Você está na página 1de 8

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Escola de Comunicações e Artes

“Cada vitela tem o seu dia de ver o machado sobre a nuca:


O abuso sexual de crianças e as relações de poder nas
narrativas de Raul Pompeia”

Cristina Lasaitis
nº USP 3669606

Trabalho apresentado à disciplina

Cultura e Literatura Brasileira: Império

São Paulo
2014

1
Os estudos sobre as obras de Raul Pompeia geralmente enfocam o uso da sexualidade

como meio de denúncia de uma ordem social perversa e moralmente degenerada. Ivan

Teixeira (2012) comenta que nas três narrativas longas do autor é explorado o sexo

entre pessoas com experiência e idade muito diferentes. Proponho levar a discussão um

passo adiante e observar que nas três obras está presente o tema do abuso sexual

envolvendo crianças. Dada a escassez de abordagens específicas desse aspecto de sua

obra, decidi torná-lo o objeto de minha análise e examinar como os abusos em questão

colaboram para a finalidade de denúncia social.

O estupro tem sido ao longo da história da humanidade um comportamento

hierarquizante, ou, mais especificamente, um modo de afirmação do poder hegemônico

e da divisão de papéis no repertório social. Por meio da força, da coerção, da violência

física ou psíquica, aquele que estupra exerce seu poder dispondo autoritariamente do

corpo de outrem. Podemos estabelecer como centro desta análise, portanto, a ideia de

que o abuso sexual é antes uma demonstração de poder fortemente simbólica, para a

qual o interesse sexual é apenas uma via ou mesmo um fator desnecessário. No domínio

das narrativas de Raul Pompeia, é bastante plausível que o autor – que era sabidamente

um homem sensível às injustiças sociais – tenha intencionalmente utilizado o tema em

suas situações ficcionais como uma forma de desnudar uma das facetas mais perversas

da sociedade de seu tempo e da natureza humana.

O tema do rapto surge logo em sua obra de estreia, Uma Tragédia no Amazonas,

de 1880. O chefe de uma quadrilha de bandidos embrenhados na selva amazônica

cobiça para si a menina órfã de onze anos, Rosalina, adotada pela família do

subdelegado Eustáquio, e quer valer-se dos frequentes ataques do bando à casa da

família para obter o que deseja, como expressa na ordem:

2
“– (...)Tomarás a tua faca e darás cabo da moça. Quanto à menina, tu hás de agarrá-la e
trazerma. Estás ouvindo?
– Trazer para que? perguntou o negro, encarando de modo singular o seu chefe.
– Para... Não é da tua conta!”

Já em 1882, com a publicação em folhetim de As Joias da Coroa, a repetição do tema se

dá em uma dimensão menos ingênua. O enredo da novela é construído em torno das

negociações de um grupo de criados para "vender" a menina Conceição, jovem de 14

anos, supostamente órfã, para a satisfação dos desejos sexuais do Duque de Bragantina.

O destino da menina é visto como "vantajoso" pela própria família adotiva, como

demonstra o trecho que se segue:

“– (...) Quanto à menina... O que vai sofrer? As doces torturas que nós sabemos e depois
levar a vida tranquila de quem tem certeza de ser amparada em qualquer dia de
necessidade. (...) Um belo dia, quando estiver sonhando alegrias nos cômodos agasalhos
que lhe reserva Manuel Pavia, será visitada por uma sombra... Conversarão durante
várias entrevistas, etc., etc. Há de ser bonito... garanto que a Conceição não chorará.”

Notoriamente, as personagens vitimadas nessas duas obras são muito parecidas. Ambas

são meninas de beleza angelical, muito jovens, exemplos de docilidade e inocência – e

também de impotência, tendo em vista que a mulher e a criança são as partes mais

vulneráveis da sociedade. Suas caracterizações idealizadas, somadas à aparência de

fragilidade, tornam essas personagens altamente empáticas. Os nomes não foram dados

ao acaso. Rosalina guarda relação simbólica com o roseiral que cerca a casa do

subdelegado Eustáquio, onde vive; a menina pode ser entendida metaforicamente como

uma rosa a ser roubada do meio onde pertence. Já Conceição é uma alusão à Imaculada

Conceição, ou seja, o dogma católico sobre a concepção da Virgem Maria sem a mácula

do pecado original. A ironia do nome transparece mediante a revelação da origem da

menina, que é fruto de um estupro; sua própria mãe fora uma jovem violentada pelo

Duque de Bragantina.

