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RESUMO
REPRESENTAÇÃO TRANSGÊNERO NA HQ
A ideia de produzir uma HQ sobre transgênero surgiu após reencontro do autor com uma
amiga de infância que havia iniciado o procedimento de mudança de sexo.
Por ser cisgênero, Cordeiro de Sá contou com o auxilio de Mariah Agatha Jeremias de
Souza Lima, mulher transexual, que o ajudou compartilhando sua experiência de vida e
analisando tecnicamente a produção. Distinguem-se cisgênero, as pessoas que se
identificam com o gênero que lhes foi atribuído quando ao nascimento e transexual, a
pessoa que não se identifica com o gênero que lhe foi atribuído quando de seu nascimento.
(JESUS 2012, p.14 - 15). Conceitos reforçados por Wolff e Saldanha em seus estudos
contemporâneos que destacam as novas apropriações e termos utilizados para facilitar o
entendimento sobre gênero, sexo e sexualidade,
[...] temos os humanos ‘cis’, (do latim, do mesmo lado), as pessoas cuja
identidade de gênero está ao lado do que socialmente se estabeleceu como o
padrão para o seu sexo biológico; e os humanos ‘trans’ (do latim, para além de),
pessoas cuja identidade de gênero é diferente do que foi estabelecido socialmente
como padrão para seu sexo biológico. (WOLFF ; SALDANHA, 2015, p. 40.)
Convém observar que, “[...] o artista é claro, pode transmitir só o que seu
instrumento e veículo são capazes de executar. Sua técnica restringe sua liberdade de
escolha (GOMBRICH,1986, p. 56). Logo, a produção de Cordeiro de Sá encontra
adversidades relativas tanto a experiência do autor cisgênero quanto desenho coerente ao
transgênero.
Em tese de doutorado, Carneiro (2015) analisa a obra Contre la bande dessinée, do autor
francês Jochen Gerner que coloca em jogo os próprios códigos que a constitui, em uma
metalinguagem em quadrinhos recorrendo às práticas literárias e artísticas do acúmulo, do
inventário, da assemblage e da citação. Na tese a autora define o livro de Gerner como
“uma antologia de frases alheias”, e sobre as frases alheias define que:
[...] são enunciados, eventos discursivos que são aqui re-enunciados. Um
enunciado depende de um indivíduo (o enunciador), que realiza o enunciado em
um evento (enunciação). Esse plural da “antologia de frases” pressupõe
enunciações múltiplas, provindas de indivíduos diversos [...] Alheias no sentido
jurídico: essas frases têm sua posse tomada por Gerner, desviadas, apartadas de
seus proprietários “originários”. Elas estão alhures (ailleurs), em um lugar outro
que seu lugar primeiro de enunciação. Dessa forma, elas estão reunidas ali (em
Contre la bande dessinée) alheias ao seu evento primário. [...] São alheias por
serem de um outro (alieno) e por poderem ser (re) ditas malgrado aquele quem a
disse (para além do indivíduo-enunciador). (CARNEIRO, 2015, p. 19, grifo
nosso).
Figura 1
Fonte: Vinhetas extraídas de “Malu: memórias de uma trans” (SÁ, 2013, p.3).
Figura 2
Fonte: Vinhetas extraídas de “Malu: memórias de uma trans” (SÁ, 2013, p.11).
Com isso, evidenciamos um fluxo da memória episódica (Figura 2) no qual o “si-
mesmo como narrador não apenas relata, mas justifica. E o si mesmo como protagonista
está sempre, por assim dizer, apontando para o futuro” (BRUNER, 1997, p. 104).
As tendências Bissexuais aparecem em dois outros personagens. Jorjão é o valentão
que agride fisicamente e assedia a protagonista durante a infância, mas oculta um desejo
sexual que não se concretiza (Figura 3). João, filho único, se envolve em segredo com Malu
e a abandona quando descoberto por sua mãe. Mais tarde, ao casar-se, João passa a levar
uma vida promíscua, exacerbando sua bissexualidade de forma perigosa e possessiva.
