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Bianca Santana
Marcia Tiburi
Wilson Gomes
Vladimir Safatle
design
A arte da revolução
estante cult
Exercícios de radicalidade
livros
Aventuras da desobediência
livros
Corpo de adulto e cabeça de piá. Como o Brasil
Um gradil cinza circunda as barracas coloridas onde está parte das pessoas desabrigadas pelo incêndio e
o desabamento do edifício Wilton Paes de Almeida, na madrugada de 1º de maio de 2018. Atrás, em um
amarelo destacado, a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, construção finalizada em
1906 para receber a irmandade desapropriada anos antes. Na placa, o nome do largo: Paissandu,
homenagem à batalha de 1864, que antecedeu a Guerra do Paraguai, na cidade uruguaia de Paysandu.
Guerra que exterminou milhares de soldados negros, livres ou escravos. Em uma imagem, três tempos de
uma mesma história, que permite compreender como se dá o genocídio de pretos e pobres no Brasil.
Na manhã de 18 de maio de 2018, uma mulher nina um bebê de pouco mais de dois meses. Dois
homens conversam enquanto ajudam uma menina a se equilibrar no triciclo. Algumas pessoas se
posicionam perto das grades, em alerta, cuidando da segurança. Nas escadas da igreja, duas mulheres
dobram roupas. Na mesa à frente da cozinha improvisada, um grupo pica vegetais. Todos negros. Dez
dias antes, o cenário era de guerra: fumaça, pessoas desesperadas, miseráveis de toda a parte disputando
as sobras de quem tinha perdido tudo, mas recebia doações que chegavam dia e noite. No dia 18, a rotina
já se impusera, e o acampamento compõe a paisagem da cidade que caminha rapidamente, sem atentar
aos papéis pendurados na grade, informando a necessidade de manteiga, óleo, alho e temperos.
“Muita gente já saiu daqui. Aceitaram ir para abrigo. Mas a gente precisa é de moradia permanente.
Acho que o jeito vai ser ocupar outro prédio”, me dizia uma acompanhante, quando pediu licença para se
aproximar de uma mulher que chegava com notícias. Diversas pessoas se aglomeraram para ouvir que
estavam começando os telefonemas da prefeitura para quem tinha se cadastrado à espera de moradia.
– Vou lá falar com a assistente social, então.
– Não adianta, tem que esperar eles telefonarem no número que você passou.
– A gente vai é esperar para sempre!
– Mas eu fui ontem na Câmara dos Verea-dores e vi quando o secretário prometeu que ia sair um ano
de aluguel social para todo mundo.
– Um ano de aluguel social resolve o quê? Eu recebi aluguel social desde quando a Marta fez e
depois de sete anos estava sem casa de novo.
– E quem acredita no que eles falam?
– Mas se falou na frente de todo mundo, da televisão, ele vai fazer. Não ia mentir na frente de todo
mundo.
As falas atropeladas parecem sempre terminar em reticências. Mesmo as afirmações contundentes
não ressoam certezas. Uma forma de comunicação desconfiada que evoca lembranças de vulnerabilidade
e falta de acesso a direitos. É provável que o cenário seja outro quando este texto for impresso. E não é
possível prever onde e como cada um deles vai morar daqui para a frente. E eles sabem disso. Falta de
moradia e remoções fazem parte da história de muitas dessas pessoas. E também do Largo. Como já
anunciado, a construção amarela é outra materialidade de um passado de limpeza urbana.
A Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos começou a ser construída nesse local em
1904. Por quase duzentos anos esteve na atual praça Antônio Prado, perto da rua XV de Novembro,
antigo largo do Rosário. Desde 1721, a primeira igreja, construída por negras e negros, foi um espaço de
organização política, social e religiosa. Proibidos de frequentar as igrejas dos brancos, os membros da
Irmandade dos Homens Pretos levantaram o templo que podia ser desfrutado por forros e escravos,
sincretizando rituais católicos a práticas de matriz africana, especialmente de origem banta.
No início do século 20, Antônio Prado, primeiro prefeito de São Paulo, iniciou uma reforma urbana
higienista que afastava pobres e negros das regiões mais valorizadas do Centro. Uma versão anterior do
processo de gentrificação denunciado pelo movimento de moradia contemporâneo. Ou o princípio dele.
Em 1903, a Câmara Municipal aprovou uma lei que desapropriava os bens da Irmandade e cedia um lote
pantanoso no Tanque do Zuniga, atual largo do Paissandu, para a construção da igreja. O terreno
desapropriado, surpreendentemente, foi doado a Martinico Prado, irmão do prefeito, que ali construiu o
primeiro prédio de escritórios de São Paulo, onde hoje funciona a Bolsa Mercantil e de Futuros. Sim. A
Bolsa de Valores está sediada no Palacete Martinico Prado, à praça Antônio Prado, nome do prefeito que
desapropriou pretos pobres. E hoje? Quem se beneficiará do terreno do prédio que desabou, onde viviam
as famílias acampadas no Paissandu?
Quanto ao destino das pessoas acampadas, a história também nos oferece inúmeros exemplos de
como o Estado brasileiro responde às promessas feitas a pretos e pobres. E não precisamos ir longe. O
nome Paissandu, mais uma vez, faz referência a uma das batalhas que antecedeu a Guerra do Paraguai.
Como se sabe, muitas das tropas brasileiras foram compostas de escravos, que se alistavam, não só
com a promessa de alforria, mas também pelo compromisso do imperador Pedro II em abolir a
escravidão. Ao final da Guerra, em vez de libertação, em 1871, foi promulgada a Lei do Ventre Livre
que, no papel, considerava em liberdade todos os filhos de mulheres escravas nascidos a partir daquela
data. Na prática, crianças negras nascidas livres continuaram trabalhando nas mesmas condições das que
nasceram escravizadas.
Tantos dados, de diferentes tempos, no mesmo território, nos informam como o Estado brasileiro está
a serviço do capital financeiro. E nós? Assistimos a tudo isso? Evoco a pergunta-provocação de um
militante do movimento negro durante o seminário “Justiça por Marielle e Anderson, Contra a
Intervenção Militar e o Genocídio Negro”, que aconteceu na 3ª edição da Feira Nacional da Reforma
Agrária, em São Paulo: “Para o meu bisavô, disseram que ele deveria ser um bom escravo, que a
abolição logo viria. Para o meu avô, prometeram que se ele trabalhasse bastante, teria condições de vida.
Para o meu pai, disseram que depois do ginásio, viria a CLT. Para mim, foi o ensino superior. Mas
mesmo graduado, sou parado pela polícia e não tenho emprego. Até quando vamos acreditar nas
promessas?”.
coluna
Antropologia digital
MARCIA TIBURI
A antropologia é uma ciência que se construiu a partir da ideia de que se poderia tornar o ser humano um
objeto da ciência. Esse complexo objeto nos faz saber que estudar é uma coisa, mas que compreender é
outra bem diferente. A questão antropológica é filosófica e está na base de todas as ciências humanas.
O termo anthropos de origem grega, que significa exatamente “ser humano”, nos põe em contato
com a complexidade irredutível à ideia de uma espécie. Antigamente, era traduzido por “homem”, como
se o universal masculino resolvesse o problema.
Hoje é antiquado falar “homem” para definir o ser humano genérico composto da diversidade
humana. Antropólogos já abriram caminho para pensar que outras espécies também são “humanas” para
si mesmas. Noutra linha, talvez seja igualmente antiquado usar a palavra “logos” com seu velho
significado de razão. Em uma época obscurantista e irracional como a nossa, falar de conhecimento
também pode ser estranho. Além disso, a ironia de fundo dessa questão pode ser perdida com facilidade.
Mesmo assim, as ciências costumam surgir em todas as épocas, e talvez mais ainda em momentos
nos quais esforços de compreensão nos encaminham a confiar na razão, na análise, na crítica, em vez de
entrarmos na primeira igreja que há na esquina. O que se chamou de “razão” na história da filosofia nada
mais é do que uma faculdade que existe apenas na esperança de filósofos. A análise e a crítica são
procedimentos que surgem dessa esperança de que, compreendendo um fenômeno, se poderia melhorar
algum aspecto da vida e da existência.
A antropologia digital ou ciborgue parte da ideia de que a vida humana hoje deriva de produtos
humanos e não humanos. De que há todo um campo da experiência humana que migrou para a internet e
que devemos compreender esse novo território e o fenômeno humano que se desenvolve nele. Como o
fenômeno da interação com máquinas e aparelhos, computadores e celulares mudou nosso modo de ser.
Hoje não temos apenas relações sociais, e sim relações tecnossociais.
Desde que usamos próteses de conhecimento, não somos mais os mesmos. No limite, a inteligência
artificial realmente pensa por nós. Mas isso não é o aspecto mais complicado quando se trata de pensar
esse novo ser humano no qual estamos nos tornando. O problema maior é que essa inteligência artificial
nos faz agir e não percebemos que esse agir não apenas se dá em seu nome, como também esconde que
fomos apagados em nossa subjetividade nesses processos.
Se a inteligência é terceirizada nas máquinas, o que resta a nós que já representamos, em outras
épocas, a ideia de razão e de dignidade humana? Esse tipo de questão parece ter caducado em nossa
época. Podemos nos perguntar se não seremos mais humanos, ou se nos transformamos tanto em nossa
relação com as máquinas que já nos tornamos híbridos com elas. Somos ciborgues.
A velha ideia de humanidade ressurge como uma artificialidade com consequências éticas e políticas.
Embora possamos ser ciborgues, o que implica dizer que somos um pouco máquinas, não somos apenas
máquinas. E se a condição de máquina nos atinge, a condição humana também atinge a máquina. Quem
assistiu aos filmes Blade runner, de Ridley Scott, ou Tempos modernos, de Chaplin, sabe que os reinos
se confundem.
Associados, em simbiose, não somos mais apenas escravos de máquinas. Estamos preparados
intelectual, cognitiva e afetivamente para enfrentar a questão antropológica que se coloca no momento
em que nossa fusão com a máquina e com os aparelhos das tecnologias digitais atravessa nossa vida?
Somos capazes de pensar a ética e a política que derivam disso?
coluna
No Brasil da extrema polarização política, nomes não são meras designações para as coisas e pessoas,
mas rótulos e armas que se podem brandir contra os adversários. No país em que as redes digitais
transformaram desinformados e desinteressados por política em participantes ativos do debate público e
partidários muito engajados desta ou daquela identidade política, há mais barulho do que argumentos,
mais busca da treta pela treta do que desejo de esclarecimento recíproco. À medida que crescem o
ativismo e a participação, diminui a paciência para produzir conceitos cuidadosos e consequentes.