3
O abuso sexual de meninas é o fio condutor dos acontecimentos de ambas as

obras. A diferença fundamental é o direcionamento dado em As Joias da Coroa, em que

há o intuito de fazer uma sátira crudelíssima da família imperial brasileira. O

personagem do Duque de Bragantina, retratado como um molestador de crianças

contumaz, é uma caricatura explícita do imperador D. Pedro II.

De modo curioso, no universo dos personagens o horror ao crime arquitetado se

deve mais pelo incesto (porque Conceição é filha bastarda do Duque) do que pelo abuso

sexual em si. Dada as posições sociais dos personagens envolvidos, o estupro chega a

ser entendido como um direito.

Ademais, as preocupações dos criados e do Duque de Bragantina recaem na

possibilidade da vítima opor resistência ao estupro:

“– Não se arreceie... ninguém resiste facilmente ao senhor duque... Ele tem um olhar
que penetra e imobiliza... Não fala muito... Fitando, ele faz mais do que falando... As
crianças são tímidas em geral... E a Conceiçãozinha é um pouco criança ainda.”

A possibilidade de a menina resistir ao Duque seria uma subversão do status quo: a

mais impotente das criaturas em desafio à vontade do mais poderoso dos homens. De

fato, a ordem social não é contrariada, e o coito só é impedido por uma personagem

feminina em igualdade de condições com o Duque: a Duquesa de Bragantina, que se

vale de sua autoridade moral e invoca a lei do costume (“Pede perdão a tua filha.”) – no

caso, um costume em que o estupro é tolerado, mas o incesto é um crime capital.

A temática do abuso sexual também aparece mais tarde, em O Ateneu, com

matizes diferentes, mas igualmente definidor de papéis sociais de

dominação/submissão. No internato existem, com efeito, dois sexos, como é explicado

pelo personagem Rebelo:

4
“Os gênios fazem aqui dous sexos, como se fosse uma escola mista. Os rapazes tímidos,
ingênuos, sem sangue, são brandamente impelidos para o sexo da fraqueza; são
dominados, festejados, pervertidos como meninas ao desamparo. (...) Faça-se homem,
meu amigo! Comece por não admitir protetores.”

Mais adiante o narrador-personagem Sérgio irá conhecer a verdade dessa definição,

conforme se vê desamparado no ambiente hostil, desejando proteção. Da amizade com

Sanches, Sérgio é a princípio beneficiado por uma troca de favores, mas paulatinamente

a relação degenera para uma situação em que ele se vê acuado pelas investidas amorosas

e sexuais:

“Sanches, como os mal-intencionados, fugia dos lugares concorridos. Gostava de


vaguear comigo, à noite, antes da ceia, cruzando cem vezes o pátio de pouca luz,
cingindo-me nervosamente, estreitamente até levantar-me do chão. Eu aturava,
imaginando em resignado silêncio o sexo artificial da fraqueza que definira Rebelo.”

Há uma hierarquia entre os meninos nos pares de protetor e protegido. No caso de

Sérgio e Sanches, o último era vigilante e o mais forte dos dois. As posições de

dominante/protetor/ativo e dominado/protegido/passivo são imediatamente associadas

com o papel masculino e o feminino, de modo que "masculinidade" e "poder" se fazem

sinônimos e se fortalecem mutuamente. Desse modo, as relações assimétricas e mesmo

abusivas entre meninos no microcosmo do Ateneu repercute as configurações do

macrocosmo exterior – a sociedade da época. O alvo da denúncia não é a desigualdade

entre os sexos, mas a decadência moral dos homens brancos letrados, que no contexto

do segundo reinado são os depositários das esperanças da nação (MISKOLCI &

BALIERO, 2011).

