que simplesmente ouvira em conversas
informais com outros naturais da região.
Inesperadamente, desenvolvi uma relação de colaboração com um
terceiro moçambicano que acabou por contribuir enormemente para a
minha investigação. Quando, por sugestão de Mpalume, fui à sede da
Associação dos Combatentes da Luta de Libertação Nacional (ou
ACLLN), em Pemba, à procura de possíveis entrevistados, encontrei
Marcos Agostinho Mandumbwe, um homem de quarenta e tal anos,
com barba e um sorriso encantador. Depressa descobri que
Mandumbwe aguardava a minha chegada, tendo sido informado acer­
ca de mim e do meu projecto pelos seus superiores na hierarquia polí­
tica da província. A sua função na ACLLN era recolher dados históri­
cos sobre a guerra de independência moçambicana, mas a associação
tinha sido muito afectada pelos cortes orçamentais resultantes do ajus­
tamento estrutural do fim da década de 1980. Mandumbwe - um
homem que sustentava uma esposa e sete filhos - recebia um pequeno
vencimento mensal, mas não lhe eram fornecidos os equipamentos,
materiais e fundos para deslocações de que necessitava para fazer o seu
trabalho. Depois de descrevermos um ao outro os nossos projectos de
investigação, em termos gerais, e de constatarmos que tínhamos muitos
interesses em comum, Mandumbwe propôs que colaborássemos no
nosso trabalho. Ele utilizaria os seus conhecimentos da história e da cul­
tura da região para me guiar até aos locais e pessoas certos. Eu usaria os
meus recursos para suprir as nossas necessidades financeiras e logísticas.

51
K u piliku la

Ele servir-me-ia de intérprete, enquanto eu aprendia shimaconde.15 Eu


proveria ambos com cópias das gravações, transcrições, fotografias e
outros materiais que o nosso trabalho produzisse.
Reflecti durante vários dias sobre a proposta de Mandumbwe.
Receava os efeitos que a colaboração com um funcionário do partido e
do Estado poderia produzir nas interacções de pesquisa com as várias
categorias de habitantes do planalto, mas sabia que a «Frelimo» era uma
identidade histórica entusiasticamente aceite pela maioria deles. Sabia
que qualquer tentativa da minha parte para recusar uma associação com
a Frelimo me fecharia completamente as portas à vida no planalto.
Quanto aos aspectos positivos, trabalhar com um homem com as qua­
lificações e a experiência de Mandumbwe facilitaria, indubitavelmente,
a minha entrada no terreno e poderia conferir maior eficiência e eficá­
cia ao meu trabalho de campo. Aceitei a oferta de Mandumbwe a títu­
lo provisório, depois de o avisar que, às vezes, iria questionar os moti­
vos e os métodos da Frelimo na minha investigação. Embora, visto ele
ser funcionário do partido, não lhe tenha pago inicialmente como
«assistente de campo», encontrei outras formas de o compensar pelos
contributos dados para o meu trabalho - por exemplo, oferecendo pro­
visões para a sua família antes de o afastar desta em viagens de pesqui­
sa, o que aumentava efectivamente o seu rendimento.
Marcos (Mandumbwe e eu depressa começámos a tratar-nos pelos
nomes próprios) revelou-se desde cedo um colaborador ideal. No terreno,
recorria a uma grande variedade de experiências de vida valiosas.
Trabalhara durante muitos anos como investigador do Arpac, antes de
ocupar o seu lugar na ACLLN. Antes disso, durante a guerra de inde­
pendência moçambicana, tinha sido inspector distrital das escolas primá­
rias da Frelimo nas «zonas libertadas» de Cabo Delgado. Os seus anos de
trabalho com as comunidades, em plena guerra, ensinaram-no a relacio­
nar-se com estranhos. Essas mesmas experiências alargaram as suas redes
sociais em toda a região do planalto. Depressa notei e apreciei a sua
extraordinária capacidade para utilizar os laços de parentesco e de cama­
radagem para encontrar conexões e coisas em comum com as pessoas que
contactávamos no terreno. Era dinâmico e persuasivo quando falava,
atento e compassivo quando ouvia. Demonstrava um vivo interesse pelos
diversos aspectos da história de Mueda e partilhava comigo as suas refle­
xões profundas sobre o funcionamento da sociedade local.

15 Mandumbwe tinha escrito uma gramática de shimaconde em colaboração com


Mpalume (Mpalume e Mandumbwe 1991).

52
Introdução

53
K u piliku la

O meu programa de investigação em Mueda foi decisivamente


influenciado por Marcos, desde o início. Quando me preparava para
começar a minha primeira temporada de trabalho de campo com ele,
pedi-lhe que me ajudasse a localizar um sítio onde pudesse estabelecer
uma residência semipermanente, na cidade de Mueda ou em
Mwambula (sede do distrito de Muidumbe, localizada no canto sueste
do planalto). Marcos aconselhou-me a não me fixar num único lugar,
sobretudo numa das cidades maiores onde era possível arrendar uma
casa. Disse-me que eu iria desejar ter um convívio mais fácil com as
populações que viviam fora das sedes distritais, nas centenas de aldeias
do planalto. Quando lhe perguntei onde deveria então morar, respon-
deu-me: «Tens família por todo o planalto.» Na verdade, conquanto ele,
Tissa e Felista vivessem na cidade costeira de Pemba quando eu os
conheci, todos tinham sido nados e criados no planalto de Mueda e
possuíam extensas redes familiares, que abarcavam dezenas de aldeias.
Marcos aconselhou-me a apropriar-me dessas redes e a residir com essas
famílias quando trabalhasse nas suas aldeias, conselho que segui.
Durante a investigação em que o presente livro se baseia, trabalhei
em quase cem aldeias, revisitando frequentemente meia dúzia delas e
fazendo de uma em particular (Matambalale) o meu principal local de
pesquisa. Ao fim de um primeiro período de onze meses no terreno, em
1994, regressei à província de Cabo Delgado durante as férias académi­
cas de 1996, 1997, 1999, 2001 e 2004, por períodos mais curtos.
Geralmente, trabalhava na companhia de um ou mais dos meus com­
panheiros de pesquisa, e realmente encontrei «parentes» em todos os
lugares do planalto onde trabalhei. Muitas vezes, mas nem sempre, os
meus hospedeiros eram parentes biológicos das pessoas com quem eu
viajava. Durante a guerra da independência, muitos habitantes do pla­
nalto encontraram famílias adoptivas no meio do tumulto e da tragédia,
criando redes complexas e duradouras entre eles. Fui inserido nessas
redes e, mesmo sem companhia, era afectuosamente recebido em casa
dos meus hospedeiros quando regressava. Na verdade, era castigado
quando não visitava as minhas «famílias» ao passar pelas respectivas
aldeias, ou quando estava muito tempo fora: «Andiliki», diziam os meus
parentes adoptivos (chamando-me pelo meu nome shimaconde),16
«tens andado desaparecido!»

16 Embora Andiliki seja uma transliteração do nome português Henrique (que eu


dizia aos habitantes do planalto ser o que mais se assemelhava ao meu nome inglês,
Harry), é um nom e muito usado entre os naturais de Mueda, ainda que alguns prefiram
a veisão portuguesa, Henrique.

54
Introdução

Quando comecei a ficar em casa deles, receava que a minha presen­


ça lhes impusesse uma pressão excessiva. Como não havia fontes de
água naturais no planalto e o sistema de água canalizada raramente fun­
cionava, as mulheres caminhavam todas as manhãs, muitas vezes mais
de uma hora, até à base do planalto, para ir buscar água em baldes de
vinte litros. O meu banho diário - que depressa descobri não poder
recusar sem com isso insultar os meus anfitriões - parecia-me uma extra­
vagância, mesmo depois de ter aprendido a lavar-me com dois litros de
água. Acabei por aprender a não sentir a culpa de um convidado, mas
a comportar-me em vez disso como um verdadeiro filho, encontrando
formas de manifestar o meu respeito e suprir, na medida das minhas
possibilidades, as necessidades da minha família. Ao partilhar refeições
com essas famílias de acolhimento, contribuía com fontes de proteínas
para alimentações frugais, que de outro modo estariam limitadas à fari­
nha de milho ou de mandioca e ao peixe seco. Por vezes, comprava
uma galinha, uma cabra ou um porco no mercado local, possibilitando
um raro festim a muitas das famílias com quem ficava. Comprava pane­
las, frigideiras, facas, alfaias agrícolas, cobertores, sapatos e outros arti­
gos de vestuário em Pemba, e oferecia-os aos membros dessas famílias.
Durante a minha temporada de investigação em 1994, utilizei uma
carrinha a gasóleo equipada com um toldo, que comprei em Pretória,
África do Sul, e conduzi até Cabo Delgado através do Malawi. Como
este veículo era muito baixo, quase rente ao chão, e se atolava frequen­
temente nas estradas arenosas do planalto, Marcos pôs-lhe a alcunha de
tartaruga. A nossa tartaruga prestou-nos bons serviços como escritório
móvel, arquivo de cassetes e fotografias, armazém de comida e (quando
não se avariava) meio de transporte. O banco que instalei na parte de
trás para transportar passageiros também oferecia um espaço de dormi­
da adicional, quando necessário. Vendi a carrinha quando terminei a
investigação para a dissertação e nos anos seguintes andei com uma car­
rinha ainda mais pequena emprestada pelo sobrinho de Marcos, Nelito,
e usava uma tenda para duas pessoas como escritório móvel, armazém
e dormitório.
A influência de Marcos na minha metodologia ultrapassou muito,
contudo, o mero aconselhamento logístico. Marcos ensinou-me «como
perguntar», segundo a expressão simples de Charles Briggs (1986).'
Observando o trabalho de Marcos, nas primeiras semanas da nossa
investigação em colaboração, constatei a eficácia da sua abordagem a
partir das simples histórias de vida que ele adorava recolher. Nos anos
seguintes, Marcos, Tissa e Felista identificaram naturais de Mueda com

55
K u piliku la

«É necessário estudar estas coisas cientificamente», afirmava Marcos Agostinho


Mandumbwe.

quem eu podia conversar e cujas narrativas pessoais abarcavam uma


enorme variedade de experiências de vida e perspectivas. Seguindo o
exemplo de Marcos, vim a conhecer estes habitantes, começando por
lhes pedir que me falassem dos antepassados, dos pais, da infância, dos
casamentos, dos trabalhos que tinham feito, das viagens que tinham
efectuado, dos filhos que tinham gerado e criado. Acabei por conhecer
as histórias mais gerais de Mueda - sobre a guerra e os conflitos sociais,
o colonialismo e a libertação, a conversão religiosa, a modernização e o
desenvolvimento - em grande medida escutando as histórias indivi­
duais e juntando as peças num quadro compósito.
Também constatei em Marcos uma extraordinária capacidade para
aliviar as tensões, dissipar suspeitas e pôr as pessoas à vontade no con­
tacto etnográfico. Desde os primeiros momentos em que trabalhei com

56
Introdução

«Tens a certeza de que o nosso carrinho nos leva até lá?», perguntava-me às vezes
Tissa, antes de partirmos em viagem de uma aldeia para outra. «Ahh, de certeza
que leva», respondia Felista, normalmente antes de mim. «É um carro, não é?»

ele e ao longo dos períodos seguintes no terreno, Marcos salvou-me


quando me desviava para assuntos problemáticos no interminável e por
vezes perigoso diálogo do trabalho de campo, encontrando espaços
para a gargalhada nos cantos e recantos mais sérios da vida. Em aspec­
tos decisivos, segui o exemplo de Marcos como investigador de campo.
Foi ele quem me ensinou a rodear os temas delicados sem os abando­
nar, a enfrentar a hostilidade com firmeza e a prevenir situações de ten­
são utilizando o humor.
Depois de trabalharmos juntos durante algum tempo, Marcos con­
fiou-me que o sonho da sua vida era publicar um livro sobre a história
e a cultura do povo maconde, que pudesse deixar aos filhos como
herança. Ao longo da sua carreira como investigador reunira muitos
materiais, segundo me contou, mas não tinha conseguido escrever esse
livro. Nem Marcos, nem Tissa ou Felista participaram na redacção do
presente livro,17 cujo texto transmite ideias e opiniões das quais até

17 Mas examinei com eles partes substanciais do seu texto, quando estive em Cabo
Delgado no ano de 2004, a fazer aquilo que Steven Feld (1987) denominou «edição dia-
lógica».

57
K u piliku la

podem discordar e pelas quais não devem ser responsabilizados.


Mesmo assim, a visão da sociedade do planalto que transmito nesta
obra foi substancialmente moldada pelo diálogo com estes três filhos da
região. Os seus nomes figuram na página de rosto, em reconhecimento
pelos contributos que deram para este trabalho, como investigadores
dedicados e competentes, e como interlocutores incisivos e imaginati­
vos.

58
Parte I

A Parte I do presente volume oferece aos leitores uma descrição sucinta


do funcionamento do poder tal como os habitantes de Mueda com
quem trabalhámos o concebiam (ou imaginavam) através do discurso da
uwavi. Apesar de utilizarem a linguagem da uwavi como se esta (e-por
extensão o seu discurso) fosse um sistema estável, os habitantes de Mueda
reconheciam, paradoxalmente, que a lógica da uwavi assentava num pas­
sado histórico consideravelmente diferente do presente em que viviam.
É verdade que, para eles, a uwavi vivia no presente e recordava, simulta­
neamente, o passado (Bakhtin in Todorov 1984, 84) - um passado que
se esbatia no horizonte da experiência directa até mesmo para os mais
idosos. Quando falavam da uwavi, as suas palavras separavam-nos dos
seus antepassados e, ao mesmo tempo, ligavam-nos a eles. Na verdade,
ainda que esse discurso constituísse uma característica da identidade ma-
conde, recordava um passado anterior ao povoamento humano do pla­
nalto de Mueda e ao surgimento do grupo étnico maconde, ligando,
assim, os habitantes contemporâneos aos actuais moradores das regiões
vizinhas e membros de outros grupos étnicos, tanto quanto os distinguia
deles.
Em grande medida, o discurso da uwavi mostra sinais de continuidade
ao longo de mais de um século de mudanças turbulentas. Segundo as
pessoas com quem trabalhámos, o poder na Mueda contemporânea
tinha muito em comum com o poder na era pré-colonial, na medida em
que operava em dois níveis - um visível, o outro invisível. Quando o dis­
curso da uwavi contemporâneo testemunhava a transformação histórica
das formas e do funcionamento do poder no reino visível, no reino in­
visível, ou em ambos, ele (re)produzia, frequentemente, o passado como
um universo mais ordeiro, em comparação com o qual os acontecimentos
do presente poderiam ser considerados aberrantes e, consequentemente,

59
K u piliku la

condenados, como veremos nas partes II e III do presente trabalho. Em


todo o caso, ao examinar a lógica do poder tal como os habitantes con­
temporâneos a concebem (ou imaginam) através do discurso da uwavi,
a parte I também apresenta aos leitores uma descrição do funcionamento
do poder num passado que constitui para eles um ponto de referência
duradouro - um passado que também servirá de base de referência para
analisar a dinâmica histórica desse discurso na parte II.
A época pré-colonial muniu os habitantes de Mueda de um rico vo­
cabulário para falarem sobre o poder, tanto passado como presente. Antes
de os portugueses conquistarem a região, no início do século xx, os ha­
bitantes do planalto viviam em povoações de carácter matrilinear, cujos
assuntos eram administrados por chefes de povoação. Dizia-se que um
chefe bem sucedido não só satisfazia o. vasto apetite que lhe era próprio,
como também alimentava o seu povo, equilibrando as necessidades e os
desejos dos habitantes da povoação através da apropriação, da gestão e
da redistribuição dos bens produzidos pelos seus subordinados e adqui­
ridos através do comércio. Numa região devastada pela seca, pela fome,
pelos conflitos interétnicos e pelas incursões para capturar escravos, o
chefe organizava não só a defesa da povoação contra os vizinhos preda­
tórios, mas também ataques de surpresa a outras povoações, com o fim
de obter mais riqueza e aumentar a sua população com cativos, que aca­
bavam por ser adoptados na matrilinhagem. Dizia-se que os chefes mais
poderosos «engoliam» os outros chefes locais nas suas povoações, sub­
metendo-os politicamente, bem como às respectivas populações. A am­
bivalência com que as pessoas falavam das formas de poder passadas e
presentes, em conversa connosco, reflectia a dos seus antepassados, que
lhes transmitiram essa linguagem política de predação e consumo.
Na verdade, os habitantes contemporâneos de Mueda também a uti­
lizavam para falar do exercício do poder no reino invisível, à semelhança,
segundo nos diziam, do que os seus antepassados haviam feito. Na era
pré-colonial, tal como na presente, dizia-se que indivíduos poderosos,
na posse de substâncias exóticas e sabendo como usá-las, conseguiam
aceder a um reino invisível onde não só desenvolviam perspectivas ex­
traordinárias sobre o reino visível que tinham deixado para trás, como
obtinham da sua visão extraordinária a capacidade de alterarem o mundo
visível. Afirmava-se que alguns utilizavam esse poder para satisfazer ape­
tites insaciáveis, alimentando-se do bem-estar de rivais, vizinhos ou pa­
rentes, escravizando-os de modo invisível e/ou consumindo-lhes a pró­
pria carne, produzindo nas vítimas desgraças e doenças visíveis, ou a
própria morte. Em alturas de crise que se suspeitava ter sido causada por

60
Parte I

um ataque, as pessoas vulneráveis recorriam a especialistas - adivinhos,


curandeiros e figuras de autoridade política, incluindo os chefes de po­
voação -, esperando e confiando que estes fossem igualmente capazes
de penetrar no reino invisível. Enquanto os feiticeiros destruidores esca­
pavam aos limites do mundo conhecido pelas pessoas comuns, pensava-
-se que os especialistas a quem estas recorriam conseguiam ir ainda mais
longe do que aqueles jpredadores. Tais (contra)feiticeiros invertiam ou
anulavam as acções invisíveis dos seus antecessores e, dessa forma, refa­
ziam o mundo. Segundo as pessoas com quem trabalhámos, esta mano­
bra transcendente, denominada kupilikula, definia o poder, tanto no pas­
sado como no presente.
Juntamerite com um mundo dividido em reino visível e reino invisível,
os habitantes da Mueda pré-colonial legaram aos seus descendentes uma
compulsão, e um meio, para vigiarem o mundo visível em busca de in­
dícios do funcionamento invisível e caprichoso do poder, bem como
uma propensão e um método para julgarem permanentemente os moti­
vos e as acções dos poderosos. O retrato que os habitantes contemporâ­
neos traçavam do seu mundo actual devia os seus subtis matizes acin­
zentados - como veremos não só na parte I, mas ao longo de todo o livro
- a uma duradoura desconfiança do poder, transmitida ao longo dos tem­
pos pela linguagem da uwavi que afirmavam ter herdado dos seus ante­
passados.

61
r
Capítulo 1

O povoamento do planalto de Mueda


e a criação dos macondes
«Hoje em dia, há muitos bandidos nas aldeias».
M aunda1ergueu a cabeça e olhou por cima da cerca de sua casa, para
o centro da cidade de Mueda, dirigindo os nossos pensamentos para o
mercado, onde os jovens ociosos passavam o dia.
«No passado, teriam sido vendidos como escravos», concluiu ele, com
uma ponta de nostalgia na voz.
Maunda Ng’upula era uma valiosa fonte histórica, não só para nós
mas também para os seus conterrâneos. Dizia-se muitas vezes que ele
sabia mais sobre a época pré-colonial do que qualquer outro habitante
do planalto. Quase todos os anciãos com quem trabalhámos nos disse­
ram, a dada altura, que devíamos falar com Maunda. Esses homens -

1 As pessoas de Mueda com quem trabalhámos tinham, geralmente, vários nomes.


Quando as crianças nasciam era-lhes dado um nome - muitas vezes, embora nem sempre,
em memória de um familiar falecido. Em vários momentos - incluindo, por exemplo, a
passagem por ritos de iniciação, a conversão ao cristianismo ou ao islamismo, ou a en­
trada na luta armada - era possível que recebessem alcunhas que às vezes, ainda que tam­
bém nem sempre, adquiriam mais importância do que os seus nomes anteriores. Ao as­
cenderem a lugares de autoridade, os homens tomavam não só os títulos dos seus
antecessores mas também os nomes deles. Tanto os homens como as mulheres acrescen­
tavam aos nomes próprios os nomes dos seus pais, seguidos pelos nomes dos pais dos
seus pais, e por aí fora, tantos quantos quisessem enumerar; os nomes destes antepassados
paternos serviam, em alguns aspectos, como apelidos (complementando a identidade ad­
quirida por via materna, ou likold), embora ao longo das gerações o nome de cada ante­
passado fosse ficando para o fim da cadeia de nomes que os vivos se atribuíam a si mes­
mos, até ser abandonado por completo (sobre a evolução dos nomes dos macondes, ver
também Dias e Dias 1970,287; Gengenbach 2000, faz uma descrição fascinante do com­
plexo processo de atribuição de nomes no Sul de Moçambique). Neste volume, designo
os habitantes do planalto pelos nomes que lhes ouvi chamar mais frequentemente, na
minha presença.

63
K u p ilik iila

muitos deles bastante idosos também - asseguravam que, quando eram


meninos, já Maunda era velho. «Já parecia ser tão velho como agora»,
diziam muitas vezes, o que me levava a pensar na máxima de que os ido­
sos tinham mais tempo para aprender os segredos da feitiçaria. A idade
parecia dar poder a Maunda e, por sua vez, o seu poder manifestava-se
numa vida prolongada.
Ali sentado com ele naquela manhã fresca, enevoada, dei-me conta
do facto de que, nas suas palavras, ressoavam os relatos dos primeiros
viajantes europeus que chegaram à região. Até Henry E. O ’Neill - então
cônsul britânico em Moçambique - ter subido ao planalto, ainda sem
nome, situado a sul do rio Rovuma, em 1882, os seus habitantes apenas
figuravam no registo histórico como objecto de mmores e especulações.
Tal como os seus guias africanos, os viajantes europeus chamavam a este
povo «mavia», termo que significa «feroz» (Liebenow 1971, 30). O geó­
logo e explorador britânico Joseph Thomson fez o levantamento topo­
gráfico da região do rio Rovuma, poucos meses antes da viagem de
O ’Neill, tendo escrito a respeito destes «mavias»: «São conhecidos como
a tribo mais fechada da África Oriental, pois nem os árabes conseguiram
ainda penetrar para além dos limites do seu território... Diz-se que vivem
separados uns dos outros, sem formarem aldeias. Há poucas estradas e
são praticamente intransitáveis. São descritos como sendo muito trai­
çoeiros e de trato difícil» (1883, 79).
No entanto, O ’Neill foi bem sucedido onde os seus antecessores ti­
nham falhado e viajou pelo interior, tendo percorrido cerca de 96 km ao
longo da margem sul do Rovuma e subido o planalto, com aproximada­
mente 1000 m de altitude, na companhia de um chefe chamado Lishehe,
que soubera da chegada de O ’Neill a uma aldeia da planície situada na
base do planalto e viera ver com os próprios olhos o estranho visitante
de pele branca (ver mapa 2 no capítulo 9). O ’Neill descreveu a povoação
de Lishehe da seguinte forma: «Tinham plantado, numa faixa circular
com cerca de 60 ou 80 pés (18 ou 24 metros) de largura, uma grande
quantidade de árvores e arbustos espinhosos, afigurando-se que todas as
aberturas tinham sido preenchidas com tanto cuidado que se tomava
completamente impossível a um homem ou animal de qualquer tama­
nho penetrar nela. Em dois ou três locais, foi deixado um caminho es­
treito para entrar e sair, fortemente protegido por portões duplos ou tri­
plos... Enquanto estive em Lishehe, todos os portões eram
cuidadosamente fechados ao pôr-do-sol.» (1883,399)
As defesas descritas por O ’Neill destinavam-se a proteger a povoação
de Lishehe, situada no meio de uma região turbulenta, durante séculos

64
0 povoam ento do p lan alto de M u eda e a criação dos macondes

flagelada por incursões de captura de escravos e pelo tráfico negreiro (Al-


pers 1975). Na verdade, O ’Neill viajava pela zona com o intuito de reco­
lher provas de que o tráfico de escravos não terminara, apesar de Portugal
ter consentido em aboli-lo em 1842. Enquanto os antecessores de O ’Neill
denegriram os mavias como uma tribo hostil, numa região perigosa,
O ’Neill retratou-os como vítimas de traficantes de escravos rapaces, que
lhes davam bons motivos para não confiarem nos visitantes. Descreveu-
-os, igualmente, como pessoas que poderiam ser beneficiadas pelo do­
mínio britânico - e até aceitá-lo bem - , neste recanto ingovernável da
África Austral.2
O retrato cjue desta época traçam os descendentes vivos dos habitantes
do planalto, que tanto fascinaram O ’Neill e os seus contemporâneos, su­
gere que as incursões de pilhagem e o tráfico de escravos moldaram a
vida social no planalto de inúmeras formas. Porém, ao contrário desses
viajantes europeus, os habitantes actuais, incluindo Maunda, não falà-
vam, geralmente, dos seus antepassados nem como vilões traiçoeiros nem
como vítimas inocentes, mas sim como indivíduos históricos complexos
que viviam e agiam num ambiente turbulento.
Quando pedimos a Maunda que relatasse a época anterior à chegada
dos portugueses, contou-nos o seguinte:

[Nesse tempo], havia muitos escravos [nas povoações situadas no pla­


nalto]. As pessoas andavam a viajar pela região e chegavam à povoação do
nang’olo mwenekaja [chefe de povoação] Maunda.3Aí, as pessoas davam-lhes
comida, mas misturavam ntela [uma droga] na ugwali [papa de cereais] que
lhes ofereciam. Após saírem da povoação, esses viajantes perdiam-se no ca­
minho, devido à droga, e podiam então ser capturados. Caso se soubesse de
onde vinham, a povoação podia exigir um resgate para os deixar regressar.
Os captores tocavam um tambor para avisar as povoações circundantes de
que alguém fora capturado e, se queriam recuperar o cativo, tinham de trazer
um mosquete ou algum tecido. Se ninguém pagasse o resgate das pessoas
capturadas, elas podiam ser adoptadas pela likola [matrilinhagem] dos seus
captores, ou levadas para a costa a fim de serem vendidas. Se os captores qui­
sessem vender a pessoa cativa na costa, até podiam não tocar os tambores, li­
mitando-se a levá-la e a vendê-la... Algumas das pessoas vendidas na costa
pertenciam à própria povoação, mas normalmente eram enganadas pelos pa­
rentes. Um homem fingia que ia à costa, ou a outra povoação, para negociar

2 Discorri longamente sobre a relação entre a retórica e as estratégias geopolíticas de


0 ’Neill em West (2004b).
3 O entrevistado adoptou o nome deste ancião.

65
K u piliku la

Maunda estava sempre ocupado a fazer qualquer coisa, quando o visitávamos.


Por vezes varria o pátio enquanto conversávamos, o que nos obrigava a seguir
o pó que ia levantando para escutarmos aquilo que ele sabia.

e pedia a um sobrinho para o acompanhar. Quando lá chegava, vendia o


rapaz. Isto acontecia se a povoação necessitava de armas. Escolhiam um
jovem que não valesse grande coisa - alguém que se portasse mal.

Os actos que Maunda nos descrevia apenas contrastavam, pela sua


subtileza, com as tácticas mais agressivas que outros anciãos nos disseram
ser usadas para fazer cativos no planalto e nas suas redondezas, durante
esse período. Herman Nlcumi, um ancião da aldeia de Nanenda, con­
tou-nos acerca da época em que a sua mãe era jovem:

Até para irem trabalhar nos campos, as mulheres necessitavam de uma es­
colta armada. Os jovens iam na frente, a gritar o tempo todo: «Estamos a vê-

66
0 povoam ento do plan alto de M ueda e a criação dos macondes

-los!», m esm o que não vissem ninguém. Faziam-no para afugentar os atacan­
tes. Em seguida, as mulheres trabalhavam todas nos campos da mesma zona,
enquanto os hom ens as guardavam. Era pior quando as mulheres iam às fon­
tes de água, na base do planalto. Era um dos locais preferidos pelos bandos
de assaltantes para fazerem cativos.

Em todo o caso, os relatos orais eram unânimes em que nenhuma po­


voação estava a salvo do tráfico de escravos, quer como vítimas quer
como atacantes. De facto, nesse ambiente perigoso, cada povoação pro­
curava defender-se da depredação aumentando a sua população através
da pilhagem dos seus vizinhos (geralmente mais fracos) e absorvendo os
cativos nas soas fileiras. Os mesmos anciãos contaram-me, com frequên­
cia, que os seus antepassados guardavam as mulheres da sua própria po­
voação, quando elas iam buscar água e, noutras alturas, faziam embos­
cadas nas fontes para capturar as mulheres de outras tnakola
(matrilinhagens).4
Em resultado destas práticas, a maioria das povoações tinha pessoas
de diversas origens, incluindo gente capturada nas terras baixas em redor
do planalto. Marcos contou-me que a sua matrilinhagem maconde, va-
milange, era (e é) denominada amiransi na região de língua macua de
onde era originária. A sua «mãe»,5 depois de ser capturada pela matrili­
nhagem maconde vaivava, foi comida por esta - isto é, adoptada como
uma mulher vaivava. As gerações seguintes perguntavam por que razão
os descendentes dessa mulher tinham ascendência vaivava de ambos os
lados, ficando a saber, desse modo, que afinal isso não acontecia - que
eram varia va mulicbdo (falsos filhos), isto é, descendentes de escravos
(cf. Gengenbach 2000, 530). Marcos contou-me: «Há muitas, muitas
m akolano planalto que são 'falsos filhos’. Cada uma delas partilha a sua
história - os seus mitos de origem - com uma matrilinhagem exterior
ao planalto, umas entre os macuas, outras entre os yaos, os angonis ou
outros grupos.»
Embora muitos dos actuais habitantes do planalto descendam de po­
pulações capturadas, no período pré-colonial, por gente do planalto, ou­
tros descendem de populações que nele se refugiaram para fugir aos ata­
cantes e traficantes de escravos, no mesmo período.

4 Beidelman (1993,12) também caracteriza o povo da África Oriental que veio a cha­
mar-se kaguru, com o sendo simultaneamente vítima e praticante do tráfico de escravos.
5 Aqui, Marcos refere-se, na verdade, a uma antepassada feminina, talvez a mãe da
sua mãe ou a avó materna desta.

67
K típ ilik u la

A nossa anfitriã na aldeia de Matambalale, Augusta Bento - que conhecíamos


pelo nome de Binti Bento (filha de Bento) - era uma hábil oleira. Embora os
actuais habitantes do planalto pudessem comprar baldes de lata, mais leves, no
mercado, muitos continuavam a guardar a água, nas suas casas, em recipientes
de barro como aqueles que ela fazia, pois conservavam o seu conteúdo fresco
durante todo o dia.

«Nós viemos para o planalto vindos da região de Mataka, para fugir


aos angonis», disse-me um ancião em Mwambula.6 «Dantes, éramos
yaos.»
«Na realidade somos macuas», afirmou outro. «Refugiámo-nos aqui,
para fugir das caravanas de escravos.»
Como escreveu o historiador Malyn Newitt, referindo-se especifica­
mente a Moçambique:

O tráfico de escravos não visava apenas a exportação. Os escravos eram


vendidos intemamente, em África, acumulando-se na posse dos chefes e co­
mandantes militares, sendo muitos deles usados para constituir exércitos pri­
vados, aumentar o número de mulheres produtivas numa comunidade ou
sustentar o estatuto dos chefes e outros homens poderosos nas sociedades

6 Os «angonis» descendiam de grupos dissidentes dos ngunis, que atravessaram a região


rumo ao norte, após a sublevação político-militar referida por Mfecane, em meados do
século XIX (Omer-Cooper 1966; Cobbing 1988; Ngcongco 1989; Hamilton 1997).

68
0 povoam ento do plan alto de M ueda e a criação dos macondes

baseadas em linhagens matrilineares... O tráfico de escravos levou ao surgi­


m ento de grandes povoações protegidas, de sociedades militarizadas e de uma
organização política em grande escala, sobretudo entre os povos de linhagem
matrilinear que viviam a norte do Zambeze. O s vencidos eram as comunida­
des pequenas, desorganizadas e dispersas, que tinham, frequentemente, de
abandonar zonas rurais inteiras e reunir-se sob a protecção de um comandante
militar qualquer, ou retirar-se para regiões mais fáceis de defender. O despo-
voam ento criou um vazio e encorajou a migração, pelo que houve clãs intei­
ros que mudaram de região n o início do século XIX. (Newitt 1995,253)

Os testemunhos orais dos anciãos com quem trabalhámos sugeriam,


de •um modo. geral, que as populações que migraram para o planalto a
sul do Rovuma não eram outras senão os «vencidos» descritos por Newitt
- «comunidades pequenas, desorganizadas e dispersas», que fugiram para
«regiões mais fáceis de defender». O planalto - antes desabitado devido
ao seu solo poroso e, por isso, totalmente desprovido de nascentes de
água - foi, para estas populações em fuga, um refugio mais fácil de de­
fender.
Segundo os testemunhos orais, os primeiros colonizadores do planalto
designavam-se a si próprios pelos nomes dos anciãos que os conduziram
até aos novos lares e fundaram as povoações onde viviam. Os conduzidos
por Lishehe, por exemplo, chamavam-se a si mesmos vcdisbehe (ou vana-
lishehe) e à sua povoação Lishehe. Embora estes migrantes procurassem,
indubitavelmente, lihonde (terras férteis), que lhes permitissem produzir
as culturas necessárias para poderem subsistir - e tenham encontrado
essas terras sob a densa mata que crescia no planalto -, só mais tarde vi­
riam a autodenominar-se macondes, termo que alguns autores (por exem­
plo, Dias 1964,64) afirmaram significar «gente que busca fíkonde».
Porém, no próprio processo de reconstituição das suas instituições so­
ciais, económicas e políticas, através do qual deram origem a uma nova
identidade colectiva, estes colonos falavam do poder, segundo os seus
descendentes, usando a linguagem da feitiçaria. Na sua luta pela sobre­
vivência, os mais inteligentes procuravam obter uma vantagem compe­
titiva sobre os rivais através da utilização de substâncias mágicas como a
ntela que, no dizer de Maunda, as gentes da sua povoação usavam contra
os estrangeiros. Num mundo em que cada fenda podia ocultar um pe­
rigo, os poderosos alardeavam, convincentemente, que eram capazes de
ver os inimigos emboscados não só nas nascentes de água, mas também,
como veremos, num reino invisível.

69
t
i
Capítulo 2

Provocação e autoridade, dissidência


e solidariedade
«Quando era jovem, tinha fama de arruaceiro», contou-nos Mandia.
Estávamos os dois sentados na varanda da casa do ancião, em Nimu,
a aldeia onde Tissa crescera e onde o seu pai e o irmão mais novo ainda
moravam. A reverência que líssa demonstrava por Mandia ultrapassava
o habitual respeito pelos anciãos, mas Mandia também não era um an­
cião comum. Era, disse-me líssa com orgulho, um dos três únicos va-
humu que ainda viviam entre os macondes da região do planalto.
«Quando íamos dançar o mapiho nas aldeias vizinhas», prosseguiu o
humu, «eu passava a vida a insultar as pessoas.»
Falava baixo, mantendo os braços e as mãos imóveis, junto ao corpo,
em vez de gesticular, como a maioria dos homens de Mueda fazem en­
quanto falam.
«Se alguém insultava a minha ükola, eu partia para a guerra.»
O comportamento do humu era tão afável que me custava a acreditar
nas suas palavras. Abordou esta contradição directamente, quando vol­
tou a falar. «Por fim, as pessoas da minha likola fartaram-se disso - can­
saram-se de participar nas lutas que eu iniciava - e decidiram tomar-me
humu. Dessa forma, pensaram elas, eu teria de me comportar de forma
mais responsável e acabaria com essa coisa de andar por aí sempre a
armar brigas.»
A carreira de Mandia materializava os paradoxos característicos do
poder no planalto de Mueda, em gerações passadas.' Os actos de ushaka
(provocação) através dos quais ele demonstrava a sua coragem e audácia,
e através dos quais conquistava o respeito como nkukamcdanga (provedor),
às vezes geravam tensões no seio da sua matrilinhagem. Mandia tinha,
por vezes, mais olhos do que barriga - a sua e a dos seus irmãos vashi-
tunguli. Estes últimos digeriram as energias do jovem Mandia, inves-

71
K u p ilih d a

Embora os vahumu nunca tenham sido usados pelos portugueses com o inter­
mediários nativos - não estando, por isso, incluídos na proibição das chefias tra­
dicionais imposta pela F relim o após a independência - a instituição caiu em
desgraça nos anos a seguir à independência. Q uando conhecem os o humu Man-
dia, em 1994, havia já m uitos anos que ele não fazia a dança ritual do humu.
C om o não tinha ninguém que tocasse tambor para o acompanhar, Marcos ofe­
receu-se para o fazer, tentando reproduzir o m elhor que podia a batida frenética
e aguda que recordava das danças que presenciara em criança. O velho Mandia
cansou-se rapidamente, mas estava tão feliz por ter dançado, que as lágrimas lhe
subiram aos olhos e correram pela cara abaixo.

tindo-o como humu: incumbindo-o de equilibrar os apetites dos seus


pares e servir a matrilinhagem como diplomata.
Como ele nos explicou: «No passado, o humu agia como conselheiro.
Quando as outras pessoas da likola não conseguiam resolver um conflito,

72
Provocação e autoridade, dissidência e solidariedade

o humu intervinha. Nas guerras entre matrilinhagens, os vabumu não eram


molestados por nenhum dos contendores.»
Os vahumu não eram, todavia, as principais figuras de autoridade entre
as populações do planalto no período pré-colonial. A sua existência era,
de fàcto, exigida pela dinâmica complexa entre as povoações do planalto
e as figuras de autoridade que as governavam: os vanang’olo vene kaja
(«chefes de povoação»; literalmente «anciãos administradores da povoa­
ção»: significando vanang’olo «anciãos»; vene «chefes», «administradores»
ou «senhores»; e «povoação»). Os chefes de povoação faziam remon­
tar a sua autoridade aos antepassados fundadores das povoações que go­
vernavam, hgrdando destes parentes matrilaterais não só os títulos mas,
muitas vezes, também os nomes. Os chefes falecidos eram recordados
pelos seus sucessores em rituais de súplica aos antepassados, denomina­
dos hdipudya, durante os quais se pedia a intervenção benéfica dos de­
funtos nos assuntos dos vivos.
Uns chefes de povoação gozavam de maior prestígio do que outros.
Se um nang’oh mwenekaja (sing.) reivindicava ser descendente de um fun­
dador que colonizara terras virgens, herdava deste fundador o estatuto
de nang’oh mwmeshílambo («chefe de território»; literalmente, «ancião ad­
ministrador de terras»: significando shilambo «terras»). Os descendentes
dos migrantes que tinham solicitado terras e relações amigáveis com os
ocupantes prévios das regiões que colonizaram - como muitos foram
obrigados a fazer devido à crescente densidade populacional no planalto
ao longo do século X IX - reconheceram os seus anfitriões como chefes
de território, exprimindo a sua dependência e gratidão perpétuas ao par­
ticiparem nas cerimónias de kulipudya dos seus anfitriões.1
A continuidade de uma povoação não estava de modo algum garan­
tida no ambiente caótico e perigoso reinante no Norte de Moçambique
pré-colonial - moldado, cõmo era, por secas e fomes episódicas, bem
como pelos ataques e o tráfico de escravos endémicos. Entre as que pe­
receram, contava-se, por exemplo, a aldeia de Lishehe. Quando, em 1991,
procurei identificar os seus descendentes, a fim de descobrir se tinham
sido transmitidos relatos da visita de O ’Neill até à actualidade, descobri
que o seu nome ainda era proferido em rituais de evocação dos antepas­
sados na região, mas que Lishehe e o seu povo tinham sido vítimas de
matrilinhagens mais poderosas e desaparecido completamente.

1 Beidelman (1993,78) descreve uma dinâmica semelhante entre os anfitriões-funda­


dores e os recém-chegados-hóspedes nos kagurus da Tanzânia.

73
K u piliku la

Tentando adiar uma tal catástrofe, os chefes de povoação (fundadores


ou retardatários) e as suas populações (pequenas ou grandes) tinham
muito a ganhar, no período pré-colonial, com a celebração de alianças
com outros. Na altura da conquista portuguesa (cerca de 1917), as popu­
lações do planalto tinham começado a formar alianças, que chegavam a
compreender dez ou doze matrilinhagens, reunidas sob a liderança de
poderosos comandantes militares (que podiam ser ou não chefes de ter­
ritório) capazes de organizar e proteger caravanas que fossem à costa tro­
car borracha da índia, goma copal, cera de abelhas e sésamo por tecidos,
ferro e, sobretudo, armas, munições e pólvora.2
O ancião Lyulagwe, da aldeia de Litembo, fez-nos uma excelente des­
crição da povoação onde cresceu. Recordava que o nang’olo mwemkaja,
Malapende, era muito temido na região centro e sul do planalto, e outros
chefes de povoação das vizinhanças foram obrigados a aliar-se a ele ou a
combatê-lo como inimigo. Malapende, disse-nos Lyulagwe, integrou nas
suas defesas as povoações dos vanang’olo menos poderosos que pediram
a sua protecção. Outros anciãos fizeram-nos descrições semelhantes das
povoações de poderosos comandantes militares das regiões que conhe­
ciam. Como veremos, o poder desses comandantes militares era indisso­
ciável da sua reputação como feiticeiros competentes.
Apesar das alianças e aglomerações residenciais, a identidade da lihohi
continuou a ser a base da organização social entre os habitantes do pla­
nalto até ao século xx (Dias e Dias 1970,11-116). As filhas da matrilinha-
gem podiam nunca viver na respectiva povoação, nascendo nas povoa­
ções dos seus pais e mudando-se para as dos maridos quando se casavam.
Pexpetuamente dispersas entre outras matrilinhagens, as mulheres conti­
nuavam, todavia, a personificar a identidade da sua likola, alimentando
as povoações das respectivas matrilinhagens com os seus filhos, os quais,
ao atingirem a maioridade, passavam a residir junto de um njomba (tio
matrilinear), que lhes facultava os meios necessários para casarem e cons­
tituírem família.
Como ancião principal, o m ng’olo mwenekaja era considerado njomba
da povoação inteira. O chefe bem sucedido desempenhava muitos pa­
péis. Se ele e a sua povoação tivessem condições para isso, organizava
caravanas para negociar na costa e, nalguns casos, conduzia-as pessoal­
mente. Tinha direito aos bens adquiridos através do comércio e era res-

2 Alpers (1969) narra como o comércio caravaneiro levou igualmente à concentração


de populações entre os yaos, no período pré-colonial.

74
Provocação e autoridade, dissidência e solidariedade

ponsável pela distribuição dos mesmos entre os seus seguidores, na me­


dida do necessário. A povoação dependia das armas para se defender,
mas também as usava, juntamente com outras mercadorias, como lobolo
(preço da noiva), a fim de consolidar os casamentos dos jovens que nela
passavam a residir. Assim, para garantir o poder da matrilinhagem, o
chefe da povoação procurava equilibrar as necessidades da povoação em
termos de armas e de jovens que as usassem. As relações de poder no
seio das matrilinhagens e entre estas tomavam forma à medida que as
armas passavam de mão em mão. Os chefes poderosos figuravam no
topo de uma hierarquia assente no comércio de armas, que subjugava os
jovens aos s,eus tios matrilineares e as mulheres aos homens que nego­
ciavam os seus casamentos. Os homens relativamente mais jovens e
menos poderosos pouco mais podiam fazer do que permitir que os ho­
mens relativamente mais velhos e poderosos se apropriassem da riqueza
que produziam nos seus campos, que adquiriam na caça e que obtinham
nas suas viagens de comércio ao litoral, e a redistribuíssem.
Não obstante as suas relações clientelares com os vizinhos mais pode­
rosos, mesmo as matrilinhagens mais fracas usufruíam de uma conside­
rável autonomia sobre os seus assuntos internos, exercendo o direito, por
exemplo, de legar o mais básico dos recursos - a terra - aos membros
mais jovens da lihola. Isto acontecia mesmo que as terras tivessem sido
inicialmente recebidas pelo fundador da povoação das mãos de um chefe
de território pertencente a outra lihola. Consequentemente, todos os che­
fes de povoação desempenhavam um papel, ainda que subtil, na distri­
buição das terras. Os direitos sobre as terras encaixavam uns nos outros,
o que fazia com que quem concedesse terras a outrem mantivesse, inde­
finidamente, um direito residual sobre essas terras, mesmo que o bene­
ficiário as cedesse a outra pessoa. Este princípio era aplicável às terras
concedidas por um chefe de povoação a outros membros da matrilinha­
gem, à terra concedida por um homem adulto a um sobrinho, à terra
concedida por um homem à sua esposa, ou às terras concedidas por uma
mulher aos filhos, bem como às terras concedidas por um chefe de ter­
ritório aos migrantes que chegassem. Em qualquer destes contextos,
porém, a terra concedida raramente era reclamada enquanto as relações
sociais se mantivessem entre o doador e o donatário. As transacções ou
transferências de terras realizavam-se assim, a maioria das vezes, aos níveis
mais baixos da hierarquia de direitos, o que significa que um membro
da lihola podia dar terra ao sobrinho, ou um homem à sua esposa, sem
o envolvimento directo do chefe da povoação. Todavia, este último de­
sempenhava um papel importante na resolução de litígios relativos à

75
K upiU kula

posse das terras entre os habitantes da povoação. Em concertação com


os outros anciãos - cujo conselho se chamava kupakanila- testemunhava
e preservava a memória histórica das transacções e dos direitos à terra.
O papel desempenhado pelo chefe de povoação como árbitro social
era tão complexo e essencial como qualquer outro. O ambiente perigoso
em que a likola subsistia levava a que se valorizasse grandemente a audácia
e a valentia. Os jovens conquistavam essa reputação através de actos de
provocação {ushaka), tais como atacar uma povoação vizinha e capturar
uma noiva sem ter de pagar uma arma por ela. Contudo, a agressão vi­
rava-se, por vezes, para o interior, gerando conflitos entre membros da
mesma likola, ou até afrontas por parte dos «ambiciosos» (washojo) à au­
toridade do chefe de povoação. Tais ocorrências podiam causar o surgi­
mento de facções e impelir um grupo a abandonar a povoação para criar
outra a alguma distância.3 A fragmentação da likola por esta via enfra­
quecia-a face às outras matrilinhagens e constituía uma ameaça grave à
segurança de todos os seus membros.
Era tão difícil gerir as tensões no interior da likola que, na viragem do
século xx, muitas matrilinhagens macondes tinham estabelecido uma
nova instituição política para fazer face às consequências da fragmenta­
ção. Quer vivessem na mesma povoação quer não, os membros dessas
matrilinhagens nomeavam um humu, que depois passava a não «perten-
cen> a nenhuma povoação específica, mas era respeitado pelos membros
da likola residentes em qualquer das povoações da mesma.4
O humu Mandia descreveu-nos o papel do humu numa linguagem que
enfatizava a sua criação entre os macondes do planalto como forma de
reprimir os apetites excessivos, depredatórios: «A guerra não nos saciava;
esta coisa de estarmos sempre a lutar não tinha fim, por isso precisávamos
de uma pessoa que a aliviasse de vez em quando. Era isso que o humu
fazia.»

3 Sobre as dinâmicas de cisão noutros pontos da Áffica colonial ou pré-colonial, ver


Thmer(1996 [1957]); Forde (1958); Marwick (1967,114);Beidelman(1993,17); Fields (1997).
4 Testemunhos orais indicam que a instituição do hum u foi importada juntamente
com cativos e refugiados das regiões de língua macua, a sul do planalto, por alturas da
viragem do século, e que foi modificada de acordo com as necessidades das matrilinha­
gens macondes. Entre os macuas, o nihumu era uma espécie de chefe de povoação que
representava a autoridade geográfica mais vasta de um mwene (Martinez 1989: 69). As
matrilinhagens macondes inverteram a hierarquia entre o [nang’olo] mwene [kaja\ e o
[ni\humu. Muitos dos anciãos que entrevistámos disseram que os primeiros vahum u que
conheceram foram os primeiros a ser nomeados pelas respectivas matrilinhagens. Os três
vahum u sobreviventes com quem trabalhámos em 1994 confirmaram que chegaram a
existir trinta e seis vahum u entre os macondes do planalto.

76
Provocação e autoridade, dissidência e solidariedade

Em questões materiais, o humu tinha menos privilégios do que o


nangolo mwenekaja. Estava impedido de viajar para além do território da
likola, não podia cultivar os seus próprios campos, nem lhe era permitido
acumular riqueza pessoal. Era obrigado a ficar quieto e calado, a maior
parte do tempo, numa das povoações da sua likola. Embora as suas ne­
cessidades materiais básicas fossem satisfeitas pela likola, tinha a função
de servir os outros e as suas condições de vida não eram mais confortáveis
- provavelmente até o eram menos - do que as dos membros da sua li­
kola. Considerava-se, contudo, que o humu personificava a solidariedade
da likola. Através da deglutição de substâncias mágicas desconhecidas,
no ritual da, sua investidura, o humu interiorizava poderes superiores aos
de qualquer membro individual da likola, conservando-os em segurança
no interior do seu corpo - dentro do corpo da likola. Os seus conselhos
nunca eram contestados pelos membros desta. Na verdade, os membros
das outras matrilinhagens também se calavam perante os vahumu, que
intervinham frequentemente em conflitos entre as mahola (ver também
Dias eDias 1970,318-319).5
Os vanangoh vene kaja e os vahumu uniam esforços para prevenir a
fragmentação da likola e a dispersão da sua força. Porém, como iremos
ver, essa tarefa era mais difícil do que poderá parecer à primeira vista.

5 Os primeiros vahum u do planalto maconde foram iniciados por homólogos macuas.


Subsequentemente, os vahum u macondes passaram a ser «treinados» por vahum u de ou­
tras matrilinhagens macondes, bem como, muitas vezes, por homólogos macuas.

77
iji

I
Capítulo 3

Carne, poder e satisfação


dos apetites
«Rara é a pessoa que come carne de leão», afirmou Kalamatatu.
Apesar de já conhecer bem o ancião, não consegui perceber ao certo
se ele estava prestes a abrir um largo sorriso ou se apenas semicerrara os
olhos para ver através das cataratas que lhe enevoavam a vista.
«.Kushulula», acrescentou.
Eu nunca ouvira o verbo antes. Virei-me para Marcos, que estava sen­
tado ao meu lado. 0 seu sorriso não suscitava dúvidas.
«Kushulula é uma palavra muito especial», disse Marcos. Pousou-me a
mão na coxa, num gesto amigável, complacente, antes de prosseguir.
«Vocês, os vajunga [‘estrangeiros’ ou ‘brancos’] comem carne todos os
dias mas, entre nós, consideramos que isso é um defeito.»
«Então o que significa kushulula}», perguntei eu.
«Depende do modo como o termo é usado», respondeu Marcos. Re-
flectiu sobre a questão por instantes.
«Quando a torneira do chafariz não se fecha totalmente e a água fica
a pingar, isso é kushulula.» A sua mão moveu-se ritmicamente, fechando-
-se quando subia e abrindo-se quando baixava, para imitar as gotas de
água a salpicar o solo.
«Acontece o mesmo quando um animal fareja alimento. A saliva
pinga-lhe da boca - kushulula.» Agora fazia um gesto semelhante em
frente do próprio rosto.
Fez uma pausa e acrescentou: «Quando a palavra é usada para falar de
uma pessoa, refere-se a um apetite insaciável.»1

1 Kaspin (1993:52) descreve em termos semelhantes as concepções da gula e do desejo


de comer came entre os chewas do Malawi.

79
K u piliku la

Suspenso como eu estava entre o shimakonde (língua em que faláva­


mos com Kalamatatu), o português (em que Marcos falava comigo) e o
inglês (em que às vezes falava comigo próprio), rabiscava notas da pes­
quisa na língua que me ocorria na altura. As palavras misturavam-se umas
com as outras, enquanto eu tentava delimitar a nova palavra - paia a de­
finir mais por associação do que por tradução. «Kushúhila», escrevi; depois
«avareza»; seguida por «voraz» e, por último, pela palavra portuguesa vido
- que em inglês se traduz por vice.
Ouvi Kalamatatu dizer «Ehhh heee», em resposta à explicação de Mar­
cos. Desta vez pareceu-me que o ancião se estava a rir, ainda que muito
levemente.
Kalamatatu, Marcos e eu tínhamos chegado à questão das pessoas que
comiam carne de leão através de uma conversa sobre a fauna selvagem e
a caça na região do planalto. Eu sabia, de conversas anteriores, que Ka­
lamatatu fora um excelente caçador quando era jovem. Disse-me ser
muito experiente na caça de javalis, impalas e até de búfalos. Quando
lhe perguntei sobre os hipopótamos e os elefantes, contou-me que co­
mera a sua carne por diversas vezes, mas que nunca tinha morto esses
animais.
Eu sabia que, na sua função de muntela (especialista em substâncias
mágicas), Kalamatatu fora frequentemente instado a acompanhar os ca­
çadores na perseguição de leões que vagueavam em redor das aldeias do
planalto. Uma vez disse-me: «Quando um leão é avistado na mata, pró­
ximo da aldeia, preparo uma cabaça de abóbora com ntela (termo gené­
rico para qualquer substância mágica). Depois vou ao lugar onde o leão
foi visto e deito fogo ao mato. O fogo [arde] até ao sítio onde o leão está
escondido. As pessoas seguem o fogo, descobrem o leão lá e matam-no.
A ntela impede que o leão magoe alguém.»2
Eu sabia que Kalamatatu matara muitos leões, feito que o tomara ex­
traordinariamente famoso em todo planalto. Alguns deles, segundo me
disse, tinham-se revelado leões vulgares. Outros, porém, eram, afinal,
vantum ivavanu, «leões-gente». Kalamatatu provara-o fazendo autópsias
e descobrindo shidudu (folhas de mandioca trituradas, consideradas uma
iguaria) nas entranhas dos animais.

2 N o seu tempo, Dias e Dias (1970,363) constataram que curandeiros macondes uti­
lizavam meios similares para matar leões suspeitos de terem sido criados por feitiço. Tur­
ner (1968: 115) descreve os ritos praticados pelos ndembus para lidar com leões «fami­
liares».

80
C am e, p o d er e satisfação dos apetites

Eu sabia que a came de leões-gente não era consumida, porque fazê-


-lo equivaleria a um acto de canibalismo. Perguntava-me, contudo, o
que acontecia à came dos leões normais e se estes animais eram caçados
para serem comidos. Enquanto se preparava para me explicar que o
consumo de came de leão era um acto audacioso, apenas praticado por
um homem «destemido» (munu akajopa sinu), Kalamatatu continuou a
criticar o defeito a que chamava htshulula: «Se comeres came todos os
dias, acabas com o teu gado num instante. É imprudente.» Estava sen­
tado no pedaço de casca de árvore que trazia de casa e pousava no chão
sempre que vínhamos visitá-lo. Enquanto falava, balouçava-se para a
frente sobre os pés, levantando ligeiramente o traseiro do assento. «Se
comes mais do que os outros, acabas por te isolar deles. Os outros não
irão querer partilhar um prato contigo, por terem medo que comas
tudo.»
Preparei-me para ouvir uma demorada prelecção do ancião sobre a
imoralidade da avidez. A sua denúncia da kushuhda foi, no entanto, brus­
camente interrompida. A sua esposa, que estava ajoelhada no chão, ali
perto, sobre uma esteira de junco, a peneirar farinha de mandioca, tinha
estado a escutar atentamente.
Agora intrometia-se irreverentemente na conversa: «Kushululdil Ahhhi
Nunca recusaria um homem assim!»
Virámos a cabeça a tempo de ver o seu sorriso aberto ao exclamar:
«Adoro comer came!»
Quando voltei a focar a atenção em Kalamatatu, ele tinha a cabeça
babeã. Pensei por um momento que ficara envergonhado com o comen­
tário da esposa, mas depressa percebi que escondia um sorriso malicioso.
Baixinho, mas energicamente, o ancião respondeu ao que a esposa dis­
sera, confiando-nos: «Foi por isso que aprendi a caçar.»

Há muito que os habitantes de Mueda expressam a sua ambivalência


face ao poder na linguagem do consumo. Em conversa connosco, des­
creviam acrimoniosamente os seus conterrâneos poderosos simples­
mente como «aqueles que comem bem» ou «aqueles que comem tudo».’
Os poderosos, por seu tum o, lamentavam frequentemente as infindá­
veis exigências a que estavam sujeitos - bem como as manifestações de
inveja que lhes eram dirigidas - pelos mais pobres e menos poderosos,
dizendo: «Eles querem comer-me.» Aqueles que tinham adquirido ri­

81
K u piltku la

queza noutros lugares mostravam muitas vezes relutância em regressar


ao planalto, onde corriam o risco de «ser devorados».3
Gente de todas as categorias sociais condenava os wakwaukanga -
«aqueles que comem sozinhos». Kalamatatu contou-nos que, quando era
rapazinho, tinha horror a que lhe chamassem nkwaukanga (alguém que
come sozinho). Descrevia-nos essas pessoas não só como gananciosas,
mas até como feias. Quando era jovem, observava e copiava os rapazes
mais velhos, que matavam e partilhavam a carne dos animais que traziam
da floresta. Deste modo, aprendeu a dar as partes mais apreciadas ao chefe
da sua povoação e outros bons pedaços aos anciãos da sua Ukola e às mu­
lheres respeitadas da sua família mais próxima. Para si próprio, guardava
apenas alguns bocados. Desta maneira, ele e os outros jovens da sua idade
aprendiam a regular os seus apetites atendendo aos dos outros, subme­
tendo-se à hierarquia social da povoação e reproduzindo-a.4
Simultaneamente, a caça proporcionava aos jovens como Kalamatatu
oportunidades para desenvolverem e realizarem as suas ambições (sbojo).
À semelhança de outros anciãos com quem falámos, Kalamatatu mos­
trava grande orgulho em ter «alimentado» os habitantes do seu povoado
quando era jovem, tanto através a caça, como do cultivo dos campos ou
do trabalho assalariado. «Provedores» (wakukamalmgd) como estes ho­
mens acumulavam reservas de capital social que podiam converter pos­
teriormente noutras formas de poder e/ou riqueza. As pessoas podiam
condenar a avareza (como Kalamatatu fez na conversa que teve com
Marcos e comigo), mas admitiam - e até exaltavam - com a mesma fa­
cilidade os apetites intensos (como a esposa de Kalamatatu fez con-

3 Fabian (1990) descreve com grande detalhe como o verbo «comer» estava conotado
com «podep> entre os lubas com quem trabalhou no Zaire (actual República Democrática
do Congo). Bayart (1993) argumenta convincentemente que «comep> constitui um eufe­
mismo essencial para o poder na política africana contemporânea, em geral. Schatzberg
(1993) afirma igualmente que o tema central do discurso político africano é o consumo.
Ver também MacCormick (1983, 56); Ferguson (1995); Shaw (1996); Chabal e Daloz
(1999,36); Ellis (1999a, 223); Masquelier (2000); Mbembe (2001:102-141). Bayart declara
que os idiomas políticos do consumo têm sido radicalmente transformados na era pós-
-independência para legitimar a crescente diferenciação social (26) (ver também Ellis 1999a,
223) Fabian apresenta provas em apoio desta afirmação, observando que, onde os lubas
antes exprimiam valores de partilha em provérbios sobre «comep>, hoje dizem (exclusiva­
mente em francês, a língua oficial actual): «o poder come-se inteiro» (1990,28-31).
4 Tumer (1996[1957], 31) descreve igualmente a partilha/distribuição de came como
uma forma de reproduzir as relações sociais. A literatura comparativa sobre este tema é
tão vasta que Wliyte lhe chama, sarcasticamente, «escola etnográfica da perna dianteira
da vaca» (1997, 96).

82
C am e, p o d er e satisfação dos apetites

Marcos não se encontrava com igo quando conheci Kalamatatu, nem nunca
tinha estado com o ancião. Q uando os apresentei um ao outro na m inha se­
gunda visita a casa do ancião, em Matambalale, Kalamatatu ficou espantado por
eu m e recordar d o seu nom e. D eu uma pequena cotovelada a Marcos e pergun­
tou: «Ouviste isto?! Ele disse o m eu nome!» D epois, pegou-m e na m ão e disse-
-me: «A partir de agora, tu também és ‘Kalamatatu’!» A esposa, sentada ali perto,
pôs as m ãos na barriga e riu. «Diz-lhes o que isso significa», instou o marido.
O ancião informou-nos, «Tatu significa três, claro. Kalam atatu significa uma via­
gem de três dias sem vir a casa. Q uando eu era jovem gostava m uito de viajar.»
A esposa exclamou: «Gostavas era de visitar mulheres!» Kalamatatu sorriu tra­
vessamente: «Sim, eu tive muitas mulheres, nessa época. Por isso, a m inha esposa
dizia-me: Três dias chegam para fâzeres negócio; do quarto dia vais ter de m e
prestar contas!’ Q uando eu partia, ela gritava atrás de mim: ‘K alam atatu. Acabou
por se tom ar um nome.»

nosco). No próprio acto de criticarem os apetites dos outros, as pessoas


de Mueda revelavam inevitavelmente os seus próprios desejos de provar
os frutos do poder e do privilégio.

83
K u piliku la

Os mais atentos, como Kalamatatu, compreendiam, na verdade, que


o poder de alimentar os outros e o poder de se alimentar a si próprios es­
tavam interligados de formas complexas. Percebiam que os poderosos
não precisavam de ir eles próprios à caça de carne. Em vez disso, caçavam
subordinados, apropriando-se dos frutos do seu trabalho e redistribuindo-
-os. As pessoas diziam que comandantes militares como Malapende «co­
miam» não só os seus rivais, mas também os seus súbditos. Contudo,
essas figuras poderosas também «alimentavam» as próprias pessoas que
«comiam». A satisfação dos seus apetites sustentava aqueles que íàziam
parte dos seus vastos corpos. De facto, na medida em que conseguiam
encarnar a unidade do grupo social, comiam em nome de todos (como
se esperava que o humu Mandia fizesse ao aceitar o seu título, como se
disse no capítulo 2).
Os habitantes de Mueda não só exortavam os conterrâneos poderosos
a partilhar a fartura dos seus pratos, como também avaliavam a legitimi­
dade desses indivíduos enquanto figuras de autoridade, consoante ali­
mentassem ou não os outros. O poder dos indivíduos que só se serviam
a si próprios estava, consequentemente, minado.
A linguagem do consumo através da qual as pessoas avaliavam a legi­
timidade do poder referia-se não só à distribuição social da carne e de
outros bens materiais, mas também a um mundo de predação paralelo -
o domínio da feitiçaria. Aqueles que se alimentavam das pessoas, em vez
de as alimentar, 5aqueles que apenas se alimentavam a si próprios, aqueles
que «comiam sozinhos», eram, na verdade, suspeitos de possuírem po­
deres extraordinários, terríveis.6

5 Ver também Piot (1999,113); Sanders (2001,171).


6 Middleton (1967, 60) diz que os lugbaras com quem trabalhou consideravam que
aqueles que comiam sozinhos eram bruxos/feiticeiros. D e facto, com o comia muitas
vezes sozinho no decorrer das suas investigações, também Middleton era considerado
bruxo (61). Ver também Mair (1969,43); M. Green (1997,325).

84
Capítulo 4

O reino invisível

«Sete helicópteros levantaram voo para atacar esta casa», contou-nos


o ancião Komesa Baina. «Um da aldeia de Lutete, um de Miteda, um de
Wavi, um de Matambalale, um de Nampanha, um de Namacule e um
de Muatide.»
Komesa estava rigidamente sentado à sombra do beiral da sua casa.
Não olhava para Marcos nem para mim, mantendo os olhos fitos no
pátio.
«O que vinha de Lutete explodiu em chamas quando levantou voo»,
informou-nos com toda a naturalidade. «Os outros seis arderam aqui,
em Namanda.» Apontou, enfaticamente, para o chão sob os seus pés.
Esforcei-me por perceber o que nos estava a ser dito. Pouco antes, Ko­
mesa estivera a contar-nos que tinha havido um surto de kolela (cólera)
na aldeia de Namande, onde vivia. Depois acrescentara, «Não era mesmo
kolela», e antes que eu entendesse o que acontecera, começou a falar de
helicópteros.
Estávamos em Agosto de 1999. Que eu soubesse, a última vez que os
helicópteros tinham voado nos céus de Mueda fora durante a campanha
promovida pelas Nações Unidas, em 1994, para desmobilizar os soldados
da Frelimo e da Renamo, nos meses anteriores às primeiras eleições plu-
ripartidárias realizadas no país. A última vez que os helicópteros pode­
riam ter realmente atacado alguém na região do planalto, pensava eu,
fora durante a guerra da independência de Moçambique, que tinha ter­
minado há mais de 25 anos. As aldeias comunais que Komesa mencio­
nara ainda não existiam nessa altura.
Marcos não partilhava, aparentemente, da minha confusão. «Então
eras tu o alvo!», disse a Komesa, com excitação. «Eu ouvi falar desses he­
licópteros!»
Apesar de Komesa saber que Marcos nascera e fora criado numa das
povoações cujos habitantes viviam agora em Namande, e que estava ao

85
K u piliku la

corrente do que se passava na aldeia através da sua rede familiar, a ex­


pressão do ancião - reforçada pelo silêncio momentâneo - traía algum
orgulho por pessoas que viviam longe de Namande saberem do inci­
dente. Prosseguiu a sua história.
«Depois do ataque desses helicópteros, as pessoas das sete aldeias que
nomeei começaram a sofrer de uma estranha forma de diarreia. Os fun­
cionários dos serviços de saúde que vieram cá chamaram-lhe holela, mas,
como eu disse, não era holela.» Komesa olhou para o céu, ligeiramente
por cima da cerca de bambu que delimitava o seu pátio, antes de acres­
centar: «Era uwavi.»1
Depois lançou uma olhadela a Marcos e a mim, enquanto concluía o
seu relato. «O meu tio, Shitutu, morreu desta holela. Pouco tempo depois
de ele morrer, alguém andou pela aldeia de noite a gritar ‘Shitutu morreu
na casa de Komesa!5 [ou seja, tinha morrido ao tentar matar Komesa por
meio de um feitiço]».12
Após uma pausa, Komesa assinalou o fim da narrativa, dizendo: «E
tudo o que eu sei.»
Instei-o, porém, a que nos explicasse melhor estas ocorrências. Limi­
tou-se a acrescentar que o helicóptero que ardera em Lutete podia ter co­
lidido, acidentalmente, com uma mina antifeitiço que lá tivesse sido co­
locada, mas que ele fora protegido dos outros seis pelas suas próprias
defesas, que não só tinham feito com que os helicópteros se despenhas­
sem e ardessem, como também tinham «virado a uwavi do atacante con­
tra ele próprio» (kupilikula).
«As pessoas que morreram desta diarreia morreram todas a tentar
matar-me», afirmou com distanciamento.
Marcos perguntou a Komesa se poderiamos ver onde os helicópteros
tinham caído.
O riso suave de Komesa deu lugar a um vago sorriso. «Podem ir lá,
mas não verão nada. Os que me falaram dos helicópteros conseguiam
vê-los, mas eram vakulaula vavi [feiticeiros-curandeiros].»
Marcos sorriu e virou-se para mim, dizendo em tom de brincadeira:
«Os vakulaula vavi são as ‘caixas negras5destas quedas!»
Komesa ergueu-se e dirigiu-se para o portão ao lado de sua casa. Se-
guimo-lo, sem saber ao certo quanto tempo iríamos andar. Parámos logo

1 Em África, as epidemias são frequentemente atribuídas a feitiços. Por exemplo, Tur-


ner (citado em Mair 1969, 134) documentou a atribuição de um surto de malária em
Mukanza, uma aldeia ndembu, às actividades de um feiticeiro.
2 A frase «morrer na casa de fulano» é um eufemismo comum em África para o acto
de morrer ao atacar alguém com feitiços (ver, por exemplo, Mair 1969, 96).

86
0 reino in visível

«Não sei porque é que as pessoas m e invejam», respondeu Kom esa Baina,
quando lhe perguntei por que razão os feiticeiros o atacavam. «Não provoco
ninguém. Fico em casa e não in com odo ninguém. Sou apenas um velho.» N a
realidade, Komesa era um hom em de poder e riqueza relativamente grandes, na
aldeia de Namande. Ocupara cargos de autoridade n o governo local, a sua casa
estava coberta com um telhado de zinco e vestia bem. «Deve fazer parte de um
plano maior para m e destruir», disse ele. O lhou directamente para cada um de
nós e acrescentou: «O facto de vocês m e terem visitado hoje quer dizer com
certeza que vou ser atacado esta noite.»

dez ou quinze metros adiante da sua casa. A fieira de casas onde ficava
a dele estava virada para o centro da aldeia, onde havia algumas crianças
sentadas sob uma mangueira, que nos observavam atentamente. Komesa
dirigiu o nosso olhar novamente para a sua casa. Junto da esquina frontal
direita estava um cajueiro, com não mais de cinco metros de altura, para
o qual apontou.

87
K u piliku la

«Foi aqui que caíram», disse-nos Komesa.


Demorei uns instantes a reparar na tonalidade estranha, acastanhada,
da casca. Então percebi que a árvore estava morta.3

Quando as pessoas do planalto falavam comigo ou na minha presença


sobre feitiçaria, terminavam muitas vezes os seus relatos da mesma forma
que Komesa fizera, dizendo: «É tudo o que eu sei.» Na verdade, relata­
vam frequentemente o que sabiam citando terceiros que, segundo afir­
mavam, tinham visto e contado estranhos casos de feitiçaria, nomeando
os atacantes e/ou as vítimas (que, às vezes, eram eles próprios). Geral­
mente, porém, falavam em termos vagos sobre padrões de ocorrência
dos feitiços. Nesses relatos, transmitidos de boca em boca e de geração
em geração, o presente era informado pelo passado, e o passado animado
pelo presente.
Os habitantes de Mueda nunca tinham ouvido falar de «kolda» até à
época colonial. Desconheciam os helicópteros até à guerra da indepen­
dência. Mesmo assim, Komesa Baina viu nos ataques a sua casa e na
doença que se declarara nas aldeias circundantes algo que teria sido reco­
nhecível por gerações dos seus antepassados. «Era uwavi», disse-nos ele.
Tal como as pessoas do tempo pré-colonial, Komesa via provas, no
seu mundo, da existência de forças ocultas, frequentemente ameaçadoras.
Na verdade, os habitantes do planalto de Mueda há muito que entendem
o seu mundo como sendo constituído por dois lados opostos: um, o
reino visível dos assuntos terrenos; o outro, o reino invisível dos fenó­
menos fantásticos e aterradores.4 O reino invisível, como veremos, re-

3 Noutra ocasião, Marcos contou-me a história de um helicóptero de 100 lugares que


muitos daqueles com quem trabalhara anterioimente diziam transportar 100 feiticeiros
da aldeia de Myangalewa num ataque contra o lendário curandeiro Manda, também de
Namande. Dizia-se que o veículo se despenhara na mata junto à aldeia de Miteda, onde
Manda costumava fazer os rituais de iniciação dos rapazes. Marcos contou-me que tinha
visitado o sítio do acidente no dia seguinte e que, embora não visse escombros mecânicos,
observara uma marca circular num pedaço da mata, que ficara pisado de uma forma que
homens normais, com ferramentas vulgares, nunca conseguiriam fazer. A sua história
fez-me lembrar as descrições feitas pelas testemunhas dos «círculos nas culturas» das zonas
rurais inglesas.
4 A divisão do mundo em reino do visível e reino do invisível está documentada em
diversas regiões do globo; ver, por exemplo, Eliade (1964, 205); M. Brown (1986, 50);
Addnson (1989,16,37-39); Boddy (1989,269-309); Stoller (1989,14); Humphrey e Onon
(1996,76); Stephen (1996, 89); Gufler (1999,182); Mueggler (2001,196-197).

88
0 reino in visível

flecte e nega, simultaneamente, o visível. Existe como um reino à parte


- imitando, contradizendo e opondo-se ao visível - , mas também existe
dentro do visível, para além de ó subsumir no seu seio.5
Segundo os habitantes do planalto de Mueda, as chaves da passagem
entre os dois reinos que constituem o seu mundo eram as mitela (sing.
nteld), substâncias físicas disponíveis no reino visível, mas utilizadas para
se conseguir entrar e actuar no reino invisível, a fim de atingir objectivos
espantosos. Embora a categoria das mitela se tenha expandido nos últimos
anos, chegando a incluir materiais tão exóticos como a Fanta laranja e o
ácido das pilhas descartáveis,6 no período pré-colonial as pessoas reco­
lhiam geralmente as suas mitela entre a flora e a íãuna da região do pla­
nalto. Na altura em que trabalhámos em Mueda, muitas das mitela mais
conhecidas e usadas ainda eram obtidas a partir de raízes, cascas e folhas
de árvores e arbustos que crescem espontaneamente no meio do m ato.7
Os chifres, comos e presas da fauna local também continuavam a servir
de mitela aos habitantes do planalto.
Estes contavam-nos muitas vezes que, à semelhança dos seus ante­
passados, eles (ou pelo menos outros dos seus) sabiam fazer coisas gran­
diosas com as mitela. Estas podiam ser utilizadas para prolongar a vida,
aumentar a força física, garantir boas colheitas, caçadas e viagens e pro­
teger as pessoas da doença e da desgraça. Por outro lado, as mitela po­
diam ser usadas para outros fins, mais sinistros - por exemplo para rou­
bar vizinhos e parentes, ou fazer mal a outras pessoas causando-lhes
infortúnios, designadamente mandando a doença ou a morte visitá-las
a elas ou a familiares.
Embora só fosse possível atingir determinados fins com tipos especí­
ficos de mitela, disseram-nos que vários tipos destas serviam para múlti­
plos fins. Um único tipo de ntela podia ser utilizado para perpetrar actos
socialmente aprovados ou socialmente repreensíveis. Por outras palavras,
as pessoas classificavam as mitela como fontes de poder moralmente neu­
tras, que podiam ser usadas para criar ou para destruir, para proteger ou

5 Ver também Mbembe (2001,143-146). Cf. Horton (1993,326), que fez equivaler as
ideias do «oculto» às «teorias secundárias» invocadas quando as primeiras teorias explica­
tivas falham.
6 Whyte (1982,2060; 1997,28,180) também menciona a utilização do ácido das pi-
Ihas/baterias com o uma substância medicinal n o Uganda.
7 Dias e Dias (1970,367) sugerem que as substâncias mágicas obtidas a partir das ár­
vores serviam com o intermediárias entre os vivos e os seus antepassados, cujas sepulturas
eram assinaladas com árvores, que absorviam a sua essência corporal.

89
K u piliku la

para atacar, para curar ou para matar.8 De acordo com os antropólogos


da era colonial que estudaram a região de Mueda, António Jorge Dias e
Margot Schmidt Dias, «a ntela, como droga mágica, tem o poder de re­
forçar a força vital dos homens, de lha diminuir ou de lha roubar por
completo» (1970, 367). Concluem ainda: «O homem aumenta as suas
forças ou perde-as, segundo faz uso de ntela favorável, ou outros utilizam
ntela contra elè. A ntela é que explica por que razão uns vivem muitos
anos, sãos e saudáveis, outros enfraquecem e morrem; é tudo uma ques­
tão de ntela.» (367)
Na época pré-colonial, tal como agora, o tipo de ntela mais poderoso
que se conhecia era a shikupi. Esta substância obscura tomava os seus
possuidores, bem como os actos por eles cometidos, invisíveis aos olhos
das pessoas comuns. Como o ancião Mushimbalyulo Nakulungene nos
explicou quando falámos com ele na aldeia de Magaia: «A shikupi permite
que uma pessoa faça coisas sem que ninguém a veja, sem que ninguém
se aperceba.»9 Os utilizadores de shikupi conseguiam não só tomar-se in­
visíveis, mas também ver coisas extraordinárias; viam-se, inclusivamente,
uns aos outros, bem como os actos que os colegas perpetravam sob o
véu da shikupi.»10Através da utilização desta droga, os seus possuidores

8 A ambivalência a respeito das substâncias mágicas e dos poderes que produzem é


um tema vulgar na literatura etnográfica africana; ver, por exemplo, La Fontaine (1963,
191); M. Green (1994,25); Ashfort (1996,1194); Whyte (1997,28); Ciekawy (1998,128);
ver também Taussig (1897,140). Kluckhohn (1944,51) refere a crença dos navajos de que
os cânticos curativos também podiam ser usados para fazer mal. John Bowen apresenta
provas de que o próprio Corão também era encarado como uma fonte neutra de poder
susceptível de ser usada «para matar ou curar, para esclarecer ou confundin> entre os gayos
de Sumatra (1993,187). Ver também Lambelc (1993,260).
9 Os feiticeiros são descritos, em variados contextos etnográficos, como sendo capazes
de se tomarem invisíveis. Evans-Pritchard (1976 [1937], 14), por exemplo, documenta as
convicções dos azandes de que os bruxos esfregavam um unguento especial na pele para
se tomarem invisíveis. Goody (1970,210) descreve como os begbe (agentes místicos) gonjas
se tomavam igualmente invisíveis para toda gente menos para os outros begbe. Ver também
M. Green (1994,25).
10O uso de substâncias exóticas para ver pessoas ou coisas que permanecem invisíveis
aos olhos dos outros também está extensamente retratado na literatura etnográfica. Turner
menciona as convicções dos ndembus de que uma substância chamada nsomu permite
ver coisas escondidas a quem a use: «A nsomu é como uma tocha à noite, que permite
[ao adivinho] ver os bruxos claramente.» (1968,28-29) Tal como é descrita por Turner, a
nsomu parece ser, todavia, diferente da shikupi que nos foi descrita em Mueda, pois esta
última também é usada pelos feiticeiros sobretudo para se ocultarem. Simmons relata o
que os badyarankes no Senegal lhe contaram sobre pessoas com poderes extraordinários,
que tinham «a capacidade excepcional de ‘ver’... espíritos e acontecimentos invisíveis
para os outros» graças aos seus «olhos da noite» (1980,452). Sobre visão e (in)visibilidade
em relação aos poderes ocultos em geral, ver também Lienhardt (1951,309); Eliade (1964,

90
0 reino in visível

produziam e mantinham, efectivamente, um reino invisível onde se mo­


viam e actuavam «fora» ou «para além» do mundo percepcionado pelas
pessoas comuns, livres das restrições e dos constrangimentos do reino vi­
sível terreno.11 As pessoas referiam-se muito simplesmente a este acto
transcendente e aos actos invisíveis que tal transcendência possibilitava
como uwavi, designando por vavi, «feiticeiros» (sing. mwavi) os que co­
metiam tais actos.112
Segundo nos contaram alguns habitantes do planalto, como Komesa
Baina, ao criarem e habitarem o reino invisível da uwavi, os feiticeiros
não só duplicavam o mundo em que viviam, mas também se duplicavam
a si próprios.13 Quando os feiticeiros circulavam de noite, de forma in­
visível, os seíis corpos permaneciam visíveis para as pessoas comuns, que
os podiam encontrar a dormir inocentemente nas suas camas. No seu
mundo duplicado, estas pessoas duplicadas imitavam a vida social nor­
mal, unindo-se para se apoiarem e reproduzirem, dançando todas juntas
de madrugada no centro da aldeia (ou, na época anterior à independên­
cia, no centro da povoação). O feitiço, segundo me disseram muitas
vezes, tinha de ser dançado,14 mas através da sua dança {kuvina uwavi)
os feiticeiros também invertiam as normas sociais.15Dançavam nus, sem

348); Atldnson (1989, 91); Lambek (1993, 243); Plotkin (1993, 235); Bongmba (1998,
173); Gufler (1999,183); Nyamnjoh (2001,43). Cf. Ferme (2001,4), que documenta as
crenças mende de que o poder provém da capacidade «de ver para além dos fenómenos
visíveis e de interpretar significados mais profundos», apesar de sugerir que o povo mende
não considera o exercício desta capacidade com o estando limitado ao reino do oculto.
11Ver também Willis e Chisanga (1999,3,173). Segundo Nyamnjoh, o reino invisível
tem um nome entre os habitantes das savanas dos Camarões; ele descreve o msa como
«um mundo misterioso de abundância e possibilidades infinitas», que existe em paralelo
com o mundo visível (2001,44). Eliade (1964,259-260) fez a célebre sugestão de que «a
principal técnica xamânica é a passagem de uma região cósmica para outra»; é precisa­
mente isto que fazem os feiticeiros de Mueda - e, com o veremos, os contrafeiticeiros.
12 Entre os fores das montanhas da Nova Guiné, segundo Lindenbaum (1979,56), a
palavra para feitiçaria, kio’ena, significa expressamente «está escondido». Embora isto não
se aplique ao planalto de Mueda, feitiçaria e invisibilidade implicavam-se mutuamente
no discurso local sobre a feitiçaria. Ver também Beidelman (1963: 65).
13 Ver também Lattas (1993); Devisch (2001,111); Ferme (2001,209-212).
14A associação da bruxaria e/ou feitiçaria à dança é alegadamente comum no sudoeste
africano; e diz-se que essas danças são normalmente efectuadas sem roupa. Lambek, por
exemplo, fala de feiticeiros que dançavam nus, em grupo, em Mayotte (1993,251). O s.
informadores de van Dijk sugeriam que os bruxos tomavam as suas práticas atraentes
para potenciais bruxos combinando-as com duas actividades irresistíveis: a dança e a
nudez/relação sexual (van Dijk 1992).
15Middleton (1963,271; 1967,65) afirma também que os bruxos «invertem» as normas
sociais. Van Binsbergen declara: «Bruxaria... é tudo o que sai fora da ordem familiar, não
é regulada por essa ordem, [ou] desafia, rejeita, [ou] destrói essa ordem.» (2001: 241)

91
K u piliku la

pudor - normalmente na presença de parentes do sexo oposto - demons­


trando o seu total desrespeito através de uma sociabilidade sem limites.
É claro que os feiticeiros não só passavam para o reino do invisível
como dele regressavam - enquanto ainda estavam invisíveis - , manifes­
tando o reino invisível dentro do visível. Através de sinistras incursões
neste último, circunscreviam-no e controlavam-no invisivelmente.16
A sua visão extraordinária permitia-lhes não só verem-se uns aos outros
e ao reino invisível onde se moviam, mas também observar de uma pers­
pectiva ímpar o reino visível e os seus habitantes. Os feiticeiros formula­
vam, assim, novas visões do m undo.17 Os seus pontos de observação
ocultos serviam-lhes para exercer uma influência invulgar sobre este, re­
velando-lhes a sua lógica operativa e permitindo-lhes manipulá-la para
realizarem proezas fantásticas.18
O ancião Mushimbalyulo disse-nos: «Com a shíkupi, uma pessoa pode
lançar um ataque e ninguém repara.» Para este fim, há muito que os fei­
ticeiros usam outras substâncias mágicas em conjunto com a shikupi. Por
exemplo, às vezes, os feiticeiros deitavam, subrepticiamente, uma subs­
tância chamada shongo na comida ou na bebida de uma vítima despreo­
cupada, fazendo-a ficar doente.19Também enterravam objectos tratados
com mitela è denominados mashesho nos caminhos percorridos pelas suas
vítimas. Os mashesho explodiam como bombas, causando-lhes dores nas
pernas e nas costas.20

Mair (1969, 42) diz que os bruxos formam uma «anti-sociedade». Boddy usa a mesma
expressão - «anti-sociedade» - para descrever o zar, o mundo dos espíritos para os ho-
friyatis do Norte do Sudão. A autora escreve que «os traços de comportamento dos zayran
ultrapassam e invertem os dos humanos: nuns aspectos, os zayran são a antítese dos ho-
friyatis; noutros, são a sua caricatura.» Sugere ainda que a língua usada no zar íunciona
com o uma «antilíngua» (Boddy 1989,156-157,273-274). Ver também Beidelman (1963);
Forth (1993); Devisch (2001,113-114).
16 Ver também Devisch (2001,111).
17 Gf. Humphrey e O non (1996,352).
18 A feitiçaria em Mueda, tal como nos foi descrita, assemelha-se muito ao «conheci­
mento profundo» que os yombas descreveram a Apter (2002, 234-238), na medida em
que constitui uma capacidade de «correcção e inversão». Ver também Kapferer (1997), o
qual refere que os budistas Cingaleses entendem a feitiçaria com o o poder de fazer o
mundo através do acto constitutivo de o ver.
19 Beattie (1963,29) sugere que não se deve ver a utilização das poções com o sendo
«mágica», pois os seus efeitos podem ser explicados química e fisiologicamente. Ver tam­
bém Fields (1997). Em Mueda, de qualquer m odo, considerava-se o uso de shongo como
um acto de feitiçaria, por definição.
20 Lambek (1993,242) descreve a utilização de dispositivos semelhantes pelos feiticei­
ros em Mayotte.

92
0 reino in visível

Os efeitos desses ataques eram visíveis. Quando confrontadas com o in­


fortúnio, as pessoas geralmente suspeitavam que alguém do seu meio fi­
zera uwavi para fins malévolos - uwavi voa kujoa («feitiço de perigo» ou
«feitiço perigoso»), como lhe chamavam, ou uwavi wa kunyata («feitiço
sujo», «feitiço feio» ou «feitiço mau»). Quando descobriam que os bens
ou a propriedade de uma pessoa tinham sido danificados, ou quando a
sua sorte diminuía subitamente, suspeitavam de uwaviwalwanongo («fei­
tiço de ruína» ou «feitiço de destruição»). Quando alguém ficava doente
ou morria, suspeitavam de uwavi wa kubyaa ou de wwaviwa kubgwa («fei­
tiço de matar/assassinar»).
Os feiticeiros, segundo me afirmavam, não se limitavam a sabotar, des­
truir e matar! Sustentavam-se da diminuição da prosperidade daqueles
que atacavam. Em alguns casos, apoderavam-se da força de trabalho das
suas vítimas. Noutros faziam-nas suas presas, alimentando-se invisivel­
mente da sua carne à medida que elas definhavam e morriam.21 Na ver­
dade, os sinais visíveis de sofrimento, fadiga e doença em alguém eram
muitas vezes interpretados como efeitos de essa pessoa ser obrigada a tra­
balhar de noite para um patrão-feiticeiro, ou de a sua carne estar a ser con­
sumida por um feiticeiro. Os feiticeiros, asseveraram-me, eram capazes não
só de se esconderem, mas também de ocultarem as suas vítimas -, substi­
tuindo os seus corpos, sempre que necessário, por bananeiras que faziam
parecer-se com elas. De facto, dizia-se, por vezes, que os cadáveres que
os habitantes do planalto sepultavam não eram cadáveres verdadeiros,
mas sim bananeiras; nesses casos, os mortos viviam, alegadamente, como
mandandosha(trabalhadores escravos),22 ou tinham sido completamente
comidos pelos seus atacantes invisíveis.

21 C f Lienhardt (1951,305), o qual sugere que, quando os dinkas diziam que os bruxos
«comem» as suas vítimas, queriam dizer que os bruxos consumiam o bem-estar dos outros
e não que comiam realmente a carne das vítimas.
22 Dias e Dias (1970:394) usam o termo mchatwani para designar os mortos-escravos
entre os macondes no final dos anos 50. O fenómeno dos trabalhadores escravos mor­
tos-vivos aparece nos registos etnográficos de toda a Áftica. Ver, por exemplo, Beidelman
(1963,66; 1993,155); Ardener (1970,147); Geschiere (1992,170-174; 1997,147-149; 1998,
822-824); Mesaki (1994,49); Reynolds (1996, 90); Stadler (1996, 92); Jean Comaroff e
John Comaroff (1999); Sanders (1999,123; 2001,170); Ashforth (2000, 182); Niehaus,
Mohlala e Shokane (2001,69-71). Willis e Chisanga (1999,144-146) mencionam especi­
ficamente o uso, pelos feiticeiros lungus, de bananeiras para substituir os corpos das suas
vítimas. Curiosamente, Beattie (1963,46) informa os leitores de que, na era pré-colonial
em Bunyoro, os feiticeiros condenados eram amarrados dentro de folhas secas de bana­
neira e queimados na fogueira; ver também em Fadiman (1993, 250) testemunhos da
execução de bruxos por este mesmo m étodo entre os merus do Quénia colonial. White-
head (2002,82), em contrapartida, relata que os cadáveres dos patamunas eram enrolados
em folhas de bananeira para afastar os hanaimà (magos negros).

93
K u piliku la

Desde que os actuais habitantes de Mueda têm memória, os feiticeiros


também disfarçam as suas acções transformando-se em animais, ou fa­
zendo animais que cumpram as suas ordens (ver também Dias e Dias
1970, 369).23 Disseram-me que esses animais, às vezes, operam de ma­
neiras subtis. As corujas de feitiço, por exemplo, espiavam ou roubavam
objectos das casas das pessoas que visitavam. Casos mais dramáticos en­
volviam animais perigosos e/ou predatórios, como cobras, leopardos e
leões, que matavam e às vezes comiam as suas vítimas. Estes ataques po­
diam ter lugar sob o véu da shikupi\ atacada por um leão invisível, por
exemplo, uma pessoa aparentaria, no reino visível, estar a ser consumida
por uma doença. Outras vezes, as pessoas assistiam realmente aos ataques
desses animais ou, pelo menos, viam os restos esfacelados da vítima.24
Quando lhes perguntava porque é que alguém cometeria os actos me­
donhos de que os feiticeiros são há muito acusados, as pessoas afirmavam
muitas vezes que não sabiam. «Como hei-de saber?!», respondia Kala-
matatu. «Nunca fiz coisas dessas!»25Embora a pergunta incomode muito
os habitantes de Mueda, quando insistíamos, muitos deles acabavam por

23 A ideia de os feiticeiros fazerem ou se transformarem em animais - frequentemente


chamados «familiares» na literatura - está amplamente difundida em África e não só. Ver,
por exemplo, Evans-Pritchard (1970 [1929], 33 n.; 1976 [1937]); Kluckohn (1944,26); Krige
(1970 [1947], 265); Wyatt (1950); Lienhardt (1951,308); M. Wilson (1970 [1951]); Deren
(1953,65); Beidelman (1963,65; 1993:141); Gray (1963); Middleton (1963; 1967,59); Eli-
ade (1964); Ginzburg (1992 [1966], 3); M. Nash (1967,127); Saler (1967); Castaneda (1968);
Turner (1968,177); Mair (1969,39); Ruel (1969; 1970a; 1970b); R. Brain (1970,164); Goody
(1970,208); Hammond-Tooke (1970,366-368); Marwick (1970,461); Mayer (1970,56); Pitt-
-Rivers (1970); Schapera (1970, 111-113); Willis (1970, 219); Wyllie (1970, 135); Reichel-
Dolmatoff (1975); de Heusch (1985,98); M. Brown (1986,50); Stoller e Olkes (1987); Taus­
sig (1987,246, 358-363); Jackson (1989); Auslander (1993, 180); Ellen (1993b, 10; 1993a,
91); Forth (1993,100); Schmoll (1993,200); Mesaki (1994,49); Goheen (1996); Humphrey
e Onon (1996,101,328-329); Kapferer (1997); Shaw (1997); Prechtel (1998); Ellis (1999a);
Gufler (1999); Willis e Chisanga (1999,115); Bastian (2001); Niehaus, Mohlala, e Shokane
(2001,45-62); Whitehead (2002). Ver também o romance Henderson, The Rain King (1959)
de Saul Bellow; Bellow estudou antropologia antes de se tomar escritor de ficção.
24 N o final do período colonial, Dias e Dias escreveram: «Para os macondes, o poder
dos feiticeiros é ilimitado. É frequente eles utilizarem animais, como leões, leopardos ou
serpentes, criados por eles, os quais perseguem quem eles quiserem, e que ninguém pode
matar sem o auxílio de ntela poderosa. Por vezes transformam-se os próprios feiticeiros
nesses animais [...]. Em geral, crê-se que as pessoas consideradas mortas pelos leões são
comidas pelos feiticeiros em festins nocturnos. Tão profundamente enraizadas são estas
crenças que, quando o leão matou, em 1957, perto de Mueda, o aleijado e deixou espa­
lhados pelo chão os restos do cadáver, os macondes diziam que aquilo era fingimento,
o homem encontrava-se vivo em casa do feiticeiro, que o estava a engordar para o comer
mais tarde.» (1970, 369)
25 Ver também Ashfort (2000,126).

94
0 reino in visível

transmitir as suas ideias sobre as motivações dos feiticeiros. A explicação


mais comum era a de que eles agiam por inveja (ing’ou). A inveja dos fei­
ticeiros podia ser provocada por praticamente tudo. Na época pré-colo-
nial, uma mulher podia ter inveja da colheita de uma vizinha, dos muitos
filhos saudáveis de uma co-esposa, ou da beleza juvenil de uma filha.26
Nos dias de hoje, poderia cobiçar as roupas ou os sapatos de uma vizinha,
ou ainda os utensílios de cozinha que ela comprasse numa loja. No pas­
sado, um homem podia ter invejado a autoridade de um tio. Na Mueda
actual, poderia ter cobiçado a instrução de um filho ou o emprego re­
munerado de um vizinho. Quaisquer pessoas podiam ser alvo de inveja
e, logo, de feitiçaria, mas as interacções intensas e as vastas oportunidades
oferecidas pelos laços de sangue têm, desde há muito, garantido que a
feitiçaria ataque frequentemente no seio da família.
Outros explicaram-me a feitiçaria de forma diferente. «Os feiticeiros
adoram carne humana», dizia-me Marcos, muitas vezes. «Esse motivo
basta para matarem.» Alguns sugeriram-me que o sabor da carne humana
desenvolve um apetite insaciável, viciante. As crianças, segundo me dis­
seram algumas pessoas, eram transformadas em feiticeiros dando-lhes um
pedaço de carne humana, ou permitindo-lhes que encontrassem um pe­
daço de carne humana deixado no chão ao pé delas. Depois de ingerir
essa carne, a criança sentia vontade de comer mais, e acabava por desco­
brir como satisfazê-la. O apetite de carne humana era cultivado de forma
semelhante nos adultos. Muitos diziam que os feiticeiros, para recrutarem
adeptos, ofereciam-lhes um banquete de carne humana, não só fomen­
tando o vício, mas também criando uma dívida.27
Segundo diziam muitas pessoas com quem falámos, o recrutamento
para a feitiçaria sustentava uma economia paralela invisível, cuja lingua­
gem era a carne humana e na qual as dívidas tinham de ser pagas em es­
pécie. O ancião Libata Nandenga explicou-me certa vez as regras de troca
nesta economia baseada na carne: «O dinheiro ou outros bens não ser­
vem; só a came humana. Se alguém tiver comido a carne de uma jovem,
deve pagar a dívida com a came de uma jovem; se tiver comido a came
de outro tipo de pessoa, deve devolver came de uma pessoa desse tipo.

26 La Fontaine (1963,208) refere a inveja entre as várias esposas de um homem como .


a causa mais comum das acusações de bruxaria entre os gisus. Ver também LeVine (1963:
242).
27Jones (1970:325) refere uma lógica semelhante de «dívidas de came» entre os bruxos
ibos, e Daníulani (1999:171) entre os bruxos eggons. Karen Brown (1989:280) descreve
como os manbo e oüngan haitianos consideram, por vezes, «impossível livrarem-se» da
«crescente espiral de obrigações» produzida pelo envolvimento na feitiçaria.

95
K u piliku la

Deve matar alguém da sua própria família e, se não o fizer, aqueles com
quem está em dívida podem acabar por matá-lo.»28
A filha de Libata, Mbegweka, disse-nos, certa vez, que era o círculo vi­
cioso das dívidas de carne que fazia a feitiçaria perdurar, atraindo novos
recrutas para o círculo de feiticeiros e ampliando a sua força destrutiva
na sociedade de Mueda, hoje tal como no passado.29

28Van Dijk (1992) relata a existência de bruxos, no Malawi, que exigiam o pagamento
em espécie das dívidas de carne de acordo com as partes do corpo - literalmente, olho
por olho, útero por útero, pénis por pénis, etc.
29 Masquelier (1997) descreve como os mawris do Níger são considerados capazes de
negociar com os espíritos doguwa, cuja fome insaciável por carne devem alimentar indi­
cando vítimas entre os vizinhos, amigos, e até estranhos.

96
Capítulo 5

Visões que curam


«O tipo estava a ficar louco!», disse Marcos. «Disse que tinha dores no
peito. Rasgou a camisa. Estava verdadeiramente em pânico - dizia que
ia morrer.»
«Então estavas numa situação difícil», disse eu.
«Estava, pois», respondeu Marcos, eufemisticamente.
A história tinha começado com Marcos a viajar na companhia de um
amigo seu - um soldado de licença - numa coluna motorizada, durante
a guerra civil.
«Nessa época, não podíamos viajar sozinhos», dissera Marcos. «A Re-
namo fazia-nos emboscadas. Por isso, tudo circulava em colunas, com
escoltas militares. Nós íamos numa dessas colunas.»
Foi quando a coluna parou numa das aldeias situadas ao longo do ca­
minho que o amigo de Marcos começou a ficar agitado.
«O problema era que a coluna só ia parar alguns minutos para uns
passageiros saírem e outros entrarem. Se não estivéssemos prontos para
viajar quando o chefe desse o sinal, seríamos deixados para trás. Poderiam
decorrer dez dias ou duas semanas até outra coluna passar por ali.
A aldeia não era o lugar mais seguro para ficarmos. E se eu não chegasse
a casa, quem cuidaria de que as crianças tivessem algo para comer?»
«Então tinham de estar na coluna quando ela partisse», disse eu, à laia
de confirmação.
«Exactamente, mas eu não podia abandonar o meu camarada. E ele
não podia prosseguir no estado em que estava. Disparatava, gritava. Teria
atraído as atenções.»
«Teria sido perigoso», comentei, para mostrar que entendia o dilema
com que Marcos estava confrontado.
«Exactamente», redarguiu Marcos. Fez uma breve pausa, como se es­
tivesse a recuperar a calma no momento de que falava. Depois prosse­
guiu:

97
K u piliku la

«Então pensei: ‘Vou tratar deste tipo’. Fui à beira da estrada e encontrei
uma árvore com folhas verdes. Nem sei de que espécie eram. Arranquei
algumas, cortei-as aos pedaços, esmaguei-as e misturei-as com água para
fazer uma pasta.» Enquanto falava, simulava os actos que ia descrevendo.
«Pus essa pasta no peito do tipo e comecei a invocar os meus antepas­
sados.» A voz do contador de histórias dava agora lugar à do homem
que invocava reverentemente os espíritos dos seus antepassados.
«‘Shondedisse eu.» Um sorriso pôs rapidamente fim à reverência de Mar­
cos, quando acrescentou: «E tudo o resto.»
Prosseguiu, sorrindo, mas ainda sério: «Invoquei os nomes de todos
os antepassados que conhecia. Especialmente Ndikutwala. Ndikutwala.
Ndikutwala.»
«A mãe da tua mãe», disse eu.
«Essa mesmo.»
«E então, o que aconteceu?», perguntei, depois de Marcos permanecer
em silêncio por algum tempo.
«Quando o tipo ouviu aquilo pensou ‘este homem é um curandeiro’,
e acalmou-se. Levei-o de volta para a coluna e conseguimos chegar a Mo-
címboa.»
«E ele ficou bem?», perguntei eu.
«Ficou óptimo», respondeu Marcos, com um largo sorriso. «Eu curei-o».1

***

Na sua obra clássica sobre o xamanismo nas Américas, Mircea Eliade


escreveu que «a diferença entre o leigo e o xamã é quantitativa... quase
poderíamos dizer que todos os índios ‘xamanizam’, mesmo que não
queiram tornar-se xamãs» (1964: 315). O mesmo se poderia dizer, em
grande medida, dos habitantes de Mueda e do curandeirismo. Marcos
dizia-me muitas vezes, na brincadeira: «Não sou curandeiro, mas às vezes
sei curar!»
Marcos estava, de facto, fascinado com as casas dos curandeiros da re­
gião. Quando nos sentávamos com um curandeiro, como fizemos muitas
vezes ao longo da nossa pesquisa, Marcos ficava absorto no ambiente.
Olhava fixamente para os diversos recipientes que atravancavam invaria­
velmente os espaços de cura, tentando discernir os seus conteúdos.
Quando um lhe era dado a examinar pelo dono, estudava-o - acariciava-
-o até - enquanto fazia perguntas sobre a substância que continha.

1 Um dos informantes de Lambek (1993: 298) narrou-lhe uma história semelhante.

98
Visões que curam

A maioria das pessoas, à semelhança de Marcos, procurava saber pelo


menos «qualquer coisinha» sobre as mitéla, pois o conhecimento destas
substâncias podia fortalecer a vida de uma pessoa, ao passo que o seu
desconhecimento se podia revelar desastroso. Não obstante a curiosidade
quase geral a respeito das mitela, porém, nem toda agente tinha idênticas
oportunidades de aprender sobre elas. O facto de os homens gozarem
de maior liberdade de movimentos do que as mulheres - na actualidade
e, mais ainda, no passado - proporcionava-lhes mais oportunidades de
ampliarem o seu conhecimento das mitela. Os anciãos tinham uma van­
tagem sobre os mais novos; quanto mais tempo vivia uma pessoa, maio­
res eram as suas possibilidades de aprender os vários tipos e utilizações
dessas substâncias.2
Os próprios anciãos passavam por momentos em que consideravam
o conhecimento que possuíam das mitela insuficiente para garantir o seu
próprio bem-estar face a forças ameaçadoras e invisíveis. Quando con­
frontados com desgraças e aflições, quase todos recorriam à ajuda de es­
pecialistas cujo conhecimento das mitela fosse superior ao seu.
Quem consultava especialistas procurava, inicialmente, compreender
a natureza do seu padecimento. Isto exigia adivinhação (yangek). Na re­
gião de Mueda, havia uma grande variedade de técnicas de adivinhação.
Por exemplo, Salapina Atalambwele, uma habitante da aldeia de Nam-
dimba, mostrou-nos como praticava a adivinhação pondo uma garrafa
de vinho rolhada e cheia de água no chão e depois fazendo perguntas
sobre a doença que afectava o seu paciente.3Após cada pergunta, encos­
tava um bastão de madeira de ébano contra o lado da garrafa. Se a res­
posta à sua pergunta fosse afirmativa, o bastão mantinha-se de pé. Se
fosse negativa, o bastão escorregava e caía no chão.4
No período pré-colonial, os adivinhos diziam por vezes a quem os
consultava que a causa dos seus desaires era o espírito de um antepassado
esquecido, e que esses problemas podiam ser resolvidos apaziguando o
espírito com um ritual denominado hüipudya (no qual se derramavam
bebidas em redor do túmulo do antepassado e se lhe pedia que restabe-

2 Cf. Whyte (1997,179); Bongmba (2001, 53-54).


3 Salapina recorria a maioria das vezes à adivinhação para averiguar as causas de um •
parto difícil. Segundo dizia, tais nascimentos resultavam normalmente do facto de a mu­
lher ou o marido terem tido relações sexuais com outra pessoa durante a gravidez. O seu
oráculo dizia-lhe qual dos parceiros tinha sido infiel. Geralmente, disse-me ela, depois
de o culpado confessar, a mãe dava à luz sem perder a criança.
4 Willis e Chisanga (1999,104) também mencionam a utilização de frascos, ainda que
contendo substâncias mágicas, no processo de adivinhação.

99
K u piliku la

lecesse a saúde ou a boa sorte do seu ou sua descendente). Ultimamente,


era menos frequente a adivinhação atribuir as aflições contemporâneas a
antepassados esquecidos. Após a evangelização católica no planalto de
Mueda (iniciada em 1924), surgiu uma nova categoria de doença, deno­
minada «doença de Deus» - categoria essa que eclipsou, de algum modo,
a do descontentamento dos antepassados, como veremos na parte II.5
As pessoas com quem trabalhámos mostravam-se, normalmente, resig­
nadas com as desgraças que os adivinhos atribuíam a Deus. Às vezes, fa­
lavam dessas situações difíceis como sendo o seu destino ou fado. Mais
importante ainda, tratavam as «doenças de Deus» como estando isentas
de perfídia.6
Alternativamente, os adivinhos podiam indicar que houvera perfídia,
ou seja uwavi. Os adivinhos contemporâneos atribuíam, de facto, uma
grande percentagem dos casos de infortúnio, doença e morte à feitiçaria.
Embora muitos afirmassem que não só eram capazes de discernir se uma
doença fora causada por feitiço, mas também, se fosse esse o caso, de
identificar o feiticeiro (e se fossem curandeiros - como muitos adivinhos
eram - de tratar a doença), a maioria daqueles com quem falámos optava
por não informar os clientes sobre a identidade dos seus atacantes.7 Os
adivinhos recordavam-nos, muitas vezes, que os feiticeiros se movimen­
tam imperceptivelmente entre nós, escutando as nossas palavras, sobre­
tudo quando falamos deles; ofender essas pessoas falando a seu respeito
seria uma imprudência.8Embora os adivinhos e outros especialistas afir­
massem não recear os feiticeiros como as pessoas comuns receavam, con­
sideravam, de um modo geral, que era má estratégia insultar e hostilizar
desnecessariamente aqueles contra quem lutavam. Mais importante
ainda, talvez, era o facto de que, quando os adivinhos identificavam os
atacantes perante as suas vítimas (como faziam com maior frequência no

5 Cf. Marwidc (1967,104), que apresenta a expressão «mortes de Deus» como sendo
muito antiga entre os chewas. Maxwell (1999, 85) descreve a dicotomia entre «doenças
de Deus» e «doenças do homem» como um fenómeno pré-colonial entre os hwesas. Jan-
zen (1978, 67-74) afirma que as categorias «doença de Deus» e «doença do homem» são
usadas pelos bakongos do Zaire, mas não nos diz se esta dicotomia é anterior ao período
colonial. Whyte (1982, 2057) relata que os nyoles suspeitavam de que as doenças incu­
ráveis eram «de Deus».
6 Pelo contrário,.Rasmussen (2001b, 30) regista que os tuaregues consideravam ser
«doenças de Deus» aquelas que podiam ser curadas pelos curandeiros corânicos.
7 Pelo contrário, os oráculos azandes, de acordo com as descrições de Evans-Pritchard
(1976 [1937]), informavam aqueles que os consultavam da identidade dos seus agresso­
res.
8 Cf. Ciekawy (2001,181).

