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“O desejo, veiculado e ao mesmo tempo reconvertido pelo dinheiro, agencia

uma espécie de reverso das grandes oposições binárias que atravessam e segmentam o
corpo social: oposições de classe (rico/pobre), de idade (jovem/velho), de gênero
(macho/bicha), intensificando as diferenças na produção de um gozo” (PERLONGHER,
1987b, p. 58).

“Primeiro se veem corpos, corpos provocativamente másculos; um blue jeans


surrado cinge a escultura dessa teatralidade da macheza[...]Há nesses corpos
sobreexpostos toda uma encenação da rigidez, dos vários sentidos da dureza. Sua
beleza, nos pesados circuitos da baixa prostituição, deriva, mais do que do atletismo, do
trabalho, do esforço, da penúria” (PERLONGHER, 1987b, p. 58).

“Das transações entre a hipervalorização de uma virilidade convencional que proscreve


discursivamente o ânus como zona erógena e o envolvimento em relações, cujo eixo
gira precisamente em torno da sensibilidade anal, dessa tortuosidade de claro-escuros,
de falsas poses, de simulacros e paixões subterrâneas, contraditórias, encontradas, pode
derivar, em alguma medida, o halo de sordidez que impregna o negócio do michê”
Perlongher (1987, p. 66-67, grifo nosso).

[...]os órgãos e os atos sexuais têm nomes que fazem sobressair a baixeza, cuja origem é
a linguagem especial do mundo da queda. Esses órgãos e esses atos têm outros nomes,
mas uns são científicos, e os outros, de uso mais raro, pouco durável, fazem parte da
linguagem infantil e do pudor dos apaixonados. Os nomes sujos do amor não deixam de
ser menos associados, de uma forma estreita e irremediável por nós, a essa vida secreta
que levamos ao lado dos sentimentos mais elevados. É, em suma, através desses termos
inomináveis que o horror geral se formula em nós, que sabemos pertencer ao mundo
não degradado. Esses termos exprimem esse horror com violência. São eles mesmos
violentamente rejeitados pelo mundo honesto. De um mundo ao outro, não discussão
concebível (BATAILLE, 1987, p. 91)

Discurso dos homens infames, “antologia de existências”, personagens sem


traços de grandeza “O que as arranca da noite em que elas teriam podido, e talvez
sempre devido, permanecer é o encontro com o poder” (FOUCAULT, 2006, p. 207).

A “pulsão da errância” O desejo de errância como um dos polos essenciais de


qualquer estrutura social. “É o desejo de rebelião contra a funcionalidade, contra a
divisão do trabalho, contra uma descomunal especialização a transformar o mundo
numa simples peça de engrenagem na mecânica industriosa que seria a sociedade.
Assim se exprimem o necessário ócio, a importância da vacuidade e do não-agir na
deambulação humana” (MAFESSOLI, p. 32-33).

O ambiente metropolitano como a sede da economia monetária. A economia do


dinheiro domina a metrópole. As grandes cidades, principais sedes do intercâmbio
monetário. Reflexo subjetivo da economia do dinheiro inteiramente interiorizada no
sujeito urbano, locus onde o dinheiro nivela todas as diferenças qualitativas em termos
quantitativos. “O dinheiro se refere unicamente ao que é comum a tudo: ele pergunta
pelo valor de troca, reduz toda qualidade e individualidade à questão: quanto? p. 13

“Realizado por um enrustido que rejeita a comunidade de que é oriundo, o gesto


discriminatório, testemunha, finalmente, a interiorização dos processos de
estigmatização que conduzem os estigmatizados a projetarem sobre sua própria
comunidade a imagem que o grupo dominante tem da sua alteridade” (TOMUS, 2012,
p. 3).

“Sua fixação se dá na consciência de suas criaturas, nas hesitações e nos


interditos que não nos permitem saber num relance seus motivos e onde a cidade é um
espaço para o périplo, que não chega a definir seus perfis. Este poder está investido
apenas à classe que suas personagens pertencem. Elas erram na cidade, levando consigo
uma distinção relacionada ao papel exercido na sociedade, ou pelo estigma que
carregam como um sinal do que são” (SILVA, 2016, p. 93).

[...]narradores nômades a dispersão do sujeito e a falta de laços ou de projetos existentes


nesse momento crucial da cultura ocidental (CAMARGO, 2007, p. 21).

[...]os indivíduos misturam-se à cidade e os cenários urbanos violentos acabam por se


confundir com os próprios corpos dos sujeitos (CAMARGO, 2007, p. 17).

[...]ao mesmo tempo que reverencia os modernistas, rompe com eles na enunciação ou
no no próprio enunciado ao reescrever algumas cenas do modernismo brasileiro em seus
textos (CAMARGO, 2007, p. 25).

