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Sumário

coluna
Bianca Santana
Marcia Tiburi
Wilson Gomes
Vladimir Safatle

entrevista André Singer

dossiê O movimento LGBT brasileiro: 40 anos de luta


Apresentação
Visão retrospectiva
Desejo transformador e revolucionário
Uma nova pauta política
Múltiplas e diferentes identidades
Amparo e solidariedade

design
A arte da revolução

estante cult
Exercícios de radicalidade

livros
Aventuras da desobediência

livros
Corpo de adulto e cabeça de piá. Como o Brasil

colaboraram nesta edição


coluna

Três tempos de uma mesma história


BIANCA SANTANA

Um gradil cinza circunda as barracas coloridas onde está parte das pessoas desabrigadas pelo incêndio e
o desabamento do edifício Wilton Paes de Almeida, na madrugada de 1º de maio de 2018. Atrás, em um
amarelo destacado, a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, construção finalizada em
1906 para receber a irmandade desapropriada anos antes. Na placa, o nome do largo: Paissandu,
homenagem à batalha de 1864, que antecedeu a Guerra do Paraguai, na cidade uruguaia de Paysandu.
Guerra que exterminou milhares de soldados negros, livres ou escravos. Em uma imagem, três tempos de
uma mesma história, que permite compreender como se dá o genocídio de pretos e pobres no Brasil.
Na manhã de 18 de maio de 2018, uma mulher nina um bebê de pouco mais de dois meses. Dois
homens conversam enquanto ajudam uma menina a se equilibrar no triciclo. Algumas pessoas se
posicionam perto das grades, em alerta, cuidando da segurança. Nas escadas da igreja, duas mulheres
dobram roupas. Na mesa à frente da cozinha improvisada, um grupo pica vegetais. Todos negros. Dez
dias antes, o cenário era de guerra: fumaça, pessoas desesperadas, miseráveis de toda a parte disputando
as sobras de quem tinha perdido tudo, mas recebia doações que chegavam dia e noite. No dia 18, a rotina
já se impusera, e o acampamento compõe a paisagem da cidade que caminha rapidamente, sem atentar
aos papéis pendurados na grade, informando a necessidade de manteiga, óleo, alho e temperos.
“Muita gente já saiu daqui. Aceitaram ir para abrigo. Mas a gente precisa é de moradia permanente.
Acho que o jeito vai ser ocupar outro prédio”, me dizia uma acompanhante, quando pediu licença para se
aproximar de uma mulher que chegava com notícias. Diversas pessoas se aglomeraram para ouvir que
estavam começando os telefonemas da prefeitura para quem tinha se cadastrado à espera de moradia.
– Vou lá falar com a assistente social, então.
– Não adianta, tem que esperar eles telefonarem no número que você passou.
– A gente vai é esperar para sempre!
– Mas eu fui ontem na Câmara dos Verea-dores e vi quando o secretário prometeu que ia sair um ano
de aluguel social para todo mundo.
– Um ano de aluguel social resolve o quê? Eu recebi aluguel social desde quando a Marta fez e
depois de sete anos estava sem casa de novo.
– E quem acredita no que eles falam?
– Mas se falou na frente de todo mundo, da televisão, ele vai fazer. Não ia mentir na frente de todo
mundo.
As falas atropeladas parecem sempre terminar em reticências. Mesmo as afirmações contundentes
não ressoam certezas. Uma forma de comunicação desconfiada que evoca lembranças de vulnerabilidade
e falta de acesso a direitos. É provável que o cenário seja outro quando este texto for impresso. E não é
possível prever onde e como cada um deles vai morar daqui para a frente. E eles sabem disso. Falta de
moradia e remoções fazem parte da história de muitas dessas pessoas. E também do Largo. Como já
anunciado, a construção amarela é outra materialidade de um passado de limpeza urbana.
A Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos começou a ser construída nesse local em
1904. Por quase duzentos anos esteve na atual praça Antônio Prado, perto da rua XV de Novembro,
antigo largo do Rosário. Desde 1721, a primeira igreja, construída por negras e negros, foi um espaço de
organização política, social e religiosa. Proibidos de frequentar as igrejas dos brancos, os membros da
Irmandade dos Homens Pretos levantaram o templo que podia ser desfrutado por forros e escravos,
sincretizando rituais católicos a práticas de matriz africana, especialmente de origem banta.
No início do século 20, Antônio Prado, primeiro prefeito de São Paulo, iniciou uma reforma urbana
higienista que afastava pobres e negros das regiões mais valorizadas do Centro. Uma versão anterior do
processo de gentrificação denunciado pelo movimento de moradia contemporâneo. Ou o princípio dele.
Em 1903, a Câmara Municipal aprovou uma lei que desapropriava os bens da Irmandade e cedia um lote
pantanoso no Tanque do Zuniga, atual largo do Paissandu, para a construção da igreja. O terreno
desapropriado, surpreendentemente, foi doado a Martinico Prado, irmão do prefeito, que ali construiu o
primeiro prédio de escritórios de São Paulo, onde hoje funciona a Bolsa Mercantil e de Futuros. Sim. A
Bolsa de Valores está sediada no Palacete Martinico Prado, à praça Antônio Prado, nome do prefeito que
desapropriou pretos pobres. E hoje? Quem se beneficiará do terreno do prédio que desabou, onde viviam
as famílias acampadas no Paissandu?
Quanto ao destino das pessoas acampadas, a história também nos oferece inúmeros exemplos de
como o Estado brasileiro responde às promessas feitas a pretos e pobres. E não precisamos ir longe. O
nome Paissandu, mais uma vez, faz referência a uma das batalhas que antecedeu a Guerra do Paraguai.
Como se sabe, muitas das tropas brasileiras foram compostas de escravos, que se alistavam, não só
com a promessa de alforria, mas também pelo compromisso do imperador Pedro II em abolir a
escravidão. Ao final da Guerra, em vez de libertação, em 1871, foi promulgada a Lei do Ventre Livre
que, no papel, considerava em liberdade todos os filhos de mulheres escravas nascidos a partir daquela
data. Na prática, crianças negras nascidas livres continuaram trabalhando nas mesmas condições das que
nasceram escravizadas.
Tantos dados, de diferentes tempos, no mesmo território, nos informam como o Estado brasileiro está
a serviço do capital financeiro. E nós? Assistimos a tudo isso? Evoco a pergunta-provocação de um
militante do movimento negro durante o seminário “Justiça por Marielle e Anderson, Contra a
Intervenção Militar e o Genocídio Negro”, que aconteceu na 3ª edição da Feira Nacional da Reforma
Agrária, em São Paulo: “Para o meu bisavô, disseram que ele deveria ser um bom escravo, que a
abolição logo viria. Para o meu avô, prometeram que se ele trabalhasse bastante, teria condições de vida.
Para o meu pai, disseram que depois do ginásio, viria a CLT. Para mim, foi o ensino superior. Mas
mesmo graduado, sou parado pela polícia e não tenho emprego. Até quando vamos acreditar nas
promessas?”.
coluna

Antropologia digital
MARCIA TIBURI

A antropologia é uma ciência que se construiu a partir da ideia de que se poderia tornar o ser humano um
objeto da ciência. Esse complexo objeto nos faz saber que estudar é uma coisa, mas que compreender é
outra bem diferente. A questão antropológica é filosófica e está na base de todas as ciências humanas.
O termo anthropos de origem grega, que significa exatamente “ser humano”, nos põe em contato
com a complexidade irredutível à ideia de uma espécie. Antigamente, era traduzido por “homem”, como
se o universal masculino resolvesse o problema.
Hoje é antiquado falar “homem” para definir o ser humano genérico composto da diversidade
humana. Antropólogos já abriram caminho para pensar que outras espécies também são “humanas” para
si mesmas. Noutra linha, talvez seja igualmente antiquado usar a palavra “logos” com seu velho
significado de razão. Em uma época obscurantista e irracional como a nossa, falar de conhecimento
também pode ser estranho. Além disso, a ironia de fundo dessa questão pode ser perdida com facilidade.
Mesmo assim, as ciências costumam surgir em todas as épocas, e talvez mais ainda em momentos
nos quais esforços de compreensão nos encaminham a confiar na razão, na análise, na crítica, em vez de
entrarmos na primeira igreja que há na esquina. O que se chamou de “razão” na história da filosofia nada
mais é do que uma faculdade que existe apenas na esperança de filósofos. A análise e a crítica são
procedimentos que surgem dessa esperança de que, compreendendo um fenômeno, se poderia melhorar
algum aspecto da vida e da existência.
A antropologia digital ou ciborgue parte da ideia de que a vida humana hoje deriva de produtos
humanos e não humanos. De que há todo um campo da experiência humana que migrou para a internet e
que devemos compreender esse novo território e o fenômeno humano que se desenvolve nele. Como o
fenômeno da interação com máquinas e aparelhos, computadores e celulares mudou nosso modo de ser.
Hoje não temos apenas relações sociais, e sim relações tecnossociais.
Desde que usamos próteses de conhecimento, não somos mais os mesmos. No limite, a inteligência
artificial realmente pensa por nós. Mas isso não é o aspecto mais complicado quando se trata de pensar
esse novo ser humano no qual estamos nos tornando. O problema maior é que essa inteligência artificial
nos faz agir e não percebemos que esse agir não apenas se dá em seu nome, como também esconde que
fomos apagados em nossa subjetividade nesses processos.
Se a inteligência é terceirizada nas máquinas, o que resta a nós que já representamos, em outras
épocas, a ideia de razão e de dignidade humana? Esse tipo de questão parece ter caducado em nossa
época. Podemos nos perguntar se não seremos mais humanos, ou se nos transformamos tanto em nossa
relação com as máquinas que já nos tornamos híbridos com elas. Somos ciborgues.
A velha ideia de humanidade ressurge como uma artificialidade com consequências éticas e políticas.
Embora possamos ser ciborgues, o que implica dizer que somos um pouco máquinas, não somos apenas
máquinas. E se a condição de máquina nos atinge, a condição humana também atinge a máquina. Quem
assistiu aos filmes Blade runner, de Ridley Scott, ou Tempos modernos, de Chaplin, sabe que os reinos
se confundem.
Associados, em simbiose, não somos mais apenas escravos de máquinas. Estamos preparados
intelectual, cognitiva e afetivamente para enfrentar a questão antropológica que se coloca no momento
em que nossa fusão com a máquina e com os aparelhos das tecnologias digitais atravessa nossa vida?
Somos capazes de pensar a ética e a política que derivam disso?
coluna

Precisamos falar sobre a direita


WILSON GOMES

No Brasil da extrema polarização política, nomes não são meras designações para as coisas e pessoas,
mas rótulos e armas que se podem brandir contra os adversários. No país em que as redes digitais
transformaram desinformados e desinteressados por política em participantes ativos do debate público e
partidários muito engajados desta ou daquela identidade política, há mais barulho do que argumentos,
mais busca da treta pela treta do que desejo de esclarecimento recíproco. À medida que crescem o
ativismo e a participação, diminui a paciência para produzir conceitos cuidadosos e consequentes.
Aparentemente, precisamos mais de palavras de ordem para mover a massa e cimentar identidades do
que de nuances e distinções que nos permitam sair da nossa zona de conforto e de raiva, pois de pressa e
raiva hoje se faz a esfera pública brasileira. Estamos todos à flor da pele, constantemente furiosos,
perenemente ultrajados.
Uma prova desse estado de coisas é o uso da palavra “direita” no debate político hoje. Sim, eu sei que
as designações “direita” e “esquerda” sempre foram torturadas ideologicamente até que confessassem
aquilo que cada lado gostaria que se dissesse. Mas como o crescimento do número de pessoas e grupos
que se admitem de direita se deu pari passu com o aumento da polarização política, a compreensão do
que “direita” quer dizer se tornou ainda mais comprometida. Assim, temos cada vez mais pessoas
reivindicando-se, de modo ostensivo e até orgulhoso, como sendo de direita, ao mesmo tempo em que a
expressão vai se tornando ainda mais polissêmica e distorcida. E, para complicar, ainda tem muita gente
faturando em cima do engano e do autoengano.
Os bolsonaristas, por exemplo, afirmam-se de direita. Ao mesmo tempo que alguns dos seus
ideólogos em redes digitais ridicularizam quem os considera de extrema direita. O DEM, por outro lado,
anda agora tentando garantir que ocupa o centro, quando até pouco tempo atrás se juntava ao coro da
retórica que assegurava que a distinção entre esquerda e direita já havia sido superada. A propósito desta
afirmação, há muito emprego um princípio que se provou verdadeiro ao longo dos anos: se o sujeito diz
que não existe mais “direita – esquerda” pode apostar que é de direita. Pois, vejam que curioso, quando
Bolsonaro se coloca na direita, o DEM se desloca retoricamente para o centro, que ocuparia junto com o
PSDB, que os bolsonaristas juram que é de esquerda. Não está fácil de entender.
Por outro lado, não faz muito tempo que Maria do Rosário escreveu no Twitter que “não existe
democracia com a direita no poder”. Pode não ser a enunciação de um princípio e sim a descrição
afobada de uma circunstância, mas expressa uma posição comum em muitos ambientes de esquerda:
direita e democracia são incompatíveis. Ora, qualquer manual de teoria democrática diz que as
denominações “esquerda” e “direita” são típicas da experiência republicana, que, portanto, a direita é
uma das posições republicanas legítimas, uma típica invenção da democracia moderna. Aliás, mesmo do
ponto de vista geométrico, só há esquerda (e centro) porque há direita.
Pois Maria do Rosário nos leva a entender que não é bem assim: na democracia só cabe a esquerda,
toda direita é autocrática e toda esquerda é democrática. Geometricamente, a experiência republicana só
tem um lado, que se chama esquerda apenas por esporte. Aliás, para muitos da esquerda, nem o centro
presta, também o centro é autocracia em estado puro. Ora, essa posição é a antítese perfeita da nova
direitinha militante que tem certeza de que toda esquerda é fascista, comunista e genocida, de que há
incompatibilidade entre esquerda e qualquer valor humano, inclusive decência e democracia.
Nada há de errado na direita republicana, assim como no centro. Restabelecer a dignidade política da
direita republicana pode ser, talvez, o melhor caminho para demarcar com clareza o espaço sombrio da
direita não republicana que começa a nos sitiar. O que nos daria um patamar que permitisse ao sujeito de
direita (e eles serão cada vez em maior número) a distinguir-se com precisão da horda dos feios e brutos
que usam hoje a direita como cavalo de Troia para atacar a própria democracia.
Em qualquer lugar do mundo, um democrata de direita é o sujeito que acha que o Estado não pode
onerar a produção metendo a mão no bolso das pessoas para tirar daí a grana que usará para fazer
distribuição de renda ou prestar serviços públicos universais. Que considera que o Estado deve abster-se
ao máximo de interferir nas relações privadas do mercado ou na vida íntima das pessoas e que o cidadão,
sim, é quem deve interferir ao máximo na vida do Estado, uma vez que paga os impostos que o
sustentam. Que considera que políticas públicas compensatórias ou distributivas não podem ser
financiadas com recursos que deveriam ser usados para produzir riqueza – mas sobre isto as posições
podem ter matizes que devem ser consideradas. Enfim, um democrata de direita típico acha que a vida
social se baseia principalmente na livre competição e não em arranjos cooperativos entre as pessoas.
Como se sabe, a democracia moderna é a democracia liberal, resultado da convergência e da
combinação resultante, entre a democracia, sistema de governo baseado na premissa da igualdade entre
todos os cidadãos, e o liberalismo, sistema político e ideológico voltado para contrastar o absolutismo.
Se da democracia vieram os princípios da igualdade, da liberdade, da deliberação pública e o sufrágio
universal, do liberalismo vieram um tipo de Estado de Direito, garantias e direitos individuais, a ênfase
nas liberdades privadas. As clivagens no campo democrático, entre direita, esquerda e centro, derivam
justamente das tensões resultantes das acomodações dos dois sistemas: a democracia e o liberalismo.
A direita republicana é fruto dessa acomodação, ainda em processo, que produziu as democracias
liberais. Por isso mesmo, um direitista democrático pode até ser consideravelmente “antiestatista” e
desconfiado com relação ao poder do Estado, porque foi moldado na luta contra o absolutismo, mas não
pode abrir mão nem da liberdade das pessoas nem da igualdade política. Fora disso, é o fascismo. Assim,
quando o sujeito que se diz de direita, acredita que a igualdade política pode ser “flexibilizada” ante as
“evidências” de que uma determinada raça (sic), gênero, orientação sexual, ou qualquer outra forma
identitária em que se coloque, é superior à raça, gênero ou orientação sexual dos outros, já estamos fora
do segmento democrático. Se, por conseguinte, considera que os outros não podem ter os mesmos
direitos, garantias e oportunidades que ele e “as pessoas como ele”, continua na direita, mas republicano
não é mais.
Assim como a esquerda não é mais democrática quando abre mão das liberdades individuais, como
aconteceu seguidamente nas várias experiências históricas do socialismo, no exato momento em que, sob
qualquer pretexto, a direita despreza o combinado democrático fundamental de que todos são
politicamente iguais, de que todos têm direitos e gozam de garantias legais, de que nas liberdades civis
não se toca, a sua posição perde inteiramente a legitimidade democrática. Passado este ponto, a direita
não pode mais esperar respeito nem consideração dos democratas pelo que o direitista pensa ou pela
expressão pública do seu pensamento, simplesmente porque ele e as suas ideias não cabem mais na
democracia. E aí, sim, a sua posição autocrática é fascista, assim como a autocracia de esquerda foi
frequentemente o totalitarismo. Aliás, fascismo e totalitarismo sempre funcionam como polos de atração
para a direita e a esquerda, puxando-se para fora do círculo mais restrito da democracia liberal.
No Brasil, enquanto perdurou a indignação social ante os horrores da ditadura militar brasileira, a
vergonha ou o medo do constrangimento funcionaram como focinheira democrática a conter os
conservadores de direta e a extrema direita. Afinal, haviam chegado aos anos 1980 ainda com os dentes
sujos de sangue. Passaram, a partir daí, pouco mais de trinta anos negando que tenham tido alguma coisa
a ver com as trevas da ditadura militar, quietinhos no armário ou mudando de casca e roupa (como a
Arena que virou PDS que virou FL que virou PFL que virou DEM que agora diz que é centro) para
parecer outra coisa. Até que a noite do antipetismo chegou, em 2015, e as focinheiras foram retiradas.
A direita autoritária e autocrática chegou, paradoxalmente, na forma de uma geração de garotos de
vinte a trinta anos, que não-viu-nem-lembra. A primeira geração de garotos que chega à idade adulta no
Brasil republicano sem nunca ter vivido um período autoritário é uma geração de... autoritários, por cuja
mão a extrema direita, 10% democrática, 90% fascista, é reintroduzida como alternativa política no
Brasil. Junto com eles, legiões de feios, sujos e malvados de todas as cataduras: viúvas da ditadura que
saíram de porões onde se esconderam por 35 longos anos, autoritários de direita que já não aguentavam
perder eleições, exóticos hidrófobos, como os do bolsonarismo, que até então falavam apenas para
nichos igualmente extravagantes, e um sortido de parasitas, aproveitadores e mentes-fracas de todos os
tamanhos e formatos.
Isto não é direita democrática, amigos. Conceder-lhes o direito de se apresentarem como a direita
republicana é como permitir que Marco Feliciano e Silas Malafaia sejam identificados como a pura
expressão do cristianismo, como eles reivindicam e desejam. Cristão sou eu, eles são apenas
homofóbicos, iliberais e conservadores que usam o cristianismo para batizar a sua maldade social.
Analogamente, dá-se o mesmo com a direita. O bolsonarismo, os intervencionistas militares, os que
odeiam os Direitos Humanos, os que lutam contra direitos e reconhecimento das minorias políticas não
são “a direita” republicana, mas uma versão desfigurada e degradada de uma direita que se poderia
respeitar e que tem um lugar legítimo na democracia liberal.
coluna

