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O SENTIMENTO DE ÉPOCA E A LUTA PELA DEMOCRACIA NAS OBRAS

INFANTIS DE RUTH ROCHA


Autor: Josiel dos Santos Lima (doutorando -
UNIANDRADE)
Orientadora: Célia Arns de Miranda (PhD -
UNIANDRADE)

RESUMO: O presente trabalho pretende discutir as obras da autora Ruth Rocha em


uma relação entre literatura e história sob a perspectiva da Atmosfera, ambiência e
Stimmung e da relação entre literatura e sociedade tendo como base os autores Hans
Ulrich Gumbrecht e Antônio Cândido respectivamente. Uma análise da relação entre
texto e imagem também é feita para mostrar como elas intensificam a percepção do
momento histórico bem como criam um sentimento de época. Analisaremos em
especial as obras que compõem a tetralogia dos reis escritas entre 1978 e 1982 sendo
elas O reizinho mandão, O que os olhos não vêem, O rei que não sabia de nada e Sapo-
vira-rei-vira-sapo. Também fazemos referência a Marcelo, marmelo, martelo. Tais
obras foram publicadas durante a Ditadura Militar brasileira e como tantas outras,
tinham um tom de contestação ao sistema de governo vigente e uma pregação da
importância da democracia.

Palavras-chave: Criança. Literatura. Democracia.

INTRODUÇÃO

Um escritor de destaque consegue expressar sua arte por meio da escrita de


forma a despertar diversos tipos de sentimentos em seus leitores. Na literatura infantil,
essa habilidade pode ser ainda maior tendo em vista que há a possibilidade de discursos
para as crianças quanto para adultos. O efeito estético se dá na interação autor-texto-
leitor e nesse sentido, vemos que Ruth Rocha se dirige ao público infantil mas não deixa
de lado os de maior idade. Queremos mostrar como importantes obras dessa autora
apresentam um discurso engajado em plena Ditadura Militar (1964-1985), época em que
livros adultos eram censurados. Texto e ilustrações se complementam de forma a criar
um sentimento de época e fazer as denúncias contra aqueles governos antidemocráticos.
Os autores de literatura infantil que escreviam no período de repressão também
se sensibilizaram com o momento histórico. Costumamos relacionar a literatura
engajada com o público adulto, porém, nesse período os livros escritos para crianças
também traziam um tom político embora de forma mais lúdica e por meio de alegorias.
Nesse sentido, vemos um movimento artístico literário inserido dentro de uma época em
que refratam a sociedade e por isso, podemos nos apoiar na afirmação de que a literatura
“possui tantas ligações com a vida social, que vale a pena estudar a correspondência e a
interação entre ambas” (CANDIDO, 1989, p. 163). O contexto em que vive o autor
influencia na criação de seus escritos já que

a ligação entre a literatura e a sociedade é percebida de maneira viva quando tentamos


descobrir como as sugestões e influências do meio se incorporam à estrutura da obra de
modo tão visceral que deixam de ser propriamente sociais, para se tornarem a substância
do ato criador (Idem, p. 163-164).

Já para a historiadora Sandra Jatahy Pesavento “a Literatura permite o acesso á sintonia


fina ou ao clima da época; o modo pelo qual as pessoas pensavam o mundo, a si
próprias, quais os valores que guiavam seus passos, quais os preconceitos, medos e
sonhos” (2005, p. 82).