Integra a linha de escritores urbanos que falam da vida das metrópoles, iniciada
em nossa literatura com a obra de Mário e Oswald de Andrade, ambos participando do
tumulto da moderna São Paulo da década de 20. Retoma essa linha de urbanidade
vertiginosa, que do primeiro tempo modernista em diante foi posta como
impessoalidade das relações, solidão, mas que em alguns casos ainda guardava no fundo
certa cordialidade capaz de resgatar a afetividade das relações. Recorde-se, por
exemplo, a ternura dos personagens de Aníbal Machado, que viveu no Rio de Janeiro
anterior às mudanças aceleradas dos anos de 60. Nossa literatura, bem como outras
literaturas periféricas, passaria por um movimento significativo de internacionalização
no período seguinte (VIDAL, 2000).
De acordo com Pellegrini (2001, p.14), atualmente, a literatura urbana tem
ultrapassado no perímetro da cidade “seus horizontes originais de representação”, ao
traduzir a opressão em diversos “níveis”: social, expressando o processo de exclusão da
grande maioria da sociedade; político, expressando a centralização do poder; ideológico,
expressando as crenças que oprimem os indivíduos urbanos, impedindo-os de se
realizarem afetiva e pessoalmente; estético, expressando do ponto de vista linguístico a
atmosfera nervosa dos grandes centros urbanos:
Dessa maneira, o espaço urbano ficcionalizado passa, gradativamente, a
abrigar significados novos... hoje já muito diferente daquele das origens. De
cenário que funcionava apenas como pano de fundo para idílios e a
aventuras, “locus amenus”, foi aos poucos se transformando numa
possibilidade de representação dos problemas sociais, até se metamorfosear
num complexo corpo vivo, de que os habitantes são apenas parte, a parte
mais frágil, cujas vozes são menos audíveis na turbulência das ruas. Na
verdade, esse corpo vivo, criado pela ficção, com raras exceções, vem se
revelando cada vez mais como locus horribilis, que corresponde às nossas
condições econômicas, sociais e políticas (Pellegrini (2001, p.14-15).

Dando corpo a personagens de sexualidade marginal e dissidente, ganham relevo


em sua ficção uma galeria de criaturas envolvendo, por exemplo, michês, pederastas
enrustidos, travestis e bichas loucas, a questão homossexual permeia o conjunto da obra
ficcional e ensaística do escritor judeu polonês, naturalizado brasileiro.

A inserção de Samuel Rawet na narrativa moderna. Sua adesão a novos recursos


técnicos/narrativos próprios a uma nova forma de narrar em que há um abalo da ordem
linear do enredo, cuja fragmentação privilegia as internalizações dos personagens e dá
menos importância à ação. Assim como assevera Gotlib (1990) em relação à narrativa
moderna, ao desmembramento em sensações, percepções, sugestões íntimas. O enredo
como única ação principal deixa de existir. Da mesma forma que Para essa estudiosa, a
recepção da ficção de Rawet
Essa experimentação formal da contística de Rawet, ancorada na desestruturação
e transgressão ao modo de narrar do conto tradicional que suprime ou oculta nexos
sintáticos em um discurso descontínuo, com a alinearidade espaçotemporal, com
repentinos recuos do enredo o inscreve segundo a crítica literária -

expressões periféricas do erotismo e da sexualidade dissidente

“produção simbólico-material que reflete, de certa forma, o pensamento, as


experiências, os desejos, as crenças, os medos, as fobias, as violências sentidas e
provocadas” (SILVA, 2010, p. 61).

Segundo Camargo (2007), a obra de Noll se fez, inicialmente, em consonância


ao referencial realista/hiper-realista de uma corrente que vigorava na literatura brasileira
dos últimos anos 70, período sombreado pelas interdições da censura do regime militar,
bem como marcado pela ascensão e influxos da indústria cultural (a penetração da
televisão) que impeliu ao romance a experimentação de novos procedimentos narrativos
face a um novo público leitor, já domesticado pela produção televisiva.

O jovem michê mulatinho, também, envolve-se numa situação emblemática com


um homem casado (descrito como um homossexual enrustido). Este, após perceber um
velho próximo, repele grosseiramente o boy de programa afirmando ser casado e ter
família, com disposição dissimulada e ofendida expressando não entender a
aproximação erótica do jovem michê.

exigem que o leitor se coloque numa posição mais desacomodada.

ABREU, Caio Fernando. A Hilda Hilst. In.: ______. Cartas. (Org.). Ítalo Moriconi. Rio
de Janeiro: Aeroplano, 2002, p. 359-372.
BATAILLE, Georges. O erotismo. Trad. Antonio Carlos Viana. Porto Alegre: L&PM,
1987.
GOTLIB, Nádia Battela. Teoria do conto. 5 ed. São Paulo: Ática, 1990.
LOPES, Denilson. Uma história brasileira. In.: LOPES, Denilson. O que amava rapazes
e outros ensaios. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002.
A inserção de Samuel Rawet na narrativa moderna. In.: Itinerário urbano na vida e obra
de Samuel Rawet. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2010. p. 171-176.

SILVA, Leandro Soares da. A ficção do eu e o outro na literatura da


homossexualidade. Tese (Doutorado). Faculdade de Letras da Universidade Federal de
Minas Gerais, 2016.

SANTOS, Daniel Kerry dos. Homens no mercado do sexo: fluxos, territórios e


subjetivações. 2016. Tese de Doutorado em Psicologia. Florianópolis Universidade
Federal de Santa Catarina – UFSC.
VIDAL, Ariovaldo José. O percurso da leitura. In.: Roteiro para um narrador: uma
leitura dos contos de Rubem Fonseca. São Paulo: Ateliê, 2000.

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