Dando corpo ao impossível


VLADIMIR SAFATLE

“O que poderia ser a necessidade para tal revolução linguística se demonstrarmos que a linguagem
existente e sua estrutura são fundamentalmente adequadas às necessidades do novo sistema? A antiga
superestrutura pode e deve ser destruída e substituída por uma nova no curso de alguns anos, a fim de
dar livre curso ao desenvolvimento das forças produtivas da sociedade, mas como poderia uma
linguagem existente ser destruída e uma nova construída em seu lugar no curso de alguns anos sem
causar anarquia na vida social e sem criar a ameaça de desintegração da sociedade? Quem a não ser um
Dom Quixote poderia dar a si mesmo tal tarefa?” Stalin, Marxism and linguistics.
Estas são palavras de Josef Stalin a respeito de um debate que marcou época na antiga URSS. A
questão girava em torno da relação entre linguagem e revolução. Uma revolução política modifica ou
não a estrutura da linguagem? Seria a linguagem uma superestrutura transformada quando rupturas
sociais fundamentais ocorrem? Como se vê, a resposta de Stalin é negativa. A vida da linguagem passa
ao largo das transformações econômicas e sociais. Ele parece ter uma espécie de neutralidade política.
Pois destruir uma linguagem existente e construir uma nova em seu lugar só poderia implicar a anarquia
da vida social e a ameaça de desintegração da sociedade.
No entanto, de certa forma, Stalin tinha razão. Há uma anarquia, uma quebra da arché, uma
eliminação da ilusão da origem e do fundamento quando uma linguagem entra em dinâmica de ruptura.
Poderíamos partir desse ponto a fim de nos perguntarmos sobre em que condições paralisações políticas
ocorrem. Por que há momentos nos quais a imaginação política parece entrar em compasso de bloqueio,
nos quais, mesmo sendo atravessada por descontentamentos profundos, revoltas de toda ordem,
sociedades parecem não ter mais força para se transformar? Não seria exatamente porque há uma
linguagem nova que deveria emergir e, no entanto, ela não emerge, ou seja, a linguagem não aparece
como motor de transformação política?
Comecemos por uma questão de princípio. Pois nos perguntemos pelas condições de possibilidade
daquilo que podemos chamar de lutas e conflitos sociais. Essas mesmas lutas e conflitos que fornecem a
base da experiência política. Não se trata aqui de operar nesse registro imediato da presença de
experiências de sofrimento social e injustiça. Façamos uma questão ainda mais elementar, a saber, como
sociedades traduzem experiências de sofrimento social, como elas interpretam processos de injustiça.
Pois há aqui uma questão vinculada necessariamente a dimensões de “interpretação” e “tradução”.
Podemos sentir sofrimento, mas há um exercício suplementar que consiste em traduzi-lo sob a forma de
uma demanda social, interpretá-lo sob a forma de ações coordenadas. Uma sociedade é fundada, entre
outras coisas, em uma gramática de inscrição de experiências sociais de sofrimento em modos
específicos de articulação de demandas.
Insisto nesse ponto porque creio que se trata de salientar a existência de algo que poderíamos chamar
de “gramática social de conflitos”. Essa gramática é a condição de possibilidade para toda experiência
política. Tal gramática determina a forma possível das demandas e das lutas, ela configura a estrutura
dos sujeitos políticos e define as modalidades gerais de agência possível. Na verdade, tal gramática
determina os limites do que é possível e do que é impossível para uma sociedade realizar e imaginar. A
gramática define o que pode ser ouvido e percebido, o que pode nos afetar. Neste sentido, ela é similar a
uma gramática linguística, com sua sintaxe, sua semântica, seus princípios gerativos.
Chamo atenção para esse aspecto porque uma questão fundamental consiste em se perguntar sobre
qual gramática social de conflitos respeitamos, qual gramática configura a forma da nossa revolta. No
fundo, continuamos a respeitar a mesma gramática que define os modos normais de funcionamento dos
nossos vínculos sociopolíticos. Por isso, as demandas de ruptura que enunciamos tendem a reiterar os
modos gerais de determinação social. Nós falamos a mesma linguagem daqueles contra os quais nós nos
batemos. Por isso, podemos dizer que há uma gramática que se fortalece agindo em nós, agindo através
de nós, mesmo quando parecemos encenar nossa revolta e desejo de ruptura. Vladimir Maiakovski dizia
que não há arte revolucionária sem forma revolucionária. Nós podemos dizer algo semelhante: não há
política revolucionária sem forma linguística revolucionária. Forma capaz de romper a gramática social
de conflitos hegemônica em sociedades determinadas.
Para rompê-la é necessário apoiar-se naquilo que é gramaticalmente impossível, fazer circular
enunciados políticos gramaticalmente impossíveis que constituem enunciadores emergentes. Nesse
sentido, uma questão fundamental seria: o que na atualidade é gramaticalmente impossível de enunciar?
É em direção ao ato de dar corpo ao impossível que caminha a emergência dos processos de
transformação social. Pois é possível que enunciados impossíveis sejam atualmente aqueles que são falas
desprovidas de lugar, que abrem um campo de implicação genérica na qual todo e qualquer pode assumir
tal fala. Elas são falas marcadas por uma universalidade destituinte, ou seja, universalidade cuja
emergência destitui as formas atuais de presença e existência.
entrevista André Singer
“Torço pela retomada da democracia”
JOAQUIM TOLEDO JR.

Para o cientista político André Vitor Singer, professor livre-docente da Universidade de São Paulo,
explicar a passagem do “sonho rooseveltiano” de erradicação da miséria e diminuição das desigualdades,
vislumbrado por Dilma Rousseff no discurso de posse de seu primeiro mandato (2011-2014), à sucessão
de crises que culminaram no impeachment da presidente em 2016 é como montar um quebra-cabeça. “A
quantidade de eventos e de cruzamentos inesperados de atores, ações e processos é infinita”, afirma.
“Mas o meu esforço é o de oferecer elementos que poderiam levar a uma formulação teórica”, capaz de
associar a presente crise política a características mais profundas dos sistemas político e partidário
nacionais.
Em um dia repleto de eventos relacionados ao estado de crise permanente que tomou conta do país –
a prisão do ex-senador e ex-governador de Minas Gerais Eduardo Azeredo (PSDB) e a intensificação da
greve dos caminhoneiros – André Singer recebeu a Revista CULT para uma conversa sobre O lulismo
em crise: um quebra-cabeça do período Dilma (2011-2016) (Companhia das Letras, 2018), livro que
reúne artigos publicados ao longo dos últimos cinco anos e material de pesquisa inédito.
Qual a tese central de O lulismo em crise?
A tese é que o processo de impeachment remete, como uma recorrência histórica no Brasil, ao golpe de
1964. Claro que há diferenças entre um caso e outro. A mais importante é que em 2016 houve um golpe
parlamentar, enquanto em 1964 houve um golpe de Estado. No “Intermezzo histórico” do livro, chamo a
atenção para as coincidências entre o sistema partidário brasileiro nesses dois períodos. Os três partidos
principais do período 1945-64 (UDN, PTB e PSD) têm semelhanças com os partidos maiores do período
1989-2014 (PMDB, PSDB e PT) e o processo de impeachment, como o golpe de 1964, foi uma reação a
tentativas de reformas inclusivas que foram bloqueadas por uma reação conservadora. Na segunda parte
do livro, reconstruo de maneira factual os acontecimentos que levaram ao impedimento, porque do
contrário a tese não teria nenhuma base empírica. A quantidade de eventos e de cruzamentos inesperados
de atores, ações e processos é infinita. Mas o livro tem também a ambição de associar a crônica a uma
visão mais geral da política brasileira.
De que forma esse padrão do sistema partidário brasileiro e o realinhamento eleitoral de 2006, de
que você tratou em Os sentidos do lulismo (2012), se relacionam ao processo de impeachment?
O PSDB, embora não tenha sido a ponta de lança do processo de impeachment, teve papel decisivo. A
oposição ao lulismo não conseguiu vencer as eleições em 2014 e teve que interromper o processo por
uma via lateral, e acabou patrocinando o impedimento de Dilma. Ou seja, não foi capaz de mudar a
orientação do realinhamento eleitoral que incomoda a oposição desde 2006. Com a prisão do presidente
Lula, que é o principal candidato do campo lulista, nós não sabemos que caráter a eleição de 2018 terá.
Até aqui, o que podemos dizer é que houve uma mudança nas regras do jogo, tirando determinados
personagens de cena. Essas mudanças fazem que o realinhamento de 2006 fique suspenso, não por
razões estritamente eleitorais, mas porque houve uma intervenção no jogo desde fora. Mas as intenções
de voto no presidente Lula, ainda que preso, mostram a vitalidade do lulismo.
A sua avaliação do primeiro governo Dilma (2011-2014) é positiva. Quais foram as principais
virtudes do primeiro mandato?
Houve uma política consistente tanto na economia como no que a gente poderia chamar de
republicanização do Estado. Discuti a política econômica em artigos anteriores, que formam a primeira
parte do livro. Ao fazer a pesquisa específica que resultou na segunda parte de O lulismo em crise, que é
completamente inédita, eu percebi que aquilo que a imprensa chamou de “faxina” na realidade foi um
período em que Dilma desenvolveu políticas sistemáticas de remover determinados círculos clientelistas
incrustados no Estado. Dilma mexeu na área energética e em diversos ministérios até chegar à demissão
da diretoria da Petrobrás, que depois veio a ser o centro da operação Lava Jato. Não foram ações
isoladas, mas um processo relativamente longo, que começa antes da posse, quando ela decide mudar a
direção do Ministério da Saúde e compra uma briga com Henrique Eduardo Alves (MDB), que viria a
ser presidente da Câmara. O conflito com o MDB, portanto, não começa com Eduardo Cunha. Eu não
vou afirmar que esses sejam os únicos elementos que explicam o processo de impedimento. Há outras
causas, como as mudanças na conjuntura econômica mundial. Mas o que chamo de “ensaio
republicano”, e a reação a ele, é uma parte importante para entender o que aconteceu.
Quais os primeiros sinais de crise do período Dilma?
Os protestos de junho de 2013, que mudam toda a orientação da conjuntura, são o momento de inflexão.
Dilma, que vinha tendo uma conduta coerente na economia e na política, ainda que discutível, se torna
errática, adotando diferentes políticas sem coerência entre si, prejudicando a governabilidade. E isso vai
até abril de 2016, quando na prática o governo termina. Tem um epílogo que é o julgamento pelo
Senado, mas a partir do dia 17 de abril, quando a Câmara aprova a continuidade do processo de
impeachment, ela já estava fora.
Os protestos de junho dão sinal de uma quebra de expectativas em torno do projeto lulista?
Os reflexos da crise econômica mundial de 2008 afetam diretamente a possibilidade de que o projeto
lulista continue entregando uma perspectiva de ascensão social compatível com o ritmo anterior. Alguns
economistas estimavam que, para manter o ritmo de integração do segundo mandato do ex-presidente
Lula, o crescimento da economia teria que ser em torno de 4,5%, 5%. Mas cai em 2011 e em 2012,
depois tem uma certa retomada em 2013 e cai definitivamente a partir de 2014. No ciclo lulista há a
formação de uma nova classe trabalhadora, que quer continuar melhorando de vida. E a diminuição do
ritmo de crescimento econômico dá sinais de que isso não vai acontecer. Eu acho que uma parte da
explosão de junho pode ser associada a esse fenômeno. Mas é difícil saber exatamente qual parte, porque
foi um fenômeno misto.
Há um paradoxo na combinação de relativa ascensão social no período Lula-Dilma com a onda de
conservadorismo político após junho de 2013?
É um fenômeno mais antigo. A partir de 2006 você tem os setores populares em bloco com o lulismo e a
classe média em bloco com o PSDB. Esse movimento decorre de uma repulsa de setores da classe média
ao PT, movidos pelas denúncias de corrupção do chamado mensalão. De 2013 até 2016 aparece um
segundo componente, que é a profunda rejeição da classe média à ascensão dos mais pobres. Essa
diminuição das distâncias provocou uma reação pública mobilizada inédita. Parece que se revelou um
amor pela desigualdade que nós não sabíamos que existia no Brasil.
Você sugere que, mais do que um sentimento, esse amor pela desigualdade tem um papel
estrutural na conformação da sociedade brasileira.
Isso remete às teses de Francisco de Oliveira sobre o capitalismo brasileiro. O Brasil se desenvolve com
base em excedente de mão de obra, que eu chamo de subproletariado, seguindo um conceito formulado
por Paul Singer. O nosso capitalismo não é atrasado, mas se desenvolve de maneira peculiar. Há uma
desintegração que parece ser necessária ao sistema. O que considero original no livro é a tentativa de
ligar essa formulação crítica sobre o capitalismo brasileiro ao nosso sistema partidário e pensar esse
sistema como representativo das grandes contradições de classe do país. Os três grandes partidos que
existem no Brasil desde 1945, que eu chamo de partido popular, partido da classe média e partido do
interior, representam ainda que indiretamente as classes que essa formação específica do capitalismo
produz. Por exemplo, o PT, que é originalmente um partido da classe trabalhadora, acaba se
transformando num partido de tipo popular, parecido com antigo PTB, porque ele tem que lidar com esse
enorme subproletariado. No lulismo esse subproletariado ascendeu parcialmente, e talvez essa ascensão
seja uma das explicações da recente interrupção de seu projeto por um partido de classe média.
Você identifica também uma reação inesperada da burguesia nacional, que você chama de “ensaio
desenvolvimentista” do período Dilma.
O governo fez uma aposta política em uma coalizão de classes que se dissolveu. A Fiesp foi a ponta de
lança no meio empresarial do impeachment. Aparentemente, os industriais brasileiros têm mais horror ao
fortalecimento do Estado do que a políticas antiprodutivas, mais benéficas ao capital financeiro do que
ao capital produtivo, e mais benéficas aos importadores do que aos produtores em território nacional. Na
opção entre um Estado que se fortalece ou políticas voltadas para a associação ao capital financeiro
mundial e a divisão internacional do trabalho, a burguesia acaba ficando com essa segunda opção, como
ficou em 1964.
Você opta por avaliar a Lava Jato por suas consequências e não por suas intenções, e aponta tanto
o viés antilulista como os efeitos de republicanização da operação.
De um lado a Lava Jato é visivelmente seletiva, e incide sobre a política de maneira a prejudicar o PT, o
lulismo e o campo popular. Na visão dos membros da força-tarefa, o ex-presidente Lula era o centro de
todo o processo que a operação buscava combater. Isso fica claro quando o juiz Sergio Moro, em março
de 2016, faz uso de uma gravação, considerada ilegal pelo STF, para impedir a posse do ex-presidente na
Casa Civil. Com isso o juiz Sergio Moro faz política explícita, combatendo politicamente o ex-
presidente, a então presidenta Dilma e o conjunto de forças que procurava sustentar o governo em uma
situação já muito difícil. Por outro lado, a Lava Jato revelou desvios de recursos na Petrobrás que
chegam a bilhões de reais, atingindo praticamente todos os partidos representados na Câmara. As
delações premiadas da Odebrecht e da JBS provam que não há como deixar de reconhecer que a
operação revelou fatos que precisam ser explicados. Essa revelação tem um efeito republicano, também
objetivo.
Você sugere que a Lava Jato é também indício da prevalência do escândalo político-midiático na
política brasileira atual, e usa a expressão “Partido da Justiça” para criticar alguns aspectos da
operação.
O fenômeno do escândalo político-midiático assumiu uma centralidade sem a qual não se entendem as
democracias. Não só no Brasil, as páginas de política dos jornais foram tomadas por uma sucessão de
escândalos, ficando parecidas com as páginas de polícia. A isso, e não apenas no caso brasileiro, se junta
um segundo fenômeno, que é o da judicialização da política: os atores vão recorrer ao judiciário para
obter ganhos no jogo que em tese deveria ser apenas eleitoral. No caso do Brasil, a conjunção dessas
duas vertentes, o escândalo político-midiático e a judicialização da política alcançaram um patamar
talvez único em qualquer país. O que eu chamo metaforicamente de Partido da Justiça para me referir a
setores da Polícia Federal, do Judiciário e do Ministério Público, passou, em alguns momentos, a
determinar os rumos do Estado, ameaçando o sistema partidário que, com todos os defeitos, é
representativo das classes e parte fundamental de nossa democracia. O que vai ser colocado no lugar? O
punicionismo parece a única alternativa que o “Partido da Justiça” apresenta. Combater a corrupção é
necessário, mas não é possível pensar o conjunto do país a partir do combate à corrupção. Esse não pode
ser o único programa para o país porque isso não corresponde às necessidades muito mais complexas de
orientação da economia, da política social, das relações externas, da orientação da máquina pública. E os
subprodutos do punicionismo passam, por exemplo, pelo crescimento da extrema direita e pela
candidatura do Bolsonaro a presidente da República.
Fala-se em crise de representatividade no Brasil. As eleições de outubro próximo colocarão a
legitimidade do sistema partidário brasileiro à prova?
Eu tento mostrar no livro que o sistema partidário brasileiro tem componentes representativos, mas tem
um componente permanente de não representatividade, que é estrutural, que remete ao antigo PSD e ao
atual MDB. Numa sociedade tão desigual como a brasileira, mecanismos de dependência, ou
clientelismo, se reproduzem o tempo todo. Quem tem poder compra o apoio político, e o dinheiro é
talvez a forma mais acabada do poder social no capitalismo. Partidos como o antigo PSD e o atual MDB,
sustentados sobre esse tipo de mecanismo, se descolam das classes, e tornam particularizadas as relações
políticas. Ao mesmo tempo, a dualidade principal do sistema é a dualidade entre o partido popular e o
partido da classe média, que são representativos de classes. Então você tem uma mistura curiosa no
Brasil, elementos representativos e elementos não representativos. De alguma maneira tanto o PT quanto
o PSDB se renderam à lógica do MDB. Essa lógica clientelista penetrou nos interstícios do sistema e
isso fez com que uma operação como a Lava Jato questionasse o conjunto do sistema. Por isso eu penso
que todos os partidos têm que se renovar e responder ao desafio que foi colocado pelos aspectos
republicanos da Lava Jato.
Tanto PT como PSDB fizeram gestos de renovação. Já o MDB não fez essa autocrítica. Em que
pesem os problemas do MDB, ele também a seu modo expressa aspectos da sociedade brasileira real, e a
democracia funciona com base na sociedade real, e não da sociedade ideal. Como dizia o Chico de
Oliveira, as ciências sociais devem se abster de fazer previsões, porque em geral ela não é boa nisso.
Então eu espero que esses partidos sejam capazes de superar o momento difícil em que estão e de abrir a
perspectiva de uma retomada da democracia. A democracia brasileira, em que pesem as desigualdades
da sociedade, funcionou bastante bem no período 1989-2014, mas no momento está seriamente
ameaçada. Torço para que o resultado final seja de retomada da democracia, e não de retrocesso.
dossiê O movimento LGBT brasileiro: 40 anos de luta
Apresentação
RENAN QUINALHA

