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Ao longo desse estudo de caso, para além do conteúdo da obra, irá se pensar
a respeito da forma utilizada por Morando para documentar e organizar os fatos.
Entendendo o livro como um conteúdo essencialmente jornalístico, as noções de
acontecimento, mundos possíveis e temporalidades discutidas em sala serão o
ponto de partida para entender a forma como o autor distribui a realidade. Apesar de
separados em categorias, esses atravessamentos se intercruzam para compor uma
visão ontológica a respeito dos fatos, colocando em xeque universalidades limitantes
da forma como o jornalismo é tradicionalmente estruturado.
Sobre narrativas...
Todo o desenrolar do livro parece uma vasta gama de respostas para a
pergunta “Quem é Cintura Fina?”. E não haveria de ser diferente. A pergunta em
questão como norteadora da obra, pressupõe uma resposta que só pode ser
constituída narrativamente. Neste caso, pensa-se a narrativa como o próprio ato de
organizar, por em ordem, tornar compartilhável. Há muitos relatos, documentos,
jurídicos ou não, e notícias, a respeito de Cintura Fina, mas o esforço de “Enverga,
mas não quebra” é justamente de torna-los apreensíveis por meio de uma ordem
maior, que é a da narrativa. Para isso, a obra aniquila as fronteiras entre jornalismo
e literatura 1para dar vasão a um relato potente e que dá conta do real sem perder
de mão a ordem fictícia que também o significa.
Ao categorizar os fatos cronologicamente, Luiz Morando faz uma escolha,
dentre muitas possíveis, que nos permite compreender a história da travesti por
meio de percalços que se desenvolveram entre os anos de 1950 e 1980. A palavra
“narrativa” não pressupõe a linearidade com que trabalha o autor, mas pressupõe a
existência de ação e tempo, desta forma, o livro demonstra seus esforços narrativos
ao tecer uma organização em “giros” cujos títulos são demarcados por um local,
data e acontecimento.
Apesar da convencionalidade dessa escolha, que converge com a realidade
cultural brasileira, e nesse caso especificamente mineira e belorizontina, de
linearidade, a obra quebra com alguns paradigmas mais tradicionais como a
prevalência de perspectivas únicas dentro de um fato. Entende-se majoritariamente
a narrativa, e aqui toma-se o termo narrativa como realidade, como algo possível de
generalizações. A obra, apesar de respeitar também a dimensão plural, parte do
principio de que as narrativas jamais serão únicas, no sentido de compartilhadas da
exata mesma forma por um grupo de pessoas, e que o esforço de categorizar os
fatos é sempre uma iniciativa individual que parte das premissas de cada sujeito e
especialmente das limitações da linguagem. “Enverga, mas não quebra” nesse
sentido, pode ser categorizado como um esforço ontológico de conceber a realidade
em relações dinâmicas e multifacetadas, além de perceber suas limitações diante
das próprias fronteiras humanas da memória, da psique e da linguagem.
Memória
Luiz Morando é um pesquisador que investiga a memória belorizontina. Dessa
forma, em seu livro, a memória, ou a ausência dela, aparece como um personagem
crucial para o desenvolvimento da história. O autor, reconhecendo sua impotência
em acessar a realidade em sua forma plena e absoluta, ou mesmo sem a pretensão
de alcançar uma verdade única, ressalta em diversos momentos do texto, as
próprias incoerências de seus personagens, que ora relatam uma situação de um
jeito, ora de outro. As falhas de memória, a mentira, ou mesmo a mentira que soa
como verdade aos olhos de quem diz, são tomadas como falas dentro da narrativa
sem um usual tratamento dado as inverdades. Convencionalmente, estabeleceu-se
que não há espaço no jornalismo para aquilo que não é factual, colado ao real, mas,
dentro de um formato que permite esse tipo de utilização, Morando trouxe esses
fatos esmaecidos em forma de possibilidades, que corroboram mais uma vez com
uma fórmula narrativa que entende a dimensão limitante da linguagem. Em um
trecho da página 51, cujo relato faz parte do primeiro giro na Leiteria São Paulo,
1
“Quanto aos macrogêneros, a distinção entre informação, opinião e interpretação ora envolve a
restrição da narrativa ao informativo – e a argumentação e a análise aos demais - ora implica na
hibridização de formas textuais.” (LEAL, 2013)
podemos observar uma dissonância entre o depoimento dado por Cintura para a
polícia em agosto de 1953 e a entrevista conferida por ela em 1977, diante de tal
contradição, o autor coloca:
“Em outras palavras, observa-se que, ainda que "ficção" englobe relações
ontológicas, demarcacionais e institucionais específicas, essas são
interdependentes e dizem fortemente dos modos como sociedades e
culturas constroem a si, às suas realidades e aos demais mundos possíveis
(dos sonhos, das crenças, das fantasias etc..) de serem habitados, ao
menos provisoriamente. Nesse sentido, a associação entre ficção e
falsidade ou mentira é equivocada, na medida em que aquilo que é ficcional
tem um estatuto específico e é requlado de modo peculiar. Da mesma
forma, a realidade não é única e sequer unívoca: cada um transita, no seu
cotidiano, por diferentes realidades e há certezas e relações possíveis em
cada uma delas que não são transportáveis para as demais.” (LEAL,2013)
LIVRO reconstrói a trajetória de Cintura Fina, lenda boêmia de BH. Estado de Minas:
Gustavo Werneck, 24 jan. 2021. Disponível em:
https://www.em.com.br/app/noticia/cultura/62,355,59,45/2021/01/24/noticias-artes-e-
livros,267338/livro-reconstroi-a-trajetoria-de-cintura-fina-lenda-boemia-de-bh.shtml.
Acesso em: 19 out. 2022.
CINTURA Fina: a saga da travesti perseguida por policiais e amada por prostitutas.
[S. l.], 31 jan. 2021. Disponível em: https://projetocolabora.com.br/ods5/cintura-fina-
perseguida-por-policiais-e-amada-por-prostitutas/. Acesso em: 19 out. 2022.
MORANDO, Luiz. Enverga, mas não quebra. [S. l.]: O Sexo da Palavra, 2020.