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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Escola de Comunicações e Artes

“A fotografia científica e a ampliação das


fronteiras do visível”

Cristina Lasaitis
nº USP 3669606

Trabalho apresentado à disciplina

Técnica e Estética da Fotografia

São Paulo
2014
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Inicio esta dissertação afirmando que meu objetivo não é furtar-me ao tema proposto –

"fotografia: coisa que não existe" – e sim dar um enfoque materialista a esse tema de

grande abstração no intuito de refletir sobre a natureza e o papel da fotografia como

mecanismo de ampliação das fronteiras do visível, inclusive por meio da produção de

imagens de coisas que não existem no senso convencional.

O que é uma fotografia?

Resgatando sua etimologia grega, o termo significa literalmente "desenhar com

luz" e define a técnica de produção de imagens por meio de exposição luminosa e

gravação numa superfície sensível. Em outras palavras, fotografia é um pacote de

informações visuais distribuídas de modo organizado em uma superfície bidimensional

e armazenadas em um suporte físico ou digital. A informação a ser armazenada numa

fotografia depende do arranjo espacial das unidades constituintes (p.ex., pixels, no

suporte digital; grãos de prata, no suporte material).

A luz é um feixe de fótons. No aspecto físico, a imagem capturada pela câmera é

formada pela luz que atravessam a objetiva e sensibiliza uma superfície de gravação.

Fótons possuem uma natureza dupla de onda e partícula. Enquanto onda

eletromagnética, a luz se espalha pelo meio, não pode ser estacionada; ela viaja

obrigatoriamente pelo espaço. Desse modo, não é exagero dizer que a fotografia foi uma

invenção técnica que conseguiu cristalizar uma informação que é fugaz em sua natureza

original.

Em sua materialidade a fotografia é apenas um arquivo ou aglomerado de

informação. Apenas o processamento desses dados por um mecanismo capaz de

atribuir-lhes significado é que torna possível a interpretação iconográfica da imagem.

Pode-se dizer, portanto, que a fotografia só existe em nossa mente (e talvez em

programas de computador capazes de reconhecimento de padrões visuais). Pensando

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assim, a fotografia é antes um entendimento do que uma coisa no sentido material: ela

depende do olhar que a decifra.

O que entendemos por "luz" está atrelado unicamente à capacidade da nossa

visão. Mas se levarmos em conta as propriedades físicas, existe uma continuidade entre

luz e outras radiações do espectro eletromagnético. Tradicionalmente temos considerado

fotografia apenas o registro feito a partir da luz visível (que recai no comprimento de

onda entre 400 e 700 nanômetros). Mas há também a possibilidade de optarmos por

uma definição mais abrangente ao admitir o registro de outras radiações não visíveis

convertidas em informação visual na etapa de codificação ou armazenamento em um

suporte. Se assumirmos como prolongamento do nosso olhar instrumentos e técnicas de

registro de imagem a partir de radiações em comprimentos de onda maiores

(infravermelhos e micro-ondas) ou menores (ultravioletas, raios-x e raios-gama) que o

da luz visível, então uma chapa de raio-x dos pulmões, o espectro de radiação

ultravioleta de uma nebulosa planetária ou a imagem de um vírus em um microscópio

eletrônico podem ser entendidos como fotografias também.

Imagens eternas daquilo que já não existe

A segunda lei da termodinâmica (em uma enunciação resumida: "a quantidade

de entropia de qualquer sistema isolado termodinamicamente tende a incrementar-se

com o tempo, até alcançar um valor máximo") determina que o universo como um todo

caminha irreversivelmente para um estado de desordem. Uma das implicações dessa lei

é que nenhuma informação pode ser armazenada para sempre porque todos os suportes

materiais são perecíveis.

Em uma escala de tempo cosmológica, toda a matéria do universo irá

desintegrar-se. A luz, no entanto, é eterna: enquanto não encontrar anteparos continuará

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viajando pelo espaço. É por essa característica que hoje somos capazes de fotografar os

objetos mais antigos que já existiram.