Aparentemente, precisamos mais de palavras de ordem para mover a massa e cimentar identidades do
que de nuances e distinções que nos permitam sair da nossa zona de conforto e de raiva, pois de pressa e
raiva hoje se faz a esfera pública brasileira. Estamos todos à flor da pele, constantemente furiosos,
perenemente ultrajados.
Uma prova desse estado de coisas é o uso da palavra “direita” no debate político hoje. Sim, eu sei que
as designações “direita” e “esquerda” sempre foram torturadas ideologicamente até que confessassem
aquilo que cada lado gostaria que se dissesse. Mas como o crescimento do número de pessoas e grupos
que se admitem de direita se deu pari passu com o aumento da polarização política, a compreensão do
que “direita” quer dizer se tornou ainda mais comprometida. Assim, temos cada vez mais pessoas
reivindicando-se, de modo ostensivo e até orgulhoso, como sendo de direita, ao mesmo tempo em que a
expressão vai se tornando ainda mais polissêmica e distorcida. E, para complicar, ainda tem muita gente
faturando em cima do engano e do autoengano.
Os bolsonaristas, por exemplo, afirmam-se de direita. Ao mesmo tempo que alguns dos seus
ideólogos em redes digitais ridicularizam quem os considera de extrema direita. O DEM, por outro lado,
anda agora tentando garantir que ocupa o centro, quando até pouco tempo atrás se juntava ao coro da
retórica que assegurava que a distinção entre esquerda e direita já havia sido superada. A propósito desta
afirmação, há muito emprego um princípio que se provou verdadeiro ao longo dos anos: se o sujeito diz
que não existe mais “direita – esquerda” pode apostar que é de direita. Pois, vejam que curioso, quando
Bolsonaro se coloca na direita, o DEM se desloca retoricamente para o centro, que ocuparia junto com o
PSDB, que os bolsonaristas juram que é de esquerda. Não está fácil de entender.
Por outro lado, não faz muito tempo que Maria do Rosário escreveu no Twitter que “não existe
democracia com a direita no poder”. Pode não ser a enunciação de um princípio e sim a descrição
afobada de uma circunstância, mas expressa uma posição comum em muitos ambientes de esquerda:
direita e democracia são incompatíveis. Ora, qualquer manual de teoria democrática diz que as
denominações “esquerda” e “direita” são típicas da experiência republicana, que, portanto, a direita é
uma das posições republicanas legítimas, uma típica invenção da democracia moderna. Aliás, mesmo do
ponto de vista geométrico, só há esquerda (e centro) porque há direita.
Pois Maria do Rosário nos leva a entender que não é bem assim: na democracia só cabe a esquerda,
toda direita é autocrática e toda esquerda é democrática. Geometricamente, a experiência republicana só
tem um lado, que se chama esquerda apenas por esporte. Aliás, para muitos da esquerda, nem o centro
presta, também o centro é autocracia em estado puro. Ora, essa posição é a antítese perfeita da nova
direitinha militante que tem certeza de que toda esquerda é fascista, comunista e genocida, de que há
incompatibilidade entre esquerda e qualquer valor humano, inclusive decência e democracia.
Nada há de errado na direita republicana, assim como no centro. Restabelecer a dignidade política da
direita republicana pode ser, talvez, o melhor caminho para demarcar com clareza o espaço sombrio da
direita não republicana que começa a nos sitiar. O que nos daria um patamar que permitisse ao sujeito de
direita (e eles serão cada vez em maior número) a distinguir-se com precisão da horda dos feios e brutos
que usam hoje a direita como cavalo de Troia para atacar a própria democracia.
Em qualquer lugar do mundo, um democrata de direita é o sujeito que acha que o Estado não pode
onerar a produção metendo a mão no bolso das pessoas para tirar daí a grana que usará para fazer
distribuição de renda ou prestar serviços públicos universais. Que considera que o Estado deve abster-se
ao máximo de interferir nas relações privadas do mercado ou na vida íntima das pessoas e que o cidadão,
sim, é quem deve interferir ao máximo na vida do Estado, uma vez que paga os impostos que o
sustentam. Que considera que políticas públicas compensatórias ou distributivas não podem ser
financiadas com recursos que deveriam ser usados para produzir riqueza – mas sobre isto as posições
podem ter matizes que devem ser consideradas. Enfim, um democrata de direita típico acha que a vida
social se baseia principalmente na livre competição e não em arranjos cooperativos entre as pessoas.
Como se sabe, a democracia moderna é a democracia liberal, resultado da convergência e da
combinação resultante, entre a democracia, sistema de governo baseado na premissa da igualdade entre
todos os cidadãos, e o liberalismo, sistema político e ideológico voltado para contrastar o absolutismo.
Se da democracia vieram os princípios da igualdade, da liberdade, da deliberação pública e o sufrágio
universal, do liberalismo vieram um tipo de Estado de Direito, garantias e direitos individuais, a ênfase
nas liberdades privadas. As clivagens no campo democrático, entre direita, esquerda e centro, derivam
justamente das tensões resultantes das acomodações dos dois sistemas: a democracia e o liberalismo.
A direita republicana é fruto dessa acomodação, ainda em processo, que produziu as democracias
liberais. Por isso mesmo, um direitista democrático pode até ser consideravelmente “antiestatista” e
desconfiado com relação ao poder do Estado, porque foi moldado na luta contra o absolutismo, mas não
pode abrir mão nem da liberdade das pessoas nem da igualdade política. Fora disso, é o fascismo. Assim,
quando o sujeito que se diz de direita, acredita que a igualdade política pode ser “flexibilizada” ante as
“evidências” de que uma determinada raça (sic), gênero, orientação sexual, ou qualquer outra forma
identitária em que se coloque, é superior à raça, gênero ou orientação sexual dos outros, já estamos fora
do segmento democrático. Se, por conseguinte, considera que os outros não podem ter os mesmos
direitos, garantias e oportunidades que ele e “as pessoas como ele”, continua na direita, mas republicano
não é mais.
Assim como a esquerda não é mais democrática quando abre mão das liberdades individuais, como
aconteceu seguidamente nas várias experiências históricas do socialismo, no exato momento em que, sob
qualquer pretexto, a direita despreza o combinado democrático fundamental de que todos são
politicamente iguais, de que todos têm direitos e gozam de garantias legais, de que nas liberdades civis
não se toca, a sua posição perde inteiramente a legitimidade democrática. Passado este ponto, a direita
não pode mais esperar respeito nem consideração dos democratas pelo que o direitista pensa ou pela
expressão pública do seu pensamento, simplesmente porque ele e as suas ideias não cabem mais na
democracia. E aí, sim, a sua posição autocrática é fascista, assim como a autocracia de esquerda foi
frequentemente o totalitarismo. Aliás, fascismo e totalitarismo sempre funcionam como polos de atração
para a direita e a esquerda, puxando-se para fora do círculo mais restrito da democracia liberal.
No Brasil, enquanto perdurou a indignação social ante os horrores da ditadura militar brasileira, a
vergonha ou o medo do constrangimento funcionaram como focinheira democrática a conter os
conservadores de direta e a extrema direita. Afinal, haviam chegado aos anos 1980 ainda com os dentes
sujos de sangue. Passaram, a partir daí, pouco mais de trinta anos negando que tenham tido alguma coisa
a ver com as trevas da ditadura militar, quietinhos no armário ou mudando de casca e roupa (como a
Arena que virou PDS que virou FL que virou PFL que virou DEM que agora diz que é centro) para
parecer outra coisa. Até que a noite do antipetismo chegou, em 2015, e as focinheiras foram retiradas.
A direita autoritária e autocrática chegou, paradoxalmente, na forma de uma geração de garotos de
vinte a trinta anos, que não-viu-nem-lembra. A primeira geração de garotos que chega à idade adulta no
Brasil republicano sem nunca ter vivido um período autoritário é uma geração de... autoritários, por cuja
mão a extrema direita, 10% democrática, 90% fascista, é reintroduzida como alternativa política no
Brasil. Junto com eles, legiões de feios, sujos e malvados de todas as cataduras: viúvas da ditadura que
saíram de porões onde se esconderam por 35 longos anos, autoritários de direita que já não aguentavam
perder eleições, exóticos hidrófobos, como os do bolsonarismo, que até então falavam apenas para
nichos igualmente extravagantes, e um sortido de parasitas, aproveitadores e mentes-fracas de todos os
tamanhos e formatos.
Isto não é direita democrática, amigos. Conceder-lhes o direito de se apresentarem como a direita
republicana é como permitir que Marco Feliciano e Silas Malafaia sejam identificados como a pura
expressão do cristianismo, como eles reivindicam e desejam. Cristão sou eu, eles são apenas
homofóbicos, iliberais e conservadores que usam o cristianismo para batizar a sua maldade social.
Analogamente, dá-se o mesmo com a direita. O bolsonarismo, os intervencionistas militares, os que
odeiam os Direitos Humanos, os que lutam contra direitos e reconhecimento das minorias políticas não
são “a direita” republicana, mas uma versão desfigurada e degradada de uma direita que se poderia
respeitar e que tem um lugar legítimo na democracia liberal.
coluna
“O que poderia ser a necessidade para tal revolução linguística se demonstrarmos que a linguagem
existente e sua estrutura são fundamentalmente adequadas às necessidades do novo sistema? A antiga
superestrutura pode e deve ser destruída e substituída por uma nova no curso de alguns anos, a fim de
dar livre curso ao desenvolvimento das forças produtivas da sociedade, mas como poderia uma
linguagem existente ser destruída e uma nova construída em seu lugar no curso de alguns anos sem
causar anarquia na vida social e sem criar a ameaça de desintegração da sociedade? Quem a não ser um
Dom Quixote poderia dar a si mesmo tal tarefa?” Stalin, Marxism and linguistics.
Estas são palavras de Josef Stalin a respeito de um debate que marcou época na antiga URSS. A
questão girava em torno da relação entre linguagem e revolução. Uma revolução política modifica ou
não a estrutura da linguagem? Seria a linguagem uma superestrutura transformada quando rupturas
sociais fundamentais ocorrem? Como se vê, a resposta de Stalin é negativa. A vida da linguagem passa
ao largo das transformações econômicas e sociais. Ele parece ter uma espécie de neutralidade política.