100
Visões que curam

passado), podiam ocorrer confrontos violentos. Quando Dias e Dias rea­


lizaram a sua investigação, no fim do período colonial, constataram que,
geralmente, os perpetradores de feitiços continuavam a ser, para aqueles
que consultavam os adivinhos, agentes não identificados de sofrimento,
destruição e morte. Ocasionalmente, porém, os feiticeiros eram identifi­
cados. Nesses casos, se o acusado era um habitante da mesma aldeia,
podia ser sujeito a um ordálio (cujos pormenores Dias e Dias não des­
crevem) e perder a vida nesse processo (Dias e Dias 1970,370). Se o acu­
sado ou a acusada vivessem noutra povoação, a acusação poderia ser su­
ficiente para provocar hostilidades entre povoações (371-372).9
No passado, tal como em tempos mais recentes, os adivinhos que de­
nunciavam abertamente os feiticeiros eram, geralmente, estrangeiros que
apareciam subitamente, vindos de lugares desconhecidos e que, durante
algum tempo, perseguiam o objectivo declarado de desembaraçar as co­
munidades que visitavam do flagelo da bruxaria e/ou feitiçaria, antes de
voltarem a desaparecer. O nome há muito atribuído pelos habitantes do
planalto a tais adivinhos - waing’anga (sing. ing3angd) - assemelha-se, na
verdade, aos termos utilizados por muitos povos a sul do Rio Zambeze
para denominar os seus próprios curandeiros e/ou curandeiros-magos, o
que talvez revele algumas ligações (por descendência ou por outro tipo
qualquer de associação) entre os primeiros waing’anga de Mueda e os in­
vasores ngunis. Malcudo Shalaga Ntumi Ngole, um adivinho residente
na aldeia de Nshongwe, descreveu-nos um ritual que testemunhara há
muito tempo, no qual os homens, mulheres e crianças acusados de fei­
tiçaria por um ing‘anga visitante foram presos, rapados e obrigados a in­
gerir substâncias que, segundo foram avisados, rebentariam dentro deles
como uma bomba se voltassem a praticar uwavi. Malcudo concluiu que
os wainganga podiam acusar abertamente os vem (feiticeiros) e ficar im­
punes, porque eles próprios eram «perigosos». Mais ainda, como «estra­
nhos» não estavam vinculados por laços de intimidade. Quando os seus
actos causavam problemas numa povoação, ou na região em geral, po­
diam afastar-se com facilidade.10
Como os adivinhos locais se abstinham, em geral, de identificar aber­
tamente os feiticeiros, e os wainganga, tanto quanto as pessoas vivas se

9 A política e a prática administrativa coloniais (a analisar na parte ii) podem ter de­
sempenhado algum papel na supressão das acusações e dos ordálios de feitiçaria.
10Há uma literatura substancial sobre «caça aos bruxos» ou «rituais de limpeza de bru­
xos» na região, que remonta ao período colonial; ver, por exemplo, Richards (1970
[1935]); Marwick (1950); Tail (1963); Willis (1968; 1970); M. Green (1994; 1997); Fields
1997; Maxwell (1999); Probst (1999).

101
K u piliku la

conseguem lembrar, eram poucos e apareciam esporadicamente, há


muito que os habitantes de Mueda contavam com outras pessoas para
combater os feitiços. As principais eram aquelas a quem chamavam va-
mitela («curandeiros»; sing. muntela), especialistas em magia que utiliza­
vam as suas reservas e os seus conhecimentos das mitela para vários fins,
incluindo a luta contra a feitiçaria. Muitos adivinhos, mas nem todos,
eram vamitela-, e muitos vamitela, ainda que também nem todos, eram
adivinhos.
As pessoas com quem trabalhámos designavam (em shimakonde) todo
um complexo conjunto de actividades antifeitiçaria sob o termo kuvatela
vavi (defesa contra o feitiço). Em primeiro lugar, através de uma grande
variedade de práticas, os vamitela protegiam as pessoas e os seus ambien­
tes contra os ataques. Estes especialistas em substâncias mágicas e os seus
clientes planeavam a blindagem e a ornamentação de corpos humanos,
bens materiais, gado, casas, campos e aldeias com mitela, a fim de os pro­
teger contra os feiticeiros predadores. Em todas as situações e de todas as
formas possíveis, inseriam mitela no interior dos objectos animados e ina­
nimados que queriam defender, ou misturavam-nas com estes. Na ver­
dade, os habitantes do planalto preenchiam assim quase todas as «fendas»
do seu mundo com mitela.
Para essas práticas antifeitiço, era essencial uma categoria de mitela a
que chamavam mashishi. Os especialistas em substâncias mágicas afirma­
vam, geralmente, que as mitela incluídas nesta categoria não eram dife­
rentes das que os feiticeiros usavam nas suas actividades depredatórias.
O que transformava estas substâncias em mashishi era a sua utilização
para fins defensivos.
Kabalca Nanume Kapembe, um muntela que vivia na aldeia de
Nshongwe, informou-nos que o termo mashishi derivava do verbo kus-
hishila, que significa «hesitar». Explicou: «Quando um feiticeiro ou uma
feiticeira deparam com mashishi, hesitam enquanto tentam descobrir con­
tra quais devem lutar e como fazê-lo. A hesitação traz o medo e o medo
traz o respeito.»
Segundo nos informou Kabaka, existiam muitas espécies diferentes
de mashishi, utilizadas de diversas maneiras para defender coisas diferen­
tes. Enquanto conversava connosco, retirou do seu saco de pele de cabra
um saquinho de pano, não maior do que um ovo de galinha. Disse-nos
que se chamava ilishi e que se usava dependurado num cordão colocado
à volta do pescoço, como protecção contra a depredação dos feiticeiros.
Eu via, com maior frequência, dilishi (pl.) atadas em redor das cinturas
nuas das crianças mais pequenas. Os adultos também as usavam, em-

102
Visões que curam

C onheci Kabaka N anum e Kapembe na sua casa, em Nshongwe. Tíssa e eu es­


tivemos sentados a conversar calmamente com o ancião durante horas, fazendo-
-lhe perguntas sobre os seus conhecim entos de curandeirismo. A pós o ajusta­
m ento estrutural e a proem inência que as agências de ajuda ocidentais
adquiriram em M oçam bique, a maior parte do vestuário ao dispor dos habitan­
tes do planalto vinha dos Estados U nidos, por doação da Goodwill, sendo cha­
m ado «roupa Reagan». O florido blazer de senhora que Kabaka costumava usar,
desabotoado, acentuava de algum m odo a sua suave dignidade. Noutras oca­
siões, o seu corpo envelhecido animava-se. Enquanto nalombo (mestre de ritos
de iniciação), as marcas brancas que lhe adornavam o tronco nu refulgiam, en­
quanto dançava com grande energia e agilidade.

bora - à excepção dos vamitela - costumassem ocultá-las debaixo da


roupa.11
Os especialistas em substâncias mágicas também recorriam a outros
meios para proteger os corpos humanos contra os feiticeiros. O humu
Mandia (que, como a maioria dos vahumu, era um muntela famoso) ex-
plicou-nos que um humu recém-investido ia de casa em casa, tratando
aqueles que se encontravam sob a sua protecção com uma substância

11 Maia Green (1994:25) relata o uso do termo birisi para designar objectos semelhantes
usados pelos pogoros da Tanzânia. Davis-Roberts (1992,388) relata igualmente a utilização
de tais amuletos entre os tbwas do Zaire (actual República Democrática do Congo) para tor­
nar as potenciais vítimas invisíveis para os seus atacantes. Ver também Whyte (1997,133).

103
K u piliku la

mágica denominada ing’opedi. Mandia fez uma demonstração dessa prá­


tica em Marcos e em mim próprio. Tapou com o polegar direito a aber­
tura de um frasco que continha um pó cor de marfim e virou-o para
baixo. Depois, premindo suavemente a testa de Marcos com o polegar,
pintou primeiro uma linha vertical e depois uma linha horizontal; a mim,
«tratou-me» de modo semelhante. Explicou-nos que a substância era feita
de farinha de sorgo, misturada com certas espécies de mitela.12As marcas
nas nossas testas em breve desapareceriam, disse-nos, mas a sua protecção
iria perdurar. Durante algum tempo, os feiticeiros veriam as marcas e sa­
beriam que, se nos atacassem, teriam de lutar com Mandia.
Os vcmitéla utilizavam as mitela não só para proteger os corpos indivi­
duais, mas também para proteger os corpos sociais e os ambientes cons­
truídos em que as pessoas viviam. Muitos deles eram especialistas em kus-
hindika ing‘ande, ou em kukandyanga ing’ande («tratar da casa/do lar»).
Essas práticas eram tão boas como quaisquer outras para proteger uma
casa e os seus habitantes, disse-nos Pikashi Lindalandolo, um curandeiro
da aldeia de Nshongwe. O principal objecto usado nesta defesa do lar
era a lipande (pl. mapande), uma espécie de bomba contra os feitiços (ver
também Dias e Dias 1970, 370).
«Antigamente, cavávamos buracos no chão, dentro de casa, e enterrá­
vamos um vaso de barro com certos tipos de mitela», contou-nos Kabalca,
«mas depois, quando passou a haver outros recipientes, como as garrafas
de vidro, começámos a utilizá-los.»
Luís Avalimuka, que vivia na cidade de Mueda, mostrou-nos como
fazia estas bombas antifeitiço. Esmagou uma pedra em pedacinhos e
meteu-os num búzio. Depois juntou-lhes as cinzas de raízes, folhas e cas­
cas de árvores queimadas - mitela cujas origens não especificou. A estas,
adicionou pedaços de madeira triturados provenientes de uma árvore
que fora atingida por um raio. A seguir, acrescentou aparas de uma ma­
deira chamada ntameka e pedacinhos de outras espécies de madeira. Por
cima, deitou pedras trituradas mais pequenas que me pareceram ser de
quartzo. Estas pedrinhas, disse-nos ele, funcionavam como um detona­
dor. Por último, misturou-lhes um punhado de sementes vermelhas com
manchas pretas - não maiores do que ervilhas - a que chamava dinum-
binumbi.

12 Curiosamente, Ginzburg (1992 [1966], 24) escreve que os benandanti do Sul da Eu­
ropa, nos séculos XVI e XVII, costumavam armar-se com pés de funcho para combater bru­
xos armados com hastes de sorgo. Maia Green (1994:38) diz-nos que os curandeiros po-
goros aplicavam farinha de milho miúdo na cabeça e no corpo dos doentes com o forma
de obter as bênçãos dos antepassados.

104
V im s que curam

«Para a instalar, cavo um buraco no chão e enterro-a», disse-nos.


«Quando um feiticeiro vier atacar a casa, explodirá como uma bomba.
Explode e fere o feiticeiro. Pode matá-lo, mas normalmente apenas o fe­
rirá e fará fugir.»
Perguntei a Avalimuka se a lipande poderia ferir qualquer outra pessoa
que passasse no pátio - por exemplo alguém que vivesse na casa.
«Só se for um feiticeiro ou uma feiticeira», respondeu ele.
«Uma pessoa comum - por exemplo, o dono da casa - veria que a li­
pande tinha explodido quando passasse pelo pátio de manhã?», pergun­
tou Marcos.
«Não», respondeu Avalimuka. «Depois de o feiticeiro ser ferido e afu­
gentado, a lipande regressa ao buraco no chão. Não é preciso voltar a pô-
-la no lugar. Funcionará novamente quando o feiticeiro regressar, ou
quando vier outro feiticeiro.»13
Na época anterior à independência, quando os habitantes do planalto
viviam em povoações pequenas e dispersas, os especialistas em substân­
cias mágicas usavam outras técnicas «para defender a povoação [inteira]»
- kusbililidya ikaja. Muitos chefes de povoação eram também vamitela
competentes. Se não o fossem, recorriam a curandeiros para lhes forne­
cerem as mitela necessárias para proteger os respectivos domínios. Espe­
tavam-se na terra estacas tratadas com substâncias medicinais adequadas,
sob os caminhos que conduziam ao povoado. Se os feiticeiros as pisas­
sem, ficariam feridos.
Igualmente importante para a defesa da povoação, disse-nos Kabaka,
era a imale, uma substância que se espalhava por toda a sua área com o in­
tuito de a tomar invisível aos olhos de eventuais inimigos.14 Os vamitela
que entrevistámos também nos falaram de outras substâncias que há muito
são usadas para ocultar os bens materiais. Os objectos tratados com estes
tipos de mitela desapareciam quando os feiticeiros se aproximavam. Tissa,
que conhecia este fenómeno das muitas entrevistas que anteriormente fi­
zera a vamitela de Mueda, maravilhava-se: «Um feiticeiro pode estar à frente
de uma coisa e vê-la. Quando avança, ela desaparece. Quando recua, ela
reaparece. Imaginem só! Imaginem como isso o deve frustrar!»
Não obstante as muitas linhas de defesa contra a feitiçaria instaladas
pelos especialistas em substâncias mágicas, os feiticeiros ainda conse­

13 Beattie (1963, 38 4 9 ) descreve a produção e o uso de instrumentos semelhantes


pelos nyoros. Ver também Devisch (2001,115-116).
MKrige (1970 [1947], 271) relata que os lobedus do Nordeste do Transval também
defendiam as suas aldeias através de camuflagem.

105
K u piliku la

guiam, por vezes, atingir os seus alvos, produzindo desgraças e padeci­


mentos de vários tipos. Nesses casos, as pessoas recorriam, mais uma vez,
a especialistas experientes na arte da cura (kulaula). Na verdade, muitos
vamitela (especialistas em substâncias mágicas) - ainda que nem todos -
eram também vakulaula (curandeiros).15*Alguns vakulaula utilizavam os
seus conhecimentos de mitela apenas para tratar os padecimentos de ca­
rácter terreno. Muitos, porém, também tratavam padecimentos que con­
sideravam ser causados pelos ataques depredatórios dos feiticeiros.
Os curandeiros, segundo os habitantes da região, tratavam os males
causados pela feitiçaria «anulando o feitiço», «invertendo o feitiço» ou
«virando o feitiço» contra quem o enviara, estando todos estes métodos
incluídos no termo kupilikula.16Os curandeiros eram capazes dessas proe­
zas porque conseguiam ver os feiticeiros e os actos horrendos que estes
perpetravam. Alguns vakulaula afirmavam abertamente possuir, e utilizar,
shikupi - a substância medicinal que conferia invisibilidade aos feiticeiros.
Em todo o caso, as pessoas partiam do princípio de que todos os curan­
deiros que praticavam kupilikula conheciam a shikupi. Através da sua uti­
lização, era consensual para elas que os próprios curandeiros entravam
no reino invisível onde a feitiçaria era praticada e aí praticavam a sua con-
trafeitiçaria.17 Seguindo os feiticeiros contra quem combatiam, os vaku­
laula moviam-se «para além» ou para «fora» do mundo percepcionado
pela maioria.18
Enquanto os feiticeiros usavam o reino oculto como uma plataforma
para formular novas visões do mundo e materializarem essas visões des­
trutivas, os curandeiros faziam, em grande medida, o mesmo - embora

15 Nem todos os vamitela eram curandeiros (alguns só faziam adivinhação e/ou toma­
vam medidas preventivas), e um número muito reduzido de vakulaula não usava quais­
quer mitela nas suas práticas curativas.
18 O termo Impilihtla encontra correspondência em conceitos de contrafeitiçaria curativa
em todo o continente afticano e para além deste. Devisch informa que os curandeiros yalcas
do Zaire (actual República Democrática do Congo) combatiam uma doença «virando-a
contra si própria, para que se autodestruísse» (1990,220-221). Joralemon e Sharon descre­
vem os curanderos peruanos enviando, similarmente, «[o feitiço] de volta à sua origem»
(1993,253). John Bowen diz que os curandeiros gayos de Sumatra obtêm «retribuição» ao
«devolverem» os espíritos malignos a quem os enviou primeiro (1993, 179). Ver também
Luomala (1989:291); Rodman (1993); Whyte (1982,2057; 1988,219; 1997,3). Em Mueda
usam-se também os verbos htpindula e kupindikula com significados semelhantes.
17 Lienhardt (1951, 304) também usa o termo «contrabruxo» para descrever os dinka
que combatem a bruxaria.
18À semelhança dos curandeiros yakas descritos por Devisch, os curandeiros de Mueda
trabalhavam «para além dos habituais mapas cognitivos dos limites do espaço-tempo»
(Devisch 2001,106).

106
Visões que curam

para fins incontestavelmente diferentes - (re)modelando o mundo de


acordo com as suas visões de cura. Enquanto os feiticeiros distorciam e
subvertiam a ordem social através das suas incursões da imaginação,19 os
curandeiros, através dos seus próprios voos de invenção, 20vigiavam o com­
portamento dos feiticeiros e a desordem por ele causada, produzindo/res-
taurando assim uma ordem benéfica para o mundo.19201
Para atingirem os seus fins curativos, os vahdaula transcendiam não
só o mundo percepcionado pelas pessoas comuns, mas também o
mundo percepcionado pelos feiticeiros que as ameaçavam. Conheciam
tipos mais fortes de mitela do que esses feiticeiros e melhores métodos
de os utilizar. Iam mais «além» ou mais «fora» dos constrangimentos do
reino visível do que eles. Dominavam-nos com o seu olhar, tal como os
feiticeiros dominavam as pessoas que eles atacavam com o seu olhar. Ao
fazê-lo, os vakulaula não só «conheciam o mundo» - segundo a expressão
de James Femandez (1991,220) - como também persuadiam os seus pa­
cientes, através da «asserção imaginativa» das suas práticas de cura (219),
de que exerciam a sua superioridade num mundo que estava para além
da vista deles. Os vakulaula faziam-no, através de palavras ou de actos,
articulando as visões do mundo visível e do seu funcionamento que ela­
boravam a partir da plataforma do reino invisível.
Os curandeiros não só descreviam aos seus pacientes as forças que os
atacavam, como também lhes retratavam um mundo onde estas forças
eram desfeitas. Diziam-lhes, com palavras e com actos, que os seus sofri­
mentos eram meros produtos da imaginação de feiticeiros - que eram
«feitos» e que, consequentemente, podiam ser «desfeitos». Garro e Mat-
tingly sugeriram que a «viagem imaginativa» do curandeiro é, muitas
vezes, realizada através da narrativa de uma «história convincente» (2000,
11; ver também Lattas 1993, 68); os curandeiros de Mueda aceitavam
este mandato executando a manobra transcendente denominada kupili-
kula e narrando, como veremos, um mundo onde os poderes dos feiti­
ceiros eram invertidos, negados e/ou anulados. Invocando a sua ante­
passada Ndikutwala para acalmar o camarada, quando a sua coluna
motorizada se preparava para partir, Marcos - o curandeiro que não o
era - realizou, ele próprio, uma dessas manobras.

19 Ver também Gufler (1999,181); Devisch (2001,108).


20 Ver, de novo, Devisch (2001,109).
21 Ver também Beidelman (1993,2,204).

107
•|!

i
Capítulo 6

Vítimas ou agressores?
«Porque é que os feiticeiros haviam de vir ter consigo?!», perguntei a
Shindambwanda, muito surpreendido.
O curandeiro estava ocupado com a tarefa que tinha entre mãos - res­
ponder de forma mais ampla, com uma demonstração, à minha pergunta
sobre como sabia se os pacientes que o procuravam eram vítimas dos
ataques de feiticeiros. Marcos - que fazia de seu doente - estava pacien­
temente sentado no chão, sobre uma esteira de junco, com as pernas es­
tendidas para a frente. Shindambwanda sentava-se por detrás dele num
igoli. 1
«Muitos dos que me vêm consultar não são vítimas de feitiços», dissera
Shindambwanda, puxando levemente a camisa de Marcos para que este
a tirasse.
Eu ficara à espera que o curandeiro me dissesse que as outras pessoas
que ele tratava sofriam de «doenças de Deus». Em vez disso, declarou:
«Muitos deles são feiticeiros.»
Shindambwanda segurava na mão um frasco de perfume reaprovei-
tado, cheio de um líquido azul-escuro e tapado com uma rolha de cortiça.
Mandou Marcos endireitar as costas e inclinar-se ligeiramente para a
frente.
Em resposta à minha expressão de surpresa, acrescentou: «Os feiticei­
ros causam sarilhos a si próprios.»
«Sarilhos como?», perguntei.
Shindambwanda poliu as faces do frasco com um pedaço de pano.
«As coisas que os feiticeiros atacam estão, muitas vezes, protegidas contra

1 U m igoli é um estrado de junco entrançado e esticado numa moldura rectangular de


madeira e elevado à altura dos joelhos por quatro pernas de madeira. Pode ser utilizado
com o cama ou com o banco.

109
K u piliku la

os feitiços. Se eles fizerem disparar as protecções colocadas em redor dos


seus alvos, podem ficar feridos.»2
Shindambwanda pousava agora o frasco, cuidadosamente, nas costas
de Marcos, segurando-o lá. Estava a dizer qualquer coisa, mas as suas pa­
lavras eram para mim inaudíveis.
Marcos, cujos ouvidos estavam apenas a alguns centímetros da boca
do ancião, servia-me de amplificador, traduzindo simultaneamente para
português o que ele dizia, como se estivesse a ocultá-las de quem as pro­
ferira. «Está a dizer que, se eu for vítima de feitiçaria, o frasco cairá no
chão, mas que se eu me tiver magoado a atacar outra pessoa, o frasco fi­
cará agarrado a mim, no sítio onde está.»3
Shindambwanda retirou as mãos do frasco, lentamente. Eu olhava-o,
expectante. O frasco ficou pegado à pele de Marcos. À medida que os
instantes passavam, em silêncio, Marcos foi ficando tenso. Shindamb­
wanda manteve-se sentado, sem se mexer, olhando o frasco fixamente.
Por fim, retirou-o.
Nenhum dos dois homens falou. No meio da minha ansiedade, con­
segui articular, com uma naturalidade forçada: «Então, o que é isso quer
dizer?»
«Vais ter de perguntá-lo ao ancião», respondeu Marcos.4
Olhei para Shindambwanda.
«Este não está doente», disse ele, referindo-se ao seu doente simulado,
«por isso estayangele [adivinhação] não é verdadeira.»
Apesar das suas palavras, Shindambwanda continuava a afadigar-se
com a mesma intensidade. Deixou de explicar os actos que ia executando,
o que me levou a duvidar de que ainda os estivesse a fazer para meu es­
clarecimento. Limpou o suor das costas de Marcos e ajustou o ângulo
em que este estava sentado. Soprou no frasco e poliu-o. Depois repetiu
o exercício de adivinhação. Mais uma vez, o frasco ficou suspenso, agar­
rado à pele de Marcos.
Desta vez, nem eu consegui falar.
Depois de repetir o procedimento uma terceira vez, com o mesmo re­
sultado, Shindambwanda pegou na camisa de Marcos e pousou-lha no

2 Ver também Gufler (1999).


3 Danfalani (1999,176) descreve um método semelhante de adivinhação usado pelos
eggons da Nigéria para detectar bruxos.
4 Rodman (1993,232) fala de um feiticeiro acusado em Abmae, Vanuatu, que acabou
por lhe confessar que não tinha a certeza de ser ou não culpado do que o acusavam. Às
vezes, as pessoas de Mueda também expressam dúvidas sobre a sua própria inocência.

110
V ítim as ou agressores?

ombro. Marcos ergueu-se sem dizer palavra, vestiu-se e sentou-se ao meu


lado. Shindambwanda começou finalmente a falar.
«É isto que eu faço para distinguir entre os que foram feridos por fei­
ticeiros e os que se feriram a si próprios.»
Enquanto falava, olhava mais para mim do que para Marcos. Com as
suas palavras, abordou o que acabara de suceder sob os meus olhos e ig­
norou-o, simultaneamente.
«Se alguém negar ser um feiticeiro, não posso curá-lo, mas se confessar,
posso trabalhar com ele.»

Shindambwanda não era o único curandeiro a suspeitar que aqueles


que vinham pedir-lhe tratamento podiam ser feiticeiros. «A maioria das
pessoas que vão aos curandeiros não é vakulogweka [vítimas de feitiçaria]»,
disse-nos, certa vez, o curandeiro Boaventura Makulca, de Matambalale.
«A maioria é vakulibyaa [pessoas que se feriram a fazer feitiçaria].»
A opinião de Makulca era partilhada por muitos vamitela de Mueda.
Afinal, como especialistas em substâncias mágicas, sabiam bem que a
maior parte dos objectos e/ou pessoas que os feiticeiros quisessem atingir
estava protegida por mitela contra os feitiços, que causariam danos aos
vavi que os atacassem. A maioria das vítimas de um ataque bem sucedido
procuraria a ajuda de um curandeiro, que viraria os efeitos do feitiço con­
tra quem o enviara. Com tantos feitiços a ricochetearem de um lado para
o outro, era provável que muitos se ferissem em ataques frustrados.
Os curandeiros punham grande empenho em determinar se os seus
pacientes eram vítimas de feiticeiros ou feiticeiros feridos, pois, segundo
diziam, os feiticeiros feridos que não confessassem os seus crimes não
reagiriam ao tratamento.5«Os feiticeiros feridos são os doentes mais fáceis
de tratar», disse-nos Renata Damião, «mas definham depressa se não con­
fessarem.» 6
Alguns curandeiros perguntavam aos doentes se eram feiticeiros feri­
dos. Nantulima Lipatu, de Miula, contou-nos: «Normalmente, consigo
saber quando alguém é um feiticeiro ferido. O seu padecimento mais

5 Maia Green (1994: 35) descreve os rituais antibruxaria dos pogoros, nos quais, pelo
contrário, não se fazia qualquer distinção entre as pessoas acusadas de bruxaria e os seus
acusadores.
6 Ver também Geschiere (1997,55). O cenário está porém longe de ser universal; por
exemplo, os informantes navajos de Kluckhohn (1944, 49) ligaram a confissão de um
bruxo às melhoras da sua vítima e não à recuperação do bruxo.

111
K u piliku la

Baptizado com o n om e de Tomás Jakobo Almeida, Shindambwanda adoptou


um n om e m aconde quando com eçou a trabalhar com o curandeiro, em 1976.
O seu pai, Jakobo, e o pai de seu pai, Almeida, também tinham sido curandeiros.
Por causa disso, dizia-se que Shindambwanda possuía alguns dos tipos de mitela
mais poderosos da região de Mueda.

comum é a dor nas costas. Mas eles também me costumam dizer que
são vakulityaa.»
Shindambwanda estava menos confiante de que os seus doentes con­
fessassem, quando eram feiticeiros feridos, e por isso praticava a adivi­
nhação (como demonstrara com Marcos), a fim de determinar se eram
vítimas de feiticeiros ou feiticeiros que se tinham magoado. «Não posso
curá-los se não confessarem», disse-nos. «Mando-os embora. Digo-lhes
que procurem outro curandeiro.»
Vantila Shingini, de Namande, abordava o problema de forma dife­
rente: «Quando o tratamento não resulta num doente, começo a des­
confiar que ele se feriu a si próprio».7
Limitedi Untonji, o curandeiro cego de Nandimba, tinha a mesma
abordagem: «Quando um feiticeiro ferido não confessa, os tratamentos
normais não resultam. Por isso, se um doente meu não responde ao tra­

7 Segundo Kluckhohn (1944: 54) os curandeiros navajos atribuíam qualquer doença


que não se curasse rapidamente ao ataque de um bruxo e não a uma tentativa falhada de
atacar outra pessoa. Ver também Mesaki (1994: 48).

112
V ítim as ou agressores?

tamento, suspeito dele. Nestes casos, experimento um tratamento apro­


priado para feiticeiros feridos. Se começar a dar resultado, procuro fazer
com que essa pessoa reconheça ter praticado feitiçaria, de modo a poder
concluir o trabalho.»8
Nem todos os curandeiros tratavam feiticeiros feridos. Alguns diziam
que não sabiam tratar esses ferimentos. Aqueles que os tratavam justifi­
cavam o seu trabalho de várias maneiras. Sinema Kakoli, de Mwambula,
disse-nos, simplesmente, que os feiticeiros feridos pagavam bem para
serem curados. Pelo contrário, Limitedi contou-nos que às vezes não lhe
pagavam nada. De qualquer modo tratava-os, tal como tratava as vítimas
dos feiticeirps. «A lei da medicina manda tratar todos os que estão doen­
tes», declarou.
Atanásio Hemeo, de Matambalale, também seguia esta política.
Quando Tissa lhe perguntou como explicava o facto de tratar feiticeiros
feridos quando ele próprio colocava armadilhas para os ferir, respondeu:
«Eles também são pessoas. Às vezes, os pais trazem-me cá os filhos. Essas
crianças magoaram-se a si mesmas ao tentar matar os pais, mas estes que­
rem que elas fiquem curadas.»
A dada altura, Marcos discutiu com Limitedi a respeito dessa questão:
«Se eu fosse curandeiro, nunca trataria feiticeiros feridos. Deixava-os mor­
rer. Dessa forma, podiam ser eliminados.» Limitedi respondeu-lhe di­
zendo: «Isso é impossível. Apareceriam sempre novos feiticeiros. A feiti­
çaria nunca poderá ser eliminada.»
A maioria dos curandeiros concordava com Limitedi quanto ao facto
de, apesar do seu trabalho, a feitiçaria nunca poder ser eliminada.
A ameaça constante da feitiçaria causava uma ansiedade que os habitan­
tes do planalto de Mueda tinham de enfrentar, tomando as precauções
necessárias contra a ocorrência de feitiços e recorrendo ao auxílio de es­
pecialistas, em circunstâncias extraordinárias.
Por ironia, a consulta de um curandeiro - que tanto podia acusar de
feitiçaria quem o consultava (sobretudo se a sua doença persistisse),9
como considerá-lo vítima de um ataque não provocado - servia, muitas
vezes, para aumentar a ansiedade e gerar incertezas ainda maiores. Nos
dias que se seguiram à nossa sessão com Shindambwanda, Marcos, nor­
malmente tagarela, nada disse sobre o incidente. O seu silêncio era reve­
lador de um prolongado mal-estar.

8Tais confrontos são suscitados pelas acusações dos curandeiros e não pelas confissões
dos pacientes; ver também Wyllie (1970,132).
9 Ver também Mayer (1970, 65-66); Ruel (1970b, 333); Devisch (2001,120).

113
Capítulo 7

Carreiras complicadas
«Ora, aqui está um proclamou Marcos, pousando a mão no
joelho de Shindambwanda, quando mudou do shimaconde para o portu­
guês. Fitei Marcos directamente nos olhos. Embora estivéssemos sentados
à sombra, o seu rosto estava brilhante de suor. O tom era jocoso mas, to­
davia, sincero. Senti relutância em falar. Embora nunca tivesse ouvido
Shindambwanda falar português, tinha a certeza de que ele entendia o su­
ficiente para saber que Marcos o estava a acusar de ser feiticeiro.
A conversa com o nkulmla principiara, nesse dia, com uma pergunta de
Marcos. «Nangklo [ancião]», dissera ele. «Pode contar-nos alguma coisa
sobre os feiticeiros que fazem leões?»
«Uwavi wa hipika», respondera Shindambwanda, designando esta cate­
goria de uwavi como «feitiço de fazer», ou «feitiço de fabricação».
O ancião prosseguiu: «Há uma coisa chamada imika, que é essencial para
o feitiço de fabricação. As dimika(pl.) são pedaços de madeira tratados com
mitela.»
Ergueu a mão, mostrando-nos uma fiada de pedacinhos de madeira que
usava como pulseira em redor do pulso. «Estas são dimika», disse ele. Fez
uma pausa, como se conjurasse uma visão. «Há outros tipos de diniika que
são usados para fazer animais.»
Aproximou-se de um banquinho de madeira que estava no chão, à sua
frente. «Um feiticeiro põe um pedaço de imika no chão», afirmou, dando
pancadinhas no tampo do banquinho como se este fosse o chão. «Depois
diz: ‘Amanhã, quero encontrar aqui uma cobra5. De manhã, quando re­
gressa, experimenta a imika levando-a até uma árvore e dizendo-lhe: ‘Agora
quero que mordas5. Quando ele diz isto, ela morde a árvore e, assim, ele'
sabe que está pronta. Pode mandá-la morder a pessoa que indicar.»1

1 C f Tumer (1968,203), onde é descrita a fabricação de uma nyalumaya (rapariga) «fa­


miliar» entre os ndembu da Zâmbia.

115
K u piliku la

Marcos observava Shindambwanda como se estivesse a presenciar a


cena que o ancião descrevia. Shindambwanda representava para o seu
público, medindo cuidadosamente o efeito dramático das suas palavras.
Continuou: «Ao falar com um leão, bate-se nele com uma vara.» Imitou
o movimento, tamborilando no banquinho à sua frente. «Para o preparar
para matar, cavam-se três covas pequenas no chão e enchem-se com água.
Diz-se ao leão para beber de uma cova, depois da seguinte e, finalmente,
da última. De cada uma das vezes, bate-se na cabeça dele com a vara.»
Shindambwanda também simulou cada um destes actos para nós ver­
mos. «A cada poça de água, o leão fica mais agressivo.»
Marcos e eu olhávamos Shindambwanda como crianças a escutar um
contador de histórias. Senti um calafiio ao imaginar a cena.
«Depois de ter matado, obriga-se q leão a beber das poças de água por
ordem inversa. A fera ficará mais calma com cada uma delas.»
Shindambwanda sorriu e soltou uma risadinha. «É muito arriscado»,
afirmou. «Depois de um leão ter comido a sua vítima, pode ser difícil
acalmá-lo. Se não se conseguir fazê-lo - se se fugir - o leão pode ficar de­
sorientado e matar qualquer pessoa.2 Nessa altura, é necessário chamar
um bom muntela, que saiba cuidar dessas coisas.»
Proferimos os três, quase em uníssono, o nome «Kalamatatu». O nosso
riso quebrou a tensão que nos tinha envolvido e a conversa mudou para
outros temas.
Antes de partirmos, porém, sentei-me tranquilamente a anotar algumas
observações no meu caderno. Shindambwanda e Marcos conversavam.
De súbito, na presença do ancião - ainda que em português - Marcos
dizia-me que Shindambwanda era um feiticeiro. O ancião pareceu não
se dar conta, mas eu fiquei nervoso. Por fim, respondi a Marcos com
uma pergunta: «O que te leva a dizer isso?»
Marcos sorriu e inclinou-se para a frente. «Como é que julgas que ele
sabe aquilo tudo?! Tu viste-o! Sentou-se ali e mostrou-nos como se faz
um leão. Ninguém pode saber tanto a não ser que já o tenha feito!»3
«Mas ele tem de saber como são feitos para os poder desfazer, não
tem?», repliquei.
«Com certeza», concordou Marcos, «mas o que estou a dizer é que ele
sabe fazê-los porque já os fez! Praticamente fez um aqui mesmo à nossa
frente!»

2 Beattie (1967,229-230) documenta as convicções dos nyoros de que os mabembe («fe­


tiches»; isto é, «coisas feitas») comportam iguais perigos de escapar aos seus criadores.
3 Ver também Âshfort (2000,189).

116
Carreiras com plicadas

Agarrei a mão de Marcos e apertei-lha, sem saber ao certo como iria


responder ao que tencionava dizer-lhe. «Ele também já aqui adivinhou,
na nossa frente, que tu eras um feiticeiro.»
Marcos olhou para mim com uma leve expressão de ter sido traído -
de exasperação até. «Foi apenas uma demonstração.»
«A descrição de como se fabrica um leão também o era», redargui.
Marcos fitou-me intensamente: «A demonstração àtyangek feita pelo
ancião revelou que ele pode faztryangek real quando as circunstâncias o
exijam.»
Ficou ali sentado, esperando que eu compreendesse o seu argumento
não dito de que o ancião podia realmente fazer uwaviwakupika, quando
as circunstâncias o exigissem - que a sua demonstração de que sabia
como se fazia um leão era uma declaração da sua capacidade de o fazer.
«E agora que vimos o ancião a fazer um leão, suponho que nós tam­
bém podemos fazê-los», disse eu, na brincadeira.
«Talvez possamos», respondeu Marcos, com a mesma sinceridade.

Quando nos falavam de feiticeiros, os habitantes do planalto enco­


briam muitas vezes os seus comentários com eufemismos e, sintomati­
camente, também usavam da mesma linguagem eufemística para falar
dos curandeiros.4 Era frequente dizer-se de um curandeiro - tal como
de um suspeito de feitiçaria - que ele era «complicado» (andikamadyangd).
Kalamatatu, por exemplo, era-me muitas vezes descrito por outras pessoas
como sendo um «homem complicado». Falavam-me também, quer dos
curandeiros quer dos feiticeiros, como sendo «corajosos» ikujoa, que tam­
bém se pode traduzir por «perigosos»). Dizia-se que os curandeiros, à se­
melhança dos feiticeiros, eram corajosos porque «sabiam alguma coisa»
(andimanyashinushoeshoe, «ele/ela sabe alguma coisa») que as pessoas co­
muns desconheciam e que lhes permitia agir decisivamente no reino
oculto.
Afirmava-se, muitas vezes, que antigamente os curandeiros adquiriam
os conhecimentos que lhes davam poder fazendo a aprendizagem com
um mestre curandeiro. Libata Nandenga mencionou explicitamente a
relação mestre-discípulo, quando conversámos com ele na sua casa, em
Mueda. Contou-nos: «Comecei a aprender as mitela com o meu pai,
ainda em rapaz. Já era muntéla antes de passar pelos likumbi [ritos de ini­

4 Ver também Willis (1970,219).

117
K u piliku la

ciação dos rapazes]. Nessa época, os curandeiros aprendiam com os an­


ciãos curandeiros.»
Perguntei-lhe se era suficiente aprender sobre as mitela para alguém se
tomar curandeiro.
«Não», respondeu. «Para alguém ser curandeiro, naquele tempo, era
necessário que o seu mentor o empossasse, numa cerimónia chamada
sbipito. Se o mentor ensinasse as suas mitela ao discípulo, mas morresse
antes de o empossar, ele não podia praticar. A sbipito activava os conhe­
cimentos que ele tinha das mitela. Se o seu mentor não lhe organizasse a
sbipito, as suas mitela podiam ser facilmente destruídas [<kupilikula]. E du­
rante todo o tempo em que o mestre ensinava as mitela ao discípulo,
podia derrubá-lo ele próprio. Podia invejá-lo ou estar apenas a brincar
com ele. Podia fazer com que se esquecesse das suas mitela, ou com que
virasse os seus esforços contra si próprio, ou mesmo causar-lhe a loucura
ou a morte. Depois de passar pela sbipito, já não podia fazê-lo. Já não
podia derrubar as suas mitela. 5 O meu pai organizou a minha sbipito,
assim que regressei dos ritos de iniciação. Actualmente, os curandeiros
adquirem os seus conhecimentos de maneiras diferentes.»
A filha do irmão de Libata, Terezinha António, era um excelente exem­
plo disto. Terezinha nascera no ano de 1949, em Palma. Os seus pais,
que tinham migrado da cidade de Mueda para Palma, baptizaram-na
quando nasceu. «Nunca recebi um nome maconde», disse-nos ela, sem
mostrar qualquer emoção a esse respeito, «mas o nome que uso na minha
prática de curandeira é Mbegweka.»
O seu pai e sua mãe tinham morrido ambos quando ela era jovem,
mas disso não nos falou. Passou os anos da guerra da independência nas
terras baixas de Imbuho, numa zona controlada pela Frelimo. Na altura
da independência, em vez de regressar à região de Palma, onde não tinha
ninguém, mudou-se para a cidade de Mueda. Foi então que ficou doente.
Levaram-na a um curandeiro, que tentou curá-la, mas a sua doença per­
sistiu. Por fim, disseram-lhe que estava possuída por um espírito.
Mbegwka explicou-nos: «No passado, chamava-se mangonde a este tipo
de aflição, a possessão por espíritos, mas no meu caso foi uma coisa
especial. Fui visitar o irmão mais velho do meu pai [Libata], que também
era curandeiro. Ele disse-me que o espírito que me estava a possuir era
o pai da minha mãe, Ndonagwamba Shing’oma, que fora um pode­
roso adivinho. Os espíritos desse tipo - os espíritos dos antepassados

5 Laderman (1991,59) descreve uma investidura semelhante entre os xamãs malaios.

118
Carreiras com plicadas

Libata Nandenga foi buscar o seu nom e ao termo com que se designam os patos
no planalto de Mueda (a palavra portuguesa transliterada para shimaconde). En­
quanto o seu n om e suscitava o riso, o seu ar carrancudo provocava m edo e res­
peito.

- chamam-se vanungu. No passado, quando uma pessoa estava possuída


por eles, ficava com febre e começava a tremer. Então, o antepassado
pedia-lhe que fizesse uma cerimónia. Quando ela a fazia, tudo acabava.
Agora é diferente. Estes espíritos não se vão embora. Continuam sempre
a voltar. Ndonagwamba não deixou sucessores quando morreu e, por
isso, estava a chamar-me para o seguir. Comecei a tratar doentes por volta
de 1978 ou 1979. Aprendi as minhas mitela com o meu tio.»
Mbegweka recebia orientações sobre a forma como devia utilizar as
suas mitela do espírito de Ndonagwamba, que a possuía. Com o tempo,
foi possuída por outros antepassados do lado de sua mãe e do lado de

119
K u piliku la

seu pai, que a ajudaram a determinar o que afligia os doentes que a vi­
nham consultar.
Muitos dos curandeiros do planalto com quem trabalhámos passaram
por uma situação de doença durante o processo de se tomarem curan­
deiros. 6 Shapatintwa Shikumula Shitwanga, uma curandeira que vivia
na aldeia de Miula, aprendeu a tratar dores de cabeça com o nkulaula que
a curou das dores de cabeça que a afligiam. Na mesma aldeia, Nantulima
Lipatu contou-nos que se virou para a profissão de curandeiro depois de
ter sido curado de tuberculose, dores nos ossos e «fraqueza», por um
homem chamado Lingala. Verónica Romão, em Matambalale, disse-nos
que ficou cega em 1988, ao fim de um ano em que teve problemas cada
vez mais graves nos olhos. Depois de o curandeiro Tomás Nido, de Nam-
panha, a ter curado, começou a tratar outras pessoas. Komesa Baina, de
Namande, começou a tratar as pessoas com as mesmas mitela que Ar­
mando Mwikumba usara para o curar de dores de estômago. O curador
de Renata Damião, possuído por um espírito chamado Fatuma, disse-
-lhe que ela só se restabeleceria da doença que a flagelava havia seis anos
se aprendesse a curar outras pessoas. Ela assim fez, curando-se, deste
modo, a si própria.
Na região do planalto de Mueda, era tão comum os curandeiros apren­
derem a curar ao serem eles próprios curados, que Marcos me sugeriu
certa vez: «Não podemos tratar uma coisa se não tivermos sofrido e sido
tratados dela. O que quero dizer é que, por exemplo, não podemos tratar
uma mordedura de serpente se não tivermos sido mordidos.» Contudo,
e apesar das palavras de Marcos, nem todos os curandeiros do planalto
iniciaram as suas carreiras no momento em que venceram uma doença.
E certamente que muitos deles tratavam doenças de que nunca tinham
sofrido.
Muitos curandeiros contemporâneos com os quais trabalhámos tam­
bém recebiam inspiração de espíritos semelhantes aos que possuíram
Mbegweka. Renata Damião, tal como ela, tinha um avô que fora curan­
deiro enquanto era vivo. Morrera antes de Renata nascer. Quando traba-

6 O mesmo padrão tem sido frequentemente observado noutras partes do continente


africano e fora dele. Ver, por exemplo, Turner (1968); Redmayne (1970,103); Fry (1976,
38); D . Brown (1994 [1986], 94); Masquelier (1987); Taussig (1987,447); Devisch (1990,
220); K Brown (1991,352); Janzen (1992,105-106); Reynolds (1996,6); Willis e Chisanga
(1999,152); Ashfort (2000,90); Rasmussen (2001b, 60). Vaughan sugere que os primeiros
auxiliares de saúde africanos empregados pelos médicos missionários eram, geralmente,
antigos pacientes que «permaneciam nos hospitais muito tempo depois de terem recu­
perado das suas doenças» (1991,61).

120
Carreiras com plicadas

lhava, Renata invocava o seu nome e ele possuía-a, dizendo-lhe se devia


tratar um doente ou não, e como devia fazê-lo. Numa tarde em que Mar­
cos e eu estávamos sentados a conversar com ela sobre a sua vida como
curandeira, o espírito do avô encontrava-se presente nela. Marcos disse-
-me que o sabia pelos profundos arrotos que ela soltava várias vezes por
minuto.
Verónica Romão também nos disse que trabalhava com espíritos - so­
bretudo com o espírito do seu tio. «Eles dizem-me quem são os feiticeiros
que estão a causar problemas às pessoas», explicou.7
Luís Avalimuka, um curandeiro que vivia e trabalhava na cidade de
Mueda, adquiriu o seu saber de curandeiro de outra forma ainda. «Nin­
guém me ensinou a curar», explicou ele a Marcos e a mim. «Aquilo que
sei, aprendi dos sonhos.» Quando Luís tinha quarenta e cinco anos,
ouviu uma voz, em sonhos, que lhe dizia existir um antepassado, de um
lugar chamado Shipishi, que visitava regularmente a sua casa e se ia em­
bora com fome e sede. Luís sentiu curiosidade em saber quem seria ele
e foi perguntar a um ancião da família chamado Likanganyanga. O an­
cião disse-lhe que esse antepassado devia ser Nunduma, um homem que
Luís não conhecera. Como os sonhos continuavam, Luís ficou agitado.
Pediu a Likanganyanga que o levasse ao túmulo de Nunduma, mas o an­
cião recusou. Depois, Luís sonhou com uma mulher e um rapazinho
que o levaram à terra de Nunduma, onde ele se apresentou e explicou
por que razão ali estava. Quando acordou, Luís viajou até ao sítio onde
tinha sido levado no seu sonho, próximo do rio Shipishi. Ali, perguntou
onde podia encontrar membros da sua matrilinhagem, os quais lhe en­
viaram um rapaz que o levou ao túmulo de Nunduma. Limpou o túmulo
e construiu um telhado de colmo para o cobrir. Quando voltou a visitar
o túmulo, a cobertura ardera e, por isso, construiu outra maior. Poste­
riormente, sonhava de vez em quando com o túmulo e, concomitante­
mente, com certas raízes, folhas e cascas de árvores que devia apanhar.
Sem saber que utilidade poderiam ter, começou a recolher essas coisas.
De noite, sonhava com anciãos que lhe diziam como utilizar esses tipos
de mitela. Seguindo as instruções deles, Luís queimava os materiais, re-
duzia-os a pó e misturava-os com óleo de rícino. Confiou-nos que usava
essas substâncias para curar doentes, havia já muitos anos, sempre inspi­
rado pelos seus sonhos.

7 Chavunduka (1978, 19) explica em detalhe a importância da orientação de espíritos


para a prática da cura na Rodésia (actual Zimbabué).

121
K u p ilih d a

Carmelita M ilonge e o seu falecido marido especializaram-se, juntos, na prática


de uma técnica de cura denominada takatuka. Outrora, os praticantes de takatuka
wanalyuva ((w andyuva deriva do verbo kulyuva, «mudar», com o no caso de uma
cobra que muda de pele) eram chamados sempre que havia lesões graves, com o
ossos partidos e feridas profundas, transferindo, segundo nos disseram, as feridas
do doente para a pernada de uma árvore, que secava e morria, deixando-o com
uma pequena ferida noutro lugar do corpo. Dizia-se que através da takatuka,
Mbavala, o chefe militar m aconde da época pré-colonial, enxertava cabeças de
escravos cativos em corpos de guerreiros seus que tivessem sido mortalmente
feridos, ressuscitando-os. Q uando interroguei Carmelita sobre esses casos, ela
respondeu: «A irmã de Mbavala morreu em 1998 com um a cabeça dessas.
A sua cabeça de origem era m uito bela, mas foi morta num a guerra e a cabeça
que lhe puseram para a ressuscitar era a de uma escrava feia». Carmelita disse­
m os que estas curas dramáticas já não se faziam, porque já não existiam escravos
cujos corpos pudessem ser usados dessa forma.

122
Carreiras complicadas

Quando Libata era jovem, os curandeiros que tratavam casos comple­


xos invocavam, por vezes, a ajuda dos seus antepassados, executando ri­
tuais de súplica (kulipudya). No entanto, à semelhança de muitos curan­
deiros da sua geração, Libata considerava que a acentuada dependência
dos curandeiros mais jovens em relação aos sonhos é à possessão por es­
píritos constituía um desvio relativamente aos métodos do passado,
quando a reputação de um curandeiro dependia apenas do facto de ter
herdado mitela poderosas, e conhecimentos sobre o seu uso, de um men­
tor mais velho.
A idosa Carmelita Milonge, uma curandeira da aldeia de Nandimba,
concluía, na verdade, que os curandeiros contemporâneos eram, na sua
maioria, feiticeiros. «Onde é que eles aprenderam? Com quem aprende­
ram?», perguntava-nos retoricamente. «Eles limitaram-se a estabelecer-se,
um belo dia, como vakulaula. De onde vem este conhecimento?» O filho
de Kalamatatu, Lipapa, contou-nos certa vez que os curandeiros que her­
davam as suas mitela, como acontecera com ele, não eram feiticeiros, mas
aqueles que inventavam as suas próprias mitela - os «fundadores», como
lhes chamava - eram feiticeiros.
No entanto, aqueles com quem trabalhámos sugeriam, geralmente,
que a maioria dos vakulaula pertencia à categoria dos que eram, na reali­
dade, feiticeiros. Simultaneamente, quase todos asseveravam não serem
eles próprios feiticeiros. Kalamatatu, por exemplo, disse-nos que adquirira
os conhecimentos que usava para curar graças a «circunstâncias excep­
cionais», mas a história que nos contou sobre ter aprendido a curar com
o homem que o tratara quando esteve doente era trivial entre os curan­
deiros.8
Estes adoptavam, por vezes, as descrições eufemísticas que deles fa­
ziam. Muitos vangloriaram-se perante mim, como faziam perante os
clientes, de que «não temiam ninguém».9 Com a mesma frequência,
porém, os curandeiros esquivavam-se a essas insinuações. Recorde-se que,
quando perguntei a Kalamatatu porque é que os curandeiros se transfor­

8 Em contraste, Tracy Luedke (comunicação pessoal, Janeiro de 2004) informa que


uns curandeiros da província moçambicana de Tete realçavam a importância das subs­
tâncias mágicas, enquanto outros davam mais importância aos espíritos que os possuíam,
e que cada um destes grupos acusava o outro de feitiçaria.
9 Quando Kalamatatu nos disse que só os «complicados» comiam carne de leão, refe­
ria-se aos feiticeiros. Enquanto as pessoas vulgares hesitariam em comer a carne de um
animal que tivesse comido gente, os feiticeiros, obviamente, não teriam qualquer aversão
ao canibalismo. O tom dissimulado de Kalamatatu deixou, no entanto, em aberto a pos­
sibilidade de ele mesmo ter provado came de leão - e de ser um homem «complicado».

123
K u piliku la

mavam em leões e devoravam os vizinhos e parentes, ele me respondeu


inicialmente dizendo: «Como hei-de saber?! Nunca fiz coisas dessas!»
Só depois sugeriu a hipótese de os feiticeiros serem motivados pela inveja.
Os curandeiros raramente falavam de forma aberta ou detalhada sobre
«o que sabiam».10 Verónica Romão, por exemplo, dissociava-se dos co­
nhecimentos que lhe permitiam curar: «Os que me possuem também
eram feiticeiros, por isso são capazes de reconhecer outros feiticeiros. Só
assim consigo saber qual é o problema e como tratá-lo. Não posso ver
essas coisas por mim própria.» A atitude de Verónica era comum entre
os curandeiros. Pelo contrário, a demonstração feita por Shindambwanda
de como os feiticeiros constroem os leões fora, na verdade, uma actuação
rara - que, recorde-se, levara Marcos a acusá-lo de feitiçaria.
A abordagem «científica» de Marcos em relação à feitiçaria, levava-o a
perguntar constantemente se os curandeiros eram, de facto, feiticeiros.
Ele suspeitava que o eram. Pensava, pelo menos, que se fosse verdade
que um curandeiro só podia curar os padecimentos de que sofrera pes­
soalmente, então só aqueles que se tinham ferido a si próprios ao prati­
carem feitiçaria podiam curar os feiticeiros feridos. •
Um dia, quando conversávamos com Mbegweka, Marcos perguntou-
-lhe como conseguia ver os feiticeiros cujos actos destrutivos se esforçava
por desfazer (kupilikula). Ela explicou-lhe que os espíritos que a possuíam
lhe diziam quem eram os feiticeiros atacantes e como vencer as suas mi-
tela.
«Então», perguntou Marcos, sem cerimónia, «tu és uma feiticeira?»
Mbegweka hesitou um momento. Depois respondeu, cautelosamente,
«Se o meu pai [referindo-se ao irmão de seu pai - o seu mentor - Libata]
me deixou com uwavi, então sou.» Fez uma pausa antes de acrescentar:
«Mas não sou. Trabalho com a ajuda dos espíritos. Trabalho contra a fei­
tiçaria.»
Marcos prosseguiu. «Então, há curandeiros que são feiticeiros e há cu­
randeiros que não são feiticeiros?»
«Exactamente», respondeu Mbegweka, apressando-se a acrescentar:
«Mas, de um modo geral, todos os curandeiros são feiticeiros.»
«Mas tu não és?», perguntei.
«Não, não sou», afirmou ela, desta vez com mais confiança.
«E o teu tio Libata não é?», perguntou Marcos.
«Libata? Bem...», Mbegweka sorriu.
«Ele disse-nos que não era», acrescentou Marcos, rapidamente.

10 Evans-Pritchard (1976 [1937], 31) observou o mesmo entre os azandes.

124
Carreiras com plicadas

Quando conheci Verónica Romão, com entei com Tissa que ela era muito jovem.
«E possível que uma mulher tão nova saiba tanto sobre as m itela com o alguns
destes hom ens e mulheres mais velhos com quem trabalhámos?», perguntei. Ele
soltou uma curta gargalhada, perante a m inha ingenuidade. «Podes ter a certeza
de que ela sabe alguma coisa!», garantiu ele. «Uma m ulher tão nova a trabalhar
com o nkulaulal\... Podes ter a certeza de que sabe muito!»

«Libata!» Mbegweka estava escandalizada. «Libata disse-vos isso?!»


«Não é verdade?»,'perguntámos Marcos e eu em uníssono.
«Bem, não sei se é ou não verdade», respondeu Mbegweka. Após uma
curta pausa, acrescentou, com segurança: «Mas Libata é um feiticeiro.»
«O problema é este», disse-me Marcos, visivelmente frustrado, pouco '
depois de sairmos do recinto de Mbegweka. «Todos os curandeiros com
quem falamos nos dizem que os curandeiros são feiticeiros - é a norma,
segundo afirmam. Mas quando lhes perguntamos se são feiticeiros, dizem
sempre: ‘Nangu?Menef [Eu? Não!]»

125
K u piliku la

A observação de Marcos tinha razão de ser. Nenhum curandeiro com


quem falámos admitiu ser feiticeiro, mas todos afirmavam que os outros
curandeiros - às vezes todos os outros - eram feiticeiros.11 Ouvimos isto
tantas vezes que Marcos começou a gracejar com os nossos entrevistados.
«Nangu?Mene!», dizia ele, erguendo as mãos no ar, quando eles nos con­
tavam como se tinham tomado curandeiros sem serem feiticeiros. Quase
todos os feiticeiros, sem excepção, sorriam com um ar peremptório que
punha fim ao interrogatório de Marcos.
As pessoas comuns encaravam os curandeiros com ambivalência.112Li-
bata, por exemplo, tinha uma certa reputação na cidade de Mueda. Era
idoso e gostava de lipa (aguardente de caju). Devido ao seu mau humor,
as pessoas por vezes riam à sua custa. Mesmo assim, tinham o cuidado
de não ofender o velhote. O cunhado de Marcos, Joseph Mery, uma vez
advertiu-me: «Aquele tipo é capaz de fazer coisas horríveis.» Quando lhe
pedi para me contar pormenores dessas coisas horríveis, Mery riu-se ner­
vosamente e respondeu: <Ahh, cunhado, nem queiras saber!»
Ao contrário do tio, Mbegweka era uma mulher graciosa e simpática,
mas igualmente olhada com profunda ambivalência. À medida que se
aproximava dos espíritos que a possuíam, era afastada pelos seus familia­
res vivos.
«O meu nome de nhdaula, ‘Mbegweka5, significa ‘estou sozinha5; não
tenho mãe, nem pai, não tenho ninguém.»
Explicou-nos mais pormenorizadamente os problemas que enfrentara
quando se tom ou curandeira: «A minha família quis matar-me... Pensa­
ram que eu era feiticeira. Quando o meu irmão morreu num acidente
de automóvel, culparam-me disso.»
Os habitantes do planalto partiam normalmente do princípio de que
os curandeiros a quem reconiam em busca de conhecimentos especializa­
dos e de uma intervenção benéfica no reino invisível eram feiticeiros. «De
outro modo, como reconheceriam os vavfí», perguntavam muitas vezes,
retoricamente.13 «Como conheceriam as mitela que os vavi utilizam?!»

11 Karen Brown (1989) descreve uma dinâmica semelhante de suspeitas e acusações


mútuas entre os sacerdotes e sacerdotisas do vodu haitiano.
12 O mesmo acontece, alegadamente, noutras partes de África e fora dela; ver, por
exemplo, Kluckhohn (1944, 61); M. Brown (1986, 63); Atkinson (1989, 98); Lambelc
(1993); Pigg (1996, 169); Stephen (1996,86); Kapferer (1997, 6); Voeks (1997,105); Ellis
(1999a, 233); Willis e Chisanga (1999,140); Ashfort (2000,109); Rasmussen (2001b, 32).
Cf. Chavunduka (1978, 97). Os hofriyatis do Sudão descreveram os espíritos zayran a
Boddy em termos similarmente ambivalentes (1989, 342-343). Wafer (1991,14) afirma
que os praticantes de candomblé encaram os espíritos acus com igual ambivalência.
13 Ver também Lienhardt (1951,312); Mair (1969,24); Whyte (1997,60-61).

126
Carreiras complicadas

A opinião que Eusébio Matias Mandumbwe (um primo de Marcos)


expressou uma vez em conversa comigo, reflecte o modo de ver de mui­
tos conterrâneos seus. Eusébio referira-se a um importante curandeiro
do planalto, em português, como «o rei de todos os feiticeiros».
«Ele é um nkulaula», disse eu. «Não há diferença entre um nkulaula e
um mwavfí»
«Sim e não», respondeu Eusébio, «sim e não.»14
Mesmo assim, quando as pessoas pensavam estar a ser atacadas por
feiticeiros, procuravam a ajuda dos curandeiros. Não obstante descon­
fiarem que estes especialistas já tinham provado carne humana - apesar
de suspeitarem de que podiam ser assassinos experientes -, as pessoas co­
muns achavam que não tinham outra alternativa senão contratar curan­
deiros que os apoiassem nas lutas de vida e de morte que configuravam
o seu mundo.
«A uwavi é uma guerra», disse-me Eusébio. «Só um guerreiro pode
lidar com as coisas da guerra. Só um soldado pode lutar contra outros
soldados.»15
Para se reconfortarem no meio dessas lutas, que acentuavam a sua vul­
nerabilidade, os habitantes do planalto diziam muitas vezes a si próprios
que os curandeiros a quem recorriam tinham abandonado a sua predi­
lecção por carne humana: eram feiticeiros «reformados» ou «aposenta­
dos», que utilizavam os seus conhecimentos para combater os antigos
colegas (ver também Dias e Dias 1970: 360).16No entanto, esta era uma
ideia em que só parcialmente acreditavam e da qual apenas obtinham
uma ténue sensação de segurança.

1,1 A ideia de que os curandeiros são feiticeiros (ou bruxos) parece ser comum em
África. Ver, por exemplo, Evans-Pritchard (1976 [1937], 79); Gray (1963,144); La Fontaine
(1963, 195); LeVme (1963, 236); Mair (1969, 77); Mombeshora (1994, 83). Geschiere
(1997, 51) informa que os makas dos Camarões dizem que o nkong (curandeiro) é «um
bruxo que bateu todos os recordes». Ver também Shaw (1997, 867-868, 872 n. 17).
15 Whitehead (2002: 224) tem a mesma opinião sobre os xamãs dos patamuna da
América do Sul.
16 A crença de que os curandeiros são feiticeiros curados ou reformados parece estar
muito difundida. Taussig (1987), por exemplo, analisa os xamãs das montanhas da Amé­
rica do Sul sob esta luz. Stephen (1996) sugere que, em algumas sociedades da Melanésia,
se considera que os próprios feiticeiros são os maiores peritos da comunidade em matéria
de rituais e, ao serem capazes de mediar o poder sagrado, actuam sob muitos aspectos
com o xamãs. Ver também Nadei (1970, 287); Nitibaskara (1993, 126); Ashfort (2001b,
214); Rasmussen (2001a, 150).

127
Capítulo 8

Feitiçaria de construção
*

«Estou a ver-te! Sei quem tu és! Estás a matar-nos, à gente desta po­
voação! Estás a matar-nos com a tua uwavü»
O ancião Vicente Anawena estava sentado no chão, com os joelhos do­
brados junto ao queixo. A sua voz era tão serena, a sua postura de tal modo
contida, que achei difícil imaginá-lo de pé, à noite, junto da shitala (a barraca
onde os homens se reuniam, no centro da povoação) a repreender os fei­
ticeiros, tal como nos estava a contar que fazia antes da guerra da indepen­
dência, quando os habitantes de Mueda viviam em povoações dispersas.
Contudo, Anawena fora chefe de povoação (m ng'ok mwenehtjd) e com­
petia-lhe, tal como, segundo nos disse, a todos os chefes, policiar tanto o
reino visível como o reino invisível que constituíam a sua povoação.
«Não queremos aqui a tua uwavi!», continuou o ancião. «Se não pa­
rares, expulsamos-te desta povoação! Se alguém morrer por causa da tua
uwavi, eu mato-te! Estou a ver-te! Sei quem tu és!»
Anawena baixou a cabeça e contextualizou a sua reconstituição ora­
tória, dizendo: «Quando a uwavi atingia limites intoleráveis, era isto que
nós fazíamos.»
Nas povoações a que Anawena se referia, o encontro entre os habi­
tantes e os especialistas a quem recorriam quando sofriam de algum pa­
decimento, estava, como vimos, saturado de ambivalência e suspeitas
mútuas. A contínua ocorrência de doenças e desgraças, bem como a pre­
sença constante da adivinhação e do curandeirismo, estavam ligadas à
infindável propagação de boatos e insinuações, acusações e desmentidos.
Neste ambiente, as pessoas às vezes procuravam distanciar-se daqueles
com quem tinham más relações. Gmpos de variadas dimensões abando­
navam, por vezes, a povoação, passando a residir a alguma distância, fora
do alcance dos feitiços.1Essas cisões, porém, tinham consequências po-

1Mitchell (1956,136-137) feia deste fenómeno na Niassalândia colonial (actual Malawi).

129
K u piliku la

Q uando estava na aldeia de Matambalale, visitava Vicente Anawena com fre­


quência. Ele tratava-me com o se eu fosse da família e eu fazia o m elhor que podia
para satisfazer as suas necessidades, tal com o se esperava que um jovem com sa­
lário, com o eu, fizesse. Ele tinha, todavia, o cuidado de não permitir que os pre­
sentes que eu lhe trazia - calças novas, uma camisa, ou um par de sapatos - de­
finissem a nossa relação. Quando nos sentávamos a conversar, pedia-me sempre
notícias da m inha família. Q uando a vista com eçou a faltar-lhe e ele já não con­
seguia ver as fotografias dos meus familiares que trazia com igo, eu descrevia-lhas
por palavras, contando histórias que traziam um sorriso ao seu rosto afável.

tencialmente desastrosas para a matrilinhagem, tomando-a - pelo menos


na época pré-colonial - vulnerável a vizinhos hostis.
Com tanta coisa em jogo, os chefes de povoação não se podiam dar
ao luxo de ficar preguiçosamente sentados enquanto outros faziam guerra
no reino invisível da feitiçaria. Para evitar as crises, os anciãos intervinham
pessoalmente nesse reino, de várias maneiras. Embora contassem fre-

130
Feitiçaria de construção

quentemente com o auxílio dos vamüela de confiança que viviam nas


suas povoações, os chefes de povoação eram os máximos responsáveis
pela defesa destas {kushililidya ikaja), minando os caminhos de acesso
com dispositivos antifeitiço e espalhando imole pela povoação, a fim de
a tomar invisível aos olhos de eventuais atacantes, como foi mencionado
no capítulo 5.
As intervenções antifeitiçaria por parte dos chefes de povoação não se
limitavam, porém, às medidas preventivas. Em momentos de crise - ge­
ralmente marcados pela ocorrência de doenças ou mortes na povoação
- o chefe actuava energicamente. Como Anawena nos disse: «O nangolo
mwena kaja saía para a shitala às primeiras horas da manhã, pouco antes
de o Sol nascer e, numa postura firme, gritava com quantas forças tinha:
‘Estou a ver-te! Sei quem tu és!’» «Aconselhava» os feiticeiros que afligiam
o seu povo a desistirem e avisava-os das terríveis consequências que te­
riam de enfrentar se continuassem com os seus actos destrutivos.2
A aptidão dos antigos chefes de povoação para dominar os feiticeiros
(e os actos destrutivos por estes perpetrados) com o seu olhar era indisso­
ciável das suas capacidades para - tal como os feiticeiros e os curandeiros
- transcenderem o reino visível e entrarem no invisível. Supunha-se que
os chefes de povoação eram capazes de ir ainda mais longe do que os cu­
randeiros vulgares - além, ou fora, do mundo que a maioria das pessoas
conhecia e certamente mais longe do que os simples feiticeiros.
Na verdade, as pessoas supunham que os chefes de povoação eram
feiticeiros.3Tal como no respeitante aos curandeiros, raciocinavam assim:
«De outro modo como poderiam os vanang’olo venekaja ‘ver’ os vavil»
Quando Tissa perguntou a Anawena como é que um chefe de povoa­
ção conseguia vigiar os movimentos e as actividades dos feiticeiros na

2 Práticas semelhantes são descritas porM . Wilson (1970 [1951], 278); La Fontaine (1963:
198); LeVine (1963,239); Mair (1969, 58); Goody (1970,211-212). Evans-Pritchard (1976
[1937], 3940) descreve como as famílias das vítimas azandes faziam, elas próprias, orações
públicas em que expressavam a sua convicção de terem sido atacadas por bruxos.
3 Ao contrário das figuras de autoridade dos benges descritas por Gottlieb (1989), que
consolidavam a legitimidade popular mostrando-se dispostas a sacrificar os do seu próprio
sangue pelos interesses do grupo social no seu todo, as pessoas de Mueda não esperavam
que os chefes de povoação praticassem essas formas «destrutivas» de feitiçaria. Nesta pers­
pectiva, as figuras de autoridade de Mueda assemelhavam-se aos bm andanti - praticantes
de paganismo no Sul da Europa julgados pela Inquisição. Segundo nos diz Ginzburg, pen­
sava-se, de um m odo geral, que estes benandanli eram capazes de praticar formas destrutivas
de bruxaria (1992-[1966], 78) mas, como bmandanti, esperava-se que combatessem os bruxos
e não que fizessem feitiços. Cf. Tumer (1996 [1957], 112), que caracteriza os suspeitos de
feitiçaria ndembu como não sendo idóneos para ocupar cargos de autoridade.

131
K u piliku la

sua povoação, Anawena (que fora ele próprio chefe) respondeu (na ter­
ceira pessoa): «Ele era um tnwavi. Tinha de o ser, para saber quem eram
os outros - para os... controlar. Todos os vanangolo vem kaja eram vavi.
Deste modo, garantia que a uwavi praticada na povoação era uwavi wa
ishima [feitiço de respeito], em que se respeitavam os limites.»
O termo que Anawena utilizou nesse dia para classificar a intervenção
do chefe de povoação no reino da feitiçaria foi revelador. Chamou a esse
acto uwavi wa kudenga - literalmente, «feitiço de construção» (também
traduzível como «feitiço de edificação»).4
O termo «feitiço de construção» era muito usado entre as pessoas com
quem trabalhámos, mas também se utilizavam outros termos para des­
crever formas de feitiçaria socialmente benéficas. O curandeiro Libata
chamava à prática de feitiçaria para proteger os interesses da povoação
uwavi ndenga kaja, «feitiço de construção da povoação». Outros usavam
as palavras shimaconde para «vigilância», «controlo», «aviso», «recomen­
dação», «chamar a atenção», «criticar» e «garantir o respeito» como ad-
jectivos para descrever a feitiçaria praticada por figuras de autoridade res­
ponsáveis. Independentemente do termo utilizado, a ideia era a mesma:
através da sua própria prática de feitiçaria, o chefe de povoação bem su­
cedido delimitava e definia o reino do poder invisível, suprimindo nesse
reino os actos de outras pessoas que pudessem ser classificados como
«feios», «sujos» ou «maus» {uwavi wa kunyata), como «perigosos» {uwavi
wa kujoa) ou como «ruinosos» {uwavi wa Iwanongo).
Os leitores familiarizados com a literatura sobre a bruxaria e a feitiçaria
africanas poderão admirar-se com o grande número de adjectivos utili­
zados em Mueda para caracterizar a uwavi, mas talvez reconheçam nesta
prática um tema familiar. Do mesmo modo que consideravam que as
mitela eram fontes de poder neutras, os habitantes do planalto também
consideravam moralmente neutro o poder originado por essas substân­
cias. 5 Segundo as pessoas com quem trabalhámos, os feiticeiros - à se-

4 Geschiere (1997,13) regista o uso do termo «construtivo» para descrever alguns actos
de feitiçaria nos Camarões. Noutros lugares, Fisiy e Geschiere (1990, Í42) falam de «fei­
tiçaria de autoridade» praticada por anciãos no contexto dos conselhos de aldeia.
5 A ambivalência dos habitantes do planalto de Mueda face à feitiçaria é semelhante
à ambivalência dos safwas, descrita por Harwood, em relação a uma capacidade oculta
chamada itonga. Segundo o relato de Harwood, os safwas consideravam a itonga simples­
mente como «o poder de compreender e de fazer ‘coisas às escondidas’», com o «fazer
coisas aos outros sem ser visto», ou com o «o poder de agir, sem que os outros percebam»
(1970, 57). Tal poder podia ser usado para fins morais ou imorais. U m informador des­
creveu as pessoas com itonga dizendo: «Elas são como chaves, que tanto podem abrir
como fechar portas» (59). Com base na sua percepção da itonga dos safwas, Harwood

132
F atigaria de construção

melhança das substâncias mágicas que utilizavam - tanto podiam prote­


ger como fazer mal, curar como matar, alimentar como devorar, construir
como destruir.
Em qualquer caso, o chefe de povoação respeitável não só utilizava o
seu ponto de observação privilegiado, no reino invisível, para discernir a
lógica de funcionamento do mundo, como também elaborava a sua pró­
pria visão crítica da (des)ordem do mundo, materializando a sua visão
transcendente deste último ao erguer-se, sozinho, à noite, junto da bar­
raca onde os homens se reuniam, verbalizando-a para que todos ouvis­
sem - (re)ordenando o mundo de acordo com as suas palavras. O poder
tremendo que exercia através da prática da uwavi wa kudenga era, na ter­
minologia de Arens e Karp, «um artefacto da faculdade criadora da [sua]
imaginação moral» (1989, xxv). Como tal, constituía uma afirmação não
só da sua «criatividade semântica» superior (Parkin 1982, xlvi), mas tam­
bém da força material da sua imaginação criadora. O chefe de povoação
bem sucedido (re)construía o mundo tal como o imaginava, negando
e/ou derrubando (kupilikula) aqueles que, dentro dos seus domínios, ti­
nham agido com intenção de o destruir.
Tal como os curandeiros, os chefes de povoação negavam sempre ser
feiticeiros, excluindo-se de uma associação entre autoridade e feitiçaria que
geralmente consideravam válida em relação a outros chefes de povoação.
Muitos afirmavam, por exemplo, que trabalhavam com a ajuda de espe­
cialistas em substâncias mágicas que também eram feiticeiros. As pessoas,
porém, raramente (ou nunca) davam crédito a tais afirmações. Encaravam
os chefes de povoação com profunda ambivalência, tal como faziam com
os curandeiros e outros especialistas em substâncias mágicas.6
Os vabumu (conselheiros da matrilinhagem) também eram considera­
dos feiticeiros poderosos. Embora não tivessem ao seu dispor nenhum
dos recursos materiais que os chefes de povoação possuíam, eram tratados
ainda com maior respeito e medo, pois todos acreditavam que eles não
tinham pares no reino invisível. O ancião Francisco Ming5ondo Ntum-
bati recordou, em conversa connosco, a forma como ele e os rapazes da

questionou a asserção de Evans-Pritchard de que os azandes sempre consideraram o


mangti (feitiço) como sendo mau, citando exemplos retirados da obra Witchcraft, Oracles
and M agic among the A za n d t da crença de que os feiticeiros que detectavam os bruxedos
também usavam mangu, mas para «bons» fins (Harwood 1970, 70-71). A concepção de
que a bruxaria ou a feitiçaria são intrinsecamente neutras está muito difundida; ver, por
exemplo, Parsons (1970 [1927]: 235); Kluckhohn (1944,6); Krige (1970 [1947], 267); Gil­
bert (1989, 60); Joralemon e Sharon (1993,167,175); Danfulani (1999,169).
6 Ver também Goheen (1996,145).

133
K u piliku la

sua idade se comportavam na presença do humu da sua matrilinhagem


(vaivava), Ntumbati: «A sua entrada na shitala, mesmo durante o dia, cau­
sava silêncio. Sentávamo-nos no chão, quando ele lá estava.» Ntumbati
- como muitos vahumu e alguns chefes de povoação - também era cu­
randeiro. Mais ainda, era igualmente chefe da sua povoação - caso raro
entre os vahumu. Os seus vários títulos reforçavam, sem dúvida, a sua
posição social, mas o respeito e o medo que M ingbndo e os outros ra­
pazes da sua idade demonstravam perante ele tinha origens mais profun­
das. Ming5ondo explicou-nos esse facto afirmando, simplesmente: «Os
vahumu são vem.»
Ntumbati, como todos os vahumu, passara pelos indispensáveis rituais
de investidura, supervisionados por outros vahumu. O humu Windu des­
creveu-nos certa vez estas cerimónias utilizando as palavras kunyata
(«sujo», «feio» e/ou «mau») e kujoa («perigoso»), as mesmas palavras que
se costumavam associar aos actos maléficos e destrutivos dos feiticeiros
comuns. Não pretendia com isso sugerir que os vahumu agiam com mal­
dade no reino invisível; pelo contrário, afirmava que, no momento da
investidura, os vahumu acediam às mesmas formas de poder a que todos
os feiticeiros tinham acesso. Depois de se tomarem vahumu, estes homens
aprendiam rituais secretos relativos às diversas utilizações das mais po­
tentes espécies de mitelas conhecidas e adquiriam a capacidade de agir de­
cisivamente no reino invisível.
Mais notável ainda era o facto de, entre as substâncias que bs vahumu
ingeriam durante a investidura, figurar a lukalongo - a carne da garganta
de um leão morto. O humu Mandia explicou-nos que, depois de a comer,
um humu podia falar com a voz do leão, o que lhe permitia inspirar res­
peito e deferência aos membros da sua própria matrilinhagem, e até das
outras matrilinhagens.7 Tão próxima era a associação do humu ao leão
que, usando as palavras de Mandia, os leões o «reconheceriam» no mato
e até lhe cederiam a passagem. Depois de ingerir a lukalongo, um humu
ficava proibido de caçar leões ou de comer a sua carne porque, como
Mandia asseverava, «o humu não tem desavenças com o leão».8

7 Stephen (1996, 92) informa que o poder dos feiticeiros mekeos (Melanésia) era por
vezes atribuído ao facto de terem ingerido a carne de uma serpente venenosa.
8 D e Heusch (1985,32-33) diz que os chefes de linhagem tetela (Zaire, actual República
Democrática do Congo) - que se vestiam com o leopardos nas danças rituais - se absti­
nham de comer carne de leopardo porque «leopardo não come leopardo». As figuras de
autoridade de toda a Áírica têm sido identificadas com os leões e os leopardos. Por exem­
plo, Tumer (1996 [1957], 11) conta que os chefes ndembus se sentavam sobre peles de
leopardo e de leão. De Heusch (1985, 104) relata que os reis swazis faziam o papel de

134
Feitiçaria de construção

Como vimos, os feiticeiros mais mortíferos da região de Mueda esta­


vam estreitamente associados aos leões, quer construindo essas feras, quer
transformando-se nelas. Além disso, como Kalamatatu sugerira, aqueles
que consumiam carne de leão eram indivíduos invulgares e corajosos -
características frequentemente invocadas, de forma eufemística, para re­
ferir os feiticeiros. No entanto, a associação do humu ao leão era diferente
da do feiticeiro comum. No reino visível, o humu estava impedido de be­
neficiar materialmente do seu estatuto. Na verdade, comprometia-se a
levar uma vida de serviço, de relativa pobreza. Também no reino invisí­
vel, o humu devia agir nos interesses da matrilinhagem e não nos seus
próprios interesses. Ao ingerir carne de leão, o humu, cujo corpo simbo­
lizava a própria matrilinhagem, engolia esse poder perigoso e metaboli-
zava-o para o bem de toda a matrilinhagem.*9
Mesmo assim, a associação do humu ao leão revela a profunda ambiva­
lência com que o poder era encarado no planalto de Mueda. Significativa­
mente, o domínio do humu sobre o violento poder da fera que continha
dentro de si era frágil: quando morria, o seu corpo exigia um tratamento
complicado, feito por outros vahumu, que lhe cortavam o cabelo e as unhas
e levavam estes despojos para as profundezas do mato, para que os perigo­
sos predadores que eles geravam não se virassem contra a própria matrili­
nhagem do humu.10Muito embora os vahumu, tal como os chefes de po­
voação, fossem considerados «feiticeiros de construção» - que vigiavam o
reino invisível e nele subjugavam os apetites dos feiticeiros predadores -,
também eles eram, muito simplesmente, temidos comofeiticeiros.

«‘monstros’ sagrados» transformando-se em leões no meio do seu povo. Lan (1985,32-


34) descreve as crenças existentes na região de Dande (no Zimbabué) de que os espíritos
dos antepassados reais passavam a residir nos corpos dos leões. Goheen (1996) feia de
chefes nsos, dos Camarões, que se transformavam em leões (e os seus conselheiros em
leopardos) de forma a patrulharem os seus territórios e protegerem os habitantes dos fei­
ticeiros maus. Douglas regista as ideias lele de que um adivinho «se podia transformar
em leopardo, para encontrar outros feiticeiros de noite e despistá-los no seu próprio ter­
reno» (1963,130).
9 Segundo muitos anciãos com quem conversámos, a prática de ingerir lukabngo di-
fimdiu-se ao ponto de abranger muitos chefes de povoação.
10 Cf. a narrativa de Lan: «Algumas pessoas dizem que alguns dias depois de um chefe
zande ser enterrado, um pequeno leão sem juba rasteja para fora do buraco que é deixado
para ele ao lado da sepultura e foge para a floresta. Sempre que perguntei porque é que
isto acontece aos chefes e não aos outros homens, deram-me uma de duas respostas: ou
me disseram que era assim simplesmente porque os chefes são chefes, possuem e gover­
nam a terra enquanto são vivos e o mesmo acontece quando morrem; ou então respon-
deram-me que os chefes tomam certas substâncias mágicas que, quando morrem, os trans­
form am em mhondoro. Só os chefes conhecem essas substâncias. Têm o monopólio do
poder agora e para sempre» (1985,32-34). Ver também Ruel (1970a, 54-55).

135
K u piliku la

***

A uwavi, tal como as pessoas do planalto a concebiam, podia ser prati­


cada para fins socialmente construtivos ou socialmente destrutivos.
A nossa compreensão da feitiçaria nesta região ficaria, no entanto, empo­
brecida se concluíssemos que os habitantes do planalto de Mueda conce­
biam a uwavi wa kudmga (feitiçaria de construção) como «feitiçaria boa» e
a uwavi wa Iwanongo (feitiçaria de ruína) como «feitiçaria má», ou que os
chefes de povoação respeitados e os curandeiros merecedores de confiança
eram «feiticeiros bons» e aqueles contra quem lutavam «feiticeiros maus».11
A ambivalência a respeito da feitiçaria era mais profunda do que essas sim­
ples dicotomias. Como veremos na parte n, as categorias utilizadas no pla­
nalto de Mueda para se falar de feitiçaria foram mudando e multiplicando-
-se ao longo do tempo, à medida que se debatia e contestava a moralidade
de pessoas e actos específicos. Interpretados de uma dada perspectiva, certas
pessoas e certos actos podiam ser considerados construtivos e, vistos de
outra perspectiva, como sendo destrutivos. Mesmo os julgamentos indivi­
duais foram evoluindo ao longo do tempo, saltando de uma perspectiva
para outra ao sabor da mudança dos contextos sociais. Pode afirmar-se,
simplesmente, que as fronteiras que separam as diversas categorias de fei­
tiçaria nesta região se tomaram muitas vezes confusas, quando não imper­
ceptíveis. 12 Ao contrário do mundo de Evans-Pritchard, com categorias
distintas de «magia negra» e «magia branca», o mundo da feitiçaria de
Mueda foi preenchido com diversas tonalidades de cinzento, cujas texturas
e contrastes resultam - como Balchtin concluiria - da justaposição das
vozes, perspectivas e opiniões de inúmeros habitantes.
A ambivalência manifestada por estes face ao poder, expressa através
do discurso da feitiçaria, foi acentuada pelo facto de, em épocas de vul­
nerabilidade e de crise, as pessoas recorrerem precisamente àqueles de
quem mais desconfiavam serem feiticeiros. Em comparação com os azan-
des, descritos por Evans-Pritchard, os habitantes do planalto de Mueda
têm dependido muito mais de especialistas e figuras de autoridade para
se protegerem das forças invisíveis da feitiçaria. Enquanto as pessoas com
quem Evans-Pritchard trabalhava recorriam aos seus próprios oráculos
(Evans-Pritchard 1976 [1937], 41),13 os habitantes do planalto consulta­

11 Cf. Harwood (1970), que escreve sobre a distinção que os safwas estabelecem entre
boa itonga e má itonga.
12 Geschiere (1997,57-58) defende esta posição eloquentemente.
13N o relato de Evans-Pritchard, os azandes tinham as suas próprias tábuas de esfregar
e consultavam-nas sozinhos; os oráculos de térmitas também eram consultados sozinhos;
os oráculos fonge eram consultados na presença de outra pessoa, mas esta não transmitia
o veredicto do oráculo.

136
Feitiçaria de construção

vam adivinhos. Enquanto os azandes eram informados pelos seus orá­


culos sobre quem os atormentava e confirmavam através deles se a sua
magia de vingança atingia o alvo, as pessoas de Mueda tinham, normal-
mente, de confiar que os curandeiros haviam conseguido virar o feitiço
que lhes fora dirigido contra o agressor (kupilikula) e que as figuras de au­
toridade que policiavam o reino invisível agiam no seu interesse.14 Os
feitiços têm rodopiado em redor dos habitantes da região, indo e vindo
ao sabor dos caprichos e apetites de feiticeiros que há muito ficam por
identificar e raramente têm sido mortos.15
Jorge Dias e Margot Dias chamaram a atenção, nos seus trabalhos, para
as fortes ligações entre feitiçaria, medo e respeito pela autoridade em
Mueda: «O respeito pelos vanangolo é eficiente porque todos crêem que
eles possuem ntela mais poderosa e recurso a feitiços [...] E é neste jogo
de feitiços e contrafeitiços que [...] se ocultava uma das importantes fon­
tes de controlo social maconde, antes da organização introduzida pela
administração portuguesa.» (1970,372)16Dias e Dias sugeriram ainda que
a «ordem» e o «equilíbrio» produzidos pelo medo funcionavam como
um «limite eficaz para a [...] ânsia de satisfazer desejos e apetites» que, se
não fosse controlada, «conduziria a um possível caos» (372).17
A conclusão a que Dias e Dias chegaram de que «o sentimento domi­
nante entre os macondes em geral é mais o medo do que a piedade ou
o amor» (1970, 352) é precipitada, pois uma tendência emocional não
exclui as outras. A sua observação não deve ser, no entanto, posta de
parte. Há muito que o medo faz parte da urdidura da vida em Mueda.
No perigoso ambiente do Norte de Moçambique, na época pré-colonial,
como vimos, os habitantes da região do planalto viviam sob a constante
ameaça de um ataque de vizinhos hostis e da possibilidade de serem cap­
turados e escravizados. No período colonial, em que Dias e Dias traba­
lharam entre eles, viviam sob o interminável espectro da violência e coer­
ção estatais, como veremos na parte II. Como analisaremos também, a
guerra da independência de Moçambique, a campanha de «modemiza-

14 Ver também Whyte (1997, 178, 197).


15Dias e Dias (1970,345), de facto, relatam casos em que algumas pessoas eram sujeitas
a provas para fazerem confissões; porém, nos casos que apresentam, pensava-se que a-
feitiçaria tinha produzido efeitos que ameaçavam uma povoação inteira.
16 Kluckhohn (1944, 113) adianta um argumento semelhante em relação à bruxaria
entre os navajos.
17 Chowning (1987,170) oferece uma descrição parecida dos efeitos da feitiçaria entre
os koves da Melanésia. Ver também Mombeshora (1994,177) sobre efeitos semelhantes
produzidos pelo acto de praguejar entre os benas da Tanzânia.

137
K u ptltku la

ção socialista» após a independência e a guerra civil moçambicana trou­


xeram, sucessivamente, novos riscos e perigos aos habitantes do planalto.
Tendo, na sua maioria, conhecido desde há muito o poder no reino
visível sob a forma de forças ameaçadoras e invasivas impostas por outros,
entenderam, de um modo geral, que o poder no reino invisível operava
de forma caprichosa. Na sua experiência, estes reinos visível e invisível
repercutem-se um no outro, moldando-se reciprocamente, de forma dia-
léctica. O poder exercido no reino visível pelas figuras de autoridade tem
sido inseparável do poder atribuído a estas figuras para agirem decisiva­
mente no reino invisível. Mais ainda, como as pessoas de Mueda recor­
riam a especialistas e a figuras de autoridade para os protegerem contra
perigos invisíveis, reforçaram o poder que estas figuras exerciam no reino
visível.
Contudo, do mesmo modo que examinaram atentamente a feitiçaria
em diferentes contextos históricos, os habitantes do planalto sujeitaram
também a um julgamento permanente os próprios poderes - tanto visí­
veis como invisíveis - que configuraram e reconfiguraram o seu mundo,
utilizando aquilo que Mariane Ferme designou por «hermenêutica da
suspeita» (2001, 7). À semelhança de Vicente Anawena e dos vanangolo
vene kaja seus colegas, as pessoas comuns têm vigiado, elas próprias, o
seu mundo, em busca de sinais de um poder perigoso e/ou destrutivo.
Mesmo que, tal como a maioria dos especialistas em substâncias mágicas,
tenham geralmente negado as suas capacidades para o fazerem, as pes­
soas, como iremos ver na parte II, por vezes transcenderam o mundo em
que viviam, uma vezes conseguindo subjugar (kupilikula) forças poten­
cialmente ameaçadoras, e outras (re)construindo o seu mundo - pelo
menos parcialmente - através dos contributos que dão para o discurso
da uwavi.

138
Parte II

A parte li do presente volume descreve a forma como, através do dis­


curso da uwavi, os habitantes do planalto de Mueda têm interpretado as
forças que moldaram o seu mundo ao longo do último século, e como
com elas têm interagido. Mostra também como a própria uwavi foi trans­
formada pelo embate entre essas populações e as instituições, práticas e
ideias de origem estrangeira. Na verdade, quando os poderes exógenos
procuraram refazer esse mundo e eliminar deste as crenças e práticas li­
gadas à feitiçaria, os habitantes da região conceberam tais intervenções
como novasformas de uwavi e, através das suas concepções, reproduziram
e transformaram a uwavi.
Enquanto Robin Horton sugeria, no seu clássico ensaio «African tra-
ditional thought and Western Science» (1970 [1967]), que a crença na bru­
xaria, na feitiçaria, na possessão por espíritos e noutras coisas do género
só era possível em sociedades «fechadas» - onde as visões do mundo al­
ternativas eram inexistentes e se ignoravam as contradições internas e as
deficiências empíricas porque «qualquer desafio aos dogmas estabeleci­
dos» constituía «uma ameaça de caos, [uma ameaça] de abismo cósmico»
(154) - os historiadores têm argumentado, desde então, que os africanos
mantêm, há séculos, relações intra e intercontinentais multifacetadas com
vários Outros, que viam o mundo de modo diferente.1Além disso, os
pòvos de todo o continente elaboraram e mantiveram cosmologias ocul-

1 O próprio Horton (1993, 319) argumentou, posteriormente, que a «dicotomia fe-


chado/aberto estava pronta para ir para a sucata», embora a sua cedência se baseasse so­
bretudo na ideia de que existia um continuum entre estes dois pólos. Ver também Houn-
tondji (1983,156-169).

139
K u p ilih d a

tas no meio de transformações sociais drásticas, provocadas pelos encon­


tros com os seus Outros.2
Os habitantes do planalto de Mueda, como veremos na parte II, vivem
há séculos num vórtice de encontros e transformações culturais, apesar
de os seus etnógrafos da era colonial, Jorge Dias e Margot Dias (ver West
2004a), entre outros, os retratarem como um povo isolado, senhor de
uma tradição intemporal. Na verdade, poderia argumentar-se facilmente
que o povo de Mueda (e outros povos tal como ele colonizados) sofreu
mudanças mais profundas e concentradas, nos últimos anos, do que os
povos que os colonizaram. Em qualquer caso, os habitantes do planalto
estiveram constantemente confrontados com alternativas às suas formas
de pensar e de fazer, algumas das quais lhes foram até impostas.
Longe de serem um povo singular, com um «sistema singular» de cren­
ças e práticas (Comaroff e Comaroff 1991, 249), os macondes e as suas
«tradições» emergiram e cristalizaram-se em interfaces com Outros his­
toricamente construídos, também eles envolvidos em processos simul­
tâneos de formação e reprodução (Comaroff e Comaroff 1991, 212). A
identidade maconde e a «tradição» maconde foram configuradas e re­
configuradas em momentos históricos de interacção e justaposição com
as identidades e as tradições dos Outros - fossem eles macuas, yaos, ou
ngunis, árabes, portugueses, holandeses, cristãos ou muçulmanos, socia­
listas ou democratas.
Marshall Sahlins concluiu que, ao readaptarem a cultura à evolução
da conjuntura histórica, os povos não perdem as suas identidades pró­
prias mas, pelo contrário, tomam-se «mais iguais a si próprios» (1993,
17). Embora a afirmação de Sahlins constitua uma correcção necessária
aos argumentos de que o imperialismo ocidental, tanto colonial como
pós-colonial, destrói as diferenças culturais, ela simplifica excessivamente
a complexa dinâmica global existente entre a homogeneização e a hete-
rogeneização cultural levada a cabo em lugares como o planalto de
Mueda. Nos seus múltiplos e variados encontros históricos com agentes
e instituições exógenos, os habitantes do planalto ficaram, por vezes,

2 Shaw (2002) alega que, na Serra Leoa, as crenças e práticas associadas à bruxaria ti­
veram origem nas perturbações sociais produzidas pelo tráfico de escravos. Rosenthal
(1998) liga a feitiçaria, historicamente, ao tráfico de escravos. Hartwig (1971) associa o
aumento da feitiçaria entre os kerebes da Áfiica Oriental às desigualdades fomentadas
pelo comércio caravaneiro. D e forma semelhante, Gow (1996) coloca a hipótese de que
o xamanismo ligado à ayahuasca só tenha surgido na Amazónia ocidental depois do «con­
tacto», afirmando-se nos interstícios «racializados» que se formaram entre as comunidades
indígenas, os colonizadores europeus e as populações mestiças.

140
Parte I I

mais parecidos com os seus Outros - chegando a adoptar, de facto, várias


identidades de Outros, a fim de se tomarem, a seu ver, menos parecidos
consigo próprios. Noutros casos, aspiraram e/ou conseguiram diferen­
ciar-se de vários Outros, embora perdessem pelo caminho alguma coisa
do sentimento de si mesmos que os distinguia. Enquanto alguns Outros
do povo de Mueda procuraram diferenciar-se deste, outros houve que
procuraram tomá-lo, nalguns aspectos, mais parecido com eles - procu­
rando eles próprios tomar-se, em certos aspectos, mais parecidos com o
povo de Mueda para facilitar esse processo. As estratégias dos vários ha­
bitantes do planalto e dos seus vários Outros umas vezes foram bem su­
cedidas e outras não, produzindo múltiplas alianças novas e divisões in­
ternas. Em consequência, os habitantes do planalto tomaram-se mais
parecidos com alguns dos seus conterrâneos e mais diferentes de outros.
Seria possível complicar ainda mais este quadro, mas esperamos que a
questão tenha ficado clara.3
Durante todo esse tempo, o povo de Mueda e os seus Outros debate­
ram a eficácia da uwavi como modo de interpretarem o mundo e de se
relacionarem com ele. Estes debates introduziram na sociedade local
novas linhas divisórias entre os que vêem o mundo de uma maneira e os
que o vêem de outra. Por outras palavras, à medida que as identidades
dos habitantes do planalto foram proliferando, o mesmo aconteceu com
as perspectivas sobre a uwavi e - diriam alguns - com as formas de uwavi
e as identidades dos que a praticam. Segundo aqueles que afirmam poder
ver o reino invisível, não foram só os habitantes locais e as suas formas
de uwavi em constante evolução que contribuíram para transformar o
mundo local: o mesmo aconteceu com os seus Outros e as suas novas
fôrmas de uwavi.
Com a conquista do planalto pelas tropas portuguesas, por volta de
1917, a governação colonial produziu tensões entre as pessoas comuns e
os anciãos, utilizados pela Companhia do Niassa, uma concessionária, e
depois pela administração portuguesa, como intermediários nativos na
cobrança de impostos e no recrutamento de mão-de-obra para o trabalho
forçado. O domínio colonial também afastava os jovens do planalto dos
chefes das suas povoações, ao impeli-los para a economia assalariada -
muitas vezes do outro lado da fronteira, na colónia britânica do Tanga-
nhica - e ao diminuir, assim, a sua dependência das redes familiares para

3 Vaughan alega, igualmente: «Para muitos povos africanos a fluidez da identidade e


a necessidade de construir novas identidades individuais e colectivas para fins políticos
[foram e] são experiências concretas e imediatas.» (1991,204)

141
K u piliku la

acederem à terra e à riqueza necessária para obterem noiva. No início da


década de 1960, os jovens do planalto aderiram em massa à Frente de
Libertação de Moçambique (Frelimo), então em formação, e apoiaram a
sua guerra de guerrilha (cuja base estava situada no planalto de Mueda),
não só para pôr termo ao domínio colonial, mas também para expurgar
a própria sociedade moçambicana das hierarquias políticas exploradoras.
Após a independência de Moçambique, o partido socialista revolucio­
nário Frelimo tentou substituir todas as formas de autoridade baseadas
no parentesco pelas suas próprias instituições políticas.
Em simultâneo com estas transformações drásticas, os novos poderes
a que os habitantes de Mueda estiveram expostos no século xx procura­
ram levá-los a abandonar as suas crenças na feitiçaria. Os missionários
cristãos começaram por rejeitar a uwavi como mera superstição e, depois,
classificaram-na como «obra do diabo», enquanto tentavam convencer
as pessoas de que só Cristo oferecia «o caminho, a verdade e a luz». Os
socialistas da Frelimo repudiaram as crenças na feitiçaria como «falsa
consciência», afirmando que os moçambicanos só se podiam libertar dos
que se alimentavam do seu sofrimento cultivando uma consciência de
classe revolucionária e aderindo ao socialismo científico. Na interface
histórica com os agentes do colonialismo e do cristianismo, e posterior­
mente com os agentes do nacionalismo moçambicano e do socialismo
revolucionário, a «tradição» maconde foi-se definindo e transformando,
simultaneamente. Além disso, as tradições do planalto proliferaram jun­
tamente com as subjectividades dos seus habitantes, à medida que estes
iam sofrendo os diferentes efeitos da evangelização, da alfabetização, da
formação profissional, do trabalho assalariado, da mobilização política
e da modernização socialista. À medida que a «tradição» maconde se ia
definindo em relação a vários processos de «modernização», tanto as «au­
toridades tradicionais» como os «curandeiros tradicionais» foram relega­
dos para as margens da sociedade do planalto.
No decurso de tudo isto, porém, a uwavi permaneceu familiar para a
maioria das pessoas. O complexo de práticas discursivas e materiais atra­
vés do qual estas vêm interagindo com o reino invisível da uwavi man­
teve no seu seio um esquema cultural distintivo respeitante ao funciona­
mento do poder - esquema esse baseado na experiência passada dos
habitantes locais, mas que dá simultaneamente forma à sua participação
nos acontecimentos e processos históricos em curso e à compreensão
que destes têm. Mesmo que, através do discurso da uwavi., as pessoas te­
nham concebido esta última como uma «tradição» maconde duradoura,
ainda que lamentável, à medida que invocavam este esquema de pensa­

142
Parte I I

mento no contexto dos acontecimentos e processos transformadores em


que participavam, o próprio esquema foi-se transformando, ao mesmo
tempo que era reproduzido.4
As pessoas com quem trabalhámos falavam, elas próprias, da dialéctica
entre a uwavi e a história, embora de formas diferentes. Afirmavam que,
tal como elas, os seus antepassados viviam num mundo moldado pela
existência da uwavi, sugerindo, simultaneamente, que as formas e os efei­
tos da uwavi actual diferem, em muitos aspectos, dos do passado.
A uwavi, asseveravam, tem uma história, que está ligada à das pessoas
que a conheceram. Nalguns aspectos, diziam, ela manteve-se constante
- um aspecto fundamental da existência humana. Contudo, em virtude
de estar profundamente ligada a instituições de autoridade política que
se transformaram drasticamente ao longo do século passado, essas pes­
soas também reconheciam que a própria uwavi sofreu uma mudança
substancial. Nas palavras do humu Mandia: «Os vavi estão sempre a es­
tudar para melhorar as suas técnicas, para aumentar a sua ciência».5 Por
isso, segundo o curandeiro Luís Avalimuka, apesar de os feiticeiros há
muito comunicarem entre si através de grandes distâncias, a forma mais
avançada de comunicação entre os vavi actuais é via rádio. Outros disse­
ram-nos que qualquer feiticeiro que se preze, hoje em dia, só comunica
por telemóvel. Enquanto outrora os feiticeiros cavalgavam hienas e ou­
tros animais, agora pilotam helicópteros e aviões a jacto.
Pelo que dizem as pessoas de Mueda, não só a uwavi sobreviveu à ex­
posição a Outras maneiras de pensar e de fazer, como também as suas
formas proliferaram e floresceram nos interstícios mutáveis entre os ha­
bitantes do planalto e os seus Outros (da região ou não),6o mesmo acon­
tecendo com as categorias de pessoas que a praticam.7A gente de Mueda
contava a história da sua derrota às mãos das tropas portugueses como
uma batalha cujo desfecho foi decidido no reino invisível da uwavi entre
comandantes macondes rivais - alguns dos quais resistiram aos portu­
gueses enquanto outros se lhes aliaram. No período colonial, os habitan­
tes do planalto acusavam os trabalhadores migrantes, que regressavam a

4 Cf. Horton (1993,317); Rasmussen (2001b, 186).


5 Ver também Geschiere (1997,59,166); Ashforth (2000,123).
6 Mayer (1970, 67-68) argumenta que, entre os gusii do Quénia ocidental, o bruxo é
sempre assinalado com o um «deles» e não como um de «nós», embora isso se deva, mui­
tas vezes, ao facto de ter traído os antigos familiares, amigos e/ou aliados - isto é, o bruxo
é um Outro que já foi ele próprio. Ver também Bond e Ciekawy (2001,11).
7 Van Dijk (2001, 112) afirmou que a própria bruxaria oferece um «espaço criativo»
onde são produzidas novas identidades.

143
K u piliku la

casa com riquezas nunca antes vistas, de usarem a feitiçaria para se ali­
mentarem a si próprios, com exclusão dos outros e à custa deles, ao passo
que os retomados suspeitavam que os seus conterrâneos recorriam à fei­
tiçaria para os consumir ou destruir, bem como aos seus bens adquiridos
com tanto trabalho. Os cristãos atraíam as invejas e suspeitas dos não
cristãos e os dois lados acusavam-se mutuamente de feitiçaria. Mais tarde,
os habitantes de Mueda interpretaram as manobras evasivas da luta de
guerrilha na linguagem familiar da uwavi, atribuindo a culpa dos ataques
mortíferos a formas portuguesas de feitiçaria e/ou à colaboração com os
portugueses de feiticeiros malévolos que viviam entre eles. Quando a Fre-
limo os instalou em aldeias comunais, depois da guerra, os habitantes
do planalto entenderam essa iniciativa como uma tentativa de consolidar
o poder de Estado graças à criação de condições para uma vigilância mais
apertada tanto do reino visível como do invisível.
Em última análise, as pessoas ouviram algo familiar nas visões sobre o
funcionamento do mundo expostas por agentes históricos como os mis­
sionários católicos e os revolucionários da Frelimo, cada um dos quais
proclamava que as suas verdades invalidavam as crenças e práticas da
uwavi. Estas reivindicações da verdade eram interpretadas como afirma­
ções da capacidade de transcender o mundo que as pessoas comuns co­
nheciam e, até, o mundo conhecido pelos feiticeiros locais - por outras
palavras, como formas de feitiçaria ainda mais poderosas, isto é, como
manobras transcendentes, transformadoras {kupilikula). Nos lugares onde
os habitantes beneficiavam do poder destas novas figuras de autoridade,
consideravam-nas geralmente como feiticeiros de construção, na tradição
dos anciãos responsáveis. Foi o que aconteceu, crescentemente, com os
missionários católicos, cujas muitas iniciativas enriqueciam e/ou confe­
riam poder aos convertidos, e cuja abordagem cada vez mais liberal da
tradição maconde permitiu que as pessoas aderissem ao cristianismo sem
deixarem de ser macondes. Os líderes da Frelimo também incentivavam,
por vezes, os habitantes do planalto a vê-los como poderosos feiticeiros,
ao falarem - ou mesmo consultarem - os especialistas de substâncias má­
gicas locais, durante a guerra da independência. Enquanto as pessoas sen­
tiram que o poder da Frelimo era um meio para se libertarem do domí­
nio português, consideraram que os seus líderes eram feiticeiros de
construção. No entanto, quando a campanha de modernização socialista
lançada pela Frelimo foi travada pela guerra civil moçambicana que se
seguiu à independência, a maioria entendeu que as autoridades da Fre­
limo exerciam cada vez mais o poder em seu único e exclusivo proveito,
«comendo tudo» e, como muitos desconfiavam, «todos». Assim, en-

144
Parte I I

quanto perscmtavam o poder, no seu mundo em mudança, através do


género discursivo da uwavi, os próprios habitantes de Mueda conse­
guiam, às vezes, inverter, anular ou transformar (kupilikula) a sua dinâ­
mica.

145
1

*
Capítulo 9

Conquistadores imaginados
«É ele», afirmou Marcos, com segurança.
«Como é que sabes?», perguntei, surpreendido. «Disseste-me que não
o conhecias pessoalmente.»
Marcos ignorou a minha pergunta. De olhos fitos na nossa frente, li­
mitou-se a repetir: «É ele.»
Ao aproximarmo-nos, brotou do peito de Marcos uma risadinha di­
vertida. Olhei-o, procurando discernir a causa do seu divertimento, mas
percebi logo que o seu riso não pretendia incluir-me ou partilhar qual­
quer piada comigo. Marcos parecia estar suspenso noutro tempo ou
lugar, absorto no objecto do seu riso - o objecto do seu olhar extático.
Quando me dera a conhecer Mueda e os seus habitantes, nos primei­
ros meses do meu primeiro trabalho de investigação no planalto, em
1994, Marcos sugerira que centrássemos a nossa atenção em questões
históricas sobre as quais pudéssemos conversar sem ferir as susceptibili­
dades da política contemporânea. Depressa descobri que os anciãos gos­
tavam muito de falar connosco sobre acontecimentos como a conquista
do planalto pelos portugueses. Vários deles brindaram-nos com animados
relatos da resistência heróica que os seus antepassados tinham oferecido.
Dos vanang’olo (anciãos) que combateram os portugueses, destacava-se
o lendário Malapende, e muitas dás pessoas com quem falámos infor­
maram-nos que, se quiséssemos realmente conhecer a sua história, de­
víamos ir à aldeia de Litembo e falar com Lyulagwe, um sobrinho do
grande chefe militar. Marcos nunca encontrara Lyulagwe nem ouvira falar
dele. Além disso, embora tivesse parentes no aglomerado de aldeias si­
tuado a leste de Litembo, e também no aglomerado situado a oeste, Mar­
cos não conhecia ninguém que vivesse ou fosse natural de Litembo. De­
morámos, por isso, a localizar o sobrinho de Malapende, até percebermos
claramente que este seu herdeiro era considerado por muitos como o
portador da sua história.

