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Olá Fausto!

São tantos giros, estou um pouco tonta de ressaca semiótica, cheia de interrogações
internas e não me ocorre nenhuma metáfora machadiana para começar – ou terminar
nossa rodada dialética; a tentativa ambiciosa de analisar esse parque de diversões
desgovernado que é a realidade sem que desçamos do carrossel. E vamos girando... a
paisagem corre alucinada antes que eu consiga registrar e processar. Ao final de cada
volta, a cena se repete em um lampejo, mas está tudo diferente e eu perdi o vínculo
causal. Percebo que o mundo gira alguns hertz acima da minha capacidade de
processamento, minha CPU errática e cambaleante. Fico à deriva e não é à toa que me
sinto meio autista. Nós escritores fingimos muito bem que entendemos a realidade, e ela
não deixa de ser parente da ficção. Contamos histórias para dizer um monte de mentiras
enquanto falamos outro tanto de verdades...

O que tentamos fazer nesta troca de cartas? Começamos da nota de rodapé de uma
agitação passageira e evoluímos para a especulação cósmica de tudo o mais, seguindo
esse impulso natural de ir do micro ao macro; buscamos correlações entre o trivial e o
universal, o que não deixa de ser uma forma de buscar sentido em todas as coisas – ou
denunciar a falta de sentido, ou ainda, ironizar a própria busca por significados. Da
minha parte, não por desdenhar da busca, mas porque concordo com você quando disse
que existe beleza no caos. A vista é bonita aqui do carrossel, de onde vejo tudo e não
entendo nada.

E eu me pergunto: chegamos a alguma conclusão? Já roí as unhas até a carne


ponderando em como extrair uma conclusão do vórtice de pensamentos e devaneios
desta série de correspondências, porque, de todas as linhas de tendência que eu e você
traçamos, tudo o que vejo adiante é um emaranhado de estradas, a conduzir, através da
névoa e poeira, a outros paraísos fantasmagóricos; outras utopias, distopias... e o final
deve ser uma não topia. Passamos pela idade do bronze, do ferro, do aço, das trevas, das
luzes, do petróleo, do silício... e nunca perdemos de vista a Idade do Ouro: a ideia
platônica de paraíso terrestre. A mesma ideia que guia nossas melhores intenções como
seres humanos.

Seres miméticos, do modo como você descreveu. Somos inventivos, engenhosos


falsificadores em nosso amadorismo recriante. Peritos em gambiarras.

Você me perguntou: será que aguentaríamos viver conectados por telepatia, entre
pensamentos e emoções alheios e tumultuados? Talvez a era da telepatia tenha
começado na semana passada. Soube da notícia que uma equipe de cientistas operou a
primeira conexão cerebral entre duas pessoas, via internet, mapeando o cérebro de um
por ressonância e transferindo informação para o outro por meio de estimulação
magnética transcraniana. Por enquanto, serviu para uma pessoa mexer o dedinho da
outra, mas daqui a algum tempo, quem sabe, uma gambiarra talâmica nos faça
mergulhar no oceano palpitante de terrores e prazeres de uma mente humana mais
primitiva, e ao mesmo tempo alienígena, dessa criatura temível: o outro. Nenhum safári
deve ter sido tão perigoso.
Ainda no meu giro por notícias da semana, há mais uma que eu gostaria de comentar.
Astrônomos brasileiros descobriram uma estrela idêntica ao nosso Sol, só que mais
velha. Estudá-la poderá nos mostrar como será a evolução do nosso próprio sol. O que
sabemos, por enquanto, é que ele irá se aquecer, empurrar a zona habitável para além de
nossa órbita, e depois, num surto de inflação vermelha, devorar o que restou do nosso
planeta. Daqui bilhões de anos, obviamente. Na prática, não muda nada, só reforça o
memento mori em escala macrocósmica. Não temos nenhum plano de fuga. Não existe
saída de emergência da Terra. Aqui estamos encurralados, como o tratador preso na
jaula dos leões, desfrutando a companhia uns dos outros (ou o inferno mútuo, Sartre
diria). Por isso eu quis citar a não topia como última etapa da civilização – um tempo
em que não há mais futuro possível a se almejar.

Feras humanas – seremos isso mesmo? Estive dando uma olhada em um livro do Steven
Pinker, The Better Angels of Our Nature,onde ele propõe que a história humana pode
também ser recontada como a história da contenção da violência. Ele definiu seis
períodos dessa história: processo de pacificação (da anarquia tribal às primeiras
civilizações), processo civilizatório (da Idade Média até a Moderna, quando houve
grande declínio em homicídios), revolução humanitária (Idade da Razão, com a
abolição da escravidão), longa paz (durante a Guerra Fria, momento de poucos conflitos
diretos), nova paz (pós-Guerra Fria, redução das guerras civis e genocídios) e revolução
dos direitos (dos anos 1950 até a atualidade, com as conquistas dos direitos das minorias
e uma crescente repulsa coletiva aos preconceitos e à discriminação). O argumento do
Pinker é que o declínio da violência é resultado de mudanças biológicas e cognitivas
que levaram à sofisticação do nosso senso moral, e que, apesar de não termos garantias
de que essa paz será definitiva, vivemos o período mais pacífico da história da
humanidade. Pode ser difícil para paulistanos e cariocas acreditarem nesse diagnóstico,
enfiados que estamos no vale tudo das nossas metrópoles, mas creio que a afirmação
dele se fundamenta, de algum modo, no distanciamento acadêmico que coloca tudo em
perspectiva para demonstrar que... veja só, evoluímos!

Isso significa que podemos até nos arriscar a sermos um pouco otimistas. Antes que este
parque de diversões incendeie, antes que vivamos em rede telepática, antes que as
máquinas ganhem consciência e assumam o controle, antes que a Terra seque e o Sol a
devore, talvez empreendamos mais um passo em direção àquela Idade do Ouro
inalcançável, quando, movidos por um senso mais amplo de alteridade, seremos um
pouco menos o inferno alheio.

Além do grande SERÁ que aqui deixo, com todas as perguntas não respondidas e
irrespondíveis, minha conclusão para uma síntese da nossa troca de correspondências,
Fausto, é o canal aberto pela troca do conteúdo das nossas tempestades sinápticas. O
movimento de ideias em via dupla. Alteridade. E os desdobramentos futuros desta
conexão. Por exemplo, aquele livro que vamos escrever. Vamos?

Foi um grande prazer trocar estas correspondências com você, Fausto, obrigada por me
convidar!
Nos vemos por aí, ou por aqui. Nos vemos.

Grande beijo,

Cristina Lasaitis

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