Pois destruir uma linguagem existente e construir uma nova em seu lugar só poderia implicar a anarquia
da vida social e a ameaça de desintegração da sociedade.
No entanto, de certa forma, Stalin tinha razão. Há uma anarquia, uma quebra da arché, uma
eliminação da ilusão da origem e do fundamento quando uma linguagem entra em dinâmica de ruptura.
Poderíamos partir desse ponto a fim de nos perguntarmos sobre em que condições paralisações políticas
ocorrem. Por que há momentos nos quais a imaginação política parece entrar em compasso de bloqueio,
nos quais, mesmo sendo atravessada por descontentamentos profundos, revoltas de toda ordem,
sociedades parecem não ter mais força para se transformar? Não seria exatamente porque há uma
linguagem nova que deveria emergir e, no entanto, ela não emerge, ou seja, a linguagem não aparece
como motor de transformação política?
Comecemos por uma questão de princípio. Pois nos perguntemos pelas condições de possibilidade
daquilo que podemos chamar de lutas e conflitos sociais. Essas mesmas lutas e conflitos que fornecem a
base da experiência política. Não se trata aqui de operar nesse registro imediato da presença de
experiências de sofrimento social e injustiça. Façamos uma questão ainda mais elementar, a saber, como
sociedades traduzem experiências de sofrimento social, como elas interpretam processos de injustiça.
Pois há aqui uma questão vinculada necessariamente a dimensões de “interpretação” e “tradução”.
Podemos sentir sofrimento, mas há um exercício suplementar que consiste em traduzi-lo sob a forma de
uma demanda social, interpretá-lo sob a forma de ações coordenadas. Uma sociedade é fundada, entre
outras coisas, em uma gramática de inscrição de experiências sociais de sofrimento em modos
específicos de articulação de demandas.
Insisto nesse ponto porque creio que se trata de salientar a existência de algo que poderíamos chamar
de “gramática social de conflitos”. Essa gramática é a condição de possibilidade para toda experiência
política. Tal gramática determina a forma possível das demandas e das lutas, ela configura a estrutura
dos sujeitos políticos e define as modalidades gerais de agência possível. Na verdade, tal gramática
determina os limites do que é possível e do que é impossível para uma sociedade realizar e imaginar. A
gramática define o que pode ser ouvido e percebido, o que pode nos afetar. Neste sentido, ela é similar a
uma gramática linguística, com sua sintaxe, sua semântica, seus princípios gerativos.
Chamo atenção para esse aspecto porque uma questão fundamental consiste em se perguntar sobre
qual gramática social de conflitos respeitamos, qual gramática configura a forma da nossa revolta. No
fundo, continuamos a respeitar a mesma gramática que define os modos normais de funcionamento dos
nossos vínculos sociopolíticos. Por isso, as demandas de ruptura que enunciamos tendem a reiterar os
modos gerais de determinação social. Nós falamos a mesma linguagem daqueles contra os quais nós nos
batemos. Por isso, podemos dizer que há uma gramática que se fortalece agindo em nós, agindo através
de nós, mesmo quando parecemos encenar nossa revolta e desejo de ruptura. Vladimir Maiakovski dizia
que não há arte revolucionária sem forma revolucionária. Nós podemos dizer algo semelhante: não há
política revolucionária sem forma linguística revolucionária. Forma capaz de romper a gramática social
de conflitos hegemônica em sociedades determinadas.
Para rompê-la é necessário apoiar-se naquilo que é gramaticalmente impossível, fazer circular
enunciados políticos gramaticalmente impossíveis que constituem enunciadores emergentes. Nesse
sentido, uma questão fundamental seria: o que na atualidade é gramaticalmente impossível de enunciar?
É em direção ao ato de dar corpo ao impossível que caminha a emergência dos processos de
transformação social. Pois é possível que enunciados impossíveis sejam atualmente aqueles que são falas
desprovidas de lugar, que abrem um campo de implicação genérica na qual todo e qualquer pode assumir
tal fala. Elas são falas marcadas por uma universalidade destituinte, ou seja, universalidade cuja
emergência destitui as formas atuais de presença e existência.
entrevista André Singer
“Torço pela retomada da democracia”
JOAQUIM TOLEDO JR.
Para o cientista político André Vitor Singer, professor livre-docente da Universidade de São Paulo,
explicar a passagem do “sonho rooseveltiano” de erradicação da miséria e diminuição das desigualdades,
vislumbrado por Dilma Rousseff no discurso de posse de seu primeiro mandato (2011-2014), à sucessão
de crises que culminaram no impeachment da presidente em 2016 é como montar um quebra-cabeça. “A
quantidade de eventos e de cruzamentos inesperados de atores, ações e processos é infinita”, afirma.
“Mas o meu esforço é o de oferecer elementos que poderiam levar a uma formulação teórica”, capaz de
associar a presente crise política a características mais profundas dos sistemas político e partidário
nacionais.
Em um dia repleto de eventos relacionados ao estado de crise permanente que tomou conta do país –
a prisão do ex-senador e ex-governador de Minas Gerais Eduardo Azeredo (PSDB) e a intensificação da
greve dos caminhoneiros – André Singer recebeu a Revista CULT para uma conversa sobre O lulismo
em crise: um quebra-cabeça do período Dilma (2011-2016) (Companhia das Letras, 2018), livro que
reúne artigos publicados ao longo dos últimos cinco anos e material de pesquisa inédito.
Qual a tese central de O lulismo em crise?
A tese é que o processo de impeachment remete, como uma recorrência histórica no Brasil, ao golpe de
1964. Claro que há diferenças entre um caso e outro. A mais importante é que em 2016 houve um golpe
parlamentar, enquanto em 1964 houve um golpe de Estado. No “Intermezzo histórico” do livro, chamo a
atenção para as coincidências entre o sistema partidário brasileiro nesses dois períodos. Os três partidos
principais do período 1945-64 (UDN, PTB e PSD) têm semelhanças com os partidos maiores do período
1989-2014 (PMDB, PSDB e PT) e o processo de impeachment, como o golpe de 1964, foi uma reação a
tentativas de reformas inclusivas que foram bloqueadas por uma reação conservadora. Na segunda parte
do livro, reconstruo de maneira factual os acontecimentos que levaram ao impedimento, porque do
contrário a tese não teria nenhuma base empírica. A quantidade de eventos e de cruzamentos inesperados
de atores, ações e processos é infinita. Mas o livro tem também a ambição de associar a crônica a uma
visão mais geral da política brasileira.
De que forma esse padrão do sistema partidário brasileiro e o realinhamento eleitoral de 2006, de
que você tratou em Os sentidos do lulismo (2012), se relacionam ao processo de impeachment?
O PSDB, embora não tenha sido a ponta de lança do processo de impeachment, teve papel decisivo. A
oposição ao lulismo não conseguiu vencer as eleições em 2014 e teve que interromper o processo por
uma via lateral, e acabou patrocinando o impedimento de Dilma. Ou seja, não foi capaz de mudar a
orientação do realinhamento eleitoral que incomoda a oposição desde 2006. Com a prisão do presidente
Lula, que é o principal candidato do campo lulista, nós não sabemos que caráter a eleição de 2018 terá.
Até aqui, o que podemos dizer é que houve uma mudança nas regras do jogo, tirando determinados
personagens de cena. Essas mudanças fazem que o realinhamento de 2006 fique suspenso, não por
razões estritamente eleitorais, mas porque houve uma intervenção no jogo desde fora. Mas as intenções
de voto no presidente Lula, ainda que preso, mostram a vitalidade do lulismo.
A sua avaliação do primeiro governo Dilma (2011-2014) é positiva. Quais foram as principais
virtudes do primeiro mandato?
Houve uma política consistente tanto na economia como no que a gente poderia chamar de
republicanização do Estado. Discuti a política econômica em artigos anteriores, que formam a primeira
parte do livro. Ao fazer a pesquisa específica que resultou na segunda parte de O lulismo em crise, que é
completamente inédita, eu percebi que aquilo que a imprensa chamou de “faxina” na realidade foi um
período em que Dilma desenvolveu políticas sistemáticas de remover determinados círculos clientelistas
incrustados no Estado. Dilma mexeu na área energética e em diversos ministérios até chegar à demissão
da diretoria da Petrobrás, que depois veio a ser o centro da operação Lava Jato. Não foram ações
isoladas, mas um processo relativamente longo, que começa antes da posse, quando ela decide mudar a
direção do Ministério da Saúde e compra uma briga com Henrique Eduardo Alves (MDB), que viria a
ser presidente da Câmara. O conflito com o MDB, portanto, não começa com Eduardo Cunha. Eu não
vou afirmar que esses sejam os únicos elementos que explicam o processo de impedimento. Há outras
causas, como as mudanças na conjuntura econômica mundial. Mas o que chamo de “ensaio
republicano”, e a reação a ele, é uma parte importante para entender o que aconteceu.
Quais os primeiros sinais de crise do período Dilma?
Os protestos de junho de 2013, que mudam toda a orientação da conjuntura, são o momento de inflexão.
Dilma, que vinha tendo uma conduta coerente na economia e na política, ainda que discutível, se torna
errática, adotando diferentes políticas sem coerência entre si, prejudicando a governabilidade. E isso vai
até abril de 2016, quando na prática o governo termina. Tem um epílogo que é o julgamento pelo
Senado, mas a partir do dia 17 de abril, quando a Câmara aprova a continuidade do processo de
impeachment, ela já estava fora.
Os protestos de junho dão sinal de uma quebra de expectativas em torno do projeto lulista?
Os reflexos da crise econômica mundial de 2008 afetam diretamente a possibilidade de que o projeto
lulista continue entregando uma perspectiva de ascensão social compatível com o ritmo anterior. Alguns
economistas estimavam que, para manter o ritmo de integração do segundo mandato do ex-presidente
Lula, o crescimento da economia teria que ser em torno de 4,5%, 5%. Mas cai em 2011 e em 2012,
depois tem uma certa retomada em 2013 e cai definitivamente a partir de 2014. No ciclo lulista há a
formação de uma nova classe trabalhadora, que quer continuar melhorando de vida. E a diminuição do
ritmo de crescimento econômico dá sinais de que isso não vai acontecer. Eu acho que uma parte da
explosão de junho pode ser associada a esse fenômeno. Mas é difícil saber exatamente qual parte, porque
foi um fenômeno misto.
Há um paradoxo na combinação de relativa ascensão social no período Lula-Dilma com a onda de
conservadorismo político após junho de 2013?