147
K u piliku la

Numa clara manha de Julho, fôramos na nossa «tartaruga» até Li-


tembo. Quando íamos a passar entre as fieiras de casas, em direcção ao
centro da aldeia, onde podíamos apresentar-nos às respectivas autoridades
e pedir-lhes que nos dissessem como encontrar Lyulagwe, Marcos avistou
um homem idoso parado em frente de uma casa à beira da estrada.
Apontou para o ancião, cuja quietude fazia lembrar uma escultura em
madeira, e declarou que era o homem que procurávamos.
Sem receber qualquer explicação do meu companheiro de pesquisa,
estacionei o nosso veículo a cerca de vinte e cinco metros de distância
do ancião que parecia uma estátua. Marcos saiu do carro, deixando a
porta aberta, e aproximou-se dele com passos cadenciados, decididos.
O ancião permaneceu rígido, fitando Marcos com intensidade, sem pro­
ferir palavra. Fui assomado por uma sensação de calamidade iminente.
Embora não conseguisse imaginar porquê, pareceu-me que os dois ho­
mens se preparavam para lutar, tal era a intensidade com que se fitavam
e tão impressionantemente estranho o silêncio entre eles.
Marcos parou em frente do ancião, grosseiramente - agressivamente
- próximo dele. O ancião não arredou pé. Os olhos de ambos queima­
vam-se mutuamente. Por fim, com firme determinação, Marcos anun­
ciou, simplesmente: «Precisamos de Malapende.»
Decorreram alguns instantes. Então, a estátua mexeu-se como se o
vento lhe tivesse insuflado vida. O ancião ergueu lentamente a mão até
à barba. Baixou os olhos. Estudou o chão durante algum tempo antes
de levantar os olhos e defrontar os de Marcos com um olhar feroz.
«Tukel» (Vamos), disse o ancião, virando as costas e começando a andar
para o pátio nas traseiras da sua casa.
O que momentos antes me parecera uma loucura do meu compa­
nheiro de pesquisa revelava-se, agora, uma atitude brilhante. Marcos op­
tara por abordar o ancião não como Lyulagwe, mas sim como a personi­
ficação viva de Malapende, o mais temido guerreiro da história maconde.
Face ao desafio de Marcos, Lyulagwe enchera-se do fogo do seu antepas­
sado, acabando por se identificar com a audaciosa determinação de Mar­
cos.
Na verdade, parecia agora que o ancião aguardava a nossa visita há
anos. Sem uma palavra ou um gesto perceptíveis, chamou outro ancião
que estava sentado no pátio contíguo. Um jovem saiu, sem que ninguém
o chamasse, da casa de Lyulagwe trazendo duas cadeiras, para Marcos e
para mim, e depois um toro onde o ancião e o seu vizinho se sentaram.
Duas ou três pessoas aproximaram-se do pátio e sentaram-se no chão, a
olhar para nós.

148
Conquistadores im aginados

Enquanto iniciava a minha apresentação e a descrição do nosso pro­


jecto de investigação com a conversa da praxe, abri o meu saco de cam­
panha e remexi-o em busca do caderno e da caneta. Continuei a falar,
enquanto procurava o gravador, retirava o invólucro de plástico de uma
cassete nova e a metia no aparelho. Poucos minutos depois de ter iniciado
a minha história - que normalmente demorava quinze minutos ou mais
a contar - e quando ainda estava às voltas com o equipamento, o ancião
interrompeu-me com um resmungo de desaprovação.
Ergui os olhos, sobressaltado. O olhar em chamas do ancião estava
agora fixo em mim, causando-me um medo difuso, mas incontestável.
«Querem falar de vocês próprios», perguntou ele, «ou de Malapende?!»
Olhei para Marcos, que exibia agora um sorriso malicioso.
«Mano», disse-me baixinho, como se estivéssemos nos bastidores, «ele
quer começar».
Pelo tom de voz, percebi que Marcos previa que este seria um encon­
tro fascinante e que, nesta reconstituição histórica, ele e eu teríamos de
desempenhar os nossos ínfimos papéis com uma meticulosa discrição,
para que Malapende não nos considerasse indignos da sua história e nos
abandonasse, descontente. Olhei para o ancião e acenei com a cabeça,
respeitosamente. Os seus olhos faiscaram e iniciou a narrativa.
Informou-nos que o nome inscrito nos seus documentos oficiais era
Américo Nkangusha Nkunama, mas que os seus pais lhe tinham dado o
nome de Lyulagwe (termo shimakonde que significa «bigorna»). O seu
pai, Nkangusha Nkunama, pertencia à matrilinhagem vamilange.
A meu lado, Marcos reprimiu a sua alegria respondendo, inexpressi­
vamente, que também ele era vamilange.
Lyulagwe prosseguiu, dizendo-nos que a sua mãe, Nembo Namajele,
pertencia à matrilinhagem vanashilonda. Era a irmã mais nova do
nang‘oh mwenekaja Malapende, acrescentou com orgulho.
Como uma elegia, o nome de Malapende rolava dos lábios de Lyu­
lagwe e instalava-se nas fendas abertas entre as duas dezenas de pessoas
que agora nos rodeavam.
Antes do ataque dos portugueses ao planalto, afirmou Lyulagwe, já
Malapende era um guerreiro famoso. Não só tinha muitos aliados - vá­
rios dos quais construíram as povoações em redor da sua e integraram as
suas defesas nas dele (ver capítulo 2) - como também tinha muitos ini:
migos. Estas variadas relações, explicou Lyulagwe, eram o resultado de
um ambiente moldado pela captura e o tráfico de escravos entre as ma-
trilinhagens. Exemplificou este facto contando-nos um incidente especí­
fico em que um jovem de outra povoação (a de Shindende) capturou

149
K u piliku la

uma mulher da povoação de Malapende. «Malapende não'sábia enviar


outras pessoas para fazer o seu trabalho», contou-nos Lyúlagwe orgulho­
samente, concluindo depois a história com o relato de comio Malapende
comandara os guerreiros da sua matrilinhagem no combãte e obrigara a
que a mulher fosse devolvida.
Lyulagwe fez uma pausa, enquanto aguardávamos em silêncio. Pensei
que talvez o ancião estivesse a descansar, para recuperar forças, mas de­
pois reparei que os seus olhos examinavam rapidamente a multidão de
trinta ou quarenta pessoas que agora se apinhavam à nossa volta. Per­
guntei a mim mesmo quando teria sido a última vez que ele tivera tama­
nha audiência.
«Quando os dyomba [peixes]1chegaram, Malapende era o seu maior ini­
migo», afirmou Lyulagwe com uma voz. ressonante. «Por três vezes tenta­
ram subir o planalto. Da primeira vez, Malapende reuniu os seus guerreiros
e foi até às terras baixas junto do rio Nakatulu, abaixo de Nanenda. Com­
bateu aí durante dois dias e, no terceiro, os portugueses foram-se embora.»
Enquanto contava a história da batalha em pormenor, Lyulagwe real­
çava as descargas e contradescargas das armas de fogo esticando um braço
para diante, como um cano de espingarda, e premindo o «gatilho» com
a outra mão. Do peito do ancião brotavam ruídos semelhantes a latidos,
cheios de mucosidades, que lhe irrompiam pela garganta ao celebrar os
tiros disparados. A cada descarga, as crianças reunidas à sua volta assus­
tavam-se e tombavam para trás sobressaltadas. .
Lyulagwe prosseguiu a narrativa:

[Depois da primeira batalha], um inimigo de Malapende oriundo da região


da [actual] cidade de Mueda e [da actual aldeia] de N andim ba - um nang’oh
chamado Mbavala - foi a M ocím boa da Praia e apresentou-se aos portugueses
dizendo: «Eu conheço essa pessoa que procurais. Chama-se Malapende e sei
onde fica a sua povoação.» Porém, um nangolo vizinho, Namashakole de seu
nome, descobriu as intenções de Mbavala, e foi avisar Malapende. Malapende
e Namashakole fizeram, então, uma aliança em N toli [sítio onde ficava a p o­
voação de M alapende]. D a segunda vez que os portugueses vieram, Mbavala
acompanhou-os, tendo Malapende e Namashakole com batido os inimigos
em conjunto, durante uma semana, até estes baterem em retirada.

Em conversas ulteriores com outros anciãos, Marcos e eu viríamos a


saber mais coisas sobre as complexas relações entre Malapende, Nama-

1 C om o os conquistadores portugueses chegaram a Moçambique por mar, os anciãos


chamavam-lhes muitas vezes dyomba, isto é, «peixes».

150
Conquistadores im aginados

shakole e Mbavala. Maunda Ng’upula, o ancião de idade indefinida com


quem Marcos e eu falámos muitas vezes na cidade de Mueda, era filho
de pai vanashilonda (a matrilinhagem de Malapende) e de mãe vashitun-
guli (a matrilinhagem de Namashákole). Contou a Marcos e a mim que
Namashakole era o nome do' chefe militar do chefe de povoação
Maunda,2 tendo confirmado que Namashakole e Malapende eram alia­
dos. Explicou: &

Shilavi, um vamwanga, e Mbavala; um vamwilu,’eram aliados mas não ti­


nham outros amigos n o planalto. Combateram com M alapende e Maunda.
Muita geqte morreu nestas guerras, mas depois houve tratados e os culpados
fizeram pagamentos. Estes pagamentos foram feitos em pano ou espera-pouco
[armas de fogo]. U m a vez, porém, pessoas das povoações de Malapende e
de Maunda vieram à povoação de Mbavala, cortaram-lhe a cabeça e queima­
ram-na. Mbavala3 ouvira dizer que òs portugueses estavam na costa, por isso
foi pedir-lhes ajuda para queimar as povoações de Malapende e de Maunda.
A cam inho da costa, encontrou os portugueses, que se dirigiam ao planalto.
O s portugueses eram guiados por alguns m acondes que tinham ido fazer co­
mércio à costa. O s portugueses julgaram que Mbavala estava com os alemães4
e amarraram-no, mas depois ele convenceu-os da sua sinceridade, por isso
eles libertaram os outros macondes e conservaram Mbavala com eles. Esses
outros m acondes regressaram ao planalto, onde avisaram as pessoas do ataque
iminente. Malapende e Namashakole prepararam uma emboscada em Na-
nenda. Colocaram ali duas sentinelas nas árvores e, quando os portugueses
chegaram, as sentinelas informaram Malapende e Namashakole que Mbavala
ia na frente, mas que estava amarrado. O s m acondes abriram fogo e os por­
tugueses retiraram.

2 Os chefes de povoação idosos nomeavam chefes militares em seu lugar e Namasha­


kole pode ter sido um deles. Outras pessoas com quem falámos disseram-nos que Na­
mashakole era o nom e de guerra pelo qual o próprio Maunda era conhecido, mas estes
informadores não eram sobrinhos vashintunguli de Maunda, com o Ng’upula.
3 Neste ponto, não ficou claro se Maunda Nghipula se estava a referir ao mesmo, ou
a outro, Mbavala. Caso Mbavala tivesse morrido, o seu sucessor podia ter herdado o
nome juntamente com o titulo. Contudo, o nosso entrevistado não afirmou explicita­
mente que Mbavala tinha morrido. Dizia-se que, através da pratica da takatuka, os vamitela
macondes da época conseguiam enxertar as cabeças cortadas de cativos nos corpos dos
mortos, ressuscitando-os desse m odo. Por isso, é plausível que o nosso entrevistado acre­
ditasse que Mbavala - um muntela poderoso por mérito próprio - sobrevivera à decapi­
tação.
4 Durante este período, os portugueses temiam as incursões alemãs a partir do Tanga-
nliica.

151
K u piliku la

Na cidade de Mueda, Eugênio Nanyunga Ndupa, um vamwilu des­


cendente de Mbavale, contou-nos uma história diferente. Segundo o seu
relato:

Antes de os portugueses chegarem, Mbavala e Namashakole eram amigos.


Eram am bos filhos de vamwangas5 e viviam próxim o um do outro. Mala-
pende e M aunda também eram amigos. Q uando os portugueses vieram da
primeira vez, todos os combateram em conjunto e os portugueses não con­
seguiram tomar o planalto. Por isso, os portugueses sabiam que precisavam
da ajuda de alguém do planalto. Mbavala, com o m uitos faziam na época,
costumava ir à costa apanhar sal na praia e comprar pano. Q uando lá foi
dessa vez, um comerciante indiano inform ou os portugueses. Estes amarra­
ram-no e obrigaram-no a pagar um im posto. D epois obrigaram-no a ir para
o planalto com eles.

Quando, e com que intenções, foi Mbavala a Mocímboa da Praia são


questões que continuavam a gerar muita controvérsia entre as pessoas de
Mueda com quem falámos, incluindo as que não tinham qualquer pa­
rentesco com os principais protagonistas. Uns afirmavam que Mbavala
fora à costa antes de os portugueses iniciarem o seu ataque e que o facto
de se ter oferecido para trair outros chefes macondes tomara esse ataque
possível. Outros concordavam que ele tinha ido lá nessa altura, mas in­
sistiam que ele fora capturado e obrigado a servir, contra a sua vontade,
como guia dos portugueses. Outros relatos asseguravam que Mbavala
fora à costa após vários (normalmente três) ataques dos portugueses a
Nanenda, para trair os seus rivais ou então para pedir a paz. Algumas
narrativas até situavam esta viagem à costa depois de os portugueses terem
conseguido invadir o planalto, descrevendo-a como uma tentativa de
obter um cargo na administração portuguesa para si próprio, ou de ne­
gociar um imposto mais baixo para a população em troca da cessação de
eventuais revoltas após a conquista. Em qualquer dos casos, todos aqueles
com quem falámos reconheciam a inimizade que veio a instalar-se entre
Mbavala, por um lado, e Malapende e Namashakole, por outro, bem
como a importância desta inimizade na conquista do planalto pelos por­
tugueses.
Quando acabou de nos contar o segundo ataque dos portugueses, Lyu-
lagwe fez uma nova pausa para criar um efeito dramático. Lancei uma
olhadela furtiva à multidão, que já ultrapassava as cem pessoas. Os seus

5 Isto é, os pais de um e de outro pertenciam à matrilinhagem vamwanga.

152
Conquistadores im aginados

corpos amplificavam o som da respiração de Lyulagwe e, depois, o trovão


ressonante da sua voz:

D epois disto, todos os m acondes do planalto se uniram atrás de Mala-


pende, junto do rio Litembo. D a terceira vez, os portugueses vieram a cavalo,
abrindo uma estrada à sua frente. O s m acondes foram a Kavanga, mas os
portugueses eram m uitos, e M alapende e Nam ashakole não conseguiram
detê-los, por isso regressaram a N toli. Ora os portugueses... guiados por um
soldado chamado Nakashi... avançaram para N toli para queimar a povoação
de M alapende. Antes de lá chegarem, construíram um acam pamento em
M ing’anga. D epois foram à povoação de Malapende, mas não conseguiram
queimá-la. M alapende tinha construído trincheiras e erguido paliçadas de
bambus ao longo de todo o cam inho que levava à entrada. O cam inho era
tão estreito que os portugueses eram forçados a andar de lado. N ão conse­
guiam disparar. E enquanto avançavam, os guerreiros de Malapende - que
se tinham escondido por detrás das paliçadas de bambus - espetavam lanças
através das paliçadas e matavam os atacantes. Espetaram-lhes lanças na bar­
riga, um por um.

Lyulagwe reproduzia agora as estocadas com as lanças, fazendo um


profundo ruído sibilante e gorgolejante, no final de cada movimento,
quando a sua arma imaginária se espetava na carne da vítima. Algumas
crianças riram-se. Lyulagwe lançou-lhes um olhar carrancudo, fazendo
com que duas delas, pelo menos, fugissem do círculo aos guinchos de
medo. Lyulagwe prosseguiu a representação: «Enquanto os seus soldados
faziam isto, o próprio Malapende cantava ‘Malapende! Malapende!5»

O verdadeiro nome de Malapende, explicou Lyulagwe, era Nkaloma


Mavinga, mas era mais conhecido pelo seu nome de guerra. «Mala­
pende», informou-nos ele, era uma cantilena sarcástica que as crianças
entoavam depois de apanharem uma barata, arrancarem-lhe as patas e
pousarem-na no chão, onde ficava a contorcer-se.
Agora o próprio Lyulagwe entoava esse nome: «Malapende! Mala­
pende!»
A combinação da cadência infantil com a sua voz de velho produzia
um efeito estranho, sinistro, enquanto imaginávamos as vítimas empala-
das a contorcerem-se.
Lyulagwe retomou o fio da sua narrativa. Falava agora baixinho e o
público, cada vez mais numeroso, já próximo das duas centenas, incli-
nou-se para a frente para ouvir as suas palavras: «Durante três dias, os
portugueses tentaram em vão queimar a povoação de Malapende, mas

153
K u piliku la

no fim esta ardeu sozinha.» O ancião olhou-me e sorriu estudadamente.


«Malapende disse: ‘Estas pessoas só existem porque alguém as imaginou’.
Aquelas pessoas, afirmou ele, não podiam queimar a sua povoação. Por
isso ordenou ao seu próprio povo que lhe pegasse fogo.» O ancião pros­
seguiu:

Malapende deslocou o seu p ovo e construiu uma nova povoação junto


do rio Litembo. C ham ou a este lugar Shendushendu e disse que o nom e de
Malapende não deveria voltar a ser usado. Mas os portugueses também ten­
taram queimar essa povoação. Por isso, ele voltou a pegar-lhe fogo e m udou
novamente para um lugar ali perto. Aí rendeu-se aos portugueses, mas enviou
o irmão, Shikaulika, em seu lugar, porque não queria ter nada a ver com a
rendição. Queria voltar a atacar os portugueses, mas Shikaulika disse-lhe:
«Assim, vais acabar com nós todos.» Shikaulika levou uma lança e uma es­
pingarda e entregou-as aos portugueses.

O ancião estava esgotado. Concluiu a sua narrativa, exangue, enquanto


o seu público começava a dispersar:

O s portugueses obrigaram os m acondes a ajudá-los a construir a estrada


que estavam a fazer. O s m acondes tinham de escavar com as mãos e am on­
toar terra vermelha na estrada, calcando-a para fazer uma superfície endure­
cida. Malapende não conseguiu aguentar isto. N ão podia ver o seu p ovo a
trabalhar com o servos. Por isso, m udou-se com ele para construir uma nova
povoação m uito longe dali, perto de Mtamba. Malapende nunca mais voltou.
Ali morreu, depois de ter sido nom eado capitão-mor {um «chefe» obrigado a
prestar contas à administração colonial) pelos portugueses.

O planalto de Mueda foi uma das últimas zonas de Moçambique «pa­


cificadas» pelos portugueses. Por não ter capital para investir, Portugal
concessionara em 1891 a região Norte da colónia, incluindo o planalto,
a um grupo denominado Companhia do Niassa. Nos anos seguintes, o
grupo teve dificuldade em angariar capitais suficientes para investir no
território e mostrou-se incapaz de exercer um «controlo administrativo»
sobre os habitantes da região (Vail 1976; Neil-Tomlinson 1977). No início
da Primeira Guerra Mundial, os portugueses procuraram defender a fron­
teira do rio Rovuma contra o Tanganhica alemão, mas tiveram primeira-
mente de «subjugar» a região do planalto e ligar as defesas situadas na
margem sul do Rovuma às cidades costeiras de Porto Amélia (actual
Pemba) e Mocímboa da Praia (Pélissier 1994). Para isso, foi enviada de

154
Conquistadores im aginados

Enquanto Lyulagwe falava, imaginei uma época em que os jovens do planalto


apreciavam as histórias contadas por anciãos com o ele. C om as suas palavras,
Lyulagwe dava vida, por m om entos, a esse passado imaginado. Mais tarde, Mar­
cos - historiador de profissão - diria que a actuação de Lyulagwe fora «a maior
história oral» que já ouvira. «Ainda bem que a gravámos», com entou, antes de
ouvir a gravação e compreender que não tínhamos - nem poderiamos ter - pre­
servado o fascínio da sua narração.

Mocímboa uma companhia de tropas portuguesas comandadas pelo ca­


pitão Neutel de Abreu. As tropas subiram o planalto pelo lado leste, pró­
ximo de Nanenda, em 17 de Maio de 1917 e chegaram a Chomba, si­
tuada no lado ocidental do planalto, em 14 de Junho.6
O biógrafo de Neutel de Abreu, Manuel Ferreira, fornece algumas in­
formações sobre esta curta campanha (Ferreira 1946: 93-107). A coluna,
segundo nos diz, teve de lutar não só contra os habitantes do planalto,
mas também contra a floresta que foi obrigada a atravessar. A água era
escassa, as boas gigantes e as serpentes negras, letalmente venenosas, cons­
tituíam uma ameaça constante (97, 99).

6 Dois anos antes, o capitão António Pires afirmava ter dividido «a meio toda a região
rebelde dos Malcondes no Nyassa» (Pires 1924, 18), mas o itinerário da sua campanha
para ligar o rio Rovuma a Porto Amélia contornara a margem sudoeste do planalto e evi­
tara as zonas onde a população estava concentrada (ver mapa 2). Em relatos ulteriores
(Costa 1932) é dito que os macondes se envolveram em escaramuças com as tropas por­
tuguesas, poucos meses após a passagem de Pires.

155
K u piliku la

Mapa 2
Viagens de Henry O ’N eill e rotas da conquista portuguesa.

«Os macondes» - como os portugueses, pelo menos, chamavam agora


aos habitantes do planalto - montavam emboscadas mortíferas, mas a
coluna avançou sob a orientação de «um régulo» maconde ao seu serviço
(Ponte 1940-1941, 441). Os relatos portugueses não referem Mbavala
pelo nome, mas contam-nos que a «sua única preocupação consistiu em
bater alguns régulos seus inimigos» e que, por isso, «seguiu a directriz
que mais convinha à realização do seu desejo» (441).

156
Conquistadores im aginados

A batalha travada na povoação de Namashakole, «Mahunda» (onde o


nosso entrevistado, Maunda Ng’upula, então vivia), decorreu entre 11 e
17 de Julho, segundo nos informam (Ferreira 1946,98). Foi montado cerco
à povoação de «Malupendo» no dia 13 de Julho. A única informação re­
ferente a este dia - em que as tropas portuguesas também atacaram a po­
voação de «Pananebane» - é de que, no meio da batalha, as tropas portu­
guesas foram atacadas por um enxame de abelhas (Ferreira 1946,104).
Na sua travessia do planalto, a coluna portuguesa terá incendiado mais
de 150 povoações. Muitos dos nomes destas povoações foram registados
e, em alguns casos, fez-se um inventário das palhotas queimadas: nada
menos de 156 em Namamidia e 197 em Colinga; apenas 13 em Nindim-
pira e em Pachalampa.
Dizem-nos que as tropas portuguesas acamparam de noite junto da
povoação de «Nacume», enquanto esta ardia, em 17 de Maio de 1917
(Ferreira 1946, 102). Herman Nkumi - baptizado com o nome do
nangolo mwene kaja desta povoação - desconhecia a data, mas quando
falou connosco, em 1994, recordava-se bem desse dia, apesar de terem
passado setenta e sete anos. Ele e a sua família dormiram no mato, nessa
noite. Nos dias - e anos - seguintes, perguntavam a si mesmos como era
possível que as substâncias mágicas utilizadas pelos chefes de povoação
macondes não os tivessem protegido desses atacantes.
Os oficiais portugueses que comandaram a campanha de «pacificação»
do planalto a sul do Rovuma atribuíram a sua vitória à superioridade das
armas. Nos seus relatos sobre a campanha, raramente consideraram rele­
vante nomear os vanang,olo que derrotaram, mas documentaram para a
posteridade as armas que eles e os seus 2000 «auxiliares macuas» levavam
consigo: 929 espingardas Snyder, 267 espingardas Kropatchek e 37 cara­
binas Kropatchek (Ferreira 1946, 99-100).
Poderá ter havido uma época em que os macondes do Norte de Mo­
çambique pensavam que as armas de fogo eram instrumentos de uwavi
- inventos estranhos e terríveis que permitiam matar outro ser humano
a grandes distâncias. Contudo, embora as tropas de Neutel de Abreu
trouxessem armas mais sofisticadas do que quaisquer outras que os ha­
bitantes do planalto tinham visto, na altura da conquista a maioria dos
homens macondes adultos possuía uma considerável experiência com
algum tipo de armas de fogo. Durante séculos, traficantes de escravos ar- *
mados - na sua maioria árabes - vaguearam pelo interior do Norte de
Moçambique em busca de presas e comerciaram armas com os africanos
que lhes serviam de intermediários no comércio negreiro. Ao fim de
algum tempo, os ferreiros macondes aprenderam a reparar as armas de

157
K u piliku la

fogo e, até, a produzir peças sobressalentes para elas, tomando esta tec­
nologia, antes surpreendente, em algo cada vez mais terreno.
Nos actuais relatos orais da conquista, os habitantes do planalto de
Mueda reconheciam que as armas de fogo dos portugueses eram perigo­
sas, mas não as descreviam como instrumentos decisivos no recontro
entre combatentes portugueses e macondes. De facto, descreviam os ma-
condes a utilizar armas de fogo tão bem ou melhor que os portugueses
e os seus mercenários - até as reservas de pólvora terem acabado.
Segundo Maunda Ng’upula, após os portugueses terem sido atraídos
para a emboscada montada por Malapende e Namashakole, Mbavala
disse aos portugueses: «Eu avisei-vos que eles eram ruins!» A história,
contada por Maunda reza que «os portugueses responderam: ‘Aquilo
devem ter sido os alemães!’ Os portugueses regressaram a Macímboa da
Praia e voltaram três semanas depois. Aconteceu a mesma coisa: sofreram
uma emboscada e retiraram. Desta vez, porém, acreditaram em Mbavala,
quando este lhes disse que quem os atacara fora Malapende e Namasha­
kole, e não os alemães.»
Maunda prosseguiu a sua história: «Oito meses depois, os portugueses
voltaram e caíram numa emboscada. Desta feita, morreram macondes e
portugueses. Os portugueses regressaram a Mocímboa da Praia. Os ma­
condes tinham ficado sem pólvora e foram buscar mais.»
Quando os portugueses regressaram, os macondes voltaram a ficar sem
pólvora, segundo Maunda Ng’upula. Pouco tempo depois, deitaram fogo
à povoação de Maunda e retiraram para a de Malapende, deixando que
os portugueses estabelecessem a sua «administração» nas minas da po­
voação de Maunda.7
Porém, os momentos mais reveladores, tanto na narrativa de Lyulagwe
como na de Maunda Ng’upula, surgem no intervalo entre o esgotamento
das reservas de pólvora dos macondes e a sua «rendição» final. Neste in­
terregno, o «poder de fogo superion> dos portugueses é completamente
neutralizado pelos astuciosos estratagemas dos vam ng’olo macondes. No
relato de Lyulagwe, como ouvimos, Malapende atrai os portugueses e os
seus afiados para corredores estreitos onde morrem trespassados por lan­
ças. Na narrativa de Maunda Ng’upula, a táctica ainda é mais incrível:

7 Segundo o relato de Maunda N g’upula, os portugueses, ajudados por Mbavala, per­


seguiram Malapende e Namashakole até às terras baixas próximas do rio Messalo. Por
fim, Malapende e Namashakole regressaram ao planalto, mas Maunda recusou-se (tal
com o Malapende, na narrativa de Lyulagwe) a apresentar a sua rendição, tendo enviado
Shiebu em seu nome.

158
Conquistadores im aginados

«Então, Namashakole disse a Malapende: ‘Vamos esculpir uma estátua


que se pareça contigo e pomo-la numa trincheira com uma arma de fogo
nas mãos’. Assim fizeram. Quando os portugueses chegaram, Mvabala
viu a estátua e os portugueses dispararam sobre ela até a fazerem tombar.
Depois foram capturar o corpo de Malapende, mas caíram na trincheira.
Os macondes saltaram-lhes em cima e começaram a degolá-los... Os res­
tantes portugueses bateram em retirada, mas depois voltaram. Quando
regressaram, aconteceu novamente a mesma coisa!»
Os habitantes do planalto atribuíam estes acontecimentos espantosos
em parte à ignorância dos portugueses, mas sobretudo às capacidades de
Malapende e de Namashakole como poderosos vamitela. Nas batalhas
que travavam entre si, todos os vanang’olo mais temidos de então, in­
cluindo não só Malapende e Namashakole, mas também Mbavala, ti­
nham adquirido grande reputação como vamitela. Por exemplo, segundo
Magwali Shakoma, de Mpeme: «Namashakole tinha ntela antibalas. Não
podia ser abatido a tiro. As balas caíam no chão e ele apanhava-as».8Ma­
nuel Shindolo Nkapunda contou-nos: «Malapende tinha ntela que lhe
permitia desaparecer. Quando era capturado, desaparecia. Quando era
alvejado, desaparecia e reaparecia noutro lugar. Apenas ficava furioso e
dançava enraivecido».9 Muitos afirmavam que Mbavala era capaz de rea­
lizar takatuka - enxertar as cabeças e outras partes retiradas do corpo de
escravos nos membros feridos ou mortos da sua própria matrilinhagem,
a fim de os ressuscitar (ver também Dias e Dias 1970, 364).
Tal como se dizia que as lutas entre estes anciãos poderosos se trava­
vam no reino definido por substâncias mágicas e assombrosos actos de
feitiçaria, o mesmo acontecia com as batalhas contra os agressores estran­
geiros que eles tiveram de enfrentar no início do século xx. Até ao mo­
mento em que foram derrotados, Malapende e Namashakole mostra-
ram-se mais aptos do que os portugueses no tocante a ver os seus
inimigos, a reconhecerá natureza do seu poder e a virá-lo contra eles {kupili-
kuld). As substâncias mágicas que estes vanang’olo utilizavam permitiram-
-lhes realizar manobras decisivas que os seus inimigos não podiam ver.

8 Claro que este é um tema comum nas histórias de guerra africanas. O exemplo mais
famoso refere-se à sublevação dos Maji Maji na África Oriental alemã, em 1905 (Adas
1979). Ver também (Fry 1976,107); K. Wilson (1992); Rosenthal (1998,113); Wild (1998);
Rasmussen (2001a, 140). Bastian (2001) informa que os membros de algumas fraternida­
des universitárias nigerianas se afirmam imunes às balas. Ver também Worsley (1968,141)
sobre fenómenos semelhantes na Melanésia.
9 Os habitantes de Mueda descreveram a Dias e Dias (1970,371) estratégias semelhan­
tes para escapar ao perigo - incluindo transformarem-se em nuvens.

159
K u piliku la

Usaram a sua relativa superioridade no conhecimento de mitelapaia. atrair


os inimigos para armadilhas simples e confundi-los, repetidamente, de
modo a tomarem meros engodos por alvos humanos.
Então, por que razão acabaram estes vamiteh por sucumbir aos por­
tugueses? A resposta, segundo os relatos da maioria dos anciãos actuais,
não reside na superioridade das armas ou da estratégia militar dos portu­
gueses, mas sim no reino do invisível. Não se pretendia sugerir com isto
que os portugueses se revelaram, afinal, vamitela mais poderosos do que
os anciãos macondes - muito pelo contrário. Ouça-se atentamente as pa­
lavras de Malapende, proferidas por Lyulagwe: «Malapende disse: ‘Estas
pessoas só existemporque alguém as imaginou ». De acordo com estas palavras,
os portugueses não eram, eles próprios, feiticeiros poderosos, mas sim o
produto da imaginação de um malévolo feiticeiro maconde - presumi­
velmente Mbavala.10 Como tal, os portugueses constituíam um perigo
novo e, ao mesmo tempo, representavam um mal que lhes era familiar.
Eram simultaneamente entendidos como um fenómeno surpreendente
e como uma ameaça que podia ser enfrentada da forma convencional.
A declaração de Malapende constituiu, de facto, uma tentativa de re­
solver a crise provocada pela invasão portuguesa com medidas habituais
de contrafeitiçaria. A sua declaração audaciosa foi proferida no género
discursivo da contrafeitiçaria, à semelhança das palavras de um curan­
deiro que identifica o padecimento de um doente como produto da ima­
ginação malévola de um feiticeiro e dos gritos nocturnos de um chefe de
povoação que executa feitiços de construção no centro desta: «Estou a
ver-te! Sei quem és! Sei o que andas a fazer!»
Tais manobras poderiam ter permitido que Malapende e Namashakole
vencessem os portugueses, assegurou-nos a maioria dos habitantes do
planalto, se Mbavala, que estava por detrás deles (e, neste caso, também
na frente), não fosse, ele próprio, um muntela tão dotado.*11 Mbavala foi
mais hábil (kupilikula) do que Malapende e Namashakole quando eles
tentaram anular os efeitos perigosos da ameaça que ele tinha conjurado.
«Mbavala conhecia as mitela de Malapende», afirmou Manuel Shindolo
Nkapunda. «Foi assim», garantiu-nos ele, «que Malapende foi derrotado.»

i° y er relato semelhante de um chefe mbugwe, que muitos admitiam ter chamado tro­
pas (alemãs, nada menos) por meio de bruxaria, para punir os seus inimigos, em Gray
(1963,147).
11 Dias e Dias contam que um dos seus informantes lhes disse: «Os brancos sabem
fazer máquinas e andar pelo ar, mas o régulo Mbavala era capaz de fazer coisas superiores
aos brancos» (1970, 364).

160
Capítulo 10

Consumir o trabalho
e os seus produtos
«O regulado1nasceu com o imposto», disse-nos o idoso que entrevis­
távamos. «Antes da chegada dos portugueses não havia impostos, e antes
dos impostos não havia régulos12- só chefes de povoação.»
«O chefe de povoação não ficava também com uma parte da riqueza
do seu povo?», perguntei.
«Isso era diferente», respondeu. «O chefe de povoação redistribuía os
bens entre o seu povo. Cuidava do seu bem-estar. O régulo comia as pes­
soas. E os portugueses comiam o régulo.»
O mais extraordinário nestas palavras do ancião era o facto de ^ p r ó ­
prio ter sido régulo no fim do período colonial.
«Eu fui o quarto régulo Ndyankali», dissera-nos ele. «O primeiro foi o
filho de Makapela.»
«Como é que ele foi escolhido?», perguntara eu.
«Depois da derrota dos macondes em Nanenda, os portugueses vieram
a cada uma das zonas do planalto e perguntaram: ‘Quem é o chefe?’
Nesta zona, Ndyankali descendia do fundador inicial. Era um m ng’oh
mwene shilambo. A terra pertencia aos seus antepassados, por isso foi iden­
tificado e deram-lhe uma bandeira para hastear no seu recinto. Outros
vanang’olo vene kaja da zona - que até então prestavam obediência ao
nang’olo mwene shilambo e aos seus antepassados - passaram a receber or­
dens dele. Era obrigado a cobrar impostos e a dar o dinheiro aos portu­
gueses.»

1 U m regulado era um domínio geográfico da autoridade colonial que englobava os


domínios de muitos chefes de povoação, antes autónomos.
2 U m régulo era o «chefe» de um regulado.

161
K u piliku la

«O senhor também cobrava esses impostos?», perguntei.


«Eu não tinha alternativa. Se não o fizesse, seria enviado para São
Tomé para trabalhar nas roças de cana-de-açúcar.»
Ficámos em silêncio durante algum tempo e depois Ndyankali acres­
centou: «Fui régulo até comprar um cartão de militante da Frelimo. Dis­
seram-me que, se não tivesse um cartão, seria morto pela Frelimo, quando
ela nos libertasse dos portugueses. Mas quando os portugueses descobri­
ram que eu tinha o cartão, prenderam-me. Passei dez anos na prisão. Es­
pancaram-me tanto que ceguei.»
Olhei com compaixão para o frágil e cego Ndyankali, que não podia
retribuir o meu olhar. Nesse momento, este objecto de escárnio da his­
tória de Mueda parecia-me mais ser uma das suas vítimas.
«Os portugueses comeram-te, não foi?», perguntou Marcos.
«Sabes quem nos comeu realmente?», retorquiu ele.
Marcos e eu aguardámos que respondesse.
«Todos aqueles jovens que trabalhavam por dinheiro nas plantações
do litoral e do Tanganhica - aqueles que acabaram por aderir à Frelimo.
Só se alimentavam a si próprios. Esqueceram-se dos seus antepassados.»

»»»

A história que Ndyankali nos contou sobre a escolha do seu antecessor


para o posto de régulo foi apenas uma de muitas histórias que nos foram
narradas sobre as consequências da conquista portuguesa. Como o exér­
cito português exigia que cada povoação identificasse um «chefe», os che­
fes de povoação macondes e as respectivas populações utilizaram várias
estratégias face aos novos senhores. Muitos chefes de povoação limita­
ram-se a apresentar-se ao comando português. Outros recusaram qual­
quer contacto com os seus conquistadores. Por vezes, os anciãos rebeldes
enviavam subalternos em seu lugar. Em alguns casos, anciãos rivais ou
subalternos ambiciosos tomavam a iniciativa de se encontrarem com os
portugueses, ao perceberem que a recusa dos seus vanang’olo em capitular
atraía sobre eles a persistente cólera dos conquistadores. Em alguns casos,
esses rivais ou subalternos, que poderiam nunca ter sido escolhidos como
sucessores ou representantes, aproveitavam a oportunidade para usurpar
o poder dos seus anciãos. Noutras circunstâncias ainda, em sarcásticas
atitudes de rendição, os chefes de povoação enviavam os «idiotas da al­
deia» para serem reconhecidos pelos portugueses.
Como Herman Nkumi e outros anciãos nos contaram, quando um
«chefe» se apresentava ao comando português e acedia a colocar uma

162
Consum ir o trabalho e os seus produtos

bandeira portuguesa no centro do seu recinto, a população da sua zona


era autorizada a reconstruir as casas. Este chefe era, então, obrigado a for­
necer pessoas da povoação para trabalharem para a coluna portuguesa
na construção da estrada de aprovisionamento militar que atravessava o
planalto.
Quando a Primeira Guerra Mundial terminou e as tropas portuguesas
retiraram para os quartéis, a jurisdição sobre a região voltou a ser entregue
à Companhia do Niassa que, pela primeira vez, ocupou efectivamente o
planalto.3 Os chefes dos vários postos que a Companhia do Niassa ali
construiu depois da guerra trabalhavam com os chefes já identificados
pelo exército português. Como os chefes de povoação eram demasiado
numerosos para se poder tratar com eles directamente, a Companhia exigiu
às populações de zonas com determinada dimensão que nomeassem um
«chefe» para as representar a todas. As zonas delimitadas pela Companhia
não correspondiam ao território de uma povoação, nem sequer, na maio­
ria dos casos, ao território associado a um determinado nangolo mwene
shilamho. Como não existiam «chefes» que exercessem o seu domínio à
escala geográfica que convinha à Companhia do Niassa, foi necessário in­
ventar essas chefias para corresponder às exigências dela.
A Companhia concedia o título de capitão-mor4 a cada um dos «chefes»
alcandorados a posições de autoridade sobre os seus pares, e exigia a estas
figuras que a ajudassem na cobrança do imposto de palhota e no recruta­
mento de mão-de-obra para o trabalho forçado (denominado chibalo em
Moçambique). Abaixo de cada capitão-mor, na hierarquia «administrativa»
da Companhia, esta reconhecia vários wajiri.5 Na maioria dos casos, os
chefes de povoação (ou os seus representantes, ou ainda aqueles que ti­
nham usurpado os seus lugares) tornavam-se wajiri. Nessa qualidade,
agiam como adjuntos dos respectivos capitães-mores, proporcionando à
Companhia do Niassa uma estrutura administrativa que chegava a todas
as povoações e lhe permitia obter receitas e mão-de-obra de todas as fa­

3 O controlo português do planalto era frágil durante a guerra, sobretudo quando as


incursões alemãs desencadeavam revoltas dos macondes. A Companhia do Niassa re­
conquistou o planalto em 1919 e 1920, sufocando revoltas dispersas (Serra 1983,118;
Pélissier 1994,416).
4 Capitão-mor é um termo militar inicialmente aplicado aos comandantes de fortes ou
de forças expedicionárias nos territórios ultramarinos portugueses. Por ironia, foi aplicado
às autoridades nativas no m om ento em que estas foram subordinadas a uma autoridade
superior.
5 O termo wajiri é uma transliteração do termo kiswahili wajili, por seu turno derivado
da palavra árabe waziri, que significa «ministro» ou «enviado».

163
K u p ilik u la

mílias residentes no planalto. Os anciãos diziam-nos, muitas vezes, que,


através desta hierarquia, «a Companhia do Niassa comia os macondes».
A Companhia do Niassa passou pelas mãos de várias empresas deten­
toras enquanto o seu direito de concessão vigorou, mas nunca mobilizou
recursos financeiros suficientes para investir no desenvolvimento das
infra-estruturas da região. Em vez disso, alimentava-se dos habitantes
desta (Vail 1976; Neil-Tomlinson 1977). Um visitante britânico que nela
viajou concluiu o seguinte acerca dos métodos usados pela Companhia
para obter o imposto de palhota e o trabalho chibalo: «no que respeita
aos nativos, esta é uma terra de sangue e lágrimas, onde os maus tratos
mais brutais não constituem crime e um homicídio não passa de um li­
geiro pecadilho» (in Vail 1976,401).
Quando a concessão da Companhia do Niassa expirou, em 1929, a
administração colonial portuguesa assumiu o controlo directo dos seus
territórios, incluindo o planalto. Observou-se uma continuidade a nível
local, com a transformação dos postos da Companhia em postos admi­
nistrativos coloniais e a passagem de muitos funcionários da Companhia
a funcionários do Estado.6À semelhança dos seus antecessores, os fun­
cionários estatais continuaram a apoiar-se nos chefes locais como inter­
mediários administrativos, designando-os agora como autoridades gentíli­
cas. 7Porém, a hierarquia estabelecida pela administração foi adaptada ao
modelo aplicado às autoridades nativas de outras zonas da colónia (Alves
1995); os capitães-mores foram, deste modo, agrupados e subordinados
a um capitão-mor saído das suas fileiras, criando um terceiro nível admi­
nistrativo de «chefes» denominados «régulos».8 Criaram-se trinta e um
regulados (isto é, zonas controladas por régulos individuais) na região do
planalto (ver mapa 3, no capítulo 11).
Embora esta hierarquia política em três níveis fosse claramente uma
invenção colonial, reflectia subtilmente as relações anteriores à conquista,
como indicava a história de Ndyankali. Um régulo era, muitas vezes, o
nang’olo mwene shilambo da sua zona ou um poderoso chefe militar da

6 Este facto pode ser comprovado comparando os registos de pessoal publicados no


Boletim da Companhia do Nyassa com os dos Anuários de Moçambique do período colo­
nial.
7 O s portugueses, curiosamente, adaptaram o termo «gentílica» para designar não os
não judeus, mas sim os povos não cristãos «tribais», «pagãos».
8 O termo «régulo» significa «pequeno rei», ou «chefe nativo». Foi usado em todas as
zonas de Moçambique para designar as autoridades gentílicas de nível superior, ao passo
que os subordinados dos régulos eram designados por títulos que variavam consoante a
região do país.

164
Consum ir o trabalho e os seus produtos

épóca anterior à conquista (ou ainda um nomeado ou sucessor reconhe­


cido de um destes cargos, ou mesmo um usurpador que todos sabiam
ter-se apoderado do estatuto dessa figura). Os capitães-mores eram, ge­
ralmente, vanang’oh venekaja (ou alguém por eles nomeado, ou um usur­
pador) de povoações que já eram relativamente grandes, ou que tinham
sido fundadas numa época relativamente precoce da história da região.
Os simples wajiri eram, normalmente, chefes (ou alguém por eles no­
meado, ou um usurpador) de povoações relativamente pequenas, ou for­
madas em consequência de uma cisão recentemente ocorrida numa po­
voação maior.9
Na gestão dos «assuntos indígenas», os administradores portugueses
conferiam às autoridades gentílicas e aos seus subordinados poderes re­
lativamente vastos no exercício da autoridade sobre os «indígenas», que
não possuíam o estatuto de cidadãos e, por conseguinte, não estavam su­
jeitos à lei, nem eram por está protegidos. Estas autoridades não só con­
tinuavam a supervisionar as relações sociais no reino visível - validando
transacções de terras, combinando casamentos, resolvendo litígios,
etc. -, como também continuavam a supervisionar as relações no reino in­
visível. Enquanto os britânicos e os franceses proibiram, de um modo geral,
as acusações, julgamentos e ordálios relativos à feitiçaria/bruxaria nos
seus territórios africanos (Mair 1969,170; Chavunduka 1978,14; Fisiy e
Rowlands 1989; Mesald 1994; Mombeshora 1994; Fields 1997,75-76), os
portugueses demonstraram uma «tolerância» relativamente maior, e tam­
bém mais confiança nas instituições e práticas indígenas.101A adminis­
tração colonial de Moçambique aconselhou, efectivamente, os adminis­
tradores a restringirem a influência dos curandeiros11 e aprovou leis que
limitavam a prática legal da medicina a profissionais licenciados, 12 além
de ordenar às autoridades gentílicas que se opusessem «à prática de bru­
xarias e adivinhações e muito especialmente das que representem violên­
cia contra as pessoas»13 (E. Green 1996, 50; Fry 2000, 126; Honwana
2002, 129). Há notícia de que, nas décadas de 1920 e 1930, os adminis-

5 Segundo Mitchell, a administração colonial na Niassalândia incorporava, do mesmo


m odo, «a organização indígena no seu âmbito» (1956,48-49).
10 Mair (1969, 139) informou que os ndembus atravessavam a fronteira da Rodésia .
do Norte, administrada pelos britânicos, entrando em Angola, administrada pelos por­
tugueses, quando queriam consultar adivinhos sobre casos de bruxaria.
11 Ver Portaria n.° 292 de 17 de Julho de 1911; citada em Gulube (2003,100).
12 Ver Lei n.° 32 171 de 29 de Julho de 1942; citada em Gulube (2003,100).
13 Ver Decreto-lei n.° 23 229 de 15 de Novembro de 1933, citado em Gulube (2003,
101).

165
K u piliku la

tradores de algumas zonas de Moçambique puniam os praticantes de fei­


tiçaria e/ou de curandeirismo com trabalho forçado, prisão, ou mesmo
com a deportação para as ilhas de São Tomé e Príncipe, na África Oci­
dental (Honwana 2002, 122-130; Meneses s. d., 15), mas essas medidas
não eram amplamente adoptadas.14Geralmente, os administradores per­
mitiam «práticas indígenas» como estas, desde que não gerassem violência
nem perturbassem os interesses coloniais (Fry 2000, 126; Gulube 2003,
101).15«Transformar o comportamento religioso da população indígena»
era, como veremos no capítulo 11, uma missão deixada, em última aná­
lise, ao cuidado da Igreja Católica (Fry 2000,126; Honwana 2002,129).
Apesar de muitas autoridades gentílicas serem também, de facto, chefes
das respectivas povoações, e embora continuassem a exercer a autoridade
de muitas formas costumeiras, as hierarquias administrativas impostas
pela Companhia e, posteriormente, pela administração colonial transfor­
maram lentamente os papéis desempenhados por estes anciãos nas suas
próprias matrilinhagens. O governo, tal como a Companhia fizera antes
dele, obtinha a mão-de-obra chibalo através das autoridades gentílicas,
pondo normalmente os recrutados na região de Mueda a trabalhar na
construção de estradas, uma tarefa localmente denominada como nrnan-
gani. Para oferecer um ambiente laborai atraente às empresas coloniais,
grandes e pequenas, a administração recorria à estratégia habitual do im­
posto de palhota e utilizava as autoridades gentílicas como cobradores
de impostos. Para pagar o imposto, as famílias eram obrigadas a cultivar
culturas comerciais como o amendoim, o sésamo, o caju, o óleo de rícino
ou o arroz, para vender aos comerciantes locais (Isaacman 1996), ou a
fazer contratos de trabalho com empresas coloniais. Os régulos e os seus
subordinados recebiam uma comissão por cada trabalhador que «forne­
ciam» às explorações agrícolas e plantações regionais pertencentes a co­
lonos privados (Adam e Gentili 1983,44; Meneses et cã. 2003, 345).

14Meneses (2000,9,22-23) sugere que as autoridades coloniais permitiam, em última


análise, a prática da «medicina tradicional», devido à escassez de médicos e enfermeiros
coloniais.
15 Ver em Pereira (1998,167-177) a história de um administrador distrital da época co­
lonial, em Mueda, a quem um homem - acusado de matar um parente acusado de fei­
tiçaria - foi trazido pelas autoridades gentílicas para ser julgado. O administrador relata
os pormenores do caso com vaga curiosidade, antes de referir com o a morte do acusado
através de contrafeitiços tomava irrelevante a decisão que ele tinha de tomar entre, por
um lado, aplicar o código penal e considerar o acusado culpado de homicídio ou, por
outro lado, indultar o acusado devido a «circunstâncias atenuantes» resultantes de «con­
vicções» sancionadas culturalmente.

166
Consum ir o trabalho e os seus produtos

Enquanto os portugueses consolidavam a autoridade dos régulos e dos


seus adjuntos, os habitantes de Mueda sabiam que estas figuras tinham
sido «comidas» pelo colonizador, que utilizava o governo indirecto para
se «alimentar» de toda a população do planalto. Como nos disse Ndyan-
kali, cada régulo - vestido com um uniforme fornecido pela administra­
ção colonial - recebia ordens do administrador de posto português e
transmitia-as a todos os seus capitães-mores que, por sua vez, davam ins­
truções aos seus wajiri. Se houvesse resistência às ordens dadas pelas au­
toridades gentílicas, estas enviavam os polícias nativos (chamados cipaios)
para as fazer cumprir. Se o próprio régulo se recusasse a cooperar ou fosse
incompetente, arriscava-se a ser sovado em público, exilado para as plan­
tações de São Tomé ou morto pelos portugueses.
Embora aqueles que colaboravam com o regime colonial e com as
empresas locais na cobrança de impostos e no fornecimento de mão-de-
-obra «comessem bem», a maioria dos que estavam sob o seu controlo
administrativo «passava fome», de acordo com os testemunhos orais.
Com tanta coisa em jogo, as crises de legitimação grassaram entre as au­
toridades gentílicas, ao longo de todo o período colonial, com os rivais
a contestarem os direitos e a competência uns dos outros.16Os adminis­
tradores de posto portugueses eram, por vezes, arrastados para estes con­
flitos e, na maior parte das vezes, tendiam a resolvê-los escolhendo o
opositor que prometia ser mais obediente às exigências administrativas.
Deste modo, as próprias autoridades gentílicas ocupavam uma posição
frágil entre uma população que aparentemente representavam e uma ad­
ministração que «autenticava» a sua «legitimidade» (através da distribui­
ção de uniformes) e, ao mesmo tempo, lhes exigia que agissem em opo­
sição aos interesses daqueles «em cujo nome falavam».17 As tensões e
animosidades eram realçadas pelo facto de os régulos e capitães-mores

16 Uma das formas de litígio mais comuns na região do planalto era a seguinte. Pouco
depois da conquista, um chefe de povoação nomeava um subordinado para interagir
com o regime colonial. O chefe de povoação aproveitava a oportunidade para consolidar
a união do seu povo através da nomeação de um dos descendentes de uma mãe escrava,
com fraca lealdade à matrilinhagem (que não era verdadeiramente sua). Contudo, quando
o posto na hierarquia colonial se revelava lucrativo, o chefe de povoação (ou o seu her­
deiro) procurava expulsar o nomeado (ou o seu herdeiro) questionando a linhagem de
que ele descendia. Ver também Dias e Dias (1970,307).
17 Os antropólogos africanistas constataram, há muito, que a utilização das «autorida­
des nativas» pelas administrações coloniais colocava estas figuras em posições incómodas
- «intercalares» - (Gluckman, Mitchell e Bames 1949). Fadiman (1993) apresenta um re­
lato fascinante deste dilema, tal com o foi sentido pelos meras do Quénia.

167
K u piliku la

exercerem a sua autoridade sobre populações residentes em povoações


que, antes da conquista colonial, gozavam de autonomia.18
A pax lusitana produziu outros efeitos, ainda mais profundos, na es­
trutura social e nas instituições de autoridade das matrilinhagens macon-
des. Como Ndyankali sugeriu nas conversas connosco, o domínio por­
tuguês afrouxou, de diversas maneiras, os vínculos de solidariedade da
likola que unia os jovens aos anciãos da sua matrilinhagem. Em primeiro
lugar, a administração colonial proibiu, na região, o comércio de armas
de fogo, que era a forma de pagamento há muito usada pelas matrilinha­
gens para negociar os casamentos e regular as relações entre gerações. Si­
multaneamente, o domínio português eliminou a guerra entre matrili­
nhagens e, com ela, a dinâmica que tomara as armas essenciais para a
defesa e a reprodução da povoação, erradicando, deste modo, os perigos
que antes dissuadiam os subordinados de romperem com a autoridade
do chefe de uma povoação e irem fundar outra nova (ver também Dias
e Dias 1970,308).
Mais ainda, apesar de os homens jovens continuarem a depender dos
seus anciãos para acederem à terra, a época colonial ofereceu-lhes opor­
tunidades de ganharem os bens necessários para pagar o lobolo e cons­
tituírem famílias independentes. Os jovens descobriram estas oportuni­
dades, apesar de o regime laborai do colonialismo português ser
desfavorável. Na verdade, as perspectivas de ganhar um salário em Mo­
çambique eram, em geral, muito escassas. Os poucos colonos que ope­
ravam na região do plapalto empregavam menos de cinquenta trabalha­
dores cada um (Adam e Gentili, 1983,45). Vieira e Baptista, que geria o
Sindicato do Sisal de Mocímboa, pertencente a alemães (a que os ma-
condes chamavam Mpanga), próximo do planalto, empregava um con­
siderável número de trabalhadores, mas pagava-lhes uma ninharia.19
No entanto, os habitantes do planalto procuravam outras alternativas,
fugindo através da fronteira do rio Rovuma para a colónia, agora britâ­
nica, do Tanganhica, onde as relações laborais eram consideravelmente
mais favoráveis. Muitos emigrantes de Mueda encontravam emprego nas
plantações de sisal (que chegavam a pagar um salário sessenta vezes su­

18 Dias e Dias (1970,305) atribuem a diminuição do respeito popular pelas autoridades


gentílicas ao facto de a autoridade não ser exercida ao nível do regulado, no período pré-
-colonial, mas ignoram o m odo como a administração colonial também transformou a
natureza da autoridade exercida por estas figuras.
19 Os ex-trabalhadores do Mpanga com quem falámos recordavam que o cobertor, a
camisa sem mangas e os calções que lhes eram dados pela Companhia tinham mais valor
do que os salários que recebiam.

168
C onsum ir o trabalho e os seusprodutos

perior ao que auferiam os trabalhadores das plantações de sisal moçam­


bicanas; West 1997b, 106) e noutros lugares do Tanganhica (Egerõ 1974;
Alpers 1984). Um recenseamento de 1948 (citado em Alpers 1984,375)
contabilizou 27 489 «mawia» (macondes moçambicanos) com mais de
dezasseis anos de idade no território britânico - um valor substancial,
tendo em conta que o recenseamento moçambicano de 1950 situava em
136 079 o número total de macondes moçambicanos e em apenas 48 120
o número dos que viviam no planalto de Mueda (citado em Dias 1964,
16-17).
As condições materiais eram de tal modo melhores no Tanganhica,
que muitos migrantes por lá ficaram. O facto de passarem a residir per­
manentemente fora do planalto implicava uma desistência dos direitos
à terra que lhes eram assegurados pelo facto de viverem entre os seus pa­
rentes, nas zonas de onde eram originários. A mudança de residência
também os privava do acesso às redes sociais familiares, que os enqua­
dravam solidariamente em eventos que iam desde a iniciação dos jovens
até aos casamentos, as festividades (como a execução de música e a dança)
e as simples conversas do dia-a-dia, para não falar da ajuda mútua em
tempos de crise (por exemplo, empréstimos ou contribuições para as des­
pesas do funeral de um familiar falecido). Embora uma apreciável mino­
ria dos emigrantes permanecesse indefinidamente no Tanganhica, a maio­
ria regressou, a seu tempo, ao planalto de Mueda - uns ao fim de uma
temporada inferior a um ano e outros após mais de uma década ou duas.
Os jovens solteiros regressavam frequentemente a casa ao fim de alguns
anos, trazendo com eles a riqueza de que necessitavam para casar e cons­
tituir família.20 Muitos atravessavam a fronteira repetidamente, alter­
nando as temporadas de trabalho no exterior com prolongadas «visitas»
à família. Por fim, como veremos no capítulo 13, os jovens também aca­
baram por encontrar trabalho remunerado no planalto, nas missões ca­
tólicas que ali se estabeleceram no período colonial.
A riqueza daqueles que atingiram a maioridade no período colonial
assumiu novas formas, como muitos recordavam ao conversarem con­
nosco, décadas depois. Os trabalhadores que emigravam para o Tanga­
nhica gastavam os seus salários na compra de produtos que não estavam
disponíveis em Moçambique. Entre os artigos mais pretendidos figura­
vam as máquinas de costura, as bicicletas, os rádios, os sapatos, détermi-'

20 Ver também Harries (1993), que sugere que a migração laborai há muito constitui,
no Sul de Moçambique, uma espécie de ritual de passagem para o estatuto de chefe de
família economicamente independente.

169
K u piliku la

nados tipos de tecidos e vestuário, e armas de fogo.21 Segundo os antigos


trabalhadores migrantes e os antigos empregados de lojas com quem fa­
lámos, mesmo produtos básicos (incluindo tecidos, ferramentas, pratos,
panelas, sabão, açúcar e sal) a que os habitantes de Mueda há muito ti­
nham acesso, quer no litoral (através do comércio de caravanas anterior
à conquista), quer no planalto (depois de os comerciantes indianos se­
diados no litoral aí abrirem lojas), eram mais baratos e de melhor quali­
dade no Tanganhica. Os emigrantes aprenderam a comparar as marcas,
tanto de bicicletas, rádios e canivetes como de panelas, encontrando sem­
pre melhores preços do lado norte do rio Rovuma.
De acordo com alguns testemunhos orais, os migrantes que regressa­
vam ao planalto de Mueda traziam muitas vezes consigo bicicletas, que
podiam ser utilizadas nas deslocações entre povoações para visitar fami­
liares ou reforçar os laços comerciais. Também traziam rádios que lhes
permitiam acompanhar o que se passava no Tanganhica (e noutros luga­
res de África) através dos noticiários em swahili. Por vezes, regressavam
com máquinas de costura, com as quais se podiam estabelecer como al­
faiates na sua terra e obter rendimentos em numerário. Os migrantes que
retomavam costumavam trazer consigo grandes sacos cheios de roupas
novas e bonitas, compradas com as suas poupanças dos salários recebidos
nas plantações. As pessoas que trabalharam nas missões católicas da re­
gião do planalto contaram-nos, anos mais tarde, que seguiam o exemplo
dos migrantes laborais regressados, atravessando a fronteira, quando po­
diam, para comprar essas cobiçadas mercadorias com os seus salários.
Alguns destes jovens dispunham dos seus bens da mesma forma que
os seus antepassados tinham disposto das armas de fogo, do ferro e do
tecido que obtinham no comércio de caravanas no litoral, quando eram
jovens, ou seja, entregavam-nos aos chefes das suas povoações ou aos
seus vanjomba (tios matrilineares). «Os jovens esbanjariam essa riqueza»,

21 Alguns destes bens, como as bicicletas e as máquinas de costura, em breve passaram


a poder ser adquiridos nas lojas construídas no planalto por comerciantes indianos esta­
belecidos no litoral. Mesmo assim, os preços eram muito melhores no Tanganhica. Os
testemunhos orais indicam que, em meados da década de 1940, por exemplo, um traba­
lhador emigrado no Tanganhica podia comprar uma bicicleta por 250 a 350 xelins. Em
Moçambique, no mesmo período, uma bicicleta custava entre 1250 e 1500 escudos.
Tendo em conta as taxas de câmbio (isto é, uma libra valia 100 escudos em 1946), o nível
de preços era quase o mesmo, mas a qualidade das bicicletas disponíveis no Tanganhica
era substancialmente superior, o que significa que as mais baratas que lá podiam ser com­
pradas eram comparáveis às mais caras adquiridas em Moçambique. As máquinas de cos­
tura custavam 300 xelins a norte do rio Rovuma e 3000 escudos a sul, apesar de serem
de pior qualidade.

170
Consum ir o trabalho e os seus produtos

disseram-nos, muitas vezes, os anciãos, reflectindo sobre o tempo em


que tinham sido jovens; «o chefe de povoação sabia utilizá-la convenien­
temente».
Claro que os chefes de povoação também raramente poupavam aquilo
que lhes era dado. Porém, esses anciãos, apesar de «comerem» as riquezas
dos emigrantes que regressavam, também as utilizavam para «alimentar»
as suas populações. Ao fazê-lo, aumentavam o seu capital simbólico e
consolidavam a sua influência sobre a matrilinhagem. Os jovens que for­
neciam estes bens aos seus anciãos eram respeitosamente considerados
como wakukamalanga (provedores), à semelhança do que há muito acon­
tecia com os caçadores competentes. Recordando o seu regresso ao pla­
nalto com bens que entregou ao chefe da sua povoação, um homem
com quem falámos comentou: «Nós éramos tratados como ‘salvadores’
da povoação.» Esses actos acabavam por trazer benefícios palpáveis: os
anciãos reservavam pedaços das suas próprias terras para esses jovens e
asseguravam o pagamento do lobolo.
N o entanto, este cenário não era universal nem historicamente durá­
vel. Muitos dos bens que os emigrantes regressados traziam consigo não
eram fáceis de partilhar. As bicicletas, por exemplo, não podiam ser di­
vididas, mas apenas emprestadas. Só pessoas com alguma formação sa­
biam utilizar uma máquina de costura de forma produtiva, e o dinheiro
que se podia ganhar com uma máquina dessas era fácil de ocultar: até os
sacos de roupas escapavam frequentemente ao controlo redistributivo
do chefe de povoação. Os padrões variaram de povoação para povoação
e ao longo do tempo, mas a prática de repatriar a riqueza para o planalto
tomou-se mais familiar, assumiu uma lógica própria, segundo contam as
pessoas que se recordavam dessa época. Os jovens começaram a redistri­
buir, eles próprios, os bens que traziam consigo, oferecendo simples pre­
sentes aos seus familiares mais próximos e a outras pessoas cujas boas
graças desejavam conquistar. E começaram a guardar á parte de leão. Al­
guns iniciaram até pequenos negócios - comprando produtos no Tan-
ganhica e revendendo-os em Moçambique - para multiplicar a sua ri­
queza.
Uma vez que os jovens já podiam aceder directamente aos bens ne­
cessários para pagarem as noivas e constituírem família, começaram a
preocupar-se bastante menos em pôr «carne» nos pratos dos seus anciãos.
Apesar de os anciãos da likola manterem o controlo sobre as terras, mui­
tos homens jovens podiam satisfazer uma maior parcela das suas neces­
sidades através de outras actividades inseridas na economia monetária.
Além disso era, pela primeira vez, possível obter terras no planalto de

171
K u piliku la

Mueda mediante o pagamento de uma «renda» a proprietários não per­


tencentes à família. Os emigrantes laborais que regressavam e os empre­
gados das missões revelaram-se, assim, capazes de se «alimentar a si pró­
prios» em maior número e numa idade mais jovem do que acontecera
com os seus anciãos. Quando alimentavam outras pessoas, cultivavam a
sua própria clientela, em vez de procurarem captar as boas graças destes
últimos.
Um homem chamado Lázaro Nkavandame consubstanciou esta nova
geração de jovens empreendedores. Filho de um capitão-mor de nome
Nkavandame, do regulado de Ndyankali, Lázaro trabalhou durante mui­
tos anos como capataz nas plantações do Tanganhica, antes de se lançar
no comércio transfronteiriço numa escala significativa. Nos finais da dé­
cada de 1950, Lázaro criou várias «cooperativas» agrícolas na região de
Mueda, cujos membros foram isentados pelos portugueses de outras for­
mas de recrutamento de mão-de-obra. O êxito das cooperativas de Lá­
zaro, tanto em termos de rendibilidade como de aumento do número
de membros, pôs em causa o papel monopolístico das autoridades gen­
tílicas como intermediárias no fornecimento local de mão-de-obra (Isaac-
man 1982; Adam e Gentili 1983; West 1997b, 128-137). Não admira que
o comportamento desses jovens fosse frequentemente considerado por
esses anciãos como uma forma de «provocação» (ushaka) e/ou de «ambi­
ção» (shojo), que desafiava a autoridade legítima.
Não só os jovens empreendedores da geração de Lázaro eram frequen­
temente acusados de «comerem sozinhos», como se dizia que os feitiços
circulavam desenfreadamente entre estes jovens de apetite voraz e em
tom o dos objectos que constituíam a sua riqueza sem precedentes.
A maioria das pessoas considerava as novas formas de riqueza que surgiam
com crescente regularidade como objectos neutros, muito à semelhança
do modo como, há muito, encaravam as substâncias mágicas (mitela). No
entanto, esses objectos concentravam as preocupações da sociedade. Re-
conhecia-se que estes novos artefactos de poder - quer se tratasse de bici­
cletas ou máquinas de costura compradas no estrangeiro, quer de ferra­
mentas ou livros recebidos nas missões católicas - podiam enriquecer a
comunidade, sendo até necessários para a sua reprodução social num
mundo em mudança. Simultaneamente, eram também vistos como po­
tencialmente perigosos, caso fossem utilizados para fins egoístas.
Em qualquer dos casos, à medida que os habitantes do planalto utili­
zavam o esquema interpretativo da uwavi para decifrar o modo como o
poder operava através destas novas formas de riqueza, e nos momentos
históricos que as produziram, esse esquema foi-se transformando junta-

172
Consum ir o trabalho e os seusprodutos

mente com os contextos sociais em que era invocado. Ao mesmo tempo


que os atributos de poder proliferavam no reino visível, o mesmo acon­
tecia com os atributos de poder no reino invisível. As pessoas observavam
novas formas de feitiçaria e atribuíam-nas a novos tipos de feiticeiros.22
Os habitantes do planalto de Mueda interrogavam-se e discutiam entre
eles se o poder no reino invisível reflectia ou refractava o poder no reino
visível, avaliado por estas novas formas de riqueza - se, de um modo
geral, eram os ricos ou os pobres que praticavam a uwavi. Quando os
migrantes regressados sofriam infortúnios sob a forma de doenças ou es­
banjamento da riqueza, normalmente suspeitavam dos vizinhos e fami­
liares invejosos, que nunca tinham ido além do planalto, acusando-os
de os atacar para destruir os seus projectos «progressistas» de promoção
pessoal - de estarem a tentar «devorá-los». Por outro lado, os habitantes
da povoação suspeitavam, de um modo geral, que, durante o tempo pas­
sado no estrangeiro, os migrantes tinham adquirido apetites insaciáveis
que só podiam satisfazer na ferra natal através do consumo da carne de
familiares e/ou vizinhos, e que estes retomados tinham aprendido espé­
cies exóticas de mitela com os estranhos entre os quais trabalharam, mitela
essas que agora lhes permitiam proteger-se a si mesmos e aos seus bens -
ou seja, «comer sozinhos».

22 Lindenbaum (1979,74) sugere que os fores, das terras altas da Nova Guiné, passaram
por uma proliferação semelhante das formas de feitiçaria após o contacto colonial.

173
Capítulo 11

O cristianismo e a tradição maconde


*

«Quando o meu pai soube que os padres estavam a ensinar as pessoas


a ler e a escrever, foi para Nang’ololo estudar com eles», contou-nos Luís
Gabriel Mbula. «Muitas pessoas estavam interessadas em aprender a ler
e a escrever, mas muito poucas estavam entusiasmadas com o catoli­
cismo.»
Mbula sorriu largamente, parecendo avassalado pelas recordações.
«As pessoas costumavam dizer que aqueles que aceitavam os padres
acabavam a puxar pelo Sol.»
Olhei para Mbula interrogativamente.
«Os macondés acreditavam que os raios do Sol eram cordas. Os que
se tivessem portado mal eram condenados a puxar, todas as noites, o Sol
por essas cordas, de um lado do mundo para o outro. Ninguém queria
ser cristão!»
Luís Gabriel Mbula nasceu em 1924. Nesse mesmo ano, os padres
Alain Lebreton e Emile Martin chegaram ao planalto de Mueda, vindos
de uma missão fundada apenas dois anos antes pela Ordem de Montfort
entre os macuas, em N am uno.1Segundo Lebreton, os portugueses pro­
curavam, na altura, «contrabalançar a influência» das missões protestantes
britânicas já instaladas na região do lago Niassa e estavam, especifica­
mente, interessados em que fosse construída uma missão entre os ma-
condes «recém-subjugados», que continuavam «reffactários à civilização»
(Lebreton e Vloet, s. d., 1). Do mesmo modo que a nação portuguesa,
pobre em capitais, era obrigada a recorrer a concessionários estrangeiros
para investirem nos seus territórios coloniais, também era forçada - de­
vido à pobreza e ao analfabetismo generalizados da sua própria populà-*

' Os missionários de Montfort (também vulgarmente denominados «Companhia de


Maria») são uma das três congregações católicas fundadas em França n o início do século
xviii por Louis-Marie Grignion de Montfort (canonizado em 1947).

175
K u piliku la

ção maioritariamente católica - a procurar a ajuda de ordens católicas es­


trangeiras para cumprir os seus objectivos evangélicos nesses mesmos ter­
ritórios. Lebreton e Martin eram franceses, tal como o fundador da
ordem a que pertenciam..
Com a ajuda de um chefe de posto da Companhia do Niassa, estes
dois missionários de Montfort escolheram um sítio próximo da actual
aldeia de Lutete e, em 24 de Novembro de 1924, fundaram a missão do
Sagrado Coração de Jesus dos Macondes. Como a nascente de água pró­
xima do sítio da missão se revelou imprópria, alguns meses depois, os
missionários pediram autorização para mudarem a missão para um local
situado muito acima das águas despoluídas do rio Ng’undi, mas a uma
distância que se podia percorrer a pé. Seguindo as instruções do admi­
nistrador de posto, Shiebu, o nangolo nvwene shilambo local, identificou
um terreno com 2000 hectares que a missão podia utilizar (Lebreton e
Vloet s. d., 25). A seu tempo, os missionários descobririam que o lugar
onde moravam se chamava «Nang’ololo», nome dado aos seus residentes,
«aqueles que gostam de comer galinhas do mato».
Os funcionários da Companhia deram instruções aos capitães-mores
em redor da missão para fornecerem aos missionários pessoas capazes de
os ajudarem a erguer quatro paredes e um tecto e a providenciar alimento.
Os missionários pagavam à Companhia os impostos de palhota devidos
por cada um dos trabalhadores, «adquirindo», assim, direitos ao seu tra­
balho (Cazzaninga 1994, 37). Além disso, pagavam salários às pessoas
que trabalhavam para eles: 20 escudos por mês a cada homem, 12 escu­
dos a cada mulher e 8 escudos a cada criança (Lebreton e Vloet s. d., 5).
Apesar dos salários, os habitantes locais pareciam encarar o trabalho para
os missionários de forma muito semelhante ao modo como viam o tra­
balho para a Companhia do Niassa ou para os proprietários das planta­
ções de sisal, que normalmente utilizavam a sua mão-de-obra. Lebreton
reconheceria, no seu diário: «Ao vê-los a trabalhar, dir-se-ia que eram pri­
sioneiros de guerra» (Lebreton e Vloet s. d., 3).
Durante os primeiros meses passados no planalto, os padres de M ont­
fort tentaram iniciar o trabalho de instrução e evangelização dos seus tra­
balhadores, mas com fracos resultados. Lebreton observou que o pouco
interesse que eles demonstravam pelas suas aulas apenas visava «evitar o
trabalho» (Lebreton e Vloet s. d., 3). A fim de atraírem à missão jovens
que estudassem com eles, os missionários ofereciam vários presentes, in­
cluindo tigelas de cereais e, mais tarde, tecidos. A frequência das aulas
aumentava e diminuía consoante o sortido de ofertas de que a missão
dispunha (6). Os esforços dos missionários para ensinar orações e hinos

176
0 cristianism o e a tradição maconde

eram, todavia, frustrados por uma barreira linguística aparentemente in­


transponível (7).
As relações entre a missão e a população circundante mantiveram-se
tensas. Os missionários interpretavam os repetidos furtos dos armazéns
e as misteriosas mortes de animais nos currais da missão como sinais de
hostilidade local. Lebreton refere que a maioria dos chefes de povoação
encorajava os membros das suas matrilinhagens a manterem-se afastados
da missão, fosse para trabalhar ou para estudar.
Na sua viagem para o planalto de Mueda, os padres de Montfort ti­
nham sido acompanhados por dois cristãos nyangas, Alfredo e Carlos,
oriundos de uma congregação de Montfort situada na Niassalândia (Caz-
zaninga 1994,19). Estes homens possuíam apenas conhecimentos rudi­
mentares de emakua2 e desconheciam totalmente o shimakonde. Mesmo
assim, foi-lhes atribuída a tarefa de auxiliarem os missionários como in­
térpretes.
Quase dois anos depois de chegarem ao planalto, os missionários
adoptaram uma nova táctica na sua campanha de evangelização, en­
viando Alfredo à povoação de Shiebu para organizar aulas de catequese
ao ar livre para jovens do sexo masculino (Lebreton e Vloet s. d., 28).
A iniciativa teve algum êxito, atraindo, em média, quinze estudantes.
Entre os alunos de Alfredo estava o pai do nosso entrevistado (Luís), Ga­
briel Mbula.
Nos anos seguintes, os padres de Montfort chamaram vários outros
catequistas africanos de Namuno para Nang’ololo, espalhando-os pelas
povoações em redor da missão. Em alguns casos, os chefes de povoação
apoiaram estas iniciativas, chegando, por vezes, a frequentar eles próprios
as aulas. Nalgumas povoações, a frequência aumentava e diminuía con­
soante as épocas agrícolas. Noutras, ao interesse inicial seguia-se um co­
lapso total da frequência, reflectindo a opinião favorável ou desfavorável
dos habitantes acerca do funcionamento das aulas.
Embora os habitantes das povoações demonstrassem um interesse di­
fuso e esporádico pela catequese, geralmente guardavam distância em re­
lação à missão propriamente dita. A frequência «escolar» nesta última era
variável, mas de vez em quando ficava reduzida a um ou dois alunos.
Os missionários também tinham sempre enorme dificuldade em recrutar
e conservar os trabalhadores necessários para executarem os trabalhos'
correntes de construção e produção agrícola da missão.

2 O emakua é a língua falada pelos macuas.

177
K u piliku la

Se a pregação e o ensino não conseguiram atrair os habitantes do pla­


nalto, o duro regime laborai colonial acabou por fazer com que eles se
aproximassem da Igreja. Em 1928, o governo colonial emitiu uma nova
lei do trabalho que proibia a utilização do trabalho chibalo nas empresas
privadas, mas exigia que todos os africanos produzissem uma cultura co­
mercial num hectare das suas terras ou cumprissem um contrato de tra­
balho de três meses. Em comparação com as obras nas estradas ou os
contratos de trabalho para o Sindicato do Sisal de Mocímboa, o trabalho
na missão era atraente, visto que ela não só oferecia condições de trabalho
muito melhores, como pagava mais. Além disso, como todo o trabalho
contratado, também isentava os trabalhadores de pagar imposto (ao con­
trário da produção de culturas comerciais). Em resultado da nova lei, a
mão-de-obra da missão estabilizou, possibilitando os trabalhos de cons­
trução e subsistência da mesma, ao mesmo tempo que oferecia aos mis­
sionários uma audiência cativa para a sua evangelização.
Em Maio de 1928, a missão baptizou os seus dois primeiros «conver­
tidos»: «Pedro» Mwakala (da povoação de Shiebu) e «Paulo» Nciune (da
povoação de Mwoho, situada nas terras baixas).3 No entanto, a frequên­
cia da escola da missão continuava a não chegar à dezena de alunos e a
maioria deles abandonava as aulas ao fim de menos de um ano. Embora
muitos habitantes do planalto tivessem acabado por aceitar a presença
dos missionários e alguns aproveitassem as vantagens de trabalhar para
eles, ainda poucos estavam dispostos a abraçar «o caminho, a verdade e
a vida» de que os padres falavam.
Na sua descrição da evangelização cristã, no século xix, entre os tswa-
nas da África do Sul, John ejean ComaroflF(1997,198-251) sugerem que,
devido a uma predisposição relativista, que admitia a possibilidade de
muitos caminhos e muitas verdades, os tswanas tendiam a contemplar
as novas ideias e práticas a que os missionários os expunham da mesma
forma como desde há muito consideravam e, por vezes, adoptavam, as
ideias e práticas dos seus vizinhos africanos. Os Comaroff sugerem, na
verdade, que, antes do encontro com os missionários europeus, as linhas
que dividiam os tswanas dos seus vizinhos eram relativamente fluidas.
Os missionários cristãos junto dos tswanas manifestavam, todavia, a con­
vicção de que «tinham trazido as verdades exclusivas da civilização aos

3 Peei (2000, 249) argumentou, convincentemente, que é com grande incerteza que
discernimos a convicção religiosa nas manifestações práticas da crença; a «conversão»,
segundo sugere, só pode ser definida como a adopção de uma identidade social. Por con­
seguinte, coloca os termos «conversão» e «convertido(s)» entre aspas.

178
0 cristianism o e a tradição maconde

nativos, verdades essas que expurgariam, inevitavelmente, os costumes


pagãos existentes» (225). Face a esta inflexibilidade cosmológica, as ideias
e práticas dos Outros dos missionários cristãos cristalizaram-se em «tra­
dições» distintas que os missionários consideravam obstáculos a vencer
- divergências a eliminar - na campanha para «converteu» e, logo, salvar
os pagãos tswanas (244-245).
Perspectivas e predisposições semelhantes animaram o encontro entre
os macondes e os padres de Montfort, em Nang’ololo. A certeza inabalá­
vel dos missionários no «único caminho verdadeiro» não só conferiu à
«tradição maconde» um relevo muitíssimo maior do que os habitantes do
planalto algum dia lhe tinham dado, como identificou, simultaneamente,
essa tradição como transviada.4 Os missionários esperavam que os habi­
tantes do planalto que desejavam tomar-se cristãos cumprissem as proibi­
ções rigorosas relativas a várias «tradições» macondes. Numa medida que
estava longe de ser insignificante, esperava-se que eles deixassem de ser
macondes. Esta era uma escolha que poucos conseguiam sequer conceber
e com a qual menos ainda estavam dispostos a comprometer-se.
Reflectindo sobre essa época - uma época em que ainda não se tomara
cristão - o ancião Emiliano Simão Ncimi contou-nos: «O problema era
a poligamia. Os homens não queriam ser baptizados porque não queriam
desistir da oportunidade de terem mais de uma mulher. Os padres obri­
gavam os homens cristãos a desistir das suas segundas esposas. Só podiam
ter uma esposa.» Inúmeros homens idosos, tanto cristãos como não cris­
tãos, disseram-nos também que a condenação da poligamia pelos mis­
sionários era um dos maiores entraves à conversão ao cristianismo.
A poligamia não era, porém, a única tradição maconde condenada
pelos missionários - nem o único entrave à «conversão». Eles também
pregavam contra o lih m b i e o ing’oma (ritos de iniciação masculinos e
femininos, respectivamente) e contra o mapiko (danças que se costuma­
vam realizar para celebrar a passagem por esses rituais, mas que também
tinham lugar noutros contextos festivos).
Luís Gabriel Mbula, que viria a ser um dos primeiros habitantes do
planalto baptizados na missão, contou-nos que tinha ido para a escola
da missão sem ter passado pela iniciação.
«Era uma coisa muitíssimo difícil para nós, e um grande obstáculo à
evangelização para a Igreja.»
Mbula segurava a sua Bíblia, enquanto falava connosco.

4 Ver também Meyer (1992, 98).

179
K u piü ku la

«Naquele tempo, as pessoas que não tinham passado pela iniciação


não eram consideradas adultas - ainda não eram totalmente humanas.
Chamava-se a um homem não iniciado ncungu e a uma mulher não ini­
ciada namako. Se essas pessoas casassem, eram censuradas por todos.»
Mbula desviou o olhar de nós. Na sua indignação, partilhava de algum
modo os sentimentos que as suas palavras criticavam.
«Se uma namako desse à luz uma criança», continuou Mbula, «consi­
derava-se que era um acontecimento horrível.»
Mbula prosseguiu, contando-nos que os primeiros convertidos da mis­
são já tinham, na sua maioria, passado pela iniciação quando começaram
a preparar-se para o baptismo pela Igreja. Os primeiros a renunciar a esses
rituais antes de serem baptizados, obedecendo às instruções da missão,
foram um jovem chamado Ludovico Mitema e uma jovem chamada
Bendita Mpalume. Estes dois jovens, disse-nos Mbula, tomaram-se ob-
jecto de grande hostilidade social. Algumas pessoas ameaçaram-nos de
morte, enquanto outras passaram simplesmente a tratá-los como crianças
perpétuas.
Ludovico, disse-nos Mbula, foi excluído dos conhecimentos próprios
dos homens, habitualmente adquiridos nos rituais de iniciação - conhe­
cimentos esses que incluíam o segredo de que os dançarinos de mapiko
não eram espíritos, mas simples homens disfarçados. Devido à sua «ig­
norância», Ludovico foi então ridicularizado. A Bendita, foi recusado o
aconselhamento das mulheres mais velhas a respeito do seu amadureci­
mento sexual. Quando ficou grávida do marido, Mateus Mwani, disse­
ram-lhe que o filho seria um shitumbili (termo que designa as protube­
râncias que crescem nos troncos das bananeiras selvagens) e que teria de
dar à luz sozinha, na floresta, onde ela e o seu bebé morreriam.
Outras pessoas com quem falámos disseram-nos que os habitantes do
planalto que aceitassem o baptismo, fosse qual fosse a sua idade, tinham
ainda de enfrentar outros problemas. A Igreja impedia os membros da
sua congregação de assistirem às matanga (cerimónias que assinalavam o
aniversário da morte de um membro da família) e de praticarem a kuli-
pudya (súplica aos antepassados) - os dois rituais essenciais para manter
as relações com os antepassados, os quais traziam boa sorte quando eram
recordados e sofrimento quando eram ignorados. Como Kalamatatu nos
informou, as pessoas dirigiam-se aos seus antepassados directamente:
«‘S h o n d e dizíamos nós, para chamar a atenção de um antepassado.
‘Njomba [tio], auxilia-me, ajuda-me. Quando tiver êxito, virei agradecer-
-te.’ E assim fazíamos. Quando obtínhamos o que tínhamos pedido, co­
zinhávamos ugwali e convidávamos o nosso antepassado a vir partilhá-

180
0 cristianism o e a tradição maconde

-la connosco. Chamávamos a isso ‘sadaka\ para lhes agradecer.» Como


Emiliano Simão Ncimi nos informou, a Igreja punha esta prática em
causa: «Os padres perguntavam-nos: ‘Deus não nos fez a todos? Como
podem os filhos de Deus orar uns aos outros, pedir estas coisas uns aos
outros? Cada um de nós deve pedir a Deus directamente. Só ele pode
atender as nossas preces.» Aqueles que obedeciam às proibições da Igreja
relativas à kulipudya e às matanga enfrentavam uma forte condenação so­
cial. Correram rumores pelo planalto, tanto entre cristãos como entre
não cristãos, de que os antepassados dos cristãos apareciam, por vezes, a
vaguear em redor das povoações dos seus descendentes, com fardos enor­
mes à cabeça. A censura aos cristãos era clara.
Com o tempo, porém, o tom do encontro entre os macondes e os pa­
dres de Montfort acabou por se alterar subtilmente. Mais uma vez, a po­
lítica colonial produziu efeitos inesperados. Devido à crescente inquie­
tação que os interesses franceses nas colónias africanas de Portugal
despertavam nos portugueses, a administração colonial de Moçambique
começou a manifestar uma progressiva hostilidade contra os cidadãos
franceses que trabalhavam em missões como a de Nang’ololo. Em 1928,
os padres de Montfort franceses que viviam em Moçambique foram subs­
tituídos por missionários holandeses da mesma ordem. O primeiro padre
de Montfort holandês em Nang’ololo, o padre Piet Kok, adoptou uma
atitude mais liberal do que os seus antecessores franceses face à tradição
maconde. Poucos meses após a sua chegada, Kok já produzira um dicio­
nário shimakonde-português e um catecismo em língua shimakonde (Le-
breton e Vloet s. d., 50; Cazzaninga 1994,41). Encantada com o trabalho
de Kok, a administração portuguesa ajudou a Igreja a imprimir exempla­
res destes textos para serem usados na missão. O interesse do padre Kok
pela língua shimakonde era apenas uma manifestação do seu interesse
mais geral pela cultura e a sociedade macondes. Kok e muitos dos mis­
sionários holandeses que o seguiram até ao planalto iniciaram um «diá­
logo» mais aberto (Comaroff e Comaroff 1991,198-251) com os seus ha­
bitantes sobre o significado das respectivas tradições.
Augusto Shilavi, um católico devoto do planalto de Mueda, contou-
-nos aquilo que os seus antepassados lhe disseram: «No princípio, os padres
não entendiam a nossa cultura. Os rituais de iniciação, as danças mapiho,
os ritos funerários - condenavam estas coisas e proibiam os cristãos de par­
ticiparem nelas. Mais tarde, reflectiram melhor sobre esses assuntos.»
Outro católico devoto, o ancião Lucas Ng’avanga, recordou: «Os pa­
dres não estavam a chegar a lado nenhum connosco, macondes. Não
aceitávamos todas aquelas proibições. Por isso, estudaram essas coisas e

181
K u piliku la

Lucas N g’avanga foi uma das primeiras pessoas que conheci em Mueda. Encon­
trei-me com ele na sua casa, em Pemba, para onde se mudara para estar próximo
da família, incluindo a filha, Angela, uma freira da Igreja Católica. N g’avanga
era um respeitado ancião da com unidade m aconde de Pemba. Marcos exortou-
-me a visitá-lo com frequência, m esm o que não tivesse nada específico para tratar.
Inicialmente, senti relutância em passar demasiado tem po com uma única pes­
soa, pois considerava necessário obter o maior núm ero possível de perspectivas
sobre as muitas questões que m e interessavam na m inha investigação. Por fim,
acabei por entender que as visitas regulares a anciãos com o N g’avanga eram uma
maneira fundamental de demonstrar respeito. À medida que a m inha relação
com N g’avanga amadurecia, descobri uma grande satisfação em passar tem po
com ele, deixando que as nossas conversas divagassem sem rumo definido.

consultaram o papa. O papa disse-lhes que algumas delas estavam bem.


Então chegámos a um entendimento mútuo.»

182
0 cristianism o e a tradição maconde

Quer as reflexões da Igreja sobre a «tradição maconde» tivessem che­


gado ao nível do Vaticano quer não, a mudança de perspectiva da Igreja
foi notória para todos os que viviam nas redondezas da missão de
Nang’ololo. O sinal talvez mais surpreendente da reforma da Igreja foi a
decisão que a missão tomou de organizar e realizar os seus próprios «ritos
de iniciação».
Luís Gabriel Mbula contou-nos: «Os padres Wevers e Gebhard con­
vocaram todos os cristãos de Nang’ololo e perguntaram-nos por que éra­
mos tão poucos. Respondemos que era por causa da questão dos rituais
de iniciação.» Mbuka bateu insistentemente na mesa que tínhamos na
frente, enqjaanto recordava o efeito produzido pelas suas palavras e as
dos outros cristãos macondes nos missionários: «Eles disseram: cSe não
mudarmos, os macondes não virão para a Igreja5. Por isso, nesse ano, a
Igreja decidiu realizar os seus próprios rituais. Quando as pessoas soube­
ram disso, ficaram contentes.»
A missão iniciou trinta e três rapazes e três raparigas no primeiro ano;
entre os iniciados estavam Ludovico Mitema, Bendita Mpalume e o pró­
prio Luís Gabriel Mbula. Para prepararem estas cerimónias, disse-nos
Mbula, os missionários consultaram vanalombo (especialistas em inicia­
ções) locais, retirando dos complexos rituais «tradicionais» as práticas que
consideravam incompatíveis com a doutrina da Igreja.5 Mbula explicou-
-nos: «Normalmente, os rituais de iniciação incluíam canções sobre as
relações sexuais - canções que são insultuosas e obscenas. Algumas dessas
canções foram eliminadas. Além disso, normalmente, davam-se aos ini­
ciados alimentos com malumyo - certos tipos de substâncias medicinais
- para os proteger, mas essa prática também foi eliminada por ser consi­
derada ‘suja5. Os rapazes costumavam praticar o acto sexual com um
fruto lipudi muito maduro, mas não nos rituais da Igreja.» Soubemos,
noutro sítio, que a prática tradicional de desfloração ritual das iniciadas
também fora eliminada desses rituais. Apesar de incorporarem a doutrina
da Igreja sobre a entrada na idade adulta, o casamento e a educação dos

5 Pels (1999,115-157) narra pormenorizadamente com o os missionários cristãos entre


os lugurus, que também patrocinavam rituais de iniciação, tentaram excluir, similarmente,
algumas as práticas iniciáticas (135). Ellis (1999a, 241) narra com o o governo colonial
britânico na Libéria organizava rituais de iniciação que omitiam todas as práticas asso­
ciadas às Sociedades do Leopardo (que se dizia estarem por detrás dos assassínios rituais
encenados à maneira dos leopardos). Ver também em Fadiman (1993,205-228) uma des­
crição de com o os missionários que trabalhavam entre os merus do Quénia adoptaram
selectivamente a «tradição» local.

183
K u piliku kt

filhos nas lições tradicionalmente ministradas durante este período de


isolamento, os missionários comportavam-se, em muitos aspectos, exac-
tamente como os mestres dos rituais macondes teriam feito, visitando os
iniciados no mato, onde permaneciam isolados na fase mais longa dos
rituais (Cazzaninga 1994,131).6
Os padres adoptaram também uma nova posição em relação às danças
mapiko e permitiram que fossem dançadas no recinto da igreja, mas in­
formaram os espectadores a respeito do seu segredo. «O padre Guillaume
Meeis costumava levar o dançarino de mapiko para a cerimónia no banco
de trás da sua motorizada», contou-nos Luís Gabriel Mbula. «Ocasional­
mente, até tocava os tambores para a dança»; Mbula riu-se e acrescentou:
«não muito bem!» 7 Segundo Marcos, que era aluno da missão no início
da década de 1960, o padre Meeis expunha uma máscara de mapiko no
seu gabinete para que todos os que entravam a vissem - homens ou mu­
lheres, anciãos ou jovens -, como prova de que os mapiko eram homens
mascarados.
Os missionários também organizavam rituais funerários - cerimónias
em memória do defunto que vieram a ser chamadas matanga do cristão
ou ipesta (uma transliteração maconde do termo português «festa»).
Tão importante como as concessões da Igreja no tocante aos ritos de
iniciação, às danças mapiko e aos rituais funerários foi a sua subtil mu­
dança de atitude face aos rituais de súplica aos antepassados Çkulipudya).
Simoni Matola contou-nos, noutra ocasião:
«Costumávamos acreditar que, quando as pessoas morriam, não aca­
bavam. Continuavam a viver, do outro lado. Chamávamos-lhes mahoka.
Quando os padres nos perguntavam o que é sai do corpo quando uma
pessoa morre, nós respondíamos-lhes isto: lyoka [sing.].8 Então eles di­
ziam, ‘Então pronto, essa é a vossa alma.’»

6 Pels (1999,7) alega que a «iniciação» constitui uma metáfora melhor para a evange­
lização cristã em África do que a «conversão». Os padres de Montfort holandeses toma­
ram esta metáfora de forma literal.
7 Pels (1999,136) documenta o m odo como os missionários entre os lugurus tentaram
substituir os ritmos africanos por outros que consideravam mais adequados às sensibili­
dades cristãs. Os padres de Montfort em Nang’ololo ensinaram, igualmente, hinos euro­
peus à sua congregação, mas também parecem ter demonstrado maior tolerância em re­
lação aos ritmos afiicanos do que os missionários sobre quem Pels escreve. Neste aspecto,
o seu comportamento assemelha-se mais ao dos missionários que trabalharam entre os
huwesas e descritos por Maxwell (1999,92).
8 O mesmo termo é alegadamente usado para denominar o espírito ancestral entre os
pogoros (M. Green 1994,32; 1997,331) e os benas (Mombeshora 1994,75) da Tanzânia.

184
0 cristianism o e a tradição maconde

Augusto Shilavi disse-nos: «Antigamente, acreditávamos que os espí­


ritos dos mortos andavam pela povoação durante algum tempo. Por isso,
necessitávamos de os apaziguar. Os padres explicaram-nos simplesmente
que esta permanência se chamava purgatório.»
Os missionários «traduziram», de modo semelhante, o conceito ma­
conde de nungu., um criador distante e entendido de forma vaga (ver Dias
e Dias 1970,384), numa divindade monoteísta. Os padres acabaram por
incentivar os habitantes do planalto a pensarem nos seus antepassados
como estando «perto de Nungu». Quando eles se dirigiam aos defuntos,
habituaram-se a referir-se-lhes exactamente dessa forma. «Dizíamos, Tu,
que estás perto de Deus’, e depois falávamos como fazíamos antes», con-
tou-nos Matola.
Com o passar do tempo, tanto os habitantes de Mueda como os pa­
dres de M ontfort acabaram por se referir aos antepassados de forma
muito semelhante à usada para falar dos santos, capazes de interceder
junto do Todo-Poderoso em nome daqueles que invocavam os seus
nomes (ver também Dias e Dias 1970, 356).9 Ao que parece, de vez em
quando, os missionários ainda iam mais longe. Shilavi contou-me que,
quando a água começou a infiltrar-se nos alicerces de um edifício da mis­
são que estava a ser construído, os missionários chamaram o ancião
Shiebu e pediram-lhe para solicitar a bênção do seu antepassado - o guar­
dião espiritual da terra - para o projecto. Depois de Shiebu fazer o que
lhe pediam, acrescentou Shilavi, o problema ficou resolvido.
Nos anos que se seguiram à adopção de uma atitude mais liberal face
à «tradição maconde», por parte da missão, surgiu uma comunidade cristã
pequena mas estável, que acabou por estabelecer a sua própria povoação
junto da missão. Em lugar de uma identidade lihola, chamavam-lhes, lo­
calmente, «vamissau» (gente da missão) (Cazzaninga 1994,150).
Também foram construídas casas em terrenos da missão, nas quais vi­
viam os catecúmenos durante o período da sua formação (que podia de­
morar dez anos). O número de catequistas diplomados aumentou lenta­
mente para cerca de uma dezena por ano. Pedro Mwakala e Paulo
Nciune, que foram baptizados em 1928, junto com o grupo de dez pes­
soas baptizadas em 22 de Dezembro de 1932, formaram os primeiros
«doze discípulos» de Nang’ololo. Por sua própria iniciativa, estes doze
discípulos tinham começado a «recrutar» pessoas para a Igreja, desde o
tempo dos padres de M ontfort franceses, procurando impedir, desta

9 Ranger (1992,280-281), Beidelman (1993,113) e Maxwell (1999,92) contam que os


missionários incentivaram transposições semelhantes noutras regiões de África.

185
K u piliku la

M ap a 3
R egulados e m issões de M on tfort n a ép oca colon ial

1. N am unda 8. S hikadera 1 5 .M b o m e la 2 2 .N k a p o k a 29.K avanga


2. K itam a 9. N y an y an g a la lé .S liip u n g u 2 3 .N a e n g o 3 0 .N ek eu ti
3. N konga lO .S h iru m u 17. M a sa n g a n o 2 4 .L ik o m an tili 3 1 .N g ’o n d o
4. L in g o l l.M ta m b a 1 8 .L id im u 2 5 .M a h o m w e 3 2 .N k w em b a
5. S h ik u n g o 1 2 .K u item a 19.M bavala 2 6 .N c im g a m a 33.L iguili
6 N an g ad e 1 3 .M e tu tu ra a 2 0 .S hilavi 27. S h o m b o 3 4 .N a p u la
7. S hikali 14.M balale 2 1 .N d y an k ali 2 8 .N a m a k o m a

186
0 cristianism o e a tradição maconde

forma, que estes abandonassem a frágil missão (Cazzaninga 1994,158).


Uma vez baptizados, espalharam-se pelas povoações como catequistas,
sendo Pedro Mwakala o seu «inspector».101
Os alunos destes catequistas (e outros que depressa se juntaram às suas
fileiras) aprenderam a falar um pouco de português e eram capazes de
trocar saudações com os administradores locais na língua colonial (o que
deixava estes últimos encantados). Os catequistas verificaram que tinham
poucos problemas com os a'paios, habitualmente ameaçadores, que po­
liciavam o planalto a mando das autoridades gentílicas coloniais. Os ca-
tecúmenos descobriram que os medalhões da Virgem Maria dados pela
Igreja os protegiam dos abusos dos cobradores de impostos e dos recru-
tadores de trabalhadores forçados, que tratavam os «pagãos» macondes
como se o recrutamento de mão-de-obra chibalo ainda fosse legal.
Com a aprovação da lei do algodão de 1938, que exigia aos habitantes
do planalto que cultivassem algodão e vendessem as colheitas a empresas
coloniais (Isaacman 1996), a frequência das escolas das povoações subiu
em flecha porque as pessoas procuravam furtar-se às exigências de cultivo
obrigatórias. A associação à Igreja revelava-se cada vez mais útil para man­
ter os agentes coloniais à distância.
No final da década de 1930, a missão afirmava contar com cerca de
cem «convertidos» (Cazzaninga 1994, 157). Além disso, a Legião de
Maria proporcionou-lhe uma rede que chegava a povoações distantes,
incentivando a frequência da igreja e a oração diária.11 As congregações
satélites começaram a organizar uma peregrinação semanal a Nang’ololo,
para a missa dominical. As vantagens de pertencer à Igreja eram de tal
modo evidentes que quase toda a gente das vizinhanças da missão pedia
para ser baptizada. Reflectindo sobre o crescente interesse pelo baptismo,
naquela altura, o padre João Bruininks confiou-nos: «[A missão] teve de
abrandar o processo para garantir que as pessoas entendiam verdadeira­
mente o catecismo.»
Em 1940, o interesse pela Igreja era suficiente, na zona a norte de
Nang’ololo, para justificar a construção de uma nova missão em Imbuho.
Seis anos depois, foi construída outra missão em Nambude, nà região

10 Com o Landau (1995, 132) sugeriu, os historiadores têm prestado insuficiente aten­
ção ao papel crucial desempenhado pelos próprios africanos na evangelização cristã.
11 A Legião de Maria é uma associação católica laica fundada em 1921, em Dublin,
na Irlanda, por Frank Duflf. Esta associação põe a tónica numa «espiritualidade mariana
em grande medida inspirada pelos escritos de Louis Grignion de Montfort», fundador
da ordem missionária de Montfort (McBrien e Attridge 1995, 763).

187
K u piliku la

de língua shimakonde situada nas terras baixas a leste do planalto. Em


1950, foi construída uma quarta missão na orla ocidental do planalto,
na zona do régulo Mbomela, próximo da descida para o rio Lipelwa.
Foram acrescentadas mais duas missões em Mtamba e em Cliitolo, nos
anos de 1959 e 1960, respectivamente (ver mapa 3). Cada missão enviava
um contingente de catequistas para as povoações circundantes, garan­
tindo a penetração da Igreja em praticamente todas as povoações da re­
gião do planalto. Em 1957, a recém-formada diocese de Porto Amélia re­
gistou, relativamente a esse ano, 388 baptismos em Mbomela, 444 em
Nambude, 1062 em Imbuho e 1523 em Nang’ololo (Diocese de Porto
Amélia 1957). Em finais de Í964, só a missão de Nang5ololo tinha bap-
tizado 23 533 pessoas e afirmava contar com 3625 famílias cristãs (Caz-
zaninga 1994,157).
Apesar do espantoso êxito obtido pelos esforços de evangelização dos
missionários católicos, os Evangelhos não substituíram o discurso da
uwavi. Como veremos no próximo capítulo, os próprios missionários
acabaram por ocupar, ironicamente, um lugar de destaque nesse discurso.

188
Capítulo 12

Conversa e conversão
Emiliano Simão Ncimi foi um dos primeiros da sua matrilinhagem a
converter-se ao cristianismo. Marcos, Felista e eu estávamos sentados
com ele, ao fim da tarde, no exterior da sua casa, na aldeia de Napanya,
enquanto ele partilhava connosco as recordações das suas primeiras con­
versas com os padres de Montfort. Contou-nos: «Nós, macondes, costu­
mávamos pintar uma cruz com óleo de rícino no solo, sobre o local onde
tínhamos enterrado um membro da família. Quando os padres vieram,
explicaram que essa cruz era aquela onde Jesus estava crucificado.1Pare­
cia que os padres sabiam mais sobre aquilo que nós sabíamos do que
nós mesmos!»
Como vimos no capítulo 11, quando chegaram ao planalto de Mueda,
os padres de Montfort afirmavam ser portadores de verdades transcen­
dentes. A seu tempo, muitos habitantes aceitaram estas afirmações e con-
verteram-se ao cristianismo, como testemunha Emiliano Simão Ncimi.
Até as pessoas que não se «converteram» foram profundamente afectadas
pelo embate cultural mais geral que a sociedade do planalto sofreu a par­
tir de meados da década de 1920.
Jean Comaroff e John Comaroff afirmaram que, à medida que os tswa-
nas do Sul «conversavam» com os missionários cristãos que viviam entre
eles no século XIX - comparando os poderes relativos dos fazedores de
chuva e das orações ao Deus cristão, por exemplo - mesmo aqueles que
resistiram à «conversão» ao cristianismo foram arrastados «involuntária e,
muitas vezes, relutantemente para asformas do discurso europeu»; foram
«seduzidos para os métodos de debate racional, conhecimento positivista
e razão empírica que estão no centro da cultura burguesa» e, por isso, «não

1 Voeks cita provas de que o sinal da cruz já era, igualmente, «um símbolo sagrado
tradicional para os escravos [brasileiros] provenientes do Daomé» (1997, 158).

189
K u piliku la

podiam evitar interiorizar os termos através dos quais estavam a ser desa­
fiados» (Comaroff e ComarofF 1991,213). Afigura-se que, até certo ponto,
esta afirmação é igualmente aplicável aos macondes que «conversavam»
com os padres de Montfort nas décadas de meados do século XX.
Porém, como também foi referido no capítulo 11, os missionários de
Montfort que trabalhavam junto dos macondes aprenderam a falar como
os habitantes do planalto na mesma medida em que estes aprenderam a
falar como eles - referindo-se ao Deus cristão como Nungu, aos santos
cristãos como antepassados e à alma cristã como mahoka.. Batucavam e
dançavam aos ritmos locais,2vestiam-se como mapiko e actuavam como
mestres dos rituais de iniciação. Ao relacionar-se com o mundo através
da língua shimakonde, os missionários interiorizaram de forma não des­
prezável os esquemas culturais autóctones e ratificaram «inadvertida­
mente» a lógica local que pretendiam contestar.3
Considere-se a «conversa» entre os habitantes do planalto e os padres
de Montfort a respeito da feitiçaria. Por vezes - talvez com maior fre­
quência nos primeiros anos da história da missão - os missionários rejei­
tavam a uwavi como mera superstição. Quando falei com Simoni Ma-
tola, um dos primeiros cristãos de Nang’ololo, ele recordava-se
perfeitamente do dia em que acompanhou um dos missionários numa
visita a casa do ancião Shakoma, um curandeiro de grande reputação.
«O padre disse a Shakoma que os objectos-espíritos existentes na sua casa
não eram deuses.4Eram apenas objectos. Disse ao ancião para os deitar
fora, pois eles eram inúteis, não tinham qualquer poder.»5
Noutras alturas, no entanto, os missionários de Montfort falavam aber­
tamente, e com segurança, sobre a existência e a natureza da uwavi, que
«traduziam» umas vezes como «pecado original» do homem, e outras
como «obra de Satanás» e «das suas legiões de demónios».6 Mais ainda,

2 Ver também Pels (1999,40).


3 Meyer (1999,54-82) fez notar, no seu trabalho sobre as missões cristãs que trabalha­
vam entre os ewes do Gana, que os missionários se debatiam, às vezes sem se darem
conta, com os paradoxos originados pela tradução do cristianismo para as línguas locais:
os termos cristãos traduzidos continham, inevitavelmente, significados derivados da cos­
mologia ewe.
4 Aqui, o relato de Matola é influenciado pela linguagem do cristianismo, pois Sha­
koma não teria chamado «deuses» a estes objectos. Alguns deles talvez fossem recipientes
utilizados nas cerimónias de ktdipiidya. Outros poderiam ser recipientes com m itda de
Shakoma, incluindo substâncias que lhe permitiam ver no reino invisível da tm avi.
5 Ver também Pels (1999,257).
6 Meyer (1999, 83-111) chamou a transposições semelhantes do conceito cristão do
diabo para as cosmologias africanas actos de «diabolização».