Em 1975, Cid Furtado, relator do projeto de emenda constitucional que legalizava o divórcio,
argumentou, em seu parecer contrário à proposta na Câmara Federal, que “desenvolvimento e segurança
nacional não se estruturam apenas com tratores, laboratórios ou canhões. Por detrás de tudo isso está a
família, una, solidária, compacta, santuário onde pai, mãe e filhos plasmam o caráter da nacionalidade”.
Esta frase do deputado arenista na discussão sobre o divórcio talvez seja uma das mais perfeitas
sínteses da moralidade alçada à política de Estado durante a ditadura que governou o Brasil de 1964 a
1985. Sua indignação com o divórcio, na verdade, remetia a preocupações muito mais profundas com a
revolução dos costumes, com a liberação sexual, com a maior presença da mulher no mundo do trabalho
e no espaço público, com a entrada em cena de lésbicas, homossexuais masculinos e travestis, com cada
vez menos pudores de assumir suas identidades sexuais ou de gênero.
Assim, a vida privada, a esfera íntima, o cotidiano e o que se fazia entre quatro paredes foram
também se convertendo em objeto da ânsia reguladora e do controle autoritário da ditadura brasileira.
Pessoas eram vigiadas cotidianamente e, em seus dossiês produzidos pelos órgãos de informações,
registrava-se, como uma mácula, a eventual suspeita ou mesmo a certeza categórica de se tratar de um
“pederasta passivo”, como se isso diminuísse ou desqualificasse a integridade e o caráter da pessoa
perseguida.
Por ser homossexual, ela perdia sua humanidade e, portanto, era considerada menos respeitável em
sua dignidade. Publicações com material erótico ou pornográfico eram monitoradas e, muitas vezes,
apreendidas e incineradas por violar o código ético da discrição hipócrita que grassava em uma
sociedade que consumia vorazmente e cada vez mais este tipo de conteúdo.
Músicas, filmes e peças de teatro foram vetados e impedidos de circular por violarem “a moral e os
bons costumes”, sobretudo quando faziam “apologia ao homossexualismo”. Na televisão, telenovelas e
programas de auditório sofreram intervenção direta das giletes da censura, que cortavam quadros e cenas
com a presença de personagens “efeminados” ou “com trejeitos” excessivos e que, portanto, com sua
simples existência, afrontavam o pudor e causavam vergonha nos espectadores.
Travestis, prostitutas e homossexuais – tanto masculinos quanto femininos – presentes nos cada vez
mais inflados guetos urbanos eram também uma presença incômoda para os que cultivavam os valores
tradicionais da família brasileira. Por esta razão, passaram a ser perseguidos, presos arbitrariamente,
extorquidos e torturados pelo fato de ostentarem, em seus corpos ou em seus comportamentos, os sinais
de sexualidade ou de identidade de gênero dissidentes.
Editores e jornalistas que se dedicavam aos veículos da então chamada “imprensa gay”,
especialmente do jornal Lampião da Esquina, foram indiciados, processados e tiveram suas vidas
devastadas, muitas vezes com o apoio do sistema de justiça, porque tematizavam e mostravam as
homossexualidades fora dos padrões de estigmatização e ridicularização que predominavam na
“imprensa marrom” até então.
Esses exemplos ilustram perfeitamente como as questões comportamentais tornaram-se objeto da
razão do Estado depois do golpe de 1964 e, sobretudo, após 1968. A sexualidade passou a ser tema afeto
à segurança nacional para os militares conforme registraram e documentaram os trabalhos da Comissão
Nacional da Verdade. Os desejos e afetos entre pessoas do mesmo sexo também foram alvo do peso de
um regime autoritário com pretensão de sanear moralmente a sociedade e criar uma nova subjetividade
afinada com os princípios binários e heteronormativos tão caros às políticas morais conservadoras.
No entanto, apesar dessas constatações, é forçoso também notar, no final dos anos 1960 e início da
década de 1970, uma ambiguidade fundamental. Ao mesmo tempo em que se perseguiam a liberdade
sexual, inúmeras boates, bares, espaços de pegação e sociabilidade entre homossexuais, geralmente em
guetos, surgiam e conviviam com a repressão do Estado nos lugares públicos. O inchaço dos grandes
centros urbanos, junto com o aumento das camadas médias no período que sucedeu o Milagre
Econômico, permitiu novas vivências e perspectivas para homossexuais que estavam já cansados de
viver dentro de seus próprios armários.
Nesse contexto, o longo e duradouro processo de transição política, que se intensificou na passagem
da década de 1970 para a de 1980, vai ser marcado por uma crescente busca de visibilidade e cidadania.
Diversos movimentos sociais e organizações da sociedade civil desempenharam um papel fundamental
na democratização do regime, lutando pelas liberdades públicas, por participação política, por justiça
econômica e pelo reconhecimento de suas identidades.
Em particular, o ano de 1978 representou um marco fundamental na redemocratização do Brasil e na
história do movimento LGBT. Isso porque, entre as diversas forças políticas que se engajaram nessas
lutas democráticas como as mulheres e os negros, merece também destaque o então chamado
“movimento homossexual brasileiro” (MHB).
Com efeito, no primeiro semestre de 1978, foi organizado em São Paulo o “Somos – Grupo de
Afirmação Homossexual”, coletivo pioneiro na articulação do MHB. Pouco tempo antes, havia
começado a circular o já mencionado mensário Lampião da Esquina, a primeira publicação de
abrangência nacional, claramente engajada nas lutas políticas travadas pela imprensa alternativa e feita
por homossexuais para homossexuais. A partir do Somos, vários outros grupos foram organizados em
diversas partes do país.
É verdade que as homossexualidades e as transgeneridades têm uma história muito mais antiga no
Brasil. Desde os tempos mais remotos, é possível identificar registros de comportamentos sexuais e de
gênero dissidentes ao padrão imposto pelo sujeito pretensamente universal (homem, branco, europeu,
heterossexual, cisgênero, católico e proprietário). Também se podem identificar, nessa longa história,
modos diferentes de ação política e de contestação por parte dos corpos e desejos “desviantes”.
Contudo, é nesse momento peculiar da recente ditadura civil-militar que emerge, em sentido
sociológico e político específico, um movimento social de luta pelo reconhecimento, pela visibilidade e
pelo respeito das diversidades sexuais e de gênero.
Desde então, o MHB tornou-se LGBT, sofrendo diversas transformações e contribuindo também para
promover importantes mudanças na sociedade e no Estado brasileiros. Proliferaram os coletivos e grupos
organizados, diversificaram-se as identidades dentro da “sopa de letrinhas” LGBT, multiplicaram-se as
formas de luta, conquistaram-se direitos, construíram-se políticas públicas, realizaram-se os maiores atos
de rua desde as Diretas Já com as Paradas do Orgulho LGBT e ocuparam-se as redes sociais e as
tecnologias com novos ativismos.
Diversas organizações do movimento deixaram de se opor diretamente contra o Estado, como ocorria
com a primeira geração do Somos ainda sob a ditadura, para buscar parcerias com ONGs (dentro e fora
do país). Emergia mais claramente, assim, uma atuação concertada para obter financiamento, políticas
públicas e direitos das diversas instâncias de governo.
Ainda nos anos 1980, conseguiu-se, por exemplo, despatologizar a homossexualidade, retirando-a da
lista de doenças do então Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps).
Buscou-se inscrever no novo texto constitucional em discussão na Assembleia Nacional Constituinte,
expressamente, a vedação à discriminação por orientação sexual em uma importante campanha. Apesar
da derrota na votação do tema, diversas legislações municipais e estaduais acabaram incorporando essa
perspectiva. Além disso, vale lembrar as inúmeras campanhas realizadas junto a veículos de
comunicação para que deixassem de representar as pessoas LGBT de forma sempre caricatural e
debochada.
Muitos desafios também foram enfrentados durante esses anos de avanço de reconhecimento. A
epidemia do vírus do HIV e da aids, que chegou a ser chamada de “peste gay” pela mídia, teve um
impacto tremendo nessa trajetória, tanto no sentido de conferir mais visibilidade e atenção públicas
quanto no de reforçar a estigmatização associando, novamente, a homossexualidade à doença. As
políticas de saúde foram reivindicações centrais nesse momento.
Sobretudo a partir dos anos 1990, profissionalizaram-se cada vez mais as entidades LGBT,
nacionalizaram-se as organizações e emergiram novas frentes de integração e também de cooptação. O
“pink money” dos homossexuais bem-sucedidos economicamente possibilitou um potencial de consumo
cada vez mais direcionado a esse público. Essa proximidade maior com poderes públicos e mercado,
para além dos guetos de outrora, traduziu-se em um padrão de cidadania classista pelo consumo,
aumentando a visibilidade de alguns setores, mas excluindo os mais pobres.
De qualquer forma, o que era impensável há quarenta anos tornou-se hoje uma realidade na vida de
muitas pessoas LGBT no país. Homossexuais já podem se casar e adotar crianças, com os mesmos
direitos dos heterossexuais. Pessoas trans podem alterar, no registro civil, o prenome e o sexo
diretamente nos cartórios, sem necessidade de cirurgia, laudos médicos ou autorização judicial. Há
coordenadorias LGBT na maior parte das instâncias de governo pelo país afora e até mesmo partidos
políticos de diferentes matizes ideológicos têm, atualmente, setoriais voltados para as questões LGBT.
No entanto, apesar dessas conquistas brevemente sumarizadas aqui, o Brasil ainda ostenta um índice
alarmante de assassinatos de pessoas LGBT por crimes de ódio. Apesar de termos a maior Parada do
Orgulho LGBT do mundo em São Paulo todos os meses de junho, somente no ano de 2017, segundo
dados do Grupo Gay da Bahia, atingimos o recorde de 445 pessoas LGBT assassinadas, ou seja, mais de
uma pessoa LGBT assassinada por dia.
Além disso, vivemos uma reação conservadora contra as conquistas desse período, com o
enfraquecimento de políticas públicas do Executivo e um Legislativo dominado por uma bancada
religiosa fundamentalista que impede o avanço das pautas sexuais e morais. Isso porque a representação
política de LGBT ainda é muito precária e insuficiente. Assim, tem cabido, na maior parte das vezes, ao
Judiciário um reconhecimento e efetivação dos direitos LGBT, o que nem sempre acontece.
Soma-se a isso uma patrulha dos setores mais conservadores que construíram um espantalho
chamado “ideologia de gênero” para defender as hierarquias sexuais e de gênero, impedindo que essas
discussões possam avançar no âmbito escolar e cultural.
Chegamos, assim, aos quarenta anos do movimento LGBT com muitos avanços e outros tantos
desafios a pensar. O dossiê que segue pretende celebrar essa história de quatro décadas de lutas à luz das
dificuldades do presente, reconstruindo alguns temas e refletindo criticamente sobre momentos
privilegiados da trajetória deste importante ator político do Brasil contemporâneo.
No primeiro texto, James N. Green, reconhecido brasilianista e militante histórico do movimento
homossexual brasileiro, analisa o surgimento do Somos e sua relação com as demais lutas políticas
fazendo um balanço desses quarenta anos. Marisa Fernandes, por sua vez, estudiosa e ativista de
primeira hora do movimento das lésbicas, reconstitui como as mulheres que desejavam outras mulheres
enfrentaram dificuldades com a homofobia dentro do movimento feminista e com o machismo do
movimento homossexual.
Já a transfeminista e pesquisadora Jaqueline Gomes de Jesus traça a história da luta por visibilidade e
organização das pessoas trans, segmento mais estigmatizado e discriminado ainda. Regina Facchini,
professora da Unicamp e ativista, examina diversas facetas do processo de criação das novas identidades
com um panorama interessante das lutas LGBT das origens até o presente. Fechando o dossiê, o leitor
encontrará o artigo de João Silvério Trevisan, escritor reconhecido e pioneiro do movimento
homossexual brasileiro, que aborda os avanços recentes e as novas frentes de luta que se vão abrindo
para a renovação deste jovem e pulsante movimento LGBT brasileiro.
Visão retrospectiva
JAMES N. GREEN