É um fenômeno mais antigo. A partir de 2006 você tem os setores populares em bloco com o lulismo e a
classe média em bloco com o PSDB. Esse movimento decorre de uma repulsa de setores da classe média
ao PT, movidos pelas denúncias de corrupção do chamado mensalão. De 2013 até 2016 aparece um
segundo componente, que é a profunda rejeição da classe média à ascensão dos mais pobres. Essa
diminuição das distâncias provocou uma reação pública mobilizada inédita. Parece que se revelou um
amor pela desigualdade que nós não sabíamos que existia no Brasil.
Você sugere que, mais do que um sentimento, esse amor pela desigualdade tem um papel
estrutural na conformação da sociedade brasileira.
Isso remete às teses de Francisco de Oliveira sobre o capitalismo brasileiro. O Brasil se desenvolve com
base em excedente de mão de obra, que eu chamo de subproletariado, seguindo um conceito formulado
por Paul Singer. O nosso capitalismo não é atrasado, mas se desenvolve de maneira peculiar. Há uma
desintegração que parece ser necessária ao sistema. O que considero original no livro é a tentativa de
ligar essa formulação crítica sobre o capitalismo brasileiro ao nosso sistema partidário e pensar esse
sistema como representativo das grandes contradições de classe do país. Os três grandes partidos que
existem no Brasil desde 1945, que eu chamo de partido popular, partido da classe média e partido do
interior, representam ainda que indiretamente as classes que essa formação específica do capitalismo
produz. Por exemplo, o PT, que é originalmente um partido da classe trabalhadora, acaba se
transformando num partido de tipo popular, parecido com antigo PTB, porque ele tem que lidar com esse
enorme subproletariado. No lulismo esse subproletariado ascendeu parcialmente, e talvez essa ascensão
seja uma das explicações da recente interrupção de seu projeto por um partido de classe média.
Você identifica também uma reação inesperada da burguesia nacional, que você chama de “ensaio
desenvolvimentista” do período Dilma.
O governo fez uma aposta política em uma coalizão de classes que se dissolveu. A Fiesp foi a ponta de
lança no meio empresarial do impeachment. Aparentemente, os industriais brasileiros têm mais horror ao
fortalecimento do Estado do que a políticas antiprodutivas, mais benéficas ao capital financeiro do que
ao capital produtivo, e mais benéficas aos importadores do que aos produtores em território nacional. Na
opção entre um Estado que se fortalece ou políticas voltadas para a associação ao capital financeiro
mundial e a divisão internacional do trabalho, a burguesia acaba ficando com essa segunda opção, como
ficou em 1964.
Você opta por avaliar a Lava Jato por suas consequências e não por suas intenções, e aponta tanto
o viés antilulista como os efeitos de republicanização da operação.
De um lado a Lava Jato é visivelmente seletiva, e incide sobre a política de maneira a prejudicar o PT, o
lulismo e o campo popular. Na visão dos membros da força-tarefa, o ex-presidente Lula era o centro de
todo o processo que a operação buscava combater. Isso fica claro quando o juiz Sergio Moro, em março
de 2016, faz uso de uma gravação, considerada ilegal pelo STF, para impedir a posse do ex-presidente na
Casa Civil. Com isso o juiz Sergio Moro faz política explícita, combatendo politicamente o ex-
presidente, a então presidenta Dilma e o conjunto de forças que procurava sustentar o governo em uma
situação já muito difícil. Por outro lado, a Lava Jato revelou desvios de recursos na Petrobrás que
chegam a bilhões de reais, atingindo praticamente todos os partidos representados na Câmara. As
delações premiadas da Odebrecht e da JBS provam que não há como deixar de reconhecer que a
operação revelou fatos que precisam ser explicados. Essa revelação tem um efeito republicano, também
objetivo.
Você sugere que a Lava Jato é também indício da prevalência do escândalo político-midiático na
política brasileira atual, e usa a expressão “Partido da Justiça” para criticar alguns aspectos da
operação.
O fenômeno do escândalo político-midiático assumiu uma centralidade sem a qual não se entendem as
democracias. Não só no Brasil, as páginas de política dos jornais foram tomadas por uma sucessão de
escândalos, ficando parecidas com as páginas de polícia. A isso, e não apenas no caso brasileiro, se junta
um segundo fenômeno, que é o da judicialização da política: os atores vão recorrer ao judiciário para
obter ganhos no jogo que em tese deveria ser apenas eleitoral. No caso do Brasil, a conjunção dessas
duas vertentes, o escândalo político-midiático e a judicialização da política alcançaram um patamar
talvez único em qualquer país. O que eu chamo metaforicamente de Partido da Justiça para me referir a
setores da Polícia Federal, do Judiciário e do Ministério Público, passou, em alguns momentos, a
determinar os rumos do Estado, ameaçando o sistema partidário que, com todos os defeitos, é
representativo das classes e parte fundamental de nossa democracia. O que vai ser colocado no lugar? O
punicionismo parece a única alternativa que o “Partido da Justiça” apresenta. Combater a corrupção é
necessário, mas não é possível pensar o conjunto do país a partir do combate à corrupção. Esse não pode
ser o único programa para o país porque isso não corresponde às necessidades muito mais complexas de
orientação da economia, da política social, das relações externas, da orientação da máquina pública. E os
subprodutos do punicionismo passam, por exemplo, pelo crescimento da extrema direita e pela
candidatura do Bolsonaro a presidente da República.
Fala-se em crise de representatividade no Brasil. As eleições de outubro próximo colocarão a
legitimidade do sistema partidário brasileiro à prova?
Eu tento mostrar no livro que o sistema partidário brasileiro tem componentes representativos, mas tem
um componente permanente de não representatividade, que é estrutural, que remete ao antigo PSD e ao
atual MDB. Numa sociedade tão desigual como a brasileira, mecanismos de dependência, ou
clientelismo, se reproduzem o tempo todo. Quem tem poder compra o apoio político, e o dinheiro é
talvez a forma mais acabada do poder social no capitalismo. Partidos como o antigo PSD e o atual MDB,
sustentados sobre esse tipo de mecanismo, se descolam das classes, e tornam particularizadas as relações
políticas. Ao mesmo tempo, a dualidade principal do sistema é a dualidade entre o partido popular e o
partido da classe média, que são representativos de classes. Então você tem uma mistura curiosa no
Brasil, elementos representativos e elementos não representativos. De alguma maneira tanto o PT quanto
o PSDB se renderam à lógica do MDB. Essa lógica clientelista penetrou nos interstícios do sistema e
isso fez com que uma operação como a Lava Jato questionasse o conjunto do sistema. Por isso eu penso
que todos os partidos têm que se renovar e responder ao desafio que foi colocado pelos aspectos
republicanos da Lava Jato.
Tanto PT como PSDB fizeram gestos de renovação. Já o MDB não fez essa autocrítica. Em que
pesem os problemas do MDB, ele também a seu modo expressa aspectos da sociedade brasileira real, e a
democracia funciona com base na sociedade real, e não da sociedade ideal. Como dizia o Chico de
Oliveira, as ciências sociais devem se abster de fazer previsões, porque em geral ela não é boa nisso.
Então eu espero que esses partidos sejam capazes de superar o momento difícil em que estão e de abrir a
perspectiva de uma retomada da democracia. A democracia brasileira, em que pesem as desigualdades
da sociedade, funcionou bastante bem no período 1989-2014, mas no momento está seriamente
ameaçada. Torço para que o resultado final seja de retomada da democracia, e não de retrocesso.
dossiê O movimento LGBT brasileiro: 40 anos de luta
Apresentação
RENAN QUINALHA
Em 1975, Cid Furtado, relator do projeto de emenda constitucional que legalizava o divórcio,
argumentou, em seu parecer contrário à proposta na Câmara Federal, que “desenvolvimento e segurança
nacional não se estruturam apenas com tratores, laboratórios ou canhões. Por detrás de tudo isso está a
família, una, solidária, compacta, santuário onde pai, mãe e filhos plasmam o caráter da nacionalidade”.
Esta frase do deputado arenista na discussão sobre o divórcio talvez seja uma das mais perfeitas
sínteses da moralidade alçada à política de Estado durante a ditadura que governou o Brasil de 1964 a
1985. Sua indignação com o divórcio, na verdade, remetia a preocupações muito mais profundas com a
revolução dos costumes, com a liberação sexual, com a maior presença da mulher no mundo do trabalho
e no espaço público, com a entrada em cena de lésbicas, homossexuais masculinos e travestis, com cada
vez menos pudores de assumir suas identidades sexuais ou de gênero.
Assim, a vida privada, a esfera íntima, o cotidiano e o que se fazia entre quatro paredes foram
também se convertendo em objeto da ânsia reguladora e do controle autoritário da ditadura brasileira.
Pessoas eram vigiadas cotidianamente e, em seus dossiês produzidos pelos órgãos de informações,
registrava-se, como uma mácula, a eventual suspeita ou mesmo a certeza categórica de se tratar de um
“pederasta passivo”, como se isso diminuísse ou desqualificasse a integridade e o caráter da pessoa
perseguida.
Por ser homossexual, ela perdia sua humanidade e, portanto, era considerada menos respeitável em
sua dignidade. Publicações com material erótico ou pornográfico eram monitoradas e, muitas vezes,
apreendidas e incineradas por violar o código ético da discrição hipócrita que grassava em uma
sociedade que consumia vorazmente e cada vez mais este tipo de conteúdo.
Músicas, filmes e peças de teatro foram vetados e impedidos de circular por violarem “a moral e os
bons costumes”, sobretudo quando faziam “apologia ao homossexualismo”. Na televisão, telenovelas e
programas de auditório sofreram intervenção direta das giletes da censura, que cortavam quadros e cenas
com a presença de personagens “efeminados” ou “com trejeitos” excessivos e que, portanto, com sua
simples existência, afrontavam o pudor e causavam vergonha nos espectadores.
Travestis, prostitutas e homossexuais – tanto masculinos quanto femininos – presentes nos cada vez
mais inflados guetos urbanos eram também uma presença incômoda para os que cultivavam os valores
tradicionais da família brasileira. Por esta razão, passaram a ser perseguidos, presos arbitrariamente,
extorquidos e torturados pelo fato de ostentarem, em seus corpos ou em seus comportamentos, os sinais
de sexualidade ou de identidade de gênero dissidentes.
