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COM A DIFERENÇA TECER A RESISTÊNCIA

3º Seminário Internacional Desfazendo Gênero


10 a 13 de outubro de 2017
Campina Grande, Paraíba

Simpósio Temático nº 7: Diversidade Sexual, Literatura e Artes da Cena

HOMORREPRESENTAÇÕES DA “SOLTEIRICE” EM CONTOS


DE GASPARINO DAMATA

Dorinaldo dos Santos Nascimento1

Em sua quase totalidade, as personagens que ganham corpo e protagonizam a


compilação de contos: “Os solteirões” (1975), do escritor e jornalista pernambucano
Gasparino Damata2 (1918-198?) - pouco estudado pela crítica literária homoerótica -,
constituem uma unidade e coesão temática que refletem o título que abraça as histórias. Trata-
se de situações ficcionais, cujos personagens são sujeitos homossexuais que compõem uma
galeria de homens de meia-idade e/ou idoso, os quais repeliram conjugalidades
heterossexuais, driblando a pesada sombra da heteronormatividade em adesão a estilos de
vida imbricados em homossociabilidades3, cuja “solteirice” converge para outros arranjos
sexuais-afetivos.
Neste trabalho, buscamos compreender como se dá, no plano diegético, as
homorrepresentações dos “solteirões” damatianos: o “coroa” Ferreira (dentista), o sargento
Leocádio, o “coroa” que trabalha em um escritório e o enfermeiro idoso e aposentado,
respectivamente, presentes nos contos: “A desforra”, “O voluntário”, “Muro de silêncio” e “O
inimigo comum”. Propomos deslindar quem são esses sujeitos da ficção
“convencionalizados” pelo escritor, que na impossibilidade de apreender a totalidade de uma
existência, seleciona traços e características (CANDIDO, 2007). Entender o “lugar” que
ocupam na narrativa, com que voz se enunciam, como são concebidos, descritos e
caracterizados enquanto personagens, como se veem e são vistos por outros personagens,
como configuram seu estar no mundo e suas relações afetivo-sexuais.
Segundo Trevisan (1986, p. 175), “a partir de meados da década de 70, o tema do
amor homossexual começou a furar a barreira da censura e dos setores mais reacionários”.

