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Matrícula: 20201023974
Segundo Bauman, “o eixo da vida pós-moderna não é fazer a identidade deter-se, mas evitar que
se fixe”. Nesse sentido, seria válido considerarmos o protagonista do romance Hotel Atlântico, de
João Gilberto Noll, um típico representante do sujeito pós-moderno? Discorra, sustentando sua
posição com exemplos da obra nolliana.
Tais características gerais da obra nolliana se fazem presentes no romance Hotel Atlântico.
A obra em questão, narra determinado momento da vida de um ator decadente que é
constantemente tangenciado pela morte e que sai do Rio de Janeiro sem rumo pré-estabelecido,
tudo sendo definido pelas circunstâncias com as quais ele se depara até chegar em Porto Alegre,
passando por Florianópolis e dois lugares fictícios, a saber, Viçoso e Arraiol. Em cada lugar, o
personagem principal assume uma identidade diferente, se desprendendo de quem realmente é, e
sem procurar estabelecer laços muitos profundos com as pessoas com quem encontra e interage.
A sua viagem, as suas várias facetas assumidas ao longo da narrativa representam a sua
liberdade que é brutalmente perdida quando é amputado e passa a depender de terceiros para
(sobre)viver. Nesse momento, acaba por estreitar de certo modo laços com Sebastião, o
enfermeiro que se encarrega dele e, curiosamente, a morte, que apenas o tangenciava, acaba,
aparentemente, por atingi-lo, quando, enfim, chega ao destino onde sua história incógnita se
originou, a saber, Porto Alegre.
Quando se observa de modo mais minucioso a obra em questão, é possível se atentar a
aspectos que nos fazem defender a ideia de que o protagonista do romance Hotel Atlântico pode
ser sim um representante do sujeito pós-moderno. Com efeito, ele começa sua trajetória no
romance vindo de algum lugar desconhecido e chegando ao Rio de Janeiro sem carregar consigo
bagagem alguma, e tal “característica” o acompanha em todos os demais destinos para os quais
ele vai; como se quisesse se desprender ou estivesse fugindo de algo ou alguém.
Essa característica de aparente fuga que o protagonista apresenta, pode estar, de certo
modo, relacionada a um processo de crise identitária. Suas constantes viagens, suas estadias
curtas nos locais por onde passa, o desconforto que sente ao passar tempo demais em um lugar
atrelados ao fator de que ele sempre omite ou adultera alguma informação sobre si podem indicar
que ele não queira ser identificado ou caracterizado apenas por um único “atributo”. Por isso,
talvez, opte por assumir vários papéis ao longo da narrativa e não hesita em mentir quando
necessário a fim de não relevar plenamente quem é ou o que sente e obter de certo modo alguma
vantagem. Nesse sentido, mente sobre seu estado civil, mente sobre sua profissão, mente sobre
seu estado de saúde, mente sobre o seu destino, dentre outras mentiras que conta.
Tais momentos, nos quais ora opta por mentir, ora opta por dizer a verdade, podem, ao
nosso ver, ser mais um indício da crise identitária do protagonista. Pode-se pensar que nos
momentos em que ele demonstra desenvolver certa confiança nas pessoas, escolhe por dizer a
verdade. Enquanto em outros momentos que desconfia, prefira mentir. Desse modo, a questão da
confiança vs desconfiança atrelada a questão da verdade vs mentira na vida do protagonista
representam um paradoxo para o protagonista.
É interessante notar que a partir do momento em que se vê amputado e sua vida muda
completamente e passa a depender dos cuidados de Sebastião, não raras vezes o protagonista
expressa aos poucos seu sentimento de confiança no enfermeiro, o que também o faz levar em
consideração a opinião de Sebastião, ao ponto de afirmar que "costumava dar atenção plena ao
que ele [Sebastião] falava - coisa rara em mim que sempre tivera dificuldades em seguir os
outros." (NOLL, 1989, p. 76). Um contraponto direto a momentos em que ele preza por justamente
evitar maiores relações e amarras quando por exemplo declara que "recorrer a alguém seria o
mesmo que ficar, e eu precisava ir." (NOLL, 1989, p. 13) ou ainda “quando me vi com a passagem
na mão me senti como comprando minha alforria." (NOLL, 1989, p. 17). Situações nas quais,
nitidamente, o protagonista não quer se envolver com ninguém.
No mais, a viagem sem rumo definido, as estadias não planejadas nos lugares visitadas,
as frequentes ocasiões nas quais a morte o “encontra”, representam um simbolismo com a própria
vida do protagonista. A viagem seria a de fato o ciclo da vida do protagonista. Do mesmo modo
que ele parte sem saber de fato para onde vai, assim parece ser a sua vida. Não raro, ele planeja
ir para um destino mas opta por direcionar-se para outro. É o que acontece quando está na
rodoviária do Rio de Janeiro com o intuito primeiro de ir para Minas Gerais, porém decide ir para
Florianópolis; o mesmo se passa quando chega na capital catarinense. A princípio pensa em ir
para Porto Alegre, porém no dia seguinte aceita uma carona rumo ao oeste de Santa Catarina.
Logo, do mesmo modo que suas viagens são incertas, assim também é a sua vida sem um
propósito maior. O que pode ser aferido quando afirma que é um ator decadente que vive da
venda de um carro e que não sabe o que irá fazer quando esse dinheiro acabar; e quando afirma
que não carrega consigo bagagem. É como se estivesse agindo à semelhança de Zeca
Pagodinho: deixando a vida o levar.
As estadias representam os papéis que esse ator decadente exerce nos diversos
momentos da narrativa. Ambos são irregulares, possuem momento para começar mas não se
conhece ao certo o fim deles, apenas que serão breves, considerando o comportamento inquieto
do protagonista em permanecer muito tempo no mesmo lugar. Apenas quando exerce o papel
forçado de paciente de um hospital que aparentemente sua estadia se torna um pouco maior do
que a naturalidade, apesar dos pedidos insistentes à Sebastião de partir com ele daquele lugar.
Junta-se a isso a questão da liberdade. Com efeito, numa viagem sem rumo o protagonista tem o
poder de decidir livremente para onde pretende ir. Do mesmo modo, as circunstâncias o fazem
optar por qual personalidade irá assumir. Logo, uma hora é o ator, outra é o padre, outra um
simples hóspede, outra apenas um passageiro em um meio de transporte. Entretanto, quando se
vê privado de uma das pernas acaba perdendo o seu pleno poder de decisão sobre sua própria
vida, uma vez que se depara com uma limitação física que o faz depender de terceiros em sua
locomoção. De modo semelhante, sua viagem rumo ao desconhecido se encontra limitada, já não
pode partir no momento que deseja para um novo destino, antes depende da boa vontade de seu
companheiro Sebastião resolver seguir rumo à Porto Alegre e levá-lo consigo. Ainda, enquanto
está apto a usufruir de ambas as pernas, é capaz de lubridiar a morte e se esquivar dela. Quando
se vê amputado, a morte vai pouco a pouco o matando – através dos tombos, desmaios e
sedativos - até que é chegada a consumação do seu fim no lugar onde sua trajetória de vida como
um todo teve início.
REFERÊNCIAS
NOLL, João Gilberto. Hotel Atlântico. 3ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.
SCHOLLAMER, Karl Erik. Breve mapeamento das últimas gerações. In: ______. Ficção brasileira
contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2009, p. 21 – 51.