Editores e jornalistas que se dedicavam aos veículos da então chamada “imprensa gay”,
especialmente do jornal Lampião da Esquina, foram indiciados, processados e tiveram suas vidas
devastadas, muitas vezes com o apoio do sistema de justiça, porque tematizavam e mostravam as
homossexualidades fora dos padrões de estigmatização e ridicularização que predominavam na
“imprensa marrom” até então.
Esses exemplos ilustram perfeitamente como as questões comportamentais tornaram-se objeto da
razão do Estado depois do golpe de 1964 e, sobretudo, após 1968. A sexualidade passou a ser tema afeto
à segurança nacional para os militares conforme registraram e documentaram os trabalhos da Comissão
Nacional da Verdade. Os desejos e afetos entre pessoas do mesmo sexo também foram alvo do peso de
um regime autoritário com pretensão de sanear moralmente a sociedade e criar uma nova subjetividade
afinada com os princípios binários e heteronormativos tão caros às políticas morais conservadoras.
No entanto, apesar dessas constatações, é forçoso também notar, no final dos anos 1960 e início da
década de 1970, uma ambiguidade fundamental. Ao mesmo tempo em que se perseguiam a liberdade
sexual, inúmeras boates, bares, espaços de pegação e sociabilidade entre homossexuais, geralmente em
guetos, surgiam e conviviam com a repressão do Estado nos lugares públicos. O inchaço dos grandes
centros urbanos, junto com o aumento das camadas médias no período que sucedeu o Milagre
Econômico, permitiu novas vivências e perspectivas para homossexuais que estavam já cansados de
viver dentro de seus próprios armários.
Nesse contexto, o longo e duradouro processo de transição política, que se intensificou na passagem
da década de 1970 para a de 1980, vai ser marcado por uma crescente busca de visibilidade e cidadania.
Diversos movimentos sociais e organizações da sociedade civil desempenharam um papel fundamental
na democratização do regime, lutando pelas liberdades públicas, por participação política, por justiça
econômica e pelo reconhecimento de suas identidades.
Em particular, o ano de 1978 representou um marco fundamental na redemocratização do Brasil e na
história do movimento LGBT. Isso porque, entre as diversas forças políticas que se engajaram nessas
lutas democráticas como as mulheres e os negros, merece também destaque o então chamado
“movimento homossexual brasileiro” (MHB).
Com efeito, no primeiro semestre de 1978, foi organizado em São Paulo o “Somos – Grupo de
Afirmação Homossexual”, coletivo pioneiro na articulação do MHB. Pouco tempo antes, havia
começado a circular o já mencionado mensário Lampião da Esquina, a primeira publicação de
abrangência nacional, claramente engajada nas lutas políticas travadas pela imprensa alternativa e feita
por homossexuais para homossexuais. A partir do Somos, vários outros grupos foram organizados em
diversas partes do país.
É verdade que as homossexualidades e as transgeneridades têm uma história muito mais antiga no
Brasil. Desde os tempos mais remotos, é possível identificar registros de comportamentos sexuais e de
gênero dissidentes ao padrão imposto pelo sujeito pretensamente universal (homem, branco, europeu,
heterossexual, cisgênero, católico e proprietário). Também se podem identificar, nessa longa história,
modos diferentes de ação política e de contestação por parte dos corpos e desejos “desviantes”.
Contudo, é nesse momento peculiar da recente ditadura civil-militar que emerge, em sentido
sociológico e político específico, um movimento social de luta pelo reconhecimento, pela visibilidade e
pelo respeito das diversidades sexuais e de gênero.
Desde então, o MHB tornou-se LGBT, sofrendo diversas transformações e contribuindo também para
promover importantes mudanças na sociedade e no Estado brasileiros. Proliferaram os coletivos e grupos
organizados, diversificaram-se as identidades dentro da “sopa de letrinhas” LGBT, multiplicaram-se as
formas de luta, conquistaram-se direitos, construíram-se políticas públicas, realizaram-se os maiores atos
de rua desde as Diretas Já com as Paradas do Orgulho LGBT e ocuparam-se as redes sociais e as
tecnologias com novos ativismos.
Diversas organizações do movimento deixaram de se opor diretamente contra o Estado, como ocorria
com a primeira geração do Somos ainda sob a ditadura, para buscar parcerias com ONGs (dentro e fora
do país). Emergia mais claramente, assim, uma atuação concertada para obter financiamento, políticas
públicas e direitos das diversas instâncias de governo.
Ainda nos anos 1980, conseguiu-se, por exemplo, despatologizar a homossexualidade, retirando-a da
lista de doenças do então Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps).
Buscou-se inscrever no novo texto constitucional em discussão na Assembleia Nacional Constituinte,
expressamente, a vedação à discriminação por orientação sexual em uma importante campanha. Apesar
da derrota na votação do tema, diversas legislações municipais e estaduais acabaram incorporando essa
perspectiva. Além disso, vale lembrar as inúmeras campanhas realizadas junto a veículos de
comunicação para que deixassem de representar as pessoas LGBT de forma sempre caricatural e
debochada.
Muitos desafios também foram enfrentados durante esses anos de avanço de reconhecimento. A
epidemia do vírus do HIV e da aids, que chegou a ser chamada de “peste gay” pela mídia, teve um
impacto tremendo nessa trajetória, tanto no sentido de conferir mais visibilidade e atenção públicas
quanto no de reforçar a estigmatização associando, novamente, a homossexualidade à doença. As
políticas de saúde foram reivindicações centrais nesse momento.
Sobretudo a partir dos anos 1990, profissionalizaram-se cada vez mais as entidades LGBT,
nacionalizaram-se as organizações e emergiram novas frentes de integração e também de cooptação. O
“pink money” dos homossexuais bem-sucedidos economicamente possibilitou um potencial de consumo
cada vez mais direcionado a esse público. Essa proximidade maior com poderes públicos e mercado,
para além dos guetos de outrora, traduziu-se em um padrão de cidadania classista pelo consumo,
aumentando a visibilidade de alguns setores, mas excluindo os mais pobres.
De qualquer forma, o que era impensável há quarenta anos tornou-se hoje uma realidade na vida de
muitas pessoas LGBT no país. Homossexuais já podem se casar e adotar crianças, com os mesmos
direitos dos heterossexuais. Pessoas trans podem alterar, no registro civil, o prenome e o sexo
diretamente nos cartórios, sem necessidade de cirurgia, laudos médicos ou autorização judicial. Há
coordenadorias LGBT na maior parte das instâncias de governo pelo país afora e até mesmo partidos
políticos de diferentes matizes ideológicos têm, atualmente, setoriais voltados para as questões LGBT.
No entanto, apesar dessas conquistas brevemente sumarizadas aqui, o Brasil ainda ostenta um índice
alarmante de assassinatos de pessoas LGBT por crimes de ódio. Apesar de termos a maior Parada do
Orgulho LGBT do mundo em São Paulo todos os meses de junho, somente no ano de 2017, segundo
dados do Grupo Gay da Bahia, atingimos o recorde de 445 pessoas LGBT assassinadas, ou seja, mais de
uma pessoa LGBT assassinada por dia.
Além disso, vivemos uma reação conservadora contra as conquistas desse período, com o
enfraquecimento de políticas públicas do Executivo e um Legislativo dominado por uma bancada
religiosa fundamentalista que impede o avanço das pautas sexuais e morais. Isso porque a representação
política de LGBT ainda é muito precária e insuficiente. Assim, tem cabido, na maior parte das vezes, ao
Judiciário um reconhecimento e efetivação dos direitos LGBT, o que nem sempre acontece.
Soma-se a isso uma patrulha dos setores mais conservadores que construíram um espantalho
chamado “ideologia de gênero” para defender as hierarquias sexuais e de gênero, impedindo que essas
discussões possam avançar no âmbito escolar e cultural.
Chegamos, assim, aos quarenta anos do movimento LGBT com muitos avanços e outros tantos
desafios a pensar. O dossiê que segue pretende celebrar essa história de quatro décadas de lutas à luz das
dificuldades do presente, reconstruindo alguns temas e refletindo criticamente sobre momentos
privilegiados da trajetória deste importante ator político do Brasil contemporâneo.
No primeiro texto, James N. Green, reconhecido brasilianista e militante histórico do movimento
homossexual brasileiro, analisa o surgimento do Somos e sua relação com as demais lutas políticas
fazendo um balanço desses quarenta anos. Marisa Fernandes, por sua vez, estudiosa e ativista de
primeira hora do movimento das lésbicas, reconstitui como as mulheres que desejavam outras mulheres
enfrentaram dificuldades com a homofobia dentro do movimento feminista e com o machismo do
movimento homossexual.
Já a transfeminista e pesquisadora Jaqueline Gomes de Jesus traça a história da luta por visibilidade e
organização das pessoas trans, segmento mais estigmatizado e discriminado ainda. Regina Facchini,
professora da Unicamp e ativista, examina diversas facetas do processo de criação das novas identidades
com um panorama interessante das lutas LGBT das origens até o presente. Fechando o dossiê, o leitor
encontrará o artigo de João Silvério Trevisan, escritor reconhecido e pioneiro do movimento
homossexual brasileiro, que aborda os avanços recentes e as novas frentes de luta que se vão abrindo
para a renovação deste jovem e pulsante movimento LGBT brasileiro.
Visão retrospectiva
JAMES N. GREEN
O PODER DE NOMEAR
Os nomes surgem como algo que nos dão, que a nós atribuem. Contudo, esses mesmos nomes são
transformados, com a construção que cada pessoa faz de si a partir de quem se considera ser, naquilo que
acatamos como nosso ou que mudamos para o que melhor entendemos nos representar. Assim se dá com
os indivíduos e os grupos sociais. Em geral, as crianças são chamadas carinhosamente por nomes que
lhes conferem dons, proteções ou benefícios. Isso porque tendem a ser vistas como parte relevante de
quem lhes dá o nome. O mesmo já não ocorre com povos e grupos sociais, principalmente quando estes
são vistos como “os outros”. Isso é ainda pior quando existe uma relação de poder desigual.
Um exemplo é a atribuição do genérico nome “negros”, surgido no século 10, às centenas de povos
africanos explorados durante o tráfico transatlântico, no período da escravidão moderna que fundou as
Américas sob a dominação europeia.
O termo, para além de se referir apenas às pessoas de pele escura, recebeu no século 15 uma carga
negativa, contraposta a uma suposta superioridade dos chamados “brancos”. Também as pessoas trans –
aquelas que não se identificam com o gênero que lhes foi atribuído socialmente, ou seja, travestis,
transexuais e demais pessoas transgêneras – têm uma história mais antiga do que é comum pensar.