190
Conversa e conversão

afirmavam conhecer os meios apropriados para controlar os efeitos des­


trutivos da uwavi-. orar e ir regularmente à missa.7
Quando os padres de Montfort falavam da uwavi como sendo «pe­
cado» e «obra do diabo», muita gente entendia que eles estavam a pro­
clamar as suas capacidades de perscrutar no reino invisível da feitiçaria e
de dominar os feiticeiros com o seu olhar. Tais proclamações não eram
estranhas aos habitantes do planalto,8 que as associavam às dos especia­
listas em substâncias mágicas e das figuras de autoridade locais. De facto,
a maioria das pessoas estava convencida de que os padres de Montfort
sabiam uwavi. 9 A única questão era: Que tipo de vavi eram os padres;
para que fins utilizavam o seu poder? Desde os primeiros tempos da pre­
sença dos missionários no planalto, circulavam boatos de que se alimen­
tavam da carne de rapazinhos (Lebreton e Vloet s. d., 15) - o que não é
para admirar, tendo em conta os esforços concertados dos padres para
atraírem os jovens à missão, a fim de estudarem com eles.101
Contudo, depois de os missionários terem criado uma certa reputação
de benevolência (pelo menos em contraste com as autoridades governa­
mentais e as plantações coloniais), passaram a ser olhados com maior
ambivalência. Considerem-se, por exemplo, as memórias populares
acerca da irmã Bendita que os anciãos do planalto partilharam connosco.
Bendita Mattio viera de Itália para Nang’ololo na década de 1930, com
o primeiro contingente de irmãs missionárias da Consolata.11 Ela servia
a congregação da missão através da prestação de cuidados de saúde bási­
cos nas povoações do planalto. As pessoas lembravam-se bem da «maleta
preta» que ela trazia consigo nas suas rondas. «As mitela de Bendita» sus­
citavam ansiedade e fascínio tanto nas crianças como nos adultos.12«Cos-

7 Outros missionários em África - sobretudo os protestantes - prescreviam medidas


mais drásticas, desenvolvendo rituais para exorcizar a feitiçaria dos membros das suas
congregações. Ver, por exemplo, Maxwell (1999, 81-83). Esses rituais estão na origem da
ênfase conferida à cura em muitas Igrejas independentes africanas.
8 Cf. Jean Comaroff ejo h n Comaroff (1991,208-209,245).
9 Claro que os missionários se apresentaram de outras formas como operadores po­
derosos, não só no mundo terreno mas também em assuntos que os habitantes do pla­
nalto associavam ao reino invisível, ao organizarem, por exemplo, os seus próprios rituais
de iniciação na missão (c£ Comaroff e Comaroff 1991,212,213).
10 Esses boatos eram comuns em todas as regiões onde os missionários chegaram, na
África colonial. Ver, por exemplo, White (2000,182-183).
11A Congregação das Irmãs Missionárias da Consolata foi fimdada por Giuseppe Al-
lamano em 1910, em Turim, na Itália.
12 Dias e Dias (1970,365) referem igualmente que as pessoas com quem trabalhavam
designavam os medicamentos ocidentais pelo termo ntela/mitela. Vaughan (1991, 60) re­
lata que os swahilis também usavam o mesmo termo (dawa) para referir tanto as subs­
tâncias medicinais dos missionários como as utilizadas pelos seus próprios curandeiros.

191
K u piliku la

tumávamos interrogar-nos sobre o que haveria dentro daquele saco»,


confessou-me, um dia, um ancião. «Falávamos disso com pessoas que a
tivessem visto tirar qualquer coisa lá de dentro. Parecia que as suas mitela
não tinham fim. Por muitas coisas que tirasse da maleta, havia sempre
ainda mais.» As numerosas descrições e relatos sobre Bendita que outras
pessoas partilharam connosco revelavam misturas análogas de medo e
admiração, evocativas dos sentimentos locais em relação aos vakulaula
poderosos.13
O nkulaula Sinema Kakoli, cuja casa na aldeia de Mwambula estava
directamente virada para a missão, guardava recordações menos caridosas
dos missionários. Certa vez, perguntei-lhe se os missionários tinham feito
desaparecer a feitiçaria. Ele ficou espantado com esta sugestão. «Nem
pensar!», afirmou. «Os próprios missionários praticavam uwavi. Dança­
vam de noite para dar vida à igreja durante o dia. Tinham muita con­
fiança em si próprios, não só de diá, mas também de noite!» O que os
missionários baniram, disse-me Sinema, foi a prática de kulaula - curan-
deirismo. Tinham-no feito para garantir um poder indisputado no reino
da uwavi, segundo afirmou.14
Luís Gabriel Mbula contou-nos quê, tanto quanto se conseguia lem­
brar, os missionários não punham de parte a existência de feitiçaria. Em
vez disso, afirmou, «proibiram-na», muito como os chefes de povoação
faziam nas suas próprias povoações.15Tais «proibições» - quer dos chefes
de povoação, quer dos missionários - eram, em grande medida, consi­
deradas como actos defeitiçaria, se bem que feitiçaria de construção. «Em
redor da missão», dissemos Mbula, «os feiticeiros não tinham espaço para
actuar.»
Não obstante a suspeita e a ambivalência com que os habitantes do
planalto olhavam a missão de Nang’ololo no período colonial, muitos
ficavam fascinados com os conhecimentos que atribuíam aos missioná­
rios. Para alguns, o saber destes - leitura e escrita, matemática e engenha-

13 Pels (1999, 239, 259) sugere que os lugurus também concebiam os missionários
com o waganga (curandeiros). Landau (1995, 113) sugere que esta ideia era comum nos
encontros dos africanos com os missionários. Ver também Rekdal (1999,472).
14 White (2000,184) conta que os Padres Brancos da Rodésia do Norte, tal com o os
missionários africanos noutras zonas, eram geralmente considerados como feiticeiros po­
derosos. Pels (1999, 262) sugere que os lugurus consideravam que os missionários que
viviam entre eles só eram capazes de praticar formas de magia benéficas.
15 M. Green (1994,41,43) sugere, igualmente, que as proibições católicas das crenças
e práticas de bruxaria entre os pogoros da Tanzânia eram interpretadas com o expressões
da oposição da Igreja aos «bruxos verdadeiros».

192
Conversa e conversão

Q uando a conheci em Pemba, n o ano de 1994, a iim ã Bendita tinha oitenta e


sete anos, mas mantinha-se m uito activa na Igreja - o que também m e fez per­
guntar a m im m esm o que tipo de m itela teria ela dentro da maleta!

ria, agricultura e comércio - fornecia chaves para o mundo desconhecido


que despontara entre eles com o colonialismo português. Para outros,
como Emiliano Simão Ncimi, os missionários ofereciam novas e mais
profundas percepções de um mundo que os habitantes locais julgavam
conhecer anteriormente.
Um ancião que foi um dos primeiros cristãos contou-nos: «Os padres
ensinavam-nos tudo o que sabiam. Por isso adorávamos a Igreja. Por isso
aderimos a ela.» Ao contrário do estereótipo que os portugueses tinham
aplicado aos macondes - «reffactários à civilização» (Lebreton e Voet s. d.,
1) - muitos habitantes do planalto encaravam os conhecimentos dos mis­
sionários com grande curiosidade. Luís Gabriel Mbula recordava os pri­
meiros tempos da missão com nostalgia, observando melancolicamente:
«A missão era um lugar onde vimos coisas incríveis.» Entre essas coisas
incríveis, figuravam prodígios simples como os pomares dos missionários,
com árvores de fruto (peras, laranjas e tangerinas) nunca antes vistas no
planalto, e as pocilgas onde eles criavam os porcos. Entre as coisas mais
espantosas, incluíam-se os vários veículos da missão e as prensas utiliza­
das para extrair óleo dos amendoins. As próprias actividades recreativas
a que assistira na missão eram estranhas e emocionantes para Mbula -

193
K u piliku la

quer se tratasse do canto do grupo coral da missão (com acompanha­


mento instrumental) quer dos jogos de futebol. «Imitávamos todas as
coisas que víamos até termos aprendido a fazê-las», confiou-nos Luís.
Em simultâneo com o interesse e o respeito que nutriam pelas técnicas
produtivas e as sensibilidades rituais dos missionários, muitas pessoas
tendiam a acreditar que as mitela dos missionários eram mais fortes do
que as substâncias medicinais que os vamiteh macondes conheciam. Mui­
tos pais, mesmo não cristãos, acabaram por aquiescer a enviar os filhos
para a missão «para estudarem com os padres», na esperança de que
aprendessem essas novas e poderosas espécies de mitela.
A seu tempo, os programas escolares da missão, a que os habitantes
do planalto opuseram inicialmente resistência, mostraram ser um dos
seus maiores atractivos. Até 1940, o ensino ministrado às crianças pela
missão de Nang’ololo tinha um carácter informal.16Apesar de os admi­
nistradores coloniais da cidade de Mueda gostarem que os «conversos»
católicos e os seus filhos falassem um pouco de português, desencoraja­
vam os missionários de «criar expectativas» entre os jovens, que só tinham
perspectivas de emprego como trabalhadores braçais. Porém, com a as­
sinatura de uma concordata entre Portugal e o Vaticano, em 1940 (e a
subsequente assinatura do Acordo Missionário de 1940 e do Estatuto
Missionário de 1941), a Igreja Católica recebeu o mandato de principal
instituição responsável pelo ensino nas colónias portuguesas.17 Nesse
mesmo ano, o padre Mentin fundou a primeira escola primária digna
desse nome em Nang’ololo, com ensino até ao primeiro nível da terceira
classe. Foram construídos dormitórios separados para rapazes e para ra­
parigas. Os padres de Montfort ensinavam os primeiros e as irmãs da

16Até 1929, a política portuguesa limitava o ensino das crianças «nativas» à formação
tradicional que melhorasse as suas capacidades de trabalho (Hedges 1985,7). Nesse ano,
novas disposições regulamentares permitiram que as crianças africanas estudassem jun­
tamente com as brancas, mas apenas se as suas famílias tivessem adquirido o estatuto de
«assimilados» através de um processo oficial no qual demonstravam ter usos e costumes
«civilizados» de comer, falar, vestir, etc. (Penvenne 1991). As crianças «indígenas» (não
assimiladas) estavam limitadas a uma educação «rudimentar», que incluía a primeira e a
segunda classes do ensino primário e uma terceira classe rudimentar (uma versão simpli­
ficada da terceira classe).
17 Estes acordos exigiam que o programa escolar fosse aprovado pela administração
colonial e que fomentasse um sentimento de nacionalismo português entre os alunos,
instruindo-os em português e ensinando-lhes a história e a geografia de Portugal (Sheldon
1998). As crianças indígenas continuavam a estar limitadas a uma escolaridade que ter­
minava na quarta classe, a seguir à qual apenas lhes era permitido estudar em escolas pro­
fissionais.

194
Conversa e conversão

Consolata ensinavam as segundas. A seu tempo, os que terminavam a


escolaridade nessa escola iam para outra escola de missão situada em Ma-
riri (no sul da província de Cabo Delgado) para frequentarem o segundo
nível da terceira classe18e a quarta classe. Alguns permaneciam em Mariri
depois de concluírem a quarta classe, a fim de seguirem a vocação reli­
giosa. A partir de 1957, outros alunos começaram a ir estudar para Chiure
(também no sul de Cabo Delgado), a fim de se tomarem professores pri­
mários. Entretanto, as outras missões estabelecidas na região do planalto
entre 1940 e 1960 construíram as suas próprias escolas, repletas de dor­
mitórios. Tal como a de Nang5ololo, estas missões também enviavam ca­
tequistas para dar aulas nas povoações circundantes, onde adultos e crian­
ças aprendiam o alfabeto e desenvolviam o desejo de aprender mais. Em
1957, várias centenas de crianças frequentavam as escolas das missões
anualmente e vários milhares tinham aulas nas respectivas póvoações.
Enquanto no passado os pais temiam que os padres se alimentassem da
carne dos filhos, muitos obrigavam agora os filhos a frequentar a escola
com religioso fervor, sovando-os quando faltavam, mesmo que eles pró­
prios não fossem cristãos.
Ter um filho iniciado em Nang’ololo passou a estar tão na moda como
as roupas importadas do Tanganhica. Os «rituais dos padres» eram, sem
dúvida, mais misteriosos para a maioria das pessoas. Muitos também di­
ziam que eles eram mais eficazes do que os dos vanalombo (mestres de ri­
tuais) macondes. Do mesmo modo, muitos adultos procuravam o bap­
tismo por julgarem que as mitela protectoras dos missionários eram
superiores às do seu chefe de povoação ou do seu humu. 19
Tendo em conta o crescimento espantoso da Igreja Católica no pla­
nalto de Mueda, nas quatro décadas seguintes a fundação da primeira
missão, e o enorme interesse demonstrado pelos habitantes do planalto
em aprenderem com os missionários, é possível entender a declaração
de Emiliano Simão Ncimi - sugerindo que os padres sabiam mais sobre
aquilo que os habitantes locais sabiam do que eles próprios - como uma
expressão de capitulação incondicional destes últimos face àquela que
consideravam ser uma visão do mundo superior. É claro que muitás pes­

18 A terceira classe elementar completava a terceira classe para os estudantes que ti­
nham feito, anteriormente, a terceira classe rudimentar.
19 Pels (1999,258) descreve com o os rosários e as medalhas de baptismo eram igual­
mente adoptadas pelos lugurus com o substitutos dos amuletos de protecção outrora for­
necidos pelos waganga (curandeiros). Maxwell (1999, 90) descreve o mesmo fenómeno
entre os hwesas.

195
K u piliku la

soas resistiram à «conversão» e muitos «conversos» ao cristianismo prati­


cavam essa fé de forma inconstante. Enquanto alguns consideravam que
o cristianismo era uma forma nova e aperfeiçoada de iniciação, havia
cristãos que submetiam os filhos aos rituais de iniciação «tradicionais»,
antes ou depois das cerimónias patrocinadas pela missão, «para jogarem
pelo seguro» (Cazzaninga 1994).20 Alguns dos que tomavam a Sagrada
Eucaristia e oravam a Deus para que os curasse dos seus padecimentos
também consultavam os vakulaula.
E possível que a abordagem dos habitantes do planalto ao cristianismo
fosse, até certo ponto, semelhante à dos escravos affo-cubanos que, se­
gundo George Brandon (1993, 97), «utilizavam os santos católicos para
disfarçar a adoração das suas próprias divindades», no âmbito de uma
vasta «estratégia de subterfúgio».21 Quando pressionados a converter-se
ao cristianismo, os escravos africanos nas Américas ocultavam frequen­
temente os objectos que representavam - ou acolhiam - as suas entidades
sagradas (deuses, espíritos) em altares colocados debaixo das próprias
mesas onde punham as estátuas dos santos cristãos, da Virgem Maria e
de Cristo.22Tal como estes escravos, muitos habitantes de Mueda podem
ter aderido ao cristianismo de forma meramente superficial - talvez para
acederem às várias vantagens concedidas aos «conversos» no contexto
colonial.23
Com o tempo, porém, as missões da região do planalto encheram-se
de gente cuja adesão ao cristianismo não podia ser menosprezada como
uma mera impostura. A atitude liberal dos padres de Montfort holande­

20 Ver também Pels (1999, 137). Em anos posteriores, os estudantes das missões que
fizessem a iniciação ou escarificação tradicionais corriam o risco de serem expulsos da
escola da missão.
21 Métraux (1972 [1959], 324-326) apresenta este argumento em relação ao vodu hai­
tiano, o qual contradiz depois dizendo que os praticantes de vodu estavam «convencidos
da eficácia da liturgia católica e, por isso, desejavam que a sua própria religião beneficiasse
dela» (328). Murphy (1988, 32) debate este argumento em relação à santeria cubana.
Voeks (1997,60) apresenta um argumento semelhante a respeito do candomblé brasileiro,
mas acrescenta ser improvável que os eclesiásticos católicos fossem ludibriados por essas
manobras, sobretudo atendendo à política da Igreja de substituir gradualmente as «di­
vindades pagãs» por imagens de santos católicos.
22 Ver também Deren (1953, 56). Murphy (1988, 122) descreve esses altares entre os
praticantes de santeria; Brandon (1993,121) ilustra um deles. Ver também Fry (1977) re­
lativamente ao m odo com o os praticantes de umbanda descendem de escravos que
«[mantinham] as tradições de África vivas ocultando os Deuses de África... por detrás
dos Santos Católicos». Danfhlani relata que os membros eggons do culto ijov da Nigéria
«utilizam a Biblia» mas «acusam os seus autores... de substituir os espíritos pelo nome
de Cristo» (1999,191).
23 Esses «conversos», pelo menos, adoptaram identidades cristãs (Peei 2000,249).

196
Conversa e conversão

ses face à «tradição maconde» permitiu que muitas pessoas encarassem a


aceitação do cristianismo não como uma «conversão» da prática de uma
religião para outra, mas sim como um acréscimo cosmológico.24 Para
muitos, a adesão à Igreja expandiu o vocabulário com que podiam falar
do sentido da vida e da moralidade social, da morte e do Além, bem
como das relações entre os vivos, os mortos e as forças invisíveis. Estes
cristãos do planalto de Mueda assemelhavam-se mais aos descendentes dos
escravos afro-caribes e affo-americanos - praticantes de vodu, santetia,
candomblé, etc., que concebiam, cada vez mais, o cristianismo como
uma linguagem alternativa através da qual podiam exprimir verdades fa­
miliares, e qqe reconheciam nos santos, na Virgem e em Cristo, aspectos
diferentes das entidades que também conheciam pelos nomes dos deuses
e espíritos africanos.25 Em diversos graus, portanto, os cristãos de Mueda
agiam como «bricoleurs do domínio espiritual» (Comaroff e Comaroff
1991:250), explorando e celebrando a compatibilidade entre as crenças
cristãs e as «tradições» macondes.26 Os missionários de Montfort eram,
em última análise, cúmplices na produção dessa mistura (le mélange, como
os dirigentes católicos do Haiti se referiam, alarmados, às cosmologias
sincréticas, nomeadamente ao vodu; Métraux (1972 [1959], 338).
Apesar de tolerarem algumas «tradições» macondes, os padres de Mont­
fort ergueram-se efectivamente nos seus altares e bradaram aos habitantes
do planalto (incluindo os vamiteld)-. «Nós estamos a ver-vos! Nós conhe-
cemo-vos! Nós sabemos o que andais a fazer!» Mais ainda, Emiliano
Simão Ncimi e outras pessoas ouviram mesmo os missionários exclamar:
«Nós sabemos melhor do que vós como funciona o vosso mundo!»
Aqueles que frequentavam a missão e participavam nos diversos rituais
dos padres pareciam reconhecer uma força transcendente nesta visão con­
fiante que inspirava as práticas dos missionários. Através das suas acções,
expressavam as suas convicções de que os padres e o seu Deus eram ca­
pazes de inverter (kupilihda) as visões do mundo locais e de refazer o
mundo que o povo de Mueda (incluindo os feiticeiros e contrafeiticeiros)
tinha construído.

24 Bond (2001,147) também sugere que os yombes «aumentaram» o seu «campo ri- -
tual» através da apropriação do cristianismo. Ver também Gilbert (1989,61).
25 Murphy (1988,40, 114,122) sugere que os santeros consideram que os santos ca­
tólicos são «personae», ou «atitudes» dos orixás e que o catolicismo é uma «forma dos
orixás» no N ovo Mundo. Ver também Bastide (1978,123) e Apter (2002,238) a respeito
do vodu, e Fry (1977) e D . Brown (1994 [1986]) sobre a umbanda brasileira.
26 Ver também Horton (1993, 317).

197
K u piltku la

Mesmo assim, é possível observar algo mais do que capitulação nas


palavras de Emiliano Simão Ncimi, bem como na adesão histórica dos
habitantes do planalto ao cristianismo. Afinal, estes só começaram a ade­
rir à Igreja após terem começado, conjuntamente com os padres de Mont-
fort, a traduzir o catolicismo numa linguagem e numa lógica mais fami­
liares aos habitantes do planalto. Estes últimos, portanto, não se
limitaram a «converter-se ao catolicismo», também «converteram o ca­
tolicismo a si», parafraseando Brandon (1993, 98).27 Reconheceram,
assim, a presciência dos padres de Montfort e o poder da sua visão cristã,
mesmo quando reconheciam a cosmologia cristã através do género discur­
sivo da uwavi.28 Admitiram que os missionários eram capazes de ver o
seu mundo de uma nova forma e de trazer um poder transformador para
a relação com esse mundo, no momento em que a visão do mundo dos
missionários foi significativamente reescrita em «conversa» com eles.29
Em última análise, à medida que os habitantes de Mueda perscrutavam
e ajuizavam constantemente as acções dos missionários e os efeitos pro­
duzidos pela sua presença entre as comunidades do planalto, eles pren­
diam os missionários no seu olhar, afirmando saber quem eles o.ram (fei­
ticeiros) e o que é que eles andavam a fazer (o tipo de feitiçaria que
praticavam).30 Por ironia, através da sua vigilância sobre a missão e os
missionários, os habitantes do planalto criaram para si próprios um ponto
de observação transcendente (ainda que, como qualquer muntela, o ne­
gassem), a partir do qual inverteram, viraram ou reviraram (kupilikula) o
poder que atribuíam aos missionários, juntamente com a cosmologia
cristã que afirmavam, cada vez mais, aceitar.

27Ver também Behrend (1999,116). Métraux referiu uma dinâmica semelhante no Haiti
como sendo a «verdadeira apropriação do catolicismo pelo vodu» (1972 [1959], 331).
28 Ver também Barker (1990); Meyer (1992,122).
29 Ver também Landau (1995, xxi), bem como Masquelier (2001), que descreve igual­
mente as complexas relações prevalecentes entre os boris e o islamismo, no Níger.
30 Cf. Jean Comaroff e John ComarofF (1991,229).

198
Capítulo 13

Cristãos, pagãos e feitiçaria


«

«Nesse tempo, havia dois tipos de pessoas a viver nas povoações»,


disse-nos Vicente Nkamalila Shuli.
«Cristãos e ‘pagãos’?», perguntei eu.
Vicente acabara de nos contar, a Tissa e a mim, como fora criado na
povoação de Kushilindi, situada a dez minutos de distância, a pé, da mis­
são de Nang’ololo. Nascera em 1926 ou 1927, segundo nos disse. Os mis­
sionários tinham convencido os seus pais, Nkamalila Shuli e Lúcia Bo­
nifácio, a mandá-lo às aulas de catequese e, finalmente, para a escola da
missão. Aos doze anos, concluiu a primeira classe, tendo a família emi­
grado, nessa altura, para o Tanganhica. Vicente mondou as ervas dani­
nhas nos campos onde o seu pai cortava sisal, até ter idade suficiente
para o cortar também. Ao fim de cinco anos, a família regressou a Kushi­
lindi e Vicente voltou para a escola. Foi baptizado um ano depois e casou
logo a seguir. Como chefe de uma nova família, teve de desistir dos es­
tudos para trabalhar como assalariado no Sindicato do Sisal de Mocím-
boa. Ao fim de cinco contratos de trabalho, porém, adquiriu uma má­
quina de costura e aprendeu a trabalhar com ela.
«Os padres da missão de Nambude contrataram-me para coser roupas,
que vendiam na loja da missão», contou-nos com orgulho. «Passado
algum tempo, mudei-me para a minha casa e trabalhei por minha conta
fazendo e vendendo roupas.»
«Tiveste uma boa organização!», alvitrou Tissa.
«Sim, foi boa», concordou Vicente. «Mas também tinha os seus peri­
gos.»
«Que tipo de perigos?», perguntei.
«Havia gente invejosa, na minha terra, que tentou desmoralizar-me,
estragando as minhas coisas.» As palavras do ancião estavam cheias de
amargura, quando prosseguiu. «Diziam: ‘Estás apenas a tentar provocar-
-nos, mas no fim ficarás sem nada!’»

199
K u piliku la

«Uwavil», exclamou Tissa, descodificando o eufemismo para mim,


caso eu não o tivesse conseguido entender.
Vicente assentiu, acenando quase imperceptivelmente com a cabeça,
antes de nos dizer que, nesse tempo, muitas pessoas da povoação de
Kushilindi falavam mal dos cristãos, e falavam-lhes mal também. «Os pa­
gãos diziam que seriam os cristãos, e não eles, a ir para o inferno, quando
morressem.»
Os olhos de Vicente denunciavam a cólera que ainda sentia. Ficámos
sentados em silêncio, durante algum tempo, e depois ele fez a sua decla­
ração de que havia dois tipos de pessoas nas povoações desse tempo.
Ignorou a minha pergunta, enquanto esclarecia o que quisera dizer. «Em
primeiro lugar, havia aqueles que trabalhavam muito e ganhavam aquilo
que tinham. Em segundo lugar, havia aqueles que obtinham as coisas de
formas que não se podiam explicar facilmente.»
«Vavi\», exclamou Tissa, voltando a descodificar o eufemismo.
«O problema era», acrescentou Vicente, algo irritado, «que as pessoas
que trabalhavam muito para obterem os seus bens eram aquelas que eram
atacadas.»
Perguntei a mim mesmo se, com isto, Vicente queria dizer que ele e
os outros que tal como ele «trabalhavam muito» eram vítimas de feiti­
çaria, ou se eram acusados de serem feiticeiros. Esperei que Tissa desco­
dificasse este eufemismo - o primeiro que eu próprio não entendera to­
talmente -, mas fosse o que fosse que Tissa estava a pensar, guardou-o
para si próprio.

Paradoxalmente, a presença dos padres de Montfort no planalto de


Mueda não só gerou entre os habitantes uma consciência consolidada
da «tradição maconde» como também desafiou profundamente a inte­
gridade dessa tradição. No próprio momento em que os habitantes do
planalto foram incentivados a conceber-se a si mesmos como um povo
distinto, dotado de uma tradição coerente, as suas identidades estavam
a proliferar rapidamente, em parte devido às diferentes reacções suscitadas
pelos padres. Enquanto alguns - como Luís Gabriel Mbula - abraçaram
o cristianismo e procuraram emular os missionários de várias maneiras,
outros opuseram-se à missão e aos seus ensinamentos. Alguns chefes de
povoação recusaram-se a permitir que os cristãos orassem ou cantassem
os seus cânticos abertamente, ao passo que outros participavam eles pró­
prios no catecismo e nas orações.

200
Cristãos, pagãos efeitiçaria

André Nikutume recordou o conflito existente na sua povoação,


quando era jovem: «As nossas orações incomodavam-nos a eles e os ba­
tuques e as danças deles incomodavam-nos a nós. Não podíamos parar
com o que estávamos a fazer e eles não podiam parar com o que estavam
a fazer. Isso causava grandes tensões entre nós.»
A questão de autorizar ou não os catequistas a darem aulas na shitala
não só provocou discussões entre os habitantes de muitas povoações,
como levou a que algumas delas acabassem por se dividir, com a partida
de grupos de cristãos para fundar novas povoações onde pudessem aco­
lher um professor vindo da missão.
O pai de. Amaro Mwitu foi um dos primeiros fiéis da igreja de
Nang’ololo, e Amaro viria a ser um dos primeiros macondes ordenados
como padre católico. Contou-nos que a missão atraía adeptos através da
construção e da manutenção de um ambiente económico e social favo­
rável ao progresso: «Os missionários tinham de demonstrar que eram di­
ferentes dos portugueses - que pensavam nos interesses da população.
Por isso, criaram escolas e davam aulas de carpintaria, além de ensinarem
às pessoas novas técnicas agrícolas para usarem nos seus campos.» Através
desses esforços, os missionários mostravam o que os diferenciava dos ha­
bitantes do planalto, ao mesmo tempo que os convidavam a tomarem-
-se mais parecidos com eles. Deste modo, os missionários distinguiam-
s e ainda mais dos colonos portugueses, que normalmente procuravam
demarcar-se bem dos povos que colonizavam.
Na verdade, a partir de finais da década de 1930, a missão transformou-
-se num azafamado centro não só de actividade religiosa, mas também de
outras formas de relações económicas e sociais, de acordo com os teste­
munhos orais. O padre Vloet, em especial, formou um número sempre
crescente de fiéis macondes como carpinteiros, pedreiros, fabricantes de
telhas e de tijolos, pagando-lhes para trabalharem nos projectos da missão.
Outros eram empregados por esta como mensageiros, auxiliares, cozinhei­
ros ou alfaiates. Desde a sua chegada, em 1933, as irmãs da Consolata ex­
pandiram as actividades da missão tratando os doentes das povoações cir­
cundantes, prestando assistência aos partos e procurando instruir a
população em questões de saúde e higiene. Também começaram a ensinar
costura às mulheres, a quem depois pagavam para costurarem paramentos
destinados aos serviços dominicais celebrados na missão.
Em 1940, a missão de Nang’ololo abriu uma loja nos seus terrenos.
Segundo Lucas Ng’avanga, que foi responsável por ela, tanto cristãos
como não cristãos iam a Nang’ololo comprar tecidos, sabão, açúcar, sal,
óleo alimentar, enxadas, catanas, petróleo, fósforos, e assim por diante,

201
K u piliku la

na loja da missão, onde os preços eram consideravelmente inferiores aos


das lojas de indianos existentes noutros lugares do planalto. A missão in­
vestia os lucros obtidos na loja no financiamento de projectos como a
construção do edifício da escola e dos dormitórios da missão - os quais
geravam mais emprego.
Na década de 1950, muitos dos jovens que tinham ido estudar para
Mariri começaram a regressar a Nang’ololo, onde encontraram trabalho
nos prósperos arredores da igreja. Enquanto os primeiros catequistas ga­
nhavam 30 escudos por mês, a igreja pagava agora aos jovens 150 escu­
dos. Os que trabalhavam como professores nas escolas de missão do pla­
nalto ganhavam um salário mensal entre 500 e 600 escudos. O lojista da
missão de Nang’ololo ganhava entre 300 e 400 escudos por mês e os ven­
dedores experientes obtinham salários semelhantes.1Era muito dinheiro,
no ambiente económico da Mueda colonial. O imposto de palhota va­
riava, nessa época, entre 80 e 100 escudos por ano no planalto de Mueda
e os empregados da igreja podiam pagar facilmente o imposto do seu
bolso, sem terem de produzir culturas comerciais para venda. O mesmo
não acontecia com os que trabalhavam sob contrato nas plantações co­
loniais ou na construção de estradas. Na época, o Sindicato do Sisal de
Mocímboa, por exemplo, pagava apenas 60 escudos por seis meses de
trabalho. Mesmo a plantação de sisal de Nangororo, relativamente mais
generosa - que fora recentemente inaugurada na zona de Metugi, pró­
ximo de Porto Amélia -, pagava apenas 60 escudos mensais em cada con­
trato de trabalho de seis meses.12 «Quem trabalhasse na missão era rico»,
recordava o antigo professor da missão Rafael Mwakala. Segundo os tes­
temunhos orais, muita gente que retirava rendimento da sua ligação à
missão começou a fazer pequenos negócios, comprando produtos no
Tanganhica e revendendo-os em Moçambique para multiplicar a sua ri­
queza, à semelhança do que os trabalhadores migrantes faziam no
mesmo período.
No curto espaço de quarenta anos, o catolicismo tomara-se uma cate­
goria definidora dentro da sociedade de Mueda. Graças às oportunidades
oferecidas pela missão, os católicos, tal como os trabalhadores migrantes,
começaram a distinguir-se dos outros habitantes do planalto.3À medida

1 Os dados sobre os salários são provenientes dos depoimentos orais de dezenas de


habitantes de Mueda que trabalharam na missão no período colonial.
2 Os níveis salariais foram-nos referidos por dezenas de antigos trabalhadores das plan­
tações.
3 Maxwell (1999,108) descreve como uma «elite das missões» surgiu, de m odo similar,
entre os hwesas.

202
Cristãos, pagãos efeitiçaria

que certas pessoas se tomavam «mais parecidas» com os missionários, as


diferenças que antes se consideravam separar os habitantes de Mueda
dos padres de Montfort criaram raízes no interior da sociedade local, pe­
netrando profundamente nas povoações e nas matrilinhagens e famílias
que a constituíam.
As oportunidades de emprego proporcionadas pela missão a tantos
membros da sua congregação contribuíram para o enfraquecimento dos
vínculos económicos que sujeitavam os jovens aos seus vanjomba (tios),
vínculos esses que já estavam fragilizados pela emigração e pela economia
monetária colonial. De facto, os homens que arranjavam um emprego
remunerado na missão estavam ainda menos dependentes dos seus an­
ciãos do que os trabalhadores migrantes regressados, que continuavam a
necessitar de terras, quando voltavam do estrangeiro. Além disso, os mis­
sionários usurparam e minaram a autoridade dos anciãos de muitas outras
formas. Através das suas próprias práticas rituais, os padres tomaram des­
necessários os papéis que os anciãos desempenhavam anteriormente na
celebração de casamentos, na arbitragem de divórcios e na resolução de
litígios familiares.
Enquanto outrora os homens jovens «proviam» (kukamalangd) às ne­
cessidades de toda a matrilinhagem, oferecendo os frutos do seu trabalho
ao chefe da povoação para que este os redistribuísse, agora prestavam ho­
menagem e ofereciam tributo aos missionários, dando uma parte da sua
riqueza à Igreja sob a forma de dízimos e donativos. Como aos adivinhos,
curandeiros e mestres dos rituais de iniciação eram recusadas as oportu­
nidades de exercerem os seus misteres e assegurarem a sua subsistência
económica e cosmológica, eles foram empurrados para as margens da so­
ciedade local. O próprio estatuto dos antepassados foi posto em causa,
não só pela proibição das cerimónias de súplica aos antepassados, mas
também pelo incitamento dos missionários a que os cristãos abandonas­
sem os nomes herdados dos seus antepassados e adoptassem, em seu
lugar, os nomes de santos cristãos, como «Pedro» e «Paulo».
A Igreja desafiou as prerrogativas económicas, a autoridade e os con­
selhos dos próprios anciãos que decidiam enviar os filhos para a escola
da missão, apesar de oferecer formas de riqueza, poder e sabedoria que
a maioria das pessoas - incluindo, em especial, estes anciãos - desejava
para si e para os seus filhos. Certamente que, à sua maneira, a doutrina
da Igreja ensinava a respeitar os mais velhos e condenava aquilo a que
locàlmente se chamava shojo (ambição). Contudo, os seus ensinamentos
acabavam por minar as formas de autoridade costumeiras a favor de fi­
guras estrangeiras, incluindo uma autoridade distante e incontestável, a

203
K u piliku la

quem os missionários se referiam tão frequentemente: o papa. Houve


até alguns anciãos que entraram para a Igreja, tentando captar o seu
poder. Para sua frustração, porém, os mais jovens revelavam, de um
modo geral, maior aptidão para aprender a falar a linguagem do cristia­
nismo e ver o mundo segundo os novos esquemas de pensamento tra­
çados na Bíblia. Por fim, até alguns anciãos que eram membros impor­
tantes da Igreja protestavam quando os filhos decidiam seguir a vocação
religiosa, receando, justificadamente, perder o controlo da sua progeni­
tura a favor da Igreja.4 O cristão devoto Lucas Ng’avanga confessou-me
ter ficado furioso quando a sua filha, Ângela, atendeu ao apelo das irmãs
da missão para que se juntasse às suas fileiras, privando-o da oportuni­
dade de receber um dote por ela.
Se a quebra das solidariedades da lihola andava de mãos dadas com a
diferenciação económica, a fragmentação das identidades na região tam­
bém se fazia acompanhar de uma proliferação dos feitiços. Dizia-se que
estes circulavam desenfreadamente em torno dos objectos que distin­
guiam os cristãos dos não cristãos, bem como em redor das formas de ri­
queza obtidas através da associação à missão ou do trabalho na missão,
como Vicente Nkamalila Shuli nos contou. Não obstante a sua «fé» no
poder da Igreja, os cristãos sentiam-se profundamente inquietos com as
formas depredatórias de uwavi intentadas pelos «pagãos» invejosos - in­
quietação por vezes provocada e exacerbada pelo discurso dos missioná­
rios, que associavam Satanás, o pecado e a feitiçaria. Em resultado desses
receios persistentes, alguns afastaram-se da Igreja ou desistiram de lá tra­
balhar como assalariados.
Por sua vez, os não cristãos também acusavam os cristãos de pratica­
rem feitiçaria.5Tais acusações repercutiam-se nas palavras de Vicente Nka­
malila Shuli e de outros com quem falámos. Sinema Kakoli, que nunca
entrou para a Igreja, asseverou-nos: «Os cristãos dançavam tal e qual como
os pagãos», referindo-se eufemisticamente à feitiçaria. E acrescentou:
«Eles comiam bem na missão.» Sinema chamou-nos a atenção para a litur­
gia católica - onde os fiéis da Igreja consumiam a carne e o sangue de
Cristo - como prova daquilo que afirmava.6 «De que outros corpos se
alimentavam os cristãos, com o auxílio das mitela dos padres?», pergun­
tou-nos.

4 Maxwell (1999,109) sugere que muitos jovens hwesas se tomaram cristãos precisa­
mente para fugir aos constrangimentos da «comensalidade tradicional».
s Fadiman (1993) relata, similannente, com o os merus cristãos suscitaram as suspeitas
dos merus não cristãos, no Quénia colonial.
6 Ver também White (2000,189).

204
Cristãos, pagãos efeitiçaria

Enquanto os cristãos afirmavam ver o mundo do ponto de vista reve­


lador da doutrina da Igreja e conhecer o segredo do poder transformador
de Cristo, os não cristãos sujeitavam os «conversos» a uma intensa vigi­
lância, vendo neles motivações e comportamentos reconhecíveis e con­
vertendo (kupilikuld) ao seu próprio entendimento o acto de «conversão»
cristã.

205
Capítulo 14

Gente da noite
«

«Um dançarino de mapiko era respeitado, quando dançava noutra po­


voação», contou Jacinto Omar a Marcos e a mim. O ancião comportava-
-se com uma dignidade tão natural que, apesar dos seus mais de sessenta
anos, não era nada difícil imaginá-lo mascarado com o fato de dançarino
mapiko, atraindo a atenção extasiada dos espectadores. «Era fácil fazer
amigos», continuou. «Toda a gente me queria conhecer.»
Numa fase anterior da conversa, ficáramos a saber até que ponto Ja­
cinto apreciara aquilo a que chamava «a vida da povoação», na sua ju­
ventude. «Havia um professor chamado Nolanda, enviado pelos missio­
nários, que ensinava a ler e a escrever, na minha povoação, quando eu
era rapaz», contara-nos ele. «Estudei com ele durante dois anos, mas não
fui para escola da missão. Gostava demasiado da vida da povoação.»
O ancião sorriu. «Os meus amigos e eu estávamos mais interessados em
caçar ratazanas do mato.» O esforço por parecer envergonhado foi pouco
convincente. «A minha irmã tentou continuar a ensinar-nos aquilo que
estava a aprender, mas nós não estávamos interessados.»
A conversa fluía facilmente, enquanto o ancião nos contava «a história
da sua vida», interrompido, de quando em vez, por uma pergunta de
Marcos ou minha.
«Nunca fui ao Tanganhica», disse-nos ele. «Fiquei em casa depois de
ter casado.»
«Casou-se na igreja?», perguntei.
«Sim», respondeu, «mas também paguei lobolo - uma espera-pouco.»
«Onde é que você trabalhava?», perguntou Marcos.
«Aqui mesmo. Desbravava campos e cultivava-os. Pagava impostos -
pelo menos até ao massacre. Depois disso, as pessoas recusaram-se a pagar.»
A referência de Jacinto ao Massacre de Mueda - um acontecimento
que precipitara a luta de Moçambique pela independência - conduziu-
mos ao tema do seu envolvimento com o movimento nacionalista, que

207
K u piliku la

Jacinto também conhecera no contexto da vida da povoação. Como dan­


çarino mapika, contou-nos ele, era frequentemente convidado para dan­
çar em povoações vizinhas. O segredo da identidade humana do mapiko
não era o único que Jacinto ocultava. Aproveitava as suas viagens para
trabalhar ao serviço da Frelimo, a rede nacionalista clandestina a que ade­
rira recentemente: «Utilizava essas ocasiões para conhecer pessoas e de­
terminar quem era digno de confiança. Algumas pessoas já sabiam que
eu era da Frelimo, mas outras não sabiam. Eu falava uma linguagem es­
pecial, nessas alturas. Dizia a alguém que já conhecia sobre outra pessoa
que eu tinha observado: ‘Gostava que este homem fosse nosso amigo.
Que tal é ele?5E o meu amigo podia dizer-me: ‘Ele é fixe, é bom.5Então
eu começava a falar com essa pessoa. Ao fim de três ou quatro conversas,
eu dizia-lhe: ‘Tenho uma coisa para te contar5 e falava-lhe da Frelimo.
A maioria das pessoas dizia-me que aguardava, há muito tempo, que al­
guém as abordasse.»1
As palavras de Jacinto como porta-voz do movimento nacionalista te­
riam sido entendidas porque muitas pessoas da sua idade tinham, ao con­
trário dele, vivido e trabalhado no Tanganhica. Muitos destes jovens tes­
temunharam em primeira mão o surgimento, o crescimento e o triunfo
final do movimento que deu origem a uma Tanzânia independente. No
fim do período colonial, muitos emigrantes macondes moçambicanos
não só se filiaram na Federação do Trabalho do Tanganhica como tam­
bém possuíam cartões de membros da Tanganyika African National
Union (TANU) [União Nacional Africana do Tanganhica] (Adam e Gen-
tili 1983: 66-67). Com o tempo, os jovens moçambicanos que viviam e
trabalhavam a norte do rio Rovuma começaram a conceber um movi­
mento semelhante na sua pátria moçambicana. No final da década de
1950, segundo testemunhos orais, os emigrantes de Mueda com simpa­
tias protonacionalistas esforçavam-se por facilitar as ligações entre os mui­
tos clubes de dança, equipas de futebol e associações funerárias dos mi­
grantes macondes que trabalhavam nas plantações de sisal ou noutros
lugares do Tanganhica.12 Os seus esforços acabaram por levar à formação

1As danças mapiko há muito que constituíam um fórum de crítica subtilmente velada
dos portugueses, através do uso de máscaras que caricaturavam administradores, donos
de plantações ou funcionários da junta do algodão. As danças eram, assim, ambientes
plenos de subversão (Alpers 1983,149). Neste aspecto, as mapiko assemelhavam-se aos
cultos hauka entre os songhay do Níger, descritos por Stoller (1989, 147-163).
2 Os dirigentes políticos moçambicanos seguiram o exemplo dos mobilizadores da
TANU, que também recrutavam apoiantes entre os trabalhadores migrantes (Iliffe 1969),
sobretudo membros de clubes de dança e outras organizações sociais destes trabalhadores
(Ranger 1969).

208
Gente da noite

Durante a investigação que realizei em 1999, levei com igo um exemplar da dis­
sertação que concluíra para mostrar às pessoas com quem tinha trabalhado.
«Nang’olo» (ancião), disse eu a Jacinto Omar, «as histórias que o senhor e os
seus amigos m e contaram estão neste livro». «Então lê-mas», respondeu ele. D u­
rante horas, li passagens do texto, traduzindo de im proviso para o m eu público
de duas pessoas, Marcos (que aqui se vê com Omar) e o próprio protagonista.
D e vez em quando, o ancião corrigia-me ou dizia «nikweli» (é verdade). Quando
terminámos, perguntou-me se o trabalho ia ficar guardado np Arquivo Histórico
de Moçambique. Q uando lhe garanti que assim seria, agarrou-me na mão e disse
«wambone» (muito bem!).

da Makonde African National Union (União Nacional Africana Ma-


conde) (o nome inglês da organização e a sua sigla, MANU, reflectiam
a influência nesta exercida pela TANU), que posteriormente mudou o
seu título para Mozambique African National Union [União Nacional
Africana de Moçambique] (conservando a sigla MANU).3
A administração colonial portuguesa respondeu ao movimento proto-
nacionalista do Norte de Moçambique prendendo os representantes en­
viados para «o interion>, através da fronteira, para fazer reivindicações re­
lativas, nomeadamente, aos exíguos preços pagos aos produtores agrícolas

3 Ver em West (1997b, 145-151) uma análise mais pormenorizada da história da


M A NU , incluindo citações da bibliografia pertinente.

209
K u piliku la

do planalo de Mueda.4 Em 16 de Junho de 1960, uma multidão que se


reunira em frente do gabinete do administrador distrital em Mueda, para
apoiar os dirigentes protonacionalistas detidos no seu interior, foi alvejada
a tiro.5 Em resultado desse acontecimento (que os nacionalistas viriam a
denominar «o Massacre de Mueda»), os «mobilizadores» da MANU co­
meçaram a trabalhar clandestinamente em Mueda para alargar a base de
apoio do movimento protonacionalista, emitindo cartões de membros
semelhantes aos da TANU, que tantos migrantes já possuíam. Os mobi­
lizadores da MANU aproveitaram as redes sociais existentes no planalto,
procurando apoio, em primeiro lugar e sobretudo, entre as pessoas liga­
das às missões católicas.6 Rafael Mwakala, que na sua juventude foi re­
crutado pela MANU, contou-me: «Escolhiam as pessoas da missão porque
éramos instruídos. Disseram-nos que... seríamos os futuros administra­
dores de um Moçambique independente.»
Em 25 de Junho de 1962, por ordem de Julius Nyerere (presidente da
Tanzânia recém-independente) e de outros destacados dirigentes nacio­
nalistas africanos, a MANU acedeu a fundir-se com outros dois partidos
protonacionalistas - a União Democrática Nacional de Moçambique,
ou Udenamo, e a União Nacional Africana de Moçambique Indepen­
dente, ou UNAMI) -, formando a Frente de Libertação de Moçambique,
ou Frelimo, sob a direcção de Eduardo Mondlane, que se doutorara em
sociologia na América e tinha experiência de trabalho para o Conselho
de Tutela das Nações Unidas.
Pouco tempo depois, começaram a surgir fissuras na Frente.7 Líderes
rivais lutavam por um lugar à mesa onde, segundo imaginavam, se re­
partiriam os cargos públicos de um Moçambique independente. Os an-

4 Na altura destas detenções, as muitas associações e organizações que acabaram por


se juntar ainda não se tinham fundido para formar um grupo autodenominado M ANU;
isso só aconteceria em 1961.
5 Este acontecimento também é analisado em pormenor em West (1997b, 147-149);
ver também em Borges Coelho (1993a) documentos que transmitem a versão colonial
destes acontecimentos, e em Chipande (1970) um relato fornecido por Alberto Chipande,
um sobrevivente do incidente e futuro dirigente da Frelimo.
6 Segundo depoimentos orais prestados por antigos mobilizadores e clérigos das mis­
sões, os próprios padres de Montfort holandeses ofereciam, por vezes, apoio material aos
mobilizadores e, mais tarde, aos guerrilheiros da Frelimo. Maxwell (1999,125-127) conta
que, na Rodésia, os guerrilheiros do Exército de Libertação Nacional Africana do Zim-
babué (ZANLA) e do Exército Popular do Zimbabué (ZIPA) obtiveram um apoio seme­
lhante de algumas missões, durante a luta nacionalista zimbabueana.
7 A absorção da M A N U e de outros partidos protonacionalistas pela Frelimo, e as
tensões e cisões concomitantes, são tratadas de forma mais pormenorizada em Chilcote
(1972,470-475) e Opello (1975); ver também West (1997b, 149-151).

210
Gente da noite

No meu primeiro dia na cidade de Mueda, onde viera fazer uma visita explora­
tória, tinha uma delegação à minha espera quando acordei. Na companhia de
vários funcionários da Direcção Distrital da Cultura estava um homem lendário
a nível local: Faustino Vanomba, um dos líderes protonacionalistas cuja detenção
desencadeara os protestos que terminaram no Massacre de Mueda. Embora me
sentisse tentado a aproveitar aquela oportunidade para conversar com Vanomba
sobre o seu papel nesses acontecimentos históricos, expliquei-lhe que voltaria
algumas semanas depois para começar a trabalhar no planalto, onde ficaria ano
e meio, período durante o qual falaria detalhadamente com muitas pessoas.
Virei-me para Vanomba e fiz-lhe algumas perguntas de cortesia a seu respeito.
Ele olhou para mim, aborrecido, e disse: «Isto não é a sério. Se o senhor quer
saber coisas a meu respeito, deve ter o equipamento adequado. Quando regres­
sar, traga um gravador e uma máquina fotográfica. Não vou falar sobre estas coi­
sas para o senhor depois as esquecer. Esta história é importante e deve ficar do­
cumentada.» Depois de se certificar de que eu entendera a sua ordem,
acrescentou, com um sorriso: «Traga também uma câmara de vídeo. Quero ser
filmado em vídeo... e não se esqueça de trazer cigarros!» Acabei por me entre­
vistar Vanomba longamente e ele contou-me a história da sua vida. Ficou muito
contente quando lhe pedi para posar para uma fotografia diante do edifício da
administração onde estivera detido.

tigos dirigentes dos três partidos que se fundiram para formar a Frelimo
depressa foram marginalizados na hierarquia do partido por novos líde­
res, muitos dos quais tinham estado recentemente a estudar na Europa.
Algumas das disputas travavam-se literalmente em tomo da comida, pois
os marginalizados queixavam-se amargamente de que os novos dirigentes

211
K u piliku la

da Frelimo viviam nos melhores hotéis e comiam nos melhores restau­


rantes de Dar-es-Salaam, ao passo que eles, que tinham trabalhado du­
rante anos para lançar as bases do movimento, subsistiam com dificul­
dade (Chilcote 1972, 472). Organizações rivais dirigidas por antigos
membros descontentes da Frelimo vieram a público contestar o compor­
tamento elitista dos seus líderes, afirmando que a Frente pretendia utilizar
os habitantes do Norte de Moçambique como carne para canhão na sua
guerra contra os portugueses. Os chefes destas organizações recém-criadas
não conseguiram, todavia, atrair o apoio dos líderes nacionalistas africa­
nos de outras regiões do continente. Além disso, não conquistaram um
número substancial de seguidores entre os moçambicanos «no interiop>,
que tinham transferido a sua fidelidade para a Frelimo.
No planalto de Mueda, a Frelimo retomou o trabalho onde a MANU
o deixara, adoptando a sua rede clandestina de mobilizadores e recru­
tando novos membros através da emissão de cartões. As pessoas chama­
vam àqueles que as visitavam a coberto da noite - ainda, na sua maioria,
jovens originários do planalto - vashilo (gente da noite).
Os mobilizadores da Frelimo, incluindo o dançarino de mapiho]s.cmío
Ornar, falavam aos habitantes do planalto numa linguagem que reflectia
a ideologia socialista revolucionária da Frente.8 O colonialismo, afirma­
vam, era injusto porque permitia a exploração do homem pelo homem
- quer dos africanos pelos europeus, quer dos africanos pelos africanos.
Num Moçambique independente, afirmavam eles, os moçambicanos tra­
balhariam juntos de acordo com as suas capacidades e colheriam e con­
sumiriam os frutos do seu trabalho de acordo com as suas necessidades.9
Como veremos, porém, a gente de Mueda interrogava-se sobre o que
estes jovens sabiam - que poderes extraordinários possuiriam para terem
a audácia de desafiar o direito dos poderosos a comerem à vontade.
Lucas Ng’avanga, que trabalhou na Frelimo como mobilizador, expli­
cou-nos os métodos adoptados pelos vashilo: «Utilizávamos as redes de
likola [matrilinhagem]. Encontrávamos alguém de confiança numa likola
e pedíamos-lhe que contactasse a sua família. Ele descobria quem é que
queria comprar cartões e nós fazíamos esses cartões. Quando na likola )i
havia um grande grupo de pessoas que os tinham, essa gente ia falar com

8 N o decurso da nossa investigação, entrevistámos dezenas de homens e mulheres


que trabalharam com o mobilizadores da Frelimo.
9 Lan (1985, 127-128, 208) narra com o os guerrilheiros do ZANLA, no Zimbabué,
«educavam os camponeses» de forma semelhante, na linguagem do socialismo revolu­
cionário - embora com mais flexibilidade ideológica.

212
Gente d a noite

os anciãos - os chefes de povoação, o humu e outros - e dizia [a cada um


deles]: ‘Nang’olo [ancião], temos de lhe dizer uma coisa, algo que deve
saber. Esta Trelimo’ de que temos ouvido falar - estão a falar muito a
sério. Comprámos cartões. O senhor não tem um cartão e isso é peri­
goso.’»
Claro que possuir um cartão da Frelimo também era perigoso. Albino
Mwidumbi Mpelo, que vendia cartões da Frelimo aos habitantes do regu­
lado de Nkapoka, lembrava-se bem desse período: «Nós tínhamos medo
de contactar o régulo. Só falávamos com jovens - gente da nossa própria
geração. O meu próprio pai desconhecia totalmente as minhas actividades.
Abordávamps pessoas fora das nossas próprias fãmÜiàs - às vezes estranhos
-, mas tínhamo-los observado, por isso sabíamos o que sentiam no íntimo.
Falávamos com eles sobre os males do colonialismo e como as coisas cor­
reriam melhor se fôssemos independentes. Eu tinha estado no Tanganhica
e vira que as coisas eram boas lá. Dizíamos às pessoas que a Frelimo nos
podia libertar. Mas elas tinham medo do colonizador. O colonizador era
tolerado porque era opressivo, porque era perigoso.»
Em grande medida, o que tomava «o colonizador» tão perigoso era a
rede de autoridades gentílicas com quem trabalhava. Os régulos e, em
menor grau, os capitães-mores, tinham-se habituado a «comer bem» - ti­
nham-se habituado ao poder e à riqueza que lhes eram proporcionados
pelas suas funções de cobradores de impostos e recrutadores de mão-de-
-obra. Com o acordo tácito da administração colonial, muitos régulos
chegavam até a utilizar trabalho cbibcth nas suas próprias machambas (cam­
pos agrícolas) pessoais. Num Moçambique independente, imaginavam
eles, tais privilégios estariam em risco. Para proteger os seus interesses,
muitos régulos e os seus subordinados colaboravam estreitamente com
a polícia secreta portuguesa (Polícia Internacional e de Defesa do Estado,
ou PIDE) para protegerem a sua posição privilegiada à mesa do festim
colonial, denunciando os suspeitos de pertencerem à Frelimo nas suas
regiões. Outros patrulhavam as povoações do planalto com os portugue­
ses, procurando provas de ligação à Frelimo sob a forma de cartões de
membros e registos. Mais de uma vez, os registos apreendidos levaram à
prisão de muitos nacionalistas ou à sua fuga de Moçambique. De forma
mais continuada, membros individuais da organização eram capturados
e torturados até denunciarem os seus camaradas (West 2003a).
Os operacionais da Frelimo reconheciam, como mostra a supracitada
declaração de Mpelo, que o medo era o cimento que mantinha o regime
português unido a nível local. A chave do êxito, concluíram finalmente,
consistia em transformar a dinâmica do medo - como pressupunham as

213
K u piliku la

palavras de Lucas Ng’avanga ao aludir veladamente aos perigos de se não


possuir um cartão da Frelimo. A Frelimo ameaçava com a morte quem
se recusasse a aderir à Frente. Um mobilizador disse-nos, com toda a na­
turalidade: «O meu trabalho era distribuir panfletos e cartas da Frelimo
aos que ainda não estavam connosco. As cartas diziam: ‘Se continuares
a colaborar com o colonizador, nós matamos-te.5» As casas dos detracto-
res da Frelimo mais influentes ou escutados eram queimadas. Segundo
o mesmo mobilizador: «Isso funcionava com algumas pessoas. Outras
tinham de ser mortas.»
Em finais de 1964 e inícios de 1965, a Frelimo conseguiu afirmar-se
mesmo junto das autoridades gentílicas. Os testemunhos orais indicam
que esta tratava cada régulo, capitão-mor ou wajiri de modo diferente,
dependendo da sua atitude e do seu comportamento. Em muitos casos,
procurava recrutar as autoridades gentílicas para a organização, umas
vezes abordando-as directamente, outras enviando membros da família
simpatizantes da causa nacionalista para falar com elas. Noutros casos,
tais estratégias eram consideradas pouco eficazes ou mesmo perigosas.
Os régulos Naengo, Kavanga e Lidimo eram conhecidos na região do
planalto pela sua hostilidade em relação à Frelimo. Naengo, o régulo da
região de Jacinto Ornar, patrulhava as povoações da sua zona acompa­
nhado de tropas governamentais, espancando e insultando as pessoas, e
participando no incêndio das casas dos suspeitos de actividades nacio­
nalistas (Frelimo 1964, 6; West 1997b, 151). Acabou por pagar este
comportamento com a vida, quando a sua própria família ajudou ope­
racionais da Frelimo a assassiná-lo. Kavanga andava com uma pistola que
lhe tinha sido dada pelo administrador do distrito e chegou a matar dois
operacionais da Frelimo, quando, por acaso, estes montaram uma em­
boscada a um autocarro onde ele viajava, pouco depois de eclodirem as
hostilidades. Em Novembro de 1964, foi assassinado por um coman­
dante de destacamento da Frelimo, António Saide, que o visitou na sua
própria casa disfarçado de régulo. O facto de Lidimo ter denunciado o
próprio cunhado aos portugueses esteve na origem de uma tentativa de
assassínio falhada por parte da Frelimo, mas apesar desse malogro foi ob­
rigado a residir durante toda a guerra sob a protecção do exército colonial,
na cidade de Mueda.10 Estes audaciosos ataques a poderosas figuras da
autoridade local convenceram muita gente, incluindo outras autoridades
gentílicas, de que a colaboração com os portugueses podia ser tão peri-10

10 Kriger (1992,104) apresenta relatos semelhantes dos ataques do ZANLA aos chefes,
na Rodésia.

214
Gente da noite

gosa como a colaboração com a Frelimo, ou mesmo mais perigosa do


que esta.11
Após o início da guerra, em Setembro de 1964, sempre que possível,
a Frelimo reunia as populações nas proximidades das suas bases, nas terras
baixas arborizadas situadas junto do planalto, ou no interior deste. A Fre­
limo sugeria que, ali, os habitantes não só estariam mais a salvo das pa­
trulhas portuguesas que vinham retaliar dos ataques da guerrilha, como
também poderiam contribuir para a campanha nacionalista ajudando a
alimentar os guerrilheiros.
Nos primeiros meses de 1965, povoações inteiras, e até regulados in­
teiros, foram deslocados em massa. Em alguns casos, foram acompanha­
dos pelas autoridades gentílicas que antes os governavam. Nas «zonas li­
bertadas» da Frelimo, que seriam sua morada na década seguinte, estas
populações reproduziam, com frequência, as configurações espaciais dos
regulados onde tinham vivido antes; isto é, as pessoas anteriormente su­
bordinadas a um determinado capitão-mor agrupavam-se e, dentro dessa
área, os antigos habitantes de uma determinada povoação viviam muito
próximos uns dos outros. Mas mesmo nos casos em que as autoridades
gentílicas acompanharam o seu povo, não exerciam qualquer poder sobre
este nas zonas libertadas. Pelo contrário, os chamados vashilo - os jovens,
como Jacinto Omar, que tinham aderido à Frelimo muito antes dos seus
anciãos e que enfrentaram muitos riscos para mobilizar apoios para a in­
cipiente organização - assumiam, geralmente, posições de autoridade nas
estruturas políticas civis criadas pelos guerrilheiros.
A Frelimo chamava agora a esses responsáveis «chairmen» (adoptando
o termo inglês da nomenclatura política dos movimentos do Tanganhica,
entre os quais muitos militantes da Frelimo adquiriram experiência po­
lítica). As povoações anteriormente agrupadas sob a autoridade de um
determinado capitão-mor ou de vários wajiri eram agora denominadas
«town branches» e colocadas sob o controlo de um «town branch chairman».
Este último trabalhava em coordenação com dois «comités»: um comité
responsável pela recolha de alimentos para as populações refugiadas e
para os guerrilheiros das bases próximas, e outro incumbido de resolver
eventuais litígios que surgissem entre a população. Ambos os comités
eram, geralmente, compostos por anciãos respeitados das povoações

11 D os dezoito régulos da metade sul do planalto, oito acabaram por se pôr do lado
da Frelimo e um foi preso pelos portugueses. A Frelimo matou três. Dois refugiaram-se
junto dos portugueses. Três fugiram para a Tanzânia (não consegui obter quaisquer dados
sobre o régulo remanescente) (West 1997b, 164-168,312).

215
K u piliku la

constituintes, incluindo chefes de povoação (alguns dos quais tinham


sido régulos, capitães-mores ou wajiri). Dizia-se que o town branch cbair-
man era «eleito» por estes comités mas, na prática, era nomeado pela Fre-
limo, sendo ele, e não os comités, quem exercia o poder máximo como
intermediário de confiança entre a Frente e a população que vivia na sua
zona.
Também havia presidentes e comités a nível do «local branch», o qual
abrangia, na maioria dos casos, populações que outrora viviam num
único regulado.12Também neste caso, o presidente era sempre um dos
jovens que trabalharam durante muito tempo como mobilizadores da
Frelimo (Jacinto Ornar, por exemplo, foi presidente de uma secção
local) e o ex-régulo, se exercia alguma função, era apenas como membro
de um ou de ambos os comités. Acima das secções locais, a Frelimo
criou «area bmnches», secções de zona (correspondentes a um posto ad­
ministrativo colonial) e estas estavam, por sua vez, subordinadas a uma
secção regional, «regional branch» (correspondente a um distrito colonial
inteiro, por exemplo, Cabo Delgado, Niassa, Tete).13 Estes níveis eram
governados por um comissário e dois comités. A Frelimo escolheu Lá­
zaro Nkavandame - o homem empreendedor que tinha fundado coo­
perativas agrícolas bem sucedidas em finais da década de 1950 - para
comissário regional de Cabo Delgado e deu-lhe a responsabilidade de
nomear e supervisionar os presidentes das secções de zona em Cabo
Delgado.
As estruturas de autoridade da Frelimo reproduziam as hierarquias
geográficas estabelecidas no planalto pelo regime colonial - hierarquias
que faziam pouco sentido histórico para a sua população. Mais ainda,
os presidentes exerciam poderes surpreendentemente semelhantes aos
das autoridades gentílicas. Os guerrilheiros confiaram aos presidentes a
cobrança de impostos em géneros alimentícios e o recrutamento de pes­
soas que servissem a guerrilha como soldados, milicianos, carregadores,
mensageiros e espiões. Neste sentido, os presidentes passaram a ser os
administradores de um Moçambique independente - ou, pelo menos,
das «zonas libertadas» da Frelimo -, tal como fora prometido aos seus
recrutas nos primeiros tempos da mobilização nacionalista.
Porém, noutros sentidos, a Frelimo subvertia as hierarquias políticas
existentes. Ao procurar canalizar todas as energias disponíveis para o

12 N o fim da guerra, muitos regulados tinham-se dividido em mais de um domínio


administrativo, a este nível, na hierarquia administrativa da Frelimo.
13 Na altura, as actuais províncias eram classificadas com o distritos pelos portugueses.

216
Gente da noite

apoio ao esforço da guerrilha, a Frente afrouxou os tradicionais constran­


gimentos impostos aos jovens pelos seus anciãos e às mulheres pelos ho­
mens (Isaacman e Isaacman 1984; West 2000). Os objectivos dos guerri­
lheiros eram tão radicais nestes termos que muitos anciãos residentes nas
zonas libertadas, bem como vários presidentes da Frelimo e até o comis­
sário de Cabo Delgado, Lázaro Nkavandame, se lhes opunham aberta­
mente (Munslow 1983; Machel 1985, 53).
As tensões entre a direcção da Frelimo, sediada na Tanzânia, e Lázaro
Nkavandame e a sua rede de presidentes foram agravadas por outras
preocupações de ordem prática e ideológica.14 O êxito da luta da Fre­
limo dependia não só de uma produção agrícola ininterrupta (para ali­
mentar os guerrilheiros) nas zonas libertadas, mas também do transporte
dos excedentes agrícolas através da fronteira, onde podiam ser trocados
por bens de consumo básicos, necessários para assegurar alguma nor­
malidade à vida das populações civis, de modo a evitar o seu êxodo em
massa. Os presidentes eram responsáveis por garantir que as pessoas
continuavam a produzir excedentes comercializáveis de amendoins, cas­
tanha de caju, oleaginosas, borracha e cera, para serem levados para fora
das zonas libertadas à cabeça de civis protegidos por escoltas de guerri­
lheiros. Nkavandame estava incumbido de assegurar que os agricultores
civis podiam trocar os seus excedentes, nas lojas geridas pela Frelimo no
lado tanzaniano da fronteira, pelos produtos básicos de que necessita­
vam para sobreviver, tais como roupas, sabão, ferramentas, panelas,
facas, fósforos e querosene. Também estava encarregado de supervisio­
nar a armazenagem dos excedentes de milho, mandioca e sorgo produ­
zidos no interior de Cabo Delgado, o transbordo destes excedentes, na
medida do necessário, para outras zonas do interior, e a venda das exis­
tências em excesso (juntamente com culturas comerciais não consumá­
veis) no mercado tanzaniano, para angariar receitas destinadas a apoiar
o esforço de guerra.
Nkavandame, todavia, geria as redes comerciais da Frelimo da mesma
fora que gerira as suas próprias empresas na época colonial, estabelecendo
estruturas de trabalho em pirâmide e obtendo lucros para si próprio sem­
pre que isso era possível (Machel 1985, 58-59; Negrão 1984, 19). Nka­
vandame, diziam muitos, «engordava» com a guerra. Quando as condi­
ções comerciais oferecidas nas «lojas de Lázaro» começaram a gerar

14 As tensões entre Nkavandame e outros dirigentes da Frelimo são tratadas em por­


menor em Opello (1975); Frelimo (1997); Munslow (1983); Negrão (1984); Machel
(1985); Brito (1988,21-23). Ver em West (1997b, 174-177) uma análise mais dilatada.

217
K u piliku la

descontentamento entre os moçambicanos do interior e os guerrilheiros


ficavam por vezes sem provisões devido à diminuição da produção e do
comércio (Negrão 1984, 10, 19), os comandantes militares da Frelimo
(muitos dos quais eram antigos clientes do movimento cooperativo de
Nkavandame) ficaram cada vez mais inquietos e agitados (Frelimo 1977,
136; Munslow 1983)
Quando Eduardo Mondlane, o presidente da Frelimo, foi assassinado
com uma carta-bomba, no dia 3 de Fevereiro de 1969, em Dar-es-Salaam,
Nkavandame foi apontado como suspeito. Apressou-se, por isso, a aban­
donar a Frelimo e fugiu da Tanzânia, entregando-se aos portugueses num
posto fronteiriço do rio Rovuma.
Na sequência destes acontecimentos, as estruturas políticas e militares
da Frelimo foram integradas, nos níveis mais elevados, sob uma única
hierarquia de comando (Munslow 1983). As estruturas a nível local tam­
bém foram subtilmente transformadas. A maioria dos presidentes aos
níveis das secções regionais e de zona fugira com Nkavandame, mas os
presidentes aos níveis local e municipal permaneceram no interior. Ja­
cinto Ornar figurava entre estes últimos. Ele e o seu grupo foram obri­
gados a fazer um treino político-militar intensivo, durante seis meses,
na principal base de retaguarda da Frelimo, situada em Nachingwea, na
Tanzânia, onde foram instruídos na ideologia socialista e nos métodos
de guerrilha da Frelimo e consciencializados da sua subordinação à ca­
deia de comando militar (Frelimo 1977,46-47). Quando regressaram ao
interior, passaram a ser denominados «secretários». Trabalhavam agora
em coordenação com «conselhos» formados por delegados locais de vá­
rios departamentos da Frelimo - por exemplo, Educação e Cultura,
Saúde, Produção e Comércio. A nomenclatura das zonas que adminis­
travam também mudou de «town branch» e «local branch» para «círculo»
e «localidade», respectivamente.15A Frelimo afirmava que os conselhos
e comités a estes níveis constituíam «instituições democráticas», mas na
prática, a direcção central da Frelimo nomeava os membros dos conse­
lhos a todos os níveis, e eram estes conselhos que agora nomeavam os
membros dos comités.16

15 Ao mesmo tempo, as «secções de zona» tomaram-se «distritos» e as «secções regio­


nais» tomaram-se «províncias».
16 Ver em Machel (1985, 19) uma declaração do papel de vanguarda do partido nas
eleições. Ricliard Gibson conclui que as «autarquias virtuais dos guerrilheiros cresceram
nas zonas controladas pela guerrilha no interior de Moçambique» (1972,279).

218
Gente da noite

M ais im p ortan te ainda, c o m o v erem o s n o s cap ítu los seguin tes, a es­
trutura d e c o m a n d o m o d ifica d a fa cilitou o s esfo rço s d o s líderes da Fre-
lim o para m an terem ta n to o s guerrilheiros c o m o o s civis so b vigilância
e ob terem , assim , u m a p erspectiva fu n d am en ta l sobre o fu n cio n a m en to
d o p o d e r n o s seu s d o m ín io s florestais.

219
Capítulo 15

Jogos mortíferos de esconde-esconde


Numa manhã de Agosto de 1994, Marcos levou-me ao lugar onde, no


fim da guerra da independência de Moçambique, a Base Central móvel
da Frelimo estivera localizada. Um pequeno bosque de árvores altas des­
tacava-se numa paisagem despida de vegetação pelas famílias de agricultores
que «guardavam» o lugar mais de duas décadas depois do fim da guerra.
Depois de examinar as nossas «credenciais», um pequeno contingente de
homens escoltou-me a mim, a Marcos e a outro veterano da Frelimo que
viajara connosco, Rafael Mwakala, ao longo dos caminhos que atravessa­
vam a densa mata. Lá dentro, restavam poucos testemunhos físicos da base.
Uma única cabana com telhado de colmo - que, segundo os nossos guias,
tinha de ser reconstruída todos os anos - assinalava o local onde Samora
Machel se alojava. Ao lado, estava uma bomba de napalm com uma má­
quina de escrever ferrugenta em cima. A primeira, segundo me informa­
ram, caíra próximo da base sem explodir; a segunda fora «capturada» du­
rante um ataque da Frelimo a um posto colonial.
A luz conseguia penetrar, de algum modo, no coberto florestal, vinda
do céu indiscemível por cima de nós. Imaginei aviões a sobrevoar-nos e
perguntei a mim mesmo como seria viver no temor constante dos bom­
bardeamentos aéreos. Rafael pareceu escutar os meus pensamentos.
Disse: «Quando a guerra começou, desaparecemos todos no mato. Po­
voações inteiras sumiram de um dia para o outro no shilumu. Em shima-
konde, essa palavra significa uma mata densa, muito densa, que nunca
foi cortada - tão densa que, dentro dela, está escuro durante o dia.»
Rafael utilizava uma catana que um dos nossos anfitriões lhe tinha
emprestado para abrir caminho através da vegetação que ameaçava apa-'
gar, constantemente, os trilhos que atravessavam o local da base.
Continuou: «[Lá em baixo, na planície e] aqui, no centro do planalto,
longe das... nascentes de água e das estradas abertas pela administração
portuguesa... havia muito shilumu onde nos podíamos esconder. Aqui

221
K u piliku la

Quando cheguei a Pemba, a primeira pessoa que contactei para a investigação in­
formou-me de que eu deveria encontrar-me com Rafael Mwakala. «O Rafael tem
experiência com pessoas com o você», disse-me ela. N a verdade, Mwakala servira de
intérprete à equipa de antropólogos chefiada por Jorge Dias, que trabalhou n o pla­
nalto de Mueda em finais da década de 1950. Quando viajava com a equipa de
Dias, Mwakala esgueirava-se, depois de escurecer, para recrutar homens jovens para
a causa da Frelimo - sem que Dias e os seus colegas dessem por isso (West 2004a,
n. 311). Aqui, está a posar com um exemplar da etnografia publicada pela equipa
de Dias, aberto numa página em que se pode ver uma fotografia da sua esposa.

eles não nos conseguiam ver. Podíamos organizar os nossos ataques, fazer
emboscadas aos soldados em [patrulha] e voltar a desaparecer na flo­
resta.» Enquanto falava, Rafael mimava os actos que descrevia, crivando
o seu inimigo imaginário com as descargas de uma arma automática.
«Nós éramos invisíveis; eles não podiam fazer nada. Por isso, tinham
de nos sobrevoar, abrir caminho através da floresta e queimar o coberto
florestal, para chegar até nós. A guerra era isso.»
Seguimos os olhos de Rafael, que se elevaram para o céu.
«Tínhamos de nos manter um passo à frente, sempre fora de vista, à
escuta dos aviões, prontos para nos abrigarmos ou mudarmos de poiso
de um momento para o outro.»
***

A guerra da independência de Moçambique, tal como nos foi descrita


por aqueles que nela combateram, foi um arriscado jogo de esconde-es-

222
Jogos mortíferos de esconde-esconde

conde que durou toda uma década. Ser visível para o inimigo era estar
vulnerável. Ser invisível era estar seguro. Poder ver o inimigo era ser letal.
A dinâmica da guerra foi mudando ao longo da sua duração, juntamente
com as relações ópticas mantidas entre os combatentes.
Nos primeiros anos da guerra, os guerrilheiros da Frelimo operavam em
pelotões de seis a doze homens - reunindo-se em destacamentos para os
ataques de maior dimensão - e assediavam as instalações e rotas de abas­
tecimento militares dos portugueses (Opello 1974, 29). Armados pela
China, a União Soviética e a Europa Oriental, muitos guerrilheiros da Fre­
limo possuíam armas mais sofisticadas do que as das tropas portuguesas
contra quem lutavam (Henriksen 1978,32). Em todo o caso, as minas ter­
restres eram responsáveis por dois terços das baixas portuguesas, gerando
psicose das minas e uma postura defensiva e estática nas tropas coloniais
(Henriksen 1983:44; Monlcs 1990,73). Normalmente, as patrulhas portu­
guesas não se afastavam muito das suas bases - situadas ao longo do rio
Rovuma, na cidade de Mueda e na missão de Nang’ololo - e regressavam
pouco antes do anoitecer. Quando se aventuravam mais longe, os portu­
gueses eram sujeitos àquilo a que Frelimo chamava «flagelação» - embos­
cadas rápidas e súbitas, que produziam um número reduzido mas cons­
tante de baixas (Monlcs 1990, 71). Depois de atacarem, as unidades da
Frelimo desapareciam imediatamente no mato circundante. As contrame­
didas, severas mas esporádicas, dos portugueses, que se abatiam sobre as
concentrações de civis suspeitas de acolherem ou apoiarem os combatentes
da Frelimo, só serviam para gerar um grande número de refugiados, que
fugiam para a Tanzânia e eram, muitas vezes, recrutados pela Frelimo.
Em 17 de Maio de 1970, o General Kaúlza de Arriaga - um perito em
guerra de guerrilha, que estudara com especialistas de contra-insurreição
americanos para aprender as tácticas utilizadas na Guerra do Vietname -
chegou a Moçambique, jurando que a sua «Operação Nó Górdio» aca­
baria com a Frelimo até ao final do ano. Kaúlza de Arriaga utilizou trac­
tores de terraplenagem e pulverizadores de desfolhantes para abrir uma
rede de corredores de vigilância na densa mata do planalto. Lançou bom­
bas de napalm sobre alvos de guerrilha e civis, e recorreu a um forte apoio
aéreo para proteger os mais de 35 000 soldados portugueses envolvidos
em missões de limpeza de «busca e destruição». Ao fim de alguns meses,
porém, os custos operacionais, a fadiga do exército e a habilidade com
que a Frelimo escapava a estes ataques levaram os portugueses a empreen­
der missões de limpeza menos dispendiosas (e menos eficazes) a pé,
apoiados por bulldozers e rebenta-minas que não conseguiam avançar mais
de cinco a dez quilómetros por dia (Monks 1990, 97).

223
K u piliku la

Kaúlza de Arriaga resolveu aplicar outra página do manual de opera­


ções dos EUA no Vietname, executando um programa destinado a con­
quistar o «coração e a mente», das populações residentes nas zonas con­
troladas ou ameaçadas pela Frelimo. Foram enviados técnicos
«psicossociais» para as zonas ainda controladas pelos portugueses (como
a cidade de Mueda e a zona contígua à missão de Nang’ololo), onde fa­
ziam campanhas de vacinação. Foram apresentados projectos de desen­
volvimento às populações locais em alternativa ao «terror» e à «destrui­
ção» causados pelos guerrilheiros.1
As zonas controladas pela Frelimo eram sobrevoadas por aviões que
lançavam folhetos com imagens de guerrilheiros andrajosos e desampa­
rados a render-se às autoridades portuguesas, que os acolhiam calorosa­
mente e lhes davam dinheiro pelas suas armas (Henriksen 1983: 103).
Outros panfletos transmitiam mensagens de Lázaro Nkavandame - o co­
missário regional da Frelimo dissidente - declarando que a Frelimo tinha
traído o povo maconde e que os guerrilheiros já não eram bèm-vindos
em solo maconde. Alguns aviões chegavam a transmitir mensagens gra­
vadas em shimakonde - uma táctica de que os franceses tinham sido pio­
neiros na Argélia e no Vietname e a que as populações chamavam «gritar
do céu» (Henriksen 1983, 103).12 A voz mais frequentemente utilizada
era a de Nkavandame, que dizia à população para abandonar o mato e
pôr fim a uma guerra em que eles, macondes, estavam a sofrer grandes
perdas.3 No mesmo período, ofereceu-se a vários macondes que tinham
sido presos pela PIDE, depois do Massacre de Mueda e antes da guerra,
a possibilidade de serem libertados, se colaborassem com um plano -
«organizado por Lázaro [Nkavandame]», segundo lhes disseram - para

1A pedra angular destes projectos eram os aldeamentos - aldeias planificadas que, su­
postamente, deveriam assegurar cuidados de saúde, água potável e educação aos seus ha-
bitántes, mas que, de facto, constituíam pequenos povoados estratégicos. Construíram-
-se muitos aldeamentos na parte sul de Cabo Delgado, mas na parte norte do distrito
colonial só foi construído um pequeno número (em redor da cidade de Mueda e ao
longo da fronteira tanzaniana), apesar dos ambiciosos planos de fazer aldeamentos ao
longo de todo o rio Rovuma (ver Opello 1974,33; Calvert 1973, 83).
2 Lan (1985,7) menciona a utilização desta técnica pelas forças rodesianas na guerra
da independência do Zimbabué.
3 Muitos entrevistados insistiam que as palavras de Lázaro Nkavandame eram cuida­
dosamente formuladas para transmitir uma mensagem oposta à que os portugueses pre­
tendiam. Quer fosse verdadeira quer não, esta percepção indicava não só a recusa po­
pular em acreditar na campanha de aviltamento da Frelimo contra Nkavandame, mas
também o persistente empenhamento da população na ideia da luta armada pela inde­
pendência.

224
Jogos mortíferos de esconde-esconde

reentrarem nas zonas dominadas pela Frelimo e convencerem os guerri­


lheiros e os seus apoiantes a desistirem da guerra.4
O início da estação das chuvas, em Novembro de 1970, obrigou
Kaúlza de Arriaga a suspender a Operação Nó Górdio. A campanha pro­
duzira perdas não só entre a Frelimo,5 mas também entre a população
das «zonas libertadas».6 Contudo, os clamores de vitória de Kaúlza de
Arriaga eram prematuros.7 Apesar de ter «capturado» 61 bases e 165
acampamentos (Beckett 1985, 155), encontrara a maioria destas instala­
ções desertas e o mesmo acontecera, de um modo geral, com os acanto­
namentos «civis». Os guerrilheiros da Frelimo e a população entre a qual
viviam sumiam-se habilmente na floresta sempre que os portugueses se
aproximavam.
Pelo contrário, a Frelimo parecia saber sempre onde os portugueses
estavam e ser capaz de os atacar impunemente. Em 1970, as baixas dos
portugueses foram consideravelmente mais pesadas do que nos anos an­
teriores, pois os destacamentos da Frelimo dividiam-se em grupos extre­
mamente móveis de três homens, minando as estradas por detrás dos
soldados portugueses que as abriam e encurralando-os em locais onde
era fácil montar-lhes emboscada.
Para a Frelimo e os seus apoiantes, porém, o pior ainda estava para vir.
Com os «sucessos» inconclusivos do Nó Górdio, os portugueses foram

4 Em 1967 a PIDE, sob a nova denominação de Direcção Geral de Segurança, ou


DGS, começou a utilizar um «centro de reeducação» denominado «Centro de Recupe­
ração de Terroristas da Machava» para «reabilitar» os prisioneiros políticos (ver M elo etal.
1974,223; Opello 1974,33). A maioria dos escolhidos para «trabalhar com Lázaro» pro­
vinha deste programa ou da prisão de Mabalane (ver em Frelimo 1970,12, um relato de
Muarabu Shauri, que foi «recrutado» para participar). Depois de entrarem nas zonas da
Frelimo, muitos dos que «aceitaram trabalhar com os portugueses» disseram às autorida­
des da Frelimo para que é que tinham sido enviados. Foram «desinstruídos» e «reeduca­
dos» pela segurança da Frelimo e, nalguns casos, acabaram por ser autorizados a juntar-
-se de novo à sua causa. Outros - o mais famoso dos quais foi Atanásio Chitama, acusado
de «colaboração» e executado pela Frelimo - parecem ter honrado os seus compromissos
com os portugueses. Para um tratamento mais pormenorizado destes acontecimentos,
ver West (2003a).
5 Henrilcsen (1983; 51) relata a deserção de comandantes e comissários, juntamente
com simples guerrilheiros, em resultado da Operação N ó Górdio.
6 Monks afirma que «milhares de membros da tribo maconde (entre outros) deserta­
ram, em resposta ao apelo de Nkavandame a que os macondes depusessem as armas e à
própria propaganda de panfletos de Portugal» (1990,104).
7 N o mesmo ano, a Frelimo intensificou as suas operações na província de Tete, atra­
vessando o rio Zambeze pela primeira vez. Este facto obrigou os militares portugueses
a enfrentarem a nova ameaça e permitiu que a Frelimo pudesse respirar em Cabo Del­
gado.

225
K u piliku la

obrigados a alterar novamente a estratégia militar para reduzir os custos


e diminuir as baixas. À semelhança do modelo de «vietnamização» ame­
ricano, as forças armadas portuguesas em Moçambique foram «africani-
zadas».8 Em 1972, foram utilizadas contra a Frelimo duas unidades de
elite constituídas por soldados africanos: os Grupos Especiais, ou GE, de
boina amarela, e os Grupos Especiais Pára-quedistas, ou GEP, de boina
vermelha. Estas unidades eram «90% africanas», de acordo com a maioria
dos relatos (Wheeler 1976,243) e conferiram maior mobilidade ao exér­
cito português, permitindo-lhe desferir ataques mais mortíferos.9 Os GE
conseguiam passar períodos consideráveis longe da base, localizando si­
lenciosamente os sítios de concentração e actividade dos rebeldes, en­
quanto os GEP podiam atacar subitamente a partir do ar.
Rafael Mwalcala descreveu-nos os efeitos produzidos pelas novas ca­
pacidades das forças armadas portuguesas: «Eles abriam um buraco na
floresta com bombas de napalm. A seguir, vinham os helicópteros e lan­
çavam soldados na zona. Eles já chegavam ao solo a disparar e queima­
vam as povoações e as colheitas. Ao mesmo tempo, os helicópteros voa­
vam em círculo, a disparar sobre as pessoas. Matavam, matavam,
matavam, matavam. Nunca faziam prisioneiros. Tudo isto deixava a po­
pulação em pânico.»
Estes ataques eram complementados por uma maior utilização de des-
folhantes para pulverizar tanto o coberto florestal como as áreas de pro­
dução agrícola (Frelimo 1972, 6). A Frelimo acabou por responder com
a integração de mísseis terra-ar (SAM) no seu arsenal de armamento, no
intuito de contrariar a superioridade aérea portuguesa (Beckett 1985:146),
mas esta medida não pôs fim ao reinado de terror dos portugueses.10
Nas memórias da maioria dos antigos guerrilheiros e dos civis, a infil­
tração e a espionagem foram as características distintivas do sucessor de
Kaúlza de Arriaga, General Tomás Basto Machado, que em 1973 assumiu

8 Rriger (1992,112) descreve uma estratégia semelhante para africanizar o exército da


Rodésia do Sul, no final da década de 1970.
9 Henriksen (1983) indica que estas forças contavam com aproximadamente 6000 a
8000 GE e 3000 GEP, no fim da guerra. Segundo Calvert (1973, 82), os GE e os GEP
eram, na sua maioria, guerrilheiros da Frelimo capturados que acederam a juntar-se ao
exército colonial.
10 Bedcett (1985, 154) narra que, em 1973-1974, os portugueses utilizavam em M o­
çambique doze Fiat G-92, quinze aviões de instrução Harvard T6 convertidos, catorze
helicópteros Alouette, dois helicópteros Puma, cinco aviões de transporte Nord-Adas e
sete aviões de transporte DC-3. Indica ainda que os portugueses efectuaram, em 1971,
3657 missões terrestres (em todo o território de Moçambique) e 14 398 missões aéreas,
acrescentando que as sortidas aéreas foram 28 060 (1985,156).

226
Jogos mortíferos de esconde-esconde

o comando da guerra portuguesa em Moçambique. A publicação da Fre-


limo em língua inglesa, Mozambique Revolution, descrevia assim a táctica
usada por Machado, nesse ano:

A infiltração de agentes nas nossas zonas intensificou-se nos últimos meses.


Eles têm com o tarefas específicas fomentar a subversão nas nossas fileiras, as­
sassinar dirigentes da Frelimo e desacreditar a nossa organização aos olhos
do povo. Por exemplo, enviam grupos de africanos fardados e armados com o
os nossos combatentes, que fingem ser soldados da Frelimo e massacram a
população, violam as mulheres e roubam as colheitas.11 Tudo isto em nom e
da Frelimo.

Ao mesmo tempo que os portugueses intensificavam a sua luta de con­


tra-insurreição, o comandante da Frelimo Samora Machel e o seu estado-
-maior pregavam incessantemente a necessidade de «vigilância» entre os
quadros da organização e as populações a seu cargo (ver, por exemplo,
Frelimo 1973: 4). Durante este período, o posto de comando militar da
Frelimo, Base Moçambique, foi dividido em quatro sub-bases. As ope­
rações militares eram organizadas pela Moçambique A, também chamada
Base Central. A artilharia era gerida pela Moçambique B, que também
assegurava a defesa aérea da Moçambique A. A Moçambique C supervi­
sionava a produção de culturas e a criação de gado. A Moçambique D
dedicava-se em exclusivo às questões de segurança interna. O chefe de
segurança provincial Salésio Teodoro Nalyambipano e o seu adjunto
Ladis «Lagos» Lidimo - ambos nativos de Mueda - trabalhavam a partir
de Moçambique D, em coordenação com agentes de segurança e uma
rede de informadores espalhados por todas as zonas libertadas da Fre­
limo; a sua função era manter a «vigilância» contra potenciais «inimigos
internos».
Os suspeitos ou acusados de sabotagem ou de colaboração com os
portugueses eram levados pela segurança da Frelimo para a Moçambique
D. «D» (como a sub-base era geralmente chamada) estava, ao que diziam,
dividida em duas zonas. Uma, segundo as palavras de um guerrilheiro
que trabalhou como supervisor de uma herdade colectiva da Frelimo
próxima de D, era reservada a prisioneiros «que tinham cometido peca­
dos pequenos». Muitos deles eram mulheres que tinham «falado mal
da Frelimo»; alegadamente eram obrigados a trabalhar nas herdades co-
lectivas na produção de alimentos para a base. A outra zona estava reser-

11 Munslow (1983,130) sugere que estes impostores eram GE e GEP.

227
K u piliku la

vada «àqueles cujos pecados eram maiores». Neste grupo incluíam-se os


suspeitos de serem infiltrados, colaboradores e sabotadores. Segundo o
mesmo homem: «[Esses prisioneiros] eram trazidos de noite e não po­
diam ser visitados. Não trabalhavam nos campos. Quem falasse com eles
ia juntax-se-lhes. Eram homéns, na sua maioria.»
Apesar do isolamento em que eram mantidos, estes prisioneiros eram
ocasionalmente vistos por pessoas que viviam próximo de D, e acabou
por se saber a que condições estavam sujeitos. Uma testemunha contou-
-nos: «Mantinham-nos presos em fossos escavados no solo. Eram devo­
rados por piolhos, pulgas e outros insectos, até alguns deles enlouquece­
rem. As vezes um fosso aluía, enterrando-os vivos.» Outras testemunhas
contavam histórias horríveis de métodos de tortura perversos e execuções
sumárias, que faziam lembrar as técnicas usadas pela polícia secreta por­
tuguesa nos operacionais da Frelimo capturados.12
O Mozambique Revolution apresentava um relato bastante animado dos
êxitos da segurança interna da Frelimo, neste período: «A vigilância atenta
do nosso povo e o seu conhecimento da correcta linha política da Fre­
limo frustram os objectivos da [contra-insurreição portuguesa]. Muitos
agentes inimigos foram presos pela própria população e levados para as
bases da Frelimo.» Um antigo comandante de destacamento recordava
este período de forma bastante diferente. Contou-nos: «No tempo do
Machado, as bombas não eram nada. A guerra psicológica era muito pior
do que a guerra aberta. Machado acabou com muita gente. Enviou agen­
tes infiltrados para trabalharem entre nós. Todos desconfiávamos uns dos
outros. Não se podia falar com ninguém. Por isso, reagimos aumentando
a vigilância. Matámos muita gente. Só mais tarde víamos, por vezes, que
essas pessoas não estavam ao serviço do inimigo.»13
Pessoas que se encontravam no sítio errado à hora errada eram erro­
neamente acusadas de espionagem. Outras eram classificadas como sa-
botadoras por demorarem demasiado tempo a entregar uma mensagem,
estragarem uma peça de equipamento «militar» tão simples como uma
bicicleta, ou servirem chá «demasiado quente» a um comandante. Um
guerrilheiro disse do clima de suspeição que impregnava as zonas liber­
tadas nesse tempo: «A nossa própria mãe não nos recebia nem nos cozi-

12 Noutro local (West 2003a), escrevi mais demoradamente sobre o aparelho de segu­
rança da Frelimo e a violência contra os moçambicanos durante a guerra da indepen­
dência.
13 Kriger (1992, 156) apresenta relatos semelhantes da execução de pessoas suspeitas
de traição pelos guerrilheiros zimbabueanos.

228
Jogos m ortíferos de esconde-esconde

nhava o jantar se não tivéssemos guias de marcha assinadas por um co­


mandante da Frelimo.» Outro contou-nos: «Eu adormecia à noite a re­
produzir na minha cabeça as conversas do dia, para me certificar de que
não ‘me tinha comprometido’ e acordava, de manhã, a passar mental­
mente em revista os meus possíveis inimigos.»
Como veremos, as suspeitas que impregnavam as «zonas libertadas»
durante a guerra da independência moçambicana expressavam-se não só
na linguagem da insurreição e da contra-insurreição (e da espionagem e
da contra-espionagem), mas também na linguagem da feitiçaria e da con-
trafeitiçaria, na qual se sugeria que os mortíferos jogos de esconde-es­
conde que determinavam o conflito eram jogados não só por soldados,
mas também por feiticeiros.

229
Capítulo 16

Revolução, ciência e feitiçaria


«

«A Frelimo tinha melhores escolas nas zonas libertadas do que as que


temos agora, disse-me Cristiano Lipangati Lipyalulce, com orgulho. Es­
távamos sentados na sala de estar do degradado Hotel Cabo Delgado,
em Pemba, falando informalmente sobre a guerra da independência mo--
çambicana. Lipangati, um homem de Mueda que agora vivia e trabalhava
em Pemba, dissera-me anteriormente que estava a estudar numa das mis­
sões quando a guerra rebentou, tendo fugido com a família para uma
zona controlada pela Frelimo. Quando manifestou o desejo de prosseguir
os estudos, os dirigentes da organização pediram-lhe que fosse «um fós­
foro que acendesse outros». Depois de fazer treino de guerrilha em Ba-
gamoyo, na Tanzânia, foi destacado para o interior pelo comando da
Frelimo. A sua missão era ensinar numa escola do mato, nas zonas liber­
tadas.
«Andava sempre armado, para me defender a mim e aos meus alunos»,
contou-me ele.
Continuámos a conversar sobre os recursos que a Frelimo consagrava
à educação, durante a guerra. Outras pessoas tinham-me dito que a or­
ganização olhava para os jovens das zonas que controlava como «o futuro
da nação». Lipangati concordava com isto, mas lembrou que a Frelimo
também ensinava os adultos das zonas libertadas.
«A guerra de guerrilha é uma ciência moderna», disse ele. «As pessoas
tinham de ser instruídas para combaterem numa guerra dessas.»
A olhadela qüe deitou ao caderno que eu trazia comigo sugeria que
eu deveria escrever o que me estava a contar. Esperou que eu tirasse uma
caneta do meu saco e prosseguiu: «Deviam saber ler e escrever para enviar
mensagens de uma base para outra. Tinham de saber somar e subtrair
para fazer as contas dos materiais comprados e vendidos pelas zonas li­
bertadas. Tinham de saber fazer equações básicas para disparar um mor­
teiro. Tinham de compreender os fundamentos da biologia para vacina-

231
K u piltku la

rem as pessoas de modo a prevenir a propagação de epidemias nas zonas


libertadas.»
Fitou-me com intensidade. «A revolução e a ignorância são incompa­
tíveis», asseverou.

Ao mesmo tempo que a ameaça da violência impregnava a vida quo­


tidiana nas zonas libertadas da Frelimo, esta última combatia a pobreza,
a ignorância e a doença entre as populações que apoiavam a sua luta pela
independência. Quando, em 1962, a Frelimo declarou a sua intenção de
expulsar os portugueses de Moçambique e devolver o país aos seus legí­
timos ocupantes, não prometeu, nem tencionava, restabelecer em Mo­
çambique o estado de coisas existente na época pré-colonial. Pelo con­
trário, impôs-se o audacioso objectivo revolucionário de criar «um
homem novo» (e, dado o seu compromisso de abordar as questões de
género no contexto da revolução, uma «mulher nova») para habitar um
novo Moçambique (Machel 1985,2, 33).1
Donald Donham escreve: «Talvez não haja um conceito mais fulcral
para o modernismo do que o de revolução.» (1999,1) Também se poderia
afirmar que não há conceito mais fulcral para o socialismo revolucionário
do que o modernismo. Os dirigentes da Frelimo entregaram-se mais in­
tensamente do que os seus antecessores coloniais alguma vez haviam
feito à ideia de modernização, visionando um país onde as necessidades
sociais fossem determinadas e satisfeitas não pelas forças de mercado mas
sim através de uma «governação científica». Na verdade, para a Frelimo,
o objectivo da modernização não podia ser adiado até à independência.
Os líderes da Frelimo afirmavam que, para travar uma guerra de guerrilha
moderna contra um inimigo moderno, os moçambicanos tinham de se
modernizar de imediato.
Para este efeito, no início da guerra, a Frelimo começou a construir
aquela que viria a ser uma vasta rede de escolas básicas situadas no mato.
Nestas escolas, crianças e adultos aprendiam a ler e a escrever - sobretudo
em português (uma língua que transcendia as divisões entre os grupos
étnicos que contribuíam para o esforço de guerra e que viriam a constituir
a nação moçambicana). Os alunos também estudavam matemática e
ciências naturais - disciplinas que eram úteis a muitos deles, quando ad­
ministravam as cooperativas agrícolas estabelecidas pela Frelimo nas

1Ver também Pitcher (2002, 55).

232
Revolução, ciência efeitiçaria

zonas libertadas, ou quando trabalhavam nos postos de saúde que a Fre-


limo mantinha no interior. Alguns dos «diplomados» nestas escolas do
mato eram seleccionados para prosseguirem a sua educação em escolas
financiadas por redes de solidariedade internacional e localizadas na Tan­
zânia, ou noutros países estrangeiros que simpatizavam com a causa da
Frelimo .2
A luta desta última era inspirada, em todas as frentes, por um profundo
empenhamento na ideia de «socialismo científico».3 Os seus dirigentes
afirmavam que, para os moçambicanos construírem um mundo melhor
para si próprios, tinham de compreender a sua subjectividade como classe
revolucionária moderna. A educação moderna, entre outras coisas, iria
ajudar os moçambicanos a pôr de lado as explicações sobrenaturais para
as suas desgraças - antepassados negligentes, espíritos maléficos, feitiçaria
- e permitir-lhes-ia reconhecer a exploração capitalista-imperialista como
causa principal da sua situação.4
O empenhamento da Frelimo na ciência moderna, em oposição às
«crenças e práticas tradicionais» (frequentemente catalogadas como «obs­
curantismo») era, em parte, motivado por preocupações imediatas de
ordem prática. Marcos, ele próprio um ex-guerrilheiro, contou-me que,
no início da guerra, os vamitela distribuíam às populações locais substân­
cias mágicas com que prometiam tomá-las invulneráveis ao fogo das
armas. Os dirigentes da Frelimo e os comandantes da guerrilha pregavam
contra a utilização dessas substâncias por interesse estratégico. Marcos,
que durante a guerrilha fora inspector das escolas da Frelimo, explicou-
-me a urgência desta questão: «Se os guerrilheiros confiassem nas mitela
antibala para os proteger, teriam sido abatidos pelos portugueses, como
foram os homens de Malapende. Nós precisávamos que eles confiassem
nas técnicas da guerra de guerrilha e não nas mitela.»5

2 Ver descrições dos serviços sociais que a Frelimo prestava aos civis nas suas zonas li­
bertadas em Melo etal. (1974); Gabriel e Stuart (1978); Negrão (1984); Johnston (1989).
3 Em 1981, o presidente Samora Machel declarou: «A vitória do Socialismo é uma vitória
da ciência, ele é elaborado e organizado cientificamente.» (citado em Pitcher 2002,76)
4June Nash (1993 [1979], 159) menciona a utilização de uma linguagem semelhante
pelos organizadores dos sindicatos nas minas de estanho bolivianas, para criticar as cren­
ças dos mineiros num Deus protector.
5 O relativo êxito da Frelimo nessas iniciativas distingue a sua rebelião armada de m o­
vimentos com o as H oly Spirit Mobile Forces [Forças M óveis do Espírito Santo] no
Uganda, descritas por Behrend (1999), cujos líderes não só muniam os seus combatentes
de armaduras rituais, mas também os proibiam expressamente de se protegerem quando
atacados (57), atribuindo as baixas no campo de batalha ao incumprimento dessas regras
e à feita de fé que este revelava.

233
K u piliku la

Por motivos semelhantes, os dirigentes da Frelimo e os comandantes


da guerrilha condenavam a yangele (adivinhação) e a prática de kulaula
(curandeirismo) (Machel 1985,21). O comando da guerrilha não só temia
a possibilidade de os operacionais deixarem de executar as ordens se os
adivinhos os advertissem de que o momento não era propício à missão
atribuída, como também receava que as acusações e contra-acusações de
feitiçaria suscitassem perigosas situações de desunião no interior e em
redor das bases dos guerrilheiros.67
A proibição da adivinhação pela Frelimo era bem conhecida dos ha­
bitantes do planalto de Mueda, que ainda a recordavam décadas mais
tarde, quando trabalhámos entre eles. Numa ocasião, um grupo recitou-
-me uma canção do tempo da guerra, cantada em shimakonde, que pro­
clamava:

N ó s som os a sombra d o povo,


N ão confiamos nas mitela,
N ão confiamos na dinum ba,1
K yangele8 causa conflitos entre nós e entrava o nosso esforço de guerra.

Em simultâneo com estas proibições, a Frelimo também procurava


eliminar muitas e variadas práticas sociais consideradas contrárias às nor­
mas modernistas do socialismo revolucionário, incluindo os rituais de
iniciação (e a escarificação dos iniciados), as danças mapiko, o lobolo e as
cerimónias de súplica aos antepassados. Um homem que foi presi-
dente/secretário da Frelimo durante a guerra, contou-nos: «Quando os
dirigentes começaram a seguir essa via, a população não ligou nenhuma.»
Essas práticas persistiram, em alguns sítios, durante a guerra, enquanto
noutros desapareceram.9
Os líderes da Frelimo continuavam particularmente preocupados com
as crenças e práticas relacionadas com a feitiçaria na Mueda dessa época,

6 Pelo contrário, Niehaus (1998; 2001) descreve casos em que os «camaradas» do Con­
gresso Nacional Africano (ANC) na África do Sul do tempo do apartheid agiam, efecti-
vamente, com o caçadores de bruxos, no seu esforço para consolidar o apoio popular,
não obstante os dirigentes do A N C terem proibido tais actividades. N os processos ins­
taurados por esses camaradas, os acusados de bruxaria eram <mecklaced» (isto é, espanca­
vam-nos e enfiavam-lhes um pneu pela cabeça, que depois regavam com gasolina e in­
cendiavam).
7 Dinum ba são cabaças usadas para misturar e transportar substâncias mágicas.
8 Yangele, «adivinhação».
9 Mueggler(2001,164) descreve tentativas semelhantes dos dirigentes comunistas chi­
neses para abolirem os festivais associados ao sistema de chefia ts’ici.

234
Revolução, à ên á a efeitiçaria

receando que elas prejudicassem o esforço de guerra. Lutavam aberta­


mente contra tais crenças e práticas, proclamando que eram formas pe­
rigosas de falsa consciência contra-revolucionária.101Em comícios reali­
zados nas zonas libertadas, os líderes da Frelimo conduziam os habitantes
do planalto em cânticos de chamamento e resposta proclamando:
«Abaixo o obscurantismo! Viva a Frelimo!» Como vimos, a ameaça de
violência estava subjacente a essas proclamações e políticas da Frelimo.
Na verdade, a campanha desta contra a adivinhação, o curandeirismo e
as substâncias mágicas era, por vezes, empreendida com meios mais agres­
sivos do que a mera entoação de palavras de ordem. Vários antigos guer­
rilheiros contaram-me que, por vezes, os comandantes da Frelimo envia­
vam guerrilheiros para queimar as cabanas dos vamitela em actividade.
De vez em quando, segundo várias fontes orais, os vamitela eram amea­
çados ou mesmo mortos pela organização.11
Seria muito incorrecto sugerir que os habitantes de Mueda não apren­
deram a linguagem do socialismo revolucionário/científico. De facto, ad­
quiriram uma competência mortífera nas tácticas e técnicas da luta de
classes e da guerra de guerrilha. No entanto, apesar de aprenderem a con­
ceber e a interagir com o seu mundo através da linguagem do socialismo,
e não obstante as proibições da Frelimo em relação à adivinhação, ao cu­
randeirismo e às substâncias mágicas, muitos continuaram a interpretar
os acontecimentos no género discursivo da uwavi - uma linguagem que

10Kohnert informa que o regime marxista de Kérékou, no Benin, apelidava as crenças


no oculto como formas «obscurantistas» de «falsa consciência» (1996,1351). Os dirigentes
do Gana socialista também rejeitavam as perspectivas ligadas ao oculto como sendo «falsa
consciência» (Meyer 1998).
11 Na sua narrativa clássica sobre a luta pela independência do Zimbabué, Lan (1985)
sugere que os médiuns facilitavam o apoio popular aos guerrilheiros do ZANLA ao tratá-
-los com o legítimos sucessores da autoridade dos chefes, nas zonas onde estes tinham fi­
cado desacreditados, durante a época colonial, por colaborarem com os interesses colo­
niais. Lan sugere ainda que estes mesmos médiuns impunham restrições ao
comportamento dos guerrilheiros em beneficio das suas comunidades. O relato de Lan,
que retrata a relação entre os guerrilheiros e os médiuns com o sendo, em geral, de boa
cooperação, foi contestado por Kriger (1992), o qual sugere que as relações entre os guer­
rilheiros e os médiuns estavam eivadas de ameaças de violência (ver também Maxwell
1999). A relação entre o ZANLA e os zimbabueanos rurais diferia muito da relação entre
a Frelimo e os moçambicanos rurais, devido ao facto de o ZANLA não ter conseguida
criar e manter «zonas libertadas» (Kriger 1992,95). As comunidades rurais zimbabueanas
viram-se, assim, «entre dois exércitos», utilizando a expressão empregue por Stoll (1993)
no seu relato da guerra civil guatemalteca. Mesmo assim, as relações da Frelimo com as
populações civis das zonas libertadas estavam repletas de ameaças de violência, mais à
semelhança do relato de Kriger sobre a guerra da independência zimbabueana do que
da descrição feita por Lan.

235
K u piliku la

lhes permitia manter uma percepção inteligível do funcionamento do


poder no seu mundo turbulento.
Como se disse no capítulo 15, a guerra da independência moçambi­
cana era travada como uma prova mortífera de esconde-esconde, em que
os adversários procuravam tomar-se invisíveis aos olhos dos inimigos
e/ou expor os seus inimigos à vista. As pessoas comuns, ao serem envol­
vidas no conflito, percepcionavam a dinâmica própria da guerra de várias
formas em simultâneo. Ainda antes do início da guerra, os habitantes do
planalto encaravam e relacionavam-se com o movimento nacionalista
emergente através do esquema cultural da uwavi, com a sua correspon­
dente lógica ocular. Por exemplo, os mobilizadores diziam às pessoas que
compravam cartões da Frelimo para os esconderem imediatamente. Os
cartões não eram usados como meio de identificação dentro da organi­
zação, nem para se poder entrar em reuniões. Uma vez que a sua venda
não gerava receitas substanciais para a Frelimo, a sua única finalidade
tangível era colocar os membros numa situação de risco comum, criando
cumplicidade entre eles. As pessoas que se recusavam a comprar os car­
tões não assumiam qualquer risco e, por conseguinte, não demonstravam
nenhum compromisso para com a Frelimo. Aqueles que os compravam,
porém, transitavam para um mundo de conspiração colectiva, escon­
dendo-se, com efeito, dos portugueses quando escondiam os cartões que
tinham comprado. Tendo feito isto, eram «reconhecidos» pela Frelimo e
confiavam que esta fosse capaz de proteger a sua invisibilidade colectiva
- uma confiança que se revelou infundada no caso dos membros da or­
ganização cujos nomes figuravam em registos apreendidos pela PID E.12
A visão e o poder estiveram inextrincavelmente ligados ao longo da
própria guerra. A eficácia da Frelimo dependia da construção e da ma­
nutenção de um reino oculto, repleto de bases militares, campos de mi­
lícias e povoados civis, nas profundezas das florestas do Norte de Mo­
çambique. Os guerrilheiros escondiam-se neste reino florestal, atacando
a partir dele e nele voltando depois a fiindir-se. Nos últimos anos do con­
flito, os portugueses alteraram as suas tácticas e procuraram arranjar for­
mas de eles próprios poderem ver e penetrar no reino invisível da floresta,
abrindo corredores de vigilância através do mato, queimando o coberto
florestal e utilizando óculos de visão nocturna. Por último, o exército
português utilizou tropas africanas bem no interior das zonas controladas

12 Em 1963, muitos dos membros cujos nomes figuravam nós dois registos que caíram
nas mãos da PIDE foram presos e torturados (West 2003a).

