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É claro que não esqueci o nosso livro. Inclusive queria te propor como uma alternativa ao
desencontro de disponibilidades que tem sabotado esse projeto nos últimos três anos a opção
de já começarmos o rascunho propriamente dito. Em todo caso, na próxima vez em que você
aterrissar em Sampa, tomamos um guaraná com brainstorming.
O que aconteceu em São Paulo? Esta cidade é um universo tão grande que a perspectiva se
dissolve na minha hipermetropia. Talvez eu pudesse analisar melhor a paisagem aqui no
epicentro da agitação partindo do nível microcósmico – descrever o momentum de um balaço
de borracha pela física newtoniana, determinar o coeficiente de dureza do cassetete, medir o
pH do gás lacrimogênio em contato íntimo com as minhas mucosas – mas o fato é que eu não
cheguei a esse extremo de envolvimento com as manifestações (por mais que eu goste de
agregar prática à teoria, confesso que, na prática, a teoria dói menos). Se tivesse ido às ruas
talvez eu dispusesse de informações melhores para avaliar resultado dessa medida opressiva
tranquilizadora por parte das nossas autoridades em termos psíquicos pessoais e coletivos.
Mas vamos à teoria...
É difícil distinguir que criatura está tomando forma por trás deste – como você bem colocou –
surto de massa e seu ruído de fundo, tão recente, tão presente, precoce demais para que seja
possível um olhar distanciado que possibilite uma decodificação deste contexto histórico. Eu
poderia tentar responder com a ajuda da minha máquina do tempo, mas ela está quebrada.
Na ausência de uma, acho que vou recorrer à estante de livros e enriquecer a minha análise
dos acontecimentos com aquele termo que gosto tanto, distopia. O Brasil sempre foi uma
distopia maravilhosa – ou uma maravilha distópica se preferir – e me dá a sensação de se
tornar cada vez mais uma hipérbole de si próprio: o Rio cada vez mais Rio, Brasília cada vez
mais Brasília, São Paulo cada vez mais tóxica... No entanto, minha visão não é tão
caleidoscópica quanto a sua, Fausto, então vou contrariar o método do Brás Cubas e começar
pelo começo mesmo.
Como sabemos, o estopim da Revolta do Vinagre foi o aumento das passagens de ônibus em
São Paulo – que já eram caras para todos os padrões. Não vou entrar nos pormenores do
quanto dói no bolso pagar quase dez reais para ir e voltar metrô e ônibus de qualquer canto da
cidade (eu mesma, em momentos de dureza extrema, preferi não sair de casa). Como dizia,
esse foi o estopim, mas razões não faltam, e são tantas aporrinhações e estresses e apertos
que passamos nesta cidade – neste estado, neste país – que o estopim poderia ter sido
qualquer coisa: a saúde precária, o imposto, a conta de luz, o preço do tomate... É evidente
que a origem da indignação não é o preço da passagem, mas, antes, uma reação catártica da
população perante o encarecimento crônico da vida na cidade até o limite do impagável, do
insuportável, do cansei.
Geralmente aquilo que é crônico não assusta, mas, ainda assim, me encontro em estado de
susto. No Rio de Janeiro e em São Paulo o custo de vida alcança níveis europeus (só o custo,
obviamente, não estou falando de qualidade); isso nos leva a perguntar que bolha é essa que,
à imagem e semelhança de Ctulhu, se levanta das profundezas derretendo o valor do nosso
dinheiro? A inflação: um monstro antigo que assombrou o país em carnavais muito passados
está acordando da hibernação, dissolvendo nossa capacidade de compra e derrubando a ilusão
de que nossa economia nos daria dias melhores. É a especulação imobiliária, são os impostos
sem retorno, é o preço da passagem, é a superinflação dos alimentos – morar, comer, estudar,
ir ao médico, passear, comprar, ser feliz, em suma, viver: por que tão caro? Ou, para colocar a
pergunta em termos mais pragmáticos: para onde está vazando a porra do meu dinheiro?