SER TRANS NA HISTÓRIA
Anteriormente ao termo “transexual” havia “travesti” e, antes desta denominação, havia o “trans”, do
latim “além de”. Ao juntarem o trans ao “vestire”, os latinos criaram o “transvestire”, referindo-se a
quem exagerava na roupa que usava. Os italianos do século 16 popularizaram o termo, atribuindo-lhe um
sentido adicional, a partir de expressões como “Lui è travestito” (Ele está disfarçado).
A palavra “travestito”, com tal significado, foi logo adotada pelos franceses, que relacionaram o
“disfarce” a um comportamento, tido como ridículo ou falso, de homem que se veste como mulher.
Posteriormente incluída na língua inglesa, virou “travesty”. Com os usos, o adjetivo passou a ser
utilizado, pejorativamente, para identificar uma população: a trans.
Entre os povos nativos norte-americanos, pessoas que hoje identificaríamos como trans eram
chamadas de “berdaches”, atualmente mais conhecidas como two-spirit (dois espíritos), referindo-se à
ideia de que vivem papéis de dois gêneros ou que são de um terceiro gênero.
O uso do termo “berdache” é criticado por ser antiquado e ofensivo, tendo em vista que não era
utilizado pelos indivíduos aos quais se referia: ele foi imposto por antropólogos que se basearam na
palavra francesa para homem que se prostitui (garoto de programa, “michê”), “bardache”, a qual, por sua
vez, derivou-se do árabe “bardaj”, que significa “cativo, prisioneiro”.
Para os Mohave, que habitam a região do rio Colorado, no deserto de Mojave, pessoas que
identificaríamos como mulheres transexuais eram chamadas de Alyha. Tratadas com nomes femininos,
elas precisavam assumir hábitos considerados femininos, como costurar. Já os homens tidos por nós
como transexuais eram chamados de Hwame. Tratados como homens, seguiam, casados, os tabus
requeridos dos maridos quando as esposas menstruavam.
Nos relacionamentos afetivos, tanto Hwame quanto Alyha eram referidos pelos companheiros,
respectivamente, como “marido” ou “esposa”. Inclusive, as Alyha usavam a palavra mohave para clitóris
a fim de se referirem aos seus órgãos genitais, tal qual o termo “grandes lábios” para seus testículos e
“vagina” para se referir ao seu ânus, o que também é uma prática comum entre mulheres transexuais e
travestis brasileiras contemporâneas, que eventualmente aplicam a palavra “grelo” ou “grelho” para o
seu pênis.
ENTRE O FASCÍNIO E A ABJEÇÃO
Em algumas culturas, as pessoas trans foram historicamente estigmatizadas, marginalizadas e
perseguidas devido à crença na sua anormalidade. Isso porque o estereótipo do que seria “natural” é que
o gênero atribuído no nascimento seja aquele com o qual as pessoas se identificam por toda a vida e,
portanto, espera-se que elas se comportem de acordo com o que se considera ser o “adequado” para esse
ou aquele gênero. No Brasil, ocorriam bailes de “travestis” no século 19, quando marinheiros eram
recepcionados no Rio de Janeiro, dada a falta de mulheres com as quais dançar em momentos de lazer,
por homens vestidos de mulher.
O fascínio misturado com abjeção tem sido praxe na relação da sociedade brasileira com as travestis
e as mulheres transexuais. A sociedade que sempre excluiu as travestis ainda não reconhece a plena
humanidade de pessoas trans, reagindo com histeria quando da visita ao Rio de Janeiro, em 1962, de
Coccinelle, artista e cantora francesa conhecida mundialmente como estrela da trupe oficial da casa
noturna Carrousel de Paris. Ela havia se submetido, em 1958, a uma cirurgia de redesignação genital
(antigamente chamada, de forma inadequada, de “cirurgia de mudança de sexo”) e foi a primeira mulher
transexual a ter o seu casamento, com o jornalista esportivo Francis Bonnet, reconhecido, em 1960, pela
Igreja Católica. Foi preciso chamar o corpo de bombeiros para tirá-la a salvo de uma loja, na qual ela
fazia compras e era assediada por uma multidão de pessoas curiosas que queriam admirá-la de perto e
causaram enorme tumulto.
Nesse período, artistas transformistas (termo brasileiro para os artistas performáticos atualmente
conhecidos como “drag queens” e “drag kings”), igualmente referidos como praticantes do travestismo,
apresentavam-se nos palcos, como o Teatro Rival, até mesmo após 1964, com permissão da ditadura
militar, não podendo, porém, confundirem-se com as mulheres cisgêneras fora de seus espaços cênicos.
Mas sempre há frestas. A cantora e performer Divina Aloma, negra, musa do pintor Di Cavalcanti,
chegou a se apresentar no Canecão e em outros espaços que dividia com mulheres cis.
Nomes ainda hoje lembrados, como os de Rogéria, Jane Di Castro, Brigitte de Búzios, Cláudia
Celeste, Camille K. entre outras divas, surgiram nesse tempo em que as travestis vislumbravam a
possibilidade de encontrar trabalho não apenas na prostituição, mas também no campo artístico.
Atualmente, testemunhamos um rico movimento de artistas trans em busca de sua representatividade
e contra a prática histórica de se colocar atores cis para representar personagens trans, em detrimento da
existência de atores trans, que lutam pela empregabilidade mais básica.
DISCURSOS MÉDICOS E JUDICIAIS SOBRE A TRANSEXUALIDADE
O sexólogo alemão Magnus Hirschfeld, no começo do século 20, utilizou a palavra “transvestite” para
quem habitualmente se veste com roupas atribuídas a pessoas do gênero oposto, geralmente por interesse
de cunho sexual.
Radicado nos Estados Unidos, o sexólogo alemão Harry Benjamim cunhou o termo “transexual” em
1966, e criou procedimentos clínicos para identificação e atendimento a pessoas transexuais, chamados
de “padrões de cuidado”. Compreendiam-se esses indivíduos como incluídos no denominado
“travestismo fetichista”, entendido na época, especialmente por psicanalistas, como uma patologia, um
tipo de psicose, de acordo com a visão de que o gênero identificado pela pessoa “normal” estaria
submetido ao seu sexo biológico. Essa concepção reduz a transexualidade a uma patologia e as pessoas
transexuais a pessoas para as quais procedimentos cirúrgicos trariam uma “cura”.
Exemplifico como o conceito de transexual foi inicialmente recepcionado no Brasil por meio do
martírio impingido ao médico Roberto Farina, primeiro cirurgião a fazer uma cirurgia de redesignação
genital no Brasil, em 1971, em Waldirene Nogueira. Em 1978, Farina foi processado pelo Conselho
Federal de Medicina – CFM – sob a acusação de lesões corporais graves. Foi condenado em primeira
instância e somente absolvido em uma instância superior porque uma junta médica do Hospital das
Clínicas de São Paulo, onde ocorrera o procedimento, havia dado um parecer favorável à intervenção,
fazendo uso do conceito de Benjamim quanto ao procedimento como solução terapêutica.
Algumas afirmações do juiz que condenou Roberto Farina são significativas da visão do sexo
biológico como destino e persistem até os dias atuais. São elas: 1. A “vítima” de Farina não poderia
jamais ser uma mulher, porque não tinha os órgãos genitais internos femininos; 2. A cirurgia poderia
criar condições para uniões matrimoniais “espúrias”; e 3. O tratamento da “transexual, uma doente
mental”, deveria ser psicanalítico, e não cirúrgico, pois a cirurgia impediria a sua recuperação.
Como parte desse clima de intensa descriminação, a acusação chegou a afirmar que Farina queria que
“bichinhas” maiores de idade conseguissem ser operados.
Curiosamente, pouco tempo depois, já nos anos 1980, a modelo e atriz Roberta Close se tornou a
principal referência imagética para mulheres transexuais brasileiras. Nascida em uma família de classe
média que a apoiava, em 1984 ganhou o título de vedete do Carnaval Carioca e ficou nacionalmente
conhecida quando saiu na capa da edição de maio daquele mesmo ano da Playboy. A manchete da
revista revelava o estranhamento da mídia, condizente com o pensamento social vigente ante a uma
mulher tão atraente: “A mulher mais bonita do Brasil é um homem”. Isso apesar de a retratada sempre
ter se identificado como mulher, independentemente da sua anatomia genital. Em outro trecho da
matéria, evidencia-se uma visão da pessoa trans como falsa, mulher que não seria “de verdade”, no
linguajar coloquial: “Incrível. As fotos revelam por que Roberta Close confunde tanta gente”.
As convenções sociais sobre masculinidade e feminilidade então vigentes dificultavam o
entendimento de que o gênero daquela mulher independia de características genitais: muito ao contrário
do afirmado, ela não queria confundir, mas queria se revelar.
A ORGANIZAÇÃO POLÍTICA DAS PESSOAS TRANS
Em termos de organização política, em 15 de maio de 1992, foi fundada a Associação das Travestis e
Liberados do Rio de Janeiro (Astral). A data é comemorada pelo movimento trans fluminense como o
Dia do Orgulho de Ser Trans e Travesti. Entidades que surgem em seguida são a Associação das
Travestis de Salvador (Atras) e o Grupo Filadélfia de Santos, em 1995; o Grupo Igualdade, em Porto
Alegre, e a Associação das Travestis na Luta pela Cidadania (Unidas), de Aracaju, em 1999.
O começo do século 21 testemunhou o surgimento de entidades nacionais como a Articulação
Nacional de Travestis, Transexuais e Transgêneros (Antra), a Rede Trans e o Instituto Brasileiro de
Transmasculinidades. As travestis brasileiras construíram, ao longo de mais de um século, uma Cultura
do Corpo única, fundamentada na linguagem falada, constituindo-se como uma “oralitura”. O
impedimento do acesso pleno ao ensino formal é um dos fatores envolvidos nessa realidade, que obrigou
a comunidade a se proteger e transmitir seus conhecimentos fora dos métodos disponibilizados a grupos
sociais privilegiados.
Esse conjunto de saberes e fazeres tem sido historicamente invisibilizado ou apropriado por outros
grupos sociais e movimentos, devido à transfobia (preconceito contra pessoas trans) e o cissexismo
(crença na superioridade das pessoas cisgêneras) entremeados na sociedade brasileira. O Brasil registra o
maior número de assassinatos de pessoas trans por crimes de ódio no mundo.
