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AS MEMÓRIAS DE MALU: TRANSEXUALIDADE NA SOCIEDADE

BRASILEIRA NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS.

Raul Felipe Silva Rodrigues


Universidade Federal de Sergipe

RESUMO

Analisa a função de registro jornalístico das histórias em quadrinhos, com função de


observação social das relações sociais transgênero. No Brasil, verificamos o início do uso
da história em quadrinhos como mídia de observação social com o lançamento em
português do livro-reportagem Palestina – Uma nação ocupada, de Joe Sacco, em 1994, na
qual o autor cria enredos e histórias de vida a partir da combinação e condensação de vários
relatos reais, coletados em campo. Por meio da análise da obra Malu: Memórias de Uma
Trans, do quadrinhísta Cordeiro de Sá, será comprovada a versatilidade das histórias em
quadrinhos como fonte de informação sobre um fenômeno social, sendo exemplificada
neste estudo as relações sociais e vivências dos transexuais na sociedade brasileira. A obra
Malu é autoral, com estilo de linha suja, isto é, sem arte final, em preto e branco. Cordeiro
de Sá, o autor, possui mestrado em Arquitetura e Urbanismo, docente de nível médio e
superior, quadrinhista e ativista de Direitos Humanos, contemplado com o Prêmio PNBE de
Responsabilidade Social em 2005. Lança Malu, no ano de 2013, motivado pelo reencontro
com um amigo de infância, que iniciou o seu processo de alteração de identidade de gênero
e pode compartilhar as experiências do segmento social ao qual passou a pertencer. Na
integridade da narrativa, foi possível trabalhar com a Análise do Discurso, verificando as
diferenças do protocolo verbal do segmento social dos transexuais, Análise do Discurso do
Sujeito Coletivo, Análise da Rede Social Meso, da Transexualidade, fundamentados pela
Diversidade e questões de Inclusão e Exclusão Social. Este trabalho faz parte da produção
intelectual da linha de pesquisa de Narrativa Sequencial Gráfica do PLENA – Grupo de
Pesquisa em Leitura, Escrita e Narrativa: Cultura, Mediação, Apresentação Gráfica,
Editoração e Manifestações.

Palavras-chave: Estudos de Gênero – História em Quadrinhos ; Inclusão Social – História


em Quadrinhos ; Transexualidade - História em Quadrinhos
INTRODUÇÃO

A história em quadrinhos – HQ – “Malu: memórias de uma trans” de Cordeiro de Sá foi


lançada em janeiro de 2014, no Museu da Diversidade, em São Paulo como parte das
celebrações do Dia da Visibilidade Trans. Data que ressalta a luta pelos direitos humanos e
respeito a identidade de gênero, celebrada no dia 29 de janeiro desde 2004.
Na obra, Cordeiro ilustra experiências de vida de uma personagem transgênero. Que
apesar de ficcional, contempla representações congêneres ao segmento social observado
pelo autor. O enredo da HQ gira em torno dos principais momentos da vida de Malu. Os
desafios enfrentados por ela, uma mulher transgênero, em busca das transformações
necessárias, para se tornar plena. Na saga a protagonista, constantemente confrontada por
adversidades sociais, atravessa problemas familiares e resiste a perseguições na escola.
Além de enfrentar tanto impedimentos de ingresso no mercado de trabalho como
dificuldades na ascensão profissional e social.
O autor elaborou o enredo da HQ com base em relatos reais de pessoas pertencentes
à comunidade LGBT. A produção de Cordeiro simula uma realidade social ambientada nas
cidades de Sacramento e Ribeirão Preto, retratadas através de fotografias em preto e branco.
Onde os indivíduos que relataram os eventos discursivos recolhidos por Cordeiro,
preservam o anonimato e são representados por personagens ficcionais. A simulação da
realidade confere a história ficcional, características informacionais sobre o fenômeno
social observado. Como adverte os leitores sobre comportamentos cisnormativos
discriminatórios.
Tal verossimilhança social acionou aprazimento acadêmico crítico, observado com
excelência nos estudos existentes sobre a obra de Joe Sacco, Palestina – Uma nação
ocupada. Na qual para elaboração do enredo o autor viajou a Cisjordânia, Jerusalém e Faixa
de Gaza. Nestes locais, Sacco, reuniu inúmeros depoimentos de diversos indivíduos. Com
intuito de retratar a realidade vivida por palestinos sob ocupação israelense. A metodologia
investigativa e a síntese da reportagem, elaborada e expressa utilizando-se da linguagem e
mídia das HQs, adapta o conteúdo informacional ao entendimento do grande público, e
conferiu ao seu trabalho a definição de quadrinho jornalístico, sendo a primeira obra do
gênero a receber o Prêmio Pulitzer em 1996.
A presente análise baseia-se em definições da arte sequencial gráfica aplicada a
liberdade da produção autoral. Bem como a investigação da obra Malu: Memórias de uma
trans, fundamentada em características desta com a história em quadrinhos Palestina – uma
nação ocupada. Com foco no discurso social, trans e do sujeito. A fim de evidenciar
processos de inclusão e exclusão da sociedade cisnormativa brasileira. O apoio
metodológico e a disponibilização dos fundamentos teóricos foram orientados pela
Professora Dr.ª Valéria Aparecida Bari e Professora M.ª Márjorie Garrido Severo,
respectivamente líder e pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Leitura, Escrita e
Narrativa: Cultura, Mediação, Apresentação Gráfica, Editoração, Manifestações
(PLENA).

