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INTRODUÇÃO
Durante todo esse período muitos brasileiros resistiram e lutaram contra a ditadura de
variadas formas. Nos primeiros anos após o golpe, estudantes, artistas e intelectuais se
manifestaram contra a ditadura. Uma forte repressão se abatera sobre as lideranças
sindicais e políticas ligadas principalmente aos partidos trabalhista e comunista que
haviam liderado as lutas políticas no pré-64. Com isso a ação política de estudantes e
artistas ganhou maior destaque. (ARAÚJO; SILVA; SANTOS, 2013, p. 19)
Em O reizinho mandão, 1978, há um rei que morre e no seu lugar assume o filho
que era “mandão, teimoso, implicante, xereta”! (ROCHA, 2013, p. 10). Os moradores
daquele reino deviam se calar e “(...) de tanto ficarem caladas, as pessoas foram
esquecendo como é que se falava” (ROCHA, 2013, p. 14). Foram se calando com medo
do reizinho que com o tempo percebe o problema e ao procurar a solução se vê a frente
de uma menina campesina que ainda sabia falar e lhe diz “cala a boca já morreu, quem
manda na minha boca sou eu!” As pessoas do reino começam a repetir a frase que acaba
amedrontando o reizinho a ponto de ele ter que fugir do seu reino, porém, o narrador
que é um contador de histórias alerta que esse reizinho pode voltar a aparecer, indicando
um movimento cíclico da história enquanto ciência e indicando a possibilidade de
continuação dessa história enquanto ficção, o que se confirmaria anos mais tarde com
Sapo-vira-rei-vira-sapo, ou a volta do reizinho mandão quatro anos depois.
No segundo livro da tetralogia, O rei que não sabia de nada, 1980, um rei ouve
seus conselheiros e deixa o reino sob os cuidados de uma máquina que em pouco
tempo começa a apresentar problemas. Os conselheiros com medo do rei, tentam
esconder o problema e quando o ele descobre se desespera a ponto de sair correndo
pelo interior do reino e perder cetro, manta, coroa até se parecer com um cidadão
comum. Nesse momento, uma menina chamada Cecília se aproxima e começa a falar
com ele. O rei ao perceber que não fora reconhecido se interessa em conhecer a família
da menina que logo reclama da distância do castelo e a distância do governante em
relação aos cidadãos, da máquina e das coisas do reino. Ele revela sua identidade e a
família se propõe a solucionar o problema com a participação de todos. Um iria
desligar a máquina, outro iria demitir os ministros e Cecília sugere que o castelo real
seja transformado em parque de diversões. A comunidade é reunida e mais uma vez a
democracia prevalece.
Em 1981 foi publicado O que os olhos não vêem, uma história em que o rei e
sua corte reinante não conseguiam ver o povo e nem ouvir suas vozes. A população
cansada de tanto trabalhar pelo reino e não ser ouvida encontra uma solução: construir
pernas de paus e ir todos juntos até o palácio para que fossem vistos e ouvidos. O rei
abandona o poder e os grandões antes tão fortes se sentem assustados e fogem.
Sapo-vira-rei-vira-sapo, 1982, é a quarta história da tetralogia dos reis. Aqui
uma princesa derruba sua bola no rio e um sapo aparece para ajudá-la. Como nos
contos de fadas, o sapo se transforma num príncipe e se casa com a princesa. Tempos
depois se torna rei, porém, não era um rei bom, mas o sapo do início da história. Ele
cria várias leis e desagrada ao povo, logo manda prender as verdades no teto do castelo
e isso gera um problema que podemos ver nesses trechos do livro
Ao final, o sapo sai pela estrada a procurar outra princesa que pudesse lhe dar um
beijo.
A autora em suas obras procura tocar as crianças por meio da ironia, do riso e
fazê-las refletir sobre as decisões coletivas, sobre o trabalho em grupo, sobre o
autoritarismo que pode ser de um governante, dos professores ou da própria família.
A crítica implícita na sua obra se desdobra por meio do riso constante. É por meio dele
que a autora se encontra com o seu tempo e, sobretudo, com os leitores. O humor é
uma arma para inverter valores, princípios, comportamentos, conselhos, contrariando
sempre as mensagens conformistas e o conservadorismo reinantes nos contos de fadas
e mesmo nas narrativas de aventuras que disseminam sempre noções de submissão e
obediência num universo cosmicamente inabalável. Ao criar reis que são antipáticos,
ministros desonestos, mulheres liberadas e crianças contestadoras a autora provoca
risadas inesperadas preenchendo o gênero infantil com novos significados, por vezes
também dialoga com a literatura não infantil de forma parodística, irônica e
irreverente. (MIGUEL, 2006, pp. 37-38)
Ruth Rocha faz parte de uma geração conhecida como os filhos de Lobato e
assim como o criador da boneca Emília, faz da criança protagonista das histórias,
A autora coloca nos mais fracos a sabedoria prática que lhes permite criar soluções.
