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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

LAURA BRAGANÇA BASTOS GUIMARÃES

“ENVERGA, MAS NÃO QUEBRA”


Estudo de caso

Belo Horizonte – Minas Gerais


2022
Introdução
O livro “Enverga, mas não quebra” foi escrito por Luiz Morando, pesquisador
independente sobre a memória LGBTQIA+ de Belo Horizonte. O autor licenciou-se
em Letras, em 1989, pela UFMG e é doutor em Literatura Comparada (1997)
também pela Universidade. Foi em 2002, porém, que Luiz passou a se debruçar, de
forma autônoma, sobre a memória das identidades LGBTQIA+ da cidade mineira.
Sua pesquisa deu origem ao livro “Paraíso das Maravilhas: Uma história do crime no
parque” (2008), que organiza as pesquisas do autor a respeito de um assassinato
ocorrido no mais antigo e importante parque da capital, o Parque Municipal. A trama
parte também da investigação do ambiente social hostil aos homossexuais na
década de 40 do século XX. Doze anos depois, o “Enverga, mas não quebra:
Cintura Fina em Belo Horizonte” surge com uma proposta diferente, mas com
ímpetos similares: contar a história de Cintura Fina, uma emblemática figura da
história LGBTQIA+ mineira.

Dotada de simbolismos, Cintura Fina é uma escolha de recorte do autor que


apesar do cunho biográfico, serve como um registro histórico de uma realidade
plural. A figura da travesti ficou marcada no imaginário belorizontino pela destreza
com o uso da navalha e por sua identificação e performance de feminilidade, em um
tempo onde pouco se pensava os conceitos de transgeneridade e travestilidade. Em
dezembro de 2021, Cintura Fina foi reconhecida como cidadã honorária de Belo
Horizonte, por indicação da vereadora Iza Lourença (PSOL). O reconhecimento se
deu por sua importante participação na história LGBTQIA+ da cidade. Pensar a
história da travesti é pensar também sobre a história da prostituição na cidade, a
justiça brasileira, a imprensa, o sistema penitenciário e a construção de identidades
de gênero. Dessa forma, o “Enverga, mas não quebra” nasce no ímpeto de resgatar
a história do “submundo” belorizontino, convergindo passado e presente em uma
realidade que prossegue nas ruas do baixo centro da cidade.

Ao longo desse estudo de caso, para além do conteúdo da obra, irá se pensar
a respeito da forma utilizada por Morando para documentar e organizar os fatos.
Entendendo o livro como um conteúdo essencialmente jornalístico, as noções de
acontecimento, mundos possíveis e temporalidades discutidas em sala serão o
ponto de partida para entender a forma como o autor distribui a realidade. Apesar de
separados em categorias, esses atravessamentos se intercruzam para compor uma
visão ontológica a respeito dos fatos, colocando em xeque universalidades limitantes
da forma como o jornalismo é tradicionalmente estruturado.

Sobre narrativas...
Todo o desenrolar do livro parece uma vasta gama de respostas para a
pergunta “Quem é Cintura Fina?”. E não haveria de ser diferente. A pergunta em
questão como norteadora da obra, pressupõe uma resposta que só pode ser
constituída narrativamente. Neste caso, pensa-se a narrativa como o próprio ato de
organizar, por em ordem, tornar compartilhável. Há muitos relatos, documentos,
jurídicos ou não, e notícias, a respeito de Cintura Fina, mas o esforço de “Enverga,
mas não quebra” é justamente de torna-los apreensíveis por meio de uma ordem
maior, que é a da narrativa. Para isso, a obra aniquila as fronteiras entre jornalismo
e literatura 1para dar vasão a um relato potente e que dá conta do real sem perder
de mão a ordem fictícia que também o significa.
Ao categorizar os fatos cronologicamente, Luiz Morando faz uma escolha,
dentre muitas possíveis, que nos permite compreender a história da travesti por
meio de percalços que se desenvolveram entre os anos de 1950 e 1980. A palavra
“narrativa” não pressupõe a linearidade com que trabalha o autor, mas pressupõe a
existência de ação e tempo, desta forma, o livro demonstra seus esforços narrativos
ao tecer uma organização em “giros” cujos títulos são demarcados por um local,
data e acontecimento.
Apesar da convencionalidade dessa escolha, que converge com a realidade
cultural brasileira, e nesse caso especificamente mineira e belorizontina, de
linearidade, a obra quebra com alguns paradigmas mais tradicionais como a
prevalência de perspectivas únicas dentro de um fato. Entende-se majoritariamente
a narrativa, e aqui toma-se o termo narrativa como realidade, como algo possível de
generalizações. A obra, apesar de respeitar também a dimensão plural, parte do
principio de que as narrativas jamais serão únicas, no sentido de compartilhadas da
exata mesma forma por um grupo de pessoas, e que o esforço de categorizar os
fatos é sempre uma iniciativa individual que parte das premissas de cada sujeito e
especialmente das limitações da linguagem. “Enverga, mas não quebra” nesse
sentido, pode ser categorizado como um esforço ontológico de conceber a realidade
em relações dinâmicas e multifacetadas, além de perceber suas limitações diante
das próprias fronteiras humanas da memória, da psique e da linguagem.
Memória
Luiz Morando é um pesquisador que investiga a memória belorizontina. Dessa
forma, em seu livro, a memória, ou a ausência dela, aparece como um personagem
crucial para o desenvolvimento da história. O autor, reconhecendo sua impotência
em acessar a realidade em sua forma plena e absoluta, ou mesmo sem a pretensão
de alcançar uma verdade única, ressalta em diversos momentos do texto, as
próprias incoerências de seus personagens, que ora relatam uma situação de um
jeito, ora de outro. As falhas de memória, a mentira, ou mesmo a mentira que soa
como verdade aos olhos de quem diz, são tomadas como falas dentro da narrativa
sem um usual tratamento dado as inverdades. Convencionalmente, estabeleceu-se
que não há espaço no jornalismo para aquilo que não é factual, colado ao real, mas,
dentro de um formato que permite esse tipo de utilização, Morando trouxe esses
fatos esmaecidos em forma de possibilidades, que corroboram mais uma vez com
uma fórmula narrativa que entende a dimensão limitante da linguagem. Em um
trecho da página 51, cujo relato faz parte do primeiro giro na Leiteria São Paulo,
1
“Quanto aos macrogêneros, a distinção entre informação, opinião e interpretação ora envolve a
restrição da narrativa ao informativo – e a argumentação e a análise aos demais - ora implica na
hibridização de formas textuais.” (LEAL, 2013)
podemos observar uma dissonância entre o depoimento dado por Cintura para a
polícia em agosto de 1953 e a entrevista conferida por ela em 1977, diante de tal
contradição, o autor coloca:

“Como será visto em outros momentos, esse tipo de torção na recuperação


de episódios de sua vida será relativamente comum. Não tomo isso
propriamente como mentira, mas talvez como uma forma de se exaltar
diante do outro, no caso, do entrevistador.” (MORANDO, 2020, pág. 51)

Se em outras escolhas narrativas esse deslocamento parece interferir na


compreensão dos fatos, aqui ele nos aproxima da versão mais próxima do “real”,
pois especula até mesmo sobre as motivações de natureza psicológica dos atos da
figura em questão. Adicionando mais uma camada de interpretação da realidade e
tornando a ausência de certeza também um fato.
Tempo
Apesar de, como constatado anteriormente, o livro optar por uma escolha
clássica de linearidade na hora de narrar os fatos da vida de Cintura Fina, a
narrativa faz uso de recursos não lineares em termos de tempo para demonstrar a
complexidade do entrecruzamento dos acontecimentos. Passado, presente e futuro
dessa forma, aparecem como conceitos abertos, possíveis de convergência. Em
muitos momentos, Morando se faz valer do “presente do passado”, isto é, as
memórias que se tem no presente a respeito do passado, como demonstrado no
trecho acima. Além disso, aciona o “presente do futuro” a partir das expectativas
construídas pela personagem a partir do presente.
O trecho que explica a figura “Maria-Tomba-Homem”, por exemplo, faz
questão de demarcar a forma como o nome parece surgir a partir de uma
determinada história, referente a Maria de Lourdes Faria, mas se perpetua ao longo
do tempo a partir de um imaginário social que se manifesta em outras figuras que
não a original. Morando coloca:

“Como um jogo de espelhos, aquela cena fundadora da Maria Tomba


Homem de 1942 se replica nessa dos anos 60 e em outras mulheres que
tiveram tal apelido colado à sua figura. É possível que essa travesti seja a
mesma documentada por Gibi. Pode ser outra. Talvez nunca saibamos.
Literatos criam suas ficções. O “povo” também ficcionaliza. Eu também
poderei correr o risco de cumprir essa tarefa aqui...” (MORANDO,2020,
pág.30 – 31)

Para além da marca temporal, observa se nesse trecho a marca da negativa ao


longo do livro. O reconhecimento da impotência jornalística de nos fornecer um
espelho da realidade confere uma dimensão expandida a fala de Morando.
Nesse sentido, o capítulo “A temporalidade na narrativa do jornalismo de
cultura: análise de regimes cronológicos no Nexo Jornal e na Ilustríssima” do livro
“Mídia e Zeitgeist” reflete a respeito das limitações e apagamentos históricos
proporcionados por um jornalismo excessivamente centrado no presente, pensando
o jornalismo cultural como um ponto de fuga a essa prevalência temporal:

“o jornalismo cultural possui uma processualidade capaz de


abarcar o sentido do mundo fora das cronologias e dos acontecimentos. O
mundo noticiável que interessa ao jornalismo cultural tem a possibilidade de
abarcar a profundidade histórica, estrutural e mnemônica que liga as
passagens entre o entrelaçar dos acontecimentos.” (DALMASO,
CAVALCANTI, 2021)