Entre os anos de 2003 e 2004 o telescópio espacial Hubble fez uma varredura de

um trecho do céu em um prolongado ciclo de exposição que resultou na imagem

conhecida como Hubble Ultra Deep Field (figura 1), com uma riqueza de detalhes tão

grande que foi possível detectar algumas das primeiras galáxias do universo em

formação. Aqui, a medida de distância no espaço também revela a antiguidade desses

corpos. A galáxia mais velha já registrada – a z8_GND_5296 – está a 13,1 bilhões de

anos-luz de distância no passado.

Figura 1 – À esquerda, a fotografia do Hubble Ultra Deep Field apresenta mais de dez

mil galáxias com idades que variam de 700 milhões a 10 bilhões de anos após o Big

Bang. À direita, ampliações de pequenos trechos da imagem maior mostram aquelas que

são as galáxias mais antigas já detectadas e algumas das primeiras a existir.

Fonte: NASA, ESA; Bouwens R.; Illingworth, G.

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Essa fotografia histórica nos oferece uma oportunidade única de observar um

universo-bebê povoado de galáxias primitivas que já não existem há bilhões de anos,

embora sua luz esteja destinada a se perpetuar pelo espaço e pelo tempo.

A imagem do objeto que a luz nunca viu

Outro aspecto impressionante sobre a não obrigatoriedade de um objeto para a

produção de uma imagem se deu por uma invenção recente; uma técnica que permite a

produção de imagens por entrelaçamento quântico desenvolvida por uma pesquisadora

brasileira na Academia Austríaca de Ciências.

Em seu experimento, Gabriela Lemos (2014) produziu pares de fótons

entrelaçados e os enviou em direções diferentes. Um feixe de luz passou por uma

pastilha de silício vazada com o recorte de um gato (em homenagem ao gato de

Schrödinger). O segundo feixe de fótons não passou pela pastilha nem tinha como se

comunicar com o seu par. Ainda assim, o segundo feixe sensibilizou o detector com a

imagem fantasmagórica do gato (figura 2) – um desenho que essa luz nunca "viu".

O entrelaçamento quântico independe da velocidade da luz, isso significa que o

gato de Gabriela e o detector poderiam estar distantes, em lugares diferentes do

universo, e, ainda assim, o que ocorresse ao primeiro feixe de luz ocorreria

sincronicamente ao segundo. Esse aspecto da mecânica quântica Einstein chamou de

ação fantasmagórica à distância.

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Figura 2 – Duas imagens do experimento de Gabriela mostrando interferências

construtiva (gato aceso) e destrutiva (gato apagado) na sobreposição dos feixes de

fótons entrelaçados.

Fonte: Lemos et al., 2014.

Embora a técnica de imageamento quântico possa parecer, em princípio, distante

da ideia de fotografia, ela desvela uma faceta da natureza que contribui para a presente

discussão. O gato de Gabriela demonstra que é possível obter a imagem de um objeto

que existe, mas nunca esteve ali: uma não fotografia.

Em conclusão, o desenvolvimento de tecnologias de aquisição de imagem

expandem os limites do mundo visível para além dos limites convencionais de tempo e

espaço, redefinem a percepção de nossas fronteiras materiais, e desse modo ampliam

não apenas nossa visão, mas nosso olhar perante a realidade.

Por maior que seja sua assumida frieza, a fotografia científica não é um departamento

da atividade humana avesso a toda fruição estética, pelo contrário, ela é capaz de nos

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despertar um senso de deslumbramento, uma nítida percepção da beleza inerente a uma

natureza que nos parece indiferente, impessoal ou até hostil.

Se a fotografia depende do olhar que a aprecia, talvez o mesmo possa ser dito

sobre todo o universo exterior, que apenas pode ser percebido, mensurado e significado

por uma consciência. De sua posição de lugar material, o universo inteiro fica

redefinido como um entendimento. O poder do olhar nos eleva à mais imperiosa das

missões: a de dar existência ao cosmos – como os olhos que o universo engendrou para

contemplar-se e, talvez, entender-se.

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Bibliografia

Lemos, G. B., Borish, V., Cole, G. D., Ramelow, S., Lapkiewicz, R., & Zeilinger, A..
Quantum Imaging with Undetected Photons. arXiv preprint arXiv:1401.4318, 2014.
[http://arxiv.org/pdf/1401.4318]

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