1
Doutorando em Estudos Literários em pela Universidade Federal de Uberlândia (dori.s.n@hotmail.com).
2
O escritor publicou o romance “Queda em ascensão” (1951); duas coletâneas de contos: “A sombra do mar”
(1953) e “Os solteirões” (1975); a miscelânea de memórias, poemas e ficções que constitui o livro “Antologia da
Lapa” (1965) e editou duas antologias: “Histórias do Amor Maldito” (1967) e em parceria com Walmir Ayala
“Poemas do Amor Maldito” (1969).
3
A homossociabilidade designa “uma extensa rede de prática sociais intragenéricas, através das quais se regulam
os laços de solidariedade e colaboração, por um lado, ou de rivalidade e competição, por outro, entre aqueles
indivíduos que se identificam como pertencentes ao mesmo gênero (BARCELLOS, 2006, p. 23).
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Nessa década ocorreu, no Brasil, a eclosão do “desbum-guei” e do “boom guei”. O sujeito que
“desbundava” era aquele que transgredia e tinha como compromisso o mergulho na liberação
individual, conectada, sobretudo, ao consumo de drogas e à vivência da homossexualidade, e
não de alinhamento, engajamento partidário, fosse em relação a direita ou esquerda
militarizadas (TREVISAN, 1986). Isso tudo em consonância à expansão do espaço urbano
para os homossexuais – proliferação de bares, discotecas e saunas -, cujo “avanço era parte do
fenômeno generalizado do crescimento das oportunidades de consumo entre a classe média
urbana” (GREEN, 2000, p. 396).
A compilação de contos “Os solteirões” (1975) veio a público nesse contexto
sociocultural de “abrandamento” da ditadura militar e emergência, ainda, imberbe de
movimentos de liberalização homossexual. O próprio Damata esteve imbuído na militância e
ativismo homossexual, inclusive, na imprensa alternativa brasileira integrando o jornal gay:
“Lampião da Esquina” (1978-1981).
Para Howes (2010, p. 159) a obra em tela condensa, potencialmente, “um retrato da
subcultura homossexual da região central da cidade do Rio de Janeiro” da época vigente. As
histórias incorporam, de modo explícito, a linguagem, gírias, códigos do meio, assim como
dramatizam as vicissitudes de ser homossexual – os conflitos, desejos, amores, coerções
sociais, papeis e performances sexuais/gênero, o jogo de ambivalências do “armário”.
Sublinhamos que os “solteirões” de Damata, também, aparecem fabulados em redes de
sociabilidades gays que, segundo Erribon (2008, p. 38) “funda-se, primeiramente e antes de
tudo, numa prática e numa “política” da amizade: é preciso procurar estabelecer contatos,
encontrar pessoas que vão se tornar amigos e, aos poucos, constituir um círculo de relações
escolhidas”. Para todos os efeitos, os personagens se constituem pela perspectiva individual e
de grupo (interações com amigos do meio).
No espectro de personagens “solteirões” damatianos, Ferreira, protagonista do conto
“A desforra”, é um quarentão, dândi metropolitano carioca dos anos setenta do século
passado, amante de artes plásticas e bem situado socioeconomicamente (dentista e professor
de Odontologia). O personagem pode simbolizar a figura do “coroa”, conforme concebe
Simões (2004, p. 20):
O “coroa” é um personagem de idade indefinida, mas portador dos sinais visíveis da
“máscara do envelhecimento”: o cabelo grisalho, as rugas, a cintura grossa, os
movimentos um tanto mais lentos. O “coroa”, tipicamente, parece ser o homem
maduro de modos viris, que tem saúde, disposição física, apresentação pessoal e
dinheiro suficiente para frequentar alguns espaços do chamado “circuito gay”,
encontrar amigos, beber, se divertir e também tentar a sorte no mercado da paquera.
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Esse “solteirão coroa” elabora para si, sem pudores nem autocencura, uma perspectiva
de vivência erótico-sexual ancorada na mercantilização de suas relações estabelecidas com
“garotões”. Ele não sente alguma mácula de indignidade por financiar rapazes que assumem a
configuração de gigolôs; na narrativa em tela, atualizados como toy boys4. Eis passagem que
traduz bem a visão da personagem:
Em matéria de amor, só acreditava no prazer comprado, isto é, no garoto que topava
exclusivamente por dinheiro, ou vantagens altas, que sabia tirar partido da situação,
tudo feito com o máximo de sinceridade, sem hipocrisias para não deixar ninguém
iludido; nada de “eu te amo” e coisa parecidas; garoto que se apaixonava não servia,
era bicha em potencial (DAMATA, 1975, p. 141-142).

Essa personagem, construída pela voz de um narrador heterodiegético, mesclado ao


discurso indireto livre, possui um perfil desenhado com traços particulares, pois, além de não
romantizar possíveis laços com os rapazes, frequentemente, selecionados na rua, “garotos
morenos e bastante altos, entre os dezoito e os vinte e um anos de idade, de preferência vindos
do interior” (DAMATA, 1975, p. 141), moldando-os ao seu gosto, inserindo-os na alta
sociedade carioca como “objeto-troféu” para os amigos; ele, no contexto homoerótico
brasileiro dos anos setenta, sob o ângulo paradigmático vigente da díade “bicha-bofe”, no que
tange aos papeis sexuais (ativo/passivo), consegue desconstrui-lo. Vejamos trecho que elucida
isso:
[...]embora só gostasse de comer, não suportava garoto que ao chegar na cama
virava logo, preferia o tipo que dava com menos facilidade, que botava antes uma
certa banca, pois lhe proporcionava um prazer maior... (DAMATA, 1975, p. 142,
grifo nosso).

A personagem contraria determinada estereotipia da bicha (no caso, com poder


aquisitivo elevado) que só se reconhece no papel sexual passivo. Ferreira enuncia seus desejos
e preferência em “comer” rapazes másculos. Nessa perspectiva, o “bofe” permanece “bofe”,
contudo, destituído da função prototípica de “macho comedor”.
É essa inversão de performances sexuais cristalizadas no “circuito homoerótico” que
gera tensão entre Ferreira e Laércio, o rapaz que o troca por uma mulher, depois é repelido
por ela, e ao reencontrar com seu antigo amante, sente na pele toda força vingativa dele.
Ferreira com fúria e frieza em “dar o troco”, bem como diante da posição de Laércio em se
colocar como hétero que é mantido por “veado”, explode: “É macho coisíssima nenhuma!
Você sabe perfeitamente que é tão homossexual como qualquer um de nós” (DAMATA,