1. O sentimento de época e a luta pela democracia nas obras infantis de Ruth


Rocha

1.1 Literatura e Ditadura

Durante os governos militares eram discutidos problemas sociais brasileiros,


propagava-se a ideia de liberdade e experimentação aos moldes do movimento da
contracultura internacional, debatiam-se as propostas de luta política das esquerdas do
país e, ainda, criticava-se e combatia-se a ditadura (ARAÚJO; SILVA; SANTOS,
2013, p. 35). Mesmo com a repressão podemos destacar que

Durante todo esse período muitos brasileiros resistiram e lutaram contra a ditadura de
variadas formas. Nos primeiros anos após o golpe, estudantes, artistas e intelectuais se
manifestaram contra a ditadura. Uma forte repressão se abatera sobre as lideranças
sindicais e políticas ligadas principalmente aos partidos trabalhista e comunista que
haviam liderado as lutas políticas no pré-64. Com isso a ação política de estudantes e
artistas ganhou maior destaque. (ARAÚJO; SILVA; SANTOS, 2013, p. 19)

Já Rosa Maria Cuba Riche afirma que

O autoritarismo político, a interferência do Estado nos diversos níveis sociais gerou


insatisfação e desconfiança nos meios intelectuais. Impedidos de debater livremente os
escritores recorrem à literatura para através de metáforas e símbolos falar do real
(RICHE, 1985, p. 113).

Nesse contexto, muitas obras foram censuradas como mostra a pesquisadora


Sandra Reimão no seu trabalho Repressão e Resistência: Censura a livros na Ditadura
Militar publicado pela FAPESP no ano de 2011. Dentre as principais obras e autores
atingidos pela censura estão Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca; Zero, de Inácio de
Loyola Brandão; Dez estórias imorais, de Aguinaldo Silva; Em câmara lenta, de
Renato Tapajós; Mister Curitiba, de Dalton Trevisan; O Cobrador, de Rubem Fonseca
e Lúcio Flávio: o passageiro da agonia, de José Louzeiro.
Mesmo com esse cenário temos uma produção intensa de literatura infantil. Por
ter esse rótulo, ela vem carregada de sentidos culturais e históricos, e que por ser um ato
social que envolve um escritor ou uma escritora e quem lê que no caso é a criança,

Tal fato produz um efeito imediato: o interesse de propor ao destinatário um modelo de


mundo moldado pelas propostas comportamentais, com as regras morais, com a visão e
conduta de quem escreve. Esse processo, autoritário e castrador, inibe a emancipação e
frustra qualquer possibilidade estética e criativa (SILVA, 2008, p. 14).

Os escritores conseguem obter bons resultados estéticos ao tentar se aproximar


de realidade das crianças e tratar com respeito esse público. Monteiro Lobato já havia
alertado sobre isso ao escrever “Ah, que mundos diferentes, o do adulto e o da criança!
Por não compreender isso e considerar a criança ‘um adulto em ponto pequeno’, é que
tantos escritores fracassam na literatura infantil e um Andersen fica eterno”. (LOBATO,
1951, p.56). Ruth Rocha compreendeu o que escreveu seu antecessor e colocou em
prática.
Tendo em vista a importância do leitor no processo do efeito estético, é
interessante ver que a autora da tetralogia dos reis, de Dois idiotas sentados cada qual
em seu barril, Marcelo, marmelo, martelo entre outros se envolveu com o processo de
conscientização e crítica sem perder de vista o tipo de narratário a que se dirigia, no
caso, crianças. Suas histórias se inserem no contexto ditatorial de forma engajada ao
mostrar por meio de alegorias “generais distintos se tornando cada vez mais ofensivos,
ideologias políticas arbitrárias, valorização da canção, crença em uma nova ideologia de
união social” (MARIANO, 2012, p. 92). Essas histórias podem ser consideradas
subversivas “... porque fazem uso da alegoria, objetivando dialogar com as crianças, ao
mesmo tempo em que burlavam a censura” (PINTO, 2018, p. 794). Nos livros “Suas
personagens são transgressoras natas, sempre se opondo à prepotência, à esperteza ou à
indiferença do mundo adulto. A autora sabe falar a língua dos pequenos usando amor,
afeto, subversão, imaginação e cumplicidade” (MIGUEL, 2006, p.56). Sua primeira
obra de destaque foi lançada em 1976. Na história, um menino chamado Marcelo
questiona os adultos sobre a origem e o significado das palavras e com isso, os adultos
representam a autoridade, já as palavras, o sistema vigente.