236
Revolução, ciência efeitiçaria

pela Frelimo - nas profundezas de um reino que lhes era anteriormente


inacessível e invisível.
Para a maioria das pessoas de Mueda, o combate constante entre as for­
ças mortíferas dos militares portugueses e dos rebeldes guerrilheiros da Fre­
limo - um combate travado a partir e no interior do misterioso reino da
floresta - repercutia as lutas que elas sabiam ter lugar dentro e em tomo
do reino invisível da uwavi. Na verdade, a insurreição e a contra-insurreição
eram para muitos inseparáveis da feitiçaria e da contrafeitíçaria.
Alguns consideravam que os portugueses eram, na realidade, feiticeiros
poderosos. Leonardo Kuvela Nandondo Àligwama asseverou-nos, por
exemplo, que a PIDE recorria à feitiçaria para descobrir onde é que as
pessoas se escondiam, nas zonas libertadas da Frelimo, e para comunicar
essa informação aos militares portugueses. Contudo, a maioria dos so­
breviventes da guerra com quem falámos associava o poder dos portu­
gueses no reino invisível ao poder de conterrâneos seus de Mueda, tal
como fizeram os contemporâneos de Malapende (e aqueles que parti­
lharam connosco os relatos da conquista do planalto pelos portugueses).
Maurício Mpwapwele M oto assegurou-nos: «Entre os portugueses,
havia vavi. Também havia vavi entre os africanos ao serviço dos militares
portugueses.13 Estes vavi trabalhavam em colaboração com os vavi ma-
condes [nas zonas libertadas]. Os vavi moçambicanos negros do exército
português serviam como agentes de ligação entre os vavi macondes e os
vavi portugueses, mas todos usavam as mesmas técnicas.»
De acordo com alguns relatos, os feiticeiros portugueses começaram
a contactar feiticeiros macondes e punham-nos ao seu serviço no interior
das zonas controladas pela Frelimo. O próprio Marcos disse-me, uma
vez: «Na verdade, os portugueses não recorriam muito ao envio de es­
piões para as zonas libertadas, utilizavam sobretudo pessoas que já lá se
encontravam. Mas como é que eles estabeleciam essas relações? A única
forma de fazer esses contactos era através da uwavi.»
Segundo outros relatos, foram os feiticeiros macondes que iniciaram
estas relações de colaboração e as utilizaram para os seus fins. Quando
perguntei a Inácio Mpupa se havia feitiçaria nas zonas libertadas, ele ex­
clamou: «Ehhh! Havia imensa uwavi durante a guerra... Algumas pessoas
que viviam entre nós usavam-na para chamar os militares portugueses,
para eles virem com os seus aviões e os seus helicópteros e matarem pes*
soas que ali viviam.»

13 Mpwapwele referia-se aqui, segundo creio, aos GE e GEP de elite.

237
K u piliku la

Muitos achavam, como Mpupa, que os feiticeiros eram os culpados


dos ataques dos militares portugueses. Alguns asseguravam que estes fei­
ticeiros, que viviam entre eles durante o dia, voavam à noite até às bases
portuguesas, a fim de lhes transmitirem as coordenadas para os bombar­
deamentos, no intuito de causarem a morte de vizinhos e familiares que
desejavam destruir.14
Os aviões e helicópteros usados pelas tropas portuguesas nos ataques
aos guerrilheiros e a alvos civis, nas zonas libertadas, suscitavam imenso
interesse aos habitantes do planalto, que procuravam discernir o papel
que os feiticeiros desempenhavam na guerra. Para uns, esses veículos es-
pectaculares eram instrumentos da feitiçaria portuguesa. No entanto, era
comum dizer-se que tinham sido «chamados» por feiticeiros do planalto
e pilotados ou, pelo menos, co-pilotados a partir do solo pelo controlo
remoto da uwavi Para outros, estes instrumentos de guerra mortíferos
eram, na verdade, as últimas invenções de feiticeiros locais. Limitedi Un-
tonji afirmou certa vez, em conversa connosco: «Antigamente, os feiti­
ceiros fabricavam animais para matarem por eles. Durante a guerra, fa­
bricaram aviões e helicópteros.»15
Para alguns, as próprias tropas portugueses eram produto da feitiçaria
local, tal como Malapende declarara que tinham sido. Mpwapwele su­
geriu-nos que os portugueses podiam ter construído, de facto, os aviões
e helicópteros, bem como as bombas de napalm que estes largavam do
ar, mas que, mesmo assim, os feiticeiros utilizavam esses instrumentos
de violência para os seus próprios fins. Os feiticeiros, recordou-nos, eram
capazes de utilizar os materiais e as oportunidades que tinham ao seu
dispor. A título de exemplo, informou-nos: «Os feiticeiros usavam minas
durante a guerra. Não faziam essas minas, mas podiam usar uwavi para
fazer com que uma pessoa caminhasse até ao sítio onde os portugueses
tinham posto uma mina e depois com que a pisasse. Eles podiam co­
mandar os movimentos das pessoas dessa maneira... fazendo com que

14 Fry (1976,23-24) informa-nos que, na Rodésia, os zezuras chamavam uroyi (bruxos)


aos informadores que traíam o seu povo à polícia colonial, mas usavam esse termo me­
taforicamente. Os habitantes de Mueda, porém, utilizavam o termo vavi de forma bas­
tante literal para referirem os suspeitos de colaboração com os portugueses.
15 O antropólogo J. D . Rrige comparou, uma vez, os «bruxos nocturnos» que «vaguea­
vam em busca de presa» por cima das aldeias lobedu aos «bombardeiros nocturnos [da
Segunda Guerra Mundial] que sobrevoavam as nossas cidades». (1970 [1947], 264). Os
habitantes do planalto de Mueda, em contrapartida, viam ligações substanciais entre os
feiticeiros e os bombardeiros.

238
Revolução, ciência efeitiçaria

as suas mortes parecessem dever-se à guerra quando, na realidade, se de­


viam à uwavi.»16
Os habitantes do planalto atribuíam poderes de feitiçaria não só aos
que os ameaçavam, mas também àqueles que com eles colaboravam no
esforço de guerra. Mais uma vez, isso já acontecia antes de a guerra co­
meçar. De acordo com as narrativas populares, antes de Faustino Va-
nomba e Kibiliti Diwani (cujas detenções desencadearam o Massacre de
Mueda em 16 de Junho de 1960) serem metidos num veículo que os le­
varia para a prisão de Mocímboa da Praia, o governador de Cabo Del­
gado tentou em vão amarrar-lhes as mãos e, depois, também não conse­
guiu alvejájos a tiro. De acordo com Leonardo Kuvela Nandodo
Aligwama, tal como os dois homens membro da MANU: «As cordas re­
bentavam de cada vez que o governador tentava amarrar-lhes as mãos.
Quando tentou disparar contra eles, saiu água da pistola.» As pessoas
exaltavam Vanomba e Diwani como feiticeiros poderosos, mesmo depois
de serem presos, de forma muito semelhante àquela como os seus ante­
passados homenageavam os grandes chefes militares Malapende e Na-
mashalcole, mesmo depois de «pacificados» pelos portugueses.
O poder da uwavi também era, em grande medida, atribuído a Lázaro
Nlcavandame. Contava-se entre a população que, quando os portugueses
vieram prender Nlcavandame em 1963, por suspeita de estar envolvido com
a recém-criada Frelimo, este os convenceu a deixarem-no ir para o posto
administrativo na sua própria motocicleta. Pelo caminho, guinou de repente
para dentro do mato e saltou da motocicleta. Os portugueses não conse­
guiram apanhá-lo porque, no dizer de muitos, ele se transformou num gato.
Anos depois, quando a Frelimo tentou prender Nlcavandame por suspeita
de envolvimento no assassínio do presidente da Frelimo, Eduardo Mon-
dlane, ele voltou a fugir, ao que constava, transformando-se num gato.
É significativo que as pessoas de Mueda chamassem aos primeiros qua­
dros da Frelimo que apareceram entre elas vashib, «gente da noite». Como
é natural, estes homens faziam as suas visitas de recrutamento após o pôr-
-do-sol, quando lhes era mais fácil evitar que a PIDE ou eventuais infor­
madores os detectassem. O termo vashib também chamava a atenção para
o facto de estes homens se deslocarem à vontade numa altura do dia em
que apenas «os corajosos» - eufemismo para feiticeiros - andavam lá fora.17

16 Ver também Behrend (1999, 27) sobre perspectivas semelhantes no contexto da


guerra civil ugandesa.
17 Middleton (1967,61) relata que os lugbaras também suspeitavam de que as pessoas
que circulavam de noite eram bruxos/feiticeiros.

239
K u piliku la

Quando a guerra começou, os habitantes do planalto atribuíam po­


deres extraordinários aos guerrilheiros da Frelimo que circulavam «cora­
josamente» entre eles, do mesmo modo que os recrutas da guerrilha atri­
buíam, às vezes, uma «coragem» extraordinária aos seus comandantes.
Por exemplo, Wehia Ripua, um comandante da guerrilha que, posterior­
mente, alcançou notoriedade nacional ao fundar o seu próprio partido
e ao candidatar-se à Presidência de Moçambique em 1994, era lendário
pela sua capacidade de «brincar» tanto com os inimigos como com os
aliados. No campo de batalha, era considerado invencível. Para os seus
homens, era uma constante fonte de surpresas. Um guerrilheiro contou-
-me que, após uma missão, mandava muitas vezes os seus homens para
o acampamento, enquanto tomava a direcção oposta. Quando eles che­
gavam, encontravam-no à espera com uma refeição que cozinhara, sozi­
nho, para eles. «Ripua!?», disse-nos um antigo guerrilheiro. «Esse tipo era
um mwavi de certeza!»18
Por ironia, os próprios quadros da Frelimo, que criticavam peremp­
toriamente a crença na feitiçaria e proibiram as práticas com esta rela­
cionadas, eram, em geral, considerados como detentores dos poderes
da uwavi. E esses mesmos quadros contribuíam para pôr lenha na
fogueira de tais interpretações. Embora muitos dos principais dirigentes
da Frelimo tivessem sido educados na Europa Ocidental e desdenhas­
sem dessas «tradições rurais», a maioria dos guerrilheiros (incluindo
a maioria dos comandantes da guerrilha) era nada e criada nas zonas
rurais moçambicanas. Para um grande número de quadros naturais de
Mueda, ajyangele (adivinhação) e o kulaula (curandeirismo) constituíam
formas razoáveis de interagir com o mundo, não obstante a política da
Frelimo.19 Quando estes quadros eram instados a aplicar a proibição
das práticas relacionadas com a feitiçaria nos territórios controlados pela
Frelimo, ficavam na posição incómoda de se policiarem a si mesmos.
Quando Marcos e eu nos sentámos, uma vez, a discutir a guerra com
vários ex-guerrilheiros, Marcos confessou que, numa ocasião, durante
a guerra, ele e os seus camaradas juntaram todas as substâncias mágicas
que lhes tinham sido dadas por vários vamitela para os proteger, a
fim de as queimar. «Dissemos: ‘Isto é a Revolução. Já não precisamos
de mitelaV Passados alguns dias, porém, percebemos que cada um de
nós já tinha ido buscar outras a um muntelai» Em resultado dessa ambi-

18 Lan (1985,128) diz que os zimbabueanos atribuíam aos guerrilheiros do ZANLA


a «capacidade de se desvanecerem no ar».
19 Cf. Lan (1985,147).

240
Revolução, ciênria e feitiçaria

valência dos quadros da Frelimo, a prática da kulaula contra-feitiço man­


teve-se ao longo de toda a guerra.20
Em alguns sítios, os vamitela continuaram a trabalhar discretamente.
Asala Kipande, que foi guerrilheiro da Frelimo, contou-nos: «Durante a
guerra, não praticava kulaula abertamente, mas curava algumas pessoas
nas bases da Frelimo, quando necessário, e usei mitela para me defender
a mim e aos meus camaradas.» Pelo contrário, Limitedi Untonji disse-
-nos: «Durante a guerra, nós, vakulaula, não tínhamos de nos esconder.»
A experiência de Kabalca Nanume Kapembe foi semelhante: «Eu tinha
uma boa relação com [os comandantes da guerrilha] Chipande, Pachi-
nuapa e Minga durante a guerra. Eles sabiam tudo sobre o meu trabalho
como nkulaula.» O próprio Asala Kipande sugeriu que nenhum coman­
dante da guerrilha «a sério» proibiu, realmente, os seus homens de visi­
tarem vakulaula durante a guerra.21
De facto, muitos comandantes da Frelimo consultaram, eles próprios,
adivinhos e curandeiros durante a guerra.22 Marcos disse-me que sabia
de várias ocasiões em que os adivinhos avisaram os comandantes de des­
tacamento de um ataque iminente e, por isso, esses comandantes aban­
donaram os acampamentos e mudaram os seus homens para outro lugar.
Quando perguntei a Limitedi Untonji se os dirigentes da Frelimo alguma
vez lhe foram pedir tratamento durante a guerra, ele confiou-me: «Nós
vakulaula tratámos muitos líderes da Frelimo, mas não podemos dizer
quem. Eram muitos e foi há muito tempo.» De facto, vários vakulaula
que entrevistámos disseram-nos que tinham tratado comandantes da Fre­
limo, ao passo que outros nos informaram dos nomes de colegas vaku­
laula que tinham tratado comandantes, bem como dos tratamentos que
lhes tinham feito. Era voz comum que a maioria dos chefes militares da
Frelimo - incluindo Raimundo Pachinuapa, Alberto Chipande, Virgílio
Minga e até Samora Machel - tinha «consultado vakulaula».

20 Segundo Lan (1985,158, 162), os guerrilheiros do ZANLA utilizavam substâncias


mágicas fornecidas pelos curandeiros - incluindo remédios antibala - mais abertamente
do que os guerrilheiros da Frelimo. Maxwell (1999,140) refere que os guerrilheiros do
ZANLA, no Zimbabué, consultavam « ’rfHjas (adivinhos-curandeiros). Eric Young (1997:
257) conta que os comandantes no Exército Nacional do Zimbabué recorriam aos n ‘angai
após a independência.
21 Nas palavras de Henriksen, «os quadros, no terreno, faziam vista grossa à prática de
rituais e à utilização de amuletos de protecção» (1983, 76).
22 Ver também em Honwana (2002,179-180) referências a comandantes militares da
Frelimo que consultavam adivinhos e curandeiros durante a guerra civil contra a Renamo,
no Sul do país.

241
K u piliku la

Por ocasião da m inha primeira entrevista a Asala Kipande, o ancião ficou em ­


baraçado por não ter comida para partilhar connosco, visto estar a preparar-se
para fazer uma viagem imediatamente a seguir à nossa conversa. Assegurei-lhe
que isso não constituía problema, mas ele protestou. «Um anfitrião deve aquecer
a barriga dos seus convidados; de outro m odo eles pensarão que não são bem-
-vindos. «Kipande tirou 20 000 meticais (uma quantia considerável para alguém
com as suas posses) de uma caixa de cartão que guardava n o interior do seu ar­
mazém de curandeiro. «Por favor», disse-nos, estendendo o dinheiro, «isto é para
uma galinha, para o vosso jantar hoje à noite.» Embora alguns daqueles com
quem trabalhámos nos pedissem presentes, Kipande, à semelhança de muitos,
valorizava mais o nosso respeito por ele com o h om em econom icam ente auto-
-suficiente, do que qualquer caridade que lhe pudéssemos oferecer.

Dizia-se que alguns comandantes levavam mitela antibala quando iam


combater. Contava-se-se que um nkulaula chamado Alabi Makanga, já
falecido, fornecera a Samora Machel uma substância denominada nan-

242
Revolução, ciência efeitiçaria

gunagwela (para garantir que ele seria bem recebido pelas pessoas à sua
volta) e que realizara um ritual para defender a sua «casa» e os alimentos
que comia contra os feitiços. Outro nkulaula, de nome Dodo Nindo,
também já falecido, teria fornecido a Samora lukalongo hia ntumi (gar­
ganta de leão, para garantir que ele seria escutado e temido), lyungu lya
ntumi (saliva de leão, para lhe garantir força e longa vida), e lulimi Iwa
ntumi (língua de leão, para garantir que as suas ordens seriam escutadas
e obedecidas) - substâncias que outrora estavam, todas elas, exclusiva­
mente associadas a anciãos macondes poderosos, como os vahumu, que
eram reconhecidos como feiticeiros competentes por direito próprio.23
Os habitantes do planalto que interpretavam as acções dos dirigentes
da Frelimo à luz do esquema de pensamento da uwavi não viam qualquer
contradição no comportamento destes dirigentes. Na verdade, aquilo
que viam e ouviam reforçava, de um modo geral, as suas convicções de
que a guerra se travava, simultaneamente, nos reinos visível e invisível.
Ao condenarem, simultaneamente, a feitiçaria e o tráfico de substâncias
mágicas, as autoridades da Frelimo agiam de forma muito semelhante à
que as figuras de autoridade do planalto sempre tinham adoptado. Da
mesma forma que, outrora, os chefes de povoação ficavam, à noite, junto
da shitala no centro da povoação a desafiar os feiticeiros e a ordenar-lhes
que parassem de fazer feitiços, sob pena de enfrentarem a ira dos anciãos,
erguiam-se agora os oficiais da Frelimo perante as assembleias (muitas
vezes realizadas à noite), bradando que a feitiçaria era «um problema» -
que ela (ou pelo menos as conversas sobre ela) punham os moçambica­
nos uns contras os outros, quando deveriam, em vez disso, concentrar-
-se num inimigo comum.
Claro que os dirigentes da Frelimo não se limitaram a dizer que a
uwavi era «um problema». Rejeitaram-na como superstição e condena­
vam os que dela falavam como promotores do «obscurantismo». No en­
tanto, mesmo estas afirmações tinham um precedente. Não desprezara
Malapende a uwavi dos seus inimigos, juntamente com as tropas portu­
guesas que cercavam a sua povoação, como meros «produtos da imagi­
nação»? À semelhança de Malapende e dos que o seguiram na batalha
contra os mortíferos produtos de imaginação de Mbavala, muitos dos
residentes do planalto em guerra contra os portugueses, décadas depois,

23 São inúmeros os relatos de dirigentes políticos e militares africanos que procuravam


a protecção dos especialistas do oculto. Ver, por exemplo, Stoller (1995,186); Kohnert
(1996,1351); Shaw (1996; 2002,257-261); Ellis e ter Haar (1998); Meyer (1998,17); Piot
(1999). Ver também Apter (2002,244) sobre fenómenos semelhantes no Haiti.

243
K u piliku la

concebiam a uwavi como os efeitos tangíveis de uma visão e uma imagi­


nação excepcionais - um poder que só podia ser desafiado e vencido por
uma visão e uma imaginação superiores. E muitas das pessoas que viviam
nas zonas libertadas concluíram que era isso, precisamente, que as auto­
ridades da Frelimo reivindicavam quando se erguiam na sua frente en­
toando «Abaixo o obscurantismo!» Como os anciãos do passado, os qua­
dros da Frelimo afirmavam ser portadores de uma visão que transcendia
o mundo conhecido pelas pessoas comuns - uma visão capaz de trans­
formar o mundo.
De vez em quando, aqueles que recordavam a guerra da independên­
cia contavam-nos que as palavras de ordem da Frelimo contra o obscu­
rantismo apenas condenavam as formas malévolas de feitiçaria: os feitiços
de perigo, os feitiços de ruína e os feitiços de morte. O próprio Marcos
me garantiu que a Frelimo apenas proibira a utilização de mitela para
«maus» fins; e que as permitia para «bons» fins. Muitos vakulaula que
exerciam antes do início da guerra da independência continuaram a fazê-
-lo durante a guerra, porque acreditavam que a Frelimo apenas condenava
a utilização de mitela para fins destrutivos e porque consideravam que
eles próprios tinham um papel a desempenhar no policiamento desses
actos, através da sua utilização de mitela para fins socialmente construti­
vos. Além disso, muitos interpretavam as palavras de ordem da Frelimo
contra a uwavi como a execução pelas autoridades da Frelimo de uwavi wa
kudenga- feitiços de construção.24
Muitos confirmaram, em conversa connosco, que os dirigentes da Fre­
limo que viviam entre eles e combatiam a seu lado eram dos mais pode­
rosos feiticeiros de construção jamais conhecidos na região do planalto.
Entre estas figuras poderosas, segundo as percepções populares, destaca­
vam-se os agentes de segurança da Frelimo. Um homem disse-me, em
termos muito eufemísticos: «A Frelimo tinha as suas maneiras de saber
coisas. Tinha pessoas a trabalharam na D que reconheciam os vavi e os eli­
minavam.» Quando lhe perguntei quem eram esses homens, respondeu-
-me da forma que era habitual quando se pedia a alguém que declarasse
a identidade de um mwavi, olhando recatadamente para o chão e guar­
dando silêncio - pois nunca se sabia o que um mwavi, ou um agente de
segurança, poderia ouvir por acaso. Outras pessoas concordavam com a

24 Kohnert (1996, 1351) nana uma reacção popular similar à retórica antiobscurantista
do Estado no Benin. C£ Humphrey (2003): os budistas Buryati interpretaram a campanha
de Estaline contra o Budismo como a concretização de uma saga budista, nomeadamente
a reincarnação do Elefante Azul, cuja destruição do Budismo por três vezes fora profetizada.

244
Revolução, ciência efeitiçaria

afirmação deste homem de que os agentes de segurança da Frelimo con­


seguiam ver os actos de feitiçaria que tomavam povoações ocultas visíveis
para o inimigo e chamavam bombardeiros e helicópteros para as atacar,
confirmando que os agentes de segurança da Frelimo conseguiam iden­
tificar e vencer os feiticeiros responsáveis por estes actos.
Um homem disse-nos de «Lagos» Lidimo, o mais temido agente de se­
gurança do planalto: «Ele passava por uma coluna da Frelimo, no mato, e
fitava cada homem nos olhos. Escolhia um deles e dizia: cVem comigo!’,
levando o traidor para a D. Ele tinha visto qualquer coisa! Ele via tudol De
outro modo como poderia ser chefe?» A maioria das pessoas com quem
falámos coqroborava que Lidimo era capaz de detectar espiões, colabora­
dores, sabotadores e traidores porque conseguia perscrutar o obscuro reino
da uwavi onde esses actos destruidores eram perpetrados. Em suma, supu­
nha-se que ele era feiticeiro, tal como outros agentes de segurança da Fre­
limo, apesar da retórica antifeitiçaria da organização. Um nkulaula com
quem falámos assegurou-nos: «Lagos não usava apenas as mitela q u t os va-
kulaula lhe davam. De facto, ele não consultava vakulaula. Não precisava.
Tinha as suas próprias mitela porque ele e o seu pai nasceram vavi. Durante
a guerra, dormia nu ao ar livre. Nunca se preocupava. Não temia nada nem
ninguém. Os seus homens nunca morriam quando ele os conduzia em
combate. Isso não é apenas mitela! É wwavil»
Da mesma maneira que consideravam que os agentes de segurança da
Frelimo eram a quinta-essênda dos feiticeiros de construção, os habitantes
de Mueda encaravam os espiões, colaboradores, sabotadores e traidores
que esses agentes apanhavam como a quinta-essênda dos feiticeiros de pe­
rigo, de ruína e de morte. Quando as pessoas falavam connosco acerca
da guerra, as conversas sobre os feiticeiros e os «inimigos internos» mis­
turavam-se. Um homem, por exemplo, disse-nos: «Normalmente,
quando um mwavi chamava aviões, helicópteros e tropas, outros vavi de­
nunciavam-no, porque achavam que era demais!... Se os anciãos não con­
seguissem resolver a situação, o caso era levado às autoridades da Frelimo.
O presidente nomeado pela Frelimo confrontava a pessoa que estava a
fazer essas coisas. Se a situação não mudasse, era convocada uma reunião
geral e o caso era analisado. Os casos mais complicados chegavam ao
ponto de ‘vigilância’. Estes vavi eram levados para a Base Beira, se fossem
descobertos no primeiro sector, ou para a D, se fossem descobertos no'
segundo sector».25 Outro homem garantiu-nos que, durante a guerra da

25 Maxwell (1999,140) documenta casos em que os guerrilheiros do ZANLA matam


«traidores» (colaboradores com os rodesianos) como bruxos. Cf. Kriger (1992,132).

245
K u piliku la

independência, havia pouca feitiçaria precisamente porque «era severa­


mente punida pela Frelimo».
Vários antigos guerrilheiros com quem Marcos e eu falámos, no sítio
de uma das antigas bases da Frelimo, contaram-nos histórias de coman­
dantes da organização que se aconselhavam com poderosos vamitela da
região e depois, em alguns casos, se viravam contra eles e os matavam
«porque descobriram que eles estavam a trabalhar com o inimigo». Um
homem disse-nos, simplesmente: «Quando a Frelimo apanhava os vavi
que chamavam os portugueses, eles eram executados.» Outro colocou a
questão da seguinte forma: «Os condenados à morte eram os que viaja­
vam até às bases portuguesas e colaboravam com a PIDE. Essas viagens
eram feitas de noite, como vavi. No entanto, eram condenados não como
vavi, mas sim como colaboradores... Eram normalmente julgados em
público e executados por sentença popular.» Marcos também fez a
mesma distinção: a Frelimo executava os inimigos não como feiticeiros,
mas sim como espiões, colaboradores, sabotadores e traidores compro­
vados. Contudo, a maioria das testemunhas destas execuções via-os de
ambas as formas. Na verdade, por vezes, a linguagem da feitiçaria era pre­
dominante nos interrogatórios orquestrados pela Frelimo.
Em Witchcrqft, Orades andMagicamongtbeAzande, Evans-Pritchard sugeriu
que os azandes acreditavam, de um modo geral, que os veredictos dos orá­
culos sobre a culpa das pessoas acusadas de bruxaria eram verdadeiros, até
eles próprios serem acusados. O mesmo poderia ser dito dos habitantes de
Mueda, no que respeita aos veredictos da Frelimo contra os «inimigos in­
ternos» durante a guerra de independência. As pessoas tendiam a presumir
que as sentenças da Frelimo se fundamentavam em conhecimentos extraor­
dinários e seguros, considerando que estas autoridades eram feiticeiros de
construção que combatiam um inimigo comum e terrível, ao mesmo tempo
que protegiam o bem-estar da comunidade contra a maleficência interna.
Contudo, quando eles próprios - ou familiares próximos - eram condena­
dos, viam as coisas de forma muito diferente.
Em qualquer caso, estas novas e poderosas figuras da autoridade eram
encaradas com ambivalência, tal como há muito o eram os poderosos an­
ciãos. O respeito que os habitantes do planalto sentiam pelos guerrilheiros
da Frelimo e pelos seus comandantes era inseparável do medo que estes
homens (e, em alguns casos, mulheres) inspiravam.26 Ocasionalmente,

26 Kriger (1992,116-169) sugere que o medo que os zimbabueanos rurais sentiam dos
soldados do ZANLA impossibilitava a existência de um verdadeiro apoio popular à luta
de guerrilha.

246
Revolução, ciência efeitiçaria

aqueles com quem falávamos revelavam o lado obscuro dessas imputações


do poder da uwavi às autoridades da Frelimo. Um homem asseverou-nos
que os dirigentes da organização, em especial os chefes da segurança Na-
lyambipano e Lidimo, «usavam a uwavi mais paia se protegerem a si pró­
prios do que para protegerem os outros. Aqueles que tentavam atacar [estes
dirigentes] com uwavi eram apanhados, julgados e mortos. A guerra ter­
minou quando estas pessoas [os atacantes] foram eliminadas, e só nessa
altura. A guerra findou quando as pessoas ficaram com medo de atacar
esses dirigentes da Frelimo tanto abertamente como com uwavi - quando
ficaram com medo de se aliar aos portugueses contra a Frelimo.»
Um respejtado curandeiro assegurou-nos que conhecia diversos casos
em que os dirigentes da Frelimo e os comandantes da guerrilha «se feri­
ram a si próprios» durante a guerra - numa clara referência à utilização,
infrutífera, de mitela para fins socialmente destrutivos. Outro curandeiro
contou-nos que as vítimas mais frequentes de intoxicação (uma forma
de doença produzida por mitela antifeitiçaria), durante a guerra, eram
guerrilheiros da Frelimo que hostilizavam injustamente as populações
de cujo apoio dependiam.27
Na verdade, a alcunha aplicada aos guerrilheiros da Frelimo - «leões
da floresta»28 - era pronunciada e escutada pelo povo de Mueda com
um duplo sentido, repercutindo as associações ambíguas que, no pas­
sado, se faziam entre os leões e os vahurnu.
As autoridades da Frelimo, às vezes, contribuíam intencionalmente para
alimentar as suspeitas locais de que seriam feiticeiros poderosos, apesar da
sua retórica socialista. Os agentes de segurança consideravam conveniente
que as pessoas confundissem colaboradores com feiticeiros, pois tais su­
posições só contribuíam para a população lhes atribuir um maior poder
para «ven> e punir actos de deslealdade. Como vimos, o próprio Samora
Machel jogava com as percepções populares visitando vakulaula regular­
mente durante a guerra.29 É possível que Machel tenha sido impelido a

27 Mesmo que o povo de Mueda concebesse os guerrilheiros da Frelimo dè acordo


com as «categorias sociais locais» (Lan 1985,19), olhava-os com a ambivalência própria
dessas identidades - uma ambivalência que não é reconhecida na descrição que Lan faz
da guerra de independência zimbabueana.
28 Cf. Lan (1985), que refere que os guerrilheiros do ZANLA eram denominados «leões ‘
da chuva», devido à sua associação com os espíritos mhondoro, que viviam em corpos de
leões e traziam chuva aos seus descendentes.
25 Shaw (2002,257) afirma que os políticos da África contemporânea devem pôr num
prato da balança os benefícios de os suporem possuidores de poderes ocultos e no outro
prato as suspeitas que tais suposições levantam sobre eventuais propensões para agirem
com malevolência. Ver também Ferme (1999,171).

247
K u p ilih d a

fazer essas visitas pela fé no poder dos curandeiros de Mueda, mas também
os pode ter visitado para os apaziguar, bem como aos seus apoiantes, ou,
cinicamente, para manipular as convicções locais e consolidar o respeito
(ou o medo) popular em relação a si próprio. Não podemos ter a certeza
de que Machel foi sequer tratado dentro das cabanas dos curandeiros que
se sabe ter visitado. Sabemos seguramente, no entanto, que ele entrou nes­
sas cabanas e que até passou a noite na casa de Alabi Makanga, logo após
o fim da guerra. Também podemos estar certos de que Machel compreen­
dia que, ao visitar esses curandeiros e, em especial, ao «entrar lá dentro»
com eles - eufemismo local para «procurar tratamento» - facilitou muito
as suposições populares de que estava «bem protegido».
Em todo o caso, tal como os padres de Montfort se apresentaram aos
habitantes do planalto como portadores de uma visão transcendente do
mundo, o mesmo fizeram os dirigentes da Frelimo, quando pregavam con­
tra a feitiçaria nas zonas libertadas. À semelhança do que antes tinham
feito os padres de Montfort, que condenavam as pessoas pela sua ignorân­
cia e superstição, os dirigentes da Frelimo ergueram-se no meio delas e pro­
clamaram, essencialmente: «Nós estamos a ver-vos! Sabemos quem sois
(camponeses sem consciência de classe revolucionária)! Sabemos o que
julgais ver no mundo (feitiçaria)! Mas nós vemos o vosso mundo mais cla­
ramente do que vós (através das lentes do socialismo científico)!»
Tal como sucedera com os padres, muitos habitantes de Mueda acre­
ditaram nas afirmações dos líderes da Frelimo de que possuíam uma visão
transcendente, entendendo-as, simultaneamente, no contexto do género
discursivo da uwavi. Ao concluírem que esses líderes eram feiticeiros po­
derosos, os habitantes locais reafirmaram, ironicamente, o seu próprio
ponto de observação transcendente, invertendo (kupilíkula:) o discurso
do socialismo científico com as suas (contra)interpretações, mesmo
quando negavam (como todos os feiticeiros) a força das suas próprias vi­
sões para construírem o mundo.

248
Capítulo 17

Reescrevendo a paisagem

«Agora, sou nang’olo mwene kaja [chefe de povoação]», disse-nos Agos­


tinho Simão Shishulu.
Estávamos sentados a conversar no pátio de Agostinho, no lado sul
da aldeia de Matambalale.
«Mas a liaja já não existe», disse eu. A construção da aldeia onde nos
encontrávamos pusera fim às antigas povoações autónomas onde os seus
habitantes residiam anteriormente - pelo menos eu assim supunha.
«A kaja ainda lá está», retorquiu Agostinho, «nós é que já lá não vive­
mos.»
Agostinho, Tissa e eu tínhamos estado a conversar sobre a história da
povoação onde Agostinho vivia antes de ter fugido com a família para
as terras baixas, no início da guerra da independência. Quando manifestei
surpresa por Agostinho ter residido, em adulto, na povoação da matrili-
nhagem vashiala de seu pai e não na da matrilinhagem vailiu de sua mãe,
ele explicou-nos: «A maioria dos homens jovens da minha geração ficou
nas povoações dos pais; só recorríamos às likolas das nossas mães quando
tínhamos necessidades que nós próprios não conseguíamos satisfazer, ou
que os nossos pais não podiam satisfazer.»
Eram esses os efeitos da emigração e dos empregos assalariados na es­
trutura social maconde. Agostinho não só permanecera na povoação do
pai depois de atingir a maioridade, como acabara por ser escolhido para
chefiar o grupo: «Mpapalola foi o fundador. Sucedeu-lhe o seu irmão
mais novo, Dedi. Dedi foi substituído pelo filho da sua irmã, Namiva,
que transmitiu a sua autoridade ao filho da irmã da sua mãe, Henriques
Shishulu.»
Tissa observou que todos os antecessores de Agostinho eram vashiala,
mas que ele era vailiu. Agostinho respondeu: «O nangolo mwene kaja sem­
pre escolheu o seu sucessor. O que importa é que a pessoa escolhida
tenha bom temperamento; deve ter ambições que sirvam a likola e não

249
K u piliku la

ambições que a destruam. No passado, o sucessor não podia ser um filho.


Agora, [isso] acontece, às vezes, se a pessoa em quem a likola confia mais
for um filho e não um sobrinho. Aconselhei-me com o sobrinho de Hen­
riques até ele morrer. Depois continuei, sozinho.»
Continuámos a conversar sobre as mudanças que Agostinho testemu­
nhara. Ele concluiu: «Actualmente, muitos filhos permanecem com os
pais, por isso a likola está a perder a sua importância.» A isto acrescentou,
todavia: «Quando eu morrer, o cargo terá de voltar para os vashiala.»
Foi quando manifestei surpresa por Agostinho ter de escolher um su­
cessor numa época em que a kaja já não existia, que ele nos informou
não só que a kaja continuava a existir, apesar da integração em aldeias,
mas também que continuavam a existir vanango’olo vem kaja.
«As nossas terras estão lá», disse-me. «Nós vivemos aqui, na aldeia, mas
vamos todos os dias tratar das culturas nas mesmas terras que sempre
cultivámos. O nang’olo [ancião] ainda vela pelas terras da likola. Algumas
matrilinhagens até continuam a sepultar os seus mortos na kaja.»
«A que distância ficam as vossas terras?», perguntou Tissa, sabendo,
pela sua própria experiência de ter crescido na aldeia de Nimu, a impor­
tância da resposta a esta pergunta.
«Andamos hora e meia a pé», disse Agostinho, apontando para sul.
«Não conseguem arranjar terras mais perto da aldeia?», perguntei, es­
pantado por os vashiala de Matambalale serem obrigados a gastar três
horas dos seus dias tão cheios de trabalho em deslocações para os campos
agrícolas.
«Todas as terras entre esta aldeia e os nossos campos pertencem a outras
matrilinhagens», informou-nos Agostinho.
«Porque é que a aldeia foi construída aqui, tão longe das vossas terras?»
perguntei.
Tissa interpôs: «Isso não é invulgar. Muitos têm de andar mais. E a
consequência de concentrarem tanta gente numa aldeia.»
O sorriso de Agostinho revelou-o como um homem só em parte re­
signado às infelizes circunstâncias históricas que definiram a sua existên­
cia: «Três presidentes da Frelimo são oriundos de povoações mais próxi­
mos do local onde esta aldeia foi construída. As suas matrilinhagens
aderiram à Frelimo logo no início, ainda antes de a guerra ter começado.
Foram recompensados pelo seu serviço pelas pessoas que escolheram este
sítio.»
Agostinho olhou para o chão, como se estivesse a esforçar-se por ficar
calado, mas acabou por deixar que estas palavras lhe escapassem dos lá­
bios: «Perguntámos se era possível construir outra aldeia mais perto das

250
Reescrevendo a paisagem

nossas terras, mas quando a Frelimo começou a chamar-nos ‘inimigos


do povo’, desistimos.»

Quando a guerra da independência de Moçambique terminou, em


1974, os habitantes do planalto de Mueda estavam ansiosos por voltarem
a viver nas suas povoações, sob os pequenos bosques que davam frutos
doces e sombra fresca, próximo dos túmulos dos seus antepassados. Con­
tudo, após as tropas portuguesas terem retirado de Moçambique e a in­
dependência moçambicana ter sido concedida em 1975, a Frelimo disse-
-lhes que, em vez disso, iriam construir e residir em povoações de uma
dimensão sem precedentes: as «aldeias comunais», que serviriam de mo­
delo para o resto do país, na campanha da Frelimo para levar a «moder­
nização socialista» ao Moçambique rural (Egerõ 1987; Hanlon 1990,121-
-131; Casal 1991; Borges Coelho 1993b; West 1997b, 197-199).1
A Frelimo apresentou a criação de aldeias comunais às populações de
Mueda sob a forma de um contrato social. As populações rurais ficariam
concentradas em aldeias de 250 a 1000 famílias. Construiriam as suas
próprias casas, bem como os edifícios que lhes serviriam de escolas, cen­
tros de saúde, lojas, armazéns e instalações administrativas do governo e
do partido. O governo forneceria, então, professores e técnicos de saúde,
medicamentos e livros escolares, bens de consumo básicos e alfaias agrí­
colas, máquinas e agentes de extensão rural, bem como - algo da máxima
importância no planalto de Mueda - uma rede de abastecimento de água
potável. O governo também coordenaria o transporte e o comércio entre
as aldeias e os centros urbanos. Em colaboração com os aldeões, o par­
tido até organizaria eventos e actividades culturais e políticas no centro
da aldeia. Na visão da Frelimo, as aldeias comunais constituiriam «cidades
nascidas nas florestas» (Frelimo 1976).
É claro que a iniciativa de construção de aldeias comportava outras
dimensões. Desde o início da luta da Frelimo contra o colonialismo, que
esta pretendia não só libertar Moçambique do jugo colonial, màs tam­
bém transformar drasticamente a sociedade moçambicana e o funciona­
mento do poder no seio dela (Munslow 1983,133-148; Pitcher2002,85).
A descolonização de Moçambique, insistiam os dirigentes da Frelimo, •
exigia tanto o fim do colonialismo como a libertação dos moçambicanos

1 A mesma terminologia foi utilizada noutros contextos socialistas revolucionários.


Ver, por exemplo, Mueggler (2001,270) a respeito da China.

251
K u p ilik iã a

L. Nnngade
• Aldeias
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......Curvas de nível em metros
^Chicundi •N am atil J Litingina^ 20 km
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Mapa 4
Aldeias comunais pós-independência

das instituições indígenas que, no período colonial, se conluiaram com


os portugueses na exploração dos moçambicanos comuns (Machel 1985,
41). Durante a guerra, os guerrilheiros da Frelimo consideravam, às vezes,
que era pragmático cooperar com as antigas autoridades gentílicas e/ou
com outras figuras de autoridade baseadas nos laços de sangue, mas logo
em 1969, o primeiro presidente da Frelimo, Eduardo Mondlane, afirmou
publicamente que a autoridade dos «chefes» no Moçambique contem­
porâneo provinha não da «estrutura tribal original», mas sim da «nomea­
ção pelos portugueses», cujas instruções executavam (Mondlane 1969:
40). Com o tempo, os dirigentes da Frelimo foram repudiando cada vez

252
Reescrevendo a paisagem

mais estas figuras, como oportunistas corruptos que, na era colonial, ti­
nham beneficiado pessoalmente das suas funções como cobradores de
impostos, recrutadores de mão-de-obra e agentes policiais locais (Macheí
1985, 5). Aquando da independência, a Frelimo procurou excluí-las de
todos e quaisquer cargos de autoridade. Na primeira sessão do Conselho
de Ministros, em 1975, as chefias tradicionais foram sumariamente abo­
lidas (People’s Republic o f Mozambique 1990 [1975], 4; Monteiro 1989,
14; Sachs e Honwana Welch 1990, 58-60; Meneses etal. 2003,352).2
Os dirigentes da Frelimo reconheciam que a transformação da lógica
e do funcionamento do poder a nível local exigia que se transformassem
as condições da sua prática. A concentração em aldeias foi, por isso, con­
cebida como uma forma de permitir que o partido/Estado da Frelimo
reescrevesse a paisagem do poder no Moçambique rural, através da criação
de novas instituições políticas e económicas baseadas nas aldeias, as quais
substituiriam as estruturas de autoridade assentes nos laços de sangue
que a Frelimo considerava serem hierarquias «feudais» (Munslow 1983,
140; Machel 1985, 41, 55, 57; Meneses et al. 2003, 351). As aldeias co­
munais deviam constituir a base sobre a qual os «homens novos» de Mo­
çambique se governariam através do exercício do poder popular, numa
nova sociedade sem classes (Munslow 1983; Machel.1985,2,43; Egerõ
1987; Hanlon 1990,135-146; Casal 1991). Os aldeões elegeriam os seus
pares para as assembleias populares e estes representariam os interesses
dos aldeões na nação recém-chegada à independência. Também elege­
riam juízes para os tribunais populares, que resolveriam os conflitos que
surgissem entre eles. Os assuntos económicos, incluindo a produção agrí­
cola e o comércio de bens de consumo produzidos nos centros urbanos,
seriam mediados por cooperativas, cujos dirigentes também seriam eleitos
de entre a população. Tudo isto iria garantir que o poder popular fun­
cionasse de forma transparente e racional, no interesse de todos os mem­
bros da comunidade - que todos «comeriam bem», como se dizia entre
os habitantes do planalto.
No entanto, os aldeões não exerceriam o poder popular sozinhos.
A cultura de comando da guerra de guerrilha persistiu no interior da Fre­
limo depois de a guerra terminar, e foi reforçada pela sua transformação
num partido de vanguarda, em 1977.3 Os dirigentes da Frelimo assumi-

2 Ver também a Lei n.° 1/77, artigo 14.° (publicada no Bóleúm da República).
3 C om o Pitcher (2002,78) faz notar, esta cultura de comando manifesta-se na lingua­
gem através da qual a Frelimo governava: lançava «campanhas» de alfabetização e «ofen­
sivas» contra a pobreza e a doença, por exemplo.

253
K upilikula.

ram o mandato de educar as massas e conduzir os assuntos das aldeias


em conformidade com os princípios revolucionários. Os presidentes das
aldeias eram nomeados pelo partido/Estado. Na sua maioria, eram ho­
mens jovens, depositários da confiança do partido mas não, necessaria­
mente, da dos aldeões que governavam. Na verdade, como a Frelimo
considerava potencialmente problemático guindar um membro da co­
munidade aldeã a uma posição de autoridade acima dos seus pares, mui­
tos presidentes não eram originários das populações que governavam.
Para evitar que os aldeões se extraviassem no exercício da democracia,
quando o direito de voto lhes era alargado, os candidatos às assembleias
populares (órgãos governativos que exerciam a autoridade sobre várias
aldeias) eram escolhidos por representantes do partido que orquestravam
debates públicos sobre os méritos dos candidatos, antes de procederem
a votações de braço no ar. As antigas autoridades gentílicas eram siste­
maticamente excluídas (Hanlon 1990,170-174; Meneses et d . 2003,351),
o que implicava que, na maioria dos casos, os vanangolo venekaja (chefes
de povoação) ficavam, na prática, impedidos de ocuparem esses cargos.4
Dado que a ordem de trabalhos das assembleias eleitas era ditada pela
hierarquia política da Frelimo, estes organismos acabavam por servir mais
como difusores das directivas estatais do que como veículos de governa­
ção democrática (Egerõ 1987). Os funcionários do partido também su­
pervisionavam a escolha dos membros dos tribunais populares e intervi­
nham no estabelecimento das normas que regeriam a pronúncia das
sentenças (Sachs e Honwana Welch 1990).
A continuidade relativamente às antigas zonas libertadas foi observada
não só na cultura de poder, mas também nas suas estruturas. Os residentes
de uma aldeia comunal eram, afinal, aqueles que tinham vivido juntos
durante a guerra em cada secção/localidade. Os residentes de uma ou mais
secções/círculos municipais eram, normalmente, colocados num bairro
distinto, dividindo-se a maioria das aldeias em quatro bairros. O cargo
de presidente de secção/secretário de círculo no tempo da guerra foi
transformado no de presidente de bairro, ao passo que o de presidente
de secção local/secretário de localidade deu lugar ao de presidente da
aldeia. Os conselhos a estes níveis tinham um funcionamento muito

4 Dinerman (2001) sugeriu que, nas zonas da província de Nampula onde fez inves­
tigação, as antigas autoridades gentílicas mantinham, muitas vezes, o controlo dos orga­
nismos estatais locais (orquestrando, com frequência, a nomeação de familiares para esses
cargos). Em Mueda, porém, onde a Frelimo se estabelecera no contexto da guerra de
guerrilha, o partido foi mais rigoroso na exclusão das antigas autoridades gentílicas dessas
posições de influência.

254
Reescrevendo a paisagem

similar ao da segunda metade da guerra, sendo as nomeações feitas pelos


superiores departamentais hierárquicos da Frelimo.
Tal como a cultura e as estruturas de autoridade das aldeias pós-inde-
pendência deram continuidade às da guerra da independência, os padrões
de uso do solo mostraram continuidade em relação ao passado anterior à
guerra. A lei da terra adoptada a seguir à independência determinava que
todas as terras pertenciam ao povo através do Estado, mas onde o Estado
não exercesse directamente os seus direitos sobre os terrenos demarcados
para uso das herdades estatais ou dos colectivos de aldeia, as famílias indi­
viduais podiam desbravar e cultivar leiras individuais. Embora residissem
em aldeias concentradas, deslocavam-se diariamente às terras que conti­
nuavam a reconhecer como suas, situadas nas imediações das antigas po­
voações (às vezes, situadas a duas horas de distância da aldeia).5
Os vínculos que os habitantes do planalto mantinham com as suas po­
voações anteriores à independência eram ainda mais profundos. Quando
ocuparam as novas aldeias, os membros da likola construíram, normal­
mente, as suas casas em terrenos contíguos. Mais ainda, se a povoação da
likola ficasse a norte da aldeia, por exemplo, os membros da likola cons­
truíam, geralmente, as suas casas no lado norte da aldeia, a fim de encurtar
ao máximo a caminhada até às suas terras. Aqueles cujas antigas povoações
ficavam distantes da aldeia ocupavam, normalmente, o perímetro desta,
ao passo que aqueles cujas antigas povoações se situavam próximo da al­
deia construíam perto do centro (a não ser que a aldeia estivesse localizada
nas suas terras, o que os levava a aglomerarem-se em tomo das árvores
que outrora resguardavam a sua povoação independente). Desta forma,
os aldeões reproduziam, dentro dos limites da nova aldeia (ainda que em
miniatura e de forma alterada) a antiga geografia social da região, man­
tendo-se as matrilinhagens, silenciosamente, como unidades distintas,
tanto no interior da aldeia como nas terras que cultivavam fora dela.
Como as pessoas continuavam a cultivar as terras obtidas através das
redes matrilineares, os responsáveis das aldeias - sobretudo os que não eram
oriundos da região onde trabalhavam - estavam mal preparados para resol­
ver conflitos de terras, quando estes surgiam. Nos casos em que everitual-
mente se envolviam, os presidentes de aldeia tinham de recorrer ao teste­
munho de peritos para confirmar ou refutar a validade dos direitos. Quase
sempre, os peritos não eram senão os vanang’olo venekaja das matrilinhagens

5 A lei da terra protegia, efectivamente, estes direitos históricos, determinando que


nenhum agricultor podia ser despojado da terra desde que continuasse a utilizá-la. Deste
modo, os direitos sobre a terra continuaram a basear-se na ocupação e na herança.

255
K u p ilik u la

256
Reescrevendo a paisagem

dos litigantes. Estes anciãos também continuaram a desempenhar o seu


papel noutros assuntos. No planalto de Mueda, os tribunais populares só
funcionavam esporadicamente e, como apenas foram estabelecidos tribu­
nais em aldeias que também serviam de postos locais, a maioria dos aldeões
tinha de caminhar até uma aldeia próxima - e perder um dia de trabalho -
para apresentar um caso. Muitos aldeões achavam que as decisões dos tri­
bunais eram imprevisíveis e, por isso, consultavam, frequentemente, o
nang’olo mwene kaja da sua antiga povoação, não só quando necessitavam
de terras, mas também para obter conselho em questões de família, ou para
resolver eventuais conflitos. Consoante a atitude do presidente da aldeia,
os aldeões faziam isto às claras ou sub-repticiamente.
Deste modo, apesar de a povoação (kaja) ter sido geograficamente eli­
minada do planalto, as pessoas não só reproduziam os mapas cognitivos
das comunidades anteriores à independência na paisagem pós-indepen-
dência, como também continuavam a reconhecer as estruturas políticas
que animavam a paisagem anterior, bem como as figuras de autoridade
que as encimavam - os vanang’olo venehtja. Por exemplo, os habitantes da
aldeia de Matambalale, que antes viviam em cinquenta e oito povoações,
reconheciam a existência de cinquenta e oito vanang’okvm ekaja quando
trabalhei entre eles.6Isto acontecia mesmo que o ancião detentor do cargo
antes do início da guerra de independência tivesse morrido, pois em todos
esses casos tinham sido nomeados sucessores.7

M apa 5
Aldeia de Matambalale e antigas povoações circundantes (cerca de 1994).
As cinquenta e oito povoações cujos habitantes vivem agora em Matambalale
são discemíveis, na paisagem do planalto, pelos aglomerados de árvores que ou-
trora davam sombra às suas casas.
1. N tum bati 12. N tam ba 24. Woyo 36. M pelo 48. Nanda
2. Shimbola 13. Namakate 25. N andang’a 37. Likabaleni 49. Koio
3. Malipudya 14. M ashaninga 26. Nauli 38. Tendinyama 50. Shiponda
4. N dum usha 15. Shilende 27. Pinda 39. Audulole 51. Nacngo
5. M bum ila 16. Mang’anyuka 28. Sandia 40. Mweva 52. N andondo
6. Mpalakele 17. Liguguma 29. Ng’om a 41. M inga 53. Nyushi
7. Atibu 18. M pupa 30. Kakoli 42. Mwalabu 54. Shoongo
8. Niwanje 19. Makutí 31. Nam osha 43. Tekuno 55. Kwalata
9. M apiko 20. M undum u 32. N ungam a 44. Sheka 56. M buba
10. M papalola 21. Lijega 33. Shileumbutuka 45. N andem bu 57. N am osha
11. Akalimui 22. K undapanango 34. M am ba 46. Ndaigwashana 58. Ng’om a
23. N aunam a 35. Lilandoma 47. N ding’uni

6 Isto aconteceu, claro está, trinta a trinta e cinco anos após terem abandonado as suas
povoações, e vinte a vinte e cinco anos após as chefias tradicionais terem sido oficialmente
abolidas em Moçambique.
7 Ver em West (2001) um tratamento mais alargado das aldeias comunais de Mueda e
da persistência, nestas, das instituições baseadas nos laços de sangue.

257
K u piliku la

Em contrapartida, a governação da Frelimo, no período pós-indepen-


dência, afectou consideravelmente as instituições políticas baseadas na
consanguinidade. À medida que os dirigentes da Frelimo denegriam as
figuras de autoridade tradicional como bêbados supersticiosos e egoístas,
os jovens iam olhando para esses anciãos com crescente desprezo. O
humu Windu contou-nos, em 1994, que a instituição do humu definhou,
no período a seguir à independência, em grande medida devido aos es­
tereótipos negativos a que a Frelimo a associou. Enquanto anteriormente
os vahumu eram reverenciados e respeitados, depois da independência
foram obrigados a amanhar os seus próprios campos como as pessoas
comuns, facto que minou o prestígio da instituição. «Os jovens de hoje
não querem ser humu», disse-nos Windu, pesarosamente. De facto,
quando fizemos investigação no planalto em 1994, descobrimos que
quando os vahumu morriam não erarri nomeados sucessores e que, das
trinta e seis matrilinhagens que antes possuíam vahumu, apenas três con­
tinuavam a tê-los.
Com a passagem do tempo, a concentração em aldeias também difi­
cultou que os membros da likola residissem juntos. Depois de casarem,
os jovens casais deixaram de ir residir com o njomba (tio matrilinear) do
marido, como faziam outrora.8 Mesmo que permanecessem na aldeia
onde tinham crescido, constatavam muitas vezes que não podiam cons­
truir as suas casas junto de um ancião que os apadrinhasse, pois a densi­
dade das residências impedia-o. Em vez disso, os jovens eram obrigados
a construir na periferia da aldeia, junto de pessoas com quem não tinham
quaisquer laços de parentesco. Misturados com membros de muitas ou­
tras matrilinhagens, os aldeões lamentavam, por vezes, a sua situação can­
tando uma canção onde se perguntava: «Quem é a Frelimo para me fazer
viver ao lado deste homem que não é meu tio?»
Ao longo da década de 1980, surgiram, de vez em quando, pequenos
grupos que decidiam abandonar as suas aldeias comunais e regressar aos
sítios das antigas povoações.9 Os responsáveis da Frelimo reagiram a tais
iniciativas com violência, prendendo os líderes desses grupos e queimando
as casas que tinham construído fora da aldeia. Com estas medidas, a Fre­
limo demonstrou que entendia a concentração em aldeias não só como

8 Esta prática já estava em desaparecimento antes da independência. À medida que o


trabalho remunerado assumia mais importância e o acesso à terra se tomava menos es­
sencial, iam diminuindo os incentivos para os homens jovens procurarem o patrocínio
dos parentes matrilineares na altura de constituírem as suas famílias.
9Ver, para relatos pormenorizados desses incidentes, Oficina de História (1986); Egerõ
(1987, 160-161); West (1997b, 213-219; 2001).

258
Reescrevendo a paisagem

um meio para realizar a «modernização socialista» nas zonas rurais mas, si­
multaneamente, como uma componente da segurança nacional.101
No início de 1977, Moçambique voltou a estar em guerra. Os militares
rodesianos responderam ao refugio concedido aos guerrilheiros do Exér­
cito de Libertação Nacional Africana do Zimbabué (ZANLA) enviando
agentes de contra-insurreição através da fronteira para atacar as bases do
ZANLA. Os moçambicanos descontentes com a Frelimo, incluindo mui­
tos que tinham combatido contra ela no exército português, foram re­
crutados pelas forças armadas rodesianas para se juntarem às forças anti-
-insurreição. Quando o regime de colonos brancos chefiado por Ian
Smith entregou o poder aos nacionalistas zimbabueanos, em 1980, as
Forças de Defesa da África do Sul adoptaram esses agentes e, depois de
lhes darem um treino adicional, reintroduziram-nos em Moçambique
para desestabilizar o regime da Frelimo, que granjeara a inimizade da
África do Sul ao acolher a sede do Congresso Nacional Africano (ANC)
em Maputo. Estes agentes da contra-insurreição transformados em in-
surrectos, que viriam a denominar-se Resistência Nacional Moçambicana,
ou Renamo, visavam agora as infra-estruturas do Estado moçambicano
e aterrorizavam os moçambicanos das zonas rurais (Hall 1990; Morgan
1990; T. Young 1990; Vines 1991; África Watch 1992; Roesch 1992; Min-
ter 1994).
A Renamo estendeu as suas operações a todo o território moçambi­
cano, recrutando, por vezes à força, novos soldados nas zonas onde che­
gava. No início da década de 1980, já estava na província de Cabo Del­
gado. Os responsáveis da Frelimo na região procuraram utilizar as aldeias
comunais como uma barreira ao contacto da Renamo com as populações
locais, muito à semelhança do que os portugueses tinham feito com as
aldeamentos estratégicos que construíram em Cabo Delgado, durante a
guerra da independência. Por isso, quando os habitantes do planalto de
Mueda abandonaram as suas aldeias para regressar às antigas povoações,
os funcionários da Frelimo responderam energicamente.
Embora a Renamo nunca tenha estabelecido uma presença duradoura
na região do planalto, na década de 1980 os habitantes voltaram a sen­
tir-se novamente em guerra.11 As autoridades advertiam-nos constante-

10 Cf. Dinerman (2001), na província de Nampula, as autoridades incentivaram os re­


sidentes a abandonarem as suas aldeias comunais para poderem participar em projectos
estatais de cultura do algodão.
11 A Renamo ocupou, de facto, várias aldeias nas terras baixas em redor do planalto e
enviava espiões para procurarem simpatizantes neste último, mas atacou uma única vez
algumas aldeias do planalto.

259
Kupilikula

mente para se manterem «vigilantes» (Damton 1979). No mesmo local


onde se localizara a Moçambique D no final da guerra da independência,
o aparelho de segurança do Estado mantinha agora um «campo de ree­
ducação» denominado Ruarua (um de vários campos desse género loca­
lizados nas antigas zonas libertadas), onde estavam detidos os «inimigos
do povo» (Amnesty International 1979, 27). Corriam rumores entre os
habitantes do planalto a respeito do tratamento brutal dado aos prisio­
neiros do Estado, muitos dos quais morreram na prisão (Carvalho 1981;
US Department o f State 1984, 253; África Watch 1992, 19, 68; West
1997b, 222-225; 2003a).
Não obstante a capacidade demonstrada pela Frelimo para proteger a
região do planalto dos ataques da Renamo, o espectro da violência pai­
rava sobre as aldeias comunais pós-independência. Como veremos, os
habitantes preocupavam-se não só com as forças potencialmente amea­
çadoras que se emboscavam em redor do planalto onde batia o coração
revolucionário da Frelimo, mas também com as perigosas forças ocultas
no interior das aldeias-modelo socialistas pós-independência - novos «ini­
migos internos» com traços perturbadoramente familiares.

260
Capítulo 18

A comunalização da feitiçaria
«
«Há muito tempo», contou-nos Limitedi Untonji, «a uwavi wa kuli-
shmgila [feitiçaria de autodefesa] era a mais comum.»
O filho e o neto de Limitedi estavam sentados a seu lado. O neto era
demasiado jovem para entender as palavras do ancião, mas o filho escu-
tava-o com muita atenção. Anteriormente, dissera-nos que ele e a mulher
tinham começado a estudar com o ancião para aprenderem as suas mi-
tela.
«Se as pessoas queriam dançar uwavi na povoação, o chefe da povoa­
ção saía e dizia: ‘Aqui não!’ Agora, na aldeia, é diferente.»
O ancião enfatizava as suas palavras apenas com uma inflexão da voz,
pois os seus olhos eram de um branco brilhante e vazio.
«O povo unido do Rovuma ao Maputo!», disse ele. A palavra de
ordem, que fazia referência aos dois rios que constituem as fronteiras
norte e sul do país, era frequentemente pronunciada pelo presidente da
Frelimo Samora Machel, nos primeiros tempos da independência mo­
çambicana. «Nas aldeias, os vavi também estão unidos», prosseguiu o al­
deão. «De noite, tocam o sino e reúnem-se. Não pertencem à likola de
ninguém.1Esta é a uwavi wa shílikali [feitiçaria do governo]!»
Marcos debruçou-se para a frente no lugar, tocando com respeito o
joelho do ancião cego para lhe chamar a atenção, antes de se lhe dirigir.
«Os vavi usam o sino da aldeia normal?»
O ancião respondeu, sem hesitar: «Só se o presidente da aldeia tam­
bém for presidente da noite!»
«Ummm», proferiu Marcos, indicando que entendera o eufemismo.
Depois perguntou-lhe, directamente: «Qual é a diferença entre uma al­
deia onde o presidente é feiticeiro e uma aldeia onde não é?»

1Ver também Simmons (1980,455).

261
Kupilihda

Quando conversávamos com Limitedi Untonji, aqui retratado com o seu filho-
-discípulo e o neto, lembrei-me do meu próprio avô, cuja visão debilitada sus­
citara uma maior sensibilidade e acuidade dos restantes sentidos. Um número
desproporcionalmente elevado dos vakulaula do planalto de Mueda que encon­
trámos sofria de cegueira, mas eles «viam» aquilo que as pessoas normais não
podiam ver - o reino invisível.

«Numa aldeia onde o presidente não é um mwavi, nada funciona»,


respondeu o ancião. «Onde o presidente da aldeia é um mwavi, tudo
funciona bem.»2
«Então o presidente de uma aldeia onde tudo funciona bem pratica
feitiçaria de construção?», perguntou Marcos.
«Sim», respondeu Limitedi, «se tudo funcionar bem, ele pratica feiti­
çaria de autodefesa para o bem de todos.»
Tais casos eram, no entanto, bastante raros, acrescentou Limitedi.

James Scott escreveu:

A legibilidade é uma condição da manipulação. Qualquer intervenção es­


tatal substancial na sociedade - vacinar uma população, produzir bens, mo­
bilizar mão-de-obra, tributar as pessoas e os seus bens, realizar campanhas de

2 Ver também Geschiere (1997, 64).

262
A com unalização dafeitiçaria

alfabetização, recrutar soldados, aplicar normas sanitárias, capturar crimino­


sos, instituir a escolaridade universal - exige a invenção de unidades que sejam
visíveis. As unidades em causa podem ser cidadãos, aldeias, árvores, campos,
casas, ou pessoas agrupadas de acordo com a idade, dependendo do tipo de
intervenção. Sejam quais forem as unidades manipuladas, devem estar orga­
nizadas de uma maneira que lhes permitam ser identificadas, observadas, re­
gistadas, contadas, agregadas e controladas (1998, 183).

Através do projecto de construção de aldeias comunais descrito no ca­


pítulo 17, o Estado da Frelimo reescreveu drasticamente a paisagem mo­
çambicana.3Ao fazê-lo, a direcção do partido esperava tomar a sociedade
rural moçambicana mais legível e, logo, mais dócil fáce à intervenção do
Estado.4Em alguns aspectos fundamentais, a aldeia comunal funcionava
como o panopticon de Jeremy Bentham (comentado por Michel Foucault
1977, na sua análise da prisão moderna), ainda que a aldeia não se pare­
cesse com o cubo e os raios de uma roda. Os habitantes de Mueda eram
obrigados a construir as suas casas em filas bem ordenadas, numa grelha
cuidadosamente traçada. As casas erguiam-se, desprotegidas, numa pai­
sagem quase desprovida de vegetação. As aldeias estavam divididas em
quatro quadrantes denominados bairros. Em cada bairro, as casas eram
atribuídas a unidades de vinte e cinco famílias. O partido nomeava res­
ponsáveis desde o nível de presidente da aldeia até à unidade de vinte e
cinco famílias. As delegações da Frelimo eram construídas no centro da
aldeia. A concentração espacial da aldeia expunha directamente as pes­
soas a um olhar controlador - personificado no presidente da aldeia no­
meado pela Frelimo -, que podia passar sem obstáculo através dos cor­
redores de vigilância numa questão de horas, quando antes seriam
necessários vários dias para visitar todas as povoações representadas na
aldeia. Quando o presidente da aldeia se queria dirigir às pessoas que
tinha a cargo, chamava-as tocando um «sino» - geralmente uma velha
roda de tractor dependurada de uma árvore ao lado da delegação do par­

3 Fitzpatrick (1994) e Donham (1999, 28, 179) descrevem tentativas semelhantes de


«reescrever a paisagem» efectuadas pelos regimes socialistas da Rússia e da Etiópia, res­
pectivamente.
4 Embora Scott critique os projectos estatais «muito modernistas» por serem arrogantes _
e ignorarem a complexidade social, também apresenta provas de que os modemizadores
justificaram, frequentemente, a reescrita da paisagem com o uma forma de prestarem ser­
viços sociais benéficos, incluindo cuidados de saúde, educação, saneamento básico e ou­
tras componentes infra-estruturais. Isto aplicava-se, certamente, à campanha da Frelimo
- iniciada no momento da euforia pós-colonial - para levar a modernização socialista às
zonas rurais do país.

263
Kupitikula

tido. Os que não aparecessem rapidamente poderiam ser, depois, inter­


rogados e/ou punidos.
Quando a Frelimo começou a usar as aldeias comunais da região de
Mueda para impedir a Renamo de aceder às populações do planalto, a
vigilância do partido virou-se para o interior - tal como acontecera du­
rante a guerra de independência - , com o Estado a controlar estas aldeias
para tentar detectar o aparecimento de «inimigos internos». Como vimos,
a Frelimo precavia-se contra a reafirmação do poder pelas antigas autori­
dades gentílicas, no âmbito das estruturas das aldeias. O partido/Estado
também mantinha as proibições impostas no tempo da guerra em relação
a todas as formas de discurso e de prática públicos associadas à feitiçaria,
incluindo a utilização de substâncias mágicas, a consulta de adivinhos e
a súplica aos espíritos ancestrais, todas elas incluídas na categoria de «obs­
curantismo» explicitamente condenada na Constituição (People’s Repu­
blic o f Mozambique 1990 [1975], 7); ver também E. Green, Jurg e
Dgedge (1993, 264; 1994, 7); Ametrano (1998); Honwana (2002, 169-
-173); Gulube (2003,100).5No mundo pós-colonial do «socialismo cien­
tífico» e do «poder popular» - onde o poder operava, alegadamente, de
forma aberta, racional e em beneficio de todos - a Frelimo encarava
como uma blasfémia política a sugestão, implícita nas acusações e con­
tra-acusações de feitiçaria, de que o poder funcionava de formas ocultas
e caprichosas.6
Ironicamente, a linguagem da governação da Frelimo nas aldeias co­
munais enfatizava a visão e a visibilidade. Através da construção dessas
aldeias, o partido realizou a sua audaciosa visão de um espaço rural mo­
çambicano transformado. Simultaneamente, afirmou a sua capacidade
de dominar os habitantes do planalto com o seu olhar - de os ver e saber,

5 Honwana (2002,171) nana com o a proibição pela Frelimo das cerimónias da chuva,
dos rituais de fertilidade e da súplica aos antepassados fora vivida na região Sul do país,
onde ela trabalhava. Conta que, nalguns casos, havia curandeiros entre as pessoas detidas
e transferidas para o Norte do país a título da «operação produção», um programa exe­
cutado pela Frelimo em 1983 e que alegadamente visava expulsar os migrantes desem­
pregados das zonas urbanas (172).
6 Feierman menciona a posição tomada pelo governo socialista da Tanzânia de que
«o socialismo e a superstição [eram] incompatíveis» (1986,210). Humphrey informa que
os xamãs da Sibéria, da Mongólia e da Manchúria eram «presos e mortos pelos governos
comunistas», que rejeitavam o xamanismo como uma «superstição primitiva» (Humphrey
e Onon 1996,1). Segundo Brandon (1993,101-102), apesar de o Estado socialista cubano
ter demonstrado uma maior tolerância oficial face às «crenças e práticas populares», por
vezes autorizava medidas antagónicas. Karen Brown (1991,378) refere «campanhas anti-
-superstição» recorrentes no Haiti.

264
A commalização dafeitiçaria

constantemente, o que andavam a fazer. Tais afirmações eram familiares


ao povo do planalto, que trouxera para a aldeia não só a lógica espacial
da geografia social anterior à independência, mas também o esquema da
feitiçaria, com as suas formas características de entender o poder. Através
deste esquema, o povo interpretava o poder de Estado de uma forma
bastante diferente daquela que os dirigentes da Frelimo pretendiam.
Segundo Kalamatatu, os vam ng’ok vmekaja não podiam garantir con­
vincentemente que controlavam os membros de outras makola que vi­
viam junto deles nas aldeias onde agora habitavam. De facto, nenhuma
figura de autoridade poderia controlar um domínio que nem ela nem os
seus antecessores tinham construído. A Frelimo construíra as aldeias e
nomeara responsáveis para ocuparem as delegações construídas nos seus
centros. Nestas aldeias, nenhum nang’olo mwene kaja foi autorizado a
construir uma shitala para realizar reuniões e exercer a autoridade sobre
os membros da sua likola. Por conseguinte, explicou-nos Kalamatatu, in­
cumbia às autoridades da aldeia vigiar o reino invisível, nestes novos do­
mínios, a fim de assegurar ambientes seguros e prósperos para as pessoas
que tinham a seu cargo. Por outras palavras, os aldeões esperavam que
os presidentes das aldeias patrulhassem tanto o reino visível como o in­
visível - que praticassem feitiçaria de construção. O ancião Vicente Ana-
wena, em Matambaiale, garantiu-nos: «Até os chefes de hoje [referindo-
-se aos responsáveis estatais] devem ser vavi. De outro modo, como
poderiam mandar?»
De um modo geral, os habitantes do planalto de Mueda interpretavam
as declarações oficiais contra o obscurantismo da mesma forma que ti­
nham feito durante a guerra. Ou seja, interpretavam a proibição da Fre­
limo em relação às práticas ligadas à feitiçaria como sendo unicamente
dirigida contra as formas destrutivas desta última. Muitos curandeiros,
seguros de que o seu próprio trabalho não se enquadrava nessa categoria
- seguros, de facto, de que o seu trabalho se inseria na luta contra as for­
mas destrutivas de feitiçaria - continuaram as suas práticas, embora se
sentissem compelidos a manter a discrição nas suas actividades de com­
bate à feitiçaria.7

7 Os waing’anga (curandeiros-magos itinerantes) constituíam uma excepção digna de


nota; a Frelimo fazia cumprir agressivamente a proibição oficial das suas actividades. Ma-
kudo Shalaga Ntumi Ngole contou-nos que os waing‘anga acabaram por recear o governo
porque este apoiava os pedidos de indemnização de pessoas que afirmavam ter sido «fal­
samente acusadas», embora nos tenha assegurado que a Frelimo só castigava os waing’anga
que eram, de facto, «mentirosos».

265
Kupilikula

Com o tempo, os responsáveis governamentais foram aplicando a


proibição dessas actividades com uma crescente frouxidão, pelos mesmos
motivos variados e complexos que levaram os dirigentes e comandantes
de guerrilha da Frelimo a afrouxar as proibições durante a guerra da in­
dependência.8 O nhdaula Shindambwanda entendeu a mudança da se­
guinte forma: «No início, o governo dificultou-nos o trabalho, mas
pouco tempo depois, percebeu que era melhor deixar-nos tratar da feiti­
çaria, para que ela não acabasse com todos nós. Por isso, começámos a
trabalhar mais às claras.»9
Alguns curandeiros interpretaram o desinteresse da Frelimo pela apli­
cação da proibição relativa às práticas antifeitiço como uma ordem para
praticarem ainda mais. Limitedi Untonji disse-nos que tratava toda a
gente que o procurava, incluindo, até, feiticeiros feridos. Quando lhe
perguntámos porquê, disse-nos que tinha medo que ogoverno o castigasse,
se não desse tratamento a todos, de forma igual.
Muitos interpretaram, porém, o afrouxamento das restrições governa­
mentais aplicáveis aos curandeiros como um sinal de fraqueza da Frelimo
num reino invisível caótico.101Os habitantes de Mueda concluíram, de
um modo geral, que a feitiçaria presente na aldeia tinha uma natureza
mais complicada do que a feitiçaria existente nas antigas povoações. Mui­
tos aplicavam ao regime de feitiçaria correspondente às aldeias pós-inde-
pendência a expressão utilizada por Limitedi Untonji: uwavi washilikali,
«feitiçaria do governo», entendida, pela maioria, como aquela que o go­
verno permitia que acontecesse nas suas aldeias - uma feitiçaria que se
produzia num reino definido pelo poder governamental ou, mais exac-
tamente, talvez, pela ausência deste.11

8 Honwana refere resultados semelhantes em relação ao Sul de Moçambique. D e facto,


apresenta provas de que importantes dirigentes da Frelimo acatavam as proibições do
partido «durante o dia», mas visitavam os curandeiros e participavam em rituais «tradi­
cionais» «à noite» (2002,172).
9 Segundo Maia Green (1994,30), o governo tanzaniano tentou proibir os especialistas
antibruxaria de trabalharem nas aldeias ujamaa, na década de 1970, mas tomou-se menos
rígido para evitar que essas aldeias se dissolvessem em consequência do medo da bruxaria
e da multiplicação das acusações.
10Cf. Mueggler(2001,131), que descreve com o os aldeões do Sudoeste da China atri­
buíram a turbulência pós-revolucionária à abolição das chefias ancestralmente sanciona­
das.
11 Maia Green (1994,29) fez notar que o governo tanzaniano permitia as actividades
antibruxaria e que os aldeões chamassem ao agente dessas actividades mganga wa seriM i
(curandeiro-mago do governo), devido às suposições de que trabalhava para, ou mesmo
como, o governo.

266
A com unalização dafeitiçaria

O problema, explicou-nos Kalamatatu, era que os feiticeiros de dife­


rentes matrilinhagens dançavam juntos, de noite, no centro da aldeia,
permutavam técnicas e até compravam feitiços {uwavi wa kushuma) uns
aos outros.12 Makudo Shalaga Ntumi Ngole asseverou-nos: «As aldeias
são verdadeiras escolas de uwavi.»
A ocorrência de mortes na aldeia proporcionava oportunidades cons­
tantes para se falar de feitiços. Quando perguntei a Lucas Mwikumba se
havia feitiçaria na sua aldeia, Matambalale, ele respondeu: «Ahhh, sim!
No passado, quando vivíamos nas povoações, passavam-se anos sem
morrer ninguém. Hoje em dia, as mortes são umas atrás das outras.»
Antes da incjependência, a morte só visitava as povoações duas ou três
vezes por ano, no máximo; na aldeia, a morte era omnipresente - che­
gando a registar-se, nalgumas aldeias, duas ou três mortes por semana.
A maioria das pessoas com quem falámos não entendia este facto em
função de uma população muito maior, mas sim como uma prova da
prática descontrolada de uwaviwakujoa, «feitiçaria de perigo», na aldeia.13
Agostinho Simão Shishulu garantiu-nos: «No passado, o chefe de po­
voação controlava a feitiçaria na sua própria povoação. Agora, o presi­
dente da aldeia tem de reunir os vanang’oh que representam todas as ma­
trilinhagens da aldeia para o fazer. Não tem o mesmo poder.» O humu
Mandia concordava: «A uwavi é um problema maior nas aldeias porque
ninguém está verdadeiramente interessado em controlá-la. Cada qual só
se interessa por si próprio e pela sua própria casa. As antigas autoridades
não têm poder. O governo pergunta-lhes quem está a destruir a aldeia e
condena esses actos, mas isso só tem um efeito temporário.» Libata Nan-
denga concluiu: «O presidente da aldeia tem de agir como o nangolo
tnwenekaja de muitas makola, mas não pode proibir as pessoas de mata­
rem membros da lihola a que pertencem quando não é da mesma likola

12Ashforth (2000,188) afirma que a população do Soweto considerava que a bruxaria


era mais virulenta nesse bairro devido aos muitos e diferentes tipos de ervas que os bruxos
migrantes traziam consigo. Sanders cita uma mulher ilhanzu da Tanzânia, que afirma:
«actualmente, qualquer pessoa pode comprar substâncias mágicas», ao contrário do que
acontecia no passado (2001,175). Ver também Lattas (1993,59).
13 Behrend (1999,28) informa que o aumento da taxa de mortalidade em Adioli, no
Uganda, foi igualmente interpretado com o um sinal de crescimento dos níveis de bru-.
xaria. Mesaki (1994, 55) refere que, na perspectiva dos habitantes das aldeias, a concen­
tração da população, na Tanzânia, tinha agravado a bruxaria. James Brain (1982,383) as­
socia a crescente incidência de acusações de bruxaria nas aldeias ujamaa da Tanzânia à
elevada taxa de mortalidade infantil. Ver também M. Green (1997,337-338). Sobre o au­
mento dos níveis de bruxaria nos «projectos de melhoramento» sul-africanos, ver Stadler
(1996,100).

267
K u piliku la

que elas.14 E com a uwavi wa shilikcdi [feitiçaria do governo] as pessoas


de uma likola matam as pessoas de outra. O presidente da aldeia também
não o pode impedir. É por isso que esses presidentes não duram muito.
Todos os vavi da aldeia se unem contra eles, mesmo que eles próprios
sejam vavil»
Conquanto a Frelimo tivesse sugerido, na linguagem da modernização
socialista, que os moçambicanos constituíam uma única família e que o
partido/Estado servia essa família como um pai benevolente (ou, no caso
de Mueda, como um tio), garantindo que cada membro comia do prato
comum «segundo as suas necessidades», a família moçambicana ficou
sujeita a uma enorme tensão nas aldeias comunais de Moçambique, du­
rante a guerra civil. Os habitantes do planalto de Mueda interpretavam
a vida nestas aldeias diferentemente, na linguagem familiar da uwavi. Su­
geriam, assim, que elas não só expandiam a família como também in­
tensificavam as forças que ameaçavam a sua coesão. Se bem que a uwavi
sempre tivesse grassado nos espaços de intimidade entre parentes, agora
sugeriam que nenhuma figura paternal (ou de tio) estava à altura da tarefa
de mediar as tensões entre famílias tão grandes e diversificadas como
aquelas a que as aldeias comunais tinham dado origem.
Kalamatatu perguntou-nos, retoricamente: «O presidente da aldeia
põe-se no centro da aldeia, à noite, e adverte os feiticeiros contra os seus
actos?... Não, porque não pode.» A aldeia, no entender de Kalamatatu,
era um ambiente social demasiado complexo, e a feitiçaria no seio dela
demasiado poderosa, para um único homem a conseguir controlar. Ka­
lamatatu falava sobre este assunto com uma certeza alicerçada na sua
amarga experiência. O seu próprio filho, Damião, fora presidente da al­
deia de Matambalale durante um curto mandato, que terminara com o
seu suicídio.

MGeschiere (1997) argumenta que, anteriormente, a feitiçaria era limitada pelas fron­
teiras da consanguinidade, mas isso deixou de acontecer em muitos lugares de África.

268
Capítulo 19

Autodefesa e enriquecimento pessoal


*
Tissa e eu estávamos sentados num igoli, no final de uma tarde de tra­
balho - ele a afiar um pedaço de madeira e eu a reorganizar as coisas no
meu saco.
«Porque é que um feiticeiro havia de fazer um leão e mandá-lo atacar
a pocilga de alguém?», perguntei a Tissa, referindo uma situação que ou­
víramos alguém mencionar recentemente. «O que é que o feiticeiro
ganha com isso?»
«Às vezes, vendem a carne do porco roubado no mercado», respondeu
Tissa, com um ar pouco interessado na minha pergunta.
Reflecti sobre a sua resposta, por momentos, e perguntei como era
possível vender os despojos retalhados de um porco, como carne, no
mercado.
«A carcaça que as pessoas vêem é falsa.» Tissa ficou subitamente mais
interessado na conversa. Começou a bater com a faca no pau, acen­
tuando as suas observações. «Eu já vi isso acontecer. Em Nimu [onde
Tissa crescera], tivemos um caso desses.»
Observei Tissa enquanto se preparava para contar a história. Parecia estar
a pensar no caso como nunca fizera antes, à medida que o ia recordando.
«Um leão andava a roubar porcos das pocilgas das pessoas.» Fez uma
pausa, passando o dedo pelos sulcos que fizera no pau com as pancadi­
nhas da faca. «Finalmente, o leão foi abatido.»
«Quem o matou?», perguntei.
«Não me lembro», respondeu Tissa. «Mas uns dias depois, morreu um
rapaz na aldeia.»
«O que tinha ele a ver com o leão?», perguntei, algo perplexo.
Tissa fez um largo sorriso, como costumava fazer quando proferia o
pedacinho de informação crucial que dava interesse a uma história.
Apontou o pau para mim. «O rapaz era o feiticeiro que estava por detrás
do leão.» Riu-se. «Tinha andado a vender carne de porco no mercado!»

269
K u piliku la

Ficámos algum tempo sentados, enquanto eu matutava sobre a história


de Tissa. Por fim, quebrei o silêncio.
«Como é que a carcaça podia ser falsa?», perguntei.
Tissa recomeçou a afiar o bocado de madeira e retomou o seu tom de
conversa mais natural. «Os despojos das vítimas dos feiticeiros são sempre
falsos», disse ele. «Acontece o mesmo quando os feiticeiros matam pes­
soas. O cadáver que é enterrado não é real. Os feiticeiros podem pegar
numa bananeira, tomá-la parecida com uma pessoa que tenham morto
e substituir o corpo por aquilo. É isso que fica enterrado.»
Quando eu ainda estava a ruminar o assunto, Tissa complicou-o ainda
mais: «A não ser, é claro, que a pessoa nem sequer tenha sido morta.»
«O que queres dizer com isso?», perguntei.
«Ultimamente, é cada vez mais frequente os feiticeiros não comerem
as suas vítimas. Elas têm mais valor para eles como mandandosha [escravos
zombies].»
«Como assim?», perguntei.
«Bem, no passado, tudo o que um feiticeiro podia fazer com um lin-
dandosha [sing.] era pô-lo a trabalhar nos campos.1Agora, os feiticeiros
que têm empresas podem lá pôr os mandandosha - para trabalharem para
eles ou guardarem os seus bens.»
Fiquei sentado em silêncio.
O olhar de Tissa revelou exaspero com a minha ignorância: «De outro
modo como poderiam os ‘grandes chefes’ acumular tanto, actualmente?»

Embora em Mueda a violência da guerra civil moçambicana apenas


tenha sido, de uma maneira geral, vivida como algo de que se falava, na
década de 1980 os efeitos da guerra fizeram-se sentir crescentemente no
planalto. O conflito consumiu recursos nacionais preciosos e reduziu o
fluxo de mercadorias e pessoas necessário para a vida das «cidades nasci­
das da floresta» da Frelimo. Esta última depressa se revelou incapaz de
satisfazer as expectativas suscitadas pelo seu programa de modernização
socialista baseado nas aldeias.
O sistema de saúde da Frelimo - que fora adoptado como modelo pela
Organização Mundial de Saúde - entrou em colapso no país inteiro (Cliff
e Noormahomed 1988; Macldntosh e Wuyts 1988; Noormahomed etal.
1990; Noormahomed 1991). Devido à diminuição dos salários reais dos
técnicos de saúde assalariados (Noormahomed 1991, 46) os postos de

1 Lambek (1993,249-250) descreve este fenómeno em Mayotte.

270
A utodefesa e m riqueám ento pessoal

saúde do planalto, tal como os do resto do país, ficaram sem pessoal. A al­
ternância entre o excesso e a falta de medicamentos essenciais deu origem
a um mercado negro de medicamentos e levou a população a suspeitar da
existência de grande corrupção entre os técnicos de saúde e os fimcionários
governamentais em geral (Kappel 1994,488; Lubkemann 2001,95).2
Idênticas tendências se observaram na educação (Johnston 1990a;
1990b; Marshall 1993). À medida que o orçamento da educação dimi­
nuía, os professores receberam instruções para cobrarem propinas cada
vez mais altas e os alunos passaram a ter de pagar dinheiro pelos manuais
escolares. Depressa surgiram escândalos no sistema escolar de Mueda, à
semelhança do que se passava noutros sítios, por culpa dos alegados des­
vios de fundos perpetrados por professores e fimcionários escolares mal
pagos. As escolas, que tiveram um êxito notável no aumento das taxas
de alfabetização entre crianças e adultos, durante a guerra da indepen­
dência (Johnston 1984; 1989), tinham mergulhado no caos.
O sofisticado sistema de abastecimento de água construído no planalto
após a independência (U N IC EF1981,1993; Técnica Engenheiros Con­
sultores Lda. 1994), e que constituíra um gesto simbólico de gratidão na­
cional pelo papel que os habitantes da região desempenharam na luta
pela independência, também deixou de funcionar no final da década de
1980 (Cooperação Suíça 1992; West 1997b, 206-208). No planalto, cor­
reram boatos de que os engenheiros do sistema e os funcionários gover­
namentais estavam a vender no mercado negro as peças sobresselentes e
o gasóleo necessários para manter o sistema a funcionar. A maior parte
das vezes, porém, esses recursos essenciais não se encontravam, pura e
simplesmente, disponíveis.
Entre os serviços sociais que deixaram de funcionar no período da
guerra civil figuravam também as lojas do povo e as cooperativas de pro­
dução e consumo (Oficina de História 1984; Egerõ 1987; Littlejohn
1988). As graves carências privaram a maioria dos habitantes do planalto
de meios de produção agrícola essenciais, como enxadas e sementes, e
de bens de consumo básicos, como o açúcar, o sal, o óleo alimentar e o
vestuário. As cooperativas eram dominadas pelo nepotismo e pela cor­
rupção, pois os membros da hierarquia utilizavam-nas para controlar o
acesso a bens escassos, que muitas vezes vendiam no mercado negro
(Egerõ 1987; Littlejohn 1988).

2 Van der Geest (1988) sugere que o mercado negro de substâncias mágicas é tão
omnipresente na África contemporânea que constitui uma componente fundamental da
categoria da «medicina tradicional».

271
K u piliku la

Num momento em que a crise económica se aprofundava, a seca con­


duziu à fome. Em alguns anos, a população do planalto passou literal­
mente fome. Ao mesmo tempo, porém, os membros da hierarquia do
partido e do Estado «comiam bem». Na verdade, graças às actividades
no mercado negro, alguns deles «alimentavam-se» da miséria das pessoas
comuns.
Nesses mesmos anos, os habitantes do planalto também testemunha­
ram o oportunismo dos dirigentes nacionais da Frelimo originários da
região de Mueda. À medida que a Renamo expandia as suas operações
para norte, penetrando nos antigos bastiões da rebelião anticolonial da
Frelimo, o Estado receou que o crescente descontentamento dos antigos
combatentes da guerra de independência da Frelimo pudesse proporcio­
nar recrutas experientes à Renamo. Ainda no ano de 1984, a direcção da
Frelimo começou a dar atenção à melhoria das relações com os antigos
combatentes. Nesse ano, foi criada uma secretaria de Estado específica
com o propósito declarado de administrar as pensões de reforma de todos
os antigos combatentes registados. A prioridade no processo de registo
seguia, porém, a hierarquia militar. Além disso, os antigos combatentes
de patente mais alta não só tinham mais probabilidades de verem os seus
direitos reconhecidos, como também recebiam montantes substancial­
mente mais elevados. O pagamento dos cheques teve início em 1986,
desencadeando conflitos em tomo dos valores das pensões, bem como
da ordem hierárquica que determinava quem seria registado primeiro e
quem teria de esperar.
Enquanto a grande maioria dos antigos combatentes aguardava as pen­
sões prometidas, antigos comandantes da guerrilha importantes - que
agora ocupavam posições-chave no governo ou nas forças armadas mo­
çambicanas - eram vistos a utilizar aviões de transporte militares para
levar materiais de construção para o planalto, a fim de edificarem casas
em alvenaria e cobertas de telha, ao estilo europeu, na cidade de Mueda
ou nas aldeias de origem, entre as casas de barro e bambu dos seus vizi­
nhos. Estes passaram a chamar aos Antonovs de fabrico soviético que os
sobrevoavam «Linhas Aéreas de Imbuho», numa referência sarcástica a
essa «clique» cujos membros tinham maioritariamente pertencido à mis­
são católica de Imbuho, na sua juventude.
Com o socialismo da Frelimo a desfàzer-se, o governo - chefiado, após
a morte do presidente Samora Machel num acidente de avião em 1986,
por Joaquim Chissano - adoptou medidas de austeridade oficialmente
denominadas «Programa de Reabilitação Económica», ou PRE, e em
1987 cedeu ao ajustamento estrutural patrocinado pelo FMI e à liberali-

272
A utodefesa e enriquecimento pessoal

zação das suas instituições políticas e económicas induzida pelos doado­


res (Hanlon 1991). Enquanto as facções existentes no partido governa­
mental debatiam se os activos do Estado deviam ser ou não privatizados,
os doadores ocidentais e as organizações não governamentais (ONG) or­
ganizavam worhhops em vários contextos institucionais, com o intuito
de discutir os objectivos e métodos da alienação desses activos, que iam
desde explorações agrícolas a fábricas e desde frotas a armazéns. Muito
antes de o governo central tomar decisões, os responsáveis a nível pro­
vincial, distrital e empresarial entraram em acção, formando «comissões»
e realizando «leilões» através dos quais muitos destes activos foram es­
pontaneamente alienados, muitas vezes em benefício dos próprios mem­
bros das comissões e leiloeiros, ou dos seus confrades políticos (Myers e
West 1993; Myers 1994; West e Myers 1996).3
No planalto, esta «privatização» beneficiou os mais poderosos, tal
como acontecia no resto do país.4 Os dirigentes militares nacionais oriun­
dos da região do planalto apoderaram-se de armazéns militares, garagens
e oficinas mecânicas. Os responsáveis agrícolas reivindicaram grandes ex­
tensões de terras do Projecto do Regadio de Nguri, na zona de planície
próxima da orla sudeste do planalto. Vários desses responsáveis envolve­
ram-se em transacções em toda a região e, nalguns casos, noutras zonas
do país. Tendo a sua segurança e subsistência deixado de ser garantida
pelas instituições estatais onde tinham apostado pessoalmente, e já não
se sentindo constrangidos pelo ambiente ideológico do socialismo de Es­
tado, os responsáveis estatais procuraram enriquecer-se a si próprios de
todas as formas possíveis (West e Myers 1996,47-51).5 Os «grandes che­
fes» encontraram dinheiro no PRE, ouvíamos dizer frequentemente.6

3 O procurador-geral moçambicano referiu-se sarcasticamente a estes leilões cha-


mando-lhes «privatizações silenciosas» (in Harrison 1999, 543).
4 Por ter dado origem a uma diferenciação social dramática, os moçambicanos refe-
riam-se cinicamente ao Programa de Reabilitação Económica (PRE) chamando-lhe Pro­
grama de Reabilitação Individual (PRI) (Marshall 1990,29).
5 Neste período, havia altos dirigentes moçambicanos implicados no tráfico de droga,
no branqueamento de capitais, em fraudes bancárias e noutras formas de crime organizado
(Ellis 1999b). Ainda que Chabal e Daloz (1999, 79, 99-101) aleguem que tais actividades
podem gerar recursos para as elites cultivarem relações de clientelismo, os habitantes co­
muns do planalto de Mueda pouco beneficiaram da prosperidade das elites locais.
6 Hibou (1999) argumenta, convincentemente, que as elites de outras zonas do con­
tinente africano conseguiram reverter o ajustamento estrutural em seu próprio beneficio
individual, privatizando os poderes do Estado a favor de si próprios, incluindo a cobrança
de impostos, a mobilização da mão-de-obra, a regulação do comércio e os serviços de se­
gurança limitados a clientes. Ver também Bayart (1993, 60-86).

273
K u piliku la

No início de 1988, fizeram-se novas tentativas para assegurar a boa


vontade e a lealdade dos antigos combatentes da Frelimo em relação ao
partido. No aniversário do início da guerra da independência, celebrado
a 7 de Novembro, foi criada a Associação dos Combatentes da Luta de
Libertação Nacional, ou ACLLN. O objectivo da associação era valorizar
a contribuição dos antigos combatentes para a independência de Mo­
çambique e facilitar a sua contribuição futura para os objectivos da «re­
construção nacional» (Elias e Jorge 1988; Henrique 1988). O programa
da ACLLN incumbia-a de promover o desenvolvimento económico
entre os antigos combatentes, prestando-lhes assistência pedagógica, téc­
nica, material e organizativa (ver Associação dos Combatentes da Luta
de Libertação Nacional 1988). O presidente da República, Joaquim Chis-
sano, foi nomeado presidente do comité nacional da ACLLN e a asso­
ciação foi administrativamente inserida no partido Frelimo (Elias e Jorge
1988).
A nível provincial e distrital, a ACLLN criou projectos cooperativos
para gerar pequenos fundos para as suas actividades. Alguns projectos vi­
savam até produzir dividendos para os participantes a título individual.
Simultaneamente, o governo nacional começou a utilizar a ACLLN para
difundir informações entre os antigos combatentes sobre as oportunida­
des que lhes eram oferecidas pelos projectos de desenvolvimento patro­
cinados pelas O NG e pelos programas de crédito financiados pelos doa­
dores. De facto, o governo começou a apresentar tais projectos e
programas às secções provinciais e distritais da ACLLN como oportuni­
dades que «arranjara» especificamente para os antigos combatentes.7
Na província de Cabo Delgado, a primeira grande oportunidade apre­
sentada foi um programa de crédito denominado Caixa de Crédito Agrí­
cola para Desenvolvimento Rural, ou CCADR), um programa apoiado
pelos doadores que, na verdade, entrara em funcionamento um ano antes
da criação da ACLLN. Os antigos combatentes foram informados de
que, com os empréstimos bancários geridos pelo Banco de Desenvolvi­
mento Popular, ou BDP, em Pemba, podiam comprar uma camioneta,
um tractor ou um moinho de cereais para utilizarem em pequenas em­
presas. Os pedidos deviam ser apresentados à delegação provincial da
Secretaria de Estado dos Antigos Combatentes, sendo depois examinados
pela delegação provincial da ACLLN, que os enviava para o banco. Os

7 Em muitos casos, os antigos combatentes tinham sido, de facto, identificados com o


grupos-alvo desses projectos e programas, mas raramente estas oportunidades lhes foram
exclusivamente destinadas.

274
A utodefesa e enriquecimento pessoal

veículos e moinhos começaram a ser importados em 1988, por revende­


dores privados locais com a ajuda de um programa patrocinado pela
Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional (USAID) e des­
tinado a apoiar o «sector privado emergente» através da conversão de di­
visas a uma «taxa oficial» quase cinco vezes superior ao valor real do me-
tical. Isto permitiu que esses bens fossem vendidos a preços muito
inferiores àqueles que o «mercado aberto» teria permitido.8 Por fim, foi
concedido um pequeno número de empréstimos. Indivíduos influentes
do aparelho partidário e estatal pressionaram o BDP para que este acei­
tasse, em primeiro lugar, os seus próprios pedidos e os dos seus correli­
gionários.9 Estas mesmas pessoas também eram das poucas que podiam
obter os 500 000 meticais necessários para pagar a entrada de uma ca­
mioneta. 101Deste modo, quando os veículos e os moinhos começaram a
aparecer no planalto, em 1989-1990,11estavam, em grande parte, na posse
dos que já eram ricos e/ou poderosos, que os usaram para aumentar a
sua riqueza e influência. As camionetas e até alguns tractores foram uti­
lizados para transportar passageiros de e para o planalto, ou entre aldeias
do planalto, mediante pagamento. Outros foram integrados em empreen­
dimentos agrícolas. Os chefes mais influentes do partido e do Estado
abriram leiras no leito.dos rios das terras baixas em redor do planalto. In­
divíduos que suscitavam medo e respeito suficientes entre os responsáveis
do governo local e os habitantes locais «arranjaram» terras para si próprios
nessa zona, apesar da resistência normalmente oferecida pelos proprie­
tários locais, que não queriam desfazer-se das suas terras.12 Dois respon­

8 Tim Bom, USAID, comunicação pessoal, 19 de Setembro de 1994.


9 O fundo pretendia ser uma fonte de crédito rotativa, mas esgotou-se em finais de
1988 devido ao não pagamento por parte do primeiro grupo de pessoas que contraíram
empréstimos. Muitas delas adoptaram o ponto de vista de que o dinheiro emprestado
era uma «compensação» pelos sacrifícios que tinham feito pelo país durante a guerra. Al­
gumas também se aperceberam de que a elevada taxa de inflação, associada à baixa taxa
de juro dos seus empréstimos, criavam condições para que o valor em divisas da sua dí­
vida fosse, na verdade, diminuindo ao longo do tempo, mesmo que não fizessem paga­
mentos para a saldar.
10 Muitos responsáveis estatais recorreram, de facto, a comerciantes indianos para ob­
terem o dinheiro de que precisavam para pagar a entrada. Em troca, estes comerciantes
obtinham favores políticos de dirigentes que, até pouco antes, os haviam tratado com
grande hostilidade.
11 Na província de Cabo Delgado, foram importados cerca de quarenta e cinco ca­
miões e trinta tractores em 1989 e mais vinte seis camiões em 1990.
12 Entre a aprovação dos regulamentos da lei da terra em 1987 (que permitiam a emis­
são de títulos de propriedade para os seus ocupantes) e a minha investigação para a dis­
sertação em 1994, o Serviço Provincial de Topografia e Cadastro recebeu trinta e cinco
pedidos de títulos de propriedade fundiária na região do planalto. A grande maioria destes

275
K u piliku la

sáveis militares a nível nacional e a sogra do presidente Chissano acaba­


ram por pôr, cada um deles, várias dezenas de cabeças de gado nas suas
novas propriedades - uma prática sem precedentes, numa época em que
a posse de um único porco era considerada um sinal de riqueza. Afinal,
os programas da Frelimo para ajudar os antigos combatentes produziram
o efeito oposto ao pretendido, gerando entre eles mais descontentamento
do que lealdade.
Com efeito, no decurso das duas décadas que se seguiram à indepen­
dência de Moçambique, a população das aldeias comunais do norte de
Cabo Delgado foi ficando progressivamente dominada pela frustração e
pelo ressentimento (Oficina de História 1986).13As pessoas que outrora
esperavam gozar os frutos da sua vitória contra os portugueses, queixa-
vam-se agora amargamente de que a Frelimo violara as promessas que
lhes fizera. Algumas recriminações baseavam-se em expectativas irrealis­
tas, como as esperanças de que todas as pessoas teriam automóveis pouco
depois de conquistarem a independência, de que seria construída uma
universidade no planalto de Mueda, ou de que seria edificada uma nova
capital nacional em Negomano (a região desabitada e inculta imediata­
mente a oeste do planalto). Todavia, quando a maioria das pessoas re-
flectia sobre a forma como o poder operava entre eles, constatava que os
dirigentes da Frelimo - homens que, na sua juventude, tinham desafiado
os seus anciãos ao encherem e comerem dos seus próprios pratos - con­
trolavam agora o prato da nação. Não obstante a sua retórica revolucio­
nária - o seu sonho declarado de uma «sociedade sem classes» - estes ho­
mens não tinham garantido que «cada um comia segundo as suas
necessidades». Pelo contrário, os lamentos sarcásticos da população de
Mueda transmitiam uma profunda ironia histórica: «Os grandes chefes
comem tudo!»14
A conjuntura económica da década de 1980 proporcionou aos habi­
tantes do planalto muitas oportunidades de revisitarem questões que lhes
eram familiares, bem como de interpretarem e interagirem com os fenó­
menos observados através da linguagem da uwavi. Tal como ha época

pedidos foi apresentada por funcionários estatais e referia-se a superfícies superiores a


100 hectares nas terras baixas. Alguns funcionários seleccionados também requereram, e
obtiveram, grandes concessões para cortar e vender madeira na região do planalto.
13 Ver também em Borges Coelho (1998) uma descrição de tendências semelhantes
presentes na província de Tete.
14 Shaw (1996, 37-39; 2001, 65; 2002,258) descreve as recriminações populares, pro­
feridas na mesma linguagem, na Serra Leoa pós-independência.

276
A utodefesa e enriquecimento pessoal

colonial, dizia-se que os feitiços circulavam, descontroladamente, em


redor dos novos objectos de riqueza que surgiam na região do planalto.
O ancião Kabalca Nanume Kapembe, da aldeia de Nshonwge, disse­
mos um dia: «Agora, há mais inveja porque há desenvolvimento.15
A uwavi é praticada por aqueles que têm inveja dos outros - outros que
tenham algo de seu. Geralmente, a uwavi é má; mata. Mas agora a uwavi
sofreu ‘modernizações5. As pessoas utilizam a uwavi para encontrar for­
mas de subsistência.»
Limitedi Untonji lembrou-nos, porém, que a estratégia de sobrevivên­
cia de um homem era, muitas vezes, obstáculo à sobrevivência de outro
homem: «A uwavi wa kulishungila [feitiçaria de autodefesa] é complicada»,
disse-nos ele. «Às vezes, é egocêntrica. Às vezes, é usada para defender
apenas o indivíduo ou a matrilinhagem. Isso causa problemas aos ou­
tros.» Na verdade, à medida que o socialismo da Frelimo se ia desfa­
zendo, os habitantes do planalto observaram a ténue linha que separava
a feitiçaria a que chamavam de autodefesa daquela a que chamavam
uwaviwakushunga, «feitiçaria de promoção pessoal» ou «feitiçaria de en­
riquecimento pessoal».
As formas de uwavi wakushunga observadas na era pós-socialista eram
simultaneamente fantásticas e familiares, como Tissa me dizia. De facto,
o efeito multiplicador do trabalho dos mandandosha (escravos zombies)
explicava, para muitos habitantes do planalto, a diferenciação económica
sem precedentes na era pós-socialista. Partiam, em regra, do princípio de
que, para terem sucesso nos negócios, os ricos tinham transformado em
mandandosha os seus familiares, vizinhos e/ou sócios, que aparentemente
haviam falecido, mas na verdade trabalhavam como escravos para os seus
senhores-feiticeiros.16
Do mesmo modo, as formas contemporâneas de feitiçaria de autode­
fesa eram vistas como simultaneamente fantásticas e familiares. Tissa ex­
plicou-me como alguns beneficiários dos empréstimos da CCADRpara
comprar camionetas e tractores eram mais bem sucedidos do que outros

15 Ver também Lattas (1993,53); Sanders (2001,173).


16Pfeiffer (2002) argumenta que a diferenciação económica, resultante do ajustamento
estrutural moçambicano, também provocou um aumento das suspeitas de bruxaria, fei­
tiçaria e espíritos vingativos no Moçambique central. Enquanto as pessoas entre as quais
Pfeiffer trabalhou recorriam, normalmente, aos profetas das Igrejas Africanas Indepen­
dentes e não aos curandeiros (porque os primeiros não cobravam nada), no planalto de
Mueda essas igrejas ainda estavam a começar a surgir quando realizámos a nossa pes­
quisa.

277
K u piliku la

na prática desta feitiçaria de autodefesa. Falou primeiro daqueles que não


conseguiam defender os seus veículos:

Se obtiveste um empréstimo para um tractor ou uma camioneta, a tua fa­


mília ficou a pensar que tinhas riqueza para partilhar. Sempre que vias um
primo, ele esperava que lhe pagasses uma cerveja. A tua tia queria que desses
a ela ou aos filhos boleias de uma das aldeias para a cidade de Mueda, para
ir vender produtos n o mercado. O pai da tua m ulher tinha um neto que pre­
cisava de ser levado para o hospital. O teu irmão queria visitar uma namorada.
Assim, em vez de poupares o dinheiro que te tinha sido emprestado para
manteres o veículo, gastavas tudo em cerveja ou em gasolina. N ão usavas o
veículo para fazeres o que tinhas planeado. N ão ganhavas dinheiro nenhum
e então o teu veículo necessitava de uma peça, ou o teu primeiro pagamento
ao banco estava a vencer e tu não tinhas dinheiro. Por isso, pedias emprestado
a um amigo ou parente, ou talvez m esm o ao banco. Mas cada vez te afunda­
vas mais. O teu veículo tinha então uma avaria a sério. M esm o grave. Então
tinhas de perguntar a ti mesmo: «Quem m e fez isto? Q uem está a usar uw avi
contra mim?» Ias a um nkulaula e ele dizia-te que um familiar invejoso tinha
m etido um braço ou uma caveira n o teu veículo. (O s feiticeiros fazem essas
coisas. O rasto de ossos que eles deixam prova o seu apetite por carne hu­
mana. São invejosos porque tens um plano para melhorar a tua vida). U m
curandeiro retirou a caveira, mas então um dos teus filhos adoece. Mais fei­
tiços. O curandeiro tentou, mas disse-te que tinhas de levar a criança ao m é­
dico. Por isso, tiraste uma peça do teu tractor e vendeste-a a alguém que pre­
cisava dela para teres dinheiro suficiente para pagar o tratamento n o hospital.
Agora estavas em apuros. N ão tinhas dinheiro, o banco andava atrás de ti, o
teu amigo precisava do dinheiro e o teu tractor estava parado. O que podias
tu fazer? Portanto, ou esperavas que o banco viesse buscar o tractor, o u ven­
dia-lo.