Emancipa a criança entregando-lhe as regras do jogo. Cecília, de O rei que não sabia
de nada, a menina que ainda sabia falar de O reizinho mandão detêm o germe da
transformação capaz de restituir o equilíbrio ao reino (RICHE, 1985, p. 115).
o espírito comunitário une os personagens nas histórias de Ruth. Em O rei que não
sabia de nada, os camponeses se unem para ajudar o rei a governar, consertando os
estragos decorrentes da má administração da máquina. Em O que os olhos não vêem, ao
perceber que não estava sendo ouvido, o povo se une, constrói pernas de pau e todos
juntos "fazendo muito alarido" seguem para a capital (RICHE, 1985, p. 117)
Uma criança que lê esses livros tem uma interpretação, porém, um adulto ao ler
tem outra percepção e logo associa às questões políticas uma vez que “A efervescência
cultural, a imposição do silêncio, o controle das ideias, a concentração do poder e o
enfrentamento das políticas arbitrárias compõem os textos através da alegoria” (PINTO,
2018, p. 793-794). É esse um dos motivos que torna a obra da autora clássica e
universal, pois independente da época e do lugar, ela trata de temas que são comuns a
todas as sociedades como o autoritarismo, a democracia, o papel da criança,
organização da sociedade, diferenças sociais, etc. “Desta forma a escritora faz com que
os problemas sociais entrem na vida da criança através dos meios de comunicação
tornando próxima uma realidade distante” (MIGUEL, 2006, p. 54). Outra pesquisadora
que tratou do tema nos mostra que “a criança aproxima as narrativas ficcionais com a
realidade de seu país, apenas com o auxílio de leitor crítico adulto, pois sozinha, ela as
aproxima de suas vivências sociais em instituições como casa e escola” (MARIANO,
2012, p. 91). Ao falar de campos esturricados, máquinas que não funcionam, trânsito,
ônibus que atrasam e mau funcionamento de escolas, vemos uma aproximação dos
problemas cotidianos dos adultos com o mundo infantil. “Se o povo pequeno consegue
encontrar saída para seus problemas, a criança, ao ser devolvida à realidade após um
mergulho no maravilhoso, se sentirá estimulada a descobrir suas próprias soluções”
(RICHE, 1985, 117). Elas são dotadas de um poder que não vem dos músculos ou das
armas, nessa relação “Não há lutas ou demonstrações de força, a sabedoria é a grande
vencedora no confronto entre fortes e fracos” (Idem, 1985, 117). A ignorância e a
brutalidade do mundo adulto são vencidas pela inteligência e leveza do mundo infantil,
Ruth Rocha com a sensibilidade artística que possui consegue mostrar isso.
É notável a qualidade de suas obras e mesmo que houvessem questionamentos
por questões partidárias ou ideológicas, devemos considerar o que escreveu em sua
dissertação de mestrado o professor Cléber Fabiano, 2008, que enfatiza a questão de
quem decide o que é literário e logo, o que tem qualidade literária ou não. Segundo ele,
diante das muitas formas de literatura, o que considerar como uma obra especificamente
literária? Para conceituar sua natureza seria necessário reconhecer seu momento
histórico e seu contexto, normalmente, com seus parâmetros de legitimação instituídos
pelos intelectuais e pela classe dominante (p. 13).
Alinhada aos intelectuais de sua época, Ruth Rocha escreveu obras de literatura e não
cartilhas que indicam um tipo de comportamento, pois suas histórias não pretendem
ensinar ou pregar algum discurso moralizante, mas sim entreter, divertir, gerar reflexão,
contudo, “Por falta de conhecimento, a maioria dos docentes infelizmente ainda possui
uma visão equivocada da literatura infantil, utilizando-a como manual para ensinar
normas de conduta” (MIGUEL, 2006, p.8). Conhecendo um pouco da arte de escrever
vemos que não é para isso que os artistas dedicam as suas criações.