1.2 Análise das obras

Em O reizinho mandão, 1978, há um rei que morre e no seu lugar assume o filho
que era “mandão, teimoso, implicante, xereta”! (ROCHA, 2013, p. 10). Os moradores
daquele reino deviam se calar e “(...) de tanto ficarem caladas, as pessoas foram
esquecendo como é que se falava” (ROCHA, 2013, p. 14). Foram se calando com medo
do reizinho que com o tempo percebe o problema e ao procurar a solução se vê a frente
de uma menina campesina que ainda sabia falar e lhe diz “cala a boca já morreu, quem
manda na minha boca sou eu!” As pessoas do reino começam a repetir a frase que acaba
amedrontando o reizinho a ponto de ele ter que fugir do seu reino, porém, o narrador
que é um contador de histórias alerta que esse reizinho pode voltar a aparecer, indicando
um movimento cíclico da história enquanto ciência e indicando a possibilidade de
continuação dessa história enquanto ficção, o que se confirmaria anos mais tarde com
Sapo-vira-rei-vira-sapo, ou a volta do reizinho mandão quatro anos depois.
No segundo livro da tetralogia, O rei que não sabia de nada, 1980, um rei ouve
seus conselheiros e deixa o reino sob os cuidados de uma máquina que em pouco
tempo começa a apresentar problemas. Os conselheiros com medo do rei, tentam
esconder o problema e quando o ele descobre se desespera a ponto de sair correndo
pelo interior do reino e perder cetro, manta, coroa até se parecer com um cidadão
comum. Nesse momento, uma menina chamada Cecília se aproxima e começa a falar
com ele. O rei ao perceber que não fora reconhecido se interessa em conhecer a família
da menina que logo reclama da distância do castelo e a distância do governante em
relação aos cidadãos, da máquina e das coisas do reino. Ele revela sua identidade e a
família se propõe a solucionar o problema com a participação de todos. Um iria
desligar a máquina, outro iria demitir os ministros e Cecília sugere que o castelo real
seja transformado em parque de diversões. A comunidade é reunida e mais uma vez a
democracia prevalece.
Em 1981 foi publicado O que os olhos não vêem, uma história em que o rei e
sua corte reinante não conseguiam ver o povo e nem ouvir suas vozes. A população
cansada de tanto trabalhar pelo reino e não ser ouvida encontra uma solução: construir
pernas de paus e ir todos juntos até o palácio para que fossem vistos e ouvidos. O rei
abandona o poder e os grandões antes tão fortes se sentem assustados e fogem.
Sapo-vira-rei-vira-sapo, 1982, é a quarta história da tetralogia dos reis. Aqui
uma princesa derruba sua bola no rio e um sapo aparece para ajudá-la. Como nos
contos de fadas, o sapo se transforma num príncipe e se casa com a princesa. Tempos
depois se torna rei, porém, não era um rei bom, mas o sapo do início da história. Ele
cria várias leis e desagrada ao povo, logo manda prender as verdades no teto do castelo
e isso gera um problema que podemos ver nesses trechos do livro

Para consolar a tristeza


Que tinham no coração,
Começaram a cantar
Uma bonita canção.
Que não temiam mais nada,
Pois já estavam na prisão...

Da canção que eles cantavam


Pulavam muitas verdades,
Que se espremiam no sótão
Com grande dificuldade,
Que estava tudo tão cheio
Que era uma barbaridade!

E então, com tanta apertura,


E com tanta agitação,
O palácio foi rachando,
Desde o teto até o chão,
Despejando todo mundo,
Que caiu de trambolhão.

E do meio das ruínas


Muita gente vai saindo,
Cantando sua canção,
Gritando, chorando, rindo.
Como uma grande explosão
Que deixasse o mundo lindo... (ROCHA, 2003, p 30-32)

Ao final, o sapo sai pela estrada a procurar outra princesa que pudesse lhe dar um
beijo.
A autora em suas obras procura tocar as crianças por meio da ironia, do riso e
fazê-las refletir sobre as decisões coletivas, sobre o trabalho em grupo, sobre o
autoritarismo que pode ser de um governante, dos professores ou da própria família.