4
Expressão inglesa de uso contemporâneo em referência a homens geralmente muito jovens e considerados
atraentes pela beleza física, os quais atualizam a figura do gigolô. Seu mantenedor ao possuir poder monetário
elevado os tratam como “brinquedo” moldável aos seus desejos/fantasias quase unilaterais, além de compor uma
parceria “feliz” perante à vida social.
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1975, p. 154). Vingando-se de seu último toy boy que o expôs e virou motivo de chacota dos
amigos devido ao abandono do rapaz e não o contrário como era praxe para Ferreira.
A constituição da personagem Leocádio, o sargento “solteirão” do conto “O
voluntário”, se dá em domínio fortemente marcado pela heteronormatividade, no perímetro
hipermasculino de um Corpo de Fuzileiros Navais carioca. A personagem se insere, portanto,
nas tramas da homossociabilidade. O sargento estabelece parcerias e amizades no corpo
militar, assim como conflitos e confrontos com outros pares hierárquicos.
Sua conformação enquanto personagem homossexual militar é caracterizada pelo
narrador heterodiegético como um sujeito muito conservador, discreto, avesso a
manifestações de afeminamento (bichas como “vergonha da classe”) e com pensamentos
misóginos, denominando mulheres de “bruxas”, gabando-se nunca ter se envolvido com elas.
“Não suportava gente de saia, mas também não tolerava bicha. Veado efeminado, que queria
ser mulher a todo custo” (DAMATA, 1975, p. 123).
O sargento Leocádio possui uma autoimagem física e capital erótico negativos. Assim,
concebido como um “mulato feio e carrancudo”, incapaz, segundo ele, de despertar atração
desinteressada em rapazes. O cerne diegético envolvendo esse militar “solteirão” é a sua
inveterada prática de aliciamento e assédio de jovens recrutas, de modo mais formal,
comparando-se a outros pares de corporação.
O leitmotiv da narrativa é a paixão avassaladora de Leocádio pelo cobiçado e belo
recruta Ivo, que, a princípio, manteve uma postura refratária aos assédios do sargento. Em
face de obter um emprego e a possibilidade, já acenada, de uma viagem militar aos Estados
Unidos o lança nas redes das intercambialidades com Leocádio, conforme este já ansiava há
muito tempo, debatendo-se numa sôfrega paixão pelo rapaz. Os dois passam a morar juntos
sob compromisso mútuo de fidelidade, porém, quebrado por Ivo que se envolve com uma
mulher.
De todo enlace envolvendo os personagens militares, é emblemática a atitude final do
“solteirão” Leocádio que, embora bêbado, sentindo todo pesar do rompimento de seu
relacionamento com Ivo, não converge para nenhuma atitude trágica passional (de suicídio
nem crime ao amado). Apesar de destroçado pela perda de seu parceiro, ele, não hesita em
lançar-se numa possível aventura sexual ocasional e sem compromisso com um rapaz que
aparece no bar.
O doutor Sampaio junta-se à galeria de “solteirões” damatianos no conto “Muro de
silêncio”. Na narrativa, após semanas sem aparecer, Otávio, um jovem fuzileiro naval, casado
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e pai de um filho ainda bebê, é reencontrado por seu “amante”, o doutor Sampaio com o qual
mantém um caso há dois anos, configurado na sinuosa rede da homossociabilidade. Sampaio
é, inclusive, candidato a padrinho do filho de seu amante. Este recebe dinheiro e presentes, de
certa forma, permutados por encontros sexuais regulares marcados no apartamento do
parceiro mais velho.
O “solteirão” do conto em tela em oposição aos seus amigos, não questiona nem
confronta o fato de seu amante namorar, ou no caso, possuir mulher. É evidenciado durante a
narrativa que ele concebe esse relacionamento - apesar do vibrante desejo sexual -, como
uma vivência intensa, porém, passageira que não “passaria do prazer físico momentâneo, era
dos tais que não produzem nenhum fruto” (DAMATA, 1975, p. 39).
O jovem fuzileiro o chama pelo vocativo “senhor”, comportamento que se coaduna
com a visão paternalista de Sampaio em relação a Otávio, de homem mais velho que “adota”
o rapaz. Eis excerto que traduz esse sentimento: “Sentado na beira da cama, pernas cruzadas,
copo de uísque na mão, acompanhava os movimentos lentos e silenciosos do rapaz com um
sorriso inteligente, paternalista, de pai que vê o filho rebelde se aprontar para partir”
(DAMATA, 1975, p. 45, grifo nosso).
O conto recorta, justamente, o momento em que Otávio desaparece por um período,
não dá notícias, deixando o amante em desespero à procura dele na ânsia de saber por que o
outro sumiu. Nesse sentido, a narrativa narra o reencontro dos dois depois desse
distanciamento deliberado por Otávio, que decide não mais manter essa intercambialidade
sociossexual, embora não verbalize isso para seu amante. Em seus pensamentos, ele vai a
última vez ao apartamento de seu amante mobilizado pela gratidão, também como forma de
“saldar” qualquer dívida. Lá transam diversas vezes, até que no momento de despedida recusa
o dinheiro dado por seu amante:
Pegou a calça, retirou a carteira de cédulas que costumava carregar no bolso traseiro
e retirou duas notas de 10, dessas recentemente lançadas em circulação. Mas, para
grande surpresa sua o fuzileiro recusou recebê-las, empurrou-as com as mãos.
Irritado, disse, quase num grito: “É para você comprar um presente para o garoto,
seu bestalhão” (DAMATA, 1975, p. 47).