Tanto a literatura considerada para adultos quanto a literatura infantil, devem em
primeiro lugar dar prazer ao leitor, e é o leitor que vai atribuir sentido ao que lê de
acordo com o seu horizonte de expectativas conforme nos aponta a teoria da estética da
recepção desenvolvida por autores como Wolfgang Iser e Robert Jauss. Nessa
perspectiva vemos que “A leitura só se torna um prazer quando nossa produtividade
entra em jogo, ou seja, quando os textos nos oferecem a capacidade de exercer as nossas
capacidades” (1999, p. 10), assim é com os adultos e assim é com as crianças. Ruth
Rocha sabendo disso, respeita a criança como leitora e valoriza sua capacidade de
interpretação ao tratar de temas e assuntos tão necessários. Nesse sentido, “Sem ser
tendenciosa, ela dialoga com os seus leitores, quer sejam crianças quer não, pois a sua
escrita é polissêmica, aberta, polifônica. Utilizando-se de símbolos universais, ela
constrói um mundo ficcional onde adultos e crianças se vêem refletidos” (MIGUEL,
2006, p.9).
Pensando na relação autor-texto-leitor recorremos a Iser, 1999, que afirma que
“tem se utilizado o termo ‘efeito estético’ porque, ainda se trate de um fenômeno
desencadeado pelo texto, a imaginação do leitor é acionada, para dar vida ao que o texto
apresenta, reagir aos estímulos recebidos”. (p. 20). Dessa forma, “o livro só cumpre o
seu percurso à medida que se destina a um leitor, e nesse sentido o papel da recepção é
fundamental” (RICHE, 1985, p. 25). As alegorias e símbolos utilizados pela autora
promovem um efeito estético ao fazer com que o leitor, seja adulto ou criança, pensem,
reflitam e dêem significado ao texto. Cléber Fabiano, 2008, ao interpretar a teoria da
Estética da Recepção aplicada à literatura infantil diz que
Fig. 3 José Carlos Brito, 1980 Fig. 4 Walter Ono, 1982 Fig. 5 Walter Ono, 2003
Aqui aparece em sequência O rei que não sabia de nada com roupas de baixo, o rei Sapo
pendurado em uma corda com medo dos súditos e o rei da história O que os olhos não
veem retratados como grandes homens de cabeça (intelecto) pequeno.
Por fim, destacamos o povo unido contra seus governantes e promovendo mudanças.
Em Sapo Vira-rei-vira-sapo o povo canta até derrubar o castelo que servia para a prisão
das verdades. Em O que os olhos não veem, o povo cansado de não ser visto nem
ouvido resolve construir pernas de pau para alcançar a vista e os ouvidos dos
governantes.
Para Biazetto, 2008, “a percepção de uma imagem envolve a relação do leitor
com ela, como ele a vê, pois o olhar compreende as experiências vividas por aquele que
olha” (p. 76). Nesse sentido, os livros que aqui analisamos procuram ridicularizar o
autoritarismo e os governantes autoritários, destacar o papel das crianças na
transformação da sociedade e o poder do povo na luta pela democracia. Porém, vale
destacar que ela é percebida de maneiras diferentes pelo leitor adulto e pelo leitor
criança, o autoritarismo para este não será o mesmo que para aquele, expulsar um rei
mandão é diferente para esses públicos, enfrentar o adulto como fazem as personagens
de Ruth tem um significado muito diverso para diferentes leitores.
Poderia ser estranho o tema político na literatura infantil, mas aí é uma camada
que depende da própria criança para ser interpretada, deixar fora dos livros infantis um
tema tão importante e discutido seria menosprezar a capacidade desse público, não
podemos esperar que os livros sejam sempre voltados para a simples diversão ou
didática, eles podem trazer reflexões pois “nenhum livro é sempre social ou
politicamente neutro, e as publicações para os jovens são especialmente sensíveis à
maneira como uma determinada cultura, em um momento específico, enxerga a
infância” (SALIBURY; STYLES, 2013, p. 125).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ARAÚJO, M. P.; SILVA, I. P.; SANTOS, D. R. Ditadura militar e democracia no
Brasil: História, imagem e testemunho. 1. ed. - Rio de Janeiro: Ponteio, 2013.
CANDIDO, A. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989.
______.O que os olhos não vêem. Ilustrações de José Carlos Brito. 2. ed. São Paulo:
Salamandra, 2003b.
______.O rei que não sabia de nada. Ilustrações de José Carlos Brito.2. ed.São
Paulo: Cultura, 2003a.
______. Sapo vira rei vira sapo ou “A volta do reizinho mandão”. São Paulo: Abril
Cultural, 1982.
________ Virando a página... vamos ver então? o encontro da criança com o texto.
Dissertação de mestrado, Itajaí: UNIVALI, 2008.