A crítica implícita na sua obra se desdobra por meio do riso constante. É por meio dele
que a autora se encontra com o seu tempo e, sobretudo, com os leitores. O humor é
uma arma para inverter valores, princípios, comportamentos, conselhos, contrariando
sempre as mensagens conformistas e o conservadorismo reinantes nos contos de fadas
e mesmo nas narrativas de aventuras que disseminam sempre noções de submissão e
obediência num universo cosmicamente inabalável. Ao criar reis que são antipáticos,
ministros desonestos, mulheres liberadas e crianças contestadoras a autora provoca
risadas inesperadas preenchendo o gênero infantil com novos significados, por vezes
também dialoga com a literatura não infantil de forma parodística, irônica e
irreverente. (MIGUEL, 2006, pp. 37-38)

Ruth Rocha faz parte de uma geração conhecida como os filhos de Lobato e
assim como o criador da boneca Emília, faz da criança protagonista das histórias,

A autora coloca nos mais fracos a sabedoria prática que lhes permite criar soluções.
Emancipa a criança entregando-lhe as regras do jogo. Cecília, de O rei que não sabia
de nada, a menina que ainda sabia falar de O reizinho mandão detêm o germe da
transformação capaz de restituir o equilíbrio ao reino (RICHE, 1985, p. 115).

Os pequenos (em duplo sentido) são chamados para refletir sobre as


transformações que a democracia pode promover. “Para nós, os pequenos leitores
conquistam por meio das narrativas uma consciência crítica de que a imposição das
vontades exclusivas de um sujeito traz, muitas vezes, o desconforto em tantos outros,
como relatam as tramas selecionadas” (MARIANO, 2012, p. 79). Naquelas histórias
“A participação do povo nas decisões do reino e a valorização da criança vinculam a
ideologia democrática” (RICHE, 1985, p. 115). Não temos uma cartilha que prega
ensinamentos e moralismos e nem um panfleto recheado de discursos políticos e ideias
partidárias, mas enredos e tramas que divertem e podem trazer reflexões para o público
infantil.
O espírito democrático é uma marca nessas histórias que analisamos, pois

o espírito comunitário une os personagens nas histórias de Ruth. Em O rei que não
sabia de nada, os camponeses se unem para ajudar o rei a governar, consertando os
estragos decorrentes da má administração da máquina. Em O que os olhos não vêem, ao
perceber que não estava sendo ouvido, o povo se une, constrói pernas de pau e todos
juntos "fazendo muito alarido" seguem para a capital (RICHE, 1985, p. 117)
Uma criança que lê esses livros tem uma interpretação, porém, um adulto ao ler
tem outra percepção e logo associa às questões políticas uma vez que “A efervescência
cultural, a imposição do silêncio, o controle das ideias, a concentração do poder e o
enfrentamento das políticas arbitrárias compõem os textos através da alegoria” (PINTO,
2018, p. 793-794). É esse um dos motivos que torna a obra da autora clássica e
universal, pois independente da época e do lugar, ela trata de temas que são comuns a
todas as sociedades como o autoritarismo, a democracia, o papel da criança,
organização da sociedade, diferenças sociais, etc. “Desta forma a escritora faz com que
os problemas sociais entrem na vida da criança através dos meios de comunicação
tornando próxima uma realidade distante” (MIGUEL, 2006, p. 54). Outra pesquisadora
que tratou do tema nos mostra que “a criança aproxima as narrativas ficcionais com a
realidade de seu país, apenas com o auxílio de leitor crítico adulto, pois sozinha, ela as
aproxima de suas vivências sociais em instituições como casa e escola” (MARIANO,
2012, p. 91). Ao falar de campos esturricados, máquinas que não funcionam, trânsito,
ônibus que atrasam e mau funcionamento de escolas, vemos uma aproximação dos
problemas cotidianos dos adultos com o mundo infantil. “Se o povo pequeno consegue
encontrar saída para seus problemas, a criança, ao ser devolvida à realidade após um
mergulho no maravilhoso, se sentirá estimulada a descobrir suas próprias soluções”
(RICHE, 1985, 117). Elas são dotadas de um poder que não vem dos músculos ou das
armas, nessa relação “Não há lutas ou demonstrações de força, a sabedoria é a grande
vencedora no confronto entre fortes e fracos” (Idem, 1985, 117). A ignorância e a
brutalidade do mundo adulto são vencidas pela inteligência e leveza do mundo infantil,
Ruth Rocha com a sensibilidade artística que possui consegue mostrar isso.
É notável a qualidade de suas obras e mesmo que houvessem questionamentos
por questões partidárias ou ideológicas, devemos considerar o que escreveu em sua
dissertação de mestrado o professor Cléber Fabiano, 2008, que enfatiza a questão de
quem decide o que é literário e logo, o que tem qualidade literária ou não. Segundo ele,