Com a introdução dos conceitos de “transexualidade” e de “transgeneridade” no contexto brasileiro e
a popularização das teorias queer, durante as últimas décadas do século 20, vai-se consolidando um
modelo de militância focado em uma agenda de promoção de iniciativas institucionais inclusivas,
representada pela política do nome social e na ideia de visibilidade. A emergência do transfeminismo, na
segunda década do século 21, tem estimulado a discussão de temas como a autonomia do movimento
trans diante de outros movimentos sociais, a luta internacional pela despatologização, a diversidade
sexual e de gênero das identidades trans, os privilégios da cisgeneridade, o reconhecimento da infância e
adolescência trans, a reparação dos déficits educacionais, a inserção no mercado de trabalho formal e a
representatividade nas artes e na política partidária, questões essas que vão formatando pautas políticas
amplas, no complexo cenário dos novíssimos movimentos sociais.
Múltiplas e diferentes identidades
REGINA FACCHINI
A arte da revolução
HELÔ D’ANGELO
Quando assumiu o comando da recém-formada União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS),
Vladímir Lênin (1870-1924) não negligenciou um universo que muitos líderes políticos costumam tratar
com desdém: a arte. Entre 1918 e 1930, o governo revolucionário instituiu e fomentou, em Moscou e
Petrogrado (hoje, Leningrado), os Ateliês Superiores de Arte e Técnica (conhecidos em russo como
“Vkhutemas” – acrônimo de Vyschie Khudôjestvenno-Tekhnítcheskie Masterskíe), formados por cursos
universitários de artes e ofícios, como arquitetura, cerâmica e design, cuja proposta pedagógica
articulava arte e revolução. Em seus poucos anos de existência, e mesmo com recursos escassos, os
ateliês não somente contribuíram para a criação de um novo pensamento socialista, que desafiaria a até
então hegemônica estética capitalista ocidental, como também ditaram o design do século 20, chegando
a inspirar a escola alemã de Bauhaus e a arte moderna norte-americana – até serem completamente
apagados da história durante o regime stalinista, que, temendo sua prontidão crítica, os desarticulou.
“As novas pedagogias adotadas nos Vkhutemas e em toda a Rússia se originam de um processo
revolucionário que visava a mudanças radicais na educação, com o objetivo de formar e capacitar o
cidadão para o socialismo, gerando assim uma diferenciação histórica, política e ideológica em relação
ao resto do mundo”, explica o pesquisador da história do design e artista têxtil Celso Lima, cocurador, ao
lado de Neide Jallageas, da exposição Vkhutemas 1918-2018: o futuro em construção, em cartaz no Sesc
Pompeia de 26 de junho a 15 de setembro – a primeira mostra sobre o tema realizada nas Américas. Com
cerca de 250 peças, entre cartazes, fotografias e projetos arquitetônicos, a exposição tem o intuito de
“propiciar ao público uma ideia concreta e material do que seria o novo mundo sonhado por esses
artistas e designers”, segundo Jallageas, que também é pesquisadora de cinema e arte russa.
O primeiro esforço de Lênin no sentido de criar uma nova escola artística soviética veio na forma dos
“Svomas”, ateliês livres de artes fundados em 1918, dentro dos quais eram propostos, pensados e
debatidos novos meios de ensino de artes e de design. Embora ainda não fossem cursos universitários, os
Svomas se destinavam à capacitação de alunos para escolas superiores de artes, arquitetura e design de
objetos. Em 1920, a partir das experimentações dos Svomas, foram criados os Vkhutemas, cursos
superiores de artes e ofícios que tinham um funcionamento incomum para a época, marcado pela
igualdade entre alunas e alunos e por agendas inclusivas, que pensavam o fortalecimento das relações e
ações comunais, mesmo em um período de grande severidade econômica, logo após a Primeira Guerra
Mundial e os primeiros tempos de instabilidade política na União Soviética. “Os Vkhutemas colocaram o
conceito de arte de ponta-cabeça”, afirma Jallageas. “Não mais para decorar salões, casas, igrejas e
palácios, mas para movimentar o pensamento, propiciar novas formas de perceber o mundo”, completa.
Desse ambiente multidisciplinar, livre e fértil, onde Wassily Kandinsky deu aulas, por exemplo,
surgiriam grandes artistas, entre eles Varvara Stepanova, pintora e fotógrafa; Lazar Lissitzky, arquiteto e
designer, e Aleksey Shchusev, arquiteto responsável pelo projeto do mausoléu de Lênin. A liberdade que
emanava dos Vkhutemas chegou a atrair o então diretor do MoMA, Alfred Barr, que modificou a
estrutura do museu, tornando-o multidepartamental com base na experiência russa. Segundo Celso Lima,
a própria Bauhaus, aberta em 1919, teria sido inspirada nos projetos e programas de ensino soviéticos,
que o arquiteto Walter Gropius, fundador da Bauhaus, visitara em outubro de 1918. “Ambas foram
berços da modernidade no século 20, e suas linhas são uma herança poderosa para nós um século
depois”, diz o curador. Ironicamente, os Vkhutemas entraram para a história simplesmente como uma
espécie de “Bauhaus russa”.
No entanto, embora a estrutura revolucionária e livre dos Vkhutemas fosse inicialmente encorajada,
foi esta mesma característica que levou ao fim da experiência. Durante o regime stalinista, o espírito
crítico cultivado nos ateliês passaria a ser visto com maus olhos e, a partir de 1926, durante a
implantação das novas diretrizes econômicas de Stálin – o Primeiro Plano Quinquenal, que priorizava
investimentos em indústrias estruturais –, a instituição passaria por um processo de sucateamento, no
qual seus ateliês livres passaram a ser marcados pela técnica em vez da experimentação. Em 1930, a
escola foi abruptamente fechada, e os ateliês transformados em institutos independentes controlados pelo
Estado totalitário. “As riquíssimas experiências de vanguarda dos anos 1920 foram substituídas por
ideias ultrapassadas de monumentalidade e obsolescência, na construção de uma mentira épica de triunfo
do socialismo revolucionário, e a partir dos anos 1930 foram literalmente apagadas da cena histórica
russa e soviética”, resume o curador.
Ainda hoje não existe um arquivo único que agregue toda a produção dos ateliês. Após o seu
fechamento, conta Lima, muitas das obras criadas em 12 anos de Vkhutemas foram destruídas ou
perdidas, “confinadas aos porões dos museus e proibidas de serem exibidas em público”, e só ganhariam
o mundo no início dos anos 1990, com a dissolução da União Soviética. Mesmo assim, para o curador, o
interesse em dar visibilidade a empreitadas socialistas como esta ainda é pequeno, em razão do domínio
cada vez maior do capitalismo. “O importante, neste momento, é que a escola seja plenamente resgatada
em termos de conjunto e interdisciplinaridade, conforme foi concebida”, afirma ele – e daí a importância
de uma exposição da envergadura de Vkhutemas 1918-2018: o futuro em construção. Jallageas
concorda: “Propusemos essa mostra de reconstrução, aqui no Brasil, para o espaço das oficinas do Sesc
Pompeia, pensado por Lina Bo Bardi principalmente para ser uma antiescola, um antimuseu, em que arte
e cultura estejam inseridas na vivência da escola”, declara ela, sintetizando o espírito dos Vkhutemas.
estante cult
Exercícios de radicalidade
WELINGTON ANDRADE
Triste espetáculo seria dado pelos leitores deste livro, se acaso se contentassem com a posição de
espectadores. Assistindo às múltiplas formas de obediência e aceitando as que o autor considera
inaceitáveis, duplicados no papel de coadjuvantes, os leitores teriam saltado, sem perceber, da plateia
para o palco onde se vai prolongando a grande e monstruosa peça da obediência. Um dos pressupostos
de Desobedecer – assim no livro como no ato de leitura que ele implica – é que essa visão teatral da
obediência não apresenta – antes, limita-se a silenciar, a representar – exigências intransferíveis, tais
como a de tomar a palavra, ter a coragem de dizer a verdade, assumir a responsabilidade pela verdade
que se diz... Exigências demais, provavelmente, sobretudo para aqueles “atores” que só podem ser
mencionados entre aspas, pois têm não apenas injuriado e agravado a miséria dos atores de verdade,
como têm sustentado a farsa e silenciado a catástrofe de uma democracia acrítica.
Desobedecer significa, portanto, aprofundar os porquês da obediência, desenvolvendo formas
específicas do inaceitável. Significa, ao mesmo tempo, defender a ideia de democracia crítica – no caso
em pauta: uma combinação peculiar de exercícios de liberdade, igualdade e solidariedade, com o
imperativo da desobediência política. Significa, ademais, propor um tipo de iniciação à resistência ética.
Não há dúvida de que existem, no livro, muitas formas instigantes de reversibilidade, da submissão à
rebelião, da subordinação ao direito à resistência, do conformismo à transgressão, do consentimento a
uma certa acepção de desobediência civil. Nelas, os venenos de aceitação mítica e ideológica é que
permitem extrair, a cada caso, um antídoto próprio. Sucede que cada antídoto formula, por seu turno, o
problema de novos e distintos níveis de obediência-limite, ora nos âmbitos da vivência social ou
familiar, ora nas esferas da experiência econômica ou política.
Quem se aproxima do núcleo de sentido da submissão, por exemplo, nele encontra o elemento da
rebelião social do homem escravizado, assim como é chamado a considerar o nível de uma
superobediência da servidão voluntária, no questionamento e na desmistificação operados por La Boétie.
Quem se descobre na passagem da subordinação familiar ao direito de resistência, é interpelado a pensar
a experiência-limite da filha de Édipo, Antígona, nas leituras de Hegel, Hölderlin, Lacan, George
Steiner. Quem ultrapassa o conformismo, aproxima-se do ponto de transgressão em que é preciso
interrogar, com Hannah Arendt, o processo Eichmann, que “continua a obcecar a reflexão ética
contemporânea porque põe em movimento a dialética vertiginosa da responsabilidade e da obediência”;
perguntar-se também, com Günther Anders, pelo processo da modernidade técnica como fermento do
totalitarismo, levantando a questão dos efeitos éticos da extensão da máquina. “Fragmentação das
tarefas, segmentação das atividades, o mundo técnico-burocrático fabrica indivíduos moralmente
anestesiados”.