ALGO MUITO EXCEPCIONAL ESTAVA EM CURSO


Para quem participou das primeiras reuniões do Núcleo de Ação pelos Direitos dos Homossexuais em
São Paulo durante o inverno de 1978, acompanhar os avanços do movimento LGBT brasileiro nas
últimas quatro décadas é uma experiência muito especial. Realmente ninguém poderia ter imaginado as
transformações que ocorreriam na sociedade brasileira.
Naquela época, nos sábados à tarde, dez ou quinze pessoas se juntavam num apartamento de algum
membro do grupo em Pinheiros ou no Centro da cidade. Eram estudantes, funcionários públicos,
bancários, desempregados e um ou outro intelectual.
Alguns pertenciam à classe média alta, mas a maioria não tinha muitas condições financeiras. Muitos
moravam ainda com suas famílias, outros com amigos. Somente uma minoria tinha o seu próprio
apartamento. A maioria era do sexo masculino. Poucas mulheres permaneceram por muito tempo nas
reuniões, cujos temas se concentravam, prioritariamente, em questões enfrentadas por gays. Um certo
nível de misoginia difusa distanciava as lésbicas que frequentavam os encontros nesse primeiro
momento.
Em parte, o jornal Lampião da Esquina incentivou a ideia de formar um grupo de ativistas. Em
seguida, notícias sobre as reuniões em São Paulo estimulavam a formação de outros núcleos no Rio de
Janeiro, em Belo Horizonte e no Nordeste. Já em 1980, falava-se do Movimento Homossexual Brasileiro
(MHB).
A maioria dos membros de São Paulo tinha pouca ou nenhuma experiência política. Enfrentava-se
também o problema da alta rotatividade. Houve um pequeno número de pessoas mais dedicadas, mas
muita gente que participava ocasionalmente das reuniões acabava não permanecendo. Isso porque havia
outras opções e lugares de sociabilidade para gays e lésbicas se reunirem que não as reuniões políticas
que, para muitos, eram consideradas longas e chatas. Também, para alguns, esse tipo de atividade não
parecia dar resultados concretos.
De qualquer forma, o Núcleo, que mudaria o seu nome para Somos: Grupo de Afirmação
Homossexual no começo de 1979, era diferente do Ferro’s Bar, um espaço conquistado pelas lésbicas,
ou mesmo dos cafés, restaurantes, bares e discotecas dirigidos a um público gay. Estava acontecendo
alguma coisa única e especial nessas reuniões. E as pessoas que tinham um pouco de sensibilidade para
momentos históricos notaram que algo muito excepcional estava em curso.
A PRIMEIRA CAMPANHA HOMOSSEXUAL: UMA CARTA ABERTA AO JORNAL NOTÍCIAS POPULARES
Aos sábados, nas salas de apartamentos pequenos e com poucos móveis, sentadas no chão, as pessoas
falavam sobre política, ainda que timidamente. Crescia o sentimento de que mudanças possíveis estavam
no ar. Havia quatro anos o presidente General Ernesto Geisel prometia uma distensão. Com idas e
vindas, parecia que o país finalmente caminhava para uma abertura política. Houve uma expectativa
crescente de que o Brasil poderia realmente voltar a ser uma democracia. Poderia ser diferente para os
homossexuais também.
Hoje em dia, a primeira campanha pública do grupo – uma carta aberta protestando contra as
reportagens negativas sobre os gays, as travestis e as lésbicas no jornal Notícias Populares – parece um
esforço bastante modesto. Mas, na época, constituiu quase um ato revolucionário. Primeiro, foi um
esforço coletivo, já que todos tiveram que discutir e decidir o conteúdo, a linguagem e o tom da carta.
Em segundo lugar, foi um esforço público. Em vez de simplesmente organizar reuniões de
conscientização para discutir a discriminação, a repressão, os problemas com a família ou com o
namorado, o grupo queria sair a público para protestar e denunciar.
Tenho certeza de que os editores do jornal Notícias Populares ignoraram a nossa carta, mas isso não
importava. O ato de afirmar-se, de exigir tratamento justo e igual, foi um fim em si mesmo. E a tentativa
de sair do gueto gay, aquela zona de proteção contra um mundo hostil para enfrentar a sociedade e os
seus preconceitos, marcou os rumos do movimento. Hoje, milhões de pessoas nas Paradas, uma
visibilidade positiva na mídia, as figuras públicas que denunciam o assassinato e a violência, o conjunto
de trabalhos acadêmicos, além de romances, peças teatrais e filmes, parecem indicar que aquele caminho
desenhado há quarenta anos para criar um futuro glorioso de vitórias foi um processo inevitável. Mas
não foi. Exigia visionários, como João Silvério Trevisan, Aguinaldo Silva e outros editores do jornal
Lampião, Marisa Fernandes do Grupo de Ação Lésbico-Feminista e outras lésbicas e, nos anos 1990, as
travestis pioneiras que elaboraram uma linguagem política para contestar o status quo.
ALIANÇAS COM AS ESQUERDAS E OUTROS MOVIMENTOS SOCIAIS
Como participante nos primeiros anos do movimento em São Paulo, tentei forjar alianças com outros
movimentos sociais e as esquerdas para fortalecer o nosso trabalho. Discordava de outros fundadores do
movimento sobre as suas visões relacionadas aos rumos que deveriam ser tomados, mas, a despeito das
divergências, considero a participação dessas pessoas fundamental. Por causa do meu próprio
envolvimento anterior nos EUA no movimento de gays e lésbicas na Filadélfia e em São Francisco antes
de chegar ao Brasil em 1976 e depois pelas influências de um setor da esquerda brasileira em que militei
a partir de 1977, eu trouxe uma análise marxista para as reuniões do Grupo Somos, quando discutimos o
mundo em mudança ao nosso redor.
No ano anterior à fundação de Núcleo e do jornal Lampião, os estudantes voltaram às ruas depois de
dez anos de repressão da ditadura militar para protestar contra as prisões arbitrárias e para exigir
liberdades democráticas. Eu argumentava, nas reuniões do Grupo Somos, que os estudantes abriram o
espaço para as possibilidades de outros protestos públicos e que essas mobilizações refletiam o desejo de
efetivar mudanças sociais mais profundas. Foi a minha elaboração precária na tentativa de entender a
realidade brasileira e a sua relação com o nosso movimento.
Dentro do grupo, várias pessoas resistiram a tal análise. Alguns tiveram experiências negativas com a
homofobia de setores da esquerda e na universidade de modo que se opuseram à ideia de procurar
ligações, diálogos ou colaborações com o movimento estudantil ou com as esquerdas. Quando
propusemos a participação no 1º de Maio de 1980, durante a greve geral do ABC e quando Lula estava
na prisão por ter violado a Lei de Segurança Nacional, um setor minoritário do Somos se opôs a este
engajamento político mais aberto e resolveu abandonar o grupo. Outros perceberam a importância do ato
e foram a São Bernardo com faixas e propaganda – eu, inclusive.
“CONTRA A DISCRIMINAÇÃO DO TRABALHADOR/A HOMOSSEXUAL”
Hoje em dia, o panfleto que escrevemos há quase quarenta anos parece incrivelmente pioneiro e, ao
mesmo tempo, bastante ingênuo e tímido. Com os títulos “Contra a intervenção nos Sindicatos do ABC”
e “Contra a discriminação do trabalhador/a homossexual”, um documento assinado pela Comissão de
Homossexuais Pró-1º de Maio veio a público. Nele, eram analisadas as reuniões do Grupo Somos:
“Entendemos que a abertura foi esboçada no Brasil a partir de 1977 devido, em grande parte, às grandes
mobilizações dos estudantes e trabalhadores, principalmente os metalúrgicos do ABC que lutaram contra
a política econômica do governo e patrões.” Ou seja, nenhum processo político e social nos parecia
isolado dos outros.
Depois vieram as ligações entre os trabalha-dores em greve e os “setores oprimidos”, uma expressão
que poucos usavam naquele momento. “Este espaço conquistado estimulou outros setores oprimidos da
sociedade: negros, mulheres e homossexuais começaram a se organizar e lutar contra a opressão
constante que sofrem numa sociedade machista e racista.” Hoje em dia, a questão da interseccionalidade
é um conceito comum tanto à academia quanto aos movimentos sociais. Naquele momento, a proposta
soava bastante nova.
Tentamos elaborar uma crítica sobre a condição dos trabalhadores homossexuais em um ambiente em
que ninguém, no Brasil, tocava neste assunto. Por isso, em boa medida, a pobreza das críticas e das
soluções que propusemos. Porém, já naquele momento, apontamos a discriminação “na fase da admissão
em entrevistas e testes psicológicos, etc.” Reconhecemos as atitudes discriminatórias na fase de
promoção: “quando se descobre que o trabalhador homossexual é impedido de ser promovido”.
Anotamos que “no dia a dia, quando descoberto, o homossexual tem que produzir mais e melhor sob
pena de ser despedido a qualquer pretexto”.
O panfleto, escrito em uma linguagem marxista meio crua demais, reconhecia que “somos mandados
embora se o patrão souber que somos homossexuais. Ou nem chegamos a ser admitidos. Somos forçados
a esconder as nossas preferências fingindo uma padronizada masculinidade (no caso dos homens) ou
igual feminilidade (no caso das mulheres) para não ser alvos de piadas, agressões e isolamento”. O
conceito de heteronormatividade não havia entrado no vocabulário do militante, e a expressão
homofobia ainda não circulava no Brasil. Quase ninguém entendia gênero como “performance”, e as
ideias feministas circulavam entre poucas pessoas. Mesmo assim, as ideias estavam implícitas na
linguagem no panfleto e no entusiasmo para participar no 1º de Maio de 1980. Aproximadamente,
cinquenta gays e lésbicas juntaram-se a milhares de outras pessoas para apoiar a greve geral e denunciar
a prisão dos líderes sindicais enquanto protestavam contra a discriminação do(a) trabalhador(a)
homossexual.
Daqui a sessenta anos, quando um historiador quiser escrever sobre “os cem anos do movimento
LGBT brasileiro”, certamente tais categorias não existirão mais, e as identidades sexuais, que são tão
importantes hoje em dia, vão parecer conceitos curiosos do final do século 20 e o começo do século 21.
De qualquer modo, imagino que esses futuros historiadores vão registrar a publicação do jornal Lampião
como um evento fundamental para o surgimento do movimento, junto com o Grupo Somos, entre outras
aglutinações políticas de gays e lésbicas que surgiram no final dos anos 1970.
Será que a participação de ativistas LGBT no 1º de Maio de 1980 estará presente em tal compilação
histórica de fatos relevantes do movimento? Será que, no futuro, os observadores desse passado vão
entender o contexto em que se dava a discriminação aos homossexuais na classe trabalhadora, na fábrica
e na sociedade em geral? Será que perceberão a “loucura” dos participantes do 1° de Maio e seu
envolvimento nessa ação política?
RETROCESSOS NO HORIZONTE?
Uma foto de Lula com sua barba cheia e preta, preso em 1980 por ter liderado a greve no ABC, é uma
das imagens mais usadas atualmente na campanha para sua libertação. É o Lula de 1979, que dizia que
“não conhecia o homossexual na classe operária”, e o Lula de um ano depois, 1980, que declarava que
ele não permitiria a exclusão de homossexuais da fundação do Partido dos Trabalhadores. É uma pessoa
que estava cheia de contradições em 1979. E que segue, hoje em dia, também uma pessoa cheia de
contradições. Naquela época, ninguém poderia imaginar Lula tornando-se presidente. Em 2011, quando
ele saiu do Palácio do Planalto com mais de 80% de aprovação, ninguém poderia imaginar que ele fosse
preso sete anos depois.
Com tantos avanços do movimento LGBT, existe uma tendência de certos ativistas de pensar que é
impossível voltar atrás. Argumentam que as mudanças das quais os direitos LGBT resultam seriam tão
profundas na sociedade brasileira que não poderia haver um retrocesso efetivo. É uma leitura eufórica da
história baseada na crença de que, com a marcha do tempo, tudo melhora, de que o progresso é linear e
sempre no sentido positivo, de que não haverá uma derrota histórica.
Jean Wyllys, deputado federal pelo PSOL, estava na minha casa no dia da apuração das eleições
presidenciais estadunidenses em novembro de 2016. Ele fazia um tour por várias universidades na Costa
Leste dos EUA. Naquela noite, a cada avanço de Trump no Colégio Eleitoral, tentei convencê-lo de que
a vitória do candidato republicano era impossível. Falhei nas minhas previsões e, por isso, não quero
tentar predizer os resultados das eleições presidenciais de outubro de 2018 do Brasil. Mas existe um
candidato que representa um retrocesso total não somente para o movimento LGBT, mas também para
os movimentos negro, feminista e para as lutas por justiça social e econômica. Talvez nós, que
participamos do 1º de Maio de 1980, tenhamos sido ingênuos naqueles primeiros anos do movimento
LGBT. Mas, talvez, entendêssemos o caminho.
Desejo transformador e revolucionário
MARISA FERNANDES