HISTÓRIA EM QUADRINHOS E CARACTERÍSTICA AUTORAL

Existe certa dificuldade de definir características determinantes para estabelecer uma


história em quadrinhos como autoral. Para fins deste trabalho admitem-se definições de
pesquisadores da arte sequencial gráfica, em especial, Vergueiro, Cagnin, e Franco. As
contribuições de seus estudos quando analisadas em conjunto acolhem a seguinte síntese:
“o sistema narrativo composto” (VERGUEIRO, 2004, p. 31) das histórias em quadrinhos
formado por “códigos e signos” (CAGNIN, 1975, p. 25) estabelecem “conjunto único e
linguagem sofisticada” (FRANCO, 2008, p. 25) de perspectivas de expressões ilimitadas. A
obra Malu se reveste de característica autorais pelo emprego de colagens, desenho de
vinheta irregular, com estilo de linha suja, isto é, sem arte final, em preto e branco.
Segundo Edgar Franco “são nas obras dos quadrinhistas autorais que os
quadrinhos alcançam a sua maior expressividade e é nelas que vemos confirmada a
importância das HQs como forma artística” (FRANCO, 2008, p. 33). Sendo assim, tais
arranjos permitem que o potencial das HQs seja experimentado de forma ampla pelas
produções autorais.
Um grande exemplo de produção autoral é a obra Palestina – Uma nação ocupada,
criada como forma de sintetizar um extenso trabalho de pesquisa jornalística, pelo jornalista
e quadrinhista Joe Sacco, considerado um repórter de guerra (SACCO, 2004). Estudados
autor e obra tornaram-se referência, ao sobrepor claramente a linguagem das HQs e o
trabalho jornalístico.
Vale ressaltar essa linha de produção autoral, por vezes considerada despretensiosa,
reforça sua legitimidade pela reflexão autor e capacidade de conexão com os leitores. Ou
seja, ao mesmo tempo em que criam suas próprias regras do como fazer os quadrinhos,
preservam o público-alvo e criam uma primeira rede social, baseada na identidade. Pelas
virtudes da HQ, contudo, podem chegar a criar uma rede social meso, ou seja, dinamizada
pelas propriedades de leitura, qualidades artísticas e possibilidades mercadológicas.