diante das muitas formas de literatura, o que considerar como uma obra especificamente
literária? Para conceituar sua natureza seria necessário reconhecer seu momento
histórico e seu contexto, normalmente, com seus parâmetros de legitimação instituídos
pelos intelectuais e pela classe dominante (p. 13).

Alinhada aos intelectuais de sua época, Ruth Rocha escreveu obras de literatura e não
cartilhas que indicam um tipo de comportamento, pois suas histórias não pretendem
ensinar ou pregar algum discurso moralizante, mas sim entreter, divertir, gerar reflexão,
contudo, “Por falta de conhecimento, a maioria dos docentes infelizmente ainda possui
uma visão equivocada da literatura infantil, utilizando-a como manual para ensinar
normas de conduta” (MIGUEL, 2006, p.8). Conhecendo um pouco da arte de escrever
vemos que não é para isso que os artistas dedicam as suas criações.
Tanto a literatura considerada para adultos quanto a literatura infantil, devem em
primeiro lugar dar prazer ao leitor, e é o leitor que vai atribuir sentido ao que lê de
acordo com o seu horizonte de expectativas conforme nos aponta a teoria da estética da
recepção desenvolvida por autores como Wolfgang Iser e Robert Jauss. Nessa
perspectiva vemos que “A leitura só se torna um prazer quando nossa produtividade
entra em jogo, ou seja, quando os textos nos oferecem a capacidade de exercer as nossas
capacidades” (1999, p. 10), assim é com os adultos e assim é com as crianças. Ruth
Rocha sabendo disso, respeita a criança como leitora e valoriza sua capacidade de
interpretação ao tratar de temas e assuntos tão necessários. Nesse sentido, “Sem ser
tendenciosa, ela dialoga com os seus leitores, quer sejam crianças quer não, pois a sua
escrita é polissêmica, aberta, polifônica. Utilizando-se de símbolos universais, ela
constrói um mundo ficcional onde adultos e crianças se vêem refletidos” (MIGUEL,
2006, p.9).
Pensando na relação autor-texto-leitor recorremos a Iser, 1999, que afirma que
“tem se utilizado o termo ‘efeito estético’ porque, ainda se trate de um fenômeno
desencadeado pelo texto, a imaginação do leitor é acionada, para dar vida ao que o texto
apresenta, reagir aos estímulos recebidos”. (p. 20). Dessa forma, “o livro só cumpre o
seu percurso à medida que se destina a um leitor, e nesse sentido o papel da recepção é
fundamental” (RICHE, 1985, p. 25). As alegorias e símbolos utilizados pela autora
promovem um efeito estético ao fazer com que o leitor, seja adulto ou criança, pensem,
reflitam e dêem significado ao texto. Cléber Fabiano, 2008, ao interpretar a teoria da
Estética da Recepção aplicada à literatura infantil diz que