Essa é uma pergunta desesperada, repare, é um grito. É a constatação que cada cidadão
comum tem de que, não importa o quanto trabalhe, nunca será o suficiente, não terá a
contrapartida que lhe é de direito; isso somado ao conhecimento de que votar não funciona, e
que sua liberdade de manifestação pode encontrar pelo caminho uma tropa de choque. O que
fazer? De quem exigir? E contra quem se voltar se a origem da opressão não é facilmente
identificável? Acusaram as manifestações de não ter foco, mas me surpreenderia se tivesse. A
organização política nunca foi uma característica marcante do povo brasileiro. Nosso caso se
parece mais com um estouro de manada: um surto sem direção alimentado pela catarse de
todas as insatisfações acumuladas. O povo entrou em ebulição, mas feito baratas tontas (e
bastante ressentidas, é verdade).
Eu, que sou só mais uma barata à deriva nas minhas especulações, não tenho a ambição de
achar sozinha a saída para este labirinto. Não vou subestimar a Revolta do Vinagre, ela deu voz
a uma insatisfação que também é minha – quem disse que sou imparcial? Torço para que as
manifestações não percam a força, pois, quem sabe, assim chegaremos no ponto que faz a
diferença, a ruptura, a virada de página – e que ofereça algo interessante para preencher
aquela lacuna que me intriga: “o que vem depois?”. As manifestações no Brasil, o Ocupe Wall
Street, a primavera árabe, a atual batalha da informação e espionagem são acontecimentos
interligados: pedaços de uma mesma criatura, essa que se ergue de um oceano de ruído. Os
movimentos dos anos 2010 são a resultante de uma tecnologia que inseriu algo inédito na
ordem mundial: a democracia da informação. Internet, iphones, câmeras: acesso global a
dados, autonomia midiática e capacidade de organização para as massas.
Pensando assim, fico tentada a fazer um exercício de história alternativa. E se por acaso a
tecnologia da informação fosse inserida como elemento anacrônico nas décadas de 1960 e
1970? O que teria sido dos nossos anos de chumbo se existisse internet e smartphones
infiltrados que nem pulgas? Os militares conseguiriam rastrear subversivos cibernéticos? O AI-
5 daria conta de amordaçar os “90 milhões em ação” xingando o governo e organizando
manifestações pelas redes sociais? A ditadura teria durado vinte anos? Perguntas que me
levam a outra mais central: o quanto um povo conectado é mais forte do que um Estado
opressivo? É para esta pergunta que as respostas estão apenas começando a surgir.
Considerando que guerras irrompem e governos estão sendo derrubados por dados que
varrem redes sociais, não tenho dúvidas de que aqueles que detinham o monopólio da
informação estão muito preocupados em mantê-lo. A revolução digital desencadeou uma
revolução política. Tecnologias vêm para ficar, mas será que a sua dimensão democrática está
garantida? Os rumos que tomaram as histórias de Julian Assange, Aaron Swartz, Edward
Snowden e Bradley Manning insinuam ser apenas a introdução da batalha que vem por aí
nessa disputa global pela grande commodity do século XXI: a informação.
Sou uma viciada por informação e me considero extremamente sortuda por ter nascido no
momento certo para testemunhar essa revolução em especial, com a consciência de que meu
poder de acesso, hoje, como uma cidadã ordinária, é maior do que qualquer pessoa no século
XX jamais sonhou. Fico me perguntando (e temendo) se, a esta altura, alguém poderoso não
terá poder de cortar os fios da rede. Suspeito que quem vencer a atual guerra da informação
definirá o rumo de todas as manifestações, movimentos e inquietações que irrompem nesta
década. Não é uma constatação maravilhosamente assustadora?
Caramba, Fausto, há ainda tantas outras coisas que eu gostaria de comentar, de políticos
biônicos a zumbis teocratas, e vou ter que deixá-las para os próximos capítulos da nossa
correspondência, junto aos paralelismos que gostaria de tecer com ficções distópicas.
Enquanto isso, a previsão do tempo fala sobre mais névoa de gás lacrimogênio conforme
novos protestos se desenrolam nas nossas cidades. Vejamos que outras quimeras surgirão
deste surto de massa.
Beijos,
Cristina Lasaitis