Tíssa falou depois de outros que eram mais competentes na prática da


feitiçaria de autodefesa - os «grandes chefes», como a população chamava
a estes responsáveis governamentais e militares, chefes do partido e em­
presários de sucesso:
É assim que os «grandes chefes» acabam por ficar com tudo. É assim que
com em tudo. Têm dinheiro para comprar o teu tractor. Contratam alguém
de Gaza [uma província d o Sul] para gerir o seu negócio aqui, por isso nem
as suas famílias os podem comer. Sabem proteger-se dos feitiços. Têm uma
maneira de «minarem» o seu veículo ou a sua casa. Q uando o feiticeiro vem ,
quando o feiticeiro se aproxima, o tractor desaparece, a casa desaparece. O
feiticeiro recua e essas coisas voltam a aparecer, mas ele não consegue apro­
ximar-se o suficiente para usar o seu feitiço nelas!

278
A utodefesa e enriquecimento pessoal

Outras pessoas com quem falei confirmaram as descrições que Tissa


fizera das novas formas de feitiçaria de autodefesa. João Chombo uma
vez explicou-me detalhadamente como se podiam «minar» contra a fei­
tiçaria objectos tais como automóveis, moinhos de grão, máquinas de
costura e bicicletas:

N o caso dessas coisas, não se pode enterrar uma lipande [mina antífeitiço]
lá dentro, com o se fàz num a casa. Assim, com um autom óvel, por exemplo,
é necessário tirar algumas peças e pô-las num saco junto com mitela e enterrá-
-las n o chão num sítio longe. Q uando alguém vier com a intenção de estragar
aquele carro, as m itela chamam a atenção desse feiticeiro para o sítio onde
essa peça está enterrada. Ficam confusos e não conseguem ver o automóvel.

Verónica Romão, no entanto, contou-nos que havia outras formas,


mais sinistras, de proteger os veículos contra a feitiçaria. Tal como os
feiticeiros que querem destruir essas coisas podem enfiar ossos nelas
para as bloquear ou avariar, os seus donos podem fazer o mesmo para
as proteger. Os donos podiam meter lá dentro mandandosha - normal­
mente crianças pequenas, disse ela. Estes escravos zombies protegiam
o veículo de feitiços que, de outro modo, o poderiam ter arruinado.
Era nesses casos que a fina divisória entre a uwavi wa kulishungila e a
uwavi wa kushunga - entre a autodefesa e a promoção pessoal - desa­
parecia.
Na sua maioria, as pessoas que conseguiram conquistar e defender as
novas formas de riqueza e de poder surgidas na região do planalto no
momento do ajustamento estrutural foram aquelas que, quando eram
jovens, no período colonial, tinham obtido novas formas de riqueza e
de poder. Enquanto no passado tinham desafiado e provocado os seus
anciãos, mais poderosos e mais ricos, bem como, afinal de contas, os
governantes coloniais, em nome da nação, agora apropriavam-se e au­
mentavam a sua riqueza e o seu poder em seu próprio nome, consoli­
dando e acentuando a diferenciação social e económica na região do
planalto.
Como vimos na parte n, os habitantes do planalto há muito que en­
caravam o poder e a riqueza, através do esquema da uwavi, com uma
acentuada ambivalência. Embora a maioria estivesse persuadida de que
os chefes da Frelimo que se movimentavam entre eles, nas zonas liber­
tadas do tempo da guerra, praticavam, em regra, uma forma benéfica
de feitiçaria, nos anos a seguir à independência, muitos foram ficando
cada vez mais cépticos perante os argumentos de que estas figuras po-

279
K u piliku la

derosas policiavam o reino invisível em defesa do bem com um .17 Em


conversa connosco, muitos deixavam escapar, de vez em quando, as
suas suspeitas de que os «grandes chefes» actuavam agora no reino in­
visível apenas em defesa dos seus próprios interesses.18
Discutia-se a mestria desses «grandes chefes» como homens de negó­
cios, feiticeiros de autodefesa e feiticeiros de enriquecimento pessoal.19
Quando estive no planalto em 1999, muitos apontavam para as «carca­
ças» (termo que designa, na linguagem vulgar moçambicana, veículos
abandonados, parcialmente desmontados) das camionetas e dos tractores
pagos pela CCADR que pertenciam a essas elites como prova de que
também elas podiam ser vítimas de feiticeiros invejosos. Outros argu­
mentavam que esses homens eram feiticeiros competentes mas péssimos
empresários. «Eles sabem proteger-se», diziam-nos muitas vezes. «São
blindados», asseguravam outros, sugerindo que estas elites estavam «car­
regadas» de mitela antifeitiçaria que as protegiam de qualquer ataque ima­
ginável.20
Quando perguntava se esses homens tinham mandandosha, muitas pes­
soas limitavam-se a responder rolando os olhos afirmativamente.21 Em
qualquer caso, à medida que a era neoliberal despontava em Moçambi­
que, era raro alguém sugerir que as figuras de autoridade controlavam e
reprimiam os actos agressivos e acumulativos dos feiticeiros de perigo.
À medida que elites cada vez mais poderosas, concertadas com novas
forças provenientes do estrangeiro, refaziam o mundo onde os habitan­
tes do planalto viviam, estes serviam-se da linguagem familiar da uwavi
para interpretar e interagir com os processos transformadores que pre­
senciavam e sentiam. Através dos seus pareceres e declarações formula­
dos no género discursivo da uwavi, lutavam, muitas vezes em vão, para

17 Chabal e Daloz advertem que as elites «que não redistribuem ou que, na opinião
popular, pouco redistribuem, correm o risco de enfrentar hostilidade e suspeição» (1999,
107). N o planalto de Mueda, estas suspeitas encontraram expressão no género discursivo
da tm avi.
18 Para uma análise semelhante, ver Geshiere (1997,6).
19 Goheen (1996,161) descreve a ocorrência de discussões semelhantes entre os nso’
nos Camarões.
20 Geschiere (1997,9,43) menciona a utilização do mesmo termo - «blindados» - para
descrever os feiticeiros nos Camarões.
21 Ardener (1970, 147-148) refere a suspeita alimentada pelos bakweris do Oeste dos
Camarões, no fim do período colonial, de que aqueles que eram relativamente mais prós­
peros tinham construído as suas casas de telhado de zinco com o trabalho de escravos
zombies. Simmons (1980), porém, mostra os aldeões comuns, entre os badyarankes do
Senegal, igualmente relutantes em acusar pessoas mais poderosas do que eles.

280
A utodefesa e enriquecimento pessoal

m aterializar ou tro m u n d o sa íd o d a sua própria im a g in a çã o , c o m o v ere­


m o s n a parte III. S e m ais n ã o fo sse, c o m o ta m b ém v er em o s n essa parte,
as suas su speitas e recrim in ações co n stitu ía m u m a crítica p en etra n te -
u m «desfazen> (kupilikula) d iscu rsivo - da reform a n eo lib era l n a era p ó s-
-socialista.

281
Parte III

A parte III do presente volume examina a forma como os habitantes


do planalto de Mueda têm interpretado e participado na transição de
Moçambique, após a guerra civil, para uma economia de mercado e um
regime democrático multipartidário, através da linguagem da uwavi. En­
quanto no último século o povo do planalto manteve um prolongado
diálogo histórico com vários Outros que afirmavam ser portadores de
verdades transcendentes que anulavam as «tradições» locais, na era pós-
-socialista deparou-se com asserções discursivas de tipo algo diferente.
Em nome da democracia e do pluralismo cultural, os proponentes e
agentes da reforma neoliberal defenderam a «validação» e o «reconheci­
mento» de várias «tradições» moçambicanas. Muitos doadores ocidentais,
organizações não governamentais e responsáveis reformistas moçambi­
canos que ganharam ascendência nos assuntos de Moçambique no pe­
ríodo pós-guenra civil sugeriram, por exemplo, que as «autoridades tradi­
cionais» são fundamentais numa «sociedade civil» moçambicana
emergente. Similarmente, os «curandeiros tradicionais» foram descritos
como guardiães de formas de «conhecimento indígena», que valia a pena
preservar no novo Moçambique democrático.
No entanto, mesmo habitando os «espaços» que lhes foram concedi­
dos na época pós-socialista, as autoridades tradicionais e os curandeiros
do planalto de Mueda, bem como doutras zonas do país, revelaram ser
agentes históricos «complicados». Sempre em busca de novas formas de
conhecimento que lhes permitam vencer os seus adversários, os curan­
deiros resistiram à regulamentação estatal e à normalização científica das
suas práticas. Ao fazê-lo, esbateram as fronteiras com as quais os investi­
gadores médicos e os responsáveis da saúde tentaram separar uma tradi­
ção de outra, e toda a «tradição» da «ciência biomédica», transformando-
-se, assim, aos olhos de muitos, em charlatães e ameaças para a saúde

283
K u piliku la

pública. Concomitantemente, os vanang’olo de Mueda - à semelhança


das «autoridades tradicionais» suas homólogas de outras regiões do país
- exerceram, ocasionalmente, a sua autoridade nos espaços recém-aber-
tos, decretando sanções económicas, castigos corporais e expulsões da
comunidade aos acusados de perturbarem a harmonia e a ordem social
nas suas aldeias. Na sequência destes acontecimentos, alguns dirigentes
da Frelimo e funcionários estatais manifestaram a convicção de que as
instituições tradicionais continuam a ser inadequadas para participar no
projecto de governação moderna e, mais especificamente, nos objectivos
neoliberais de garantir os direitos individuais de pessoas e bens. Onde as
autoridades tradicionais e os curandeiros «não conseguiram» correspon­
der às expectativas dos reformadores neoliberais, o «reconhecimento»
oficial da «tradição» moçambicana permaneceu desigual e incompleto,
produzindo e aprofundando as ambiguidades políticas e as inseguranças
sociais.
Para complicar ainda mais o panorama, os espaços políticos e econó­
micos abertos em Mueda pela reforma neoliberal não foram apenas ocu­
pados por anciãos e curandeiros. Interesses privados (incluindo investi­
dores estrangeiros e nacionais e funcionários qua empresários
moçambicanos) preencheram o vazio criado pelo recuo do Estado. En­
quanto o Estado socialista se comprometia nominalmente a fornecer re­
cursos e serviços sociais aos seus cidadãos, as empresas privadas têm
vindo a extrair os recursos locais, sem prestar quaisquer contas a nível
local. Ao mesmo tempo que o valor da cidadania moçambicana dimi­
nuía, à guerra civil recentemente finda seguiram-se, nas aldeias de Mueda,
microconflitos desencadeados por uma intensa diferenciação económica.
Os habitantes do planalto têm, por isso, vivido o «desenvolvimènto»
neoliberal com profunda ambivalência, ansiando pelos objectos «moder­
nos» que apareceram no seu meio e sentindo, simultaneamente, que eles
continuam a estar fora do seu alcance.
O povo do planalto tem exprimido a sua inveja e frustração, no pe­
ríodo pós-socialista, no género discursivo da wwavi. Até certo ponto, as
suas relações discursivas com um mundo em rápida mudança contribuí­
ram para controlar a diferenciação económica, fomentando os temores
de forças de nivelamento sobrenaturais. Porém, a dinâmica contrária ao
desenvolvimento da feitiçaria lançou uma sombra de mau agoiro, não
só sobre as pessoas de posses mas também sobre os pobres. Neste con­
texto, os habitantes locais exigiram por vezes às autoridades («tradicio­
nais» e «modernas») que não se limitem a comer bem e alimentem também
aqueles que governam. Às vezes, instaram essas autoridades a governarem

284
Parte III

não só o dia, mas também a noite. O mandato popular para a prática da


feitiçaria de construção foi assumido, numas localidades, pelos conselhos
de anciãos de aldeia (com a cumplicidade do Estado local), noutras pelos
próprios funcionários estatais, e noutras ainda foi liminarmente rejeitado
- tudo isto com consequências variáveis e complexas.
Interpretando e relacionando-se com estes acontecimentos e processos
na linguagem da uwavi, as pessoas de Mueda nem sempre conseguiram
transformar o seu mundo em proveito próprio. Contudo, quando os re­
formadores lhes sugeriram, numa linguagem bastante diferente, que, ao
aderirem ao projecto de reforma neoliberal, poderiam criar os alicerces
de uma maior liberdade e prosperidade para elas próprias, mantiveram
uma atitude céptica face a essas afirmações. Através do discurso da feiti­
çaria, conservaram o seu entendimento de que o poder, por natureza,
funciona de forma caprichosa, mesmo invisível - umas vezes de forma
construtiva e outras de forma destrutiva. Alimentaram a sua ambivalência
face a um mundo moderno em cujas margens percebem viver, mantendo
o seu sentimento de que este mundo é mais produto das visões dos ou­
tros do que das suas. Na linguagem da uwavi, têm perguntado a si pró­
prias porque é que não conseguem «fazer qualquer coisa» cpm as suas
ideias - por que razão o conhecimento decisivo parece estar sempre nas
mãos de outros. Ao compararem a uwavi com as «ciências» da moderni­
zação socialista e do desenvolvimento neoliberal - ao perguntarem se
estas formas de conhecimento são fundamentalmente idênticas ou dife­
rentes, bem como se uma é mais poderosa do que outra - os habitantes
do planalto reflectiram sobre se são eles, ou se são aqueles que iriam
transformar o seu mundo, os verdadeiros responsáveis pela sua persistente
pobreza. Vigiando o reino visível em busca de indícios do funciona­
mento do poder no invisível, mantiveram os diversos poderes que mo­
delam o seu mundo sob uma vigilância constante, invertendo ocasional­
mente os efeitos destes poderes, fitando-os com o seu olhar transcendente
- ainda que hesitante.

285
Capítulo 20

O «ressurgimento da tradição»
Quando Márcos e eu entrámos na aldeia de Nandimba, numa fria
manhã de Agosto de 1999, as palavras dele ainda estavam frescas na
minha memória: «Sim, mano, esse é um bom tema para a nossa investi­
gação. Estas coisas devem ser estudadas cientificamente!»
Fiquei surpreendido, não com a aquiescência de Marcos - pois ele co­
nhecia-me suficientemente bem para confiar que eu não levaria a minha
agenda de investigação mais longe do que as condições o permitissem -
mas sim com o seu entusiasmo. Em anos anteriores, eu sentira a neces­
sidade de evitar o tema da feitiçaria quando trabalhava com Marcos, um
activo quadro da Frelimo. Em vez disso, explorara prudentemente os
meus interesses pela feitiçaria sozinho ou na companhia de Tissa, um
homem mais jovem e algo menos constrangido pelos princípios da Fre­
limo. Em 1999, havia já vários anos que as pessoas falavam em Maputo
sobre o «ressurgimento da tradição»1em Moçambique, e eu estava deci­
dido a dar mais realce ao estudo da feitiçaria na minha investigação. No
entanto, apesar de já se terem passado cinco anos de democracia multi-
partidária, eu sabia que o planalto de Mueda continuava a ser «o berço
da revolução».
A excitada resposta de Marcos também indicava uma mudança no
ambiente reinante no planalto. Nas semanas seguintes, eu viria a reco­
nhecer as complexidades subtis dessa mudança. Algumas pessoas com
quem trabalhámos afirmavam que «os tempos estavam a mudar» mas,
por entre os tempos de mudança, muita coisa permanecia familiar.
Antes de chegarmos a Nandimba para trabalhar, Marcos e eu tínhamos
cumprido o protocolo, informando o presidente da aldeia da nossa in-

1 Surgiram expressões semelhantes noutros contextos neoliberais; ver, por exemplo,


Morris (2000); Kendall (2003).

287
K u piliku la

tenção de aí realizar investigação. Tínhamos-lhe dito, em concreto, que


estaríamos interessados em falar com curandeiros. Retribuindo o proto­
colo, o presidente da aldeia acedera a facilitar a nossa apresentação a vá­
rios potenciais entrevistados quando regressássemos para iniciar o traba­
lho, mas eu interrogara-me até que ponto ele se teria realmente adaptado
ao ressurgimento das tradições na sua aldeia e, consequentemente, até
que ponto estaria disposto a ajudar.
Quando regressámos mais tarde, nessa mesma semana, encontrámos
o presidente da aldeia em sua casa, aguardando-nos na companhia de
outros dois homens. Apresentou-nos o primeiro como sendo o vice-pre­
sidente da aldeia. O segundo era Maurício Mpwapwele Moto. Mpwap-
wele, segundo nos informou, era o chefe de segurança da aldeia. Inter­
pretei a presença do chefe de segurança como um sinal evidente de que
os responsáveis de aldeia do planalto de Mueda não estavam dispostos a
abandonar a posição histórica da Frelimo contra o «obscurantismo», in­
dependentemente do que pudesse estar a acontecer no resto do país.
A minha consternação aumentou quando os três responsáveis da aldeia
nos acompanharam, a Marcos e a mim, até à casa da nossa primeira en­
trevistada, a curandeira Carmelita Milonge. Apesar de o presidente e o
vice-presidente se terem despedido rapidamente, o chefe de segurança
permaneceu connosco.
Marcos esforçou-se, astutamente, por desviar a sua atenção da minha
entrevista a Carmelita. Quando terminei uma curta conversa com ela,
chamei Marcos à parte, esperando encontrar uma maneira de resolver o
problema causado pelo facto de o funcionário estar a controlar as nossas
actividades. Marcos começou por me perguntar como correra a minha
conversa. Respondi-lhe que, para minha surpresa, a curandeira não pa­
recera incomodada com a proximidade do funcionário. Perguntei-lhe de­
pois, sarcasticamente, se tinha entrevistado o chefe de segurança ou se
este o entrevistara a ele.
«A história deste tipo é muito interessante», respondeu Marcos, tran­
quilamente. «A sua experiência em matéria de segurança já vem de longe.
É um antigo combatente da Frelimo na guerra da independência».
«Talvez devêssemos entrevistá-lo um dia destes a respeito da guerra»,
retorqui. «Mas, neste momento, preocupa-me que a sua presença enerve
os curandeiros com quem trabalharmos.»
«Isso não constituirá problema», respondeu Marcos de pronto.
Admirou-me que Marcos não conseguisse avaliar como a presença de
um funcionário da Frelimo - um antigo guerrilheiro, um agente da se­
gurança - poderia dificultar que os curandeiros com quem planeávamos

288
0 «ressurgimento d a tradição>

conversar falassem abertamente do seu trabalho, que a Frelimo outrora


proibira.
«Porque é que não constituirá problema?», perguntei, perplexo e algo
aborrecido.
Marcos sorriu ironicamente: «Porque o próximo muntela da nossa lista
é o chefe de segurança dà aldeia.»
Na verdade, o terceiro responsável mais importante da Frelimo na al­
deia de Nandimba era, afinal, um dos mais respeitados «curandeiros tra­
dicionais» em actividade.
Mpwapwele informou-nos que tinha iniciado a sua carreira como mun­
tela em 1970 - «o ano em que [o general português] Kaúlza [de Arriaga]
chegou a Gab*o Delgado para iniciar a Operação Nó Górdio». Quando
lhe perguntei que técnicas de curandeirismo conhecia, enumerou-mas
pela seguinte ordem: «‘armas’ antifeitiço, remédios para a dor de cabeça,
remédios para as dores de pernas, tratamentos para feiticeiros feridos, re­
médios para as hemorragias menstruais, remédios para as hérnias, remé­
dios para as mordeduras de cobras, nshamoko [uma substância que garante
a estima dos outros a quem a usa], remédios para as dores do sistema
urinário e remédios para venenos».
Mpwapwele contou-nos que, depois de ter passado pelo treino de
guerrilha em 1972, não voltou a trabalhar como curandeiro até ao fim
da guerra. Reassumira a sua vocação em 1975 e vinha exercendo desde
então. Quando nos disse que trabalhava em parceria com Carmelita Mi-
longe, percebi ainda melhor porque é que ela não ficara incomodada
com a sua presença durante a entrevista que lhe fiz.
«Eu quero que a feitiçaria acabe nesta aldeia», declarava-nos agora o
chefe de segurança com convicção. «É por isso que aconselho muitas
vezes as pessoas contra a sua prática.»
O termo que usou - hdailila, «conselho» - era o mesmo que os habi­
tantes locais usavam às vezes para designarem as proclamações antifeiti-
çaria das figuras de autoridade antes da independência. Lancei uma olha­
dela a Marcos para confirmar que tinha percebido o eufemismo, antes
de perguntar a Mpwapwele: «Então actua como os chefes de povoação
actuavam no passado?»
«Sim», respondeu ele sem hesitação.
Desastradamente, saiu-me sem reflectir a primeira pergunta que me •
veio à mente: «O senhor pratica feitiçaria de construção?» A minha per­
gunta foi tão directa, tão forte a minha linguagem, ligando este represen­
tante político da Frelimo à feitiçaria, que, acto contínuo, fiquei logo à
espera que ele se risse da sugestão, ou mesmo que se zangasse comigo.

289
K u piliku la

A severidade da expressão de Mpwapwele quando respondeu à minha


pergunta parecia, todavia, não se dirigir a mim, mas sim aos eventuais
feiticeiros: «Nas povoações de antigamente, os nossos anciãos costuma­
vam sair à noite para aconselhar as pessoas contra a prática da feitiçaria.
Eles morreram, mas nós continuamos a fazê-lo - da mesma maneira.»
Posteriormente, Mpwapwele mostróu-nos como dava bom uso à for­
mação sobre minas terrestres adquirida no tempo da guerra, enquanto
chefe de segurança da aldeia. Arrastou uma saca de pedra britada de den­
tro de sua casa e abriu-a para nós vermos. As pedras, que nos disse ter
apanhado num local secreto das terras baixas, serviam de carga nas «minas
antipessoais contra os feitiços» (lipande), que ele construía e dispunha
para proteger a povoação contra a sua maior ameaça contemporânea à
segurança: a uwavi. Enquanto examinava os materiais usados por
Mpwapwele na construção de bombas, o meu espírito flutuou através
do tempo e do espaço até às bases de retaguarda da guerrilha, na Tanzâ­
nia, onde os instrutores da Frelimo ensinavam aos recrutas a ciência do
socialismo revolucionário. Dificilmente conseguia imaginar como teria
reagido Samora Machel à cena que eu estava a presenciar.
No entanto, o encontro não deixou nada impressionado Marcos, o
meu colega da Frelimo. Nos dias seguintes, regalou-me com histórias re­
veladoras da extensão do recente «ressurgimento da tradição», até mesmo
no bastião norte da Frelimo na província de Cabo Delgado. Para muitos,
o precursor da nova era foi um ing’anga (exorcista ambulante) chamado
Ningore, que apareceu na província no início da década de 1990. Eu ou­
vira falar dele quando estava a fazer investigação para a minha dissertação,
entre 1993 e 1995, mas como não actuara no planalto de Mueda, eu tinha
prestado pouca atenção às histórias que se contavam a seu respeito. Só
agora começava a perceber a enorme influência que Ningore exercera na
consciência pública da província, incluindo em lugares que nunca visi­
tou.
Ningore viajou muito por Cabo Delgado e depressa adquiriu o esta­
tuto de lenda pelas sessões que realizou para identificar feiticeiros.
As pessoas que acusava eram obrigadas a ingerir substâncias mágicas que,
segundo dizia, as matariam caso voltassem a fazer feitiços.2

2 Feierman (1986,209) sugere que os caçadores de bruxos itinerantes surgiram no con­


texto colonial africano quando e onde o governo tentou proibir as acusações e os julga­
mentos de bruxaria a nível local. N o Norte de Moçambique, porém, os caçadores itine­
rantes de bruxos foram dos primeiros a testar os novos espaços proporcionados pela
reforma neolibeial.

290
0 «ressurgimento da tradição>

«A feitiçaria é um problema grave nas nossas aldeias comunais», afirmou-nos


Maurício Mpwapwele Moto, aqui retratado a mostrar-nos os materiais com que
fazia as minas antipessoais contra os feitiços. «Os jovens de hoje não têm respeito
nenhum. Às vezes, ouvimo-los a ameaçarem os seus anciãos, dizendo: ‘É melhor
não te meteres comigo! Se o fizeres, trato-te da saúde!5» Enquanto falávamos,
um grupo de três adolescentes parou a alguns passos de nós, escutando a nossa
conversa. Os seus sorrisos deram lugar a expressões envergonhadas. «Onde há
falta de respeito, há com certeza feitiço», concluiu Mpwapwele. «Onde não existe
medo, podem ter a certeza de que as pessoas se sentem seguras daquilo que
sabem.»

Após uma digressão pela província, Ningore acabou por estabelecer


residência semipermanente do outro lado da baía de Pemba, a capital
provincial. Pessoas de toda a província e de fora desta vinham de ferty-
-boatpara receber os seus tratamentos, que geralmente incluíam a incisão
de uma cruz na coluna dorsal dos clientes, ou incisões sob as unhas feitas

291
Kupilikula

com uma lâmina de barbear, uma faca ou uma catana, com a inserção
de substâncias mágicas nos golpes. Ningore prometia que esta técnica
garantiria aos seus clientes uma longa vida e imunidade contra o feitiço.3
Pelos seus serviços, Ningore recebia, alegadamente, pagamentos em
dinheiro, gado e equipamentos electrónicos (Membe 1995). À medida
que acumulava riquezas, os fimcionários provinciais começaram a olhar
as suas práticas com reprovação, mas enquanto o inganga gozou de
grande popularidade, permitiram-lhe que continuasse a trabalhar. O
apoio a Ningore entrou em declínio quando um barco cheio de clientes
seus se virou na baía de Pemba, afogando dezenas de pessoas. Os clientes
de Ningore e o público em geral concluíram, mais ou menos consen­
sualmente, que o curandeiro tinha usado o seu poder para fins destruti­
vos, causando ele próprio o acidente. Só então o governador da provín­
cia, António Simbine, prendeu Ningore, que morreu na prisão pouco
tempo depois.
Porém, o «fenómeno Ningore» - como o jornalista moçambicano Re-
mígio Membe (1995) o apelidou - ressuscitou em 1995, quando um
homem que afirmava ser da aldeia de Namapa, província de Nampula,
apareceu em Cabo Delgado «para terminar o trabalho de Ningore» de
eliminar o feitiço. Os seus seguidores chamavam-lhe «Pergunta Bem»,
mas ele autodenominava-se «Perseguido sem Motivo». Asseverando ter
aprendido os seus métodos com os famosos guerrilheiros Naparamas, que
actuavam na província da Zambézia e dificultavam a vida tanto às forças
governamentais como às da Renamo, no final da guerra civil moçambi­
cana (K. Wilson 1992), Pergunta Bem prometia limpar as aldeias e os
bairros urbanos do feitiço, casa a casa. Acompanhado dos seus numero­
sos seguidores, a tocarem tambor, Pergunta Bem descia às comunidades
e dançava para identificar os feiticeiros existentes no seio delas. Os seus
seguidores espancavam qualquer pessoa que lhe opusesse resistência ou
contestasse as suas sentenças. Muitos dos que ele acusava de feitiço eram
obrigados pelos vizinhos a fugirem de suas casas e a irem residir para
outro local.
Segundo Membe, que acompanhou o exorcista ambulante, Pergunta
Bem, tal como Ningore antes dele, aceitava pagamentos em dinheiro,
animais e equipamentos electrónicos. Os responsáveis da Frelimo na ci­
dade de Pemba tinham o cuidado de não ofender os seus muitos apoian-

3 Há notícia de caçadores de bruxas/exorcistas com o Ningore em toda a África con­


temporânea; ver, por exemplo, Geschiere e Fisiy (1994); M. Green (1997); Yamba (1997);
Danfulani (1999).

292
0 «ressurgimento da tradição>

tes e permitiam-lhe que trabalhasse sem entraves, O exorcista só saiu de


Pemba, no dizer de Membe, quando lhe apeteceu, dirigindo-se para a
zona sul de Cabo Delgado, onde foi recebido com hostilidade nas aldeias
que visitou e, por fim, desapareceu.4
Apesar de Ningore e Pergunta Bem apenas terem exercido durante cur­
tos períodos, prenunciaram a chegada de tempos de mudança à província
- tempos em que o «ressurgimento da tradição» se tomaria um tema im­
portante de debate público.

4 Em Montepuez, Pergunta Bem e os seus seguidores terão, alegadamente, profanado


mesquitas e obrigado os xeques a beber urina e a urinar sobre o Corão (Membe 1995).

293
g sw w w -1
Capítulo 21

A reforma neoliberal
e a tradição moçambicana
«Nós queremos que a autoridade tradicional exista.»
As palavras do presidente Chissano chegaram-me à Virgínia, onde eu
estava a escrever a minha dissertação, através do Listserv da Internet.
Quando falou aos meios de comunicação social, depois de se reunir com
um grupo de antigos régulos na província de Niassa, em Junho de 1995,
o líder do partido que duas décadas antes tinha abolido as chefias tradi­
cionais declarava agora: «Nós queremos que a autoridade tradicional
exista.» (Mohomed 1995b; ver também Mohomed 1995a)
A declaração de Chissano reflectia e contribuiu para uma transforma­
ção drástica do discurso público moçambicano sobre temas que muitos
agora comentavam, como a «autoridade tradicional» ou a «medicina tra­
dicional». Forças históricas complexas inspiravam as palavras do presi­
dente moçambicano. Desde a subida de Chissano ao poder, o Muro de
Berlim tinha caído, a União Soviética desmoronara-se e a Guerra Fria
chegara ao fim. Tendo deixado de receber auxílio dos aliados do Bloco
de Leste, a Frelimo abandonou a sua identidade socialista, adoptou me­
didas de austeridade e, por último, aceitou as condições do FMI para ga­
rantir o afluxo de ajuda ocidental. Quando o apartheid deu o último sus­
piro e a assistência militar sul-africana à Renamo diminuiu, a Frelimo
também consentiu em liberalizar a política moçambicana, possibilitando
a cessação da luta armada e a transformação da Renamo num partido
político que faria oposição à Frelimo nas umas e não no mato.
No período que antecedeu as primeiras eleições multipartidárias do •
país, a Renamo levantou as questões da «autoridade tradicional» e do
«curandeirismo tradicional». Na verdade, à medida que a Renamo se ex­
pandira pelo país, na década e meia anterior, a rebelião não só tinha des­
truído todos os vestígios do programa de modernização socialista da

295
Kupiltkula

Frelimo, como também anulara as proibições desta em relação às chefias


tradicionais e às práticas de adivinhação, curandeirismo e súplica aos
antepassados. A política da Renamo produzia dividendos em muitas re­
giões. Tendo sido reprimidos, maltratados e marginalizados pelo Estado
da Frelimo, os curandeiros, médiuns e antigas autoridades gentílicas es­
tavam, em muitos casos, dispostos a apoiar a insurreição contra o Estado
(Geffray e Pedersen 1988; Geffiray 1990; Englund 2002, 69-74). Nas
zonas que a Renamo conseguiu controlar durante a guerra, os mambos
foram identificados e utilizados como intermediários na hierarquia ad­
ministrativa dos rebeldes.1Nos sítios onde a Renamo destruía os centros
de saúde construídos pela Frelimo e matava ou expulsava o pessoal mé­
dico, os «curandeiros tradicionais» foram autorizados a trabalhar sem
restrições.
E certo que o «renascimento da tradição moçambicana» orquestrado
pela Renamo foi um fenómeno complexo que se desenrolou de maneiras
muito diferentes em diferentes lugares.12 A maioria das vezes, a Renamo
não investia a autoridade em chefes sancionados pela população nem
nas antigas autoridades gentílicas, preferindo «reconhecen> figuras que a
servissem como intermediários facilmente manobráveis (Alexander 1995,
26-31). Todavia, as relações que a Renamo manteve durante a guerra com
as autoridades e os curandeiros tradicionais lançaram, em muitos sítios,
os alicerces para a subsequente mobilização dos eleitores sobre os quais
estas figuras exerciam influência.3
Cientes das vantagens que o bom relacionamento com as autoridades
e os curandeiros tradicionais podia proporcionar à Renamo na política
eleitoral do pós-guerra, alguns dirigentes da Frelimo depressa reconhece­
ram o potencial interesse de estabelecerem boas relações com essas figu­
ras. O próprio presidente Chissano reuniu-se com grupos de antigos ré­
gulos, em várias províncias moçambicanas, nos meses anteriores às
eleições de 1994, no âmbito de uma iniciativa partidária da Frelimo des­

1 M ambo é um termo para «chefe» nas línguas shona faladas nas regiões centrais de
Moçambique, onde a Renamo tinha mais força durante a guerra e de onde muitos dos
seus principais líderes eram originários. Em algumas regiões de Moçambique, a Renamo
utilizava outros termos locais em vez de mambo, mas este termo era aplicado muito para
além das fronteiras da zona em que tinha significado histórico.
2 Englund (2002), por exemplo, apresenta uma descrição subtil dos diversos cenários
presenciados na região de fronteira entre Moçambique e o Malawi, na província de Tete.
3 Manning, de facto, concluiu que «as autoridades tradicionais foram igualmente de­
cisivas no forte resultado eleitoral da Renamo» em 1994 (2001,159).

296
A reforma neoliberal e a tradição moçam bicana

tinada a dar «charme» aos régulos (.Notícias 1995c).4 Os responsáveis do


partido a níveis mais baixos adoptaram em diversos locais atitudes de
abertura semelhantes; em muitos casos havia já vários anos que o faziam.
Concomitantemente, os responsáveis da Frelimo demonstraram ter uma
consciência crescente dos efeitos alienadores da política do partido em
relação ao curandeirismo tradicional (E. Green, Jurg e Djedje 1994, 7;
E. Green 1994,120; Honwana 2002,175). No Quinto Congresso parti­
dário da Frelimo, em 1989, a proibição do curandeirismo tradicional foi
revogada. Daí em diante, os responsáveis do Ministério da Saúde come­
çaram a falar de forma mais aberta e compreensiva com os curandeiros
tradicionais £ a respeito deles (Honwana 2002,174).5
Os doadores ocidentais também desempenharam um papel impor­
tante na produção do discurso público sobre as autoridades e o curan­
deirismo tradicionais. O interesse dos doadores nestas entidades estava
ligado ao projecto neoliberal de «descentralização democrática». No fim
da guerra, o sistema de saúde da Frelimo encontrava-se em ruínas.
As medidas de austeridade tomavam inconcebível a reconstrução total
do sistema, pelo que os doadores se mostraram interessados na ideia de
trabalhar em colaboração com os curandeiros tradicionais para reduzir
os custos, restabelecendo simultaneamente uma rede de cuidados de
saúde que chegasse às zonas rurais do país.6Os seus defensores alegavam
que, mesmo no auge do socialismo da Frelimo, os moçambicanos ti­
nham continuado a consultar os curandeiros tradicionais (E. Green, Jurg,
e Dgedge 1993, 264; 1994, 7). Durante a guerra, aventavam eles, os cu­
randeiros tradicionais tinham preenchido eficazmente o vazio deixado
pelo colapso do sistema estatal (Nordstrom 1998), proporcionando mui­
tas vezes um tratamento culturalmente mais apropriado para os traumas
de guerra do que aquele que os técnicos de saúde «modernos» poderiam
ter proporcionado (E. Green 1996,75).
Os doadores argumentavam igualmente que as instituições da autori­
dade tradicional podiam servir para conferir maior eficiência e eficácia

4 Depois das eleições de 1994, o governador da Frelimo da província de Inhambane,


Francisco João Pateguana, aconselhou o seu partido a tomar nota do facto de que a Fre­
limo obtivera maus resultados nas zonas onde não mantinha boas relações com os antigos
régulos (Notícias 1995c).
5 Oyebola (1986, 227) sugere que os políticos nigerianos cortejaram os curandeiros
tradicionais nas eleições de 1979 e que os vencedores lhes concederam cargos políticos,
em reconhecimento pela sua influência sobre os eleitores.
6 Esta ideia reproduzia as justificações da Organização Mundial de Saúde para o seu
paradigma da medicina tradicional já enunciado em 1983 (Bannerman, Burton e Wen-
-Chieh 1983,326).

297
K u piliku la

ao governo local na era do ajustamento estrutural pós-socialista. No seu


entender, tais instituições eram instrumentos através dos quais os habi­
tantes das zonas rurais poderiam gerir os seus assuntos e resolver os seus
próprios problemas com poucas ou nenhumas despesas para o Estado.
Mais ainda, nas zonas onde o Estado pós-colonial deixara de cobrar im­
postos, estas instituições socialmente integradas poderiam proporcionar
ao regime do pós-guerra uma forma legítima de arrecadar um imposto
de reconstrução nacional (Buur e Kyed 2003).
Em 1991, o Ministério da Administração Estatal acedeu a acolher entre
as suas paredes um projecto de investigação financiado pela Fundação
Ford (e administrado pelo Aftica-America Institute), com o objectivo de
produzir recomendações para uma reforma legislativa e política no to­
cante à questão da autoridade tradicional. O projecto foi prolongado em
1995, com financiamento da Agência dos EUA para o Desenvolvimento
Internacional (US Agency for International Development - USAID), a
título do seu projecto Democracia em Moçambique.7 Entre Setembro
de 1995 e Outubro de 1996, os investigadores do projecto no Núcleo de
Desenvolvimento Administrativo (NDA) fizeram uma digressão pelo
país, organizando worhhops em oito das dez províncias (Affica-America
Institute 1997; Ministério da Administração Estatal/Núcleo de Desen­
volvimento Administrativo 1997). Os worhhops visavam facilitar o debate
sobre o modo como as autoridades tradicionais poderiam ser identifica­
das com exactidão, tanto no interior das suas comunidades como pelos
responsáveis governamentais; que funções poderiam elas desempenhar
e como se poderiam tomar mais específicas as suas atribuições. Os in­
vestigadores elaboraram uma série de cinco brochuras para instruir os
responsáveis estatais locais acerca do papel da autoridade tradicional na
sociedade moçambicana.8
Em paralelo com estas actividades, em 1990 a União Europeia finan­
ciou um consultor para aconselhar o Ministério da Saúde sobre a formu­
lação de políticas e a reforma legislativa em relação aos curandeiros tra­
dicionais (E. Green 1994, 121). Esse consultor - o antropólogo médico
norte-americano Edward Green - propôs que o governo adoptasse a de­
finição da Organização Mundial de Saúde de traditional medicaipractitio-
ners («técnicos de medicina tradicional») que lhes permitisse formar as­

7 Para descrições detalhadas do projecto, ver VeneKlasen e West (1996); Fry (1997).
Para uma crítica mais substancial do projecto, ver West e Kloeck-Jenson (1999).
8 Os objectivos destas brochuras são apresentados na primeira da série: Cuehela (1996:
7). Ver também Al fane (1996); Fernando (1996); Mucussete (1996); Nhancale (1996).

298
A reforma n eoliberd e a tradição m oçam bicana

sociações e que reconhecesse os membros das associações legalmente


constituídas (E. Green 1994, 124-125). Em 1991, com a assistência de
Green, o Gabinete de Estudos de Medicina Tradicional (GEMT) do Mi­
nistério «propôs um programa de três anos para iniciar a colaboração em
matéria de saúde pública entre o Serviço Nacional de Saúde e os técnicos
de saúde nativos de Moçambique» (E. Green, Jurg e Djedje 1994,8). Sub­
sequentemente, a USAID financiou os estudos de campo realizados por
Green e por uma equipa de investigadores do GEMT com o intuito de
examinar os contributos existentes e potenciais do curandeirismo tradi­
cional para a prevenção e o tratamento das doenças sexualmente trans­
missíveis e da diarreia infantil (E. Green, Jurg e Djedje 1993; Gaspar e
Djedje 1994; E. Green, Marrato e Wilsonne 1995).
Os defensores destas reformas classificavam-nas, simultaneamente,
como necessidades práticas e como objectivos desejáveis em si mesmos.
Ao reprimir a tradição moçambicana, afirmavam muitos, o socialismo
da Frelimo sufocara a participação democrática e suprimira, assim, as ca­
pacidades criativas e produtivas da nação. A liberdade e a prosperidade
do pós-guerra, argumentavam, dependiam do desenvolvimento da «so­
ciedade civil» moçambicana. Mas que aparência teria a sociedade civil
moçambicana na nova era democrática? Em resultado da sujeição histó­
rica, em primeiro lugar a um regime colonial autoritário, depois a um
Estado socialista altamente centralizado e, finalmente, em muitos sítios,
à hierarquia militar da Renamo, os moçambicanos há muito que sofriam
fortes desincentivos à formação de instituições sociais espontâneas (sin­
dicatos, associações religiosas, cooperativas rurais, grupos organizados
em redor de meios de expressão e comunicação, etc.). A configuração da
sociedade civil moçambicana teria de ser, portanto, necessariamente di­
ferente das da Europa, América Latina e outras partes do mundo.
Alguns reformadores afirmavam que os laços de parentesco consti­
tuíam uma forma historicamente duradoura de organização social - uma
variante local da sociedade civil que poderia servir para dar expressão po­
lítica ao povo, numa democracia moderna emergente (ver Santos 2003,
79).9Por isso, consideravam que as instituições da autoridade tradicional

9 C om base em trabalhos realizados no Uganda, o antropólogo Mikael Karlstrõm-


apresentou um argumento semelhante: «Se é provável que as solidariedades e as associa­
ções baseadas na etnicidade continuem a ser um elemento essencial do sector organiza-
tivo que articula o Estado com a sociedade em África, a tarefa analítica consistirá em pro­
curar entender em que condições elas poderão realizar esse papel de mediação de forma
construtiva, bem com o as circunstâncias em que poderão causar divisão e destruição...
Assim, se ficar empiricamente provado que as instituições políticas tradicionais, etnica-

299
Kupilikula

baseadas nesses laços eram fundamentais para uma sociedade civil mo­
çambicana revigorada e uma democracia moçambicana florescente (Lub-
kemann 2001, 90-91).
Entre estes reformadores, figuravam os investigadores do projecto do
NDA, chefiados pela antropóloga sueca de origem brasileira Iraê Bap-
tista Lundin. Nas obras que publicaram, estes investigadores exaltavam
as instituições da autoridade tradicional como uma «afirmação socio-
cultural de Afncanidade» (Lundin 1995,10). As publicações do projecto
apresentavam-nas como tradições duradouras - «costumes e crenças
desde há muito praticados» (Afiica-America Institute 1997,14) - e lou­
vavam-nas como tendo uma natureza essencialmente democrática. Lun­
din escreveu que as instituições da autoridade tradicional estavam sujei­
tas às restrições populares dos conselhos de anciãos, os quais agiam
como «colégios eleitorais», controlando as acções dos chefes - umas
vezes verificando a sua autoridade, outras refreando-a e outras ainda
contestando a sua legitimidade (Lundin 1995, 27; ver também Lundin
1996; Nhancale 1996). Tão nitidamente legítimas e tão nitidamente de­
mocráticas eram as autoridades tradicionais, no dizer de Lundin, que
não necessitavam que a sua autoridade fosse confirmada através de con­
tendas eleitorais multipartidárias, como alguns propunham, pois obe­
deciam aos seus próprios princípios de democracia interna.10 Em vez
disso, Lundin sugeria que o governo se limitasse a identificar essas figuras
e a «reconhecê-las» mediante a distribuição de uniformes, como se fizera
com os régulos no período colonial.
Os reformadores também classificaram os curandeiros tradicionais
como elementos essenciais para uma sociedade civil moçambicana revi­
talizada. Muitos salientavam que eles eram detentores de formas carac­
terísticas de «saber local» (ou de «saber indígena») susceptíveis de com­
plementar outros recursos no contexto do desenvolvimento neoliberal.
Quando visitei o Ministério da Saúde em Maputo, em 1999, um mem­
bro do pessoal do GEMT disse-me: «Os curandeiros tradicionais são os
guardiães de uma cornucópia médica moçambicana.» Em Pemba, no
mesmo ano, um responsável da Direcção Provincial de Saúde assegurou-

mente baseadas, têm, pelo menos, potencialidades para assegurar uma articulação positiva
entre o Estado e a sociedade, a exclusão dessas instituições da definição de sociedade
civil não parece particularmente útil.» (1999,110-111) Ver também Durham (1999,196).
10 A maioria dos antigos régulos concordou, evidentemente, com Lundin quando ela
se reuniu com eles, argumentando que a sua legitimidade provinha da sucessão e que
seria posta em causa se os seus subordinados os pudessem destituir por meio do voto
(Mohomed 1996).

300
A reforma neoliberal e a tradição m oçam bicana

-me: «Os curandeiros tradicionais são os médicos de Moçambique e os


manuais de medicina de Moçambique.» Em Mueda, o director distrital
de Saúde afirmou: «Os curandeiros tradicionais conhecem curas para
doenças que a medicina ocidental ainda não diagnosticou.»11
Já no início da década de 1980, o Ministério da Saúde moçambicano
tinha mostrado algum interesse no curandeirismo tradicional. Paradoxal­
mente, embora o Estado proibisse expressamente a sua prática, os inves­
tigadores do GEMT reuniram dados sobre as plantas medicinais utiliza­
das pelos curandeiros em todo o país.112Em meados da década de 1980,
o ministério publicou um catálogo em quatro volumes sobre as plantas
medicinais jnoçambicanas e as suas diversas utilizações na prática do cu­
randeirismo tradicional 0ansen e Mendes 1983-1984).13 Green sugeriu,
porém, que o facto de o GEMT se concentrar nas questões médicas obs­
curecia dados mais valiosos, nomeadamente os conhecimentos que os
curandeiros possuíam, não só dos remédios mas também das doenças
(E. Green 1994,44-45).14 Desenvolvendo o paradigma da medicina tra­
dicional elaborado pela Organização Mundial de Saúde a partir de mea­
dos da década de 1970 (World Health Organization 1978; 1995; Banner-
man, Burton e Wen-Chieh 1983; E. Green 1994,21), Green alegou que
os «saberes indígenas» detidos pelos «curandeiros tradicionais» moçam­
bicanos tomavam a sua participação na investigação e nos cuidados de
saúde participativos um recurso nacional inestimável. «A criatividade e
o talento de uma sociedade estão personificados nos seus sistemas de sa­
bedoria indígena», escreveu Green. «É essencial que os responsáveis pelo
planeamento e a aplicação das políticas neste domínio compreendam o
saber indígena em matéria de saúde para que os planos e programas sejam
culturalmente adequados e, logo, eficazes.» (E. Green 1994,21)

11Janzen (1978,62) sugere que tais pontos de vista são comuns entre as elites africanas.
N o entanto, essas perspectivas fazem eco das dos antropólogos médicos e dos etnobotâ-
nicos que trabalham em diversas localidades. O antropólogo médico Sjaakvan derGeest
(1997) alega que essas esperanças justificam as atitudes de abertura biomédicas à medicina
tradicional. Ver também Plotkin (1993,13,236).
12 Semali (1986, 88) e Feierman (1986, 214) descrevem iniciativas semelhantes em­
preendidas na Tanzânia socialista, em meados da década de 1970, pela Unidade de In­
vestigação de Medicina Tradicional da Universidade de Dar-es-Salam.
13Joralemon e Sharon (1993:163) sugerem que uma investigação semelhante serviu
para legitimar os curanderos do Peru.
14 Edward Green (1994:44-45) alegou também que ainda só era possível obter bene­
fícios mínimos da bioprospecção de substâncias medicinais devido ao elevado custo das
análises laboratoriais e dos ensaios farmacêuticos. Sobre esta questão, ver também Cha-
vunduka e Last (1986:255); Pearce (1986:255); Green (s. d.).

301
K u piliku la

Não obstante o grande contraste aparente entre as perspectivas neoli-


berais sobre a «tradição» moçambicana e as dos administradores colo­
niais, missionários católicos e socialistas revolucionários, os reformadores
visionavam o mundo de forma bastante diferente da dos sujeitos «tradi­
cionais» que acaloradamente defendiam, como veremos.

302
Capítulo 22

Um reconhecimento limitado
«

«Quanto tempo dura uma dessas lâminas?», perguntei.


Enquanto conversávamos, Vantila Shingini estava ocupado a «vacinar»
uma mulher adulta.1Despida da cintura para cima, a doente estava obe­
dientemente sentada numa esteira de junco, de pernas estendidas e costas
viradas para o muntela. A lâmina de barbear que Vantila segurava na mão
tinha uma cor ocre, mas eu não conseguia distinguir se era de ferrugem
ou de sangue seco. Ele cortava-lhe a pele com grande atenção.
«Compro uma nova várias vezes ao ano», respondeu confiantemente,
parecendo seguro de ter minorado as minhas preocupações.
Anteriormente, dissera-me que «vacinava» vários doentes por semana.
Fiz algumas contas de cabeça, rapidamente. Supondo que «vários» equi­
valia a meia dúzia em ambos os casos, calculei que usara a mesma lâmina
em nada menos de cinquenta pessoas.
Vantila continuou o seu trabalho. Fez aproximadamente dez pares de
incisões paralelas - com talvez um centímetro e meio de comprimento -,
desenhando um padrão nos braços, no peito e nas costas da mulher.

1 White (1994, 363; 2000, 99) relata que as injecções há muito que suscitam medo e
fascínio em África. Vaughan (1991, 59) sugere que este fascínio levou os africanos a assi­
milarem as práticas médicas dos missionários ocidentais nos repertórios dos seus curan­
deiros. Pelo contrário, Whyte, van der Geest e Hardon (2002,104-116) não só documen­
tam a existência de «injeccionistas» (técnicos não oficiais que utilizam agulhas
hipodérmicas para injectar nos clientes uma grande variedade de substâncias medicinais)
em toda a África contemporânea, com o sugerem que este procedimento está ligado a prá­
ticas terapêuticas indígenas muito antigas: «Fazer um corte, ou várias pequenas incisões,
com uma fàca ou lâmina de barbear, e esfregá-los com medicamentos, ainda é comum
em muitos contextos africanos.» (112) Ver também Whyte (1988,220). Em qualquer caso,
a «vacinação» é uma componente comum do repertório de muitos curandeiros africanos
contemporâneos. Ver, por exemplo, Marwick (1950,104); Beattie (1963,42); LeVine (1963,
235); Redmayne (1970:113); Janzen (1989,241); M. Green (1994,37); Yamba (1997,214-
-215); Willis e Chisanga (1999, 138); Ashforth (2001b, 213; 2000, 48,116). Ver também
Wafer (1991, 91) a respeito de práticas semelhantes no candomblé brasileiro.

303
K u piliku la

Depois virou-se para trás para pegar num pequeno frasco cheio de uma
substância negra e pastosa. Usando a lâmina como uma espátula, espa­
lhou a substância nas incisões que fizera.2
«O que é isso?», perguntei, referindo-me à substância.
«Mitela», respondeu ele.
«Sim, eu sei», disse eu. «Mas que tipos de mitelah
Quando acabou o par de incisões em que estava a trabalhar, fez uma
pausa para dar uma resposta ligeiramente mais reveladora. «É feita com
várias folhas queimadas e reduzidas a pó.» Esticou o braço para agarrar
um almofariz e um pilão pousados na borda da esteira e mimou com
eles o método que usara para tratar essas substâncias não especificadas.
«Oh, e mais isto», acrescentou, pegando numa pilha AA desmontada.
Talvez prevendo que eu iria perguntar outra vez «De que tipo?», infor­
mou voluntariamente: «E do tipo que se usa num rádio».3
Quando Vantila Shingini acabou de tratar a mulher, foi visitado por
outras duas pessoas, que combinaram voltar mais tarde nesse dia. Havia
pessoas que vinham tratar-se de dores nas costas, disse-nos ele, outras
para se defenderem de feitiços. A composição das mitela que usava para
vacinar os doentes dependia da natureza dos males que os afligiam.
Tal como a sua doente, também eu fiquei sentado, imóvel, reflectindo
se o vírus da SIDA ou os da hepatite conseguiriam sobreviver à exposição
ao ácido de bateria.

st**

À primeira vista, afigurar-se-ia que a era neoliberal constituiu um mo­


mento de total inversão do diálogo travado entre os moçambicanos rurais
e os seus muitos Outros a respeito da questão da «tradição». Enquanto
antigamente os Outros do povo de Mueda afirmavam ser detentores de
verdades transcendentes - proclamando-se capazes de dominar os mo­
çambicanos rurais com o olhar e ver o seu mundo mais claramente do
que eles próprios -, esses Outros manifestavam agora o desejo de enten­
der as «tradições» rurais moçambicanas de autoridade e de cura e mos-
travam-se propensos a encontrar valor, até sabedoria, nas instituições,
práticas e crenças «tradicionais».
Os responsáveis governamentais não só começaram a falar da «tradi-
2 Dias e Dias (1970,375) narram a utilização de técnicas semelhantes por curandeiros
de Mueda no final da década de 1950.
3 Quase todos os curandeiros e doentes com quem falámos confirmavam que o ácido
de bateria era uma componente essencial das mitela âe vacinação. Ver também Whyte
(1997,28,180).

304
Um reconhecimento lim itado

Vantila Shingini, aqui retratado a vacinar uma doente, tratava quer aquilo a que
chamava «doenças vulgares» (dores de cabeça, de barriga, de costas e de pernas),
quer as doenças relacionadas com a feitiçaria. Tratava as vítimas de feitiçaria e
também as pessoas que se tinham ferido a praticá-la. Muitos dos seus doentes
eram crianças, segundo nos contou. «Às vezes, os feiticeiros dão pedacinhos de
carne humana a comer às crianças, para que também se tomem feiticeiras. Essas
crianças são-me trazidas com dores de barriga, mas eu consigo ver qual é o pro­
blema delas pela maneira como me olham, com os olhos muito abertos, inter­
rogadores. As crianças podem ser curadas induzindo o vómito ou a diarreia,
mas depois de adultas é tarde demais. Nessa altura, só podemos tentar controlar
o problema.»

ção» com mais abertura e compreensão, como também ponderavam


fazer reformas jurídicas e institucionais que reconhecessem formalmente
as instituições tradicionais. Além disso, os representantes das O NG na­
cionais e internacionais que trabalhavam na reconstrução das zonas rurais
moçambicanas, dilaceradas pela guerra, habituaram-se cada vez mais a
identificar e a colaborar com as «autoridades tradicionais» e com os «cu­
randeiros tradicionais» na execução dos projectos de ajuda e desenvolvi­
mento. Tal como os doadores ocidentais, que financiaram muitas destas
intervenções, as O N G consideravam, frequentemente, que era melhor
dialogar com as autoridades e os curandeiros tradicionais do que com as
instituições estatais. Muitas delas sugeriam que através deles era possível
chegar mais directamente «às pessoas carenciadas», contornando buro­

305
K u piliku la

cracias estatais ainda excessivamente centralizadas e/ou escapando às gar­


ras de funcionários cada vez mais corruptos.
Fazendo, todavia, um exame mais atento, constata-se que a conversa
sobre a tradição que os moçambicanos rurais e os seus Outros mantêm
desde o início da década de 1990 é bastante complexa. Como veremos,
apesar da sua retórica mais compreensiva, estes novos Outros, à seme­
lhança dos seus antecessores, interpretaram a tradição moçambicana atra­
vés do filtro da sua própria lógica, «reconhecendo» tradições que são
tanto criação sua como dos moçambicanos rurais. Não obstante as in­
tenções dos reformadores, as instituições tradicionais revelaram-se veícu­
los pouco manejáveis para a racionalização da sociedade moçambicana,
de acordo com as visões esclarecidas e pedagógicas articuladas pelas ins­
tituições neoliberais. Por fim, mesmo muitos dos responsáveis estatais,
representantes dos doadores internacionais e gestores de projectos das
ONG favoráveis às reformas concluíram que as tradições moçambicanas
que pretendiam reconhecer oficialmente eram irreconhecíveis.
No domínio do curandeirismo tradicional, por. exemplo, os investiga­
dores do GEMT há muito que estavam interessados nas propriedades
medicinais das plantas usadas pelos curandeiros moçambicanos, mas de­
vido à política governamental que declarava as práticas médicas tradicio­
nais inseparáveis do obscurantismo (Meneses 2000, 5), seguiram esta
linha de pesquisa sem atenderem às dimensões não materiais do curan­
deirismo moçambicano (Meneses s. d., 15-16). À semelhança de respon­
sáveis e investigadores do sector da saúde que trabalhavam noutras zonas,
os investigadores do GEMT entenderam que a medicina tradicional se
resumia à administração de substâncias cujos princípios activos podiam
ser isolados, testados e validados nos laboratórios científicos.4 Como
vimos no capítulo 21, Edward Green aconselhou o GEMT a alargar os
seus conceitos de «curandeirismo tradicional» de modo a reconhecer os
«curandeiros tradicionais» como portadores de formas características de

4 Agrawal (1995, 430; 2002, 290) faz notar que o «saber indígena» só existe como tal
no momento em que é «validado» por meios científicos e absorvido no conjunto supos­
tamente universal do «conhecimento científico». A validação do saber indígena, sugere
ainda Agrawal, é um processo eivado de poder - em que os detentores do saber indígena
estão peipetuamente subordinados aos guardiães da ciência, obrigados a agir como «olhos
e ouvidos» de um cérebro científico (Howes e Chambers 1980, 327). Purcell e Onjoro
lembram-nos que a «tendência ocidental para utilizar o conhecimento científico como o
padrão apriori de todo o conhecimento ‘verdadeiro5é tão antigo como a própria ciência»
(2002,173). Sobre a utilização do conhecimento biomédico como bitola de medição do
conhecimento médico tradicional, ver também Last e Chavunduka (1986, 3); Mac-
-Cormick (1986, 155); Oyebola (1986,230); Greene (1998,640,642); Langford (2002,8).

306
Um reconhecimento lim itado

saber local. No entanto, o próprio Green concebia o saber indígena atra­


vés de uma lente científica limitativa e alegava que os investigadores ten­
diam a sobrevalorizar as componentes «mágicas» das noções africanas de
saúde e de cura (E. Green 1999). Grande parte dos conhecimentos de
cura dos africanos, asseverava ele, não tinha nada a ver com bruxaria e/ou
feitiçaria (1994, 139): «com efeito, os modelos etiológicos indígenas e
biomédicos não são muito diferentes no fundamental nem de forma im­
portante» (1999, 12). Expressões culturais aparentemente exóticas fun­
cionavam como símbolos (ou como metáforas); uma vez descodificadas,
estas expressões eram inteiramente compatíveis com as categorias e os
conceitos bipmédicos de doença e do seu tratamento (1999,16,18, 90).
Por exemplo, os conceitos africanos de «poluição» constituíam uma «teo­
ria indígena do contágio», sugeriu Green; e a «cobra invisível» (que mui­
tos povos da África austral afirmam residir no corpo de uma pessoa sau­
dável) 5constituía uma «teoria indígena da resistência» à doença (E. Green
1997; 1999).6As «teorias indígenas» que Green reconheceu eram, como es­
tava pronto a admitir, notavelmente semelhantes às do paradigma bio-
médico que ele e outros consultores levavam consigo para lugares como
Moçambique. Simultaneamente, às noções mais dissemelhantes, como
as de bruxaria e/ou feitiçaria, era recusado o estatuto de teorias indígenas,
sendo menos tidas em conta, ou mesmo ignoradas, nas descrições enco­
miásticas do «curandeirismo tradicional» moçambicano.7
Os responsáveis do sistema de saúde moçambicano e os investigadores
do GEMT assumiram atitude idêntica, quando conversei com eles na
década de 1990. Quando os interroguei a respeito de adivinhação, feiti­
çaria ou possessão por espíritos - práticas que os próprios moçambicanos

5 Ver também Stoller e Olkes (1987,171).


6 A atitude de Green não era de m odo algum excepcional entre os antropólogos mé­
dicos e etnobotânicos. Considere-se, por exemplo, o trabalho de Wade Davis (1988), o
reputado etnobotânico de Harvard que, no início da década de 1980, investigou as no­
tícias da existência de zombies no Haiti. Davis levou a sério as lendas haitianas que su­
geriam que os bokor (sacerdotes vodu) poderosos podiam fazer com que os mortos se er­
guessem dos túmulos, usando-os com o escravos zombiés. N o decurso da sua
investigação, Davis isolou substâncias farmacológicas que concluiu serem capazes de pro­
duzir o efeito de zombie descrito nas narrativas folclóricas haitianas. Ao íàzê-lo, sugeriu
não só que as crenças dos haitianos sobre os zombies tinham fundamentos de verdade,'
mas também que a verdade deste «saber indígena» podia - e na verdade devia - ser vali­
dada pela ciência ocidental. Ver também World Health Organization (1978,29). Ploddn
(1993,237) manifesta uma maior ambivalência em relação ao paradigma científico como
padrão de verificação, embora, de qualquer modo, o utilize com o tal.
7 Ashforth alega que essas descrições «implicam uma grave deturpação da política en­
volvida na actividade dos curandeiros» (2000,247-248).

307
K upilikula.

rurais consideravam essenciais para as actividades dos curandeiros -, re­


cordaram-me, muitas vezes, delicadamente, que o curandeirismo estava
«enraizado» em substâncias físicas com propriedades medicinais.8 Na
verdade, temas como esses raramente eram abordados, a não ser por
mim. Estes defensores do curandeirismo tradicional chamavam aos cu­
randeiros «manuais de medicina», mas insistiam em rever - ou mesmo
censurar - passagens essenciais desses «manuais», antes de os recomen­
darem a um público mais vasto. 9Ao fazê-lo, agiam, mais do que queriam
admitir, como os dirigentes da Frelimo no Terceiro Congresso do Partido
(em 1977), que exortaram ao estudo da «medicina tradicional» com o ob-
jectivo de «valorizar os seus aspectos positivos» e «eliminar [dela] as prá­
ticas obscurantistas» 0ansen e Mendes 1983-1984,1.6; ver também Me­
neses, s. d.).101
No entanto, após a proibição do curandeirismo ter sido revogada em
1989, os curandeiros passaram a praticar mais abertamente em todo o
país. Por instruções emanadas do nível provincial, os responsáveis do pla­
nalto de Mueda começaram, em 1991, a registar os curandeiros em acti-
vidade no distrito. Os procedimentos de registo foram improvisados a
nível local. Significativamente, o processo foi supervisionado pela Direc­
ção da Cultura do Distrito de Mueda e não pela Direcção da Saúde.11
Os bilhetes de identidade emitidos para os curandeiros eram os mesmos
que essa direcção há muito usava para registar os famosos escultores de
madeira de ébano de Mueda. Por outras palavras, os curandeiros foram
literalmente credenciados como «artistas» que trabalhavam com vários
«meios» (como se lia nos seus bilhetes): adivinhação, curandeirismo, exor­
cismo de espíritos, iniciação dos jovens, etc. A Direcção da Cultura con­
tinuou a registar os curandeiros ao longo da segunda metade da década
de 1990. Quando esgotou a sua reserva de bilhetes de identidade para
artistas, começou a emitir cartas credenciais. A que Luís Avalimuka nos
mostrou estava datada de 1996. Nela se declarava que ele era curandeiro
desde 1986 e que, por esse motivo, era «oficialmente reconhecido como

8 Honwana (2002,174) indica que os investigadores do GEMT alargaram a sua visão


do curandeirismo tradicional, no final da década de 1980 e início da década de 1990, de
m odo a incluir «componentes simbólicos e rituais», mas eu encontrei poucos indícios
disso em meados da década de 1990.
9 Langford (2002,17) sugere que a medicina aiurvédica foi (re)inventada no imaginário
cultural-nacional indiano com precauções semelhantes.
10 Reynolds (1996,23) observa e critica este mesmo fenómeno no seu trabalho sobre
os curandeiros do Zimbabué.
11 Na Tanzânia pós-colonial, os curandeiros ngoma também foram reconhecidos pelo
Ministério da Cultura e não pelo Ministério da Saúde (Janzen 1992,171).

308
Um reconhecimento lim itado

curandeiro tradicional». A síntese que o director distrital da Cultura, Sa-


nyula, fez da iniciativa de registo foi reveladora da dinâmica política que
lhe estava subjacente: «Os curandeiros com quem contactámos nunca
nos causaram problemas.»
No mesmo período, os responsáveis governamentais debatiam na ca­
pital, Maputo, as vantagens e desvantagens de registar os curandeiros.
Embora o registo tomasse o governo mais capaz de controlar e avaliar as
práticas dos curandeiros tradicionais registados e/ou de colaborar com
eles na prestação de serviços médicos, ou ainda de lhes dar formação de
paramédicos, a capacidade e os recursos limitados de que o Ministério
da Saúde dispunha em tempo de ajustamento estrutural militavam contra
a realização de tais iniciativas à escala nacional. Edward Green contribuiu
substancialmente para o debate, argumentando não só que o registo não
era prático, mas também que apresentava riscos. O registo dos curandei­
ros implicava o envolvimento do governo na avaliação da legitimidade
de cada curandeiro ou, pelo menos, a legitimação implícita de todos os
curandeiros registados e a aprovação das suas várias práticas (E. Green
1996,20).12Não obstante a exaltação que faziam do saber indígena dos
curandeiros tradicionais moçambicanos, este era um passo que nem os
reformadores mais compreensivos estavam dispostos a dar. Muitos deles
defendiam que, mesmo num Moçambique democrático, não se podia
permitir práticas que punham em risco a saúde dos clientes (Lubkemann
2001, 99). O próprio Green levantou a questão dos perigos colocados
por procedimentos invasivos, não sujeitos a esterilização, como as «vaci­
nas» (E. Green, Jurg e Dgedge 1993,272-273,274; E. Green 1994,144).13
Em consequência destas reservas, Green aconselhou o governo, como se
disse no capítulo 21, a facilitar a formação de associações de curandeiros,
cujos membros gozariam do «reconhecimento» assim concedido, e a dei­
xar a estas associações as tarefas de avaliar as credenciais dos seus mem­
bros e controlar as suas actividades.
Em 1992, com o consentimento do governo de Maputo, foi formada
a Associação dos Médicos Tradicionais de Moçambique (Ametramo).

12Twumasi e Wairen (1986,127) descrevem o m odo com o o governo zambiano ten­


tou distinguir os curandeiros indígenas dos impostores, no processo de registo. Ver tam­
bém Hopa, Simbayi e du Toit (1998).
13 Yamba (1997, 215) manifesta preocupações semelhantes a respeito das «vacinas»
efectuadas pelos curandeiros do Malawi. Ashforth (2000, 184) descreve as críticas dos
técnicos biomédicos às práticas dos curandeiros tradicionais na África do Sul, incluindo
a utilização de mercúrio nas «vacinas» e a administração de clisteres tóxicos (por exemplo,
com crómio) para tratar a diarreia.

309
Kupilikula

Com a ajuda de juristas, esta associação elaborou regulamentos que es­


tabeleciam os seus objectivos e os direitos e responsabilidades dos seus
membros (E. Green 1996, 32). Entre os objectivos declarados da Ame-
tramo, contavam-se os seguintes:

• Mobilizar, registar e fomentar a cooperação entre os curandeiros tradicionais


de todo o Moçambique;
• Sensibilizar para o potencial preventivo e curativo das plantas medicinais
do país;
• Inventariar as práticas e as plantas usadas pela medicina tradicional em Mo­
çambique;
• Contribuir para saúde dos indivíduos e da comunidade;
• Promover a formação profissional dos seus membros e de outras pessoas
interessadas na medicina tradicional;
• Promover a investigação sobre o valor da medicina tradicional em Moçam­
bique;
• Proteger os doentes e a comunidade contra os falsos praticantes da medicina
tradicional e a utilização das suas técnicas de formas prejudiciais para o pú­
blico;
• Colaborar com o sistema de saúde nacional em iniciativas de saúde pública;
• Colaborar na educação sanitária da comunidade;
• Auxiliar os médicos em matéria de saúde mental;
• Promover intercâmbios com organizações internacionais;
• Ajudar e colaborar com instituições de saúde estrangeiras (Ametramo 1998).

Os fundadores da organização viam-na não só como um veículo para


os curandeiros exprimirem as suas perspectivas, colectivamente, no am­
biente pós-socialista, mas também como uma forma de promover o es­
tatuto dos curandeiros numa sociedade democrática (Luedke 2005). Sob
a égide da organização, afirmaram-se figuras empresariais que a rodearam
de uma burocracia destinada a consolidar a sua legitimidade como pro­
fissionais auto-regulamentados e a certificar os «verdadeiros» curandeiros,
excluindo os «charlatães» (Meneses 2000, 9).
Os novos membros eram obrigados a preencher um questionário.
O respectivo formulário invocava a autoridade do próprio Estado que
permitira a formação da associação para não se envolver directamente
na supervisão dos curandeiros. No cimo do formulário, sobre o nome
da organização, Associação da Medicina Tradicional de Moçambique,
figurava o selo do Estado moçambicano e as palavras «República de Mo­
çambique». Sob o espaço destinado à foto tipo passe dos candidatos, o
formulário exigia-lhes que se identificassem por nome, número de iden­
tidade nacional, residência, local e data de nascimento, nomes dos pais

310
Um reconhecimento lim itado

e estado civil. Também inquiria se eram ou não analfabetos, qual o seu


nível de escolaridade (caso a tivessem) e que religião «praticavam actual-
mente». Perguntava-lhes, ainda, em que ano tinham «concluído a forma­
ção» de «médico tradicional», se tinham «outra profissão para além da
medicina», e se estavam a formar os seus próprios alunos. Por último,
pedia-lhes que assinalassem as doenças que eram capazes de tratar ou de
curar e as práticas para que estavam aptos, de uma lista que incluía, por
esta ordem: «tuberculose; doenças de pele; diarreia; rins; érola [um termo
que nenhum médico moçambicano me conseguiu traduzir, mas que po­
derá ser a palavra «ébola» mal escrita]; dores de coração; asma; vómitos;
hemorragias; descargas; impotência sexual; espíritos malignos; oessessos
[provavelmente a palavra «abcessos» mal escrita]; esterilidade feminina;
doenças sexualmente transmissíveis; britharziose [«bilharziose» mal es­
crita]; cólera; doenças mentais; conflitos conjugais; azar; afastamento de
feiticeiros; adivinhação; tosses; bronquite; pneumonia; anemia; e, ainda,
a pergunta «Consegue curar a SIDA?» À lista seguia-se um espaço em
branco após as palavras «Outras doenças», e depois as perguntas: «Já saiu
do país para curar doenças?» e «Onde?»
A seu tempo, a Ametramo elaborou uma tabela de honorários para
auxiliar os associados a determinarem o custo dós diversos tratamentos.14
Os investigadores queixaram-se de que os membros da associação utili­
zavam as taxas inflacionadas da tabela para enganar os doentes (Pfeiflfer
2002).
Os próprios curandeiros eram, muitas vezes, vítimas da incipiente or­
ganização que funcionava, sob muitos aspectos, como uma rede em pi­
râmide que se estendia a partir de Maputo para as capitais provinciais, as
sedes distritais e as aldeias rurais. A coberto da autoridade da Ametramo,
indivíduos gananciosos cobravam «quotas» aos curandeiros que acredi­
tavam neles quando diziam que a pertença à associação era agora obri­
gatória por lei (Luedke 2005).
A expansão da Ametramo à província de Cabo Delgado fez-se rodear de
escândalo. Quando conheci o presidente da Ametramo de Cabo Delgado,
Paulo Niuaia, este contou-me que o seu antecessor, um homem chamado
Mutocha, era um «impostor»: «Ele chegou a Pemba, vindo de Nampula,
e estabeleceu-se como curandeiro. Depois foi a Maputo e convenceu o
presidente da Ametramo a nomeá-lo presidente da associação em Cabo

14 Sanders (2001, 175-176) apresenta uma fotografia de um catálogo de artigos para


venda no mercado, de um curandeiro tanzaniano, que é concebido de forma idêntica.

311
Kupilikula

Delgado. Deram-lhe materiais para registar os associados, mas ele guardou


as quotas - 55 000 meticais por pessoa - para si próprio. Quando já tinha
vendido todos os cartões de membro da Ametramo que lhe tinham dado,
começou a vender cópias do seu próprio cartão profissional pelo preço
máximo que conseguia obter. Era um perfeito impostor. Nem sequer co­
nhecia os tipos de curas básicas que todos os curandeiros conhecem. Li­
mitava-se a cobrar o dinheiro e a usá-lo nos negócios que tinha em Nam-
pula».15Relatos como este - reveladores da corrupção e da incompetência
burocrática existentes na associação dos curandeiros - levaram a que os
técnicos de saúde ao serviço do Sistema Nacional de Saúde ou a este as­
sociados em todo o país olhassem para a Ametramo e os seus membros
com grande desconfiança, não obstante a crescente liberalidade para com
o curandeirismo tradicional (Honwana 2002,176-178).
A subsequente chegada da Ametramo ao planalto de Mueda foi aten­
tamente vigiada pelo governo distrital. A presidente-adjunta da Ame­
tramo de Mueda, Terezinha «Mbegweka» António informou-nos que,
em 1998, uma representante da Ametramo de Pemba - uma mulher que
identificou apenas como «Joana» - viera para Mueda com o intuito de
organizar os curandeiros. Joana reuniu primeiramente com o director
distrital da cultura e com outros representantes do governo distrital. De­
pois, começou a registar os curandeiros e a emitir cartões de associado.
Muito depois de Joana ter partido de Mueda, o governo distrital conti­
nuava a estar envolvido na associação. Quando Marcos e eu contactámos
Mbegweka pela primeira vez, para a informarmos, bem como ao presi­
dente da Ametramo de Mueda, João Chombo, que desejávamos entre­
vistar membros da associação no planalto, ela informou-nos que, se que­
ríamos trabalhar com os curandeiros da região, deveríamos visitar
primeiro o «Gabinete da Ametramo» na cidade de Mueda. Seguimos as
suas indicações, unicamente para darmos connosco sentados em frente
da secretária do Sr. Sanyula, director distrital da Cultura. Quando o in­
terrogámos sobre a Ametramo, mostrou-nos o livro de registos da asso­
ciação, que ele mantinha na sua gaveta. Pouco tinha a dizer sobre a asso­
ciação, a não ser que ficara aliviado quando eles tinham assumido a
responsabilidade de registar os curandeiros do distrito. Marcos e eu olhá­
mos um para o outro, confusos, mas não esmiuçámos mais a questão.
«Há uma boa cooperação entre a Ametramo e [a Direcção da] Cultura»,
«explicou-nos» Mbegweka, posteriormente. Na verdade, como viemos a

15 Segundo Niuaia, Mutocha acabou por ser preso por fraude.

312
Um reconheámento lim itado

aperceber-nos, ela e outros membros da Ametramo em Mueda conside­


ravam que Sanyula era o seu patrono (não) oficial, sendo eles legitimados
pela sua supervisão desinteressada. A pretensão do presidente da Ame­
tramo de Mueda, João Chombo, de ser o curandeiro mais poderoso do
planalto de Mueda, resultava simultaneamente dos seus supostos poderes
no reino do invisível e do seu cargo na Ametramo, devidamente «reco­
nhecido» pelo Estado.
Mbegweka teve mais dificuldade em dar uma imagem de boas relações
entre a Ametramo e a Direcção Distrital da Saúde. Inicialmente, disse-
-nos que os membros da Ametramo enviavam os casos que não conse­
guiam trataç para o hospital distrital, ao passo que o hospital encaminhava
os casos que não conseguia resolver para os curandeiros da Ametramo.
Quando a conhecemos melhor, todavia, Mbegweka confessou-nos que
as coisas não se passavam assim; o pessoal hospitalar quase nunca
encaminhava doentes do hospital para os vakulaula. 16 Tentou explicar:
«Eles não sabem, verdadeiramente, que problemas cada um de nós sabe
curar, por isso não podem recomendar nenhum de nós especifica­
mente.»
Mais provavelmente, o pessoal hospitalar de Mueda - composto por
naturais do planalto, moçambicanos de outras partes do país e coope­
rantes de origem internacional - conhecia demasiado bem as práticas
dos curandeiros tradicionais da região e tinha mais dificuldade do que
Edward Green em conciliá-las com o paradigma biomédico em que tinha
sido formado. Vivendo, como vivia, muito próximo dos habitantes do
planalto e dos seus curandeiros tradicionais, o pessoal do hospital sabia
que os vakulaula como Vantila Shingini «vacinavam» pessoas com ácido
de bateria para tratar dores de costas e fazer profilaxia contra os feitiços.
Conhecia, igualmente, os riscos que esta prática colocava em termos de
transmissão de doenças infecciosas. À semelhança dos técnicos de saúde
e responsáveis políticos de outras zonas do país, o pessoal médico de
Mueda ficava espantado com a classificação das doenças feita pela Ame­
tramo (no questionário dirigido aos seus membros) em categorias tão
latas como «doenças de pele» ou «tosses», com a equiparação de catego­
rias biomédicas como a tuberculose ao «azar» e ao «afastamento de feiti­
ceiros», e com as perguntas sobre as capacidades dos curandeiros para
curar a SIDA.

16 Ver também Fiy (2000,140). Pearce (1986,239) menciona que os técnicos de saúde
da Nigéria demonstravam uma relutância semelhante em encaminhar os seus doentes
para os curandeiros tradicionais.

313
Küpilikula

Confiassem ou não pessoalmente nos vakulaula, quando os próprios


funcionários do hospital enfrentavam certo tipo de problemas, como
acontecia com alguns deles, muitos consideravam (ao contrário de Green)
que a kulaula (curandeirismo) e a biomedicina eram «diferentes de formas
fundamentais e importantes». Sempre que a kulaula dependia da supera­
ção de visões rivais do mundo, resistia às tentativas biomédicas para a
conformar à tradução e à validação científicas.17A sua lógica continuava
a ser irreconhecível para aqueles que não a praticavam - aqueles que não
entravam no seu reino invisível. Mesmo que os trabalhadores hospitalares
reconhecessem as formas fundamentalmente semelhantes como os cu­
radores biomédicos e os tradicionais afirmavam visões transcendentes do
mundo, muitos reconheciam também os perigos que a concessão de um
estatuto idêntico a essas pretensões colocava à sua profissão. «Se os cu­
randeiros tradicionais são tão eficazes», perguntou-nos uma enfermeira
do hospital, retoricamente, «porque é que tive de ir estudar para Ma-
puto?»18
Os paladinos da «autoridade tradicional» também fabricaram uma
causa a defender depurada. Quando os reformadores neoliberais classi­
ficaram a autoridade tradicional como uma componente essencial da de­
mocracia moçambicana, passaram por cima de histórias de autoridade
variáveis e complexas. Como vimos na parte II, as instituições da autori­
dade tradicional em Mueda foram repetidamente configuradas e recon­
figuradas no turbilhão de acontecimentos e processos históricos violen­
tos. Os vanang’olo pré-coloniais garantiam a continuidade das suas
matrilinhagens fazendo incursões de pilhagem contra os vizinhos e ven­
dendo jovens como escravos. As autoridades gentílicas da era colonial
agiram como intermediários ao serviço de um regime duro e explorador.
Além disso, estas figuras de autoridade exerciam o poder simultanea­
mente no reino visível e no reino invisível, «alimentando» os seus subor­
dinados ao «comep> os seus rivais. O respeito dos súbditos por estes an­
ciãos estava indissociavelmente ligado ao medo que eles inspiravam.
A Frelimo aboliu a autoridade dos chefes nas suas zonas libertadas,
durante a guerra da independência, e no resto do território, quando a
guerra acabou. Quando os investigadores do Núcleo de Desenvolvi­
mento Administrativo viajaram por Moçambique, em 1995 e 1996, o di-

17 Ver também Meneses (s. d., 13).


18Langford (2002,229) sugere que, quando os praticantes de medicina mágica imitam
as técnicas da medicina profissional, perturbam a divisão que as separa, expondo, em úl­
tima análise, a magia existente na medicina profissional.

314
Um reconhecimento lim itado

rector nacional do NDA, Francisco Machava, disse aos antigos régulos e


a outros participantes nos workshops'. «O governo moçambicano cometeu
um erro grave na extinção da autoridade tradicional logo após a procla­
mação da independência nacional e hoje reconhecendo este erro está
apostado no retomo do poder tradicional» {Notícias 1995b). Para todos
os efeitos, esses encontros constituíram verdadeiros comícios a favor dos
antigos régulos. As autoridades tradicionais convidadas a participar eram
incentivadas a requerer o «reconhecimento» oficial, bem como um man­
dato semelhante ao que era concedido às autoridades gentílicas na época
colonial. Depois do workshop realizado na província de Manica, por
exemplo, o antigo régulo Dandja Viracadjua declarou aos jornalistas:
«Queremo's controlar os impostos como fazíamos no tempo colonial»
(Gauth 1996). Em toda a parte onde se realizavam workshops, os partici­
pantes eram escutados com aprovação quando manifestavam o desejo
de mobilizar as «populações preguiçosas» para o trabalho, como faziam
na época colonial, ou de castigar os membros das suas comunidades que
cometessem crimes ou «desrespeitassem» a autoridade (Fry 1997,15).
Os pedidos de restabelecimento de vários privilégios de que as auto­
ridades gentílicas gozavam na época pré-colonial foram igualmente cor­
roborados. No workshop de Manica, Machava declarou que o NDA estava
a estudar a possibilidade de se oferecerem gratificações aos régulos pelo
trabalho que realizassem {Notícias 1996h); em workshops subsequentes,
os convidados afirmaram que deviam efectivamente ser pagos (Gauth
1996). Os antigos régulos também expressaram a necessidade de bicicletas
- para eles (ou os mensageiros que eles nomeassem) fazerem rondas nos
territórios sob a sua jurisdição.19 Uniformes estatais e bandeiras, bem
como direitos exclusivos, sancionados pelo Estado, a objectos simbólicos,
também figuravam entre os pedidos desses participantes nos workshops,
preocupados em demonstrar aos seus súbditos que representavam pode­
res mais vastos, como acontecia na era colonial {Notícias 1997f).
A maioria dos «régulos» convidados para os workshops saiu destes en­
contros com acrescidas esperanças de receber em breve o que pedira -

ls O governador de Sofala, Felisberto Tomás, chegou a distribuir bicicletas aos «régulos»


no distrito de Chibabava, marcando pontos políticos a nível nacional para o seu partido,
a Frelimo, ao aparecer nas fotografias dos jornais com um dos beneficiados, pai do diri­
gente da Renamo Afonso Dhlakama, o «régulo» Mangunde (Notícias 1996e). O governa­
dor de Manica, Artür Canana, seguiu-lhe o exemplo, oferecendo motorizadas aos «régu­
los» no distrito de Dombe, onde poucos meses antes os pretendentes a régulos tinham
estado envolvidos na resistência ao restabelecimento dás estruturas estatais após as eleições
(Notícias 1997d). Ver também Gauth (1996); Notícias (1996g).

315
Kupilikula

com encorajamento oficial (.Notícias 1995b; 1995d). Muitos aguardaram


que lhes fosse dada «luz verde» sob a forma de novas leis. Os participantes
no workshop de Manica, por exemplo, afirmaram, segundo os jornalistas:
«Pedimos ao Governo para que renove as nossas autoridades a fim de
melhor organizarmos a sociedade.» (.Notícias 1996c)20Outros, porém, en­
tenderam o workshop pura e simplesmente como uma ordem. Em Outu­
bro de 1996 surgiram notícias de que, por toda a província de Inham-
bane, os «régulos» tinham começado a tributar as suas populações
(Chicuque 1996). Os «régulos» de Niassa, segundo uma notícia de jornal,
já se tinham substituído às estruturas estatais locais em actividades que
iam desde a detenção de criminosos até ao julgamento de casos cíveis e
penais. O governador da província de Inhambane, Francisco João Pate-
guana declarou aos jornalistas: «Já encontrei alguns régulos que me pe-
diràm para deportar para São Tomé pessoas que se recusem a pagar os
impostos ou outras taxas.» (.Notícias 1996a)
Em todo o país ocorreram casos de régulos auto-ratificados que,
agindo sem o consentimento nem o conhecimento dos responsáveis lo­
cais, amarravam e espancavam pessoas acusadas de inffacções penais ou
«políticas», ou apenas de «indisciplina» (Notícias 1995d; 1996a; 1996b;
1997b; 1997c; 1997e). Tomando o último workshop do NDA em Inham­
bane como uma licença para retomar as funções que desempenhava na
era colonial, o ex-régulo Machavela, do distrito de Homoíne, começou
a aplicar castigos corporais para «restabelecer a ordem» entre o seu povo,
e um homem quase morreu depois de ter sido alegadamente «torturado»
por sua ordem {Notícias 1997e). Quando o interroguei sobre este inci­
dente, numa entrevista realizada em 1997, Machavela brandiu o manual
do workshop do NDA e disse-me que nele estavam enunciadas as suas
responsabilidades - passadas e futuras.21
Os habitantes de Mueda não assistiram a comportamentos semelhan­
tes por parte dos antigos régulos. Ndyankali foi o único régulo da metade
sul do planalto que sobreviveu do período colonial. Ao contrário de ou­
tras zonas do país, onde as dimensões dos regulados correspondiam às
jurisdições pré-coloniais, em Mueda os sucessores nestes cargos não eram
reconhecidos e (ao contrário do projecto do NDA) considerava-se que
os régulos não eram a personificação de «costumes e crenças há muito
praticados» (Affica-America Institute 1997,14), mas sim uma criação da

20 Ver também Notícias (1996i); Bento (1996); Notícias (19961).


21 Ver relatos de incidentes semelhantes na província de Nampula em Notícias (1996b;
1997c).

316
Um reconhecimento lim itado

administração colonial. Por isso, entendia-se que a ideia de voltar a in­


vestir essas figuras de poder era descabida. Dado que não tinham sido
nomeados sucessores para esses cargos de autoridade, os régulos, en­
quanto tais, já não existiam em Mueda.22
As pessoas da região olhavam para os vabumu e os vanang’olo venekaja
com maior ambivalência. No período pós-colonial, os vabumu também
tinham morrido sem nomear sucessores, apesar de os habitantes do pla­
nalto considerarem que essa instituição era uma «tradição maconde au­
têntica». Contudo, o nang’olo mwene kaja era tão essencial para a vida da
matrilinhagem que, como vimos no capítulo 17, tinham sido nomeados
sucessores para estas figuras ao longo de toda a guerra da independência
e no período socialista da Frelimo. No entanto, como o planalto de
Mueda permaneceu sob o controlo desta durante toda a guerra civil,
essas figuras não foram «reintegradas», como acontecera com os seus ho­
mólogos sob a administração da Renamo nas zonas controladas pelos
rebeldes. Consequentemente, no período seguinte à guerra civil, os va-
nangolo de Mueda afirmaram a sua autoridade de forma mais hesitante
do que as autoridades tradicionais de outras zonas do país, agindo apenas
nos espaços que lhes eram concedidos pelos responsáveis do governo
local.
Em qualquer caso, devido à reafirmação da autoridade tradicional nou­
tras zonas do país, os responsáveis estatais locais manifestaram preocu­
pações justificadas a respeito de se dar poder a pessoas cujo modelo de
autoridade vinha da era colonial, em que poucos direitos eram reconhe­
cidos aos súbditos africanos. Além disso, muitos desses responsáveis ques­
tionavam a competência das autoridades gentílicas para orientar projectos
como a construção e a contratação de pessoal para as escolas e os postos
de saúde das aldeias, ou para facilitar a cooperação local com as ONG
internacionais que trabalhavam nas suas regiões - actividades para as
quais a governação do tempo colonial não lhes dera qualquer experiência.
Filipe Sitoe, administrador do distrito de Homoíne, na província de
Inhambane, partilhou essas preocupações comigo, quando falei com ele
em Julho de 1997: «Como é que as autoridades tradicionais fomentarão
o desenvolvimento das suas regiões se não sabem ler nem escrever?
Como irão restabelecer a ordem num mundo tão diferente da época co­
lonial? Como irão combater ladrões de automóveis armados com armas-
AK-47, traficantes de haxixe, ou mesmo os jovens intratáveis de hoje, se

22 Ver em West (1998) uma análise mais pormenorizada.

317
K u piliku la

não estão armados nem lhes é pennxtido espancar pessoas como faziam
na era colonial? Como serão respeitados se não são temidos - se o go­
verno que os apoia não é temido, como eram os portugueses? Mas nós
já não queremos governar através do medo.»23 Como o administrador
distrital de Mueda, Ambrósio Vicente Bulasi, teria dito, as antigas auto­
ridades gentílicas não estavam preparadas para «governar cientifica­
mente».
Alguns dirigentes da Frelimo em Maputo fizeram-se eco destas preo­
cupações. O comportamento violento das autoridades tradicionais res­
surgidas - muitas vezes motivado e/ou validado por adivinhos, caçadores
de bruxos e/ou curandeiros - desmentiu as afirmações dos reformadores
de que estas instituições podiam ser racionalizadas e incorporadas no
quadro da governação estatal.24 Consequentemente, muitos duvidaram
que a reconstituição da autoridade tradicional fosse compatível com a
«boa governação» e a protecção dos direitos humanos fundamentais25
na nova era democrática, da mesma maneira que os responsáveis da
saúde encaravam com reservas a ideia de colaborarem com os curandei­
ros tradicionais. Apesar de uma crescente retórica oficial de tolerância
para com a «tradição» rural, o Estado continuava a manter as autoridades
«tradicionais» a uma certa distância.
É claro que a política partidária também desempenhou algum papel
nesta questão. Como aqueles que reclamavam a autoridade tradicional,
na maior parte dos sítios, tinham sofrido sob o domínio da Frelimo e
muitos tinham sido «reintegrados» pela Renamo, esta última estava agora

23 Ver também Notícias (1997e).


24 Meneses et al. (2003) descrevem pormenorizadamente casos de bruxaria/feitiçaria,
em várias partes do país, que foram julgados por «régulos» em colaboração com curan­
deiros e/ou adivinhos, na era neoliberal. Ironicamente, o controlo exercido pelas autori­
dades tradicionais no e sobre o reino do invisível era um indicador da sua legitimidade
popular, ao mesmo tempo que lhes retirava legitimidade aos olhos dos decisores políticos.
Sobre este paradoxo noutros lugares, ver Geschiere (1996,308,314).
25 Quando a Frelimo manifestava preocupação de que as autoridades tradicionais pu­
sessem em causa os direitos humanos, os reformadores neoliberais contrapunham, por
vezes, que a própria Frelimo tinha violado os direitos das autoridades tradicionais e dos
seus súbditos após a independência. Com o Mamdani demonstrou, essas afirmações con­
traditórias provêm de um substrato histórico de domínio colonial no qual poucos «cida­
dãos» eram tratados como membros da sociedade civil na posse de direitos cívicos e as
reivindicações da maioria dos «súbditos» só podiam ser expressas na linguagem da cultura
e dos costumes (1996: 18). A herança deste Estado colonial bifurcado é a existência de
discursos concorrentes, modernista e tradicionalista, sobre os direitos (3). Na perspectiva
da Mamdani, regimes radicais com o o da Frelimo substituíram o «despotismo descen­
tralizado» do domínio colonial indirecto por um «despotismo centralizado», ao tentarem
«destribalizar» a política na era pós-colonial (26-27,291).

318
Um reconhecimento lim itado

em vantagem sobre a primeira no que respeitava à obtenção do apoio


político dessas figuras. Mesmo quando os dirigentes da Frelimo se dei­
xaram fascinar pela ideia de subverter esta tendência, na maioria dos sítios
essa tarefa apresentava grandes riscos. Nos locais onde os quadros parti­
dários da Frelimo substituíram as autoridades gentílicas, muitos defen­
sores da autoridade tradicional (incluindo, frequentemente, as antigas
autoridades gentílicas) imaginavam agora que o Estado retiraria os seus
representantes dos níveis de governo em que a autoridade tradicional de­
veria ser restabelecida.26 A colaboração com as autoridades tradicionais
implicava, assim, que se fizessem concessões susceptíveis de enfraquecer
ou marginalizar por completo os quadros mais dedicados e mais influen­
tes da Frelimo a estes níveis.27
Em todo o caso, as expectativas geradas pelos workshops do NDA entre
os que exigiam a autoridade tradicional não foram satisfeitas durante toda
a década de 1990. Não obstante Alfredo Gamito, ministro da Adminis­
tração Estatal ter prometido repetidamente, em meados dessa década,
que o presidente Chissano faria em breve uma declaração pública na
qual definiria o novo papel da autoridade tradicional no Moçambique
do pós-guerra (Diário de Moçambique 1995; 1996; Gauth 1996; Mohomed
1996; Notícias 1996d; 1996h), e embora o próprio Chissano tenha decla­
rado, em 1995, que queria que a autoridade tradicional existisse (Moho­
med 1995b), o presidente foi incapaz de declarar, em qualquer altura pos­
terior, que a autoridade tradicional existia efectivamente e que tinha
poderes para agir de uma forma específica. Pelo contrário, em Dezembro
de 1996, o primeiro-ministro Pascoal Mocumbi declarou publicamente
que «todos aqueles que nos exigem que se faça uma lei sobre a autoridade
tradicional são demagogos que só nos querem criar problemas» (Domingo
1996). Entre as críticas que se avolumavam, o projecto do NDA - que
segundo as previsões iniciais deveria apresentar as suas conclusões e re­
comendações a uma audiência nacional em Maputo no mês de Abril de
1997 - realizou a sua conferência final longe dos holofotes, na capital
provincial relativamente inacessível de Inhambane.
Os defensores do reconhecimento oficial da autoridade tradicional so­
freram outro desaire quando, em 1995, a Lei n.° 3/94 (aprovada semanas
antes das eleições de 1994) foi declarada inconstitucional. Esta lei previa

26 Ver, por exemplo, Notícias (1997a).


27 As tensões entre os quadros da Frelimo a nível local e os pretendentes ao título de
régulo na era neoliberal são mencionadas em Meneses etal. (2003: 370, 381).

319
K u piliku la

a delegação da responsabilidade relativa a várias funções governamentais


em «municípios», que deveriam ser formados em distritos urbanos e/ou
rurais. A lei determinava explicitamente que os governos municipais de­
veriam «auscultar as opiniões e sugestões das autoridades tradicionais re­
conhecidas pelas comunidades como tais» (itálico meu), apesar de não
especificar como se identificariam tais figuras e se dotaria a sua consulta
de eficácia.28 Uma disposição legislativa subsequente, aprovada em 1997,
a Lei n.° 2/97, estabeleceu um quadro para a criação de governos locais
democraticamente eleitos, denominados «autarquias», apenas nas cidades
e vilas grandes, e impunha a delegação de algumas funções essenciais do
governo nestes organismos. Ao abrigo da nova lei, o processo democrá­
tico não chegou às zonas rurais, onde a autoridade tradicional era uma
força política proeminente (António s. d.; Trindade 2003,121).
Em Junho de 2000, o Conselho de Ministros promulgou o Decreto
n.° 15/2000, que impunha a consulta e a cooperação do governo com as
«autoridades comunais» de todo país em relação a uma série de questões
e actividades da governação, nomeadamente a cobrança de impostos, o
registo de eleitores, o policiamento, os processos judiciais, a distribuição
de terras, a fiscalização da educação e da saúde públicas, a protecção do
ambiente, a construção de estradas e outras iniciativas de desenvolvi­
mento (Hanlon 2000; Buur e Kyed 2003). Apesar de o decreto conceder
a essas «autoridades comunais» o direito de usarem uniforme e ostenta­
rem «símbolos da República», não estipulava que o governo fosse obri­
gado a ter em atenção os seus conselhos,29 nem definia exactamente
quem elas eram. Incluídos nas «autoridades comunais» estavam não só
os «líderes tradicionais», mas também os «secretários de aldeia ou de
bairro» (nomeados pelo governo da Frelimo) e «outros líderes legítimos»
(Hanlon 2000; Buur e Kyed 2003; Santos 2003, 83; Meneses etal. 2003,
358). Esses chefes, nos termos do decreto, tinham de ser devidamente
«legitimados como tais pelas respectivas comunidades» (Hanlon 2000);

28 Ver n.° 2 do artigo 8.° da lei. Alfredo Gamito, ministro da Administração Estatal,
chegou até a afirmar em 1995 que, «de facto, o fenómeno municipal e o das autoridades
tradicionais têm a mesma Lei, pois, quer um quer outro são expressão da vontade comu­
nitária da auto-govemação e auto-organização» {Diário de Moçambique 1995). Ver também
Notícias ( m b x , 1995b).
29 N o decreto, prevê-se que os óigãos do governo local «deverão articular com as au­
toridades comunitárias, ascultando opiniões sobre a melhor maneira de mobilizar e or­
ganizar a participação das comunidades locais, na concepção e implementação de pro­
gramas e planos económ icos, sociais e culturais, em prol do desenvolvimento local»
(Hanlon 2000).

320
Um reconhecimento lim itado

o decreto não especificava o que constituía uma «comunidade» nem o


mecanismo para esse «reconhecimento» (Buur e Kyed 2003).
Em última instância, a lei das autarquias (Lei n.° 2/97) e o decreto das
autoridades comunais (Decreto n.° 15/2000) deixavam o estabelecimento
de relações com as autoridades tradicionais ao critério dos responsáveis
estatais locais, nas respectivas jurisdições, de acordo com as suas estraté­
gias e prioridades governativas. Em algumas zonas do país, sobretudo
naquelas onde as relações da Renamo com as autoridades tradicionais
debilitavam a hegemonia da Frelimo, os responsáveis governamentais lo­
cais organizaram cerimónias de reconhecimento formal das autoridades
tradicionais (Buur e Kyed 2003; Institutions for Natural Resource Mana­
gement s. d.), aparentemente com o intuito de retirar à Renamo um
pomo de discórdia política e de posicionar mais essas figuras sob o olhar
do partido no poder.30Alguns até utilizavam as «autoridades comunais»,
devidamente reconhecidas, na cobrança de impostos, concedendo-lhes
um subsídio pelos seus serviços, em conformidade com as disposições
do decreto (Buur e Kyed 2003).
Os responsáveis distritais da região de Mueda adoptaram uma estraté­
gia diferente. Para prevenir reivindicações de autoridade tradicional, os
administradores organizaram, nas diversas aldeias, cerimónias destinadas
a reconhecer os respectivos presidentes como «dirigentes comunais». Estes
presidentes de aldeia transformados em dirigentes comunais relaciona-
vam-se com os vanang3oh venekajat/o\i com os conselhos de anciãos con­
soante achavam conveniente - como muitos vinham fazendo há anos -,
mas a única «tradição» subjacente à sua autoridade era a do Estado da
Frelimo pós-independência.31
Como as instituições de governação popular da era socialista (in­
cluindo os tribunais populares, as assembleias populares e os grupos de
dinamização a nível das aldeias) definharam com a contracção do Estado
pós-socialista, os responsáveis distritais e das aldeias permitiram efectiva-
mente que estes vanangolo se (re)afirmassem nos espaços que o Estado
tinha deixado de ocupar. De vez em quando, a autoridade exercida pelos

30 Meneses etal. (2003, 370,380) relatam vários casos em que o reconhecimento das
autoridades tradicionais pela Frelimo levou a Renamo a condenar essas figuras com o •
«traidoras».
31 Em algumas aldeias, realizaram-se referendos para confirmar a autoridade dos pre­
sidentes de aldeia antes de os tomar dirigentes comunais e, por vezes, os aldeões esco­
lheram outros candidatos. Esses mecanismos democráticos, na verdade, puseram a nu o
facto de estas figuras não serem autoridades tradicionais na acepção exaltada por Lundin
e outros apologistas.

321
Kupilikula

anciãos das aldeias produzia efeitos problemáticos, nomeadamente acu­


sações e julgamentos por feitiçaria, seguidos da aplicação de castigos vio­
lentos, como os sofridos por Sefu Assani Kuva na aldeia de Kilimani (ver
prólogo). Não obstante o facto de os responsáveis distritais «descodifica­
rem», por vezes, tais incidentes como manifestações de «tensões familia­
res» ou da «política de aldeia» num registo simbólico, insistiam frequen­
temente que existiam profundas diferenças entre a lógica da autoridade
tradicional e a «governação científica», como Ambrósio Vicente Bulasi
lhe chamava. Eles - e não as autoridades tradicionais - eram os protec­
tores da democracia e dos direitos humanos (ao contrário do que afir­
mava Lundin).
Embora os responsáveis locais do planalto de Mueda dificilmente pu­
dessem manifestar desdém pela tradição da «autoridade tradicional» no
novo Moçambique democrático, também não podiam reconhecer de
forma plena e incondicional a autoridade das «autoridades tradicionais»
dentro das suas jurisdições. De um modo geral, perceberam que fazê-lo
não só equivaleria a pôr completamente em causa o «Estado de direito»
- e com ele o domínio da Frelimo - no mundo da política quotidiana,
como também levantaria dúvidas, entre os seus eleitores, a respeito das
suas próprias capacidades de «ir mais longe» do que os outros, dominar
os subordinados com o olhar e (re)fazer o mundo que governavam em
conformidade com as suas visões.

322
Capítulo 23

Transcendendo as tradições
«

«Recentemente, tenho sido possuída por espíritos que me chegam da


Tanzânia», disse-nos Mbegweka. «Vivem lá em gratas, numa região cheia
de animais selvagens. É um sítio muito perigoso.»1
Marcos e eu estávamos a passar a noite com Mbegweka no seu recinto,
enquanto ela presidia a uma cerimónia de cura de uma mulher que não
conseguia amamentar o filho recém-nascido. Os seios da mulher estavam
muitíssimo inchados, cada um deles tão grande como a sua cabeça.
Quando a criança mamava, queixara-se ela a Mbegweka, os seios não dei­
tavam leite. Tinha perdido o filho anterior por não ser capaz de o ama­
mentar e receava perder também esta criança.
Mbegweka continuou a falar das gratas distantes de onde vinham os
seus espíritos de cura. «Muitos curandeiros tanzanianos vão lá consultar
esses espíritos, mas eu tive sorte; eles vêm ter comigo, aqui.» Fez uma
pausa, como que para deixar que a sua mente sobrevoasse a paisagem.
«Estou à espera que me autorizem a ir lá um dia destes. Aguardo que os
curandeiros de lá me digam se os espíritos autorizaram a minha visita.»
No dia anterior, Mbegweka tinha pedido a Marcos e a mim que levás­
semos o seu sobrinho connosco, quando saímos da cidade de Mueda para
fazer entrevistas. De acordo com as suas instruções, deixáramos o jovem
pelo caminho, na aldeia de Mpeme, e apanhámo-lo na viagem de regresso.
Nessa altura, ele já tinha organizado um pequeno grupo. Traziam consigo
vários tambores, que iriam tocar no ritual de cura de Mbegweka. Quando
chegámos ao recinto desta, no final da tarde seguinte, encontrámos o local
transformado. Num poste espetado no centro do pátio, esvoaçava uma
bandeira ornamentada com um crescente vermelho e uma estrela por

1 Maia Green escreve sobre os curandeiros pogoros da Tanzânia, que trabalham fre­
quentemente com o auxílio de espíritos que habitam em «charcos de profundas águas
paradas numa parte intacta da floresta» (1994,37).

323
K u piliku la

cima de uma inscrição em árabe. Duas fogueiras ardiam na orla do pátio


e, em redor delas, alguns jovens aqueciam peles de tambor.
Depois de anoitecer, o batuque começou. O ritual assemelhava-se mais
às práticas dos curandeiros dos cultos ngoma 0anzen 1992: van Dijk, Reis
e Spierenbuig2000) ou zar (Boddy 1989,125-165) do que aos métodos usa­
dos por outros curandeiros macondes com quem tínhamos trabalhado.
Mbegweka conduziu a doente para fora da pequena barraca fechada onde
guardava as suas mitela e sentou-a no suporte do pau de bandeira. Depois
veio cumprimentar-nos, explicando que nessa noite iriam dançar para ajudar
a mulher a receber o espírito que a atormentava. Quando a mulher apren­
desse a acolher o seujini, disse-nos Mbegweka, seria capaz de amamentar o
filho. Quando Mbegweka se afastou, Marcos chegou-se a mim e proferiu,
simplesmente, «majini» (pl.). Tal como eu, ele estava surpreendido por
Mbegweka ter utilizado esse termo - corrente entre as populações de língua
swahili da costa tanzaniana, mas estranho aos macondes moçambicanos.2
Mbegweka conduziu, seguidamente, uma dezena de mulheres para
fora de sua casa. Quando se sentaram num círculo em redor do poste,
Mbegweka aproximou-se de nós para continuar a descrever-nos tranqui­
lamente os procedimentos que estava a realizar. Aquelas mulheres, ex­
plicou ela, também eram doentes ao seu cuidado, e cada uma delas estava
a aprender a trabalhar com o espírito jin i que a possuía.
Mbegweka tomou o seu lugar no círculo, enquanto as mulheres co­
meçavam a balançar o corpo ao ritmo dos tambores. Este aumentou pro­
gressivamente, até a parte superior do corpo das mulheres se agitar vio-
lentamente de um lado para o outro. Ao fim de algum tempo, as
mulheres ergueram-se e começaram a andar à volta do poste. Os tambo­
res rufavam a um ritmo frenético, enquanto as mulheres se deslocavam
velozmente à volta da bandeira. Quando abrandavam - o que acontecia
de vez em quando - duas ou três mulheres começavam a emitir grunhi­
dos e a resfolegar, acabando por cair no chão numa histeria entre garga­
lhadas e soluços. Estavam a invocar os seus «espíritos árabes», informou-
-nòs então Mbegweka, perguntando se não os reconhecíamos pelos

2 Janzen (1992) comenta o papel dos espíritos m ajini nas práticas de curandeirismo na
costa da África Oriental. Boddy (1989,143) menciona os espíritos zayran que se apoderam
das mulheres hofriyati como uma categoria de majini. Willis e Chisanga (1999,147, n. 4)
descrevem a apropriação do termo kiswahili m ajini pelo povo lungu da Zâmbia para de­
signar apenas os «espíritos malignos». Gray (1969, 174) conta que, entre os segejus do
norte da costa tanzaniana, não são os m ajini que possuem as pessoas, mas sim uma cate­
goria de espíritos denominados shetani. Estes mesmos shetani inspiraram um estilo espe­
cífico de escultura entre os macondes que emigraram para a Tanzânia (Kingdon 2002;
West e Sharpes 2002).