O COMEÇO DA ORGANIZAÇÃO DAS LÉSBICAS


Nos últimos quarenta anos de lutas por cidadania e reconhecimento no Brasil, as lésbicas organizadas se
confrontaram com dificuldades tanto no movimento feminista quanto no LGBT. Elas começaram a fazer
parte do Grupo Somos/SP, pioneiro no movimento LGBT, em fevereiro de 1979. Passados apenas três
meses de atividades com os gays, perceberam atitudes machistas e discriminatórias desses companheiros
de militância. Influenciadas pelo feminismo, elas sabiam que suas especificidades como mulheres – e
não apenas como homossexuais femininas – geravam dupla discriminação. Como lésbicas feministas,
decidiram então atuar como um subgrupo dentro do Somos, o Grupo de Ação Lésbico-Feminista ou
apenas LF, com posicionamento político de independência frente à centralização do poder masculino.
Em uma reunião geral do Somos de julho de 1979, auge do grupo, participaram 10 lésbicas e 80 gays.
Ainda que claramente minoria, as lésbicas do LF apresentaram suas decisões: encaminhar a discussão
sobre machismo e feminismo no Somos, apresentar um temário específico para ser discutido por todos,
ter um grupo de acolhimento e afirmação da identidade só para lésbicas e buscar alianças com o
movimento feminista. Nessa reunião, foram hostilizadas e chamadas de histéricas. Felizmente receberam
apoio de alguns gays do Somos, mais abertos às questões de gênero. Essa primeira fase da luta do LF
não foi nada fácil, pois se depararam com empecilhos que não haviam imaginado. O LF era bastante
plural, tinha de empregada doméstica a programadora de software, mulheres que não vinham da
Academia, mas dos “armários” e do “gueto”. O ponto comum entre elas era o lesbianismo.
“SAPATONAS” NO MOVIMENTO FEMINISTA
Em 1979 e 1980, no movimento feminista, o LF integrou as Coordenações Organizadoras do II e do III
Congresso da Mulher Paulista. A primeira e organizada aparição do LF em público foi um escândalo,
mesmo para as feministas. Nesses congressos, as lésbicas defendiam que as mulheres lutassem pelo
direito ao prazer e à sua sexualidade; que rompessem com o círculo de opressão e subordinação
masculina que não aceitava o desejo da mulher e que tomassem conhecimento de que heterossexualidade
era imposta a todas as mulheres como a única sexualidade “normal”. Mas essas ideias não eram bem-
aceitas pela maior parte do movimento de mulheres e soava radical para as feministas. Márcia Campos
do grupo político MR-8, por exemplo, questionava: “como pode uma mulher da periferia aceitar que o
seu movimento seja dirigido por lésbicas, como querem as mulheres de classe média do movimento? A
lésbica nega a sua própria condição de mulher, não pode fazer parte de um movimento feminino”.
Publicamente, duvidavam da representatividade das Coordenações por nelas conter “sapatonas”. Direito
ao corpo e ao prazer era demais para as companheiras e camaradas da época.
Wilminha expressou bem a intenção do LF: “Ora, se nossa principal questão era é visibilidade, que
nos vissem. Trazíamos uma postura sexual diferente e mal conhecida, um inusitado discurso sobre a
sexualidade e uma determinação em discuti-la. Éramos lésbicas assumidas no Brasil dos anos 80 e
queríamos discutir lesbianismo não mais como assunto privado, mas como questão política.” O fato é
que a presença das lésbicas no movimento feminista impactou profundamente a discussão sobre
sexualidade junto às mulheres de baixa renda. Foi o início do desmonte da crença de que a mulher pobre
não estava interessada em discutir sexualidade, mas somente as desigualdades econômicas. Além disso,
a questão da sexualidade não ficou reduzida ao uso de contraceptivos, mas também envolvia a liberdade
de eleger sua/seu parceira/o de cama e de vida.
GALF: AGORA, TUDO NO FEMININO
Em abril de 1980, em São Paulo aconteceu o I Encontro Brasileiro de Homossexuais (EBHO), com 200
participantes de diferentes estados. Com presença majoritária de gays, o LF esteve presente trazendo
discussões sobre as lésbicas, o machismo e o feminismo. O I EBHO foi burocrático e cheio de discórdias
que acabaram tensionando as relações dentro de um movimento homossexual cada vez mais diverso e
amplo. Após a participação de algumas lésbicas e gays do Somos na passeata do 1º de Maio de 1980
realizada em São Bernardo do Campo, instalou-se uma divisão irreconciliável dentro do grupo. O LF
reconheceu que não fazia mais sentido continuar brigando dentro do Somos e assim, em 17 de maio, as
lésbicas se retiraram de forma definitiva do grupo. O que fizeram foi tornar pública uma situação que já
havia de fato, qual seja, a autonomia total do LF. O nome então foi mudado para Grupo de Ação Lésbica
Feminista-Galf. Agora, tudo no feminino.
O Galf atuava dentro do gueto de lésbicas vendendo boletins, panfletava folhetos de conscientização
sobre discriminação e violência contra as lésbicas e divulgava as atividades do grupo. Atuou fortemente
contra a onda de prisões arbitrárias, de torturas e de extorsão comandadas pelo delegado José Wilson
Richetti a partir de abril de 1980, ainda durante a ditadura civil-militar de 1964. Os alvos da violência
estatal eram homossexuais, travestis, prostitutas, negros e desempregados. Grupos homossexuais
organizados, o Movimento Negro Unificado (MNU) e grupos feministas divulgaram uma carta aberta à
população repudiando essa violência e chamando todos para um Ato Público no dia 13 de junho de 1980
na frente do Teatro Municipal. Quando o ato saiu em caminhada pelo Centro de São Paulo, as lésbicas
carregavam duas faixas com os seguintes dizeres: Pelo Prazer Lésbico e Contra a Violência Policial.
Esse evento político se configurou como a primeira passeata LGBT da cidade de São Paulo. Mas a
violência seguia. Em 15 de novembro, o mesmo aparato policial fez uma operação de prisão de lésbicas
que, indiscriminadamente, foram levadas dos guetos sob a “acusação”: “você é sapatão”.
Diversos outros episódios de repressão, mas também de resistência, devem ser lembrados nessa
trajetória. Um deles é especial. O número um do primeiro boletim das lésbicas no Brasil, o
Chanacomchana, foi lançado pelo Galf em 1981 e circulou até 1987. Na noite de 23 de julho de 1983,
integrantes do Grupo vendiam o Chanacomchana no Ferro’s Bar no Centro de São Paulo, mas foram
expulsas e proibidas de entrar naquele lugar, que era um dos lugares de sociabilidade mais frequentados
pelas lésbicas na noite da cidade.
Diante desse autoritarismo, no dia 19 de agosto, as lésbicas promoveram a invasão do Ferro’s Bar,
em um episódio que ficou conhecido como o pequeno Stonewall brasileiro, em referência ao bar que foi
invadido pela polícia em 1969 em Nova York e que foi um marco para o movimento LGBT nos EUA. A
invasão do Ferro’s Bar foi um ato político organizado pelo Galf e coordenado por Rosely Roth, que
articulou a ação com a grande imprensa, gays, lésbicas, feministas, defensores de direitos humanos e
com políticos. Como a ocupação causou um grande tumulto, com cobertura da mídia e presença da
polícia, o dono do Ferro’s voltou atrás, liberando a venda do Chanacomchana. Foi uma vitória e um
marco fundamental para a história do movimento de lésbicas brasileiro.
O Galf deixou de existir no ano de 1989. O primeiro grupo de lésbicas no Brasil teve duração de 10
anos, com ações ininterruptas nesse período. As lésbicas organizadas iniciaram sua luta em espaços de
legitimação junto aos gays e às heterofeministas, para depois, de forma autônoma, figurar como sujeitos
políticos, habilitando-se na busca por seus direitos.
A ARTICULAÇÃO NACIONAL DAS LÉSBICAS
No Brasil, em 1985, aconteceu o III Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe, em São Paulo.
Pela primeira vez, no movimento feminista brasileiro, colocou-se no temário oficial do Encontro o tema
“lesbianismo”. No entanto, nesse mesmo Encontro, houve uma reunião só de lésbicas na qual Rosely
Roth afirmou que o Galf se retirava do movimento feminista, porque era evidente que aquele movimento
não dava apoio efetivo para as lésbicas.
Os mesmos problemas do passado ainda se impunham. O movimento de lésbicas feministas no Brasil
já existia há quase 17 anos e suas pautas não encontravam apoio real junto aos movimentos feminista e
homossexual. Para elas, então, era urgente a criação de um espaço próprio, autônomo, de abrangência
nacional, para repensar a si mesmas enquanto individualidades. Só assim seria possível aperfeiçoar os
posicionamentos políticos e as estratégias de combate ao patriarcado, à heterossexualidade compulsória,
ao racismo, à lesbifobia de modo a elaborar um corpo político específico.
É assim que surge o Seminário Nacional de Lésbicas (Senale), o fórum mais importante de junção
política e de deliberação do movimento de lésbicas e bissexuais. Em agosto de 1996, aconteceu o I
Senale/RJ, com a participação de 100 lésbicas. Dentre as deliberações, o dia 29 de agosto, início do I
Senale, passou a ser o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica.
Os Senale continuam acontecendo e são realizados em diferentes estados e regiões do país. No VIII
Senale/RS, o nome foi alterado para Senalesbi, garantindo a visibilidade das mulheres bissexuais. O X
Seminário Nacional de Lésbicas e Mulheres Bissexuais (Senalesbi) acontecerá em 2018, na Bahia.
A LUTA PELA VISIBILIDADE LÉSBICA NOS DIAS ATUAIS
Na busca por visibilidade e respeito dentro do movimento LGBT, as lésbicas reivindicaram de paridade
a cotas de participação em eventos nacionais do movimento LGBT. Apesar de aprovada a paridade no
VII EBHO/1993 e depois cotas mínimas para lésbicas, tais reivindicações nunca foram concretizadas, o
que demonstra a manutenção de posturas de poder machista e patriarcal dentro deste movimento.
Na I Conferência Nacional LGBT/2008, as delegações da sociedade civil, obrigatoriamente, foram
compostas de 50% de pessoas com identidade de gênero feminina (lésbicas, mulheres bissexuais,
travestis e mulheres transexuais) e 50% de homens.
A Liga Brasileira de Lésbicas (LBL) apresentou uma proposta mais justa, segundo a qual as
delegações fossem formadas por 20% de lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis,
respectivamente. O Coletivo Nacional de Lésbicas Negras Feministas Autônomas (Candace-BR) criticou
o fato de não haver cotas para a comunidade LGBT negra. Mas os pedidos dessas duas redes nacionais
de lésbicas não foram atendidos.
A visibilidade política das lésbicas também não foi alcançada nas Paradas do Orgulho LGBT de São
Paulo que, até 2003, denominava-se Parada do Orgulho Gay. Desde 1997 se pedia a alteração do nome
que invisibilizava os segmentos de lésbicas, travestis, transexuais e bissexuais. Para produzir visibilidade
social e política às lésbicas, protestar por seus direitos específicos, demarcar suas pautas e celebrar, surge
em 2003 a I Caminhada de Lésbicas e Simpatizantes, espaço criado por mulheres, que acontece no
sábado que antecede a Parada. O nome da Caminhada foi alterado em 2013 para Caminhada de Mulheres
Lésbicas e Bissexuais e, neste ano de 2018, será realizada sua XVI edição.
Foi no ano de 2006 que as lésbicas negras organizaram o I Seminário Nacional de Lésbicas Negras:
Afirmando Identidades, que aconteceu em São Paulo. O resultado propiciou à população LGBT negra,
de forma crescente e efetiva, a incorporação da orientação sexual e identidade de gênero nas agendas
governamentais e não governamentais, das atividades antirracismo. O II Seminário Nacional de Lésbicas
Negras e Bissexuais: Afirmando Identidades para a Saúde Integral, aconteceu em 2015, em Curitiba. Em
2018 acontecerá o III Senale Negras, na Paraíba.
Como se pode notar dessas breves notas, o movimento de lésbicas feministas surgiu com um discurso
pelo direito ao prazer, transformando aquele desejo sexual particular em um potencial transformador e
revolucionário. Contudo, é fundamental não incorrer em um ativismo LGBT burocrático, hierarquizado,
com a concentração de poder nas mãos de alguns que falam e representam a todas e todos, não
considerando as diferentes realidades, verdades e identidades. Muitas vezes, nesta longa trajetória,
perderam-se de vista o desejo de se aprender umas com as outras, o radicalismo, a ousadia e a rebeldia.
As cores do arco-íris e do triângulo invertido lilás não podem desbotar sob um poder centralizado
dentro do movimento LGBT. Além disso, é preciso recuperar o feminismo das lésbicas que combate a
heterossexualidade compulsória que tanto oprime todas as mulheres. Exemplo dessa renovação
necessária é a formação de Coletivas de lésbicas que, de forma autônoma, colocam nas ruas as
Caminhadas Lésbicas de São Paulo, e outras formas de ativismo pelo país com apelo cultural, utilizando-
se de distintas linguagens, como o hip-hop, bandas de rock hardcore e fanzines, capazes de atingir
distintos públicos.
Uma nova pauta política
JAQUELINE GOMES DE JESUS

O PODER DE NOMEAR
Os nomes surgem como algo que nos dão, que a nós atribuem. Contudo, esses mesmos nomes são
transformados, com a construção que cada pessoa faz de si a partir de quem se considera ser, naquilo que
acatamos como nosso ou que mudamos para o que melhor entendemos nos representar. Assim se dá com
os indivíduos e os grupos sociais. Em geral, as crianças são chamadas carinhosamente por nomes que
lhes conferem dons, proteções ou benefícios. Isso porque tendem a ser vistas como parte relevante de
quem lhes dá o nome. O mesmo já não ocorre com povos e grupos sociais, principalmente quando estes
são vistos como “os outros”. Isso é ainda pior quando existe uma relação de poder desigual.
Um exemplo é a atribuição do genérico nome “negros”, surgido no século 10, às centenas de povos
africanos explorados durante o tráfico transatlântico, no período da escravidão moderna que fundou as
Américas sob a dominação europeia.
O termo, para além de se referir apenas às pessoas de pele escura, recebeu no século 15 uma carga
negativa, contraposta a uma suposta superioridade dos chamados “brancos”. Também as pessoas trans –
aquelas que não se identificam com o gênero que lhes foi atribuído socialmente, ou seja, travestis,
transexuais e demais pessoas transgêneras – têm uma história mais antiga do que é comum pensar.
SER TRANS NA HISTÓRIA
Anteriormente ao termo “transexual” havia “travesti” e, antes desta denominação, havia o “trans”, do
latim “além de”. Ao juntarem o trans ao “vestire”, os latinos criaram o “transvestire”, referindo-se a
quem exagerava na roupa que usava. Os italianos do século 16 popularizaram o termo, atribuindo-lhe um
sentido adicional, a partir de expressões como “Lui è travestito” (Ele está disfarçado).
A palavra “travestito”, com tal significado, foi logo adotada pelos franceses, que relacionaram o
“disfarce” a um comportamento, tido como ridículo ou falso, de homem que se veste como mulher.
Posteriormente incluída na língua inglesa, virou “travesty”. Com os usos, o adjetivo passou a ser
utilizado, pejorativamente, para identificar uma população: a trans.
Entre os povos nativos norte-americanos, pessoas que hoje identificaríamos como trans eram
chamadas de “berdaches”, atualmente mais conhecidas como two-spirit (dois espíritos), referindo-se à
ideia de que vivem papéis de dois gêneros ou que são de um terceiro gênero.
O uso do termo “berdache” é criticado por ser antiquado e ofensivo, tendo em vista que não era
utilizado pelos indivíduos aos quais se referia: ele foi imposto por antropólogos que se basearam na
palavra francesa para homem que se prostitui (garoto de programa, “michê”), “bardache”, a qual, por sua
vez, derivou-se do árabe “bardaj”, que significa “cativo, prisioneiro”.
Para os Mohave, que habitam a região do rio Colorado, no deserto de Mojave, pessoas que
identificaríamos como mulheres transexuais eram chamadas de Alyha. Tratadas com nomes femininos,
elas precisavam assumir hábitos considerados femininos, como costurar. Já os homens tidos por nós
como transexuais eram chamados de Hwame. Tratados como homens, seguiam, casados, os tabus
requeridos dos maridos quando as esposas menstruavam.
Nos relacionamentos afetivos, tanto Hwame quanto Alyha eram referidos pelos companheiros,
respectivamente, como “marido” ou “esposa”. Inclusive, as Alyha usavam a palavra mohave para clitóris
a fim de se referirem aos seus órgãos genitais, tal qual o termo “grandes lábios” para seus testículos e
“vagina” para se referir ao seu ânus, o que também é uma prática comum entre mulheres transexuais e
travestis brasileiras contemporâneas, que eventualmente aplicam a palavra “grelo” ou “grelho” para o
seu pênis.
ENTRE O FASCÍNIO E A ABJEÇÃO
Em algumas culturas, as pessoas trans foram historicamente estigmatizadas, marginalizadas e
perseguidas devido à crença na sua anormalidade. Isso porque o estereótipo do que seria “natural” é que
o gênero atribuído no nascimento seja aquele com o qual as pessoas se identificam por toda a vida e,
portanto, espera-se que elas se comportem de acordo com o que se considera ser o “adequado” para esse
ou aquele gênero. No Brasil, ocorriam bailes de “travestis” no século 19, quando marinheiros eram
recepcionados no Rio de Janeiro, dada a falta de mulheres com as quais dançar em momentos de lazer,
por homens vestidos de mulher.
O fascínio misturado com abjeção tem sido praxe na relação da sociedade brasileira com as travestis
e as mulheres transexuais. A sociedade que sempre excluiu as travestis ainda não reconhece a plena
humanidade de pessoas trans, reagindo com histeria quando da visita ao Rio de Janeiro, em 1962, de
Coccinelle, artista e cantora francesa conhecida mundialmente como estrela da trupe oficial da casa
noturna Carrousel de Paris. Ela havia se submetido, em 1958, a uma cirurgia de redesignação genital
(antigamente chamada, de forma inadequada, de “cirurgia de mudança de sexo”) e foi a primeira mulher
transexual a ter o seu casamento, com o jornalista esportivo Francis Bonnet, reconhecido, em 1960, pela
Igreja Católica. Foi preciso chamar o corpo de bombeiros para tirá-la a salvo de uma loja, na qual ela
fazia compras e era assediada por uma multidão de pessoas curiosas que queriam admirá-la de perto e
causaram enorme tumulto.
Nesse período, artistas transformistas (termo brasileiro para os artistas performáticos atualmente
conhecidos como “drag queens” e “drag kings”), igualmente referidos como praticantes do travestismo,
apresentavam-se nos palcos, como o Teatro Rival, até mesmo após 1964, com permissão da ditadura
militar, não podendo, porém, confundirem-se com as mulheres cisgêneras fora de seus espaços cênicos.
Mas sempre há frestas. A cantora e performer Divina Aloma, negra, musa do pintor Di Cavalcanti,
chegou a se apresentar no Canecão e em outros espaços que dividia com mulheres cis.
Nomes ainda hoje lembrados, como os de Rogéria, Jane Di Castro, Brigitte de Búzios, Cláudia
Celeste, Camille K. entre outras divas, surgiram nesse tempo em que as travestis vislumbravam a
possibilidade de encontrar trabalho não apenas na prostituição, mas também no campo artístico.
Atualmente, testemunhamos um rico movimento de artistas trans em busca de sua representatividade
e contra a prática histórica de se colocar atores cis para representar personagens trans, em detrimento da
existência de atores trans, que lutam pela empregabilidade mais básica.
DISCURSOS MÉDICOS E JUDICIAIS SOBRE A TRANSEXUALIDADE
O sexólogo alemão Magnus Hirschfeld, no começo do século 20, utilizou a palavra “transvestite” para
quem habitualmente se veste com roupas atribuídas a pessoas do gênero oposto, geralmente por interesse
de cunho sexual.
Radicado nos Estados Unidos, o sexólogo alemão Harry Benjamim cunhou o termo “transexual” em
1966, e criou procedimentos clínicos para identificação e atendimento a pessoas transexuais, chamados
de “padrões de cuidado”. Compreendiam-se esses indivíduos como incluídos no denominado
“travestismo fetichista”, entendido na época, especialmente por psicanalistas, como uma patologia, um
tipo de psicose, de acordo com a visão de que o gênero identificado pela pessoa “normal” estaria
submetido ao seu sexo biológico. Essa concepção reduz a transexualidade a uma patologia e as pessoas
transexuais a pessoas para as quais procedimentos cirúrgicos trariam uma “cura”.
Exemplifico como o conceito de transexual foi inicialmente recepcionado no Brasil por meio do
martírio impingido ao médico Roberto Farina, primeiro cirurgião a fazer uma cirurgia de redesignação
genital no Brasil, em 1971, em Waldirene Nogueira. Em 1978, Farina foi processado pelo Conselho
Federal de Medicina – CFM – sob a acusação de lesões corporais graves. Foi condenado em primeira
instância e somente absolvido em uma instância superior porque uma junta médica do Hospital das
Clínicas de São Paulo, onde ocorrera o procedimento, havia dado um parecer favorável à intervenção,
fazendo uso do conceito de Benjamim quanto ao procedimento como solução terapêutica.
Algumas afirmações do juiz que condenou Roberto Farina são significativas da visão do sexo
biológico como destino e persistem até os dias atuais. São elas: 1. A “vítima” de Farina não poderia
jamais ser uma mulher, porque não tinha os órgãos genitais internos femininos; 2. A cirurgia poderia
criar condições para uniões matrimoniais “espúrias”; e 3. O tratamento da “transexual, uma doente
mental”, deveria ser psicanalítico, e não cirúrgico, pois a cirurgia impediria a sua recuperação.
Como parte desse clima de intensa descriminação, a acusação chegou a afirmar que Farina queria que
“bichinhas” maiores de idade conseguissem ser operados.
Curiosamente, pouco tempo depois, já nos anos 1980, a modelo e atriz Roberta Close se tornou a
principal referência imagética para mulheres transexuais brasileiras. Nascida em uma família de classe
média que a apoiava, em 1984 ganhou o título de vedete do Carnaval Carioca e ficou nacionalmente
conhecida quando saiu na capa da edição de maio daquele mesmo ano da Playboy. A manchete da
revista revelava o estranhamento da mídia, condizente com o pensamento social vigente ante a uma
mulher tão atraente: “A mulher mais bonita do Brasil é um homem”. Isso apesar de a retratada sempre
ter se identificado como mulher, independentemente da sua anatomia genital. Em outro trecho da
matéria, evidencia-se uma visão da pessoa trans como falsa, mulher que não seria “de verdade”, no
linguajar coloquial: “Incrível. As fotos revelam por que Roberta Close confunde tanta gente”.
As convenções sociais sobre masculinidade e feminilidade então vigentes dificultavam o
entendimento de que o gênero daquela mulher independia de características genitais: muito ao contrário
do afirmado, ela não queria confundir, mas queria se revelar.
A ORGANIZAÇÃO POLÍTICA DAS PESSOAS TRANS
Em termos de organização política, em 15 de maio de 1992, foi fundada a Associação das Travestis e
Liberados do Rio de Janeiro (Astral). A data é comemorada pelo movimento trans fluminense como o
Dia do Orgulho de Ser Trans e Travesti. Entidades que surgem em seguida são a Associação das
Travestis de Salvador (Atras) e o Grupo Filadélfia de Santos, em 1995; o Grupo Igualdade, em Porto
Alegre, e a Associação das Travestis na Luta pela Cidadania (Unidas), de Aracaju, em 1999.
O começo do século 21 testemunhou o surgimento de entidades nacionais como a Articulação
Nacional de Travestis, Transexuais e Transgêneros (Antra), a Rede Trans e o Instituto Brasileiro de
Transmasculinidades. As travestis brasileiras construíram, ao longo de mais de um século, uma Cultura
do Corpo única, fundamentada na linguagem falada, constituindo-se como uma “oralitura”. O
impedimento do acesso pleno ao ensino formal é um dos fatores envolvidos nessa realidade, que obrigou
a comunidade a se proteger e transmitir seus conhecimentos fora dos métodos disponibilizados a grupos
sociais privilegiados.
Esse conjunto de saberes e fazeres tem sido historicamente invisibilizado ou apropriado por outros
grupos sociais e movimentos, devido à transfobia (preconceito contra pessoas trans) e o cissexismo
(crença na superioridade das pessoas cisgêneras) entremeados na sociedade brasileira. O Brasil registra o
maior número de assassinatos de pessoas trans por crimes de ódio no mundo.
Com a introdução dos conceitos de “transexualidade” e de “transgeneridade” no contexto brasileiro e
a popularização das teorias queer, durante as últimas décadas do século 20, vai-se consolidando um
modelo de militância focado em uma agenda de promoção de iniciativas institucionais inclusivas,
representada pela política do nome social e na ideia de visibilidade. A emergência do transfeminismo, na
segunda década do século 21, tem estimulado a discussão de temas como a autonomia do movimento
trans diante de outros movimentos sociais, a luta internacional pela despatologização, a diversidade
sexual e de gênero das identidades trans, os privilégios da cisgeneridade, o reconhecimento da infância e
adolescência trans, a reparação dos déficits educacionais, a inserção no mercado de trabalho formal e a
representatividade nas artes e na política partidária, questões essas que vão formatando pautas políticas
amplas, no complexo cenário dos novíssimos movimentos sociais.
Múltiplas e diferentes identidades
REGINA FACCHINI