Essa teoria ao tratar da relação da literatura com o seu leitor, defende a


premissa de que a literatura não é meramente reprodução, mas
desenvolve um papel atuante, ao fazer história e participar do processo de
pré-formação e motivação do comportamento social, concebendo a
recepção como um envolvimento intelectual, sensorial e emotivo com
uma obra (p. 30).
A relação do leitor com a obra é que completa o papel artístico e estético. O horizonte
de expectativas, capital cultural, sentidos e emoções é que podem desencadear algum
efeito.
Afrânio Coutinho, 1976, afirma que “a Literatura é um fenômeno estético. É
uma arte, a arte da palavra. Não visa informar, ensinar, doutrinar, pregar, documentar.
Acidentalmente, secundariamente, ela pode fazer isso, pode conter história, filosofia,
ciência e religião” (p. 08). Longe de possuir um tom panfletário, Ruth dá seu recado
“Logo, não há neutralidade nas histórias escritas por Ruth Rocha, sendo impossível
destacá-las do cenário social em que foram escritas e publicadas, mesmo que as obras
não estejam circunscrita a este aspecto” (PINTO, 2018, p. 793). Ela não se furta ao
discurso político, mas quando o faz é de uma forma engraçada pois quando fala de um
reizinho, “A escritora o ridiculariza para denunciar os políticos no poder brasileiro com
atitudes próximas a de uma criança mimada e com pensamentos em processo de
formação” (MARIANO, 2012, p. 78). Não só na época da ditadura, mas também hoje
caberia esse tipo de alegoria. Observando o contexto e “partindo da realidade
vivenciada, Ruth Rocha cria uma narrativa análoga que ‘denuncia’ o abuso da
autoridade e o governo dos militares no país” (Idem, p.78). É a sensibilidade do artista
que capta os sentimentos de sua época e o descreve e critica através de sua arte.
Para Cuba Riche, 1985, “Entre as muitas leituras possíveis de sua obra o
questionamento ideológico é um dos traços marcantes gerador da tensão repressão x
transgressão” (p. 113). A fala da menina que diz cala a boca já morreu, o povo que canta
uma canção no sótão do teto, as vozes que ecoam como um trovão são a ilustração
disso. A professora e autora ainda afirma que “Em autores como Ruth Rocha, Lygia
Bojunga Nunes e Ana Maria Machado, percebem-se as marcas de um texto que se quer
libertário” (RICHE, 1985, p.22). Como herdeiras de algumas características lobatianas,
elas apresentam questionamentos e propõem soluções em que as crianças são
protagonistas, dotadas de inteligência e de um poder transformador.
Uma escritora com esse potencial consegue produzir “narrativas ideológicas que
enaltecem as figuras subjugadas na sociedade: idosos, crianças, mulheres e pobres. De
forma (in)direta são elas quem rompem com a política autoritária vigente nos reinos
fictícios” (MARIANO, 2012, p. 91). A política repressiva é combatida por todo o povo
unido que se une e se encoraja de enfrentar seus algozes. Promovendo um
posicionamento crítico ao governo implantado na Ditadura,
as obras da escritora brasileira, aproximam os reinos ao regime militar
brasileiro, mas não há uma relação com algum militar em especial,
podendo apenas dizer que os monarcas presentes em O reizinho mandão
e Sapo-vira-rei-vira-sapo, aproximam-se de Geisel e Médici e o de O rei
que não sabia de nada e O que os olhos não veem, de João Figueiredo
(MARIANO, 2012, pp 91-92).