Figura 3
Fonte: Vinhetas extraídas de “Malu: memórias de uma trans” (SÁ, 2013, p. 6 - 40).
Figura 4
Fonte: Vinheta extraída de “Malu: memórias de uma trans” (SÁ, 2013, p. 16)
Diferente de Pat, Mahi investiu em transformações, para tornar seu corpo mais
semelhante ao feminino, por meio de experiências “domésticas” e uso clandestino de
silicone e seus derivados, correndo extremo risco de vida e saúde (Figura 4).
Figura 5
Fonte: Vinhetas extraídas de “Malu: memórias de uma trans” (SÁ, 2013, p. 13 - 20).
Ao mesmo tempo em que conversam com Malu, os personagens falam aos leitores
através do recurso da metalinguagem (Figura 5). Esse recurso também é utilizado para
apresentar a visão sobre os transgêneros durante as entrevistas de emprego de Malu e outros
momentos de relações de trabalho, nas quais a marca social se sobrepõe às habilidades,
competências, formação e vocações.
Figura 6
Fonte: Vinhetas extraídas de “Malu: memórias de uma trans” (SÁ, 2013, p. 26).
Figura 7
Fonte: Vinhetas extraídas de “Malu: memórias de uma trans” (SÁ, 2013, p. 35).
Neste artigo, foram relatadas algumas questões referentes à produção analisada. Como
surgiu a ideia da obra, a problemática relacionada à representação do transgênero pelo
cisgênero e a importância dos depoimentos, auto-relatos, recolhidos para a elaboração da
HQ.
Com isso é preciso que a representação transgênero seja aceita para que a proposta
de Cordeiro de Sá tenha êxito. Para tanto os recursos da produção são utilizados a fim de
proporcionar uma leitura agradável, apesar da temática séria. Logo conclui-se que a HQ
Malu: memórias de uma trans contempla os requisitos da narrativa sequencial gráfica
autoral e demanda apreciação intelectual. Como representação da complexa relação social
transgênero, Malu sintetiza o contexto social, cultural e relacional do cotidiano, assim
como a construção da identidade, segundo pressupostos que vão muito além da preferência
sexual.
Do ponto de vista da formação de redes sociais meso, a HQ logra êxito, devido a
riqueza de sua narrativa, à referência à realidade, à efetividade da observação social, ao
caráter de reportagem observável. É uma leitura que auxilia o debate da condição transexual
no Brasil, observável por leitores de diversos segmentos sociais e formações intelectuais,
sem perda de qualidade, por ser uma questão amplamente de cunho também social.
Mas, além de todas as características pesquisadas e exploradas neste estudo,
concluímos enfatizando que o chamamento para a leitura de Malu: memórias de uma trans
pode se dar independente do interesse em qualquer um dos temas que aborda, em sua
metodologia de elaboração, em seu compromisso social. Simplesmente, é possível apreciar
esta HQ por suas qualidades artísticas, narrativas e quadrinhísticas, como uma leitura de
muito boa qualidade.
REFERÊNCIAS
FRANCO, Edgar Silveira. Hqtrônicas: do suporte papel à rede Internet. 2. ed. São Paulo:
Annablume, 2008.
SÁ FILHO, Carlos Alberto Cordeiro de. Malu: memórias de uma trans. Ribeirão Preto:
RPHQ, 2013.
SACCO, Joe. Palestina: Uma nação ocupada. São Paulo: Conrad, 2004.
VERGUEIRO, Waldomiro. Uso das HQs no ensino. In: RAMA, Ângela (org.);
VERGUEIRO, Waldomiro (org.). Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula.
São Paulo: Contexto, 2004. p. 7-29.
i
Citação original, com tradução de Valéria Aparecida Bari: “Culture, defined as membership in a discourse community that shares a
common social space and history, and common imaginings, entered the field of applied linguistics through the study of language in its
sociocultural context, i.e. discourse. Discourse, as verbal communicative practices and habits of thought, embodies a community’s
identity and moral values, its understanding of history and its aspirations for the future.” (HANKS apud KRAMSCH, 2010, p.314)