É possível que a recém condição de paternidade do jovem fuzileiro naval que traz
subjacente a responsabilidade masculina do “homem de verdade” (NOLASCO, 1997)
heterossexual face ao quadro familiar instituído socialmente tenha provocado a sua decisão
em dissolver a vida dupla experimentada nos últimos dois anos. Por isso, a recusa do dinheiro
como tentativa de se desvencilhar por completo de seu “ex-parceiro”.
A solteirice damatiana contempla também o personagem idoso, o senhor aposentado
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da marinha, com mais de sessenta anos do conto “O inimigo comum”. Nomeado, ou melhor,
reduzido, metonimicamente, como “velho” pelo heterodiegético narrador, ele tenta não se
enquadrar na prototípica figura da “tia velha” solitária e deprimida, estabelecendo com o
jovem rapaz Otávio, uma intercambialidade sociossexual ancorada no “jogo da adoção”, que,
segundo Mota (2014, p. 141, grifo nosso), “não se restringe à atividade sexual, mas incluem,
entre outras fantasias, a existência de afetividade. Desse modo, coaduana-se situações com
quem procura manter vínculos subsidiados a partir de benefícios”.
Esse personagem idoso assume uma função paterna com o jovem rapaz, conforme
assevera nessa passagem: “Já estou velho, cansado. Qualquer dia desses bato a bota, vou pro
outro mundo, como se diz. E como é que você vai ficar, vamos, me responda? Sem ter quem
tome conta de você, quem faça as coisas pra você” (DAMATA, 1975, p. 62). O sujeito idoso,
maduro, experiente alimenta, de algum modo, a fantasia da vivência afetiva e afastamento da
solidão:
[...]nem o velho nem o rapaz dessa história se amam, e é bem provável que
um dia o rapaz se case e o velho venha a ser seu padrinho de casamento. Não
há nada mais terrível do que a solidão, ou a ausência total do amor[...]e só a
solidão ou a impossibilidade de se viver ao lado da pessoa a quem se ama
(ou então se pensa que ama) pode reunir debaixo do mesmo teto gente de
mentalidade e idade tão diferentes (DAMATA, 1975, p. 63).

É verificável no personagem “velho” o peso da abjeção, de sua deserotização como


sujeito desejante e desejável, descrito como “elefante decrépito de circo que só espera pela
morte” (DAMATA, 1975, grifo nosso, p. 61). Ele mora com um rapaz - o corpo jovem como
seu objeto de desejo homoerótico representa o esforço dele em contrariar as vicissitudes de
ser gay e velho. Tendo em vista a reflexão de Eribon (2008, p. 167) acerca da aversão aos
sujeitos envelhecidos:
O ódio pelos “velhos”, por exemplo, parece ser um dos esquemas
estruturantes das conversas no interior do meio gay na medida em que a
sexualização potencial das relações entre indivíduos leva a falar em termos
depreciativos e insultuosos de todos aqueles que não têm mais valor sobre o
que é preciso chamar de mercado sexual. Aliás, devemos nos interrogar
sobre o fato, bem impressionante, de que a participação nesse mundo gay,
nessa “cena gay” é, afinal, quase sempre provisória.