INTENSIDADES POLÍTICAS E EMOCIONAIS DO MOVIMENTO LGBTI


Tornar-se ativista é um modo de reinscrever a própria história, de construir possibilidades de voltar a
habitar um mundo devastado pela violência, pelos apagamentos e exclusões. Nos últimos quarenta anos,
o movimento LGBTI tem sido mais do que meramente representante das múltiplas vozes e demandas
que se incluem direta ou indiretamente no acrônimo pelo qual se faz conhecido. Tem sido aquele que
conta as mortes e agressões, que reconhece os corpos e zela pelo enterro digno daqueles(as) que não
contaram com familiares que pudessem fazê-lo, que alerta sobre os riscos e que faz com que seus mortos
tenham voz e conjuguem verbos.
Mais ainda, o lugar de acolhida das inquietações, dos receios e das dores e de construção da
esperança e de projetos de vida possível de um conjunto muito diverso de sujeitos. Não são quaisquer
sujeitos. São as(os) socialmente marcadas(os) a partir de sua sexualidade ou identidade de gênero
divergentes da norma e, por isso, chamados a disputar discursos de verdade sobre a sexualidade e a
subjetividade. Essas intensidades políticas e emocionais são indissociáveis das disputas acerca do melhor
modo de dizer de si e de suas demandas, que constituem os fluxos de linguagem, práticas e sentidos que
atravessam as teias de relações entre indivíduos e instituições que integraram o movimento LGBTI ao
longo de sua trajetória.
A HOMOSSEXUALIDADE COMO SUBSTANTIVO
As primeiras iniciativas ativistas reconhecidas como explicitamente politizadas datam do final dos anos
1970. Entre o final dos anos 1970 e meados dos anos 1990 há um momento em que se dá um
“centramento” do então chamado Movimento Homossexual Brasileiro (MHB) em torno da noção
substantivada de homossexualidade.
Ao final dos anos 1970, momento em que os primeiros grupos de reflexão e afirmação do MHB
iniciam suas atividades e constroem boa parte da pauta política em torno da qual atua até os dias de hoje,
o “assumir-se” emerge como ferramenta política que era usada ainda por poucas pessoas e olhada com
desconfiança por tantas outras.
Debates e tensões focalizavam oposições como ser ou estar homossexual ou criticavam que se
tomasse homossexualidade como substantivo. Era um momento marcado por forte ímpeto antiautoritário
e por projetos de transformação social mais amplos. Outras tensões nos primeiros grupos ativistas
remetiam tanto à representação de questões de gênero e de raça na prática cotidiana dos grupos quanto a
diferentes projetos de transformação social, opondo autonomistas e socialistas.
A partir de meados dos anos 1980, apesar da redução expressiva da quantidade de grupos e das
dificuldades trazidas pela epidemia do HIV/aids, há mudanças significativas, com o crescimento da
influência de ativistas cuja atuação é mais pragmática e dirigida para os direitos de homossexuais.
É fundamental nesse processo de “centramento”, ou de produção de um sujeito político estável, a
vitoriosa campanha que levou à obtenção de parecer do Conselho Federal de Medicina (CFM) e à
retirada do “homossexualismo” do código de doenças utilizado no Brasil, em 1985.
A demanda pela não discriminação por orientação sexual levada à Constituinte de 1987-8 e a luta
pelo direito à vida, representada pelas demandas de combate à epidemia do HIV/aids e à violência letal,
colocaram em cena a mobilização da categoria orientação sexual.
Tal mobilização procurava apaziguar as tensões em torno de tomar a categoria homossexualidade
como um substantivo. Contudo, deixava abertas as intersecções entre sexualidade, gênero e raça, que já
haviam demonstrado sua importância desde os primeiros momentos do movimento, mas também as
tensões em torno da estabilidade da identidade sexual e do encapsulamento da potencial fluidez do
desejo.
A CIDADANIZAÇÃO DOS SUJEITOS LGBT
Os anos 1990 e 2000 assistem a um processo de cidadanização desses sujeitos políticos e um
“descentramento” que faz emergir o movimento como LGBT. Tem como condições de possibilidade a
“redemocratização”; a visibilidade que o sensacionalismo midiático traz ao associar aids e
homossexualidade; a chamada “resposta coletiva à epidemia”; a aproximação entre setores de Estado e
movimento na formulação, implementação e avaliação de políticas públicas e a consequente
institucionalização do movimento; além de um cenário permeável aos direitos sexuais e reprodutivos no
âmbito das Nações Unidas.
Intensificam-se lançamentos de candidaturas, criação de projetos de lei, incidência política dirigida
principalmente ao Legislativo e ao Executivo, participação em espaços de diálogo socioestatal, como
comitês e conselhos e nas conferências destinadas a embasar a formulação e a avaliação de políticas
públicas.
Embora a homossexualidade apareça pela primeira vez em um documento público federal não
relacionado especificamente à saúde ainda durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, o ápice
desse processo se dá ao longo das gestões do Partido dos Trabalhadores no Governo Federal. Tem como
marcos o lançamento do Programa Brasil sem Homofobia, em 2004, e a imagem do então presidente
Luiz Inácio Lula da Silva segurando a bandeira do arco-íris na abertura da I Conferência de Políticas
para LGBT, em 2008.
O diálogo socioestatal exigia clara delimitação de sujeitos e demandas, o que levou a duas respostas
diferentes.
A primeira, uma ênfase na clara delimitação de identidades e o consequente acirramento dos
processos de disputa por visibilidade no interior de um movimento no qual o sujeito político se torna
mais e mais complexo. Multiplicam-se as redes nacionais e regionais de organizações, mas também as
letras do acrônimo que nomeia o movimento, cuja ordem se estabiliza apenas com a adoção da
formulação LGBT – lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais – na I Conferência Nacional de
Políticas para LGBT, em 2008. Criam-se, ainda, articulações entre LGBT e outros “segmentos”, de
modo a constituir grupos e redes de negras(os) e de jovens LGBT.
A segunda resposta, a visibilidade massiva protagonizada pelas Paradas do Orgulho, é, em parte,
complementar à incidência política, visto que dava corpo, por assim dizer, à “comunidade”, mas também
a dotava de uma face mais plural, produzindo deslocamentos em relação a estratégias vitimistas.
A difusão de todo um vocabulário marcado por categorias como “populações”, “segmentos”,
“especificidades” e “transversalidade” e as disputas por recursos sempre escassos, faziam com que
comitês técnicos e plenárias de conferências se constituíssem como espaços privilegiados de conflito e
de pactuação, de construção da unidade.
Tratava-se ainda de criar pontes entre classificações oficiais e as formas de autoatribuição
encontradas nas “bases”. É esse o processo que faz emergir demandas pelo reconhecimento da
necessidade de combater especificamente a lesbofobia e a transfobia e que, ao final desse momento,
conduziu ao emprego da categoria LGBTfobia.
UM CENÁRIO MELANCÓLICO NOS ANOS 2010
Embora conquistas como o reconhecimento judicial das “uniões homoafetivas”, o acesso a mudanças
corporais para pessoas trans no SUS e as portarias que reconhecem o direito ao uso do nome social
tenham transformado a vida de LGBT no país, o cenário no início dos anos 2010 era um tanto
melancólico.
Por um lado, crescia no interior do próprio movimento uma inquietação com relação aos limites dos
espaços de participação e ao escopo efetivamente alcançado pelas políticas direcionadas a LGBT. Por
outro, intensificavam-se os sinais de uma “politização reativa” do campo religioso e da articulação dessa
reação com outros setores conservadores no campo político.
Isso nos leva ao cenário atual, no qual há uma diversificação nos modos de fazer do ativismo, muitos
dos quais deixam de ter na figura do Estado o principal interlocutor.
Este momento aprofunda mudanças que já se faziam sentir desde a década anterior. Massificavam-se
críticas à institucionalização dos movimentos sociais e à possibilidade mesma de representação política,
com desvalorização do “essencialismo estratégico” e descrédito nas possibilidades de obtenção de
direitos via diálogo com instâncias estatais.
Tal cenário tem sido marcado pelo desfinanciamento de organizações não governamentais, pela
desvalorização de formas institucionais de organização e atuação e pela valorização da horizontalidade,
da autonomia, da “espontaneidade” e da instantaneidade da reação das ruas e das redes e do artivismo. É
ainda atravessado pelo processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff e pelo violento e rápido
ataque a estruturas governamentais, garantias legislativas, mas também a lideranças e formas de
organização políticas, que visavam combater e corrigir desigualdades sociais no Brasil.
REENCANTANDO A POLÍTICA EM NOVAS FRENTES DE LUTA
Os efeitos da popularização da internet e do acesso ao ensino superior, bem como o acesso facilitado a
aportes teóricos, se fazem sentir nas gerações mais jovens de ativistas, com destaque para a difusão dos
estudos queer, de teorias interseccionais e decoloniais e do feminismo negro.
Novas categorias de identidade e processos de produção e mobilização de identidades também
ganham lugar. A ênfase na experiência como base de legitimidade política cresce. A mobilização da
noção de lugar de fala desloca o modo negociado como vinha se produzindo a relação entre diferenças
relativas a gênero e raça e visibilidades, colocando o corpo ao centro para autorizar ou barrar a aparição
dos sujeitos. Emergem também processos de construção de um “outro não marcado”, protagonizados por
sujeitos cuja visibilidade foi insistentemente negada, como no caso da produção e mobilização das
categorias cisgênero e cisnormatividade por ativistas trans.
A própria noção de homossexualidade praticamente desaparece de textos acadêmicos e do
vocabulário político e a apropriação de recursos teóricos, muitos oriundos de perspectivas feministas,
coloca ao centro as transidentidades, as lesbianidades e as bichas, sapatões e trans pretas e/ou
periféricas, empoderadas e com formas de visibilidade renovadas.
Entre as formas de atuação mais institucionalizadas ou afeitas ao diálogo com atores estatais,
emergem mais fortemente enquadramentos que enfatizam a dor e o sofrimento, a partir das figuras das
mães de LGBT, de LGBT periféricos(as), de travestis e de transexuais e das pessoas intersexo.
Desde meados dos anos 2000 intensificou-se a incidência política de redes ativistas no Judiciário,
com resultados importantes como as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre as “uniões
homoafetivas” e sobre a alteração de registro civil de pessoas trans sem necessidade de laudos, cirurgia
ou decisão judicial.
Embora com menos acesso a recursos e em um cenário político muito desfavorável, as organizações
e conexões construídas no período de maior ênfase no ativismo por vias institucionais seguem incidindo
sobre os rumos da política sexual, especialmente em espaços mais permeáveis. Ativistas LGBT
fortalecem sua organização no interior de outros movimentos sociais, como no MST, e seguem
disputando espaço em partidos políticos e buscando representação por via eleitoral.
Vivemos um momento político permeado por altas voltagens emocionais, no qual o terror é evocado
frequentemente pela acelerada retirada de direitos sociais, trabalhistas e sexuais e reprodutivos, pelo
esvaziamento ou destruição de projetos de futuro.
A atual ênfase na experiência funciona a um só tempo como forma de contraste em relação às
políticas de identidade do período anterior, mas também como forma de reencantar a política,
conectando-a ao cotidiano e a estruturas de poder que incidem diretamente sobre a vida dos sujeitos e
daqueles(as) que consideram como sendo os(as) seus(suas).
Apesar do cenário de forte retrocesso, retomar a trajetória do movimento e de seus experimentos e
apostas políticas evidencia os avanços, sobretudo aqueles que não serão destruídos porque se
incorporaram aos próprios sujeitos. Evidencia também as várias frentes de luta e, embora parte
significativa das(os) ativistas não espere mais construir unidade política, ajuda a entrever possíveis
pontes ou pontos de contato.
Amparo e solidariedade
JOÃO SILVÉRIO TREVISAN