324
Transcendendo as tradições

alfanjes que as mulheres brandiam.3 Na verdade, as mulheres ameaça­


vam-se umas às outras - bem como aos espectadores - com catanas.
Noite alta, o ritmo dos tambores mudou perceptivelmente. Mbegweka
passou por nós para nos informar que as mulheres estavam a invocar os
seus «espíritos macondes». Quando falava connosco, uma das mulheres
precipitou-se do círculo para uma fogueira que ardia num dos lados do
pátio, fazendo cambalear os tocadores de tambor que se amontoavam em
seu redor e espalhando brasas de um cor de laranja cintilante em todas as
direcções. Puxaram-na para fora da fogueira, mas deixaram-na prostrada
no chão frio, a chorar, durante mais de um quarto de hora, passado o qual
ela se levantou para se reaproximar lentamente da fogueira. A assembleia
- incluindo mais de cinquenta espectadores - rodeou-a enquanto ela pisava
as brasas quentes, apagando-as uma a uma com os pés descalços.
Ao observar a cena que tinha diante mim, receei que o meu espanto
pudesse perturbar de algum modo, invisivelmente, esta manifestação da
«tradição» que as pessoas à minha volta consideravam normal, até roti­
neira. Desviei propositadamente o olhar dos restantes espectadores en­
quanto fiai capaz, mas acabei por lançar uma olhadela pelo canto do olho
às pessoas que me rodeavam. Para minha surpresa, pareciam mais espan­
tadas do que eu. Conversando depois com elas, descobri que muitas es­
tavam assombradíssimas com os «espíritos árabes» que possuíram o grupo
de mulheres de Mbegweka.4 Enquanto observava as mulheres possuídas
pelos majini árabes, a minha mente vagueou pela paisagem do planalto,
atravessou o Rovuma e foi parar algures, numa região indefinida, perigosa
e cheia de grutas da Tanzânia, onde eu nunca estivera mas de onde a cu-
randeira nos disse que os seus majini provinham. Em pleno recinto de
Mbegweka, soube-o em breve, as pessoas de Mueda presentes também
tiveram a sensação de estar numa terra estranha, simultaneamente en­
cantada e assustadora, cheia de espíritos poderosos vindos de lugares que
a maioria nunca vira e de que muitos nunca tinham ouvido falar.5

3 Boddy (1989,284-288) informa que os hofriyati também classificam alguns dos zay-
ran que os possuem como «espíritos árabes». O aparecimento de espíritos «estrangeiros»
em ritos de possessão é comum. Ver, por exemplo, Stoller (1995).
4Janzen (1989,239-240) sugere que na África Central e Austral se tem atribuído cres­
centes poderes aos espíritos de origens distantes.
5 Boddy (1989,165) informa que os espíritos zayran dos hofriyati também são, geral­
mente, «originários de localidades exóticas para a aldeia». Gray (1969,179) anota o facto
de os mganga cantarem «numa língua esotérica, não compreendida pelas pessoas co­
muns», durante os seus rituais de cura. Engelke (2004) descreve a utilização de um shona
«profundo» (arcaico) pelos curandeiros do Zimbabué. Ver também Eliade (1964, 347)
sobre a utilização de linguagem esotérica no curandeirismo.

325
K u piliku la

Mbegweka contou-nos mais tarde que começara por ser possuída pelos
espíritos dos seus próprios antepassados, mas que posteriormente passara
a ser possuída por espíritos que os seus doentes - e até ela própria - con­
sideravam exóticos.6Acontece que, pouco depois de ter começado a tra­
tar os seus próprios doentes, Mbegweka se convertera ao islamismo -
uma religião estranha à maioria dos habitantes do planalto, que apenas
a conhecem das suas viagens à costa de Cabo Delgado (cujas populações
mwani e macua são maioritariamente muçulmanas) ou à Tanzânia (cuja
população maconde é maioritariamente muçulmana). Mbegweka adop-
tou o nome muçulmano de Atija e começou a estudar numa escola islâ­
mica para aprender a ler.7
Enquanto os paladinos da medicina tradicional começavam a elogiar
o «saber indígena» no despontar da era neoliberal, Mbegweka e outros
curandeiros de Mueda desafiavam os conceitos de tradição, localismo e
autoctonia de inúmeras formas. As práticas de cura de muitos vahãaula
com quem trabalhámos dependiam da reformulação da «tradição» ma­
conde e da transgressão das fronteiras geográficas e cosmológicas pelas
quais a «tradição» podia ser definida.8
Asala Kipande vangloriava-se de ter uma «prática internacional».9Con­
fiou-nos orgulhosamente, quando estivemos com ele, que fora à Tanzânia
no ano anterior e que, durante a sua estadia, ingressara numa associação
de curandeiros tanzaniana.10Além disso, Kipande estava a aprender a ler
e a escrever para poder «interpretar» o Corão com os seus doentes. Entre
os macondes de Moçambique, predominantemente cristãos, o islamismo
é algo ao mesmo tempo exótico e que está na moda. «Na sua maioria, os
vakulaula não são muçulmanos», disse-nos Kipande, «mas hoje em dia há
uma tendência crescente para se tomarem muçulmanos.»

6 Quando falava dos espíritos dos seus próprios antepassados, Mbegweka usava o
termo shimaconde mangonde\ quando falava dos outros espíritos que, por vezes, a pos­
suíam, utilizava o termo majini.
7 Anteriormente, apenas frequentara uma das escolas do mato da Frelimo nas zonas
libertadas, durante um ano, no tempo da guerra da independência.
8 Ver também Geschiere (1998,821).
9 Os curandeiros azandes já o faziam no tempo de Evans-Pritchard (1967 [1929], 18).
Last (1992, 398) conte que entre os hausas da Nigéria, os remédios «estrangeiros» têm
mais valor devido à sua «estranheza».
10 Para provar o que dizia, Kipande mostrou-nos, para que o examinássemos, um re­
cibo n o valor de 500 xelins relativo ao pagamento de cotas a uma organização denomi­
nada Tamofa (Associação de Amizade Tanzânia-Moçambique). (Que eu saiba, a Tamofa
não desempenha nenhuma íimção explícita em relação ao curandeirismo tradicional.)

326
Transcendendo as tradições

Mbegweka esperava que passássemos pelo menos uma parte do dia com ela,
quando estávamos na cidade de Mueda, e que a avisássemos de que tínhamos
regressado sãos e salvos após uma viagem. A sua grande autoconfiança permi­
tia-lhe competir graciosamente com os curandeiros seus rivais pelas nossas aten­
ções. No fim do nosso trabalho de investigação, em 1999, para lhe mostrar a
nossa gratidão pelo acolhimento caloroso que sempre nos dispensou, comprá­
mos uma cabra para ser abatida e consumida numa festa organizada no seu re­
cinto. Mbegweka convidou outros membros da Ametramo, bem como os seus
doentes. O facto de ser anfitriã desse evento consolidou o seu prestígio, que já
era considerável, no mundo dos curandeiros de Mueda.

É claro que os próprios paladinos do «saber indígena» afirmam que a


«medicina tradicional» demonstra dinamismo histórico (E. Green 1999,
29). Contudo, os aforismos do tipo «a tradição é dinâmica» não fazem
minimamente justiça às inúmeras formas como estes profissionais refor­
mulam, contínua e profundamente, as instituições e as práticas de cu-

327
K u piliku la

randeirismo, ao mesmo tempo que as reproduzem. Tendo em conta que


os feiticeiros estão «sempre a estudar para melhorarem as suas técnicas,
para progredirem na sua ciência», como nos disse o humu Mandia, os va-
kulaula com quem trabalhámos esforçavam-se por assegurar aos seus
clientes que estavam a melhorar e a progredir ainda mais. De um modo
geral, os vakulaula que os habitantes de Mueda consideravam mais po­
derosos eram precisamente os mais conhecidos pela sua inovação.11
Consideremos o caso de Júlia Nkataje, de Namande. Quando Marcos
e eu entrámos pela primeira vez no seu recinto, Júlia convidou-nos a par­
tilhar com ela a sombra de um alpendre coberto de zinco. Enquanto fa­
lávamos com ela, manteve-se sentada com as costas apoiadas contra um
dos postes de madeira que sustentavam o telhado, com um caderno da
escola primária no colo. Com grande afinco, usava uma esferográfica
azul para desenhar o que a mim me pareciam arabescos, em cada linha
de uma tira de papel rasgada de uma das páginas do caderno. Durante a
conversa, fixava os olhos no seu desenho, nunca olhando para nós. Per­
guntei a mim mesmo se estaria a garatujar para aliviar a ansiedade pro­
vocada pela nossa visita, mas depressa percebi que não se tratava disso.
Em resposta às nossas perguntas, Júlia contou-nos que a sua carreira
como curandeira começara com a sua própria doença, pouco depois da
independência. Sofrera de dores de cabeça durante mais de três anos.
Nesse período, disse-nos ela, tinha o corpo sempre quente. Por fim, um
curandeiro chamado Lapild Madigida, da aldeia de Miteda, viu que a
doença de Júlia era causada por feitiçaria. Não lhe revelou a identidade
do seu atacante mas, mesmo assim, curou-a. Depois de curada, explicou-
-nos ela, ouviu vozes que lhe diziam paxa ir buscar uma caneta e papel.
«As vozes disseram-me para desenhar estas figuras», afirmou, mostrando
uma tira de papel. «Disseram-me para pôr estes escritos numa panela com
água e fervê-los. Depois disseram-me para dar a água a beber à minha mãe.
Ela sofria de dores nas pernas, nessa altura, e a água curou-a.»
Assim começou a carreira de Júlia como nhdaula. Como nos mostrou
mais tarde naquele dia, ela reproduzia exactamente o processo que usara
pela primeira vez, há anos, para curar a mãe. Os doentes vinham ter com
ela a queixar-se de dores de garganta e de cabeça, de gonorreia e VIH, de
impotência e infertilidade. Umas vezes sofriam de «doenças de Deus» e
outras eram vítimas de feitiços. Não importava, assegurou-nos Júlia, ela

11 Atkinson sugere que entre os xamãs wanas também «se dá grande vaJor à busca de
novas e poderosas formas de conhecimento» (1989, 65).

328
Transcendendo as tradições

Júlia Nkataje informou-nos que, todas as noites, lhe diziam em sonhos onde
deveria ir buscar a água onde fervia os seus escritos curativos.

curava-as na mesma. Fosse qual fosse a doença, receitava-lhes três copos


por dia.12
Quando, mais tarde, foi buscar um recipiente de gasolina da British
Petroleum reaproveitado e deitou a água - previamente preparada - em
canecas para os doentes beberem, perguntei a Júlia o que é que escrevia
nas tiras de papel. «Sibila», respondeu-me. Perguntei a mim mesmo se ela
teria ido buscar o termo à palavra portuguesa «sílaba». Em todo o caso,
associei a sua técnica aos relatos que lera sobre curandeiros que utilizavam
páginas de textos sagrados como a Bíblia ou o Corão em rituais curati­
vos. 13 Soube, posteriormente, que Lapild - o homem que curara Júlia -
era muçulmano, e que por vezes rasgava páginas do Corão, fazia rolinhos
com elas e metia-as numa garrafa que dava aos doentes mentais. Lapiki,

12Danfalani (1999,190) refere que os curandeiros eggons da Nigéria administravam, si-


milarmente, «água santa» para «todas as doenças». Ashforth (2000,46) narra a história d e
um curandeiro sul-africano que receitava a mesma mistura de ervas para todos os males.
13 Ver Gray (1969,175); Knipe (1989,92); Peletz (1993,162); Whyte (1988,225; 1997,
165); Harries (2001,420); Rasmussen (2001a, 142); Shaw (2002,253); Stoller (1989,50);
Obbo (1996:190). Cf. Lambek (1993,244), o qual refere que, enquanto a feitiçaria em
Mayotte implica frequentemente a escrita, o mesmo não acontece com a cura dos efeitos
da feitiçaria.

329
K u piliku la

disse-nos Júlia, não sabia ler o Corão. A própria Júlia era analfabeta e,
ainda por cima, não era muçulmana. Mesmo assim, as suas anotações -
escritas da esquerda para a direita e de cima para baixo - faziam lembrar
vagamente a escrita árabe. Questionei-a a este respeito.
«Não é o Corão que eu escrevo», disse ela.
«O que é então?», perguntei. «Tem algum significado?»
«Sim», respondeu ela com convicção. Depois sorriu e acrescentou:
«Mas eu não sei o que significa.»
Quando chamou os doentes reunidos no recinto para que se aproxi­
massem, informou-nos de que, na verdade, era cristã: «A Virgem Maria
apareceu-me quatro vezes», afiançou, a título de confirmação.
Os doentes faziam agora fila junto ao alpendre. Como havia quatro
copos, eram tratados em grupos de quatro. Ajoelhavam em frente dos
copos e pegavam-lhes. Ao beberem, em conjunto, faziam o sinal da cruz
sobre o coração.
Parecia-me absurdo classificarJúlia como uma «curandeira tradicional»
no contexto de Mueda, visto não usar quaisquer mitela. Interroguei-me,
até, por que critérios os habitantes do planalto determinariam que ela
era uma nkulaula legítima e não uma charlatã, pois as suas práticas eram
muito diferentes das de todos os outros vakulaula que eu conhecera.14
Perguntei a Júlia se o seu trabalho já tinha sido criticado por alguém, no­
meadamente pelo governo. Respondeu-me que, muito antes de o go­
verno local ter começado a registar os curandeiros, ela pedira documentos
para legalizar a sua prática. «O administrador distrital respondeu man­
dando dizer às autoridades da aldeia para me protegerem», garantiu-nos.
Por ironia, Júlia era talvez a curandeira mais concorrida do planalto.
O seu recinto era um local muito mais animado do que o mercado no
centro da aldeia. No interior da cerca de bambu que delimitava a sua
propriedade, mais de dez pessoas descansavam em sombras dispersas,
enquanto quase o dobro se atarefava em redor de uma grande casa em
construção. Todas essas pessoas eram suas pacientes, segundo nos infor­
maram. Algumas estavam «internadas», residindo durante dias, semanas
ou mesmo meses a fio no dormitório com dezoito camas contíguo à sua
casa. Outras vinham consultá-la de dia e voltavam para casa à noite. As
que estavam em condições de o fazer trabalhavam para ela em troca dos

14 Langford (2002, 188-230) apresenta uma descrição fascinante das suas tentativas
para discernir como as pessoas com quem trabalhava distinguiam os curandeiros aiurvé-
dicos «genuínos» dos «charlatães». Esta investigadora observa que, quando aplicado, todo
e qualquer critério por si testado se revelou problemático.

330
Transcendendo as tradições

cuidados que ministrava. Em breve terminariam o segundo dormitório,


disse-nos Júlia, apontando para a casa em construção.15 Depois de ins-
peccionar o estabelecimento, Marcos declarou jovialmente que se tratava
de uma «fábrica de curar».
Curandeiros do planalto de Mueda como Asala Kipande, Mbegweka
e Júlia Nkataje, do mesmo modo que obtinham o seu poder dos espaços
de fronteira geográfica e cosmológica que os separavam dos seus Outros
e simultaneamente os ligavam a estes (tomando ilusória a ideia de que
as suas práticas podiam ser fielmente descritas como «indígenas» ou «lo­
cais»), punham igualmente em causa a ideia de que as suas práticas eram
«tradicionais», não só na acepção de «transmitidas de geração em gera­
ção... desde tempos imemoriais» (World Health Organization 1978, 8),
mas também no sentido de «antimodemas». Muitos vakulaula com quem
estivemos obtinham poder do facto de trabalharem nas margens do
mundo «oficial» da «ciência» médica tal como a entendiam, e procura­
vam legalizar-se para garantir a segurança das suas práticas face às auto­
ridades. Muitos cultivavam relações com o Estado e com as instituições
de saúde oficiais, de acordo com a sua convicção de que essas relações
lhes conferiam maior credibilidade junto da sua clientela (E. Green 1996,
24) e/ou aumentavam as suas competências como curandeiros. Exibiam
frequentemente os seus documentos emitidos pelo Estado para os clien­
tes verem, tal como os médicos penduram os diplomas emoldurados nas
paredes dos seus gabinetes.
Alguns vakulaula estudavam e reproduziam as práticas que presencia­
vam em contextos de prática médica oficiais.16Quando pedi a Luís Ava-
limuka que nos contasse casos recentes que tivesse tratado com êxito,
enfiou-se dentro de casa e reapareceu com um caderno escolar na mão.
Pousou-o na mesa à nossa frente, com a contracapa para cima e as letras
impressas às avessas. Abriu o caderno, revelando uma lista de nomes. Era
o seu «registo dos doentes», explicou.17A primeira entrada era de 18 de
Agosto de 1991. Tinha começado a fazer esse registo, segundo nos in­
formou, quando recebeu instruções para o efeito num sonho. Virou as

15 Redmayne (1970,108) encontrou recintos de curandeiro semelhantes, com dormi­


tórios, na Niassalândia colonial.
16 Bongmba (1998, 176) menciona curandeiros winbuns dos Camarões que engarra­
favam e rotulavam as suas substâncias medicinais, com o objectivo de as tomar atractivas
para uma clientela «moderna».
17 Dillon-Malone (1988,1160) também descreve a utilização de livros de registos de
doentes entre os curandeiros da Zâmbia; Maia Green (1997,320-321) menciona registos
escritos mantidos por exterminadores de bruxos no Sul da Tanzânia.

331
K u p ilik u h

páginas. As entradas estavam numeradas até ao número 230, embora no


fim figurassem várias dezenas de entradas sem número. Apontou para as
colunas que indicavam tratamentos continuados e informações dos
doentes sobre o êxito ou insucesso do tratamento. Contei 54 tratamentos
bem sucedidos entre as primeiras 230 entradas - uma taxa de sucesso
aceitável, pensei eu, depois de ajustada ao «incumprimento do trata­
mento pelo doente» e à não resposta ao inquérito.
Asala Kipande também se apresentava como um «curandeiro tradicio­
nal» que praticava «medicina moderna». Tinha-se especializado no trata­
mento de doenças relacionadas com a sexualidade. Contou-nos que mui­
tos dos seus doentes eram homens que sofriam de impotência.
O problema mais comum que lhe aparecia era o de homens que tiveram
relações sexuais com prostitutas. Explicou: «Quando o sangue da mens­
truação entra no pénis de um homem, causa impotência. Normalmente,
isso não acontece. A maioria das mulheres tem vergonha, não mantêm
relações sexuais com os maridos quando estão menstruadas. O problema
é que as prostitutas não têm vergonha. Só se preocupam com o dinheiro
e, por isso, têm relações com um homem quando estão menstruadas e
isso pode deixá-lo impotente. Dizemos de um homem assim que ele não
consegue trepar à árvore njcdcA»
Kipande também tratava doentes do sexo feminino afectadas por
aquilo a que chamava «bloqueio do canal vaginal». Contudo, o seu prin­
cipal motivo de orgulho era a capacidade de tratar doenças que ouvira
os «seus colegas do hospital» denominar como «doenças sexualmente
transmissíveis»: sífilis, gonorreia e SIDA.18
Quando o tema das doenças sexualmente transmissíveis surgiu numa
conversa que com ele tivemos um dia no seu recinto, Kipande entrou
no pequeno barracão coberto que usava para as suas práticas e voltou
com uma caixa de sapatos. Abriu-a e puxou por uma fiada de preserva­
tivos JeitO, a marca então distribuída em todas as zonas rurais de Mo­
çambique por uma O N G que trabalhava na área da educação e da pre­
venção do VTH (Agha, Karlyn e Meekers 2001; Karlyn 2001). Kipande
disse, com toda a naturalidade: «Dou uma coisa destas aos meus doentes
para eles usarem.»
Mais importante ainda - como se desse cumprimento às profecias por
vezes feitas pelos paladinos do saber indígena -, Kipande assegurou-nos
que sabia curar a SIDA. Explicou que conhecia um pequeno tubérculo

18 São comuns os curandeiros da região que afirmam conhecer curas para a SIDA.
Ver, por exemplo, Probst (1999).

332
Transcendendo as tradições

essencial para a cura. Entre o polegar e o primeiro dedo da mão esquerda,


apertou o dedo mindinho da mão direita à altura da falangeta para mos­
trar o ta m a n h o do tubérculo. «Quando se ferve, sai um sumo vermelho»,
revelou-nos. «Mete-se esse sumo num frasco e agita-se bem todos os dias.
As pessoas com SIDA devem beber um pouco desse sumo todos os dias.
Começam a urinar muito - uma urina vermelha e espumosa. A SIDA
sai deles com essa urina.»
Na minha melhor tentativa para imitar um etnobotânico, perguntei a
Kipande se me podia dar um espécime dessa raiz. Respondeu-nos que
não podia revelar o seu segredo, mas garantiu-nos que a sua cura era efi­
caz. 19Já tinha curado três pessoas com SIDA, asseverou-nos. «Uma mu­
lher de Ndonde tinha tido uma análise positiva antes de me vir ver», afir­
mou ele. «Depois do meu tratamento, voltou a fazer análises e, desta vez,
o resultado foi negativo.»20
Entre outros procedimentos, Kipande fazia «vacinas». A sua técnica
era quase idêntica à de Vantila Shingini, descrita no capítulo 22. Pouco
antes de eu deixar Mueda, no fim do meu trabalho de investigação, em
1999, Kipande pediu-me duas coisas: lâminas de barbear e luvas de bor­
racha. Quando lhe perguntei por que precisava delas, respondeu-me que
receava contaminar os doentes ao utilizar repetidamente a mesma lâmina
e também contrair doenças durante o seu trabalho, ao ficar com sangue
dos doentes nas mãos. Kipande tinha sido «tocado» pelos educadores de
saúde pública.21
Eu sabia, porém, que no mercado era possível comprar lâminas de
barbear baratas. Se ele não tinha os recursos necessários para comprar lâ­
minas suficientes para usar uma nova em cada doente, poderia facilmente
pedir a cada pessoa que o vinha consultar para ser «vacinada» que trou­
xesse a sua própria lâmina de barbear; eu sabia que Marcos assim fizera
quando foi «vacinado».22 Com o tempo, percebi que Kipande queria lâ­

19Ver também Forster (1998, 538).


20 Na altura da nossa conversa, Moçambique ainda não dispunha de equipamentos
para fazer análises de VIH, nem sequer em Maputo. O s poucos moçambicanos que que­
riam fazer análises e tinham dinheiro para as pagar deslocavam-se normalmente à África
do Sul.
21 Segundo Tracy Ledke (comunicação pessoal, 17 de Abril de 2002), os membros da
Ametramo da província de Tete participavam em workshops de sensibilização sobre a
SIDA patrocinados por organizações não governamentais, que os alertavam para os po­
tenciais riscos da «vacinação» com lâminas de barbear.
22 Marcos tomou esta precaução depois de trabalhar, durante algum tempo, como ins­
trutor público numa campanha de sensibilização para os riscos do VIH, patrocinada por
organizações não governamentais.

333
K u piliku la

minas de melhor qualidade do que aquelas que podia comprar no mer­


cado local. Esses «instrumentos» de qualidade distingui-lo-iam dos vàku-
laula seus concorrentes. Analogamente, as luvas de borracha eram uma
componente de um «uniforme» mais oficial que aumentaria a sua credi­
bilidade junto dos potenciais clientes.23 Sendo já um dos mais respeitados
e temidos vàkulaula de Mueda, Kipande desejava consolidar a sua prática
modernizando a sua identidade profissional para «.médico tradicional». Os
médicos, como ele e os seus doentes sabiam, usavam luvas.24
Tal como Mbegweka, Asala Kipande era membro da delegação local
da Ametramo em Mueda. À semelhança de Luís Avalimuka e Júlia Nka-
taje, Asala Kipande e Mbegweka eram dos curandeiros tradicionais mais
respeitados e comercialmente bem sucedidos do planalto. Nenhum des­
tes vakulaula estava ociosamente sentado à espera que os investigadores
do Ministério da Saúde ou de outro organismo qualquer viessem validar
os seus conhecimentos e recolher as suas substâncias e técnicas medici­
nais para os repertórios da ciência médica. Em vez disso, exploravam as
margens do seu mundo, ao tentar expandir os seus próprios conhecimen­
tos, indiferentes aos limites que os outros colocavam em redor da «me­
dicina tradicional» e também da «medicina moderna». Na verdade, o seu
poder como curandeiros dependia da transgressão destes limites. Através
das suas transgressões, estes vakulaula redefiniram as fronteiras que divi­
diam o local do global, o tradicional do moderno, o indígena do exótico
e a feitiçaria da ciência, situando-se como porteiros entre um mundo co­
nhecido dos seus clientes - e dos seus concorrentes (incluindo os profis­
sionais biomédicos e os responsáveis da saúde) - e um mundo desco­
nhecido que ficava do outro lado. À medida que obtinham poder através

23 Ver em Langford (2002,188-230) um comentário interessante sobre o m odo como


um curandeiro aiurvédico com quem trabalhou aumentava a sua credibilidade junto dos
clientes através daquilo a que ela chama exposição fetichista de objectos e procedimentos
associados à ciência médica. Ver também Rekdal (1999,471). Langford faz notar, sagaz­
mente, que os técnicos biomédicos às vezes exibem esses objectos de formas que pode­
riam ser descritas de m odo semelhante.
24 Recebi formação como paramédico no âmbito da minha preparação para a inves­
tigação de campo. N o estojo de primeiros socorros que levei comigo para o terreno, tinha
vários pares de luvas. Quando Kipande fez o seu pedido, prometi a mim mesmo que lhe
daria um par antes de partir. Ao longo dos dias seguintes, imaginei Kipande a utilizar e
reutilizar as luvas - como vira os técnicos de saúde do hospital de Mueda íàzer - virando-
-as do avesso quando ficavam «demasiado sujas». Também imaginei com o essas luvas
poderiam ajudar Kipande a assegurar aos doentes que as suas «vacinas» eram esterilizadas
e seguras, e perguntei a mim mesmo se queria contribuir para dar essa impressão. Quando
voltei a vê-lo, Kipande esquecera os pedidos que me tinha feito e eu decidi não lhos lem­
brar.

334
Transcendendo as tradições

da mediação destes interstícios por eles inventados, afirmavam a sua ca­


pacidade de transcender {kupilikuld) os próprios reformadores que, com
paternalismo liberalizador e liberalismo paternalista, procuraram con­
vertê-los em «curandeiros tradicionais».25

25 Ver também Greene (1998,653), o qual sugere que, enquanto os técnicos biomédi-
cos tentavam «cientizar» os xamãs aguarunas, estes xamãs «xamanizaram», na verdade, a
ciência biomédica.

335
Capítulo 24

Saberes incertos
»

O reflexo das labaredas nocturnas bailava-nos no rosto como uma tor­


rente gorgolejante. De vez em quando, Felista, à minha direita, soltava
lacónicos protestos sobre o tempo que Tissa estava a demorar dentro da
barraca do curandeiro. Quando eu proferia algum comentário sobre as
entrevistas que nós os três fizéramos nesse dia, ou sobre o trabalho que
tínhamos de fazer no dia seguinte, em lugar de palavras Felista limitava-
-se a soltar pequenos suspiros audíveis, como costumava fazer quando
estava aborrecida ou irritada. Ela não tinha o direito de estar irritada com
Tissa, pensei eu, pois mesmo sendo esta visita ao nkulaula destinada a
tratar da saúde dele e não da nossa investigação, ela acedera, tal como
eu, a acompanhá-lo, por não haver mais nada para fazer em Matambalale
entre a refeição da noite e a ida para a cama.
Eusébio estava sentado à minha esquerda. Mais tarde, quando saímos
do recinto do curandeiro, uma Felista reanimada perguntaria a Tissa e a
mim, com assombro e repulsa: «Viram a cara dele?!» Pondo a mão a meio
caminho entre o nariz e o ouvido direito, exclamou: «A boca dele che­
gava até aqui!» Essa distorção facial, como muitas vezes me tinham dito,
era consequência de uma doença causada por feitiço.1 Em vez de con­
fessar a Felista que não tinha reparado no sintoma de Eusébio, respondi
também eu à sua pergunta com um pequeno suspiro audível. Eusébio
dera-me outros motivos de reflexão.
Quando estávamos apinhados à volta da fogueira, o silêncio de Felista
produzira um efeito glacial em Eusébio, que ficou ali sentado, abatido e
silencioso. Quando Felista se ergueu e se afastou da fogueira por mo­
mentos, Eusébio endireitou-se. A sua atitude transmitia um sentimento

1 Stoller e Ollces (1987,118) descrevem sinais de doença semelhantes entre os songhay


do Níger.

337
K u piliku la

de urgência. Saiu da obscuridade quando se inclinou para mais perto de


mim. Hesitou. Parecia profundamente confuso. O seu hálito tresandava
a lipa (aguardente de caju). Finalmente, olhou-me nos olhos. Por mo­
mentos, pareceu ganhar alguma lucidez.
«Andiliki», disse ele, e depois acrescentou em português: «Tenho uma
pergunta para te fazer.»
Eusébio Matias Mandumbwe era «irmão» de Marcos (o pai de Eusé-
bio, Matias, e o pai de Marcos, Agostinho, eram ambos filhos de Man­
dumbwe). Onde quer que fôssemos no planalto de Mueda, conduzindo
a nossa investigação, Eusébio estava lá. Encontrávamo-lo à nossa espera
na cidade de Mueda, onde muitos dos membros mais bem sucedidos da
sua família residiam. Também o encontrámos em Matambalale, onde vi­
viam alguns familiares de seu pai, e em Namande, onde a sua avó ma­
terna morava. Eusébio, porém, podia aparecer em qualquer sítio.
Quando nos íamos encontrar com os vakulaula nas aldeias, por todo o
planalto, podíamos dar com Eusébio em qualquer dos seus recintos. Às
vezes perguntava-me se Eusébio vinha ver os curandeiros ou se vinha
ver-me a mim. Parecia saber onde íamos antes de eu próprio saber e che­
gava lá antes de nós, apesar de termos um veículo à nossa disposição e
ele não - uma disparidade para a qual Eusébio me chamava frequente­
mente a atenção.
Marcos fazia o melhor que podia para impedir Eusébio de se aproxi­
mar de mim. À semelhança da maioria dos «amigos» e familiares de Eu­
sébio, Marcos descrevia-o como «um homem sem programa». Se Eusébio
tinha algum «programa», quando estava perto de Marcos e de mim esse
programa consistia, normalmente, em pedir a Marcos para me pedir qual­
quer coisa - fosse um artigo do meu equipamento de pesquisa no ter­
reno, uma boleia de um sítio para outro, ou alguns meticaispaia comprar
lipa. Considerando-o às vezes um estorvo, Marcos enxotava Eusébio com
a palavra utilizada para enxotar um cão ou um pato da zona da cozinha:
«Sücal»
O próprio Marcos reconhecia, porém, que Eusébio era um jovem
muito perturbado. Eusébio descreveu-me, um dia, as suas doenças físicas
utilizando um vocabulário médico que incluía «ataques apoplécticos» e
«insónias». Perguntei a mim mesmo se ele já teria procurado tratamento
num hospital, talvez em Pemba ou em Nampula. Sabíamos que fora tra­
tado por inúmeros curandeiros do planalto, muitos dos quais interpreta­
vam a sua doença como obra de espíritos perturbadores. Em todo o caso,
Eusébio era um doente incorrigível. Todos os vakulaula lhe diziam que
se devia abster de beber álcool e de fumar suruma (cannabis) enquanto

338
Saberes incertos

estivesse a ser tratado por eles, mas Eusébio fugia sempre dos recintos
dos seus curandeiros, para regressar bêbado ou pedrado.
Era esse o estado de Eusébio quando me fez a sua pergunta, na opor­
tunidade momentânea que lhe fora facultada pela saída de Felista de
junto da reconfortante fogueira que ardia no recinto do curandeiro. Pou­
sou-me a mão no ombro e soltou a primeira palavra.
«Russo», disse ele.
Balançou ligeiramente a cabeça, fazendo uma pausa, para me permitir
apreciar a gravidade do que me ia perguntar. Continuou então, medindo
lentamente as palavras.
«É uma .ciência?», perguntou, deixando a sua voz em suspenso por
instantes. «Ou é uma droga?»

O antropólogo médico Byron Good (1994, 15-17) argumentou - na


esteira de Needham (1972) e de Smith (1977) - que a ciência ocidental
demonstra uma arrogância infundada ao supor que «nós» (pensadores
científicos) sabemos, ao passo que «eles» (pensadores não científicos) ape­
nas acreditam. Na perspectiva científica, diz-nos ele, «o conhecimento
exige certeza e correcção; a crença implica incerteza, erro ou ambas as
coisas».2 Good adverte que o conceito de crença, tão facilmente atribuído
aos outros, é um conceito caracteristicamente ocidental, que acabou por
conotar a convicção relativamente a uma dada ideia ou princípio no âm­
bito do contexto moderno da incerteza, e não obstante esta última.
Good alega que as pessoas que entendem o seu mundo em termos de
feiticeiros e de espíritos não «acreditam» nestas entidades mas, em vez
disso, «sabem» que elas são reais e verdadeiras. Em determinados con­
textos etnográficos, «qualquer pessoa sensata acredita na sua existência,
essa questão nem sequer se coloca» (Good 1994,15). Jean-Pierre Olivier
de Sardan chegou à mesma conclusão em relação às categorias «banais»
de feitiçaria, espíritos, estados de transe e sortilégios mágicos na África
contemporânea: «todos eles são conceitos familiares relativamente aos
quais a ‘descrença está suspensa5 e que não necessitam dejustificação. Não

2 Good diz-nos: «O exemplo preferido de [Wilfred] Smith da justaposição entre crença


e conhecimento é uma entrada no dicionário da Random House que definia [nc] ‘crença’
com o ‘uma opinião ou convicção’ e, de imediato, ilustra esta definição com a ‘crença de
que a Terra ép la n a i Na verdade, é praticamente inaceitável dizer-se que os membros de
uma sociedade ‘acreditam’ que a Terra é redonda; se fizer parte da sua visão do mundo,
trata-se de conhecimento e não de crença!» (1994, 17). (Ver também Lewis 1994, 565-
-566.)

339
K u piliku la

se trata de acreditar ou não acreditar: não é uma questão de crença mas,


de facto, não pertence ao domínio do fantástico, mas sim à vida quoti­
diana.» (1992, 11)
De acordo com esta argumentação, um número crescente de antro­
pólogos optou, na última década, por descrever essas formações discur­
sivas não como «crença» mas sim como «conhecimento» (por exemplo,
Lambek 1993; Humphrey e O non 1996; Stephen 1996; Kapferer 1997).
Além disso, muitos têm defendido que a ciência ocidental tem muito a
ganhar se reconhecer o valor de outras formas de conhecimento como
estas. O etnobotânico Marlc Ploddn observa: «A medicina ocidental não
tem todas as respostas - onde está a cura para a constipação comum ou
para a SIDA?» (1993, 237). Na sua perspectiva, os xamãs e curandeiros
espalhados por todo o mundo constituem bibliotecas de «sabedoria hu­
mana acumulada» (236) sobre «um mundo que, para o cientista ociden­
tal, supostamente não existe» (266).3
A maioria dos vakulaula de Mueda com quem trabalhámos, bem
como as pessoas que eles tratavam, teriam concordado que - tal como
os seus «colegas» biomédicos (para utilizar a expressão de Asala Kipande)
- eram detentores de conhecimento e não meros crentes. Na verdade, a
maioria dos habitantes do planalto considerava, de um modo geral, que
a kulaula era uma questão de conhecimento. Quando se referiam eufemís­
ticamente aos feiticeiros, diziam «andimanya shinu shoeshoe»(«ele/ela sabe
alguma coisa»). Para se relacionarem com os poderes ocultos que mode­
lavam o seu mundo, os adivinhos, curandeiros, médiuns, exorcistas e
mestres de rituais preventivos e protectores do planalto de Mueda tam­
bém tinham de «saber alguma coisa».4
O conhecimento dos habitantes de Mueda sobre o mundo da feitiçaria
e da cura contra a feitiçaria estava, todavia, saturado de ambivalência,
ambiguidade e dúvida. Enquanto os reformadores e os técnicos de de­
senvolvimento têm procurado classificar o que as pessoas do planalto e
os seus vamitela sabem como um conjunto de Conhecimentos indígenas
a recolher, testar e integrar na colectânea universal do conhecimento cien­
tífico, estes conservaram um conjunto de conhecimentos sobre a uwavi
e o seu tratamento que resiste à racionalização científica e à instrumen-

3 Ver também Rouch (1989).


4 Willis e Chisanga (1999,17) dizem-nos que o termo habitualmente usado na África
Austral para curandeiro - ng’anga - significa literalmente «conhecedor». Ver também Lévi-
-Strauss (1963, 179-180), que informa que os wintus classificam as relações xamânicas
com o sobrenatural como formas de «conhecimento».

340
Saberes incertos

talização burocrática - um conjunto de conhecimentos manifestamente


difíceis de manejar pelos próprios vamitela de Mueda.
Nas conversas em que participei, os habitantes do planalto de Mueda
reflectiam frequentemente sobre a relação entre feitiçaria e ciência (dando
as suas próprias inflexões àquilo que Walter Mignolo [2000] denominou
«pensamento de fronteira»), concluindo às vezes que eram a mesma
coisa.5Em diversas ocasiões, o infortunado Eusébio Matias Mandumbwe
partilhou comigo profundas reflexões sobre este tema.
Estávamos um dia sentados sob o beiral da casa de um parente seu.
Marcos e eu víramos Eusébio na noite anterior, no recinto de Mbegweka.
Eusébio andara de um lado para o outro, juntando-se ao círculo de dan­
çarinas possuídas pelos espíritos árabes e de catanas em punho, numa
suave letargia. Imitara as médiuns, movendo-se com elas e dançando os
mesmos passos, ainda que de forma algo inepta. De vez em quando, à
semelhança das dançarinas que recebiam os espíritos, Eusébio caía no
chão. Tinha, todavia, o cuidado de tombar sempre na esteira de junco
colocada junto ao pau de bandeira - na qual estava também sentada a
principal doente da noite - para evitar sujar a roupa. Embora a sua dança
entre as mulheres suscitasse alguma desaprovação, as suas quedas calcu­
ladas provocavam grandes gargalhadas nos espectadores. «Aquelejin i tem
medo de se sujar», comentara um dos presentes por entre as gargalhadas.
Quando partíramos, nessa noite, Eusébio levantara-se rapidamente do
chão, saindo do seu estado de «possessão» para pedir, educadamente, se
eu lhe podia dar um cigarro.
Marcos rira estridentemente de Eusébio à noite, mas de manhã re­
preendeu o irmão pelo seu comportamento embaraçoso. «Como é que
te hás-de curar dessa doença, se não fazes o que a Mbegweka te diz!», ra­
lhou ele. «Tu sabes que não podes beber enquanto estás a ser tratado.
Isso estraga tudo!»
Eusébio ficou sentado sem se mexer, calado.
«Se vais desobedecer às regras da curandeira e beber lipa, pelo menos
afasta-te do recinto dela enquanto estás bêbado!»
Assim que Marcos se afastou, Eusébio virou-se para mim.
«Podes dar-me uma boleia até Pemba, quando forem?», perguntou.
Fiquei pasmado com a rapidez com que Eusébio se recompôs da des;
compostura de Marcos. «Pemba?», perguntei. «O que vais fazer a
Pemba?»

5 Cf. Humphrey e O non (1996,329).

341
K u piliku la

«João Chombo e eu temos projectos lá.»


«Que tipo de projectos?», perguntei, duvidando que João Chombo, o
presidente da Ametramo de Mueda, se metesse em qualquer empreendi­
mento com Eusébio.
Eusébio olhou em volta para se certificar de que ninguém estava a
ouvir: «Vamos comprar um veículo.»
Eu sabia que Eusébio dependia da benevolência dos outros para se
vestir e comer. Sabia que não tinha dinheiro nenhum, quanto mais para
comprar um veículo. «O que tencionam fazer com um veículo?», per­
guntei-lhe.
Ele ficou mais confiante. «Pode fazer-se todo o tipo de coisas para ga­
nhar dinheiro quando se tem transporte. Há peixe no Lago Nguri que se
pode vender no planalto. Há castanha de caju do planalto que se pode
vender na costa. Há madeira. Há turismo.»
A ideia de Eusébio não era de modo algum invulgar entre os jovens
do norte de Cabo Delgado. À sua volta, viam actividade económica por
todo o lado: coisas a circular de um lado para o outro, dinheiro a ser
ganho. Os que tinham êxito no comércio eram ricos. E todos eles tinham
«transporte». Era essa a chave, concluíra Eusébio.
«Moçambique está cheio de riquezas», garantiu-me. «Se tivermos trans­
porte, há dinheiro para ganhar.»
. Pensei nas muitas conversas que tivera com Joseph Amissy, um con­
sultor do Burundi ao serviço de uma O N G francesa em Pemba, que ten­
tara ajudar os candidatos a empresários a planearem pequenas empresas.
«A mina de quase todas as empresas que faliram nesta província foi a ob­
sessão com os veículos», dissera-me Amissy um dia. «A maioria das boas
ideias empresariais corre mal a partir do momento em que as pessoas
tentam meter um veículo no orçamento. O problema é que, para muita
gente, possuir um veículo é a razão para fazer negócio!»
Disse então a Eusébio o que Joseph me tinha dito: «Os veículos não
dão dinheiro. Não aqui. Não nestas estradas. Só manter um veículo a
funcionar custa uma fortuna. O preço do combustível é demasiado ele­
vado. O custo da manutenção é demasiado alto. Os veículos não dão di­
nheiro, Eusébio. Os veículos comem dinheiro.»
Olhou-me como se eu o estivesse a pôr à prova. Decidiu pôr-me à prova,
por seu turno: «Então, porque é que todos os grandes chefes os têm?»
«Eles já eram ricos e poderosos antes de terem veículos. Muitos deles
usam as suas ligações e influência políticas para os conseguirem. Muitos
nunca pagam o verdadeiro custo de um veículo, ou da sua manutenção.
Uma coisa é certa: os veículos não os enriqueceram.»

342
Saberes incertos

«Mas ganham dinheiro com eles», insistiu Eusébio.


«Não me parece», respondi. «Movimentam muita coisa por aí e passa-
-lhes muito dinheiro pelas mãos. Mas mesmos os grandes chefes parecem
ter dificuldades em manter os seus veículos na estrada. Olha à tua volta.
Os tipos deixam carcaças de carros por todo o lado.»
Ficámos calados durante vários minutos.
Finalmente, Eusébio afirmou: «Tenho ideias na minha cabeça.» Man­
tinha os olhos fitos no chão. Momentos depois, acrescentou: «Mas como
é que se transformam as ideias em invenções?»
Falava com o mesmo misto de esperança e frustração com que falara
anos antes, quando me perguntou se o russo era uma ciência ou uma
droga. Subitamente, compreendi a pergunta que ele me tinha feito na­
quela noite. Eusébio crescera num mundo em que os técnicos soviéticos
e da Europa Oriental eram os guardiães do projecto moçambicano de
modernização socialista. No discurso público moçambicano, a «tradição
africana» era desfavoravelmente comparada com o «socialismo científico»
ao estilo soviético. Depois, pouco antes da minha chegada, os mssos (e
cubanos e romenos e norte-coreanos, etc.) que aconselhavam os moçam­
bicanos nos hospitais, nas fábricas e nas herdades estatais, foram substi­
tuídos por trabalhadores da ajuda ao desenvolvimento vindos de países
como a Noruega, a Itália, o Japão e os Estados Unidos. Estes recém-che­
gados patrocinavam uma nova «ciência», chamada «desenvolvimento»
(para usar estes termos como Eusébio e outros habitantes do planalto fa­
ziam), condenando os antecessores pela sua má gestão, a sua ineficiência
e a sua ignorância - desfazendo (kupilikula) o socialismo com a sua visão
neoliberal transcendente do mundo. Aos olhos de pessoas como Eusébio,
o «desenvolvimento» e a «modernização socialista» assemelhavam-se em
muitos aspectos: grandes projectos, grandes máquinas, grandes orçamen­
tos e grandes chefes.6Por isso, seria esta nova «ciência» diferente? Os rus­
sos tinham sido realmente os detentores da «ciência» ou, quando vistos
da perspectiva de uma «ciência» americana «superion», eram também um
povo «atrasado»? O saber e o poder mssos estavam mais próximos do
saber do feiticeiro e/ou do contrafeiticeiro - assente, como este estava,
em «drogas» {müeláfí Ou eram todas estas formas de saber e de poder es­
sencialmente as mesmas? Eusébio continuava na dúvida.

6 Ferguson (1995) sugere que o «socialismo científico» foi substituído, em muitos


países africanos, pelo «capitalismo científico» - um projecto conduzido pelos doadores
que parece idêntico em muitos aspectos, não obstante a substituição das prescrições téc­
nicas por considerações morais.

343
K u piliku la

No seu ensaio clássico «O pensamento tradicional africano e a ciência


ocidental», Robin Horton (1970 [1967]) sugere que, em muitos aspectos,
as crenças na bruxaria são para os africanos o mesmo que a ciência é para
os ocidentais. A bruxaria, afirma ele, constitui um paradigma explicativo
através do qual o desconhecido é «modelado», os acontecimentos são
inseridos em contextos causais amplos e os fenómenos complexos e de­
sordenados são simplificados e ordenados.7 Com base nas ideias de Hor­
ton poder-se-ia concluir que não só as pessoas do planalto de Mueda mo­
delavam as incógnitas do seu mundo através do discurso da uwavi, mas
também que o poder que atribuíam aos feiticeiros e contrafeiticeiros mais
não era do que a capacidade de moldar a realidade a partir dos seus mo­
delos - nas palavras de Eusébio, de transformar as suas ideias em inven­
ções.
Contudo, os próprios habitantes do planalto permaneciam indecisos
quanto à questão de saber se a feitiçaria e a ciência funcionavam ou não
da mesma maneira, se essas visões do mundo eram ou não igualmente
poderosas e se o seu poder era ou não igualmente produtivo. Aqueles
que recorriam aos vakulaula para os ajudarem contra a doença e o infor­
túnio perguntavam-se incessantemente que tipo de saber possuíam esses
vakulaula e como é que esse saber se ligava a outras formas de conheci­
mento que circulavam no seu m undo.8
Na aldeia de Matambalale, Mariano Makwava disse-me, um dia:
«Vocês, americanos, têm a vossa ciência. Têm a vossa uwavi. Sabem fazer
aviões e outras coisas incríveis. Nós, macondes, também sabemos fazer
aviões - aviões que nem sequer necessitam de água nem de gasolina
[Makwaka referia-se aos aviões feitos pelos feiticeiros e utilizados para
realizar ataques de feitiçaria].9Mas temos de aprender a usar essas coisas
para nos desenvolvermos e não para nos destruirmos uns aos outros.
Ainda não aprendemos isso».10 A frase de Makwaka - «vocês... têm a

7 Horton (1993, 320-327) defende que paradigmas com o a feitiçaria são utilizados
com o «teorias secundárias» para «explicar, prever e controlar» o mundo, quando as «teo­
rias primárias» não conseguiram fazê-lo.
8 Ver também Pigg (1996,161); Langford (2002,200).
9 Van Dijk (2001,106) informa-nos que, alegadamente, os bruxos do Malawi fazem
aviões com esqueletos humanos e usam sangue humano como combustível. Pelo con­
trário, Gottlieb (1992,127,132) diz-nos que os benges da Costa do Marfim consideram
que as máquinas fotográficas, as máquinas de escrever, os automóveis e os aviões são in­
venções dos bruxos ocidentais: «Quem, se não um bruxo, poderia inventar [tais coisas]?»
10 Com esta afirmação, Makwava alterou o sentido das palavras escritas por Charles
Taylor: «Aconteça o que acontecer / N ós temos / A arma Gatling / E eles não têm.» (ci­
tado em Pels 1998,203)

344
Saberes incertos

vossa ciência... a vossa uwavi» - revelava a sua indecisão sobre se a ciên­


cia americana era efectivamente uwavi americana e se a uwavi maconde
era no essencial comparável à primeira, à segunda, ou a ambas.11
Embora os habitantes do planalto nos afirmassem, frequentemente,
que não entendiam as «ciências» estrangeiras a que estavam expostos,
presumiam, de um modo geral, que elas «faziam sentido» para aqueles
que as compreendiam e lamentavam o facto de a uwavi, pelo contrário,
«não fazer sentido». Através da prática da uwavi destruíam-se vidas, mas
para que fins?112A uwavi, diziam, escapava inevitavelmente às intenções
e prejudicava os interesses, mesmo daqueles que a praticavam. A uwavi,
enquanto forma de conhecimento, era demasiado perigosa e difícil de
manejar para ser utilizada como instrum ento.13 Sendo a uwavi um
campo de batalha onde os adversários competiam e se desafiavam uns
aos outros, os feiticeiros sofriam tantas perdas no reino invisível quantas
vitórias obtinham. As presas que os feiticeiros procuravam, incluindo
carne humana, estavam quase todas protegidas por dispositivos contra-
feitiço que feriam os eventuais atacantes. A feitiçaria, tal como a maioria
da gente de Mueda a entendia, era um empreendimento de alto risco,
que acabava por destruir aqueles que a praticavam.14
Mais ainda, a uwavi era uma forma de conhecimento que a grande
maioria dos indivíduos apenas suspeitava que os outros possuíam, e que
os seus supostos possuidores negavam invariavelmente deter. Enquanto os
feiticeiros eram eufemisticamente identificados pela expressão «anâimany&>
(ele/ela sabe), a expressão «nindimanya» (eu sei) raramente era proferida
no contexto do discurso da uwavi, nem sequer pelos que asseguravam
ser especialistas em contrafeitiçaria. A maioria dos habitantes do planalto
sabia que a shikupi era a «chave» com que feiticeiros e contrafeiticeiros

11 Worsley (1968,240) sugere que perguntas semelhantes inspiravam os participantes


nos cultos da «carga» melanésios, que viam os europeus na posse desses bens fantásticos,
mas nunca os viam trabalhar para obter tais riquezas. Os habitantes do planalto de Mueda
interrogavam-se se o hidenga (trabalho) realizado pelos estrangeiros na sua região seria,
de facto, uw avi w a hidenga (feitiçaria de construção).
12Ashforth (1998a, 57-58) alega que os africanos tendem a considerar que os poderes
de uma «ciência africana» são relativamente mais eficazes para fins destrutivos do que
para fins construtivos - o oposto do que vêem na ciência ocidental. Ver também Shaw
(1997, 860); Sanders (1999,126); Bond (2001,142).
13 Disseram-me, por vezes, que os feiticeiros mais poderosos eram aqueles que prati­
cavam a feitiçaria sob a forma de travessuras - pregando partidas às suas vítimas, como
trocar-lhes a camisa e as calças que tinham vestidas enquanto dormiam. Significativa­
mente, esses feiticeiros demonstravam o seu desinteresse em utilizar a feitiçaria para fins
compreensíveis.
14 Ver também Taussig (1997, 83).

345
K u piliku la

entravam no reino invisível, mas confessava também desconhecer o que


era a shikupi ou como funcionava.15Afinal, o que as pessoas comuns sa­
biam era que outraspessoas sabiam uwavi. 16
Vêm-me à memória as palavras que me foram ditas por um amigo da
faculdade, após um semestre particularmente mal sucedido: «O que
aprendi na faculdade é que tudo na vida se resume à física e à economia,
e que não sei népia de uma nem de outra.» Eusébio costumava proferir
lamentos semelhantes. Teria concordado com a máxima de Bacon: saber
é poder. Exprimia muitas vezes frustração por não possuir nenhum deles.
Quer o poder pertencesse a russos ou americanos, quer a cientistas, feiti­
ceiros ou contrafeiticeiros, sabia que não lhe pertencia a ele. Na sua pers­
pectiva, os modemizadores socialistas e os promotores de desenvolvi­
mento democratas, tal como os vavi e os vamitela, «sabiam alguma coisa».
Mas só tinha uma certeza: o que quer que eles soubessem, ele desconhe­
cia. Se o poder residia na capacidade de «ver» a dinâmica oculta do
mundo - de interpretar a forma como o mundo funcionava e, assim,
agir de forma decisiva sobre este - isso era coisa que Eusébio estava certo
de não conseguir fazer.17
Mais do que articular uma visão do mundo, Eusébio chamava a atenção
para aquilo que não conseguia ver. A sua visão - à semelhança da de muitos
outros habitantes do planalto do Mueda - era uma antivisão resultante de
uma vida maioritariamente vivida nas orlas incertas da experiência hu­
mana. 18A sua perspectiva contestava implicitamente as afirmações dos re­
formadores, segundo as quais, através da materialização de uma visão neo-
liberal acerca de Mueda nesta região, o poder podia ser racionalizado,
tomado «transparente»19 e metabolizado em nome do bem comum,
criando, assim, a possibilidade de realizar um mundo melhor. Por ironia,
ao representar o poder na Mueda pós-socialista como algo opaco, a anti­
visão do infortunado Eusébio subvertia (kulipikula) subtilmente as afirma­
ções dos reformadores, tivesse ele consciência disso ou não.20

15Whyte (1997,24) indica que, por razões com o estas, os nyoles manifestam «subjun-
tividade» nas suas afirmações sobre a doença, o azar e as forças ocultas.
16 Werbner (2001, 193) e Ashforth (2001b, 217) fazem afirmações semelhantes.
Humphrey e Onon (1996:5) salientam que o conhecimento xamânico é sempre «pardal»
- shinu sboeshoe, «uma coisinha», em shimaconde.
17Ver também Last (1992); Ashforth (1998a, 57); Bastian (2003); Sanders (2003).
18 Cf. Whyte (1997,68,81-82).
19Ver também Kendall (2003); West (2003b); salvo o devido respeito a Kohnert (1996,
1352).
20 Ver também Sanders e West (2003,16).

346
Capítulo 25

A sociedade incivil do pós-guerra


«AJihh, nós não queremos desenvolvimento aqui!» exdamou Tissa.


Era uma frase que eu lhe ouvira dizer com exasperação em diversas oca­
siões. Nesse dia, Marcos, Tissa e eu - no caminho entre Matambalale e
a cidade de Mueda - estávamos de visita ao irmão de Tissa, Germano,
na sua casa em Nimu. Era a primeira vez que comíamos em casa dele.
A mulher estava a vigiar um frango que assava na fogueira, ali perto, ao
mesmo tempo que participava na nossa conversa. As crianças - excitadas
mas tímidas - monopolizavam as atenções dos tios Tissa, Marcos e An-
diliki.
Germano, lembrou-me Tissa, era carpinteiro.
«Este tipo sabe do oficio», afirmou Marcos entusiasticamente, ao re­
gressar das traseiras do quintal. «Faz as coisas mais incríveis.»
«Que entendes tu de carpintaria?!», perguntei, gracejando, a Marcos.
Controlando o impulso para se rir de si próprio, conseguiu lançar-me
um olhar indignado e ordenou-me que o seguisse até à parte de trás do
quintal, onde estava uma delicada «casinha» com janelas de vidro muito
bem ajustadas e um telhado de colmo novinho em folha.
«O que é isto?», perguntei abismado.
«Isto é o que estou a tentar dizer-te!», respondeu Marcos com ar triun­
fante. «Entra.»
Levantei a aldrava de madeira da requintada porta, também em ma­
deira, e espreitei lá para dentro. Onde quase tinha esperado encontrar
um altar qualquer, descobri uma casa de banho com duas divisões - uma
onde estava a retrete e a outra com uma cabina de duche. Nunca tinha
visto uma coisa assim no planalto de Mueda. Os aldeões costumavam
tomar banho num pequeno espaço de terra nua, cercado de finos troncos
de árvore e isolado do resto do pátio por painéis feitos de junco ou
bambu. Num dos lados do mesmo espaço, ficava normalmente uma la­
trina - uma fossa com três metros de profundidade, coberta por uma

347
K u piliku la

grade feita de tronquinhos de árvore, palha e terra batida, com um pe­


queno buraco no centro. Germano, porém, cobrira a sua latrina com um
soalho liso, de madeira muito bem aplainada, e montara sobre este uma
cadeira-retrete de madeira, com um assento e uma tampa com dobradi­
ças. Entre as ripas do soalho do chuveiro, deixara espaço suficiente para
a drenagem da água. Em redor do chão em palanque, erguia-se uma
«casa» de paredes muito bem estucadas sob um telhado de colmo per­
feito. As janelas de vidro deixavam entrar a luz e, quando abertas, o ar;
quando fechadas, impediam a entrada de moscas e outros insectos. Ger­
mano colocara ganchos nas paredes para pendurar toalhas; em pequenas
prateleiras de madeira via-se um sabonete e algumas velas (para iluminar
a casa de banho depois de escurecer); e havia um rolo de papel higiénico
enfiado num suporte de madeira.
«É um hotel de cinco estrelas!», disse Marcos alegremente. «É mais
fino do que o Hotel Cabo Delgado!»
Tive de lhe dar razão.
Quando Marcos e eu regressámos das traseiras do quintal, disse a Ger­
mano como ficara impressionado com a sua habilidade. «Onde é que
aprendeste a fazer isto?», perguntei. Germano parecia contente com os
nossos elogios, mas também pouco à vontade. Desviou o olhar e ficou
calado.
Tissa falou pelo irmão mais novo: «Pu-lo como aprendiz de um car­
pinteiro em Pemba. Aprendeu lá algumas coisas e aprende outras sozi­
nho, a copiar o que vê em fotografias de revistas que às vezes arranja. Por
vezes, tem ideias dele e inventa coisas. É muito inteligente.»
«Nunca tinha visto nada parecido com isto numa aldeia», comentei eu.
Virei-me para Germano: «Imagino que as tuas habilidades têm aqui
muita procura. Nem toda a gente sabe fazer coisas destas!»
«Ahhh, não é assim tão difícil», disse Germano, desviando ainda os
olhos com timidez. «Muita gente podia fazer isto se quisesse. Mas prefere
não o fazer.»
«O que queres dizer com isso de que prefere não ofazefi», perguntei.
Não conseguia imaginar porque é que alguém havia de preferir não ter
uma casa de banho melhor - ou uma cómoda, ou uma cadeira confor­
tável, ou qualquer das outras coisas que eu via em construção na oficina
de Germano. Quando muito, podia imaginar que a maioria dos aldeões
não fosse capaz de as fazer, nem tivesse dinheiro para as comprar a al­
guém, como Germano, que as fazia.
Tissa inspirou profundamente e soltou um suspiro audível. Passou-lhe
um sorriso pelo rosto, que deu depois lugar a uma expressão triste. «É

348
A sociedade in á v il do pós-guerra

Germano não só era um carpinteiro habilidoso, mas também o orgulhoso pro­


prietário de uma bicicleta, que usava para visitar os amigos e familiares nas al­
deias vizinhas do planalto. Era frequente, ao fim de um dia de trabalho de
campo, sermos visitados por Germano nas diversas aldeias onde ficávamos.

uma coisa muito complicada», disse-me Tissa. «Mas se quiseres mesmo


entender Mueda, Andikili, tens de compreender isto.»
Olhei para Tissa, divertido: «Preciso de compreender a retrete do teu
irmão para entender Mueda?»
«Sim», respondeu Tissa, com sinceridade. Fez uma pausa, como se es­
tivesse a ganhar forças para apresentar os seus argumentos a alguém que
ele já sabia que dificilmente entendería verdades tão evidentes. «A vida
na aldeia é difícil. As pessoas aqui não têm nada. Tu viste. Têm uma ou
duas camisas para vestir e um par de calças. Os filhos andam descalços.
Comem ugwali [papas] com shidudu [folhas de mandioca moídas] todos

349
K u piliku la

os dias. Muitas destas crianças não conhecem o sabor da carne. Mas as


coisas não têm de ser assim. As pessoas daqui podiam viver melhor se
decidissem fazê-lo. Têm essa possibilidade. Têm tudo o que necessitam
para construírem uma vida melhor. O meu irmão está a dizer-te a ver­
dade. Qualquer um podia fazer uma retrete igual a esta.»
«Então porque é que não o fazem?», perguntei, perplexo.
Sem hesitação, Tissa apontou para uma cabra amarrada a alguns me­
tros dali. «Estás a ver aquilo?», perguntou-me.
Eu já tinha reparado na cabra antes de Tissa ma mostrar. Havia algo
estranho no animal. Balançava constantemente a cabeça para um dos
lados, como se estivesse a tentar fugir a insectos invisíveis que o impor­
tunavam. De vez em quando, desequilibrava-se, quase caindo no chão.
Aquela imagem recordou-me a de uma vaca com a doença das vacas lou­
cas.
«Que tem ela?», perguntei.
«Isto», respondeu Tissa, ainda a ápontar para a cabra, «é o resultado
daquilo» - apontava agora para a casa de banho.
«Não entendo», confessei.
«Os aldeões podem estar a sofrer - podem não ter nada -, mas o seu
sofrimento só piora sempre que se atrevem a construir algo para si pró­
prios, quando tentam progredir um bocadinho.»
Tissa pousou a cabeça nas mãos por um momento, antes de prosseguir.
«As pessoas desta aldeia tratam o Germano muito mal. Passam a vida a
insultá-lo. Tudo porque fez algo para si próprio.»
Marcos emitiu um murmúrio de compreensão. Eu estava a ter dificul­
dade em entender. Continuei a olhar para Tissa interrogativamente.
Agora ele fitava o irmão. «Ele é cristão, não desperdiça o dinheiro nas ta­
bernas do mercado. Poupa-o para comprar os materiais com que trabalha.
E trabalha muito, a construir coisas para si próprio e para o meu pai.
Quando outras pessoas lhe pedem para fazer algo, poupa o dinheiro que
ganha. Não o gasta em bebida. Investe-o em gado e noutras coisas.»
«Mas que tem isso a ver com a cabra e a casa de banho?», perguntei
impaciente.
«Todos os olhos da aldeia estão pousados naquela casa de banho. As
pessoas dizem que o Germano se acha bom demais para evacuar num bu­
raco como toda a gente - que é orgulhoso e ambicioso, que se está a armar.»
Tissa abanou a cabeça e concluiu simplesmente: «Uwivu» (kiswahili
para «inveja»).
«Então eles têm inveja do teu irmão e da sua casa de banho», disse eu,
começando lentamente a perceber.

350
A sociedade in civil do pós-guerra

A resposta de Tissa confirmou a minha afirmação, ainda que apenas


de forma implícita: «Mas não o dizem. Em vez disso, roubam-lhe o gado.
O u batem nos animais dele, quando eles se afastam da sua vista. Aquela
[e apontou para a cabra louca] estava de boa saúde, até Germano a en­
contrar um dia no centro da aldeia, com sangue a correr de um dos lados
da cabeça. Alguém lhe batera até ela perder os sentidos. Olha para ela! Já
não serve para ninguém. Apenas sofre - como toda a gente aqui.»
Abanei a cabeça, compadecido com a cabra, o seu atormentado dono
e a aldeia que estes de certo modo acusavam.
«A aldeia é um lugar violento, Andiliki. A vida aqui é uma guerra - o
tempo todo.»
Enquanto Tissa falava, lembrei-me de como a comunidade interna­
cional considerava Moçambique um modelo africano de resolução dos
conflitos. Enquanto outros países, como Angola, Libéria, Sudão e Congo,
eram amaldiçoados com riquezas (petróleo, diamantes, coltan,1etc.) que
alimentavam conflitos militares prolongados, Moçambique, pelo con­
trário, não era rico mas encontrara uma paz duradoura - ou assim se
dizia. O retrato que Tissa traçava, no entanto, era o de um país ainda em
guerra, onde os moçambicanos marginalizados pelo ajustamento estru­
tural travavam inúmeras guerrinhas uns com os outros.
Tissa olhou para o centro da aldeia, prosseguindo: «Às vezes, podemos
ver as pessoas a atacar-se em plena luz do dia. Outras vezes é de noite.
Mas esta guerra não tem fim.»
Com a alusão eufemística a escaramuças nocturnas, Tissa introduziu
a feitiçaria na sua descrição de uma aldeia em guerra. O seu irmão mais
novo, que geralmente o olhava com admiração quando falava, manti­
nha-se agora em silêncio, algo alheado da conversa. Perguntei a mim
mesmo se ele, como cristão, rejeitava a crença na feitiçaria. Ou se, apesar
do seu silêncio sobre esse assunto, receava os efeitos dos feitiços. Ou
ainda se o seu ar «destemido» levava a que os outros aldeões suspeitassem
que ele era feiticeiro. Lancei uma olhadela furtiva a Germano, quase es­
perando, à luz dos pensamentos que me iam na cabeça, que tivesse um
ar levemente sinistro. Não tinha.
Tissa continuou: «Viver sem esperança de progredir é miséria.» A sua
voz ficou suspensa. Esperámos que concluísse a ideia. Virou-se para mim:

1 A columbite-tantalite (normalmente denominada coltan) é um minério metálico


utilizado em condensadores para computadores portáteis,pagers e telefones celulares. Os
recentes conflitos na África Central foram, em grande parte, financiados pela exploração
mineira ilegal de coltan no Congo.

351
K u piliku la

«Mas lembra-te daquilo que aquela nhulaula de Matambalale nos disse,


Andiliki... Aquela mulher jovem, a Verónica Romão.»
«O que foi?», perguntei.
«Ela disse-nos que o tipo que fica sentado sozinho a tirar matacanhas
dos pés é o único que está seguro. Ninguém repara nele. Ao passo que
aqueles que fazem alguma coisa para melhorar a sua situação correm pe­
rigo. Recebem insultos de todos os lados. Vivem cheios de medo. Sabem
que tudo o que fizerem acabará por ser destruído e que, entretanto, eles
próprios poderão ser destruídos.»
Impelido por estas palavras, integrei o irmão de Tissa na categoria do
Sefú Assani Kuva: «fura-vidas» audaciosos, sujeitos aos ataques dos vavi
valwa-nongo, feiticeiros de destruição. Deitei novamente uma olhadela a
Germano para ver se ele encaixava nesse papel. Contudo, em comparação
com esses homens - jogadores «ambiciosos», dispostos a correr grandes
riscos e em redor dos quais os feitiços revoluteavam inevitavelmente -
Germano parecia tão jovem, modesto e inocente como sempre.
Enquanto partilhávamos o frango assado no quintal de Germano, re-
flecti sobre as palavras que Tissa atribuíra a Verónica Romão. Eu pensara
que elas significavam que existiam duas categorias distintas de aldeões:
os ambiciosos e os satisfeitos com as suas vidas. Partira do princípio de
que elas significavam que os ambiciosos eram objecto de uma inveja po­
tencialmente letal - uma inveja manifestada pelos satisfeitos, uma inveja
a cujos efeitos os próprios satisfeitos estavam imunes. Essa inveja podia
assumir a forma de feitiçaria perpetrada pelos satisfeitos contra os ambi­
ciosos, ou de acusações de feitiçaria lançadas aos ambiciosos pelos satis­
feitos. Em qualquer dos casos, eram os ambiciosos que eram travados -
ou mesmo prejudicados - por ela.2
Agora considerava outra leitura destas palavras - uma leitura que tor­
nava problemática a estrita dicotomia entre duas categorias de pessoas e,

2 A literatura sobre bnixaria/feitiçaria está repleta de ideias semelhantes. Os informa­


dores de Ashforth (2000, 128) disseram-lhe que os bruxos «não querem o progresso»;
consequentemente, procuram destruir as manifestações materiais de quaisquer tentativas
de progresso ou melhoria pessoal (ver também Ashforth 1996,1202). Geschiere (in Fisiy
e Geschiere 2001, 233) descreve o receio manifestado pelos aldeões dos Camarões em
comungar da riqueza proporcionada ao país pelo aumento da procura mundial de cacau,
por temerem atrair a inveja dos seus parentes mais pobres; os que cultivavam cacau, diz-
mos Geschiere, eram considerados pelos outros como tendo algum tipo insólito de «pro­
tecção oculta» (ver também Danfiilani 1999; Bond 2001,143). Bailey (1994,4,206) sugere
que a bruxaria actua com o uma mão invisível, prometendo o mal aos que agem em in­
teresse próprio - salvo o devido respeito a Adam Smith, que afirma que a mão invisível
do mercado guia os que agem em interesse próprio para um bem mútuo (ver também

352
A sociedade in á v íl do pós-guerra

em vez disso, concebia estes perfis dassificativos como aspectos da ex­


periência partilhada por toda a população do planalto. A maioria das
pessoas com quem trabalhámos, segundo me parecia, cobiçava uma vida
melhor mas também temia as consequências da sua obtenção. A maior
parte, aparentemente, esforçava-se por encontrar uma posição confortável
entre «fazer qualquer coisa» por si e «não dar nas vistas». A maioria mos­
trava, de vez em quando, um desejo invejoso por algo que estava fora
do seu alcance, ao passo que, noutras ocasiões, guardava ciosamente para
si algo que já tinha em seu poder e que receava poder provocar a inveja
de outros. A maioria escondia a riqueza que possuía, revelando apenas
o suficiente para ocultar a sua pobreza.3
«Não queremos desenvolvimento aqui!», afirmou Tissa; mas ele e os
aldeões em nome de quem falava, queriam mesmo essa coisa nebulosa, fu­
gidia, a que chamavam «desenvolvimento». O lamento de Tissa era um
lamento irónico, exasperado, em que «nós» podia ser substituído por
«eles» e em que «desenvolvimento» podia ser qualificado como «nosso»
- ou mesmo «meu» - («eles não querem o nosso/meu desenvolvimento),4
se não fiasse impossível separar os ambiciosos dos satisfeitos, os feiticeiros
das suas vítimas e «eles» de «nós». Através dos seus contributos para o
discurso da uwavi, os habitantes do planalto de Mueda mantinham os
vizinhos e familiares sob controlo e contribuíam para a (re)produção de
uma visão do mundo que os refreava a eles próprios.
A democracia só vinha complicar a questão. Enquanto o Estado so­
cialista tinha reivindicado a riqueza do país - e exercido o direito de a
distribuir - em nome do «povo», o retrocesso do Estado neoliberal dei­
xava agora os aldeões entregues aos seus próprios meios, tanto para se
«desenvolverem» como para se policiarem uns aos outros contra as de­

Sanders 2001). Bailey (1994) apresenta o exemplo de um empresário bem sucedido, numa
aldeia indiana, que acaba por ser destruído por acusações de feitiçaria (5); descreve a sua
história com o «o pesadelo de todos os planeadores e promotores do desenvolvimento
liberais e defensores da livre iniciativa, que os Estados Unidos semearam pelo Terceiro
Mundo da década de 1950 em diante» (206). Ver também La Fontaine (1963,217); Mac-
-Cormick (1983,58); Geschiere (1997,143,147).
3 Gable (1997) sugere igualmente que, embora o receio do castigo sobrenatural suscite
tentativas de «dissimular o que se tem de seu» entre os manjacos da Guiné-Bissau, as pes­
soas também escondem a vergonha de não possuírem nada que possa verdadeiramente
causar inveja.
4 Geschiere (1988,49) cita responsáveis camaroneses que afirmam que «os aldeões estra­
gam tudo com os seus feitiços» (ver também Fisiy e Geschiere 1990,143). Em Mueda, con­
tudo, eram os próprios aldeões que o sugeriam, presumindo a existência de malevolência
por parte dos vizinhos e parentes (como também é referido em Ashforth 2001a, 17).

353
K u piliku la

monstrações de «ambição» perigosas. Num meio em que os recursos es­


casseiam, este mandato contraditório fazia com que o mínimo esforço
de «progresso» individual fosse um empreendimento arriscado, pois as
pessoas facilmente reconheciam as suas próprias «ambições» nos actos
dos vizinhos e parentes. Neste ambiente de intensa suspeita mútua, tudo
o que pudesse ser feito por alguém era desfeito Çkupilikula) no próprio
momento da sua realização, impossibilitando não só o progresso dos
«ambiciosos», mas também a manutenção do decrescente bem comum
de que todos os habitantes dependiam, independentemente da sua am­
bição - uma verdade sublinhada por Tissa, quando saímos de casa de
Germano.
Apontando para o chafariz colocado no centro da aldeia, em frente
do pátio de Germano, Tissa exclamou: «Quantos milhões de meticais
foram gastos naquilo?! E agora para ali está, sem água. Sabes porquê?!»
Aguardei a sua resposta.
«Os feiticeiros entupiram os canos com braços, pernas e crânios de
crianças, para que a água não corra. Consegues imaginar isso?! Só para
impedir os outros de terem uma vida melhor!»5
Tissa baixou a cabeça e soltou uma risadinha forçada, antes de concluir
o seu comentário: «Ah, não, Andiliki. Nós não queremos o desenvolvi­
mento aqui!»

5 A água (ou a falta deste recurso essencial) proporciona um terreno fértil para expres­
sões ocultas de vulnerabilidade e suspeita. Serra (2003) narra a história de habitantes da
província moçambicana de Nampula, que atribuíam à colocação de comprimidos de
cloro nos poços locais pelos responsáveis da saúde e o pessoal das organizações de ajuda
o surto de cólera que estes diziam pretender controlar. Serra conclui que tais manifesta­
ções não se devem tanto a uma resistência à modernidade com o à frustração causada
pelas suas promessas vãs (91). Em todo o caso, no exemplo descrito por Serra, bem como
no planalto de Mueda, é possível afirmar que essas manifestações fomentam um clima
desfavorável «ao trabalho de desenvolvimento».

354
Capítulo 26

Democratização e/do uso da força


«O que descobriste este ano, Andiliki?», perguntou Rafael Mpachoka,


o primeiro secretário de partido da Frelimo em Muidumbe, que há vários
anos facilitava atenciosamente o meu trabalho no seu distrito.
O seu leve sorriso revelava divertimento face ao trabalho antropológico.
«Bem...», principiei, perguntando a mim mesmo até que ponto po­
deria ser franco. Depois confessei, curioso por ver qual seria a sua res­
posta: «Passámos a maior parte do ano a estudar a uwavi.»
«Feitiço?!», retorquiu Mpachoka, traduzindo o termo para português,
a língua em que falávamos. Sorriu abertamente e depois riu. Retribuí-lhe
o sorriso, mas não o riso.
«Ouvi as coisas mais espantosas», disse-lhe, reproduzindo a linguagem
usada por muitos dos meus informantes. «Pessoas que se transformam
em leões, pessoas que fazem helicópteros...»
Mpachoka olhava agora para mim como se estivesse a ponderar até
que ponto ele podia ser franco. Deitou uma olhadela rápida para a porta.
As paredes do seu gabinete só chegavam a meia altura entre o chão e o
tecto. Para lá da porta fechada, ouvíamos claramente as vozes dos fun­
cionários a falarem uns com os outros. Se podíamos ouvi-los, presumi
eu, eles também nos podiam ouvir a nós.
Mpachoka prosseguiu, mesmo assim: «Estas coisas acontecem, sabe?
Os portugueses tinham dificuldade em acreditar, mas acontecem mesmo.
Antigamente, os curandeiros macondes podiam enxertar cabeças de es­
cravos nos mortos e ressuscitá-los. Quando eu era novo presenciei isso.
Lembro-me de ver uma mulher que tinha pele preta no corpo e pele clara
na cabeça! Vi isso com os meus próprios olhos!»
Mpachoka era o mais alto responsável da Frelimo que falava comigo
sobre feitiçaria sem afirmar a sua descrença. Se eu tivera dúvidas sobre a
autenticidade da rejeição da feitiçaria professada pelo administrador do
distrito de Mueda, Ambrósio Vicente Bulasi (ver prólogo), interroga-

355
Kupilikula

va-me agora até que ponto seria genuína a aceitação de Mpachoka. Per­
guntei a mim mesmo se as palavras dele seriam as de um «verdadeiro
crente» ou as de um político arguto, no ambiente neoliberal emergente,
caracterizado pela «tolerância» face à «tradição» moçambicana?
A conversa orientou-se para um caso ocorrido em Mwambula no ano
anterior e de que eu só tomara conhecimento poucos dias antes, por ou­
tras pessoas com quem falámos. Mpachoka apresentava-me agora a sua
versão.
«O tipo era um antigo combatente», disse Mpachoka, que também
combatera na guerra da independência: «Vivia aqui em Mwambula, mas
ia a pé para Chitashi, onde tencionava apanhar uma boleia para Pemba,
para ir receber a sua pensão de antigo combatente. Ao que parece,
quando ia a passar pelas terras baixas,, foi atacado por um leão. As pessoas
descobriram o seu corpo dilacerado e seguiram um rasto de sangue até
encontrarem o leão. O homem era grande e forte. Tinha ferido o leão
com a sua faca antes de a fera o matar.»
Mpachoka olhou para mim como se estivesse a decidir se devia ou
não interromper ali a sua narrativa. Devolvi-lhe o olhar, interrogativa­
mente, dando-lhe a entender que sabia que a história não ficava por ali.
Ele prosseguiu.
«Quando o leão foi morto, viu-se que, afinal, era um ancião da família
do homem.»
Em conversas anteriores sobre aquele caso, já me tinham contado que
a carcaça do leão assumira a aparência de um dos anciãos da família da
vítima e que os parentes chamados para ir buscar o cadáver desta viram
e reconheceram esse membro da família.
«Porque é que o ancião atacou o homem?», perguntei.
«Por inveja», respondeu Mpachoka. «O tipo ia buscar os cheques da
pensão de antigo combatente. Tinha coberto a sua casa com um telhado
de zinco.1Tinha a vida muito bem organizada.»
Ficámos calados, por momentos, reflectindo sobre a tragédia, até Mpa­
choka quebrar o silêncio. «Este tipo de coisa é comum. Ainda há uns
dias, aqui em Mwambula, um homem saiu a correr de casa, em plena
luz do dia, a gritar que outro tipo tinha abatido o seu helicóptero.»

1 Maia Green (1994,27) descreve a relutância dos aldeões pogoros da Tanzânia em


construir casas melhores por recearem ser atacados por bruxos. Ver também Ashforth
(2000, 73). Pelo contrário, Geschiere (1992, 172) sugere que os bakweris dos Camarões
hesitaram durante muito tempo em construir casas com telhados de zinco por temerem
ser acusados de bruxaria.

356
D em ocratização e/d o uso d a força

O s telhados de zinco constituem verdadeiros pára-raios para a uwavi.

Compreendi quase de imediato a natureza auto-incriminadora da


queixa do homem. «O seu helicóptero!?», exclamei. «Então estava a con­
fessar que ele era um mwavi.»
«Sim!», respondeu Mpachoka, sacudindo a cabeça, exasperado.
O primeiro secretário do partido continuou: «Depois, o tipo foi ao
gabinete do administrador do distrito [de Muidumbe, localizado na orla
da aldeia de Mwambula] e apresentou um pedido de indemnização!»
Rimos os dois. Mpachoka suspirou. Aproximei-me mais da sua secre­
tária. Ele olhou para mim.
«Então, como é que resolve essas situações... como líder da Frelimo,
quero eu dizer?»
Mpachoka ficou imediatamente tenso, como se tivesse percebido, de
repente, que me tinha dito demasiado. O tom familiar que costumava
adoptar comigo deu lugar ao de um porta-voz da linha do partido - ainda
que «reformada».
«A maior parte destas questões são resolvidas a nível familiar. Rara­
mente ouvimos sequer falar nelas e, quando ouvimos, o melhor é não
nos envolvermos.»
Na verdade, no caso do antigo combatente da Frelimo que tinha sido
despedaçado por um leão, Mpachoka e o governo tinham limitado o seu
envolvimento. Tal com Ambrósio Vicente Bulasi tratara os casos de leões

357
Kupilikula

em Namaua e Kilimani, Mpachoka e os seus colegas da administração


do distrito de Muidumbe (os quais seguiam, normalmente, as orientações
de Mpachoka, que ocupava uma posição mais elevada na hierarquia do
partido) deixaram que os aldeões de Mwambula «resolvessem as coisas
entre eles», na nova era da «democracia».2 Neste caso, as consequências
ainda foram mais graves do que tinham sido para Sefii Assani Kuva (que,
recorde-se, foi espancado, multado, despojado das suas terras e expulso
da aldeia de Kilimani). Mpachoka confessou-me, relutantemente, que
um grupo de aldeões se reuniu para confrontar o suspeito de feitiçaria.
O ancião foi arrancado de casa a meio da noite, acusado do crime de
matar o parente e espancado, sem mais, até à morte.3Só depois do ho­
micídio é que os responsáveis locais intervieram - detendo as pessoas
que o instigaram, repreendendo-as e libertando-as passado pouco tempo.
O esgar patente no rosto de Mpachoka denunciava o dilema que tais
incidentes constituíam para ele e para outros responsáveis da Frelimo, um
dilema originado pela relação complexa e instável entre a governação
diuma no planalto de Mueda e a governação da noite. Enquanto os por­
tugueses tinham sido relativamente «tolerantes» em relação ao discurso
do oculto no período colonial (como vimos no capítulo 10), a Frelimo
tentara (pelo menos oficialmente), durante quase duas décadas, eliminar
as acusações e os ordálios e julgamentos por bruxaria/feitiçaria (como
vimos no capítulo 18), diferenciando-se dos seus antecessores portugueses
(a quem acusava de utilizarem a superstição dos moçambicanos contra
eles próprios), mas agindo, por ironia, de forma bastante semelhante à das
autoridades coloniais de outras zonas do continente.4 Enquanto noutras
regiões os «decretos sobre bruxaria» eram muitas vezes interpretados pelos
súbditos coloniais como o exercício do poder em nome de bruxos e/ou

2 Gomes et d . (2003,300) apresentam outras provas da ambivalência do Estado rela­


tivamente à intervenção em casos relacionados com feitiçaria, na descrição que fazem
do tribunal comunitário do bairro de Maimio, na cidade de Mueda - uma instituição
quase estatal - , que se recusava a julgar tais casos, despachando-os porém para «um an­
cião» da confiança do tribunal
3 Geschiere (itt Geschiere e Fisiy 1994,335) narra uma história semelhante.
4 Os decretos sobre bruxaria foram aplicados em África com um rigor variável con­
soante os lugares e as épocas. Niehaus (2001) sugere que o Estado sul-africano do tempo
do apartheid aplicava a proibição das acusações e dos julgamentos de bruxaria com pouca
convicção, permitindo que essas actividades continuassem, desde que ninguém fosse
morto. Semali (1986, 87) refere que a lei tanzaniana estabelecia uma diferença entre a
bruxaria e o uganga (curandeirismo), permitindo este último, embora não o promovesse.
Ver também Slaats e Portier (1993) a respeito do comedido entusiasmo com que os h o ­
landeses aplicaram a proibição da feitiçaria na Indonésia colonial.

358
D em ocratização e/do uso d a força

feiticeiros, ou em colaboração com eles (que, graças a estes novos regimes,


deixavam de ser controlados pelas medidas de contrabruxaria/feitiçaria),5
os habitantes de Mueda (que eram, na sua maioria, simpatizantes da causa
nacionalista) entenderam, de um modo geral, a proibição do discurso da
uwavi pela Frelimo durante a guerra não como a manifestação de uma
aliança com os feiticeiros, mas sim como o exercício de feitiçaria de cons­
trução (como vimos no capítulo 16). Só com o colapso do socialismo da
Frelimo é que a maioria dos habitantes da região começou a interrogar-se
se as suas autoridades não estariam a trabalhar coligadas com feiticeiros
malévolos. Noutras zonas de Moçambique - onde a Frelimo não era tão
bem aceite como em Mueda - as populações rurais há muito que a con­
sideravam cúmplice de forças ocultas cujo controlo local tinham proibido
em nome do combate ao obscurantismo. A Renamo tirara partido destes
sentimentos, traduzindo-os em apoio popular, nalgumas regiões do país,
e numa crítica política à Frelimo - por intolerância face à «tradição» mo­
çambicana - em sintonia com os doadores ocidentais neoliberais. A re­
vogação da proibição do «curandeirismo tradicional» por parte da Frelimo
e a sua adopção de uma atitude mais «tolerante» face ao discurso do oculto
só podiam ser entendidas à luz destas dinâmicas históricas, exacerbadas
pela redução dos orçamentos de Estado e pela fadiga administrativa do
pós-guerra.
Os habitantes do planalto de Mueda tentavam agora afirmar-se nos
espaços concedidos pela reforma neoliberal. As «tradições» que surgiram,
porém, eram tanto produto das novas circunstâncias como dos antece­

5 Ver Beattie (1963,49); Simmons (1980,455); Mombeshora (1994); Fisiy (1998,149,


151); Fisiy e Geschiere (2001:237). Redding alega que os administradores britânicos do
Transkei «mantinham o controlo... permitindo-se ser traduzidos nos idiomas do poder
africanos» (1996, 556). Fadiman (1993,302-322) sugere que os meras, no Quénia, inter­
pretavam as tentativas coloniais de erradicar as crenças na bruxaria com o manifestações
de bruxaria, porque as autoridades coloniais exigiam que os especialistas em rituais dos
meras renunciassem às suas crenças através de juramentos proferidos, para todos os efei­
tos, no género discursivo da bruxaria. O ’Neill (1991) apresenta provas de que a supressão
colonial do ordálio do veneno, nos Camarões, minou a confiança popular nos dirigentes
locais através dos quais o governo colonial exercia o seu domínio. Fields (1982,576-577)
afirma que, ao proibir as acusações e os julgamentos de bruxaria, os britânicos despojaram
os governantes africanos da sua soberania e tomaram-nos cúmplices de homicídio aos
olhos dos africanos comuns, que testemunhavam a sua incapacidade de policiar a bru­
xaria. Behrend (1999,118) alega que as leis contra a bruxaria em Acholi, no Uganda, tor­
naram os médiuns espirituais suspeitos, ao obrigá-los a «atar» e «desatan» a bruxaria secreta­
mente, com grandes riscos pessoais, e que os elevados preços consequentemente cobrados
por esse trabalho provocaram o ressentimento popular e deram origem a suposições de
que os médiuns trabalhavam no seu próprio interesse e em detrimento dos outros.

359
K u piliku la

dentes históricos, pois o Estado da Frelimo nem castigava os feiticeiros


(como os vanang’ob faziam no passado), nem mandatava explicitamente
as «autoridades tradicionais» para o fazerem.6 Os aldeões foram abando­
nados aos seus próprios meios para policiar o reino invisível e instaurar
práticas e instituições sociais através das quais se pudesse fazer justiça.
Foi o que fizeram, umas vezes aplicando multas e espancamentos, oca­
sionalmente expulsando ou linchando os acusados - pondo em causa,
com tais actos, a pretensão do Estado ao monopólio do uso legítimo da
força mortal.7
No final de 2002 e início de 2003, este estado de coisas deu lugar a
uma intensa crise, marcada por uma vaga de ataques de leões nas aldeias
da orla sudeste do planalto e em redor delas. Shabani Shamambo, um
ancião da aldeia de Namalcandi, exprimiu as suspeitas partilhadas por
muitos aldeões da região quando falou com o repórter Óscar Limbombo,
da Rádio Moçambique (Limbombo 2003): «Este fenómeno é inexplicá-

6 Noutros locais, os regimes africanos pós-coloniais tomaram essas medidas. Na África


do Sul, uma comissão estatal pós-apartheid «aceitou a bruxaria como sendo real» (Niehaus
2001) e criou uma unidade de crimes ocultos para investigar os casos de bruxaria. Nos
Camarões, o governo pós-colonial declarou «qualquer acto de bruxaria, magia ou adivi­
nhação» punível por lei e, na parte leste do país, os juízes permitiam que os caçadores de
bruxos depusessem com o «testemunhas periciais» em casos de bruxaria (Geschiere e Fisiy
1994; Fisiy e Geschiere 1996; Geschiere 1997,169; Fisiy 1998, 143; Geschiere 1998). Os
tribunais da Seria Leoa também permitiam que adivinhos apresentassem dados oraculares
com o prova em tribunal (Shaw 1997: 866). Maia Green (1994: 24) conta que o Estado
tanzaniano pós-colonial remetia as acusações de bruxaria para as aldeias de onde provi­
nham, mas que acabou por estabelecer um procedimento mediante o qual os caçadores
de bruxos eram obrigados a obter uma autorização, antes de iniciarem as actividades de
limpeza de bruxos (M. Green 1997, 336); onde o Estado permitia que os caçadores de
bruxos actuassem, os aldeões presumiam, por vezes, que eles trabalhavam para o governo
(M. Green 1994,29). Em qualquer caso, sugere ela, a autorização era, geralmente, con­
cedida por motivos políticos, visando criar um ambiente em que as acusações podiam
ser feitas, mas não lhes era dado seguimento. Slaats e Portier (1993) descrevem o m odo
como o Estado indonésio, após a independência, castigava os alegados bruxos proferindo
sentenças correspondentes às suspeitas populares, mas sem admitir os depoimentos eso­
téricos com o provas.
7 Niehaus (2001) descreve formas semelhantes de justiça espontânea contra alegados
bruxos na África do Sul pós -apartheid, incluindo o «necMacing» [Nota do revisor: forma
de homicídio que consiste na colocação de uma câmara de ar de pneu embebida em ga­
solina à volta do pescoço da vítima, à qual é lançado fogo para que esta morra queimada.]
(ver também Stadler 1996,107; Crais 1998). Na Tanzânia, onde o decreto sobre bruxaria
da era colonial permaneceu oficialmente em vigor n o período pós-colonial, Bukurura
(1994) e Mesaki (1994) dizem que a aplicação de «justiça» por «vigilantes» em algumas
regiões era atribuída a sentimentos populares de que, quando o governo protege os bru­
xos, as pessoas têm de se proteger a si próprias.

360
D em ocratização e/do uso da força

vel. Leão nunca tomou o homem como sua principal presa. Que leão é
este que ataca pessoas de forma repetida? Quando leão está faminto,
ataca, por azar, apenas uma pessoa para se alimentar, e daí abandona a
zona residencial, contrariamente ao que aconteceu desta vez. Por isso é
um facto inexplicável.»
Dizia-se que algumas das feridas das vítimas pareciam ter sido feitas
por facas. Os caçadores que perseguiram os leões afirmaram que as pe­
gadas de patas se transformavam em pegadas humanas, ou em marcas
de sandálias. Correram boatos de que tinham sido encontradas cartas
onde se proclamava: «Não nos matarão. Somos demasiados.»
Pedro Agostinho, também de Namakandi, disse à Limbombo: «Reu­
níamos muitas vezes. ‘E também, eu dizia aos velhos mais velhos per­
guntando esta situação, como que é?’ ‘Se houver uma pessoa que sabe
na verdade que esse leão é leão magico, é bom nos dizer e sempre deve
chegar a nos informar que o tal está a fazer isso. Então o governo vai
tomar medida antes de fazer’. Mas nada. Não dizia nada. Também os ve­
lhos só ficaram admirados.»
Ainda mais chocante para a maioria dos habitantes - mais «inexplicá­
vel» (embora desse origem a várias explicações) - era a «inacção» do go­
verno, que nada fazia por sua própria iniciativa. À medida que o medo
se intensificava, os aldeões abandonaram os campos, o que provocou
fome na região. As mulheres só podiam ir buscar água em grandes gru­
pos, acompanhadas de homens armados com arcos e flechas. As escolas
reduziram o horário lectivo para as crianças poderem estar em casa a
meio da tarde. Os habitantes fechavam-se dentro de casa antes do pôr-
-do-sol, urinando e defecando em cabaças ou panelas velhas, em vez de
irem à latrina, depois de anoitecer (Limbombo 2003). Mesmo assim, a
matança continuou.
Segundo Pedro Seguro, administrador do distrito de Muidumbe, a ad­
ministração distrital não dispunha de armas para caçar os leões e as re­
quisições que ele fez não obtiveram resposta. Os aldeões ficaram ainda
mais irritados com o silêncio público de Seguro no decurso de aconteci­
mentos tão sinistros. «Uma das grandes falhas do administrador de dis­
trito», assegurou-me Limbombo, «foi nunca ter vindo a público condenar
o que estava a acontecer.» Como Seguro não conseguiu resolver a crise
- ou sequer falar dela publicamente - os aldeões decidiram tomar nas'
próprias mãos a resolução da ameaça que sobre eles pendia, linchando
os vizinhos e parentes suspeitos de fabricarem ou de se transformarem
em leões (Limbombo 2003). O jovem Tadeu Jonas, de Mwambula, con­
tou a Limbombo que o seu tio foi intimado a comparecer no centro da

361
K u piliku la

aldeia, onde a populaça o amarrou, regou com gasolina e incendiou.


Quando Tadeu tentou intervir, foi acusado de ser cúmplice do alegado
feiticeiro e a sua própria vida esteve em risco. Pelo menos numa ocasião,
a polícia distrital prendeu os cabecilhas, mas o administrador do distrito
exprimiu a sua frustração por as detenções só poderem ser feitas depois
de os crimes terem sido cometidos e as multidões enlouquecidas se terem
dispersado (Limbombo 2003). Tais eventos, sugeriu ele, tinham de ser
permitidos para se esgotarem a si próprios.
Ao longo de um ano, os caçadores locais conseguiram matar seis leões.
Os ataques terminaram pouco depois de um outro - supostamente o
mais feroz - ter sido morto por caçadores vindos de Pemba. Cinquenta
e duas pessoas tinham sido vitimadas pelos leões (quarenta e seis mortas,
seis gravemente feridas). Outras dezoito foram linchadas por aldeões seus
vizinhos (Limbombo 2003), que tinham sido, em grande medida, deixa­
dos à vontade «para resolverem as coisas entre eles».
Enquanto os reformadores neoliberais imaginavam que a reanimação
da «tradição» moçambicana contribuiria para um florescimento pós-so-
cialista da sociedade civil, a sociedade do planalto de Mueda tomava-se
cada vez mais incivilno período pós-guerra. Mais ainda, a justiça extraju­
dicial executada pelos aldeões na nova era democrática (na qual, como
sugeria o administrador do distrito de Mueda, Ambrósio Vicente Bulasi,
«cada um tem o direito de acreditar no que quisen>), punha em causa os
direitos à segurança de pessoas e bens consagrados na nova Constituição
moçambicana.8
Invocando o esquema de pensamento da uwavi, os aldeões «vigilantes»
concentravam a sua atenção na lógica que levava a que alguns privilegia­
dos de entre eles fossem beneficiados pela generosidade do partido no
poder, a Frelimo, na sua tentativa de consolidar o apoio de eleitores fun­
damentais, como os seus antigos guerrilheiros. Por ironia, a violência era
frequentemente dirigida contra aqueles (como o ancião parente do antigo
combatente atacado) que encarnavam a inveja gerada pela diferenciação

8 A mesma erosão dos direitos individuais foi observada, em consequência da tole­


rância pós-colonial para com as acusações de bruxaria, nos Camarões (Fisiy 1998,143;
Geschiere e Nyamnjoh 1998, 87; Fisiy e Geshiere 2001, 226) e na Tanzânia (M. Green
1994, 23). Fisiy escreve: «A sensação com que se fica, quando se lêem os processos [ju­
diciais] de bruxaria, é a de que os alegados bruxos são tratados com o se não possuíssem
quaisquer direitos cívicos ou humanos» (1998,155). Ashforth (2001a, 15-16) concorda,
sugerindo que se recusam os direitos humanos aos bruxos porque, geralmente, as pessoas
não os consideram inteiramente humanos.

362
D em ocratização e/do uso da força

social, uma inveja com a qual os próprios «vigilantes» poderiam ter sen­
tido emparia, do mesmo modo que a podiam sentir em relação às «am­
bições» de «autopromoção» das elites emergentes. Segundo a reportagem
de Limbombo, as pessoas com relativamente mais recursos económicos
eram frequentemente acusadas de feitiçaria quando familiares seus eram
mortos por leões. Quando o seu irmão morreu dilacerado por um leão,
Emiliano Lucas, proprietário de uma banca no mercado de Mwambula,
foi suspeito de o ter morto para fazer dele um lindandosba (escravo zom-
bie). «Uma pessoa ter alguma coisa assim a vender... Isso, muita gente
diz que você tem [magia]», declarou Lucas a Limbomba. Todavia, Lucas
conseguiu espapar ao linchamento, tal como muitos outros suspeitos re­
lativamente mais ricos. Em todo o caso, num ambiente em que a uwavi
operava sem peias, fortes e fracos, ricos e pobres, sofriam do mesmo
modo. Qualquer um podia ser atacado, tanto por feiticeiros como por
aldeões «vigilantes» que o acusassem de feitiçaria. Qualquer um podia
ser arruinado, qualquer um podia ser destruído (kupilikula:).
A uwavi, como diziam os habitantes do planalto, «não fazia sentido».
Era esta, pelo menos, a opinião que eles exprimiam assertivamente sobre
a uwavi, enquanto (re)produziam o mundo de acordo com a visão re­
cheada de uwavi que dele tinham.
No entanto, para autoridades da Frelimo como Ambrósio Vicente
Bulasi, Rafael Mpachoka e Pedro Seguro, a maior ironia era a seguinte:
apesar do recém-assumido «respeito» da Frelimo pela «tradição», os al­
deões de Mueda olhavam-nos com um olhar crítico. A liberalidade dis­
tante demonstrada por responsáveis como Seguro em relação às acusa­
ções e suspeitas de feitiçaria era interpretada como uma renúncia da
responsabilidade pelo policiamento da uwavi. Na verdade, devido à sua
tolerância do discurso da uwavi, muita gente suspeitava da cumplicidade
deles com feiticeiros maléficos. Muitos supunham que homens como
eles, que certamente sabiam alguma coisa («De outro modo, como teriam
chegado a posições de tanto poder?»), se não agiam como feiticeiros de
construção é porque deviam ser feiticeiros de perigo.9 De facto, antes
de as matanças terem abrandado em Muidumbe, o administrador dis­
trital tomara-se o principal suspeito aos olhos da maioria. Os habitantes
de Muidumbe não só pediram ao comandante provincial da polícia e

5 Reconhecendo este mesmo dilema, Ashforth (1998b, 531) alega que o Estado sul-
-afncano pós-apartheid teve, em última análise, de escolher entre reprimir activamente os
bruxos ou ser considerado defensor destes.

363
K u p iliku la

ao governador da província para demitirem aquele «homem perigoso»


do cargo de administrador distrital, como chegaram a ameaçar expulsá-
-lo eles próprios de Muidumbe (Limbombo 2003).10

10Muita gente suspeitava que Seguro «vendera» a «três brancos» direitos para atacarem
os habitantes do distrito com feitiços pelo preço de «três sacos de dinheiro». Entre os
«brancos» suspeitos, estava um técnico de ortodontia que trabalhava na missão de
Nang’ololo. Tal com o os técnicos de saúde mencionados por Serra (2003), este técnico
era suspeito de fazer mal às pessoas que a clínica devia tratar, suspeita essa eventualmente
provocada pelo facto de os dentistas removerem elementos dos corpos dos seus doentes.
Por sua vez, Seguro adquirira recentemente o antigo edifício da escola da cidade e estava
a transformá-lo numa pensão, a única do distrito. Quando o visitámos, o edifício estava
cheio de sacas de cereais colhidos nos seus campos. Possuía também um florescente res­
taurante no mercado da cidade. Apesar das suas prósperas empresas - ou melhor, pôr
causa delas - muitos desejavam conhecer a verdadeira origem da sua avultada riqueza re­
lativa.

364
Capítulo TI

Governando na penumbra

Numa fresca manhã de Agosto de 1999, Tissa e eu estávamos sentados
a conversar com Mariano Makwava, presidente da aldeia de Matamba-
lale. Enquanto conversávamos, um dos netos de Makwava - talvez com
sete ou oito anos de idade - dava voltas ao pátio numa trotineta rudi­
mentar, feita com pedaços de sucata. Vestindo uma smat-sbirt imunda
com mais buracos do que tecido, o rapaz balançava para cima e para
baixo ao avançar sobre rodas de madeira desigualmente desgastadas.
Makwava, que era presidente de Matambalale desde que eu começara
a trabalhar na região de Mueda, confessou-nos que, nos últimos anos,
vinha achando a sua função cada vez mais difícil. Ao mesmo tempo que
o Estado lhe transferia cada vez menos recursos para satisfazer as expec­
tativas dos seus constituintes, dependia cada vez mais dele para consoli­
dar a ordem na aldeia. Quando os aldeões apelavam ao Estado para que
os ajudasse a resolver os seus problemas, e quando - em nome da des­
centralização democrática - os responsáveis distritais empurravam os pro­
blemas de volta para o nível das aldeias, exigindo que aí fossem resolvi­
dos, o paradoxo de um Estado que estava simultaneamente ausente e
presente era personificado por presidentes de aldeia como Makwava.
Neste como noutros aspectos, Makwava, à semelhança de outros pre­
sidentes de aldeia, ocupava um espaço intersticial nos assuntos locais.
Enquanto os administradores distritais, como Ambrósio Vicente Bulasi
e Pedro Seguro, e os primeiros secretários do partido, como Rafael Mpa-
choka, ganhavam salários que lhes permitiam manter residências na ca­
pital provincial, onde podiam investir em actividades económicas, os se­
cretários das aldeias não recebiam qualquer pagamento pelos seus
serviços e obtinham os seus meios de subsistência no âmbito da econo­
mia da aldeia. Makwava e a sua família cultivavam campos agrícolas,
como os aldeões comuns. Duas vezes por mês, porém, este presidente ia
a Pemba comprar grandes quantidades de bens de consumo essenciais -

365
K u piliku la

capulanas, panelas, utensílios, sal, sabão e fósforos - com os quais abas­


tecia uma loja no mercado da aldeia. Makwava era da aldeia, mas não es­
tava completamente integrado nela.
A posição liminar que Makwava ocupava nos assuntos da aldeia ficou
mais clara a meus olhos quando ele justificou a desordem que presenciá­
vamos no seu quintal. Tinha demolido a sua casa recentemente. Entre­
tanto, durante aquela estação seca (e fria), ele e a família dormiam numa
cabana temporária, enquanto a casa nova estava a ser construída, em
parte com materiais recuperados da casa velha e em parte com materiais
recentemente comprados em Pemba. A construção, porém, estivera su­
jeita a percalços.
«Ainda não há muito tempo, pessoas da minha confiança informa­
ram-me que alguém tinha arranjado um leão para me matar», contou-
-nos Makwava.
As chapas de zinco ondulado que se encontravam encostadas ao alto
contra uma parede meio demolida da casa velha eram elementos essen­
ciais da história. Makwava comprara-as com os lucros do seu negócio e
tencionava usá-las para cobrir a sua nova casa melhorada. Todavia, essas
chapas tinham suscitado a inveja dos feiticeiros da aldeia, entre os quais
se incluíam, aparentemente, alguns membros da própria família de Mak­
wava.
Sentindo a sua vida em risco, Makwava respondeu de forma rápida e
assertiva: «Convoquei um conselho de anciãos e informei-os da situação.
O conselho convocou familiares meus que tinham sido identificados
como suspeitos e repreendeu-os: ‘Porque estão a tentar matar o nosso
presidente?’, perguntaram eles. ‘Se forem para a frente com isso, sabere­
mos que foram vocês e levá-los-emos perante a justiça», advertiram eles.
E assim, estas pessoas que estavam a tentar matar-me desistiram.»
Em nítido contraste com os responsáveis da Frelimo de níveis superiores,
como Bulasi, Seguro e Mpachoka, para os quais acontecimentos destes
constituíam momentos de «descentralização democrática», Makwava en­
frentou o problema na linguagem da uwavi. Quando o interrogámos, ex-
plicou-nos mais detalhadamente como soubera das actividades em curso
no reino da uwavi e como lhes respondera: «Entre os feiticeiros desta aldeia,
há alguns que têm pena das vítimas. Quando sabem dos planos de outros
feiticeiros, vêm-me contar. Eu reúno os acusados e digo-lhes que conheço
os seus planos. Digo-lhes que, se não desistirem, os denunciarei à aldeia e
que serão ridicularizados, espancados, ou presos. Os problemas são resol­
vidos desta maneira.» O presidente apressou-se a acrescentar, com orgulho:
«Ainda ninguém foi morto por um leão nesta aldeia.»

366
Governando na penum bra

Eu disse então a Makwava: «Contaram-me muitas vezes que, antiga­


mente - quando as pessoas ainda viviam em povoações - o chefe da po­
voação respondia à ocorrência de feitiçaria andando à noite pela aldeia
e gritando que sabia quem eram os feiticeiros, advertindo-os para não
atacarem as pessoas, caso contrário teriam de o enfrentar pessoalmente.»
«Eeh», proferiu Makwava, confirmando o que eu dissera.
«Explicaram-me que, para fazer isto, o chefe de povoação tinha de ser
um feiticeiro.»
«É verdade», disse Makwava.
«E que aquilo que o chefe de povoação fazia se chamava feitiçaria de
construção/»
«Eeh.»
«Então», perguntei, «a forma como você trata dos feitiços não é a
mesma? Não faz feitiçaria de construção?»
Estava convencido de que Makwava iria negar a minha acusação, pois
o representante da Frelimo na aldeia de Matambalala dificilmente pode­
ria admitir ser um feiticeiro.
Makwava inclinou a cabeça para trás e riu suavemente: «O que faço e
o que o chefe de povoação fazia são, na verdade, a mesma coisa, Andi-
liki... Só que eu o faço de dia, no meu gabinete, ou no centro da aldeia,
ao passo que o chefe de povoação o fazia junto à shitcda, de noite.»1
Tissa e eu ficámos espantados.
Recordei uma reunião de aldeia que eu tinha presenciado em Man-
tambalale, em Setembro de 1994, e a que Makwava presidira. Ele estava
de pé numa plataforma baixa, no centro de uma multidão de vários mi­
lhares de aldeões. A reunião (que durou horas e na qual se trataram ques­
tões tão prementes como as próximas eleições) ia já longa, quando Mak­
wava gritara: «Tive conhecimento de que há um problema no mercado.»
A multidão, que começara a aborrecer-se e a ficar agitada, calou-se.
A voz de Makwava subiu de tom. «Disseram-me que algumas pessoas
tratam as notas que gastam para que elas voltem para a sua posse durante
a noite. Essas notas tratadas misturam-se com outras nas caixas do di­
nheiro e levam-nas consigo quando regressam aos seus donos.»12
Da multidão elevou-se um murmúrio em surdina, no meio do qual
acabei por conseguir distinguir algumas vozes.

1Ver um relato semelhante em Geschiere (1997,4, n. 7).


2 Meyer (1995, 238) conta uma história parecida de dinheiro enfeitiçado que serve
para roubar a riqueza dos outros. Schmoll (1993, 198) fala do «dinheiro de vento» entre
os hausas, que desaparece dos cofres dos vendedores do mercado.