Nessa perspectiva da repulsa, o personagem velho e seus amigos sofrem zombaria e


ridicularização. Denominados de as “damas da madrugada” pelos homossexuais mais jovens
porque costumam virar a noite na praça da Cinelândia, no Rio de Janeiro, conversando. A
“turma mais moça, moderna” expressa uma das faces da abjeção, manifesta pela chacota aos
mais idosos, um sentimento de repulsa à velhice bastante corrente nos circuitos gays.
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Conectado a isso, o narrador concebe o protagonista da história e seus amigos idosos como
“sujeitos que já tiveram seu tempo e hoje vivem da saudade e da recordação (e nada para eles
presta) ” (DAMATA, 1975, grifo nosso, p. 51). Isso aponta, sobretudo, para o lugar social do
velho gay, do olhar que esse sujeito velho constrói sobre si, bem como os efeitos do olhar do
outro.
Na constituição do personagem é muito saliente, também, sua posição misógina
(poupando apenas sua mãe e a Virgem Santíssima), inclusive respaldada em figuras femininas
históricas tidas como pérfidas (Messalina, Cleópatra, Lucrécia Bórgia). Eis sua aversão ao
feminino: “Estou com essa idade, mas graças a Deus nunca me iludi com mulher, sempre
soube desde menino que mulher não é flor que se cheire[...]Mal sabem vocês que a perdição
do homem é a mulher. Que mulher quer mesmo é sacanear o homem, ou então deixá-lo na
desgraça” (DAMATA, 1975, p. 55-59). É relevante sublinharmos que esse sujeito, no
crepúsculo de sua existência, teve um percurso de vida em que sua orientação sexual,
sobremaneira na juventude, sofreu rechaço e discriminação violenta por meio da sombra
pesada e intolerante da heteronormatividade.
Diante da análise empreendida, numa gradação etária que oscila entre a figura do
coroa bem-disposto, que sai à “caça” no circuito do mercado sexual homoerótico, até o idoso
desrotizado e abjeto, os “solteirões” damatianos são homossexuais experientes, com condição
financeira mais estável e que entram no “jogo da adoção” (MOTA, 2016) com rapazes que
intercambiam beleza, juventude e virilidade com seus amantes/mantenedores mais velhos e/ou
mantém arranjos homossociais ancorados em vantagens e favorecimentos. As disparidades e
assimetrias entre os “solteirões” e seus “garotões” evidenciam relações de poder que se
desdobram em conflitos, revelados, por exemplo, nas negociações de performances
sexuais/gênero, bem como na condição socioeconômica mais elevada dos mais velhos.

Referências

BARCELLOS, J. C. Literatura e homoerotismo em questão. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2006.


CANDIDO, A. [et al.]. A Personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2007.
DAMATA, G. Os solteirões. Rio de Janeiro: Pallas, 1975.
ERIBON, D. Reflexões sobre a questão gay. Trad. Procópio Abru. Rio de Janeiro: Companhia
de Freud, 2008.
GREEN, J. N. Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX.
Trad. Cristina Fino e Cássio A. Leite. São Paulo: Editora UNESP, 2000.
HOWES, R. Solidão e relações de poder na obra de Gasparino Damata. In. COSTA, H. [ et
al.] (Org.). Retratos do Brasil homossexual: fronteiras, subjetividades e desejos. São Paulo:
Edusp: Imprensa Oficial, 2010.
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MOTA, M. P. da. Ao sair do armário, entrei na velhice...: homossexualidade e o curso da


vida. 1 ed. Rio de Janeiro: Mobile, 2014.
NOLASCO, S. Um homem de verdade. In: CALDAS, Dário (Org.). Homens. São Paulo:
Senac, 1997. p. 13-39.
SIMÕES, J. A. Homossexualidade masculina e curso da vida: pensando idades e identidades
sexuais. In: PISCITELLI, A.; GREGORI, M. F.; CARRARA, S. (Org.). Sexualidade e
saberes: convenções e fronteiras. Rio de Janeiro: Garamond, 2004. p. 415-447.
TREVISAN, J. S. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à
atualidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Max Limonad, 1986.

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