CAMINHOS E DESCAMINHOS DO CASAMENTO HOMOAFETIVO


Na pauta LGBT do século 21, muita luta ocorreu no Brasil, e os avanços não se deveram ao Congresso
Nacional, teoricamente responsável por aprovar leis favoráveis à democracia. Na verdade, pouca coisa
evoluiu desde quando a então deputada federal Marta Suplicy apresentou o projeto da chamada Parceria
Civil Registrada, em 1995. Passando de “união civil” a “parceria civil registrada” e “pacto civil de
solidariedade”, as mudanças dos sucessivos projetos foram desfigurando a ideia original. Ainda assim, a
pauta continuou firmemente barrada pelas bancadas fundamentalistas. Depois de duas décadas, o osso ao
qual os conservadores se agarravam como seu grande trunfo foi se mostrando desgastado. Além de se
verem confrontados por novas questões polêmicas na pauta LGBT, aqueles parlamentares, que se julgam
detentores do poder divino para abençoar ou amaldiçoar as pessoas, se viram atropelados pelo Poder
Judiciário.
Em 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pelo reconhecimento da união estável entre
pessoas do mesmo sexo. Em 2013, foi a vez de o Conselho Nacional de Justiça aprovar resolução que
permitia a todos os cartórios celebrarem o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Em 2017, o STF
decidiu ainda mais: equiparou a união estável e o casamento civil quanto aos direitos de herança.
A comunidade LGBT saudou as vitórias e investiu pesado, seja na união estável, seja no casamento
civil. No mesmo ano da sua aprovação, ocorreram 1.252 contratos de união estável no país, passando
para 2.044 em 2013. Depois da permissão do Conselho Nacional de Justiça, os casamentos homoafetivos
saltaram de 3.701 em 2013 para 5.614 em 2015. Ainda antes da decisão do CNJ, os Tribunais de Justiça
de vários estados já haviam editado norma para os cartórios acolherem as solicitações de casamento
homoafetivo. Na cidade de São Paulo, dos bairros mais populares aos mais sofisticados, foram
registrados em cartório cerca de dois contratos de união estável por dia, em 2014. Muitos dos casais
começaram a adicionar formalmente o sobrenome do(a) parceiro(a) ao seu próprio nome. Como forma
de celebração massiva, em várias partes do país ocorreram cerimônias coletivas de casamento
homossexual. Em dezembro de 2015, o projeto Justiça Itinerante, do Tribunal de Justiça de Alagoas,
oficializou coletivamente a união de quatorze casais homoafetivos, em Maceió.
As repercussões se multiplicaram em setores até então inatingíveis. Com base em determinações
judiciais, em 2013 a Justiça Federal de Pernambuco abriu precedente ao obrigar o Exército a reconhecer
como dependente o companheiro de um sargento. Em 2015, por sua vez, o STF determinou a retirada
dos termos “pederastia” e “homossexual” do Código Penal Militar. Em 2016, um soldado da Brigada
Militar (PM gaúcha) obteve autorização para vestir o uniforme de gala na cerimônia de casamento com
seu companheiro, em Porto Alegre. Aliás, o soldado Miguel Martins só decidiu usar a farda em
represália aos comentários homofóbicos de que foi alvo nas redes sociais. Como disse o comandante-
geral da Brigada gaúcha, coronel Alfeu Freitas Moreira, ao dar a autorização: “Quanto mais os policiais
militares estiverem bem na vida particular, melhor será.”
O AVANÇO DA VISIBILIDADE SOCIAL
Ocorreu um verdadeiro furacão cultural quando Daniela Mercury, uma das maiores
cantoras/compositoras brasileiras e queridíssima pelo público, anunciou seu amor por outra mulher,
Malu Verçosa, profissional consagrada na área de jornalismo, TV e rádio. A cantora já era então mãe de
cinco crianças, três das quais adotadas, e avó de uma menina. Tinha acabado de se separar
amigavelmente do marido. Em 3 de abril de 2013, Daniela postou no Instagram: “Malu agora é minha
esposa, minha família, minha inspiração pra cantar”. Esse comunicado sucinto, acompanhado de várias
fotos de clima amoroso entre ambas, criou um atropelo na mídia com pedidos de entrevistas. A
repercussão chegou também a outros países.
O Brasil inteiro acompanhou o evento – inclusive por algumas mídias sensacionalistas, que
surpreendentemente se manifestaram com respeito e admiração. Uma reportagem jornalística resumiu o
clima criado: “O canto da cidade e do país, ontem, foi de Daniela Mercury. Começou de manhã, quando
a cantora fez uma emocionada declaração de amor a outra mulher. E terminou à noite, com outra
declaração de Daniela – desta vez de guerra – ao pastor Marco Feliciano (PSC-SP), presidente da
Comissão de Direitos Humanos da Câmara, acusado de racista e homofóbico.” De fato, em um
comunicado à imprensa, ela afirmou: “Numa época em que temos um Feliciano desrespeitando os
direitos humanos, grito meu amor aos sete ventos. Quem sabe haja ainda alguma lucidez no Congresso
Brasileiro”.
Pelas redes sociais, Daniela e Malu deixaram claro que se tratava, além de tudo, de um gesto de
afirmação política dos direitos da comunidade LGBT, e não pouparam ataques aos fundamentalistas.
Como disse Daniela: “Duas mulheres juntas é um tapa na cara dos machistas”. De todas as partes, os
grupos LGBT manifestaram comoção e alegria. Em Brasília, pessoas que protestavam contra Marco
Feliciano diante do Congresso Nacional cantaram o maior hit de Daniela, “Canto da cidade”. Em
Teresina, manifestantes usaram fotos com o rosto de Daniela para protestar contra os fundamentalistas.
Sem nenhum interesse em esconder a força do seu amor, Daniela e Malu se casaram formalmente em
12 de outubro, poucos meses após anunciarem seu amor. À cerimônia estiveram presentes familiares das
duas noivas, algumas pessoas amigas e os filhos de Daniela, agora também de Malu. Vestidas de noivas,
trocaram alianças entre si e acrescentaram o sobrenome de uma ao da outra. No livro Daniela e Malu:
uma história de amor, escrito pelo casal, Daniela dizia esperar que “nosso testemunho inspire mais gente
a viver na luz” e que o seu compromisso matrimonial “simbolizou um século de conquistas por
igualdade”.
O casamento dessas duas mulheres valorosas selava a inevitabilidade de novos tipos de núcleo
familiar, com a inclusão de famílias homoafetivas e sua luta pela adoção de filhos. Como dizia Judith
Butler, criaram-se amálgamas diferentes das estruturas familiares tradicionais, pois a família também é
uma formação histórica, cuja estrutura e cujo significado mudam ao longo do tempo e do espaço.
NOVOS DIREITOS, NOVAS RESPONSABILIDADES
É claro que esses novos focos de resistência criaram novas responsabilidades e maior complexidade,
pelo nível de ineditismo. Um deles foi o direito à adoção de crianças por casais homoafetivos e
bissexuais. Após muitas controvérsias no passado, a questão se resolveu com a equiparação de direitos
das uniões e casamentos homoafetivos aos heteroafetivos. Juridicamente, isso levou ao corolário de que
LGBT atendem a todos os requisitos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), sem nenhum ponto
de atrito com o direito de família. Assim, tornou-se fato consumado a legalidade da adoção homoafetiva,
seja individualmente seja como casal em contexto familiar.
Mas não foi uma batalha fácil. Em 2010, no caso de adoção por um casal de mulheres, após oposição
do Ministério Público do Rio Grande do Sul, o Superior Tribunal de Justiça deu parecer favorável de que
nenhum estudo indicava qualquer inconveniência na adoção de crianças por casais homossexuais,
“importando mais a qualidade do vínculo e do afeto no meio familiar em que serão inseridas”. Com a
decisão, a Corte abriu precedente para a adoção de crianças por casais homoafetivos. Mas só em 2015 a
adoção nesses núcleos foi considerada definitivamente constitucional pelo Superior Tribunal Federal,
que se baseou nos entendimentos de 2011 e 2013 de que o conceito de família inclui uniões entre
pessoas do mesmo sexo, portanto “o conceito contrário implicaria forçar o nosso Magno Texto a
incorrer, ele mesmo, em discurso indisfarçavelmente preconceituoso ou homofóbico”.
DAS NOVAS IDENTIDADES AOS NOVOS ARMÁRIOS
No bojo das novas conquistas, emergiram circunstâncias até então imprevistas, que inauguraram
discussões inéditas. Novos arranjos desejantes e amorosos foram se ampliando com o reforço de outros
fatores identitários, como os ursos, os idosos, os deficientes físicos e sindrômicos de Down. De um lado,
considere-se que o amor pelos gordos e pelos velhos, entre outras tantas formas de amor inclusivas,
subverte a própria subversão das sexualidades não normativas. Com sua graça espontânea, apontam para
uma benfazeja ruptura dos padrões da beleza hegemônica e estereotipada, que bombardeiam a sociedade
contemporânea.
Por outro lado, a abertura de tantas possibilidades identitárias impulsionou o acirramento de “tribos”
dentro da comunidade LGBT – fenômeno, de resto, visível em outros grupos emancipatórios. Na
contramão das solidariedades afetivas, o fenômeno do politicamente correto atingiu níveis de alerta
vermelho. Tal como se pode constatar nas redes sociais, sempre que as lutas emancipatórias levam a uma
exacerbação impositiva e irracional, a “indignação” acarretou uma onda de narcisismo doentio.
Paradoxalmente, nesses momentos a correção política passou a praticar o mesmo nível do autoritarismo
que pretendia combater.
Tal fenômeno veio acontecendo com a multiplicação das letrinhas identitárias. Disputas, nem sempre
surdas, passaram a ocorrer entre os vários agrupamentos quase cifrados para gente não iniciada. As
siglas variaram de LGBTT, LGBTTT, LGBTTTI até LGBTTTIQ+ ou mesmo LGBT*, em que o
asterisco (*) compreende um et cetera interminável. Isso que já abrangia uma parte considerável do
alfabeto, e tende a aumentar, corre o risco de atropelar os fundamentos das políticas identitárias, levando
a um limite de saturação e neutralização mútua. Na ótica da solidariedade, que deveria mover o ativismo
dos excluídos, surge inevitavelmente a pergunta: os direitos de um oprimido podem ocorrer em
detrimento dos demais? Tal questão, e muitas outras por vir, evidenciam aspectos incômodos na luta
pelos direitos dos oprimidos, que também podem ter sua cota como opressores.
Não sou daqueles que preferem esconder os paradoxos da liberdade, sob pretexto de fortalecer os
antigos opressores. Para além da paranoia instaurada na base dessas disputas, acredito que iluminar as
contradições, por mais constrangedoras que sejam, só faz enriquecer o debate. Afinal, o que se está
almejando é uma sociedade igualitária, e não a substituição dos antigos donos do poder por novos
senhores.
O conceito de empoderamento, tão em voga e tão pretensamente progressista, não pode significar que
o poder de um grupo acabe por se impor, ainda que inadvertidamente, sobre outros. Tal virada de mesa
mobiliza ressentimentos históricos que não levarão senão a um beco sem saída, se de fato visamos à
construção de estruturas legitimamente democráticas, vale dizer, diversificadas por natureza. As lutas
por sociedades mais igualitárias implicam necessariamente abrir espaço para a imensa diversidade de
cidadãos e cidadãs – venham suas diferenças de onde vierem. A democracia não cabe em estreitas
cartilhas de bom mocismo (nem de direita, nem de esquerda) que são fonte de confrarias disfarçadas. De
resto, há um risco autofágico muito comum entre movimentos de liberação com políticas de afirmação
toscas. O risco existe quando o tal movimento de “empoderamento” acaba se confundindo com
arrogância ou prepotência. Chega-se então a um resultado daninho: a possível compartimentalização de
cada luta específica, que mata a solidariedade e leva ao isolamento político. Não é pouca coisa para uma
comunidade desamparada, quando ela deixa de amparar a si mesma. As letras de um alfabeto se
completam para formar signos de comunicação, não para criar novos armários. Não por acaso, na oficina
“Artivismo da Fechação”, em 2017, o coletivo Revolta da Lâmpada tinha como tema de um dos debates:
“Estratégias de luta para rachar menos e somar mais.” (Excerto de capítulo inédito da nova edição do
livro Devassos no paraíso, a ser publicado no segundo semestre de 2018).
design

A arte da revolução
HELÔ D’ANGELO

Quando assumiu o comando da recém-formada União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS),
Vladímir Lênin (1870-1924) não negligenciou um universo que muitos líderes políticos costumam tratar
com desdém: a arte. Entre 1918 e 1930, o governo revolucionário instituiu e fomentou, em Moscou e
Petrogrado (hoje, Leningrado), os Ateliês Superiores de Arte e Técnica (conhecidos em russo como
“Vkhutemas” – acrônimo de Vyschie Khudôjestvenno-Tekhnítcheskie Masterskíe), formados por cursos
universitários de artes e ofícios, como arquitetura, cerâmica e design, cuja proposta pedagógica
articulava arte e revolução. Em seus poucos anos de existência, e mesmo com recursos escassos, os
ateliês não somente contribuíram para a criação de um novo pensamento socialista, que desafiaria a até
então hegemônica estética capitalista ocidental, como também ditaram o design do século 20, chegando
a inspirar a escola alemã de Bauhaus e a arte moderna norte-americana – até serem completamente
apagados da história durante o regime stalinista, que, temendo sua prontidão crítica, os desarticulou.
“As novas pedagogias adotadas nos Vkhutemas e em toda a Rússia se originam de um processo
revolucionário que visava a mudanças radicais na educação, com o objetivo de formar e capacitar o
cidadão para o socialismo, gerando assim uma diferenciação histórica, política e ideológica em relação
ao resto do mundo”, explica o pesquisador da história do design e artista têxtil Celso Lima, cocurador, ao
lado de Neide Jallageas, da exposição Vkhutemas 1918-2018: o futuro em construção, em cartaz no Sesc
Pompeia de 26 de junho a 15 de setembro – a primeira mostra sobre o tema realizada nas Américas. Com
cerca de 250 peças, entre cartazes, fotografias e projetos arquitetônicos, a exposição tem o intuito de
“propiciar ao público uma ideia concreta e material do que seria o novo mundo sonhado por esses
artistas e designers”, segundo Jallageas, que também é pesquisadora de cinema e arte russa.
O primeiro esforço de Lênin no sentido de criar uma nova escola artística soviética veio na forma dos
“Svomas”, ateliês livres de artes fundados em 1918, dentro dos quais eram propostos, pensados e
debatidos novos meios de ensino de artes e de design. Embora ainda não fossem cursos universitários, os
Svomas se destinavam à capacitação de alunos para escolas superiores de artes, arquitetura e design de
objetos. Em 1920, a partir das experimentações dos Svomas, foram criados os Vkhutemas, cursos
superiores de artes e ofícios que tinham um funcionamento incomum para a época, marcado pela
igualdade entre alunas e alunos e por agendas inclusivas, que pensavam o fortalecimento das relações e
ações comunais, mesmo em um período de grande severidade econômica, logo após a Primeira Guerra
Mundial e os primeiros tempos de instabilidade política na União Soviética. “Os Vkhutemas colocaram o
conceito de arte de ponta-cabeça”, afirma Jallageas. “Não mais para decorar salões, casas, igrejas e
palácios, mas para movimentar o pensamento, propiciar novas formas de perceber o mundo”, completa.
Desse ambiente multidisciplinar, livre e fértil, onde Wassily Kandinsky deu aulas, por exemplo,
surgiriam grandes artistas, entre eles Varvara Stepanova, pintora e fotógrafa; Lazar Lissitzky, arquiteto e
designer, e Aleksey Shchusev, arquiteto responsável pelo projeto do mausoléu de Lênin. A liberdade que
emanava dos Vkhutemas chegou a atrair o então diretor do MoMA, Alfred Barr, que modificou a
estrutura do museu, tornando-o multidepartamental com base na experiência russa. Segundo Celso Lima,
a própria Bauhaus, aberta em 1919, teria sido inspirada nos projetos e programas de ensino soviéticos,
que o arquiteto Walter Gropius, fundador da Bauhaus, visitara em outubro de 1918. “Ambas foram
berços da modernidade no século 20, e suas linhas são uma herança poderosa para nós um século
depois”, diz o curador. Ironicamente, os Vkhutemas entraram para a história simplesmente como uma
espécie de “Bauhaus russa”.
No entanto, embora a estrutura revolucionária e livre dos Vkhutemas fosse inicialmente encorajada,
foi esta mesma característica que levou ao fim da experiência. Durante o regime stalinista, o espírito
crítico cultivado nos ateliês passaria a ser visto com maus olhos e, a partir de 1926, durante a
implantação das novas diretrizes econômicas de Stálin – o Primeiro Plano Quinquenal, que priorizava
investimentos em indústrias estruturais –, a instituição passaria por um processo de sucateamento, no
qual seus ateliês livres passaram a ser marcados pela técnica em vez da experimentação. Em 1930, a
escola foi abruptamente fechada, e os ateliês transformados em institutos independentes controlados pelo
Estado totalitário. “As riquíssimas experiências de vanguarda dos anos 1920 foram substituídas por
ideias ultrapassadas de monumentalidade e obsolescência, na construção de uma mentira épica de triunfo
do socialismo revolucionário, e a partir dos anos 1930 foram literalmente apagadas da cena histórica
russa e soviética”, resume o curador.
Ainda hoje não existe um arquivo único que agregue toda a produção dos ateliês. Após o seu
fechamento, conta Lima, muitas das obras criadas em 12 anos de Vkhutemas foram destruídas ou
perdidas, “confinadas aos porões dos museus e proibidas de serem exibidas em público”, e só ganhariam
o mundo no início dos anos 1990, com a dissolução da União Soviética. Mesmo assim, para o curador, o
interesse em dar visibilidade a empreitadas socialistas como esta ainda é pequeno, em razão do domínio
cada vez maior do capitalismo. “O importante, neste momento, é que a escola seja plenamente resgatada
em termos de conjunto e interdisciplinaridade, conforme foi concebida”, afirma ele – e daí a importância
de uma exposição da envergadura de Vkhutemas 1918-2018: o futuro em construção. Jallageas
concorda: “Propusemos essa mostra de reconstrução, aqui no Brasil, para o espaço das oficinas do Sesc
Pompeia, pensado por Lina Bo Bardi principalmente para ser uma antiescola, um antimuseu, em que arte
e cultura estejam inseridas na vivência da escola”, declara ela, sintetizando o espírito dos Vkhutemas.
estante cult