367
K u piliku la

Uma delas dizia: «Sim, já vi isso acontecer!»


Outra contestou: «Notas tratadas?! Ah! Essas notas nunca saem do
mercado! Vão procurá-las nas caixas de dinheiro dos vendedores de lipal
É para lá que vão todas, à noite! É lá que os comerciantes as perdem!»
Uma outra insistiu: «Não, não, é verdade. Já aconteceu a pessoas que
nem sequer bebem lipal Tem de se fazer qualquer coisa quanto a isto!»
O presidente cofiou a barba com os dedos, enquanto a multidão se vol­
tava a calar. Depois falou, firmemente mas com simplicidade. «Este com­
portamento tem de parar», afirmou. Pouco depois, a reunião foi adiada.3
Só agora, ao falar com Makwava cinco anos mais tarde, percebi que,
nesse dia, numa reunião oficial da aldeia, o presidente da aldeia praticara
feitiçaria de construção.
No espaço político que Makwava ocupava, algures entre o Estado e o
povo da aldeia de Matambalale, os reformadores neoliberais tinham ima­
ginado algo bastante diferente. Este espaço deveria ser ocupado pela «so­
ciedade civil» - instituições e configurações sociais simultaneamente in­
dependentes do Estado e funcionando em harmonia com este no
projecto de «racionalização» da vida política moçambicana. A presença
de Makwava neste espaço indicava, ao mesmo tempo, a convergência
confusa do Estado e do poder oculto na região do planalto e a divergência
das concepções estatais e rurais do poder e do seu mandato.
Perguntei a Makwava: «Isso não é perigoso?»
Fitou-me atentamente enquanto eu explicava a minha pergunta. «Se,
por exemplo, eu não gostar do meu vizinho, posso simplesmente acusá-
-lo de feitiçaria e causar-lhe problemas - fazer com que seja multado, es­
pancado ou expulso?»4
Makwava reconheceu, com um breve murmúrio, o incómodo pro­
blema que eu levantara. Depois explicou: «Em caso de dúvida, chamo
um nkulaula que já tenha sido mwavi, para me aconselhar. Ele tem ma­
neiras de saber se o acusado é mesmo um mwavi ou não.»5

3 Geschiere (in Fisiy e Geschiere 2001, 229) conta uma história similar de um admi­
nistrador do governo dos Camarões que admoesta publicamente os aldeões por pratica­
rem feitiçaria.
4 U m dos informadores sul-africanos de Ashforth (1998b, 523) também levantou esta
questão. Bailey (1994,3,73,204-205) descreve uma história semelhante numa aldeia in­
diana, sugerindo que o acusado, Tuta, era tratado coino um «arruaceiro» em parte por
ter obtido mais sucesso financeiro do que os aldeões estavam dispostos a aceitar num
homem da sua casta - porque ele se tinha «soltado dos grilhões do passado».
5 Tal com o os chefes de povoação do período anterior à independência, Makwava
protegia-se das suspeitas populares de ele próprio ser feiticeiro atribuindo o seu conheci­
mento do reino invisível a feiticeiros-consultores.

368
Governando na penum bra

Mariano Makwava (à esquerda, a conversar com Eusébio Tissa Kairo) não com ­
bateu pela Frelimo durante a guerra da independência de M oçam bique, tendo
passado os anos da guerra na Tanzânia. Por este m otivo, nunca teria sido n o ­
m eado presidente de aldeia n o período socialista da Frelimo. Mais de um a dé­
cada depois, porém, a Frelimo escolheu-o para esse cargo devido à sua conduta
equilibrada e hábil diplomacia.

«Ele usajyangele [adivinhação]?», perguntei.


«Sim», respondeu Makwava.
«Ayangek não mente, às vezes?», inquiri, fazendo-me eco de palavras
que ouvira a muitos aldeões.
Permanecemos calados por momentos e depois Makwava voltou a
falar: «A maior parte das acusações é verdadeira. A maioria é feita por
vavi. Eles sabem destas coisas. E dizem a verdade, porque assim caem
nas minhas boas graças. Sabem que eu os protejo daqueles que denun­
ciam e, em troca, prometem proteger-me.»
As palavras de Makwava só exacerbaram as minhas preocupações. Ali
sentados, como estávamos, no meio dos materiais de construção espa­
lhados pelo pátio, considerei impossível dissociar a sua autoridade ad­
ministrativa dos seus interesses pessoais. Através das suas actividades co­
merciais, Makwava tomara-se um dos homens mais ricos da aldeia. Os
aldeões - incluindo membros da sua família - tinham bons motivos para
o invejarem, e ele boas razões para se sentir ameaçado, tanto de dia como

369
K u piliku la

de noite. Na verdade, quanto mais sucesso tivesse em «defender-se», mais


rico ficava, tomando-se cada vez mais alvo de feitiços e com crescente
justificação para «se proteger». Makwava utilizava diversos recursos na
defesa dos seus interesses e na consolidação do seu poder, incluindo os
seus parceiros comerciais, os seus conselheiros-feiticeiros e a Frelimo. No
corpo deste responsável de aldeia-feiticeiro de construção, misturavam-
se a autoridade estatal, o estatuto económico e poder do oculto, refor­
çando e acentuando as hierarquias existentes de formas que os reforma­
dores neoliberais dificilmente poderiam ter imaginado, e muito menos
desejado.
Eu não era o único a ter estas preocupações. Os aldeões de Matamba-
lale discutiam entre si se era bom ou mau que o homem que os gover­
nava conhecesse o reino invisível tão bem como Malcwava parecia co­
nhecer. Para alguns, as suas palavras e acções provavam o seu potencial
depredatório; era um homem dotado de grande apetite e, aparentemente,
com capacidade para satisfazer esses anseios. Outros argumentavam que
a ordem em Matambalale dependia do governo nocturno de Malcwava,
tanto como do seu governo diurno.
Em abono de Malcwava, importa dizer que Matambalale era uma das
aldeias mais harmoniosas da região do planalto. Durante o tempo que
lá passei, ao longo dos anos - e passei mais tempo em Matambalale do
que em qualquer outra aldeia do planalto -, nunca tive notícia de um
conflito violento entre os aldeões, nem de casos de justiça local que en­
volvessem espancamentos, expulsões ou execuções. E Malcwava falara
verdade: nenhum habitante de Matambalale fora morto por leões du­
rante o seu mandato. Ao que parecia, as formas mais dramáticas de fei­
tiçaria conhecidas pela população de Mueda estavam controladas na­
quela aldeia.
No entanto, fiquei com a impressão de que a invulgar paz existente
em Matambalale era ftágil, tal como a legitimidade de que Makwava usu­
fruía. Como todas as aldeias do planalto, Matambalale tinha demasiados
feitiços; morriam demasiadas pessoas, demasiadamente jovens, para que
esse facto fosse arrumado como resultado de «doenças de Deus». Incapaz,
no momento do ajustamento estrutural, de transmitir às pessoas que
tinha a seu cargo os bens e serviços de que uma autoridade superior o
incumbira - incapaz de garantir que os pratos do seu povo estavam
cheios - ele continuava a ser vulnerável às frustrações e suspeitas delas.
Nos interstícios que em Mueda perduravam entre o socialismo de van­
guarda e a descentralização democrática, a autoridade de Makwava não
assentava nem no mandato assertivo de um partido revolucionário au-

370
Governando na penum bra

dacioso, nem na voz do povo que servia. Nem «tradicional» nem «cien­
tífico», parecia que Malcwava governava no espaço crepuscular entre o
Estado e os habitantes da aldeia - na penumbra entre o reino visível e o
reino invisível - com toda a destreza que isso exigia.6

6 Quando regressei a Matambalale para fazer uma curta visita, em 2004, descobri que,
de fàcto, Makwava tinha sido substituído no cargo de presidente da aldeia em eleições,
realizadas antes de esse cargo ter dado lugar ao de «dirigente comunal». O vencedor dessas
eleições, Romão Geraldo Nankuta, era um dos catorze candidatos que concorreram con­
tra Malcwava. Embora algumas pessoas considerassem este processo como democrático,
havia habitantes de Matambalale que receavam que um dirigente comunal eleito apenas
representasse as pessoas que tinham votado nele, enquanto anteriormente o presidente
da aldeia, tendo sido nomeado pelas autoridades distritais, os governava a todos.

371
Capítulo 28

Reforma constitucional
e suspeita perpétua
«Olha para isto, mano», disse Marcos, com excitação. «Estão a investir
o Papá Chissano como humu\»
Era o primeiro dia em que os candidatos das eleições de 1994 estavam
autorizados a fazer campanha e o presidente da República, Joaquim Al­
berto Chissano, deslocara-se a Mueda. Marcos e eu estávamos os dois na
pista alcatroada do aeródromo, com milhares de pessoas vindas de todo
o planalto. Vários grupos corais de mulheres trajando vestidos de cores
alegres, novos e todos iguais, feitos a partir de capulanas, competiam
entre si na demonstração de um apoio entusiástico ao líder da Frelimo,
cantando canções em louvor do «Papá Chissano».
A decisão de Chissano de iniciar a sua campanha em Mueda foi si­
multaneamente simbólica e estratégica. Queria lembrar à nação as ori­
gens heróicas da Frelimo na luta armada pela independência moçambi­
cana e recordar aos habitantes do planalto a filiação histórica que há
muitos anos os ligava à Frelimo. Neste dia, iria falar não em português,
a língua do Estado, mas sim em kiswahili, a língua franca da luta armada
no mato.
Um pequeno grupo de antigos combatentes da Frelimo, reunido na
pista, tinha os seus próprios objectivos simbólicos. Tinha «mobilizado»
a população local nas semanas anteriores, preparado a cidade, construído
o palco para os oradores, ensaiado os grupos corais e exercitado o corpo
protocolar de atiradores. Tinha «entregue Mueda ao Papá Chissano», e
agora queria falar com ele. Depois de descer do avião e de saudar as au­
toridades locais e os representantes da imprensa, o presidente viu-se,
inadvertidamente, perante os antigos combatentes. Estes mandaram-lhe
tirar a camisa e depois impuseram-lhe as insígnias de humu (que incluíam
uma túnica, uma fita em tomo da cabeça e uma lança), colocaram-no

373
K u piliku la

O «Humu Chissano» em campanha, no ano de 1994. Durante a guerra da inde­


pendência de M oçam bique, Chissano foi chefe de segurança interna da
Frelimo.

numa liteira e transportaram-no pela cidade até ao local do comício de


campanha.1
Enquanto acompanhávamos o cortejo, pensei no relato que Mandia
fizera da sua própria nomeação como humu - de como a sua matrilinha-
gem tentara domar a sua energia turbulenta e limitar o seu apetite insa­
ciável, obrigando-o a engolir poder em nome da linhagem. Perguntei a
mim mesmo se Chissano, que passara algum tempo em Mueda durante
a guerra de independência e casara com uma mulher maconde de Mueda,
tinha noção da complexidade deste gesto dos antigos combatentes. Apa­
rentemente, os meios de comunicação social não tinham. Talvez com al­
guma ajuda interpretativa dos conselheiros brasileiros pagos a peso de
ouro pela campanha de Chissano, um jornal noticiou que o povo de
Mueda tinha coroado Chissano «imperador» (Savana 1994, 1). Clara­
mente, o significado da expressão «transição para a democracia» em Mo­
çambique dependia muito da linguagem através da qual era interpretada.

1 Descrevo este acontecimento mais pormenorizadamente noutro trabalho (West


1997a).

374
Reforma constitucional e suspeitaperpétua

Como tenho sugerido ao longo da parte I I I deste livro, os agentes e os


defensores da liberalização da economia e do regime político moçambi­
canos falavam das várias reformas como meios de «abrir espaço» a uma
maior participação dos moçambicanos numa florescente economia do
pós-guerra e numa próspera sociedade civil pós-socialista (Weinstein
2002). O povo de Mueda, porém, vivia a reforma neoliberal de forma
bastante diferente. Para muitos habitantes do planalto, o fim da «moder­
nização socialista» e o início da «democracia» e do «desenvolvimento»
constituíram um momento histórico assinalado não pela abertura de es­
paços a uma maior participação da parte deles, mas sim pelo abandono
desses espaços - e das obrigações que a sua ocupação implicava - por
parte do Estado.
Na verdade, Moçambique empreendeu o caminho da reforma neoli­
beral de acordo com as exigências do momento histórico: fim da Guerra
Fria, fim do apoio dos aliados ex-socialistas e imposições do ajustamento
estrutural instigado pelos doadores (ocidentais). Com a redução dos or­
çamentos, o Estado abandonou esferas de acção essenciais da vida mo­
çambicana. Como vimos, as escolas rurais não tinham manuais nem pro­
fessores, nos centros de saúde faltavam médicos e medicamentos, e as
redes de abastecimento de água não dispunham de combustível nem de
peças sobressalentes. O Estado exortara as populações rurais moçambi­
canas a contribuírem para o projecto nacional de modernização socialista
produzindo, nos seus campos, a riqueza da nação (Machel 1978), e
apoiara esses esforços através das cooperativas de produtores, das herda­
des estatais e da extensão agrária (Saul 1985), mas agora retirava-se quase
por completo da esfera da agricultura camponesa. Com a produção agrí­
cola em declínio, o Estado nem cobrava impostos às populações rurais2
nem se envolvia no comércio da sua produção. Para o Estado moçambi­
cano, essas populações tinham-se tomado cada vez mais irrelevantes.
Na era do ajustamento estrutural, o Estado recorreu a outras fontes de
rendimento. As empresas estatais ineficientes foram vendidas; outras
foram entregues a concessionários a troco do pagamento de uma renda
e procuraram-se parceiros para participarem em empresas comuns na ex­
ploração de recursos nacionais fundamentais (Pitcher 2002). Na província
de Cabo Delgado, o Estado concentrou a sua atenção nas minas de gra­
fite e de mármore, criando emprego para algumas centenas de habitantes
da província e partilhando grande parte dos lucros com investidores es-

2 Ver também Hibou (1999, 86-88).

375
K u piliku la

trangeiros.3A presença do Estado concentrou-se, assim, nos locais de in­


vestimento e exploração económicos intensivos e diluiu-se no resto do
território nacional, onde se praticava uma «governação de baixa intensi­
dade».
Nas localidades onde as agências internacionais de ajuda e desenvol­
vimento estabeleciam a sua presença no espaço rural, o Estado conce­
dia-lhes funções governamentais que iam desde o acompanhamento e a
resolução dos conflitos sociais, até à manutenção das infra-estruturas, ao
fornecimento de bens essenciais e à prestação de serviços sociais. No pla­
nalto de Mueda, só as escolas patrocinadas por O N G continuavam a ter
acesso aos materiais necessários para funcionarem. Só os centros de saúde
com pessoal e equipamentos pagos pelos missionários católicos ou pelas
O NG estavam em condições de administrar os tratamentos adequados.
Só com o apoio e a supervisão de uma O N G suíça a rede de abasteci­
mento de água continuava a funcionar. Em grande medida, o Estado
cedeu a estas organizações a soberania sobre zonas que considerava de
pouco ou nenhum valor.4
Enquanto o Estado se afastava de vastas zonas de Moçambique e de
amplos sectores da vida moçambicana, os responsáveis estatais e os diri­
gentes do partido não o faziam. De facto, as elites ocuparam como empre­
sáriosprivados alguns dos espaços de onde se tinham, simultaneamente,
retirado como agentes do Estado. Os responsáveis governamentais e os che­
fes de partido - ou os seus clientes - apossaram-se de recursos valiosos
trabalhando com O N G estrangeiras, ou como agentes destas (Lubke-
mann 2001,98).5Também obtiveram grandes lucros facilitando e/ou fa­
zendo parcerias com os investidores estrangeiros.6 Membros da elite
oriundos de Mueda apressaram-se a registar direitos sobre terras florestais
no centro do planalto e a negociar concessões com empresas madeireiras
japonesas ou sul-africanas. Outros orientaram os investidores estrangeiros
através da burocracia estatal, pretensamente hostil, para estabelecerem o

3 Ver Alden (2001, 86-89) para um relato circunstanciado do investimento directo es­
trangeiro em Moçambique, no período posterior ao ajustamento estrutural.
4 Hanlon (1991) e Saul (1993) oferecem estimulantes comentários sobre o desafio que
essas tendências colocavam à soberania moçambicana.
5 Hibou refere-se genericamente a este processo chamando-lhe a «privatização do de­
senvolvimento», e argumenta que ele anda de mãos dadas com a «erosão da capacidade
administrativa e institucional oficial» e com «um reforço do poder das elites, sobretudo
a nível local» (1999,99-100). Chabal e Daloz descrevem este fenómeno com o a «descen­
tralização da corrupção» (1999,105).
6 Ver M. Bowen (1992, 270); Harrison (1999, 543); Alden (2001, 92); Pitcher (2002,
140-178).

376
Reform a constitucional e suspeita perpétua

seu domínio na província, em sectores económicos como os transportes


públicos ou o turismo. A privatização, nas palavras de um analista dos
assuntos moçambicanos, «abriu novos espaços para uma reconfiguração
das elites estabelecidas em conformidade com os novos interesses inter­
nacionais» (Alden 2001,123, itálico meu) - uma abertura de espaço bas­
tante diferente da que fora prometida pelos reformadores neoliberais.
Na sua análise, muito provocadora, do Estado neoliberal, Ferguson e
Gupta (2002) alegam que os doadores ocidentais, os representantes das
O NG e os investidores internacionais criam o contexto propício para o
surgimento de novas formas de «govemamentalidade neoliberal» que im­
plicam uma, continuação, no mesmo espaço, do Estado e dos seus agen­
tes, e não a «diminuição» do Estado que os reformadores neoliberais pro­
metem.7 Em Moçambique, porém, a govemamentalidade neoliberal
emergiu na paisagem de forma desigual e ficou concentrada nos espaços
limitados do investimento comercial e/ou da intervenção das ONG. No
resto do território, a projecção do Estado diminuiu ou este desapareceu
por completo.8 Mesmo em zonas de concentração do investimento ou
das intervenções, o valor da cidadania moçambicana diminuiu com a di­
luição da soberania moçambicana. Aos olhos de muitos representantes
das ONG, os aldeões do planalto de Mueda eram «beneficiários», não
cidadãos. Para muitos investidores, bem como para as elites locais com
quem faziam parcerias, os moçambicanos (exceptuando um pequeno
número de trabalhadores) não passavam de potenciais (embora fracos)
reivindicadores dos recursos desnacionalizados e dos lucros a obter dos
mesmos. Em nada necessitando destes habitantes rurais, os investidores
e seus intermediários não tinham qualquer motivo para lhes oferecer
fosse o que fosse - nem qualquer razão para cultivar a sua deferência e
lealdade.9 Os espaços abertos pela reforma neoliberal abrigaram e con­
solidaram, assim, uma elite que se isolou, a um nível sem precedentes,

7 Ver Bayart, Ellis e Hibou (1999,3).


8 Pitcher apresenta uma análise subtil das formas com o o Estado moçambicano se
manteve como uma força poderosa, não obstante a transformação neoliberal, tomando-
-se «mais magro e mais avarento» nesse processo (2002, 145); embora isto seja verdade,
para muitos moçambicanos das zonas mrais, o Estado desapareceu efectivamente, aban­
donando muitas esferas de actividade que o tinham posto anteriormente em contacto
com a população rural.
9 Isto faz lembrar as transformações operadas pela «revolução verde» na Malásia, tal
com o Scott (1985) as descreve, na medida em que, no início da mecanização, os pro­
prietários fundiários deixaram de precisar dos trabalhadores sem terra para os ajudar nas
colheitas e, por isso, já não cultivavam a sua lealdade com o clientes através da oferta de
«presentes».

377
K u piliku h t

das redes sociais mais vastas (quer estas se exprimissem no idioma da


nação ou no idioma dos laços de parentesco), um processo que Mbembe
denominou «privatização da soberania» (2001:78). À semelhança do que
acontecia noutras partes do país, as elites originárias de Mueda construí­
ram para si próprias residências luxuosas e contrataram empresas de se­
gurança privadas para proteger os seus bens, formando enclaves de ri­
queza num mar de pobreza.101
É claro que, quando Joaquim Chissano se apresentou perante os habi­
tantes do planalto na pista do aeroporto, necessitava efeclivamente- por mo­
mentos - de algo deles. Estava sobretudo interessado em convencê-los a
votar nele e na Frelimo. Os doadores ocidentais que financiaram as eleições
moçambicanas em 1994 estavam interessados em mais do que isso. Preten­
diam persuadir os moçambicanos de que, através do voto, podiam dar uma
forma definitiva ao exercício do poder em Moçambique. Patrocinadores
das eleições «desinteressados» informavam agora os eleitores moçambicanos
de que podiam, simplesmente, expulsar dos seus cargos os. responsáveis es­
tatais corruptos que tinham abusado do poder e conceder um mandato a
outros candidatos, que prometessem uma boa governação. Através do exer­
cício racional e transparente da escolha pública, os poderes destrutivos po­
diam ser dominados e obrigados a trabalhar para o bem comum.
A maioria das pessoas do planalto com quem falámos considerava as
eleições mais como um fardo do que como uma bênção (West 1997a,
2003b). Muitas estavam incontestavelmente descontentes com a evolu­
ção política e económica em curso. Para a maior parte delas, porém, a
Frelimo era uma identidade histórica que as envolvia. Enquanto Frelimo,
o povo de Mueda tinha dado à luz uma nova nação e Chissano era o di­
rigente escolhido do partido, o seu pai («papá»), e eles os seus apoiantes,
os seus filhos. Não se pode «expulsão» o próprio pai, em nenhuma cir­
cunstância. E que alternativa tinham, em qualquer caso? Dhlakama, «o
bandido», cujas tropas tinham atacado aldeias do planalto e morto filhos
e filhas dos macondes?
Por conseguinte, a maioria dos habitantes do planalto via perigo, e
não esperança, na ideia da descentralização democrática. Seguramente
que muitos estavam descontentes com os administradores locais, mas a
maioria respondia às perguntas sobre a ideia de elegerem esses fimcionários
com outra pergunta: «E então quem nos governava?»11 A sua resposta
não era uma mera capitulação perante o autoritarismo. Reconheciam as

10Ver também Alden (2001,96,118).


11 Cf. Bailey (1994,202-203).

378
Reform a constitucional e suspeita perpétua

complexidades inerentes à governação. Entendiam que o estabelecimento


de uma ordem mutuamente benéfica está inextrincavelmente ligado ao
exercício de uma força superior e, ao mesmo tempo, que a autoridade
legítima depende do consentimento que cultiva. Consideravam que o.
poder de um governante era proporcional à sua capacidade de obter re­
cursos que outros não alcançam. O poder e a autoridade dos responsáveis
locais, tal como os concebiam, provinham do Estado, de que esses res­
ponsáveis eram porta-vozes. Receavam que um dirigente nomeado por
eles próprios não falasse em nome do Estado - não pudesse contar com
a força deste para manter a ordem a nível local nem resolver os problemas
locais. Um dirigente que escolhessem falaria apenas com a voz deles -
uma voz que não tinham qualquer motivo para crer que o Estado escu­
taria. Temiam, na realidade, que um Estado que lhes permitia nomear os
seus próprios dirigentes fosse um Estado que já não estava interessado
em governar - um Estado que já não estava disposto a mostrar prodiga­
lidade para cultivar o consentimento, um Estado que se preparava para
abdicar da sua autoridade e/ou fugir às suas responsabilidades. 12
Muita gente do planalto considerou de mau agoiro a realização, em
2001 e 2002, das eleições para os cargos de presidente de aldeia, antes do
cínico reconhecimento desses dirigentes, pelos administradores de Mueda,
como «dirigentes comunais». Para muitos, um Estado que já não queria
saber quem ocupava tais cargos era um Estado que deixara de se interessar
pelos domínios sociais em que os seus titulares exerciam a autoridade.
Os mesmos receios instigavam a antipatia com que os aldeões encara­
vam a ideia neolibeíal de «dar poden> às «autoridades tradicionais». Em­
bora a maioria concordasse com a noção de que os administradores do
Estado deviam consultar os vanang’oh venekaja na administração dos as­
suntos locais, nenhum daqueles com quem falámos via qualquer sentido
na restauração da hierarquia das autoridades gentílicas da época colonial.
Os habitantes do planalto sabiam que as «autoridades tradicionais» ainda
estariam em pior posição para accionar um poder superior na resolução
dos problemas locais - ainda falariam menos com a voz do Estado do
que os chefes de aldeia eleitos.
O régulo, claro está, era uma invenção particularmente artificial no pla­
nalto de Mueda - uma «autoridade tradicional» de «tradição» bastante mais
duvidosa aqui do que noutras partes de Moçambique. Ao rejeitarem a ideia

12 Ou seja, os habitantes do planalto de Mueda estavam mais ansiosos por obter pro­
tectores políticos do que por mudar o carácter da ordem política (cf. Chabal e Daloz
1999,14,44).

379
K u piliku la

de devolver o poder às autoridades tradicionais - na verdade, ao rejeitarem


a ideia neoliberal da delegação de poderes em geral - os habitantes do pla­
nalto não revelaram ser, todavia, um povo «sem tradições». Na verdade,
foi através das suas suspeitas sobre a descentralização democrática que, no
contexto da reforma neoliberal, eles expressaram mais convincentemente
uma tradição de autoridade distintiva, uma lógica duradoura (ainda que di­
nâmica) que animava a forma como entendiam o poder num mundo em
permanente mudança. Segundo esta lógica, os governantes legítimos não
só comiam bem como também alimentavam necessariamente as pessoas
a quem governavam. No momento da «transição para a democracia» em
Moçambique, os habitantes de Mueda julgaram os sçus governantes de
acordo com esta lógica e acharam que eles deixavam muito a desejar. Os
responsáveis da administração, sugeriam eles, comiam bem mas traziam
pouco, ou nada, para o prato colectivo. Em vez de exigirem o reconheci­
mento das autoridades tradicionais, que poucos acreditavam serem capazes
de os alimentar, os aldeões focaram a atenção no comportamento dos res­
ponsáveis estatais, exigindo a sua reforma. •
Na pista do aeroporto, os habitantes do planalto de Mueda vestiram
o presidente da república de acordo com a visão que tinham de uma au­
toridade legítima. Fixando-o com o olhar, procuraram transformá-lo e
refazer, assim, um mundo despedaçado por conflitos violentos e um caos
obsceno. Concederam-lhe, enquanto humu, a voz de um leão, autori-
zando-o a falar-lhes como uma figura de autoridade. Exigiram-lhe, con­
tudo, que exercesse a autoridade de forma responsável. Mandataram-no
para os proteger - e aos moçambicanos em geral - das forças destrutivas
da guerra, da crise económica e da indiferença política que havia décadas
os vinha afligindo. Visto que os representantes do seu Estado se tinham
habituado a «comer tudo», eles transmitiram-lhe as suas expectativas de
que ele e o seu partido ingerissem o poder em nome do povo moçambi­
cano e não no deles próprios. Pediram-lhe que ele e o seu partido se com­
portassem como guardiães da nação e não como predadores - como fei­
ticeiros de construção e não como feiticeiros de perigo.
Enquanto os arquitectos da emergente democracia moçambicana su­
geriam que o funcionamento do poder no país podia ser racionalizado
(tomado transparente e responsabilizado) através do processo eleitoral,13

13 Na mesma linha, Manning assevera que as «eleições podem ... servir para demonstrar
a todos os partidos que, mesmo no auge da intensidade, a competição política obedece
a regras imparciais, mutuamente acordadas, tanto na letra com o no espírito» (2001:166)
- isto apesar de ela própria reconhecer que a transição para a democracia em Moçambique
sofria de feita de transparência (156).

380
Reform a constitucional e suspeita perpétua

os habitantes do planalto de Mueda, invocando o esquema de pensa­


mento da uwavi, sustentavam e exprimiam uma visão bastante diferente
do poder. Continuavam a desconfiar que este era definido não por dis­
posições constitucionais, mas sim por capacidades excepcionais de fixar
o mundo com o olhar, ver as suas lógicas operativas, e assegurar e proteger
assim os interesses de cada um. Um poder verdadeiramente firme, diziam
os aldeões de si para si, só estava ao alcance de algumas pessoas extraor­
dinárias; 14 para todas as outras, permanecia inatingível - muitas vezes,
até imperceptível.15Além do mais, o esquema de pensamento da uwavi
alimentava a ambivalência dos habitantes do planalto face ao poder,16
uma ambivalência resultante do carácter caprichoso que eles considera­
vam inerente ao próprio poder. Este último, segundo o esquema da
uwavi, era simultaneamente essencial para a criação de prosperidade e de
bem-estar social e potencialmente destrutivo das vidas individuais e da
harmonia social. Vista através desse esquema, a política (ao contrário da
perspectiva neoliberal) era uma competição infindável, com regras em
permanente mudança - uma competição em que não havia vitória final
nem derrota completa. Além do mais, era uma competição inevitável;
os que não entravam nela corriam o risco de ser inadvertidamente devo­
rados e os que entravam arriscavam-se a sofrer uma derrota inevitável
face a uma força superior.
«A vida é uma guerra», como Tissa me dizia. Olhando a natureza da
vida através do esquema de pensamento da uwavi, os habitantes de
Mueda armavam-se para a batalha. Do frágil ponto de observação que
esse esquema lhes proporcionava, sujeitavam o poder a uma suspeita per­
pétua e as figuras de autoridade (de qualquer tipo) a um julgamento in­
cessante. Utilizando a uwavi como um diagnóstico de poder, fixavam os

14 Ver também Meyer (1998).


15 Enquanto Scott (1998) sugere que os subalternos mantêm «registos ocultos» que
animam o seu entendimento do mundo e as suas interacções com este, a mensagem
transmitida pelo discurso da uw avi - para que todos ouvissem - era a de que o poder
estava escondido. Peelc defende: «Muitos povos africanos sustentam que o ‘verdadeiro’
conhecimento é oculto, secreto, apenas acessível a algumas pessoas capazes de o utiliza­
rem adequadamente» (1991: 14). Nyamnjoh escreve: «Se a realidade da política se limi­
tasse ao aparente e transparente, com o a democracia liberal determina, dificilmente ha­
veria razões para explicar o êxito ou o insucesso de outra maneira. De um m odo geral,
se as pessoas tivessem o que mereciam, e merecessem o que tinham em termos demo­
cráticos liberais, pouca necessidade haverià de uma qualquer mão oculta, real ou imagi­
nária. Contudo, com o nada é o que parece, deverá considerar-se que o invisível traça um
retrato completo da realidade.» (2001,37)
16Ver também Ciekawy e Geschiere (1998).

381
K u piliku la

governantes com o seu olhar perscrutador, procurando discernir as forças


decisivas que animavam o seu mundo e conduzi-las da melhor maneira
possível.1718
Claro que as pessoas comuns negavam o poder do seu olhar, negavam
a capacidade de refazerem o seu mundo de acordo com a visão que ti­
nham dele. À semelhança dos curandeiros que negavam ser feiticeiros -
«Nangu?Mene!» (Eu? Não!) - a maioria das pessoas teria ficado chocada
com a ideia de que as suas desconfianças refaziam, de algum modo, o
seu mundo - «Wetuf Menel» (Nós? Não!). Interagindo com as transfor­
mações políticas e económicas em curso através da linguagem da uwavi,
diziam-se não tanto capazes de ver o funcionamento do poder, como de
ver que elefuncionava deforma invisível.18 Na verdade, através do discurso
de uwavi, os habitantes do planalto exprimiam muitas vezes resignação
perante a ideia de que nem sempre se consegue ver verdadeiramente, ou
conhecer com certeza, a realidade em que nos encontramos suspensos19
- que, por vezes, apenas é possível obter relatos em segunda mão sobre
o modo como o mundo funciona, e porquê.
Ao percepcionarem a complexidade irredutível do mundo através da
linguagem da uwavi, as pessoas de Mueda continuavam a complexificar
o seu m undo.20 Na verdade, ao interagirem com o mundo através do es­
quema de pensamento da uwavi, quase nunca conseguiam (re)produzir
um mundo melhor e, nesse mundo, vidas melhores para elas próprias,
como Tissa lamentara no pátio do seu irmão. Ao percepcionarem um
mundo em guerra através da linguagem da uwavi, continuavam a travar
inúmeras e infindáveis guerras.21
Não se pretende com isto sugerir que os habitantes do planalto de
Mueda não aspiravam a um mundo diferente, a um mundo melhor. Ape­
sar de Max Marwick ter sugerido, há décadas, que as crenças na feitiçaria
«conservam as normas indígenas ameaçadas pelas normas modernas»
(1965:258), através da linguagem da uwavi há muito que os aldeões ma­
nifestam uma profunda ambivalência face às importantes transformações
históricas por que têm passado.22 De facto, no momento em que Mo-

17Através do discurso da uw avi, os habitantes do planalto de Mueda tentavam discer­


nir as «estruturas de poder clandestinas» ou «estruturas-sombra de poder» sobre as quais
cientistas políticos africanistas com o Bayart, Ellis e Hibou (1999, 22-23) escrevem. Ver
também Ellis e ter Haar (1998,177).
18 Ver também Kendall (2003); Sanders (2003).
19Ver também Beidelman (1993, 8).
20 Ver também Kapferer (1997,15).
21 Ver também Stewart e Strathem (2003).
22 Ver também Lattas (1993,70).

382
Reform a constitucional e suspeita perpãu a

çambique fazia a «transição para a democracia», mais do que «resistirem»


à racionalização neoliberal do poder, eles continuaram a duvidar das afir­
mações de que era possível obrigar o poder presente entre eles a funcionar
de forma aberta, justa e em beneficio de todos. Através da linguagem da
uwavi, exprimiram uma ambivalência semelhante em relação à moder­
nidade,23 traindo simultaneamente o seu desejo de coisas modernas, a
ansiedade que lhes causavam as consequências perturbadoras do «desen­
volvimento» desigual24 e a sua frustração por a modernidade não se ma­
terializar entre eles.25Através do discurso da uwavi, os habitantes do pla­
nalto «sondavam os aspectos mágicos da modernidade», como Jean e
John Comaroff o exprimiram, tentando «penetrar nq impenetrável, pers­
crutar o imperscrutável, recapturar as forças suspeitas de redireccionar o
fluxo do poder no mundo» (1993: xxx).
Na linguagem da uwavi, porém, os aldeões exprimiam o seu senti­
mento de que o mundo em que viviam é, em grande medida, um pro­
duto das visões criativas dos outros, das «ciências» fantásticas dos outros.
Reflectiam sobre a complexa verdade de que o mundo se esquiva, geral­
mente, às suas tentativas de o (re)fazerem e que, pelo contrário, os (re)faz
a eles muitas vezes de forma violenta e imprevisível. Em suma, reconci­
liavam-se com a dialéctica indomável da vida, tal como a viviam. Na sua
desconfiança, porém, residia a sua sabedoria, pois o poder comportava-
-se no mundo que conheciam exactamente como eles aventavam, inver­
tendo as disposições constitucionais é fugindo ao olhar racionalizador
dos reformadores neoliberais. Na medida em que isto acontecia, através
da elaboração das suas antivisões do mundo, os habitantes do planalto
de Mueda transcendiam - invertiam, viravam e/ou anulavam (kupilikuld)
- as visões dos reformadores neoliberais.

23 Englund e Leach (2000), que contestam a ideia de que discursos como o da uw avi
são exteriores a uma modernidade única e a criticam, lembram-nos que os sociólogos da
viragem do século xx estabeleceram uma ligação bem explícita entre modernidade e am­
bivalência.
24 Worsley (1968,44) sugere que a ambivalência dos melanésios em relação aos bene­
fícios da modernidade europeia se exprimia de fsrma semelhante através dos cultos da
carga. June Nash (1993 [1979], 164) argumenta que os mineiros das minas de estanho
bolivianas exprimiam, ao mesmo tempo, frustração e desejo pelas coisas modernas através
do culto de Supay.
25 Tal como os patamunas descritos por Whitehead (2002,176), os aldeões de Mueda
têm experimentado a modernidade como algo «muito episódico e fugaz, uma série de
espectáculos únicos, com temporadas curtas e produções que depressa terminavam».

383
Iff
Epílogo

Linhas de sucessão
«É ali que fencontrarás o novo humu Mandia», informou Marcos, apon­
tando para uma casa anichada no entroncamento das estradas de Mui-
dumbe e de Mocímboa da Praia para Mueda, em Lilondo.
«Mandia mudou-se de Nimu?», perguntei.
«Não, não», respondeu Marcos, brincando com a minha confusão.
«Este é o novo humu Mandia!»
«Não entendo», confessei.
Marcos riu-se de mim.
Tinham passado cinco anos desde que, em 1994, visitara pela última
vez o ancião em Nimu, localidade onde ele vivia. Nas muitas vezes que
conversámos nesse ano, Mandia contara-me que a instituição do humu
tinha sido trazida para a região do planalto por cativos macuas, que fora
remodelada para satisfazer as necessidades das matrilinhagens macondes
e que, em dada altura, tinham chegado a existir trinta e seis vahumu na
região do planalto. Descrevera-me o demorado processo de empossa-
mento dos vahumu pelos seus pares, as substâncias mágicas que lhes
davam poder para protegerem o seu povo e resolverem os litígios, e o
papel que desempenhavam na preservação da unidade da lihola. Lamen­
tara-se por haver apenas três vahumu vivos na região do planalto, naquele
tempo. Como os outros ainda eram mais idosos do que ele, Mandia re­
ceava vir a ser o último a morrer e que já não restasse nenhum humu que
tratasse do seu corpo para o enterramento, facto que colocaria os mem­
bros da matrilinhagem em grave perigo de serem atacados pelos preda­
dores mortais que o corpo não tratado poderia produzir, quando as subs­
tâncias mágicas que ingerira ao tomar-se humu saíssem dele.
«Porque é que agora só há três vahumu, quando dantes existiam tan­
tos?», perguntara-lhe eu.
«Quando os vahumu morrem, não são substituídos», respondera-me,
simplesmente.

385
K u piliku la

Quando insisti que me esclarecesse melhor sobre esta questão, ele


disse-me: «Os jovens, hoje, não querem tomar-se vabumm.
Acabou por me revelar que isto se devia ao facto de, no período pós-
-independência, a Frelimo ter condenado abertamente a instituição e ri­
dicularizado publicamente os vabumuvivos. Na verdade, nenhum humu
tivera sucessores desde o início da guerra da independência - desde a
época em que a maioria dos habitantes do planalto ficara a viver sob a
autoridade da Frelimo, nas zonas libertadas.
Encontrava-me nos Estados Unidos quando recebi uma carta de Mar­
cos a informar-me que o humu Windu, com quem eu também conversara
durante o trabalho de campo em 1994, tinha falecido. Mandia dissera-
-me que, quando um humu morre, o Sol fica rodeado de anéis incandes­
centes. Tentei descortinar o Sol no enevoado céu da Virgínia sobre a
minha cabeça e interroguei-me que aspecto teria ele tido, em Mueda,
logo a seguir a essa morte de que só meses depois fui informado.
Agora, de regresso a Mueda, em 1999, eu não podia crer que Marcos,
que tão assiduamente me informava quando as pessoas que eu conhecia
no planalto faleciam, não me avisara da morte de um amigo que me era
tão querido como Mandia. Mesmo assim perguntei-lhe, apreensiva­
mente: «O ancião Mandia morreu?»
«Não!», respondeu Marcos imediatamente, para aliviar a minha ansie­
dade. «Mas nomeou um sucessor!»
«A sério!?», a informação surpreendera-me.
«São boas notícias, não são?», volveu Marcos.
Dei uma resposta de antropólogo: «Vamos ter de o entrevistar rapida­
mente!»
Dias depois, voltámos ao entroncamento de Lilondo e saímos da es­
trada para entrar no pátio da casa do novo humu. Quando descemos da
carrinha e nos aproximámos da casa, a figura que estava no umbral da
porta tomou-se mais distinta. Em primeiro lugar, reparei nas insígnias do
humu: o pano enrolado à semelhança de um kilt, o blazer, o cachecol à
volta do pescoço e a fita em tomo da cabeça. Estava tão acostumado a
ver esta indumentária exclusivamente usada por vahumu idosos, que fi­
quei admirado quando me aproximei o suficiente para apreciar a postura
aprumada do novo humu e o brilho do seu rosto jovem. Era, supus, mais
novo que Marcos.
O novo humu convidou-nos a sentarmo-nos com ele em cadeiras que
um jovem serviçal arrastou para fora de casa e colocou ao sol, naquela
manhã fria e ventosa. Dissemos-lhe quem éramos e a natureza da nossa
pesquisa. Respondeu-nos que já sabia o que pretendíamos. O ancião

386
E pílogo

Mandia tinha-o mantido ao corrente do trabalho que fizéramos com ele


anos antes.
«Já estavas a trabalhar com o ancião nessa altura?», perguntou Marcos.
«O conselho de anciãos vashitunguli nomeou-me para suceder a Man­
dia em 1988», informou-nos ele. «Nos oito anos seguintes, o ancião tra­
balhou na minha preparação.»
Fiquei espantado. Dirigi-me a Marcos: «Mandia não nos contou nada
disto quando trabalhámos com ele!»
O novo humu riu-se suavemente. «Nessa altura ainda era cedo. Ainda
não sabíamos o que iria acontecer.» Os seus ares conspirativos transmi­
tiam-nos agora a mensagem de que a preparação sigilosa do novo humu
vashitunguli era motivada pela incerteza a respeito da reacção que o go­
verno poderia ter.
«As coisas agora estão diferentes?», perguntou Marcos, delicadamente.
O jovem Mandia - personificação da afirmação confiante da sua likola
- sorriu timidamente: «Os tempos estão a mudar.»
A figura do novo humu continuou a confundir-me, enquanto Marcos
e eu estivemos sentados a conversar com ele. A sua postura aprumada
corporizava, de algum modo, a essência da dignidade definidora de um
humu. Tinha maneirismos estranhamente floreados para um homem da
sua geração, que todavia realçavam o seu rosto jovem e as mãos ágeis.
Falava um português espantosamente fluente, mas o tom de voz, a ca­
dência das palavras e o imaginário dos pensamentos que exprimia fa­
ziam-me esquecer de que não estávamos a falar em shimaconde. O novo
humu era, simultaneamente, um recuo à juventude passada dos seus an­
ciãos e a visão de um futuro habitado por novos vahumu.
«Mandia contou-nos, há alguns anos, que não havia jovens interessa­
dos em tomar-se vahumu», disse-lhe eu, como se ainda não estivesse con­
vencido da sua existência. «Assegurou-nos que os últimos vahumu esta­
vam todos a morrer sem deixar sucessores.»
Sentia-me, talvez, algo magoado por o ancião não me ter revelado que
estava a preparar um sucessor.
O jovem Mandia escutava as minhas palavras pacientemente. Respon­
deu dizendo: «Muitos dos jovens que hoje vivem nas aldeias não têm
uma experiência directa com os vahumu. Ainda não eram nascidos
quando os últimos vahumu desapareceram das suas matrilinhagens.»
«Então como é que o acolhem a si?», perguntou Marcos.
«Estão a começar a ter uma ideia do que era a nossa tradição.»
Pareceu-me que estas palavras do jovem Mandia visavam tranquilizá-
-lo a esse respeito, tanto quanto a nós.

387
K u piliku la

«E os anciãos?», perguntou Marcos.


«Há vashitunguli em quase todas as aldeias do planalto. Sou tratado
com respeito não só por eles como por toda a gente. Sou um humu para
todos. Todos se orgulham de mim.»
É possível que o jovem Mandia estivesse a beneficiar da crise de auto­
ridade então existente no planalto de Mueda. Cansadas de funcionários
corruptos e abusivos, as populações poderiam ter esperado que os novos
vahumu agissem melhor. Ocorreu-me porém que, tal como condenavam
as autoridades «oficiais» pelo abuso do poder ou pela utilização dos re­
cursos para beneficio pessoal, poderiam com a mesma facilidade rejeitar
os novos vahumu por não possuírem os meios necessários para exercer
qualquer tipo de influência.
O novo humu Mandia, contudo, parecia ter alguns recursos ao seu dis­
por. Enquanto nos traçava uma breve autobiografia em resposta às per­
guntas de Marcos, examinei o ambiente circundante. Este era muito di­
ferente da casa rural isolada e abandonada do ancião Mandia, que eu
conhecera tão bem no passado. Vários jovens estavam sentados na va­
randa coberta ao longo da casa do novo humu, esculpindo segundo a tra­
dição dos escultores de ébano macondes.1Chegavam e partiam pessoas,
de quem, ocasionalmente, Mandia recebia dinheiro, ou a quem pagava.
Percebi que geria uma pequena cooperativa de escultores muito activa, a
partir de sua casa.
O jovem Mandia contou-nos, a Marcos e a mim, que nascera em
Mueda, no ano de 1959. O seu pai, Feliz Focas, e a sua mãe, Emestina
Magwogwe, deram-lhe o nome de Jorge. Teria frequentado a escola de
uma missão católica, segundo afirmou, se a guerra da independência não
tivesse eclodido quando ainda era muito pequeno. Juntamente com a fa­
mília, fugiu para as florestas controladas pela Frelimo, no centro do pla­
nalto. Ali iniciou os seus estudos numa escola da Frelimo em 1969. Em
1976 chegara ao quarto ano, mas foi então recmtado para o exército, com
17 anos de idade. Fez a recruta em Boane, no Sul de Moçambique, e foi
militar até 1984. Depois de sair do exército, regressou ao planalto de
Mueda, onde aprendeu a esculpir. Durante um curto período, em 1987
e 1988, viveu na Beira, onde esculpia e vendia as suas obras, mas em
breve regressou ao planalto.
«No passado, os vahumu estavam proibidos de trabalhar», comentei
eu. «Nem sequer lhes era permitido cultivar os próprios campos, mas
vejo que fazes aqui negócio.»

1Ver Kingdon (2002); West e Shaipes (2002).

388
Epílogo

«É a evolução da sociedade», respondeu Mandia. «No passado, as pes­


soas reuniam-se em tomo do humu. A sua casa era um pólo central da
povoação. As pessoas levavam-lhe alimentos. Havia tanta comida no seu
armazém que ele podia partilhá-la com a comunidade, quando havia ne­
cessidade. Agora isso já não acontece.»
Recordei-me do que o ancião Mandia me tinha dito anos antes - que
os jovens não queriam ser vabumu porque esse cargo não tinha dignidade
na sociedade contemporânea do planalto. Os jovens queriam viajar, nego­
ciar, ser homens experientes. O dinheiro transformara-se para eles num
novo tipo de mitela, cujo conhecimento determinava o valor de cada um.
Ocorreu-me, porém, que os primeiros vàbumu do planalo de Mueda - os
fundadores da «tradição» - eram, na verdade, homens ousadamente ino­
vadores. Muitos descendiam de mães ou avós escravas, capturadas nas ter­
ras baixas de língua macua que rodeavam o planalto. Ao tomarem-se va-
humu, restabeleciam os seus laços com esses lugares distantes e
transformavam as suas origens humildes numa fonte de prestígio. Eram
empossados como vabumu nas terras baixas e não no planalto, por màhumu
macuas estrangeiros e exóticos - para os habitantes de Mueda. Os seus co­
nhecimentos eram validados com base nas suas viagèns e nos intercâmbios
estabelecidos com pessoas que encontravam noutros lugares. Afigurava-
-se-me que o novo humu explorava os horizontes dos habitantes do pla­
nalto tal como os seus antecessores haviam feito outrora, descobrindo fon­
tes ocultas de riqueza e de poder e repatriando-as para o planalto, procu­
rando dessa forma reanimar a instituição «tradicional» do humu.
Como se quisesse confirmar os meus pensamentos, uma carrinha de
caixa aberta escarlate parou na berma da estrada, à beira do pátio do
humu. O motorista buzinou. O humu levantou-se e caminhou descon-
traidamente em direcção ao carro, enquanto a buzina voltava a soar, com
mais insistência. Um homem de rosto corado meteu a cabeça de fora,
pela janela do lado do condutor, gritando: «Pressa! Pressa!», num portu­
guês macarrónico, com forte sotaque bóer. Soube depois que ele era de
facto sul-afficano - um dos gerentes da exploração madeireira que abrira
recentemente na orla leste do planalto.
Mandia continuou a andar vagarosamente, preservando a sua dignidade
o melhor que podia. Após uma curta conversa com o bóer, chamou um
dos membros mais jovens da sua cooperativa de escultores, que carregou
às costas duas estátuas de um metro e meio praticamente idênticas e correu
a toda a pressa em direcção à estrada. Uma das estátuas foi comprada, a
outra rejeitada. Quando depois examinei a estátua rejeitada com mais aten­
ção, descobri que era uma versão esculpida do diabrete desenhado nas em-

389
K u piliku la

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Q uando conheci o jovem humu Mandia, este informou-me que o ancião Man­
dia, que passava o dia a trabalhar nos seus campos situados nas terras baixas e
dormia à noite num a cabana, se desequilibrara recentemente e caíra na fogueira
em que cozinhava, tendo-se queimado com gravidade. C om o Marcos e eu tí­
nham os de partir em breve do planalto de M ueda e a única forma de chegar
junto do ancião era caminhando a pé, não pudem os visitá-lo. Mandia perguntou
se eu conhecia algum tratamento bom para as queimaduras. Fui buscar o m eu
estojo de primeiros socorros e dei-lhe materiais para tratar as feridas do ancião
- partilhando, para variar, um p ouco dos meus conhecim entos médicos.

balagens de preservativos que, nessa altura, eram distribuídas nas zonas ru­
rais de Moçambique por uma ONG de saúde pública denominada PSI
(Agha, Karlyn e Meekers 2001; Karlyn 2001). O diabrete e os preservativos
eram denominados «JeitO». Também enquanto escultores, Mandia e os
seus aprendizes tinham insuflado uma nova vida na «tradição» maconde
- o tipo de vida que muitos turistas e clientes das lojas dos aeroportos acha­
vam cativante, mas que os críticos de arte ocidentais desaprovavam por
lhe faltar «autenticidade» e dignidade (West e Sharpes 2002).

390
E pílogo

Quando Mandia regressou da berma da estrada, sentou-se com cir­


cunspecção, tentando ganhar compostura - para restabelecer o ambiente
em que estava a ser entrevistado como humu por um cientista social es­
trangeiro. Compreendi que o seu prestígio era precário e arrancado com
grande esforço de um mundo cheio de formas de autoridade concorren­
tes, que ameaçavam pôr constantemente em causa a dignidade do seu
cargo. O novo humu personificava de várias maneiras a identidade e a ex­
periência do seu povo.
Como se pressentisse os meus pensamentos, o novo humu retomou o
fio da conversa, observando, simplesmente: «Actualmente, temos de nos
sustentar. Faço aquilo que sei fazer.»
Quase no fim da nossa conversa, Mandia confiou-me: «Houve uma al­
tura em que receámos que todos os vabumu morressem sem deixar suces­
sores. Ninguém queria ser humu, porque o humu já não tinha qualquer fun­
ção. Ainda temos medo de transgredir as regras e leis do governo. Ainda
agora as nossas funções continuam limitadas. Estamos à espera que o go­
verno esclareça qual será o nosso novo papel. Não iremos substituir as es­
truturas governamentais. Não haverá um regresso à autoridade tradicional
do passado. Até aí sabemos nós. Mas podemos desempenhar um papel
essencial na sociedade, se o governo quiser trabalhar connosco.»
No ano seguinte, quando fiz uma curta visita a Pemba, Marcos infor­
mou-me, acabrunhado: «Mano, o Mandia morreu.»
«O ancião?», perguntei, entristecido com a ideia de não voltar a ver
esse amigo de longa data.
«Não», respondeu Marcos. «O Mandia jovem.»
Olhei-o, boquiaberto. Embora não fosse tão chegado ao jovem Man­
dia como era ao ancião, senti que a morte do único humu novo era uma
. tragédia ainda maior.
Marcos fora informado por um parente que o humu ficara doente e
morrera quando estava na Beira, a tratar os filhos de um sobrinho que
também adoecera e falecera recentemente. A(s) doença(s) que tinham
causado a morte a estes homens jovens não foram especificadas. Fiz as
contas, mentalmente: Mandia morrera com quarenta anos de idade.
Marcos e eu fomos beberricando as nossas cervejas, enquanto o ar pa­
rado da noite nos envolvia em silêncio. Perguntei a mim mesmo se, onde
quer que eu estivesse nesse dia, o Sol sobre a minha cabeça teria ficado
rodeado de anéis sombrios e, se assim fora, por que não reparara eu neles.
Interroguei-me também se o Mandia ancião teria tempo para preparar
outro sucessor.

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índice remissivo
«

A . utilização de intermediários nati­


A cesso à terra e sua distribuição, 33- vos, 22, 141,161-168,213-215.
-34; África do Sul, 55,178;
n o tem po pré-colonial, 73, 75-76; ajuda militar à Renamo, 295;
n o tem po colonial, 141-142, 168- Forças de D efesa (South African
-169,171-172; D efense Forces), 259.
após a independência, 22, 250- Água, 55, 67, 68, 69, 79, 98-99, 116,
-251,255-257,275-276,320. 155, 176,328-329;
Á cido de bateria, 89 n .6 ,304,313. abastecimento de, 2 9 ,5 5 ,2 5 1 ,2 7 1 ,
ACLLN (Associação dos C om baten­ 354,375-376.
tes da Luta de Libertação N acio­ Ajustamento estrutural, 23, 51, 103,
nal) (v. antigos combatentes da Fre- 272-273, 279, 298, 309, 351, 370,
limo: associação). 375-376.
Acordo Geral de Paz de 1992,22. Aldeias com unais, 26, 85, 249-260,
Adivinhação, 136-137,234, 368-369; 276;
e caçadores de feiticeiros itineran­ e acesso à terra, 250-251;
tes (waing’anga), 101; e a feitiçaria, 261-268;
e feiticeiros feridos, 109-113; padrões residenciais nas, 258;
e feitiços, 99-102; com o povoados estratégicos con­
para identificar feiticeiros, 32-33; tra a Renamo, 259-260;
técnicas, 99. e vigilância, 144.
Administração colonial, 44, 137, 141- Alemães (v. exército akmãà).
442; Alfredo (catequista), 177.
encarceramento e/o u exílio pela, Aligwama, Leonardo Kuvela Nan-
165-166,209-210,213,224-225; dondo, 237,239.
e ordálios de feitiçaria, 101 n.9; Alimentação (v. consumo: como idiom a
suspeita de feitiçaria, 45; das relações depoder/soàais).
tolerância do curandeirismo, 166 Am bição, 76, 82-83, 172-173, 203,
n.14; 352-354, 362-363.
tolerância de práticas relacionadas Ametramo (Associação dos M édicos
com a feitiçaria, 165-166,358; Tradicionais de Moçambique),

419
Kupilikula

309-313,327,333 h .2 1 ,334, 342; e a guerra civil, 295-296;


e corrupção, 311-312; e o M inistério da Administração
e governo, 309-310, 312; Estatal, 314-319;
registo de curandeiros em Mueda, e a modernização socialista, 142;
312; e o neoliberalismo, 283-285, 297,
e Sistema Nacional de Saúde, 312- 314,379;
-313. e a Renamo, 23,295-296,317-319,
Amissy, Joseph, 342. 321;
Anawena, Vicente, 129-132,138,265. e sociedade civil, 299-300
A N C (Congresso N acional Africano), (v. tb. intermediários nativos).
259. Autoridades das aldeias:
A ngonis (povo), 67-68. e o curandeirismo tradicional, 330;
Antigos combatentes da Frelimo, 272- e a descentralização democrática,
-274,288,356,373-374; 365-371,379-380;
associação, 14,51,52,274-276; e feitiçaria, 261-268;
Secretaria de Estado, 272-273. e a feitiçaria de construção (uw avi
Aprendizagem (v, feitiçaria: e aprendi­ w a kudenga), 26-27, 30, 262,
zagem ; curandeirismo: e aprendiza­ 265,366-371;
gem). suspeitas de feitiçaria, 369-370.
Arens, W., 133. Avalimuka, Luís, 143,334;
Arpac (Arquivos do Património Cul­ co m o curandeiro registado, 308-
tural), 50, 52. -309;
Associação do M édicos Tradicionais registo de doentes m antido por,
de M oçam bique (v. Ametramo). 331-332;
Associação dos Combatentes da Luta e sonhos, 121;
de Libertação Nacional (ACLLN) e técnicas de contrafeitiçaria, 104-
(v. antigos combatentes da Frelimo: as­ -105.
sociação). Aviões, 272,344;
Atalambwele, Salapina, 99. durante a guerra, 222-224, 226
Autom óveis, 37,276,279, 344 n.9. n .1 0 ,23 8 ,2 4 5 ;
Autoridade tradicional: com o veículos de feitiçaria, 143,
e democracia, 23,299-300; 2 3 8 ,2 4 5 , 344.
e os doadores ocidentais, 23, 283, Azande (povo), 41 n .7 ,90 n .9 ,100 n.7,
297-298, 305; 124 n.10, 131 n.2, 133 n.5, 136-
e a descentralização democrática, -137,246, 326 n.9.
23, 3 8 ,3 2 1 n.31;
e desenvolvim ento, 317, 320;
disciplina e castigos administrados B
pela, 316,318; Bacon, Francis, 346.
e a Frelimo, 2 3,252-2 5 4 ,2 6 4 ,2 9 5 - Bagamoyo (Tanzânia), 231.
-297, 314-322; Baina, Komesa, 85-88, 9 1 ,1 2 0 .
e o governo (era neoliberal), 320- Bakhtin, Mikhail, 4 0 4 1 ,4 3 4 4 ,4 8 ,5 9 ,
-322; 136.

420
ín dice rem issivo

Banco de D esenvolvim ento Popular C am po de reeducação de Ruarua [v.


(v. BD P). Ruarua (campo de reeducação)].
Baptismo, 180,187-188,195. Candom blé, 126 n .1 2 ,196 n .2 1 ,197,
Base Central (da Frelimo), 22, 221, 303 n .l.
227,252. Captura e tráfico de escravos, 44, 60,
BD P (Banco de D esenvolvim ento Po­ 6 3 -6 9 ,7 3 ,1 2 2 ,1 4 7 ,1 5 7 ,3 1 4 .
pular), 274-275. Carlos (catequista), 177.
Beira (cidade), 388,391. Carne, 79-84,350;
Benjamim, Sim ão, 17-20, 24, 28-34 com ida por feiticeiros, 269;
passim , 38. distribuição de, 82-84.
Bens de consum o (era colonial), 169- C atecism o, 181, 185-188, 200-201,
171; . 207.
com ércio de, 202; C C A D R (Caixa de Crédito Agrícola
disponíveis na loja da missão, 201- para o D esenvolvim ento Rural),
-202; 274,277,280.
e feitiçaria, 143-144,172-173; C EA (Centro de Estudos Africanos,
preços, 170 n.21; Universidade Eduardo M ondla-
redistribuição de, 171. ne), 22.
Bens de consum o (era neoliberal): Chefes militares (pré-coloniais), 74-75,
com ércio de, 365-366; 84,143,147-160,164-165.
e feitiçaria, 276. Chefes de povoação (vanang’olo vene
Bentham, Jeremy, 263. kaja), 60-61,73-77;
Bento, Augusta, 68. aqueles que recebem os melhores
Bíblia, 179,196 n .2 2 ,204 ,3 2 9 . pedaços de carne, 82;
Brandon, George, 1 9 6 ,1 9 8 ,2 6 4 n.6. e o catecismo, 200;
Bravura, 34-35, 8 1 ,1 1 7,123,134-135, depois da independência, 249-260;
239-240,291. e a feitiçaria nas aldeias comunais,
Briggs, Charles, 55. 267-268;
Bruininks, João (padre), 187. e a feitiçaria de construção (wwavi
Bulasi, Ambrósio Vicente, 24-28, 38, wakudenga), 129-134;
3 1 8 ,3 2 2 , 355, 357, 362-365. e redistribuição de bens, 74-75;
suspeitos de feitiçaria, 60-61, 131-
c -133;
Cabo Delgado (província), 50-54,195, e técnicas de contrafeitiçaria, 105;
216-217,224 n .l, 225 n .7,259,274, e a visão, 133.
275 n . l l , 289-290, 311, 375. Chefes de território (sing. nang‘olo
Caçadores de feiticeiros itinerantes mwene shilambó), 73-74,163.
(waing’anga), 101-102, 265 n.7, C hem off, John, 48.
290-293. China, 223.
Caixa de Crédito Agrícola para o D e­ Chipande, Alberto, 210 n .5 ,241.
senvolvimento Rural (v. C C A D R ). Chissano, Joaquim, 272,274,378;
Camionetas, 274-275; e a autoridade tradicional, 295-
e feitiçaria, 37,277-279. -296,319;

421
Kupilikula

na cam panha eleitoral de 1994, e feitiçaria, 84,93-96.


373-374,378-380; Contrafeitiçaria:
investido com o humu, 373-374, pelos chefes de povoação, 105;
378-380; técnicas, 102-107.
com o presidente da Associação Contra-insurreição portuguesa, 227.
dos C om batentes da Luta de Contratos de trabalho, 166,202;
Libertação Nacional, 274. e missionários, 176-178,202-203.
C hitolo (missão de), 188. Conversão religiosa, 144, 178-179,
C hom bo, João, 2 79,312-313,342. 1 8 9 ,1 9 4 ,1 9 6 -1 9 8 ,2 0 5 .
Cidadania, 284,377. Cooperativas:
Clifford, James, 48. na era colonial, 172,217-218;
Colaboradores (com o exército portu­ após a independência, 253, 271,
guês) suspeitos de feitiçaria, 143- 274.
-144,237-239,244-246. Coragem (v. bravura).
Cólera, 88; Corão, 326,329-330.
e feitiçaria, 85-86. Corpos consum idos por feiticeiros,
ComaroffjJean, 178,189-190. 2 1 ,3 7 ,4 3 , 84,9 3 -9 6 ,2 7 8 .
C om aroffjoh n , 178,189-190. Corrupção, 270-276, 305-306, 311-
Comer (v. consumo; como idiom a das re­ -312,376-378,388.
lações de poder/sociais). Crédito, 274-275.
Comércio costeiro (pré-colonial), 65- Cristãos, 140,175-205 passim , 326;
-66, 73-75,150-152,170. e feitiçaria, 142,144,204-205.
Comércio de armas de fogo, 65-66,75, Cristianismo, 63 n .l, 175-205 passim.
157-158; Cristo, 142,196-197,204-205.
proibição colonial do, 168. Cuidados de saúde:
Comércio: após a independência, 251;
nas zonas libertadas, 217-218; durante a guerra civil, 270-271,
após a independência, 2 51 ,2 5 3 . 296;
Companhia d o Niassa, 141,15 4 ,1 6 3 - e o ajustamento estrutural, 297-
-164,176. -299,375-376.
Congresso N acional Africano (v. Curandeirismo:
ANQ. aprendizagem, 117-121,123;
Consciência de classe (v. Frelimo; incre­ com o forma de refazer o m undo,
mento da consciência de classe). 106-107;
C onselho de anciãos, 1 9 ,7 6 ,2 8 5 ,3 6 6 , durante a guerra de independên­
387. cia, 240-244,246;
C onselho de Ministros, 253, 320. e invisibilidade, 106-107;
Consum o: com o m undo de transcendência,
com o idiom a das relações de 107, 314;
poder/sociais, 60-61,71-72,81- e possessão por espíritos, 118-121,
-84,161-167,171-173,204,211- 123, 326 -3 2 6 ,3 3 8 ,3 4 1 ;
-213, 217-218, 253, 268, 272, e reino invisível, 106-107;
276,284, 314, 370, 380; e sonhos, 121,123;

422
ín dice rem issivo

técnicas, 106-107,323-335; Dar-es-Salam (Tanzânia), 212, 218,


e visão, 106-107. 301 n.12.
(v. tb. especialistas em medicina tradi­ Decreto das Autoridades Comunais
cional) (15/2000), 320-321.
Curandeirismo tradicional: Dem ocracia, 26, 27, 38-39, 46, 254,
e as autoridades das aldeias, 330; 2 8 3 ,2 8 7 ,3 2 2 ,3 5 8 , 374,380;
e conhecim ento, 339-341; e autoridade tradicional, 23, 299-
e a descentralização democrática, -300,317-320;
23-24; e neoliberalismo, 378-379.
e os doadores ocidentais, 23-24, Descentralização democrática, 23-24,
297-298,305; 26,319-321;
e a Frelimo, 295-297; e a autoridade tradicional, 23-24,
durante a guerra civil, 295-296; 38,296-299,319-321;
e o Ministério da Saúde, 334; e as autoridades das aldeias, 365-
e a m odernização socialista, 142; -371,379;
e o neoliberalismo, 283-285,297; e o curandeirismo tradicional, 23-
e a Organização M undial de -24,296-299;
Saúde, 298-299,301; e o Estado, 378-379.
e o saber indígena, 300-301,326; D esenvolvim ento, 38, 224, 274, 284,
e a sociedade civil, 300. 343,347,353-354, 375-376;
Curandeiros: e autoridade tradicional, 317-318;
com o antigos doentes, 118-120; e feitiçaria, 277,383.
com o feiticeiros reformados, 127; Dhlakama, A fonso, 378.
suspeitos de feitiçaria, 60-61, 117, Dias, A ntónio Jorge, 21, 9 0 ,1 0 1 , 137,
123-127. 140,222.
(v. tb. especialistas em medicina tradi­ Dias, Margot Schmidt, 21, 90, 101,
cional) 137, 140.
Curandeiros tradicionais: Diferenciação económ ica, 279,284.
registo de, em M ueda, 308-309, Diferenciação social, 140-141,279;
331. e o cristianismo, 202-203.
Discurso da feitiçaria, 4 0 4 3 ;
e ambivalência em relação ao
D poder, 46, 60;
Dam ião, Renata, 111,120-121. com o antivisão, 346,381-382;
Dança (v. dança mapíko-, v. Oo.feitiçaria: dialéctica do, 44;
e dança). com o forma de falar das relações
Dança mapíko, 71; de poder/sociais, 4 2 4 3 ,6 0 -6 1 ,
e missionários, 179-181,184,190; 137-138, 142-145,. 172-173,
proibição pela Frelimo durante a 198, 204-205, 235-236, 248;
guerra, 234; 280-281,284-285, 381-382;
e recrutamento pela Frelimo, 208; com o forma de interagir com o
e ritos de iniciação, 180; m undo, 4 3 4 7 , 138, 141-143,
e subversão, 208 n .l. 248, 280-281, 283-285, 363,

423
Kupiltkula

381-383; professores em , 202.


e a história do planalto de Mueda, Escravos zom bies, 37, 93, 270, 277,
59-60,137-138,139,142-144; 279, 363.
e a identidade de Mueda, 59-60; Escrita árabe, 3 2 4 ,3 2 8 ,3 3 0 .
com o «linguagem de poder», 38- Escultura (m aconde), 308, 388, 389-
-39; -390.
e o neoliberalismo, 4 3 ,4 6 4 7 . Especialistas em medicina tradicional,
Dívidas de carne, 95-96. 101-107.
Diwani, Kibiliti, 239. Espíritos (v. curandeirismo: e possessão
Doadores ocidentais, 23-24; p o r espíritos).
e autoridade tradicional, 23, 283, Espíritos árabes, 324-325,341.
297-298,305-306; Estados U nidos da América, 103,343;
e curandeirismo tradicional, 23-24, operações na Guerra do Vietname,
297-299,305-306; 223-224;
e eleições, 378; U SA ID (United States A gency for
e neoliberalismo, 304; International D evelopm ent),
e privatização, 273. 2 7 5 ,2 9 8 ,2 9 9 .
Doenças de D eus, 1 0 0 ,1 0 9 ,3 2 8 ,3 7 0 . Eufemismos para feitiçaria (v.feitiçaria:
D onham , D onald, 232. eufemismospara).
Evans-Pritchard, Edward E., 41 n.7,
136-137,246.
Exército alem ão, 151, 154, 158, 163
Educação: n.3.
na era colonial, 194-195; Exército de Libertação Nacional Afri­
nas zonas libertadas, 231-233; cana do Zimbabué (v. Z A N L A ).
após a independência, 251; Exército português, 162-163;
durante a guerra civil, 271; e a conquista do planalto de
e o ajustamento estrutural, 376. Mueda, 7 4 ,1 4 1 ,1 4 3 ,1 5 4 -1 5 8 ;
Eleições, 46, 295, 300, 378-379, 371 e feitiçaria, 143-144, 157-158,237-
n .6 ,380 n.13; -238;
em 1994, 22, 296-297, 373-374, com o produto da imaginação de
378; feiticeiros, 153-154, 160, 238-
e doadores ocidentais, 378. -239,243-244;
Eliade, Mircea, 98. tácticas na guerra contra a Frelimo,
Elites: 223-227.
e corrupção, 376-378,273 n n .5 ,6; e visão, 236-237.
e investim ento externo, 376-377; (v. tb. PIDE)
suspeitas de feitiçaria, 270, 278-
-2 8 1 ,3 7 0 ,3 6 4 n.10;
e veículos, 342-343. F
Envenenam ento e feitiçaria (y. feitiça­ Fanta Laranja, 89.
ria: e envenenamento). Federação d o Trabalho do Tanganhica
Escolas de missão, 177,192-194,388; (v. TFL).

424
ín dice rem issivo

Feitiçaria {uwavi): e ambivalência 132- eufemismos para, 2 4 ,8 6 ,1 1 7 ,1 2 3 -


-133,136; -124, 134, 200, 204, 212, 239,
e a administração colonial, 101 244, 248, 261, 289, 340, 345,
n.9; 351;
e as aldeias comunais, 261-268; e o exército português (durante a
antibalas, 1 5 9 ,2 3 3 ,2 3 9 ,2 4 2 ; guerra de independência), 144,
aprendizagem, 4 8 4 9 ; 237-239;
de autodefesa {uw avi w a kulishun- de fabricação {uw avi w a kupikd),
gila), 261-262,277,279,370; 115-117;
e as autoridades das aldeias, 261- com o forma de refazer o m undo,
-268; 9 2 ,1 3 3 ,2 4 4 ;
e bens de#consum o, 144,172,276- e a Frelimo (durante a guerra), 233-
-277; ‘ -248;
e a captura e o tráfico de escravos, e a Frelimo (na era neoliberal),
65-66, 69; 355-364;
com o ciência, 143,285, 341, 343- e o governo (na era neoliberal),
-346; 357-364;
e a cólera, 85-86; d o governo {uw avi w a sbilikali),
e os conflitos armados pré-colo­ 2 6 1 ,2 6 6 ,2 6 8 ;
niais, 74; com o guerra, 127,130;
com o conhecim ento difícil de ma­ e a guerra de independência, 236-
nejar,.344-345; -248;
com o conhecim ento inacessível à e invisibilidade, 90-92;
maioria das pessoas, 49, 93, julgamentos por, 19-20, 3 0 ,3 3 ;
123-124,344,381-383; de matar (uw avi w a kubyaa), 93;
conhecim ento dela com o prova e a migração laborai, 173;
do seu dom ínio, 116-117,123- e ordálios, 101,137 n.15;
-127,340,363; de perigo {uw avi w a kujoa), 93,
e a conquista do planalto de 132;
M ueda pelos portugueses, 143, e a PIDE, 237;
158-160; com o poder neutro, 132-133;
e consum o, 84,93-96; com o produtiva, 133, 136;
e os cristãos, 144,204; de respeito (uw avi w a isbima), 132;
e dança, 91-92,261,267; de ruína {uw avi w a Iwanongo), 93,
definições de, 41 n.7; 132;
e o desenvolvim ento, 2 7 7 ,383; e sociabilidade, 91-92;
com o destituída de sentido, 363; com o transcendência do m undo,
com o destrutiva, 133,136; 4 4 4 6 , 90-91,131;
dinâmica da, 88-96; e veículos, 277-279;
de enriquecimento pessoal {uw avi e visão, 69, 9 0 -9 2 ,1 3 1 ,1 5 9 ;
wakushungd), 27 7 ,279,370; visionando um m undo transfor­
e envenenam ento, 92,247; m ado, 4 4 4 6 ,6 0 -6 1 , 9 2 ,133.
e etnografia, 4749; (v. tb. discurso da feitiçaria-,feitiçaria

425
Kupilikula

de construção [u w avi w a ku- vista com o corrupta, 144;


dengaj) e o curandeirismo tradicional, 295-
Feitiçaria de construção (uw avi w a ku- -297;
dengd), 27,129-136; e feitiçaria de construção, 2 7 ,1 4 4 ,
e as autoridades das aldeias, 30, 243-245, 359, 380;
262,265,366-371; formação da, 208-212;
e a Frelirao, 2 7 ,2 44-248,359,380; formação político-militar, 218;
e os missionários, 197-198. formas de disciplina e castigo, 21,
Feiticeiros: 26,214-215,227-229,235,245-
construtores de leões, 20-21,30-31, -246,258-260;
34-35,37,94,115-117,269-270, guerrilheiros suspeitos de feitiçaria,
360-361, 366,370; 45,247-248;
feridos por contrafeitiços, 109-113, e a identidade de Mueda, 52,378;
289-290; increm ento da consciência de
com o gente sem m edo, 35; classe, 1 4 2 ,2 1 2 -2 1 3 ,2 3 3 ,2 5 3 ;
transformando-se em leões, 20,37, invisibilidade (durante a guerra),
94,123-124,355-356. 222-225,236-237;
Felista (v. M kaim a, Felista Elias). e leões, 243,247;
Ferguson, James, 377. e a medicina tradicional, 307-308;
Ferme, Mariane, 138. co m o partido de vanguarda, 253;
Fernandez, James, 107. presidentes (chairmen), 215-219,
Ferreira, Manuel, 155-157. 2 3 4 ,2 4 5 ,2 5 0 ,2 5 4 ;
FMI, 2 3 ,2 7 2 ,2 9 5 . proibição de práticas relacionadas
Foucault, Michel, 263. com a feitiçaria, 21-22,233-248
Frelimo (Frente de Libertação de M o­ passim , 264;
çambique): recrutamento, 142,208-215,222;
abolição das chefias tradicionais, 22, secretários (durante a guerra), 218,
142,252-254,295-297,314-315; 234 ,2 5 4 ;
e a autoridade tradicional, 21-22, táctica de guerrilha, 223,233-234;
252-254, 264, 295-297, 314- tolerância do curandeirismo (du­
- 322; rante a guerra), 240-243;
cartões de m embro, 162,212-213, tolerância do curandeirismo (após
236; a independência), 266, 292-
comités (durante a guerra de inde­ -293,295-297;
pendência), 215-216,218; tolerância das práticas relacionadas
Terceiro Congresso do Partido com a feitiçaria, 144, 240-243,
(1977), 308; 266-268,357-364;
Q uinto Congresso do Partido e os vahumu, 258;
(1989), 297; violência contra as autoridades
conselhos (durante a guerra de in­ gentílicas, 162,214-215;
dependência), 218; e visão (durante a guerra), 223,
conselhos (após a independência), 245.
254-255; Fundação Ford, 298.

426
ín dice rem issivo

Fundo M onetário Internacional (v. e autoridade tradicional, 295-296;


FM I). e curandeirismo tradicional, 295-
-296;
e cuidados de saúde, 270-271,295-
G -296;
Gabinete de Estudos de Medicina Tra­ e educação, 271.
dicional (v. GEM T). Guerra de independência de M oçam ­
Gamito, Alfredo (ministro da Adm i­ bique, 85, 88, 118, 129, 137, 207-
nistração Estatal), 319, 320 n.28. -248, 249, 264, 266, 271-272, 274,
Garro, Linda, 107. 373-374,386;
GE (Grupos Especiais), 226-227. e educação, 17, 52;
Gebhard (padre), 183. e feitiçaria, 236-248.
GEM T (Gabinete de Estudos de M e­ Gupta, Alchil, 377.
dicina Tradicional), 299-301;
e substâncias medicinais, 306-307.
Gente da noite (vashilo), 212 ,2 3 9 . H
•GEP (Grupos Especiais de Pára-que­ Helicópteros, 37, 88;
distas), 226-227 na guerra de independência, 226,
G ood, Byron, 339. 237-238,245;
Governação cien tífica, 25, 232, 318, com o veículos de feitiçaria, 85-86,
322, 371. 143,237-238,245,355-357.
Governo (neoliberal): Hepatite, 304.
e autoridade tradicional, 320-322; H em eo, Atanásio, 113.
e feitiçaria, 17-35,46-47,357-364; H om em n ovo (socialista), 23 2 ,2 5 3 .
responsáveis suspeitos de feitiçaria, H om oín e (distrito), 316-317.
2 8 ,4 6 4 7 ,3 6 3 -3 6 4 . H orton, Robin, 140,344.
[v. tb .feitiçaria: do governo (uw avi Humu (pl. vabum ti), 76-77;
w a shilikali)] com o conselheiro, 72-73,77,134;
Grã-Bretanha, 64-65. com o diplomata, 72-73, 77;
Green, Edward, 298-299,313-314; e a Frelimo, 258 ,3 8 6 ;
e o registo dos curandeiros, 309; e o governo na era neoliberal, 387,
e o saber indígena, 301, 306-307; 391;
e as substâncias m edicinais, 306- após a independência, 258,317;
-307 e ingestão de substâncias m edici­
Grupos Especiais de Pára-quedistas (v. nais, 77,134;
GEP). com o inovação histórica, 389;
Grupos Especiais (v. GE). investidura do, 134;
Guerra civil, 22-23, 29, 270-271, 292, e leões, 134-135,243,247,380;
317; morte do, 38 6 ,3 9 1 ;
e abastecimento de água de Mue- origens da instituição do, 76 n.4;
da, 271; com o personificação da matrili-
ataques da Renamo durante, 97, nhagem, 76-77, 134-135,389;
259 n .l l ; e redistribuição de bens, 389;

427
Kupilikula

sucessão do, 385-391 passim ; [V. tb. Frelimo: invisibilidade (du­


suspeito de feitiçaria, 133-135. rante aguerra)}
Irmãs missionárias da Consolata, 191-
-19 2 ,194-195,201.
Islamismo, 63 n .l, 326.
Identidade étnica m aconde, 20-21 n.2,
67-68,140,156.
Igreja Católica, 175-205 passim . J
Im buho (missão de), 186-188,272. Jesus (v. Cristo).
Impostos: J in i (espíritos; plural m ajini), 326-326,
na época colonial, 141, 152, 161- 341.
-164, 166-167, 176, 178, 187, Joana (representante da Ametramo de
202,207; C abo Delgado), 312.
cobrados pela Frelimo durante a Julgamentos por feitiçaria (v.feitiçaria:
guerra de independência, 216; julgamentos por).
depois da guerra civil, 298, 315-
316,320-321.
Inhambane (província), 316-317,319.
Iniciação (v. ritos de iniciação). Kairo, Eusébio Tissa, 287, 337, 381-
Inimigos: -382;
internos, 228-229, 244-246, 263- com o colaborador de investigação,
-264; 51,54-55, 57;
do povo, 250-251,259-260. sobre corpos substituídos pelos fei­
Intermediários nativos, 314-315; ticeiros, 269-270;
e cobrança de im postos, 166-167; sobre desenvolvimento, 347-354;
e comités da Frelimo n o tem po da sobre escravos zom bies, 277;
guerra, 215-216; e o humu Mandia, 71;
contestação da sua posição, 167- sobre técnicas de contrafeitiçaria,
-168; 105;
e contra-insurreição, 213-215; sobre veículos e feitiçaria, 277-278.
e recrutamento de mão-de-obra, Kairo, Germano Tissa, 347-354.
166-167. Kakoli, Sinema, 1 1 3 ,1 9 2 ,2 0 4 .
(v. tb. administração colonial: utiliza­ Kalamatatu, D am ião, 268.
ção de intermediários nativos; au­ Kalamatatu, Lipapa, 123.
toridade tradicional) Kalamatatu, N dudu Nankanda, 79-83,
Inveja, 37, 95, 144, 172, 199, 277-278, 123,135;
284, 350-353,356,362-363,366. e apetite de carne, 79-83;
Investimento externo (na era neolibe- sobre feitiçaria nas aldeias com u­
ral), 376-377. nais, 265,267-268;
Invisibilidade, 131; e leões, 80-81,116;
e curandeirismo, 105-107; sobre súplica aos antepassados,
e feitiçaria, 90-93; 180;
e poder, 28 5 ,3 8 3 . suspeito de feitiçaria, 117.

428
ín dice rem issivo

Kapembe, Kabaka Nanum e, 102-103, Liberdade de expressão, 27.


241,277. Líderes de aldeias com unais em
Karp, Ivan, 133. Mueda, 321, 379,371 n.6.
Kaúlza de Arriaga (general), 223-226, Lidimo (régulo), 214.
289. Lidimo, Ladis «Lagos», 227,245,247.
Kavanga (régulo), 214. Lim bom bo, Óscar, 360-363.
Kipande, Asala, 241-242, 326, 331- Lindalandolo, Pikashi, 104.
334, 340. Lipatu, Nantulima, 111,120.
Kok, Piet (padre), 181. Lipelwa (missão de), 188.
Kupilikula, 45, 47, 61, 86, 111, 124, Lipyaluke, Cristiano Lipangati, 231-
138, 248, 334-335, 343, 346, 354, -232.
3 6 3 ,383i Lishehe, 64, 69 ,7 3 .
e os chefes de povoação, 133; Lobolo (preço da noiva), 75,141-142,
e a conquista pelos portugueses, 168,1 7 1 ,2 0 7 ,2 3 4 .
159-160; Lundin, Iraê Baptista, 300.
e o cristianismo. 205; Lyulagwe (Américo Nkangusha Nku-
e curandeirismo, 106-107,118; nama), 74,147-140passim.
e o discurso da feitiçaria, 144-145;
e a Frelimo, 144;
e os missionários, 144,198; M
e o neoliberalismo, 281. Machado, Tomás Basto (general), 226-
Kuva, Sefu Assani, 33-34,38,322,352, -228.
358. Machava, Francisco (director nacional
do N D A ), 314-315.
Machavela (régulo), 316.
L M achel, Samora, 221, 227, 241-242,
Lâminas de barbear, 291-292,303-304, 247-248,261,272.
333-334. M acondes (v. identidade étnica ma-
Lebreton, Alain (padre), 175-177. condê).
Legião de Maria, 187. Macuas (povo), 20 n.2, 67-68, 76 n.4,
Lei das autarquias (2/97), 320-321. 77 n .5 , 1 4 0 ,1 5 7 ,1 7 5 ,3 8 5 ,3 8 9 .
Lei dos m unicípios (3/94), 319-320. M ajini (espíritos; v. jin i).
Leões, 2 5 -26,29-30,35, 360-362; Makanga, Alabi, 2 4 2 ,2 4 8 .
cam e de, 79-80,134-135; Makuka, Boaventura, 111.
feiticeiros que se transformam em, Makwava, Mariano, 344-345,365-371.
20, 37, 80, 94, 123-123, 355- Malapende, 7 4 ,8 4 ,2 3 3 ,2 3 7 ,2 3 8 ,2 3 9 ,
-358; 243;
feitos pelos feiticeiros, 17, 18-21, e a resistência m aconde à con­
30-31, 33-35, 37, 80, 94, 115- quista portuguesa, 147-1 èü pas­
-117,361-363,366,370; sim.
e a Frelimo, 243,247; Malawi, 55.
e o humu, 134-135,243,247, 380; Mandia (humu), 71-72, 134, 328, 374,
do mato, 17,34-35. 285-391 passim ;

429
Kupilikula

queimado, 390; Martin, Emile (padre), 175-176.


sobre a feitiçaria nas aldeias com u­ Marwick, Max, 382.
nais, 267; Marxismo-leninismo, 23.
e técnicas de contrafeitiçaria, 103- Massacre de Mueda, 207, 210-211,
-104; 224 ,2 3 9 .
morte do seu sucessor, 391; Matalca, 68.
sucessor de, 285-391. Matola, Simoni, 184-185,190.
M andum bwe, Eusébio Matias, 127, Matrilinhagem, 74-77, 249-250, 255-
337-346. -258.
M andumbwe, Marcos Agostinho: Mattingly, Cheryl, 107.
com o colaborador na investiga­ Mattio, Bendita (irmã), 191-193.
ção, 51-58 passim ; Mavias (povo), 64-65.
e apetite por cam e, 79-80; Mbavala, 122,150-160passim , 243.
sobre os ataques de helicóptero em Mbegweka (Terezinha António), 118-
Namande, 85-86; -120; 323-327, 334, 341;
com o curandeiro, 97-98,107; sobre dívidas de cam e, 96;
e o estudo científico da feitiçaria, Libata Nandenga suspeito de feiti­
35, 5 6 ,1 2 4 ,2 8 7 ; çaria por, 124-126;
e Eusébio Matias M andum bwe, e possessão por espíritos, 118-120;
338; com o presidente-adjunta da Ame-
sobre feiticeiros feridos, 113; tramo em Mueda, 312-313.
e Jacinto Omar, 209; M bem be, Achille, 38-42 passim , 378.
e Lyulagwe, 147-149,155; M bula, Luís Gabriel, 175, 177, 179-
tocando tambor para o humu -18 0 ,183-184,192-193,200.
Mandia, 72; M edicina tradicional (v. curandeiros;
sobre a máscara mapiko n o escritó­ curandeirismo-, especialistas em medi­
rio do padre Meeis, 184; cina tradicional; Ametramo).
com o objecto de adivinhação por M édicos tradicionais (v. especialistas em
Shindambwanda, 109-113,117; medicina tradicional).
acusando Shindambwanda de fei­ M edo, 37-38, 137-138, 246-248, 284,
tiçaria, 115-117; 318.
desarmando Shityatya, 30-32; Meeis, Guillaume (padre), 184.
sobre substâncias m edicinais du­ M em be, Remígio, 292-293.
rante a guerra, 233. M entin (padre), 194.
M A N U (M akonde African N ational Mercado negro, 271-272.
U n ion , mais tarde M ozam bique Mery, Joseph, 126.
African National Union), 209-210, Messalo (rio), 158 n.7.
212 ,2 3 9 . Migração laborai, 141-142, 168-173,
M apiko (v. dança mapiko). 1 9 9 ,2 0 8 ,2 1 3 ,2 4 9 ;
M aputo (cidade), 3 8 ,3 0 9 , 314. e feitiçaria, 143-144,172-173.
M aputo (rio), 261. Milonge, Carmelita, 122-123,288-289.
Marcos (v. Mandumbwe, M arcos Agos­ Minas:
tinho). antifeitiço, 86, 104-105, 131, 278-

430
índice remissivo

-2 7 9 ,290-291; Mkaima, Felista Elias, 50, 54, 55, 57,


e feitiçaria, 92; 337.
e feitiçaria durante a guerra, 238- M ocím boa da Praia, 150, 152, 154-
-239; -155, 158, 239, 385. (V. tb. Sindi­
durante a guerra, 223. cato do Sisal de M oçímboa)
Minga, Virgílio, 241. M ocum bi, Pascoal (primeiro-minis­
Ministério da Administração Estatal: tro), 319.
e autoridade tradicional, 23, 298, M odernização socialista, 23, 44, 137-
314-321. -1 3 8 ,1 4 4 ,2 5 1 ,2 5 8 ,2 6 8 ,2 8 5 ,2 9 5 -
Ministério da Saúde, 23-24,297, 309; 2 9 6 ,3 4 3 ,3 7 5 ;
e curandeirismo tradicional, 298- e a autoridade tradicional, 142;
-301,334. e o curandeirismo tradicional, 142;
Missionários católicos (v. missionários). durante a guerra de independên­
Missionários de M ontfort (v. missioná­ cia, 232-235;
rios). durante a guerra civil, 270.
Missionários, 1 4 4 ,2 4 8 ,1 7 5 n .l; M ondlane, Eduardo, 210, 218, 239,
e a Companhia do Niassa, 176; 252.
e a condenação das práticas rela­ M oto, Maurício Mpwapwele, 291;
cionadas com a feitiçaria, 142, com o chefe de segurança da aldeia,
204; 288-290;
e cuidados de saúde, 191,201; sobre a feitiçaria durante a guerra
e a dança m apiko, 179-181, 184, de independência, 237-239;
190; e a feitiçaria de construção {uw avi
com o empregadores, 170,176-178, w a kudengd), 289-290.
201-203; Mpachoka, Rafael, 355-358,363,365-
e a feitiçaria de construção (uw avi -366.
wakudenga), 197-198; Mpalume, Bendita, 180,183.
e guerrilheiros da Frelimo, 210 n.6; Mpalume, Estêvão, 50-51.
e a marginalização dos anciãos ma- M pelo, A lbino Mwidumbi, 213.
condes, 203-204; M pupa, Inácio, 237-238.
e a poligamia, 179; Mtamba (missão de), 188.
e ritos de iniciação, 179-181, 183- M uçulm anos, 140,326.
-1 8 4 ,1 9 0 ,1 9 6 ,2 0 3 ; Mueda (cidade), 1 8 ,2 4 ,2 5 ,2 8 ,3 4 ,5 4 ,
e os rituais funerários, 180-181, 1 1 8 ,1 5 0 -1 5 2 ,2 1 4 ,2 2 3 ,3 3 8 ,3 8 5 .
184-185; M uidum be (distrito), 355, 357-358,
e súplica aos antepassados, 180- 361, 363-364.
181,184-185,190; Mwakala, Pedro, 178,185, 187.
suspeitos de feitiçaria, 45,190-192, Mwakala, Rafael Pedro:
197-198; e A ntónio Jorge Dias, 222;
e a tradição m aconde, 144, 179- e o recrutamento pela Frelimo,
-188 passim , 189-190, 196-197, 210, 222;
200. e a táctica militar dos portugueses,
Mitema, Ludovico, 180, 183. 221-222,226.

431
Kupilikula

Mwambula (cidade), 5 4 ,3 5 6 . Ndupa, Eugênio Nanyunga, 152.


Mwani, Mateus, 180. Ndyankali (régulo), 161-162,164,167-
Mwanis (povo), 326. -168, 316.
Mwikumba, Lucas, 267. Needham , Rodney, 339.
Mwitu, Amaro (padre), 201. Neoliberalismo, 46-47, 50,295;
e a autoridade tradicional, 283-
-285, 297-298, 314-316, 379-
N -380;
Nachingwea (Tanzânia), 218. e cidadania, 377;
N ações Unidas (v. O N U ). e cuidados de saúde, 296-297,298-
N aengo (régulo), 214. -299;
Nalculungene, M ushimbalyulo, 90. e o curandeirismo tradicional, 283-
Nalyam bipano, Salésio Teodoro, 227, -285,296-297,298-299;
247. e democracia, 378-379;
Namapa (aldeia), 292. e o discurso da feitiçaria, 43,46-47,
Namashakole, 150-160 passim , 239. 382-383;
Nam bude (missão de), 187-188,199. e os doadores ocidentais, 305-306;
Nampula (cidade), 311-312,338. e o Estado, 375-379;
Nampula (província), 292. e respeito pela tradição, 46;
Nandenga, Libata, 95-96, 117-119, e tolerância de práticas relaciona­
132; das com a feitiçaria, 38-39;
sobre a aprendizagem dos curan­ e a tradição maconde, 304-322pas­
deiros, 117-118,123; sim.
sobre a feitiçaria nas aldeias com u­ N eutel de Abreu (capitão), 155-157.
nais, 267-268; Newitt, M alyn, 68-69.
suspeito de feitiçaria, 124-126. N g’avanga, Angela Lucas (irmã), 182,
N ang’ololo (missão de), 175-205 pas­ 204.
sim, 223-224; N g’avanga, Lucas, 181-182,201, 204,
com ércio em, 201-202; 212-214.
e educação, 194-195; Nghipula, M aunda, 63-66, 151, 157-
com o lugar de actividadé eco­ -158.
nóm ica, 201-202; N gole, M akudo Shalaga N tum i, 101,
com o lugar de exposição à tec­ 265 n .7 ,267.
nologia m oderna, 192-194, N gom a (cultos), 324.
201. N gunis (povo), 101.
Nangade (cidade), 25. Nguri (herdade estatal de), 273.
Naparamas (guerrilheiros), 292. Nguri (lago), 342.
N cim i, Em iliano Simão, 179, 181, Niassa (lago), 175.
189, 193, 195, 197-198. Niassa (província), 2 1 6 ,2 9 5 .
N ciune, Paulo, 178, 185. Niassalândia, 177.
N D A (N úcleo de D esenvolvim ento Nikutum e, André, 201.
Administrativo), 298-300,314-319 Ningore (caçador de feiticeiros), 290-
passim. -293.

432
ín dice rem issivo

Niuaia, Paulo, 311. C onselho de Tutela (ou C onselho de


Nkapoka (régulo), 213. Administração Fiduciária), 210.
Nkapunda, Manuel Shindolo, 159-160. Operação N ó Górdio, 223-225,289.
Nkataje, Júlia, 328-331,334. Ordálios (v.feitiçaria).
Nkavandame, Lázaro, 172; Organização M undial de Saúde (v.
com o comissário regional de Cabo OM S).
Delgado, 216-218;
e a contra-insurreição portuguesa,
2 2 4 ,2 2 5 n.6; P
suspeito do assassínio de Eduardo Pachinuapa, Raimundo, 241.
M ondlane, 2 18,239; Parentes, 95-96.
transforijiando-se em gato, 239. Pateguana, Franscisco João (governa­
N kum i, Herman, 66-67,157,162-163. dor de Inhambane), 297 n .4 ,316.
Nkunam a, A m érico Nkangusha (v. Pemba (cidade), 50-51, 54-55, 231,
Lyulagwe). 274, 291-293, 300, 311-312, 338,
N oite, 9 1,129 ,2 4 6 ,2 8 4 -2 8 5 ,3 5 1 ,3 5 8 , 341-342, 348, 356, 362, 365-366,
369-370. 391. (V. tb. Porto Am élia (cidade))
N om es (v. práticas de atribuição de Pergunta Bem, 292-293.
nomes). Perseguido sem M otivo (v. Pergunta
N tum bati, Francisco M ing’on do Bem).
(humu), 133-134. PID E (Polícia Internacional e de D e­
N ú cleo de D esenvolvim ento Adm i­ fesa do Estado), 2 1 3 ,2 2 4 ,2 2 5 n.4,
nistrativo (v. N D A ). 236-237,239;
Nyangas (povo), 177. e feitiçaria, 237,246.
Nyerere, Julius, 210. Pires, A ntónio (capitão), 155 n.6.
Ploddn, Mark, 340.
Poder popular, 25 3 ,2 6 4 .
O Poder:
O ’Neill, Henry E., 64-65, 73,156. e ambivalência, 84;
Obscurantismo, 2 1 ,2 6 ,2 3 3 ,2 3 5 ,2 4 3 - construtivo, 45, 381;
-244,264-265,288, 306 ,3 0 8 , 359. destrutivo, 4 5 ,3 8 1 ;
Olivier de Sardan, Jean-Pierre, 339- e invisibilidade, 285, 382;
-340. oculto, 4 5 ,3 4 0 ,3 8 2 ;
Ornar, Jacinto, 209 ,214; e o reino invisível, 138.
e formação político-militar, 218; Polícia Internacional e de Defesa do
com o presidente {chairman) local, Estado (v. PIDE).
216; Porto Am élia (cidade), 154-155, 188,
e o recrutamento pela Frelimo, 202. [V. tb. Pemba (cidade)}
207-208,212. Povoações:
O M S (Organização M undial de e aldeias comunais, 255-257;
Saúde), 2 7 0 ,2 9 8 ,3 0 1 . cisão de, 75-76,129-131,165,201;
O N U (Organização das N ações U ni­ concentradas, 73, 149;
das), 85; dispersas, 7 3 ,105.

433
K u piliku la

Práticas de atribuição de nomes, 63 n .l. durante a era neoliberal, 25-26,


Preservativos, 332,389-390. 376.
Primeira Guerra Mundial, 154,163. Ripua, Wehia, 240.
Privatização, 273,376-378. Ritos de iniciação, 103, 117-118, 169,
Produção agrícola: 183-184;
nas zonas libertadas, 217,226-227; cristãos, 195-196;
após a independência, 251; e a dança mapiko, 179.
e ajustamento estrutural, 375. Rituais funerários, 180-181,184-185.
Programa de Recuperação Económ ica R om ão, Verónica, 120-121, 124-125,_
(v. ajustamento estrutural). 279, 352.
Provedores (wakukamalanga), 71, 82, Rovuma (rio), 64, 69, 154-157 passim ,
171,203. 168, 170, 208, 218, 223-224, 261,
Provocação, 34, 7 1 ,1 0 4 ,1 7 2 . 325.
Ruarua (campo de reeducação), 259-
-260.
R
Rádio M oçam bique, 27, 360.
Recrutamento de mão-de-obra: S
por intermediários nativos, 141, Saber indígena (v. saber local).
163,166-167,213; Saber local, 43,283,306-307,331-332,
isenções, 172,187. 339-341;
Registo de doentes, 331-332. e curandeirismo tradicional, 300-
Reino invisível, 26-27, 44-45, 49, 59- -301, 326-328.
-61, 69, 88-93, 131-134, 141-145, Sagrado Coração de Jesus dos M acon-
173, 236-237, 279-280, 285, 314, des (missão do). [V. N ang’ololo
358-360,371; (M issão de)]
e curandeirismo, 105-107; Sahlins, Marshall, 140.
e poder, 138. Saide, A ntónio, 214.
R eino visível, 88-89, 138, 144, 173, Santeria, 197.
285,314,370-371. Sanyula (director distrital da Cultura),
Renam o (Resistência N acional M o­ 309,312-313.
çambicana), 22, 2 6 4 ,2 7 2 ,2 9 2 ; São Tomé e Príncipe, 162,166-167,316.
ataques n o planalto de M ueda, Saúde (v. cuidados de saúdè).
259; Scott, James, 262.
e a autoridade tradicional, 23,295- Seguro, Pedro, 361,363-364.
-296,317-318,321; Shakoma, Magwali, 159,190.
e o exército da Rodésia, 259; Shiebu (chefe de território, ou nang’olo
e o discurso da feitiçaria, 359; mwene sbilambo), 158 n.7, 176-178,
e a guerra civil, 29,97,259-260. 185.
Resolução de conflitos, 351; Shilavi (régulo), 151.
pré-colonial, 72-73,75-76; Shilavi, Augusto, 181,185.
após a independência, 21-22,255- Shindam bwanda (Tomás Jakobo Al­
-257; meida):

434
ín dice rem issivo

com o adivinho, 109-113; incum prim ento com o causa de


sobre a feitiçaria nas aldeias com u­ doença, 99-100;
nais, 266; e missionários, 180-181,184,203;
suspeito de feitiçaria, 19, 115-117, sua proibição pela Frelimo, 234,
124. 264,295-296. .
Shingini, Vantila, 112, 304-305, 313, Swahili (ou kiswahili, língua banto),
333. 170, 324.
Shishulu, A gostinho Simão, 249-251,
267.
Shitwanga, Shapatintwa Shikumula, T
120. Tanganhica, 141, 154, 162, 168-172,
Shityatya (Francisco Shityatya Nama- 1 9 5 ,1 9 9 ,2 0 2 ,2 0 7 -2 0 8 ,2 1 3 ,2 1 5 .
lakola N dom ana M uendanene), T A N U (Tanganyika African National
31-33. U nion), 208-210.
Shuli, Vicente Nkamalila, 199-200, Tanzânia, 2 0 8 ,2 1 0 ,2 1 7 -2 1 8 ,2 2 3 ,2 3 1 ,
204. 2 3 3 ,2 9 0 ,3 2 3 -3 2 6 ,3 6 9 .
SIDA, 304, 311, 3 1 3,332-333,340. Telhados de zinco, 87, 328, 356-357,
Sim bine, A n tón io (governador de 366.
Cabo Delgado), 292. Terra (v. acesso à terra e sua distribuição).
Sindicato do Sisal de M ocím boa, 168, Tete (província), 2 1 6 ,2 2 5 n.7.
178 ,1 9 9 ,2 0 2 . TFL (Tanganyika Federation o f
Sitoe, Filipe, 317-318. Labor), 208.
Smith, Ian, 259. Thom son, Joseph, 64.
Smith, Wilfred Cantwell, 339. Tissa (v. Kairo, Eusebio Tissd).
Soberania, 376-378. Trabalho forçado, 141, 163-164, 176,
Socialism o científico, 40, 142, 233, 178,187,213.
2 3 5 ,2 4 8 ,2 6 4 ,3 4 3 . Trabalho (v. contratos de trabalho; migjra-
Sociedade civil, 283, 299-300, 362, ção laborai; recrutamento de mão-de-
368, 375; obra; trabalhoforçado).
autoridades tradicionais com o com­ Tractores, 274-275;
ponentes da, 23,283,299-300; e feitiçaria, 277-280.
curandeiros tradicionais com o Tswanas (povo), 178-179,189-190.
com ponentes da, 300.
Sonhos, 121,329.
Substâncias medicinais, 89-92; u
com o chaves para o reino invisível, Udenam o (União Democrática Nacio­
89-92, 345-346; nal de M oçambique), 210.
com o fontes de poder moralmente U N A M I (U nião N acional Africana
neutras, 89-90; de M oçam bique Independente),
e GEMT, 306-307; 210.
e hierarquia do saber, 98-99. U nião Democrática Nacional de M o­
Súplica aos antepassados, 22, 73, çambique (v. Udenamo).
119,123; U nião Europeia, 298.

435
Kupilikula

União Nacional Africana de Moçam­ 198,205,285,362-363;


bique Independente (v. UNAMT). dos chefes de povoação: 33-34,
União Nacional Africana de Moçam­ 132;
bique (v. MANU). da Frelimo: 144, 219, 227-228,
União Nacional Africana do Tanga- 245,259,263-264.
nhica (v. TANU). VIH, 328, 333 nn.20, 22. (v. tb.
União Nacional Africana Maconde (v. SIDA)
MANU). Vmtani, Silvestre, 28-33 passim, 38.
União Soviética, 23,223,295, 343. Visão:
Universidade Eduardo Mondlane, 22. e as aldeias comunais, 262-265;
Untonji, Limitedi: e curandeirismo, 106-107;
sobre o curandeirismo durante a e os chefes de povoação, 133;
guerra de independência, 241; e feitiçaria, 69, 90-92, 131,159.
sobre a feitiçaria nas aldeias comu­ [V. tb. Frelimo: e visão (durante
nais, 266; a guerra)-, exército português: e
sobre a feitiçaria de autodefesa visão]
(uwavi wa kulisbungilà), 261- Vloet (padre), 201.
-262,277; Vodu, 197.
sobre a feitiçaria de enriqueci­
mento pessoal (uwavi wa kus-
bunga), 277; w
sobre a feitiçaria durante a guerra Weveis (padre), 183.
de independência, 238; Windu (humu), 134,258,386.
e feiticeiros feridos, 112-113.
USAID (Agência dos Estados Unidos
da América para o Desenvolvi­ Y
mento Internacional). [V. Estados Yaos (povo), 20 n.2,67-68,140.
Unidos da América: USAID]

z
V Zambeze (rio), 69,101,225 n.7.
Vacinação tradicional, 303-304, 305, Zambézia (província), 292.
309,313, 333-334. ZANLA (Zimbabwe African National
Vanomba, Faustino, 211,239. Liberation Army), 259.
Veículos, 275, 342; Zar (cultos), 324.
e elites, 275, 342-343; Zimbabué (v. ZANLA).
e riqueza, 342-343. Zombies (v. escravos zombies).
Vieira e Baptista, 168. Zonas libertadas, 17,52,118,215-219,
Vigilância: 229,238, 386;
dos aldeões sobre os seus Outros: educação nas, 231-233.

436
)
Outros títulos de interesse: ■
■ No planalto de Muèdà, nq Norte de, Moçambique, diz-se que os
A Sociedade Ghope feiticeiros se alimentam das suas vítimas; por vezes «criando»
Indivíduo e aliança leões ou transformando-se em leões para devorarem,
no Sul de Moçambique literalmente, a carne delas. Na sua época socialista, a Frelimo
David J. W ebster
condenou as crenças na feitiçaria e as práticas de contrafèitiçaria
Ao Encontro dos Mambos como «falsa consciência»; Desde que se empenhou na reforma
Autoridades tradicionais vaNdau neoliberal, contudo, o partido, que continua nò poder após três
e Estado em Moçambique ciclos eleitorais, tem «tolerado a tradição», permitindo que a
■Fernando Florêncid
população rural interprete e interaja corrí, os acontecimentos na
Outros Muçulmanos linguagem da feitiçaria. Agora, quando os leões deambulam pelas
Islão e narrativas coloniais aldeias do planalto em busca de presa, os suspeitos de feitiçaria
Lorenzo Macagnó ,
são por vezes linchados.
Vidas em Jogo Nesta etnografia histórica da feitiçaria, Harry G. W est baseia-se
Cestas de adivinhação numa década de trabalho de campo e conjuga as perspectivas da
e refugiados angolanos antropologia e da ciência política para revelar como os habitantes '
na Zâmbia
Sónia Silva
do planalto de Mueda esperam que as autoridades responsáveis
vigiem o reino invisível da feitiçaria e revertam («kupilikula») os
A Persistência da História ataques destrutivos dos feiticeiros, praticando, elas próprias, uma
Passado e contemporaneidade forma construtiva de contrafèitiçaria. -
em África
Clara Carvalho
Kupilikula argumenta que, quando as políticas neoliberais
João, de Pina Cabral fomentam a divisão social em vez de garantirem a segurança e a
(organizadores) prosperidade, as populações do planalto usam o discurso da
feitiçaria para avaliar as reformas e por vezes para as reverter,
contrapondo visões alternativas de um mundo transformado.

Apoio:
F U N D A Ç Ã O
H f e l C A L O U S T E
\
G U L B E N K IA N

Imprensa ISBN 978-972-671-235-0

de Ciências
Sociais
www.ics.ul.pt/imprensa

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