Depois da submissão, da subordinação e do conformismo, quem explorar o quarto núcleo de sentido
da obediência, onde cada um obedece e consente como cidadão, chegará ao ponto de inflexão em que a
política é entendida como articulação racional de um “querer-viver juntos”. Percorrendo os modelos de
Hobbes, Locke e Rousseau, diremos com Frédéric Gros que, se há contrato social, “somos nós que
queremos fazer política juntos”; mas se o contrato em causa não for fraudado, diremos que se trata de
fazer, sobretudo, “comunidade política”. Os movimentos de desobediência civil – os coletivos de
contestação, não os protestos atomizados – estão convidados a acompanhar o autor no capítulo “A
caminhada de Thoreau”, no qual se apresenta não somente a vida selvagem de um “ícone da ruptura” ou
de um “símbolo da subversão”, mas a caracterização da ideia mesma de desobediência: como irredutível
a casos de objeção de consciência (Arendt, Rawls); como possibilidade de encontrar na desobediência “o
princípio de uma conversão espiritual” (Tolstoi, Gandhi, Martin Luther King); como ato de um “sujeito
indelegável”, aquele cuja fórmula é resumida exatamente pelo próprio Thoreau (“Se não for eu, quem o
será em meu lugar?”) e cuja réplica ecoa há muitos séculos, na voz de Hilel, o Ancião: “Se eu não for
por mim, quem o será? Se eu for só por mim, quem serei eu? E se não agora, quando?”.
Democracia transcendental, portanto? Neste passo a resposta seria “sim”, conquanto atravessássemos
o pensamento de Kant e a releitura de Foucault, sem perder de vista o que remanesce de subversivo na
forma ambivalente da recusa socrática. Pois é justamente essa luz grega que o livro sugere e vai
reencontrar na lição de Merleau-Ponty: “Sócrates tem uma maneira de obedecer que é uma forma de
resistir”. O passo seguinte consiste, agora, em dar a palavra ao autor: “o demônio socrático permite
abordar o que eu chamo de ‘dissidência cívica’. Entendo por isso uma desobediência que não é
forçosamente sustentada pela consciência nítida de valores transcendentes, pela convicção, esclarecida
por um sentido moral superior, de leis que dominam a humanidade e o tempo. O dissidente faz sobretudo
a experiência de uma impossibilidade ética. Ele desobedece porque já não pode continuar a obedecer”.
Diferentemente do objetor de consciência, que desobedece em nome de uma obediência superior, o
dissidente cívico é aquele que “faz a experiência súbita do intolerável e se conscientiza. Ele experimenta
uma impossibilidade que o obriga à ruptura: não é possível continuar! O ‘não’ da dissidência cívica é um
não em dobro: impossível não fazer. O dissidente não pode continuar a não dizer e se calar, fingir não
saber, não ver. Essa dupla negação da dissidência não é dialética, não produz a afirmação como
realização e síntese. Ela provoca ruptura, estrondo”.
Se nunca é cedo demais para ser livre, se nunca é tarde demais para fazer a coisa certa, a prova dos
nove dessa negação não dialética se daria no caso da desobediência ao poder formal
(pseudoinstitucionalidade governamental, jurídica e parlamentar), assim como se daria no caso não
menos concreto do poder real (a economia política em exercício). Um hegeliano em dissidência poderia,
de resto, apreciar esta última passagem do veneno ao antídoto. Em suma: manda quem não deve,
desobedece quem tem juízo.
livros
Mário de Andrade escreveu Macunaíma em seis dias. Em dezembro de 1926, no meio de abacaxis,
mangas e cigarras da chácara da Sapucaia, na cidade de Araraquara, despejou no papel a história de um
índio negro nascido na floresta amazônica que atravessa o país em busca do seu amuleto roubado por um
gigante comedor de gente. Uma jornada que Oswald de Andrade chamou de “nossa Odisseia” e que, 90
anos depois da primeira publicação, se atualiza diante das discussões contemporâneas no âmbito das
identidades.
Isso porque, como personagem e signo, “Macunaíma tem uma maleabilidade que permite que as
mudanças epistemológicas sobre o Brasil ainda estejam representadas nele”, diz a escritora e crítica
literária Noemi Jaffe. Grande obra do Modernismo, Macunaíma tornou-se representação do brasileiro
num momento em que, na literatura e nas artes, se formulavam novas concepções do que seria uma
identidade nacional distante das idealizações do Romantismo do século 19, que projetava nos indígenas
um símbolo heroico de nacionalidade.
“Hoje, a ideia de identidade se ampliou; fala-se muito em identidade feminina, negra, trans e assim
por diante, já não se comporta mais apenas uma identidade tão abrangente quanto a ‘brasileira’”, afirma
Jaffe. “Mas o que Mário propõe são múltiplas identidades concentradas em uma figura mítica. Como não
é uma representação verossímil do brasileiro, Macunaíma ainda pode ser uma alegoria, mesmo com essa
nova ideia de identidade.”
Para Telê Ancona Lopez, professora emérita do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, “o
protagonista continua no brasileiro, tanto nos descaminhos de seu comportamento, quanto em
determinadas propostas suas que se revelam pertinentes, como a valorização do ócio criador, a crítica à
reificação da vida, ao domínio da máquina”. “O herói sem nenhum caráter é o protagonista de uma busca
que se realiza no bojo das contradições de seu país, contradições que tanto ele vive, como denuncia”,
afirma.
Nascido de uma índia tapanhumas “no fundo do mato-virgem”, o herói de Mário de Andrade é ora
índio negro, ora branco. O personagem surge da bricolagem dos muitos mitos, lendas e contos indígenas
lidos e anotados pelo autor ao longo de muitos anos. Sua trajetória começa a ser rascunhada nas margens
do segundo volume de Vom Roraima zum Orinoco, obra do etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg. É
ele quem registra, em 1917, o mito de Makunaima, herói dos povos pemons, habitantes do norte da
América do Sul, entre Brasil e Venezuela – e que, etimologicamente, significa “o grande mau”.
“Só que o Macunaíma de Mário não é ‘o grande mau’”, observa Noemi Jaffe. “Ele tem um lado bom,
inocente, muito fascinado pelas coisas. Mas é muito egoísta, infantil, tem ‘corpo de adulto e cabeça de
piá’, praticamente como o Brasil.” O protagonista tem preguiça, mente, dissimula, trai, transforma-se em
formiga, pé de urucum e em um “lindo príncipe” para conseguir o que quer. É um “herói sem nenhum
caráter”, mas não só pela falta de supostos valores morais, como também pela ausência de características
sólidas, como aponta a leitura do crítico José Miguel Wisnik. O próprio Mário de Andrade escreveu, no
primeiro prefácio da obra, que “o brasileiro não tem caráter porque não possui nem civilização própria,
nem consciência tradicional”.
Professora titular de Estudos Brasileiros na Universidade de Manchester, no Reino Unido, Lúcia Sá
afirma que a capacidade de transformação e a criatividade de Macunaíma não devem ser vistas numa
chave maniqueísta, positiva ou negativa, entre o bem e o mal. “Como todos nós, ele é cruel, sádico e
covarde, mas também pode ser herói. Vejo Macunaíma como uma figura que transforma a sociedade
brasileira e nos mostra a beleza das tradições intelectuais indígenas e de outras tradições que formam a
cultura brasileira”.
No sétimo capítulo, por exemplo, ele narra pela primeira vez no romance brasileiro um ritual das
religiões afro-brasileiras quando Macunaíma, frustrado por não conseguir reaver sua muiraquitã e a fim
de se “vingar” do gigante Piaimã, vai ao Rio de Janeiro para se socorrer em “Exu diabo em cuja honra se
realizava uma macumba no outro dia”. “Num momento em que pajés são acusados de satanismo e
terreiros de candomblé são queimados, o transformador trickster Macunaíma tem muito a nos ensinar em
termos da pluralidade da nossa cultura numa época em que se tenta uma homogeneização tão grande”,
conclui Sá.
A professora afirma que, em termos de forma e conteúdo, a obra é o resultado do trabalho de um
escritor para quem o ato da escritura não se manifestava como simples exercício do “mito da
originalidade”, mas como recriação, pesquisa e composição de uma verdadeira “colcha de retalhos”.
“Macunaíma se constitui de muitas origens e histórias, o que torna a obra perfeitamente adequada para
esse momento em que o que vemos é justamente uma multiplicidade de identidades”, diz.
A cantora e compositora Iara Rennó lançou em 2008 um disco inspirado na obra de Mário de
Andrade, Macunaíma Ópera Tupi. “O personagem representa todas as questões que estamos debatendo
ainda hoje, a questão indígena, negra, a opressão branca em cima de outras culturas e os reflexos
socioeconômicos disso”, afirma. Dois anos depois, o álbum se desdobrou em uma “ópera-baile” montada
no Teatro Oficina. “No corpo de baile, os ‘macunaímas’ eram como marginais, menores abandonados,
porque o protagonista de Mário também representa essas pessoas que estão fora do sistema, os
oprimidos”.
Macunaíma estabeleceu uma rica e variada interlocução com o cinema, no filme homônimo de
Joaquim Pedro de Andrade, de 1969; com o carnaval, no samba-enredo da Portela, em 1975; com o
teatro, na antológica montagem dirigida por Antunes Filho, à frente do então grupo Pau Brasil, em 1978.
Na área da crítica literária, deu origem a inúmeros artigos, ensaios e livros, entre os quais se destacam
Morfologia do Macunaíma (1973), de Haroldo de Campos, e O tupi e o alaúde: uma interpretação de
Macunaíma (1979), de Gilda e Mello e Souza. Ao completar nove décadas, o título que constitui uma
das invenções formais mais importantes do modernismo brasileiro continua com muita disposição para
estabelecer ainda outros diálogos.
colaboraram nesta edição
James N. Green é doutor em História Latino-Americana e professor de História e Estudos Brasileiros na
Universidade de Brown
Jaqueline Gomes de Jesus é doutora em Psicologia Social pela UnB e professora do Instituto Federal
do Rio de Janeiro
Joaquim Toledo Jr. é doutor em Filosofia pela Unicamp
João Silvério Trevisan é escritor, jornalista, dramaturgo, tradutor e um dos fundadores do Lampião da
Esquina
Marisa Fernandes é mestre em História Social pela USP e pesquisadora do Coletivo de Feministas
Lésbicas
Regina Facchini é doutora em Ciências Sociais pela Unicamp, professora de Antropologia Social na
Unicamp e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu
Renan Quinalha é doutor em Relações Internacionais pela USP e professor de Direito da Escola
Paulista de Política, Economia e Negócios da Unifesp
Silvio Rosa Filho é doutor em Filosofia e professor da UNIFESP