Exercícios de radicalidade
WELINGTON ANDRADE

O lançamento de uma obra inédita no Brasil, Uniões, e a chegada às livrarias da 4ª edição de um


clássico, O homem sem qualidades, reforçam o convite para que os leitores do século 21 conheçam a
obra de Robert Musil (1880-1942). Nascido em Klagenfurt, Áustria, o escritor fez seus estudos
secundários no colégio militar de Mährisch-Weisskirchen (Hranice, hoje, na República Checa), que o
inspirou a escrever, em 1906, O jovem Törless. Apesar de ter estudado engenharia, Musil doutorou-se
em filosofia em 1908. Na Primeira Guerra, integrou o exército austríaco e após o conflito trabalhou para
o Ministério das Relações Exteriores do país. A partir de 1923 passa a se dedicar exclusivamente à
literatura, desempenhando as funções de crítico teatral, romancista e ensaísta. Em 1931, transfere-se para
Berlim, mas dois anos depois, com o advento do nazismo, retorna a Viena. Em 1938, após a anexação da
Áustria e em consequência da proibição de seus livros pelo regime nazista, emigra para Genebra, Suíça,
onde passa os últimos anos de sua vida ao lado da mulher, Martha Marcovaldi.
Uniões reúne duas novelas: “A perfeição do amor” e “A tentação da quieta Verônica”,
protagonizadas por duas mulheres sobre cujos corpos, sensações e pensamentos o narrador vaga e
divaga, tecendo duas histórias intensamente dramáticas e fragmentadas, marcadas pelo signo da mais
absoluta radicalidade. Traduzida e comentada por Kathrin Rosenfield e Lawrence Flores Pereira, a obra
– que em certa medida remete à atmosfera de introspecção das narrativas de Clarice Lispector – pode ter
muito a dizer sobre os conflitos de gênero que vêm caracterizando os tempos atuais.
Com tradução de Lya Luft e Carlos Abbenseth, O homem sem qualidades é considerado desde sua
primeira edição em língua alemã um dos romances mais importantes do século 20. Às vésperas da
Primeira Guerra Mundial, o matemático Ulrich retorna a Viena e convive com os mais diversos tipos
humanos em sua tentativa de encontrar um sentido para a vida e a realidade. Filiada à tradição do
romance de ideias, a obra mostra a derrocada dos valores que estiveram em vigência até o início do
século que assistiu a dois conflitos de proporções mundiais e viu também serem reduzidas as influências
do continente europeu em relação aos rumos políticos e econômicos do planeta.
Chamando a atenção para o fato de que uma tradução mais exata do título seria “O homem
indefinido”, Otto Maria Carpeaux afirma: “Musil foi um dos mais espirituosos estilistas em língua
alemã, aforista de primeira ordem, e em outros trechos de evocativa força poética. Parece-se, um pouco,
com Proust, cujo tema é algo semelhante. Mas Musil é mais intelectualista: não procura lembrar o temps
perdu, mas explica a perda”. O escritor trabalhou em O homem sem qualidades por cerca de quinze anos,
mas não pôde ver a última parte publicada, tendo esta ficado aos cuidados de Martha, sua mulher – o que
confere à empreitada a característica de uma obra-prima inacabada.
Com ambos os livros, o leitor brasileiro poderá usufruir de dois belos espécimes da literatura de
língua alemã de repercussão universal. Robert Musil pertence à mesma geração de Hofmannsthal, Rilke,
Kafka, Broch, Krauss, Schönberg, Alban Berg, Kokoschka, Freud e Wittgenstein – todos eles
testemunhas da dissolução do velho Império Austro-Húngaro e representantes, em maior ou menor
medida, do senso tipicamente austríaco da autoironia.
livros
Aventuras da desobediência
SILVIO ROSA FILHO

Triste espetáculo seria dado pelos leitores deste livro, se acaso se contentassem com a posição de
espectadores. Assistindo às múltiplas formas de obediência e aceitando as que o autor considera
inaceitáveis, duplicados no papel de coadjuvantes, os leitores teriam saltado, sem perceber, da plateia
para o palco onde se vai prolongando a grande e monstruosa peça da obediência. Um dos pressupostos
de Desobedecer – assim no livro como no ato de leitura que ele implica – é que essa visão teatral da
obediência não apresenta – antes, limita-se a silenciar, a representar – exigências intransferíveis, tais
como a de tomar a palavra, ter a coragem de dizer a verdade, assumir a responsabilidade pela verdade
que se diz... Exigências demais, provavelmente, sobretudo para aqueles “atores” que só podem ser
mencionados entre aspas, pois têm não apenas injuriado e agravado a miséria dos atores de verdade,
como têm sustentado a farsa e silenciado a catástrofe de uma democracia acrítica.
Desobedecer significa, portanto, aprofundar os porquês da obediência, desenvolvendo formas
específicas do inaceitável. Significa, ao mesmo tempo, defender a ideia de democracia crítica – no caso
em pauta: uma combinação peculiar de exercícios de liberdade, igualdade e solidariedade, com o
imperativo da desobediência política. Significa, ademais, propor um tipo de iniciação à resistência ética.
Não há dúvida de que existem, no livro, muitas formas instigantes de reversibilidade, da submissão à
rebelião, da subordinação ao direito à resistência, do conformismo à transgressão, do consentimento a
uma certa acepção de desobediência civil. Nelas, os venenos de aceitação mítica e ideológica é que
permitem extrair, a cada caso, um antídoto próprio. Sucede que cada antídoto formula, por seu turno, o
problema de novos e distintos níveis de obediência-limite, ora nos âmbitos da vivência social ou
familiar, ora nas esferas da experiência econômica ou política.
Quem se aproxima do núcleo de sentido da submissão, por exemplo, nele encontra o elemento da
rebelião social do homem escravizado, assim como é chamado a considerar o nível de uma
superobediência da servidão voluntária, no questionamento e na desmistificação operados por La Boétie.
Quem se descobre na passagem da subordinação familiar ao direito de resistência, é interpelado a pensar
a experiência-limite da filha de Édipo, Antígona, nas leituras de Hegel, Hölderlin, Lacan, George
Steiner. Quem ultrapassa o conformismo, aproxima-se do ponto de transgressão em que é preciso
interrogar, com Hannah Arendt, o processo Eichmann, que “continua a obcecar a reflexão ética
contemporânea porque põe em movimento a dialética vertiginosa da responsabilidade e da obediência”;
perguntar-se também, com Günther Anders, pelo processo da modernidade técnica como fermento do
totalitarismo, levantando a questão dos efeitos éticos da extensão da máquina. “Fragmentação das
tarefas, segmentação das atividades, o mundo técnico-burocrático fabrica indivíduos moralmente
anestesiados”.
Depois da submissão, da subordinação e do conformismo, quem explorar o quarto núcleo de sentido
da obediência, onde cada um obedece e consente como cidadão, chegará ao ponto de inflexão em que a
política é entendida como articulação racional de um “querer-viver juntos”. Percorrendo os modelos de
Hobbes, Locke e Rousseau, diremos com Frédéric Gros que, se há contrato social, “somos nós que
queremos fazer política juntos”; mas se o contrato em causa não for fraudado, diremos que se trata de
fazer, sobretudo, “comunidade política”. Os movimentos de desobediência civil – os coletivos de
contestação, não os protestos atomizados – estão convidados a acompanhar o autor no capítulo “A
caminhada de Thoreau”, no qual se apresenta não somente a vida selvagem de um “ícone da ruptura” ou
de um “símbolo da subversão”, mas a caracterização da ideia mesma de desobediência: como irredutível
a casos de objeção de consciência (Arendt, Rawls); como possibilidade de encontrar na desobediência “o
princípio de uma conversão espiritual” (Tolstoi, Gandhi, Martin Luther King); como ato de um “sujeito
indelegável”, aquele cuja fórmula é resumida exatamente pelo próprio Thoreau (“Se não for eu, quem o
será em meu lugar?”) e cuja réplica ecoa há muitos séculos, na voz de Hilel, o Ancião: “Se eu não for
por mim, quem o será? Se eu for só por mim, quem serei eu? E se não agora, quando?”.
Democracia transcendental, portanto? Neste passo a resposta seria “sim”, conquanto atravessássemos
o pensamento de Kant e a releitura de Foucault, sem perder de vista o que remanesce de subversivo na
forma ambivalente da recusa socrática. Pois é justamente essa luz grega que o livro sugere e vai
reencontrar na lição de Merleau-Ponty: “Sócrates tem uma maneira de obedecer que é uma forma de
resistir”. O passo seguinte consiste, agora, em dar a palavra ao autor: “o demônio socrático permite
abordar o que eu chamo de ‘dissidência cívica’. Entendo por isso uma desobediência que não é
forçosamente sustentada pela consciência nítida de valores transcendentes, pela convicção, esclarecida
por um sentido moral superior, de leis que dominam a humanidade e o tempo. O dissidente faz sobretudo
a experiência de uma impossibilidade ética. Ele desobedece porque já não pode continuar a obedecer”.
Diferentemente do objetor de consciência, que desobedece em nome de uma obediência superior, o
dissidente cívico é aquele que “faz a experiência súbita do intolerável e se conscientiza. Ele experimenta
uma impossibilidade que o obriga à ruptura: não é possível continuar! O ‘não’ da dissidência cívica é um
não em dobro: impossível não fazer. O dissidente não pode continuar a não dizer e se calar, fingir não
saber, não ver. Essa dupla negação da dissidência não é dialética, não produz a afirmação como
realização e síntese. Ela provoca ruptura, estrondo”.
Se nunca é cedo demais para ser livre, se nunca é tarde demais para fazer a coisa certa, a prova dos
nove dessa negação não dialética se daria no caso da desobediência ao poder formal
(pseudoinstitucionalidade governamental, jurídica e parlamentar), assim como se daria no caso não
menos concreto do poder real (a economia política em exercício). Um hegeliano em dissidência poderia,
de resto, apreciar esta última passagem do veneno ao antídoto. Em suma: manda quem não deve,
desobedece quem tem juízo.
livros

Corpo de adulto e cabeça de piá. Como o Brasil


AMANDA MASSUELA

Mário de Andrade escreveu Macunaíma em seis dias. Em dezembro de 1926, no meio de abacaxis,
mangas e cigarras da chácara da Sapucaia, na cidade de Araraquara, despejou no papel a história de um
índio negro nascido na floresta amazônica que atravessa o país em busca do seu amuleto roubado por um
gigante comedor de gente. Uma jornada que Oswald de Andrade chamou de “nossa Odisseia” e que, 90
anos depois da primeira publicação, se atualiza diante das discussões contemporâneas no âmbito das
identidades.
Isso porque, como personagem e signo, “Macunaíma tem uma maleabilidade que permite que as
mudanças epistemológicas sobre o Brasil ainda estejam representadas nele”, diz a escritora e crítica
literária Noemi Jaffe. Grande obra do Modernismo, Macunaíma tornou-se representação do brasileiro
num momento em que, na literatura e nas artes, se formulavam novas concepções do que seria uma
identidade nacional distante das idealizações do Romantismo do século 19, que projetava nos indígenas
um símbolo heroico de nacionalidade.
“Hoje, a ideia de identidade se ampliou; fala-se muito em identidade feminina, negra, trans e assim
por diante, já não se comporta mais apenas uma identidade tão abrangente quanto a ‘brasileira’”, afirma
Jaffe. “Mas o que Mário propõe são múltiplas identidades concentradas em uma figura mítica. Como não
é uma representação verossímil do brasileiro, Macunaíma ainda pode ser uma alegoria, mesmo com essa
nova ideia de identidade.”
Para Telê Ancona Lopez, professora emérita do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, “o
protagonista continua no brasileiro, tanto nos descaminhos de seu comportamento, quanto em
determinadas propostas suas que se revelam pertinentes, como a valorização do ócio criador, a crítica à
reificação da vida, ao domínio da máquina”. “O herói sem nenhum caráter é o protagonista de uma busca
que se realiza no bojo das contradições de seu país, contradições que tanto ele vive, como denuncia”,
afirma.
Nascido de uma índia tapanhumas “no fundo do mato-virgem”, o herói de Mário de Andrade é ora
índio negro, ora branco. O personagem surge da bricolagem dos muitos mitos, lendas e contos indígenas
lidos e anotados pelo autor ao longo de muitos anos. Sua trajetória começa a ser rascunhada nas margens
do segundo volume de Vom Roraima zum Orinoco, obra do etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg. É
ele quem registra, em 1917, o mito de Makunaima, herói dos povos pemons, habitantes do norte da
América do Sul, entre Brasil e Venezuela – e que, etimologicamente, significa “o grande mau”.
“Só que o Macunaíma de Mário não é ‘o grande mau’”, observa Noemi Jaffe. “Ele tem um lado bom,
inocente, muito fascinado pelas coisas. Mas é muito egoísta, infantil, tem ‘corpo de adulto e cabeça de
piá’, praticamente como o Brasil.” O protagonista tem preguiça, mente, dissimula, trai, transforma-se em
formiga, pé de urucum e em um “lindo príncipe” para conseguir o que quer. É um “herói sem nenhum
caráter”, mas não só pela falta de supostos valores morais, como também pela ausência de características
sólidas, como aponta a leitura do crítico José Miguel Wisnik. O próprio Mário de Andrade escreveu, no
primeiro prefácio da obra, que “o brasileiro não tem caráter porque não possui nem civilização própria,
nem consciência tradicional”.
Professora titular de Estudos Brasileiros na Universidade de Manchester, no Reino Unido, Lúcia Sá
afirma que a capacidade de transformação e a criatividade de Macunaíma não devem ser vistas numa
chave maniqueísta, positiva ou negativa, entre o bem e o mal. “Como todos nós, ele é cruel, sádico e
covarde, mas também pode ser herói. Vejo Macunaíma como uma figura que transforma a sociedade
brasileira e nos mostra a beleza das tradições intelectuais indígenas e de outras tradições que formam a
cultura brasileira”.
No sétimo capítulo, por exemplo, ele narra pela primeira vez no romance brasileiro um ritual das
religiões afro-brasileiras quando Macunaíma, frustrado por não conseguir reaver sua muiraquitã e a fim
de se “vingar” do gigante Piaimã, vai ao Rio de Janeiro para se socorrer em “Exu diabo em cuja honra se
realizava uma macumba no outro dia”. “Num momento em que pajés são acusados de satanismo e
terreiros de candomblé são queimados, o transformador trickster Macunaíma tem muito a nos ensinar em
termos da pluralidade da nossa cultura numa época em que se tenta uma homogeneização tão grande”,
conclui Sá.
A professora afirma que, em termos de forma e conteúdo, a obra é o resultado do trabalho de um
escritor para quem o ato da escritura não se manifestava como simples exercício do “mito da
originalidade”, mas como recriação, pesquisa e composição de uma verdadeira “colcha de retalhos”.
“Macunaíma se constitui de muitas origens e histórias, o que torna a obra perfeitamente adequada para
esse momento em que o que vemos é justamente uma multiplicidade de identidades”, diz.
A cantora e compositora Iara Rennó lançou em 2008 um disco inspirado na obra de Mário de
Andrade, Macunaíma Ópera Tupi. “O personagem representa todas as questões que estamos debatendo
ainda hoje, a questão indígena, negra, a opressão branca em cima de outras culturas e os reflexos
socioeconômicos disso”, afirma. Dois anos depois, o álbum se desdobrou em uma “ópera-baile” montada
no Teatro Oficina. “No corpo de baile, os ‘macunaímas’ eram como marginais, menores abandonados,
porque o protagonista de Mário também representa essas pessoas que estão fora do sistema, os
oprimidos”.
Macunaíma estabeleceu uma rica e variada interlocução com o cinema, no filme homônimo de
Joaquim Pedro de Andrade, de 1969; com o carnaval, no samba-enredo da Portela, em 1975; com o
teatro, na antológica montagem dirigida por Antunes Filho, à frente do então grupo Pau Brasil, em 1978.
Na área da crítica literária, deu origem a inúmeros artigos, ensaios e livros, entre os quais se destacam
Morfologia do Macunaíma (1973), de Haroldo de Campos, e O tupi e o alaúde: uma interpretação de
Macunaíma (1979), de Gilda e Mello e Souza. Ao completar nove décadas, o título que constitui uma
das invenções formais mais importantes do modernismo brasileiro continua com muita disposição para
estabelecer ainda outros diálogos.
colaboraram nesta edição
James N. Green é doutor em História Latino-Americana e professor de História e Estudos Brasileiros na
Universidade de Brown
Jaqueline Gomes de Jesus é doutora em Psicologia Social pela UnB e professora do Instituto Federal
do Rio de Janeiro
Joaquim Toledo Jr. é doutor em Filosofia pela Unicamp
João Silvério Trevisan é escritor, jornalista, dramaturgo, tradutor e um dos fundadores do Lampião da
Esquina
Marisa Fernandes é mestre em História Social pela USP e pesquisadora do Coletivo de Feministas
Lésbicas
Regina Facchini é doutora em Ciências Sociais pela Unicamp, professora de Antropologia Social na
Unicamp e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu

Renan Quinalha é doutor em Relações Internacionais pela USP e professor de Direito da Escola
Paulista de Política, Economia e Negócios da Unifesp
Silvio Rosa Filho é doutor em Filosofia e professor da UNIFESP

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