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1. Buarque, Chico. Estorvo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p 90.
2. Buarque, 1991, p. 43/46.
3. Buarque, 1991, p. 72.
4. Buarque, 1991, p. 27. A invasão do sítio lembra Animal Farm, de George Orwell.
A casa ocupada é tema da literatura fantástica de Júlio Cortázar. No caso
de Estorvo, o sítio, única referência de um lar, de um espaço de certa forma
interno e íntimo, para a personagem, elo entre passado e presente, foi invadido,
dominado e violentado. É o resultado do abandono do espaço próprio,
aparentemente consequência, por sua vez, do abandono de si mesmo.
Assim como o sítio, sinônimo de lugar, símbolo do espoliamento e da
degradação dos bens do passado, também a mansão da irmã indicia a perda de
valor simbólico do espaço. A mansão tem formato piramidal, feita de triângulos,
símbolo da divindade – e, pois, da densidade e profundidade, capaz de simbolizar
a mediação entre céu e terra. A pirâmide - e os seus triângulos - são truncados e
transparentes, portanto vazios. Poderiam sinalizar, pela transparência simulada,
que se esconde, mais tarde, com cortinas, o simulacro do mundo que se torna
hiper-real. A árvore que há no seu centro - símbolo da interioridade e mediação
com a divindade - é arrancada. Portanto, a violência ocorre por razões banais,
porque a vida simbólica, além da vida espiritual e sócio-política, perdeu sentido. O
corpo, como o espaço, também perdeu suas dimensões simbólicas, sua
sacralidade. Não há relações de causalidade. A degradação do eu, do espaço e
dos outros são justapostos. O que o texto nos dá a perceber é que o indivíduo
atribui realidade ao imaginário, em vez de se debruçar sobre sua própria
intimidade, ou ter relações consistentes com a realidade do mundo contingente e
palpável. Este eu degradado, degrada também o outro justamente porque vê
apenas reflexos de reflexos. Não há memória, porque tanto o eu como o outro
desapareceram de si. Sobra uma espécie de cacoete: o olhar. Os olhos
pretendem abarcar o mundo que por um lado é só imaginário e por outro parece
totalmente incompreensível, desprovido de normas, também o mundo
desmemoriado. Sem memória de princípios, leis, normas, pertença, família
enquanto afeto consentido, a personagem não tem soluções para os problemas
imediatos, com os quais se confronta. A mala de roupas é abandonada, como as
joias roubadas, como a mala de cocaína, como o dinheiro que recebera da irmã.
Ele abandona-se para perder-se, tendo diante de si, como substituto da memória,
um espelho fictício, espécie de espelho d'água no qual se reflete o imaginário
porto seguro. Ele mergulha neste imaginário para aniquilar-se.
A imagem do eu neste espelho opaco é feia, decorrente da substituição do
amor pelo ódio. Este ódio a si mesmo é correlato ao ódio ao desconhecido
encontrado pela personagem principal nos novos habitantes do sítio. Estes,
desmemoriados também, ocupantes desprovidos de pessoalidade, são a rigor
amorfos, caracterizados apenas por poucos traços, quase que caricaturas de
seres humanos; são antes uma espécie de mutação uns dos outros. São
armados, fortes e têm uma ideia na cabeça: saquear, roubar, usurpar, traficar
drogas, assassinar. São inescrupulosos no seu autismo, como, aliás, a
personagem principal: nenhum deles sabe distinguir entre destruição e
autodestruição, entre coragem e covardia. São imprudentes por excelência. A
violência que praticam não tem fundamentações ideológicas de qualquer espécie.
Aparentemente, como a personagem principal, se associam à escala mais ínfima
e degradada, para atingirem a uma única conquista das escalas mais elevadas: o
dinheiro.
A razão básica do esvaziamento de toda e qualquer concepção política,
ideológica, e mesmo moral ou ética, é talvez a perda de sentido de futuro. O
tratamento do tempo dado à narrativa instaura um presente sem passado, mas
também sem futuro. A sensação que o leitor tem de autodestruição deste grupo
de pessoas decorre da perda de valor de tudo e de valores que só existem
quando de algum modo existe esperança de continuidade, não só de si e do
grupo ao qual pertence, mas de sentido no mundo voltado para o futuro. Os
fragmentos que sobram levam ao potenciamento da agressão.
A rigor, estas marcas todas correspondem ao que se entende como pós-
moderno na literatura, incluindo o olho inquieto que revela o desconforto da
situação na medida em que desnuda a falta de referências do texto, do mundo,
das personagens, acena - na memória do leitor - com um universo de valores
desaparecidos. A personagem principal não é um herói, nem um herói decaído,
ou um anti-herói. É uma sombra que vê sombras. Perdida a memória do passado
e a projeção para o futuro, a noção do próprio corpo, como do próprio espaço, a
dimensão da experiência, e mesmo a do choque, que depende da consciência e
valoração deste baluarte último - a pessoa - resta uma voz, um olhar e um
sentimento de ódio a si e a cada um que se compara a um fenômeno
contemporâneo e neste sentido pós-moderno. Refiro-me ao fenômeno da
substituição da função do Estado que deve preservar e controlar a ordem até pelo
uso da força. O poder e função do Estado são substituídos pelo uso da força
arbitrária, sem função ordenadora ou controladora, por parte de indivíduos ou
grupos anômicos que sem motivos sequer de interesses econômicos ou outros
perceptíveis, aniquilam seres humanos civis, indefesos. Lembra o que disse
Hannah Arendt via Enzensberger:
Mas o que distingue as massas modernas dos bandos [de tempos
passados] é a abnegação e o desinteresse no próprio bem-estar...
Abnegação interpretada não como uma qualidade positiva, mas como um
sentimento segundo o qual não se é afetado pelos acontecimentos e
pode-se ser substituído por outro a qualquer momento e em qualquer
lugar... Esse fenômeno de uma radical perda de si mesmo, essa
indiferença cínica ou enfastiada com que as massas se defrontavam com
a própria destruição, era completamente inesperado... As pessoas
começavam a sofrer de uma perda de senso comum normal, da
capacidade de discernimento, assim como de um fracasso não menos
radical do mais elementar instinto de autopreservação. (ARENDT, 1951,
apud ENZENSBERGER 1995, p. 22-3)
REFERÊNCIAS
Ahora es sólo una pura pantalla, un centro de distribución para todas las redes de influencia.
(Baudrillard, Jean. "El éxtasis de la comunicación". In La posmodernidad. Selección y prólogo de
Hal Foster. Barcelona: Kairós, 1985, p. 196).
6. Jameson, Frederic. "Posmodernismo y sociedad de consumo". In La posmodernidad. Selección y
prólogo de Hal Foster. Barcelona: Kairós, 1985, p. 185.
7. Enzensberger, Hans Magnus. Guerra Civil. Trad. Marcos Branda Lacerda e Sérgio Flaksman.
São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
BAUDRILLARD, Jean. "El éxtasis de la comunicación". In La posmodernidad.
Selección y prólogo de Hal Foster. Barcelona: Kairós, 1985, pp.187-198.
BUARQUE, Chico. Estorvo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
ENZENSBERGER, Hans Magnus. Guerra Civil. Trad. Marcos Branda Lacerda e
Sérgio Flaksman. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
FOSTER, Hal (org.). La posmodernidad. Selección y prólogo de Hal Foster.
Barcelona: Kairós, 1985.
JAMESON, Frederic. "Posmodernismo y sociedad de consumo". In La
posmodernidad. Selección y prólogo de Hal Foster. Barcelona: Kairós, 1985,
pp.165-186.