E mesmo havendo esse tom contestador, observa-se um aumento no mercado editorial


da literatura infantil no período, o que mostra um certo esnobismo dos governantes em
relação ao conteúdo das obras. Sobre isso, Silva 2013 nos dá uma pista ao escrever que
embora essas obras tenham sido publicadas no final da década de 1970 e início dos anos
1980, ainda estavam sob o regime militar e escaparam da censura. Podemos deduzir que
um dos motivos seria o fato de se tratar de literatura infantil, sobre isso Silva, 2013,
afirma que “Desde sua gênese, a literatura infantil relaciona-se com a função de ensinar
e, portanto, sempre foi considerada uma forma de literatura menor” (p. 17). Publicar a
tetralogia dos reis foi um risco que a autora assumiu, mas com certa moderação, pois
eram histórias infantis que tratavam de temas como a democracia, mas por saber que era
considerada uma literatura menor, escaparia da perseguição do governo.
Para o teórico Hans Ulrich Gumbrecht, 2014, a arte é capaz de nos transportar
para uma época em que não vivemos e despertar o sentimento que as pessoas tinham
naquele momento. Segundo ele “os textos afetam os ‘estados de espírito’ da mesma
maneira que o clima atmosférico e a música” (p. 14). Nesse sentido, Ruth Rocha de uma
forma irreverente faz um leitor adulto sentir o que foi aquele período de repressão
criando o que o alemão chama de Stimmung. As histórias refletem um período em que
havia repressão e autoritarismo, mas ao mesmo tempo, havia esperança e para superar
as dificuldades era necessário uma união entre as pessoas que desejavam mudanças,
inclusive as crianças, pois existe um senso comum de que as crianças são o futuro do
país e isso está errado, as crianças também são o agora, possuem direitos, sonhos,
capacidade de pensar e buscar soluções.
Ao mesclar texto e imagens é possível ver de uma forma divertida como os
governantes são vistos e ridicularizados. Também as ilustrações contribuem para criar
uma atmosfera de luta pela democracia em um período em que esta foi tão
desrespeitada. Vejamos algumas ilustrações a seguir
Fig. 1 Walter Ono, 1978 Fig. 2 Walter Ono, 2013

As ilustrações de Walter Ono mostram o posicionamento autoritário do Reizinho


Mandão ao mesmo tempo que apresentam a incapacidade de assumir o trono.

Fig. 3 José Carlos Brito, 1980 Fig. 4 Walter Ono, 1982 Fig. 5 Walter Ono, 2003

Aqui aparece em sequência O rei que não sabia de nada com roupas de baixo, o rei Sapo
pendurado em uma corda com medo dos súditos e o rei da história O que os olhos não
veem retratados como grandes homens de cabeça (intelecto) pequeno.

Fig. 6 Walter Ono, 1980 Fig. 7 Walter Ono, 2013


Já nestas imagens vemos o protagonismo infantil no momento em que a garota Cecília
interroga o Rei que não sabia de nada e a única garota que ainda falava no reino do
Reizinho Mandão grita com ele dizendo Cala a boca já morreu, quem manda na minha
boca sou eu!”

Fig. 8 Walter Ono, 1982 Fig. 9 Walter Ono, 2003

Por fim, destacamos o povo unido contra seus governantes e promovendo mudanças.
Em Sapo Vira-rei-vira-sapo o povo canta até derrubar o castelo que servia para a prisão
das verdades. Em O que os olhos não veem, o povo cansado de não ser visto nem
ouvido resolve construir pernas de pau para alcançar a vista e os ouvidos dos
governantes.
Para Biazetto, 2008, “a percepção de uma imagem envolve a relação do leitor
com ela, como ele a vê, pois o olhar compreende as experiências vividas por aquele que
olha” (p. 76). Nesse sentido, os livros que aqui analisamos procuram ridicularizar o
autoritarismo e os governantes autoritários, destacar o papel das crianças na
transformação da sociedade e o poder do povo na luta pela democracia. Porém, vale
destacar que ela é percebida de maneiras diferentes pelo leitor adulto e pelo leitor
criança, o autoritarismo para este não será o mesmo que para aquele, expulsar um rei
mandão é diferente para esses públicos, enfrentar o adulto como fazem as personagens
de Ruth tem um significado muito diverso para diferentes leitores.
Poderia ser estranho o tema político na literatura infantil, mas aí é uma camada
que depende da própria criança para ser interpretada, deixar fora dos livros infantis um
tema tão importante e discutido seria menosprezar a capacidade desse público, não
podemos esperar que os livros sejam sempre voltados para a simples diversão ou
didática, eles podem trazer reflexões pois “nenhum livro é sempre social ou
politicamente neutro, e as publicações para os jovens são especialmente sensíveis à
maneira como uma determinada cultura, em um momento específico, enxerga a
infância” (SALIBURY; STYLES, 2013, p. 125).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Estudar a literatura com olhos voltados exclusivamente para o texto é algo