Ivan Teixeira (2012) chama a atenção para a técnica de Pompeia de sugerir sem

revelar, valendo-se de índices, isto é, de pistas. Como resultado, o leitor tem a sensação

de apreender os acontecimentos através de uma cortina de inexatidão. Em Uma

5
Tragédia no Amazonas e O Ateneu, chega-se à conclusão de que os abusos sexuais

foram consumados por meio de índices.

Antes de finalizar, é interessante esboçar uma breve análise sobre como a

percepção dessas situações de abuso se relacionam com a estrutura social e as

ideologias da época.

Em Uma Tragédia no Amazonas, que é uma narrativa romântica em forma e

conteúdo, há um marcado maniqueísmo. Os ataques sofridos pela família do

subdelegado Eustáquio são perpetradores de forma sistemática e, a princípio, unilateral

por uma quadrilha de bandidos de negros fugidos e invasores espanhóis. Assim postas

em jogo as ordens sociais – os brancos como heróis e os espanhóis e negros como vilões

– o rapto da menina branca é autossuficiente como gatilho para a indignação do leitor: a

crueldade é acrescida pela quebra da ordem social; o inimigo exótico ambiciona possuir

aquilo que não deve.

Em As Joias da Coroa, a indignação verbalizada não é direcionada ao abuso

sexual, mas principalmente ao incesto, este sim inaceitável, de modo a ser impedido a

todo custo. A leniência para com o estupro colabora para a denúncia de uma sociedade

corrupta; mas note que mesmo as personagens moralmente íntegras – Emília (mãe de

Conceição) e a Duquesa (esposa do Duque) – concordam na ênfase dada ao crime de

incesto.

Algo semelhante ocorre em O Ateneu; as relações entre meninos compõem o

cenário de imoralidade que o autor se propôs a denunciar. A Gazeta de Notícias, jornal

que publicou o folhetim, classificou as relações no internato como "escabrosas"

(MISKOLCI & BALIERO, 2011), e podemos inferir que esses julgamentos pesam antes

sobre a homossexualidade presente na obra do que nas relações pautadas por diversas

formas de abuso físico e moral.

6
Uma explicação plausível é que os abusos sexuais ou morais, como foram

colocados em O Ateneu e As Joias da Coroa, não subvertem, mas antes afirmam a

ordem social estabelecida. Não obstante, tanto o incesto quanto a homossexualidade (ao

lado da miscigenação racial) são alvo dos temores de degeneração social que marcaram

o discurso higienista do darwinismo social enquanto corrente de pensamento em voga

na época, e o qual Pompeia absorvia e reproduzia no ambiente nacionalista e positivista

dos círculos republicanos.

Em conclusão, apesar de produzir uma literatura engajada, combatendo com

palavras e ações as injustiças e mazelas da sociedade em que vivia, a análise das

narrativas de Raul Pompeia, pareada com sua biografia, nos permite deduzir que o autor

também estava preso a muitos dos preconceitos e valores de sua época, os quais não

conseguia negar totalmente, tampouco a eles adaptar-se.

7
Bibliografia

MISKOLCI, Richard; BALIERO, Fernando de Figueiredo. O Drama Público de Raul


Pompeia: Sexualidade e política no Brasil finissecular. Revista Brasileira de Ciências
Sociais, v. 26, n. 75, 2011.

POMPEIA, Raul. (1882) As Joias da Coroa. São Paulo: Scipione, 2005.


_____________. (1888) O Ateneu. Cotia(SP): Ateliê Editorial, 1999.
_____________. (1880) Uma Tragédia no Amazonas. Biblioteca virtual de literatura,
2013. [http://www.dominiopublico.gov.br]

TEIXEIRA, Ivan. Raul Pompeia. Série essencial, Academia Brasileira de Letras, vol.61.
São Paulo: Imprensa Oficial, 2012.

Você também pode gostar