Tomando a obra, como um exemplo de jornalismo cultural, a dimensão circular e


disruptiva, proposta pelo “Enverga, mas não quebra” e referenciada por Dalmaso e
Cavalcanti, é capaz de nos situar, portanto, em um panorama abrangente de
constantes e rupturas.
Ficção
A ficção aparece em diversos momentos ao longo do livro, desde a personagem
Cintura Fina no romance Hilda Furacão aos romances de Sérgio Mudado. Além de
denotar alguns fatores supracitados como a impossibilidade de atingir a realidade
plena, a ficção ganha espaço na obra como relatos que, ainda que movidos por uma
liberdade criativa, são capazes de nos oferecer informações sobre um tempo, e
nesse caso, uma pessoa. Partindo da discussão ontológica que norteia este artigo, a
ficção aparece no livro como alegações verídicas sobre um mundo possível
alternado2, sendo proveitosa para a investigação jornalística. Em “Jornalismo a luz
das narrativas: deslocamentos” Leal (2013) afirma que:

“Em outras palavras, observa-se que, ainda que "ficção" englobe relações
ontológicas, demarcacionais e institucionais específicas, essas são
interdependentes e dizem fortemente dos modos como sociedades e
culturas constroem a si, às suas realidades e aos demais mundos possíveis
(dos sonhos, das crenças, das fantasias etc..) de serem habitados, ao
menos provisoriamente. Nesse sentido, a associação entre ficção e
falsidade ou mentira é equivocada, na medida em que aquilo que é ficcional
tem um estatuto específico e é requlado de modo peculiar. Da mesma
forma, a realidade não é única e sequer unívoca: cada um transita, no seu
cotidiano, por diferentes realidades e há certezas e relações possíveis em
cada uma delas que não são transportáveis para as demais.” (LEAL,2013)

O trecho sintetiza não só a forma como Morando correlaciona ficção e realidade


como também o entendimento de realidade que norteia a construção da narrativa.
Conclusão
Os esforços ontológicos de Morando, para além de um primor técnico, conferem a
obra a possibilidade de abarcar o caráter multifacetado de uma figura como “Cintura
Fina”. Diante de uma personagem cuja história é marcada também pela
2
“não ficção é uma questão de referência: a não ficção faz alegações verídicas sobre o mundo real,
enquanto a ficção faz alegações verídicas sobre um mundo possível alternado.” (RYAN, 2014)
criminalidade e prostituição seria fácil para o autor cair em convenções moralistas ou
mesmo exotizantes, mas a constante presença de fatos e contra fatos nos apresenta
uma visão muito mais ampla de quem foi essa mulher emblemática. Fugindo dos
binarismos que convencionalizam as narrativas e os próprios sujeitos: sincrônicos e
diacrônicos, singular e coletivo, bem e mal, passado e presente, fato e ficção e
imergindo numa dimensão de pesos e contra pesos que permitem entender com
mais afinco as nuances de Cintura.
Referências
LUIZ morando. [S. l.], 19 out. 2022. Disponível em: https://tlon.art.br/servicos-
literarios/equipe/luiz-morando/#:~:text=Luiz%20Morando%20licenciou%2Dse
%20em,Brasileira%20e%20Teoria%20da%20Literatura. Acesso em: 19 out. 2022.

CINTURA Fina é reconhecida como cidadã honorária de Belo Horizonte. Portal


UFMG, 20 dez. 2021. Disponível em: https://ufmg.br/comunicacao/noticias/cintura-
fina-e-reconhecida-como-cidada-honoraria-de-belo-horizonte. Acesso em: 19 out.
2022.

LIVRO reconstrói a trajetória de Cintura Fina, lenda boêmia de BH. Estado de Minas:
Gustavo Werneck, 24 jan. 2021. Disponível em:
https://www.em.com.br/app/noticia/cultura/62,355,59,45/2021/01/24/noticias-artes-e-
livros,267338/livro-reconstroi-a-trajetoria-de-cintura-fina-lenda-boemia-de-bh.shtml.
Acesso em: 19 out. 2022.

CINTURA Fina: a saga da travesti perseguida por policiais e amada por prostitutas.
[S. l.], 31 jan. 2021. Disponível em: https://projetocolabora.com.br/ods5/cintura-fina-
perseguida-por-policiais-e-amada-por-prostitutas/. Acesso em: 19 out. 2022.

DALMASO, Silvana Copetti; CAVALCANTI, Anna de Carvalho. A temporalidade na


narrativa do jornalismo de cultura: análise de regimes cronológicos no Nexo Jornal e
na Ilustríssima. In: MÍDIA e zeitgeist. [S. l.: s. n.], 2021.

RYAN, Marie-Laure. Mundos impossíveis e ilusão estética. In: Revista Contracampo,


v. 29, n. 1, ed. abril ano 2014. Niterói: Contracampo, 2014. Pags: 04-25

MORANDO, Luiz. Enverga, mas não quebra. [S. l.]: O Sexo da Palavra, 2020.

LEAL, Bruno Souza. O jornalismo à luz das narrativas: deslocamentos. In:


NARRATIVAS e poéticas midiáticas: estudos e perspectivas. [S. l.: s. n.], 2013.

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