defendido por alguns grupos hoje em dia. Seria de grande valia fazer esse tipo de análise
na literatura infantil e especificamente em obras da Ruth Rocha, porém, esquecer outros
aspectos da obra como as questões da recepção, da relação com a sociedade e o
Stimmung é deixar de lado uma parte muito importante nesse tipo de estudo. Sua obra
vai muito além de questões relacionadas à beleza da escrita. Essa autora marcou uma
geração e continua sendo importante. Ela conseguiu se consolidar como escritora de
livros infantis ao mesmo tempo em que se posicionou em relação ao Regime Militar,
não fugiu do embate e pôs adultos e crianças para refletir sobre o seu mundo. Esse
engajamento político ligado à sua criatividade e capacidade artística contribuiu para que
tivéssemos obras com um caráter contestador e muito divertidas sem se utilizar de um
tom panfletário que poderia tornar suas histórias enfadonhas. Enfim, a criança se sente
valorizada por ver personagens infantis como protagonistas e agentes de transformação
e o adulto é convidado a refletir sobre o autoritarismo e a importância da democracia.
A fusão entre texto e imagem tão importante na literatura infantil, cumpre um
papel importante de adicionar camadas de leitura e percepção. Além disso, contribui
para uma melhor criação do ambiente e consequentemente um sentimento de época. As
ilustrações deixam muito claro que a criança pode ser protagonista das ações na
sociedade, que o povo unido tem muito poder, que a democracia é fundamental para um
povo. Para aqueles adultos que não conseguem interpretar textos, os desenhos podem
ajudar a mostrar o que é óbvio: nenhum governante pode ser maior que seu povo! No
Brasil já vimos reizinhos mimados mandando seus súditos calarem a boca, porém,
sempre teremos pessoas corajosas como Ruth Rocha para mostrar que “cala a boca já
morreu, quem manda na minha boca sou eu!”

REFERÊNCIAS
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Brasil: História, imagem e testemunho. 1. ed. - Rio de Janeiro: Ponteio, 2013.

BIAZETTO, C. As cores na ilustração do livro infantil e juvenil. O que é qualidade


em ilustração no livro infantil e juvenil: com a palavra o ilustrador. Org. Ieda de
Oliveira. São Paulo: DCL, p. 75-89, 2008.

CANDIDO, A. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989.

_____. Literatura e sociedade. São Paulo: Publifolha, 2000.

COUTINHO, A. Notas de Teoria Literária. Rio de Janeiro: Civ. Brasileira, 1976.

GUMBRECHT, H. U. Atmosfera, ambiência, stimmung: sobre um potencial oculto da


literatura. Trad. Ana Isabel Soares. Rio de Janeiro: Contraponto: PUC/Rio, 2014

ISER, W. O Fictício e o imaginário – Perspectivas de uma antropologia literária. Rio


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LOBATO, M. A barca de Gleyre. São Paulo: Brasiliense, 1951.

MARIANO, J. C. A literatura infantil e o autoritarismo no século XX: um estudo


comparativo entre Ruth Rocha e José Cardoso Pires. São Paulo: USP, 2012.

MIGUEL, M. A. F. Ruth Rocha, página a página: bibliografia de e sobre a autora.


Dissertação de mestrado, São Paulo: UNESP, 2006

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