REPRESENTAÇÃO TRANSGÊNERO NA HQ

A ideia de produzir uma HQ sobre transgênero surgiu após reencontro do autor com uma
amiga de infância que havia iniciado o procedimento de mudança de sexo.
Por ser cisgênero, Cordeiro de Sá contou com o auxilio de Mariah Agatha Jeremias de
Souza Lima, mulher transexual, que o ajudou compartilhando sua experiência de vida e
analisando tecnicamente a produção. Distinguem-se cisgênero, as pessoas que se
identificam com o gênero que lhes foi atribuído quando ao nascimento e transexual, a
pessoa que não se identifica com o gênero que lhe foi atribuído quando de seu nascimento.
(JESUS 2012, p.14 - 15). Conceitos reforçados por Wolff e Saldanha em seus estudos
contemporâneos que destacam as novas apropriações e termos utilizados para facilitar o
entendimento sobre gênero, sexo e sexualidade,
[...] temos os humanos ‘cis’, (do latim, do mesmo lado), as pessoas cuja
identidade de gênero está ao lado do que socialmente se estabeleceu como o
padrão para o seu sexo biológico; e os humanos ‘trans’ (do latim, para além de),
pessoas cuja identidade de gênero é diferente do que foi estabelecido socialmente
como padrão para seu sexo biológico. (WOLFF ; SALDANHA, 2015, p. 40.)
Convém observar que, “[...] o artista é claro, pode transmitir só o que seu
instrumento e veículo são capazes de executar. Sua técnica restringe sua liberdade de
escolha (GOMBRICH,1986, p. 56). Logo, a produção de Cordeiro de Sá encontra
adversidades relativas tanto a experiência do autor cisgênero quanto desenho coerente ao
transgênero.

DISCURSO TRANS: SUJEITO COLETIVO E REDE MESO

Uma característica importante de expressão da identidade gênero consiste no uso de gírias e


termos comuns aos indivíduos pertencentes a esse segmento. Bem como “a recusa do
discurso que tenta trazê-las-los a ‘normalidade’” (SIERRA, 2006, p.2). Ainda em seu artigo
o professor doutor fala sobre a construção destas identidades quando cita,
[...] elas [as identidades de gênero] estão continuamente se construindo e se
transformando. Em suas relações sociais, atravessadas por diferentes discursos,
símbolos, representações e práticas, os sujeitos vão se construindo como
masculinos ou femininos, arranjando e desarranjando seus lugares sociais, suas
disposições, suas formas de ser e de estar no mundo. (LOURO apud SIERRA,
2006, p.2).

No capítulo Language and Culture publicado no livro The Routledge Handbook


of Applied Linguistics (2010), a professora Claire Kramsch trata da linguagem como
sistema simbólico que incorpora e expressa valores culturais. E atribui ao antropólogo
linguístico William Hanks (1996) a demonstração da linguagem como pratica “simbólica
de construção de gênero, identidades e subjetividades da sociedade contemporânea”
(KRAMSCH, 2010, p.309).
Cultura, definida como pertencimento a uma comunidade discursiva que
compartilha um espaço comum social e história, e imaginário comum, entrou no
campo da linguística aplicada através do estudo da linguagem em seu contexto
sociocultural, isto é, pelo discurso. O discurso, definido como as práticas
comunicativas verbais e hábitos de pensamento, incorpora valores de uma
comunidade de identidade e morais, a sua compreensão da história e das suas
aspirações para o futuroi. (HANKS apud KRAMSCH, 2010, p. 314)

Com isso, percebe-se que a cultura funciona como relação de pertencimento e


compartilhamento de uma identidade e de seus valores. Na qual, ocorrem processos de
inclusão social dos que se assemelham e exclusão dos diferentes. Partindo desse
pressuposto, são examinados alguns destes processos a partir dos enunciados que compõem
a HQ em questão.
As características desta HQ autoral, muito embora favoreçam menos a formação de
Redes Sociais Meso em torno de sua leitura, por outro lado a categorizam por uma questão
de pertencimento à subcultura retratada no enredo e identificação com a/o protagonista.
Segundo Vergueiro e Bari:
O estudo das redes sociais das histórias em quadrinhos pode ajudar a determinar
outros elementos relacionais, vinculados às relações de gênero, étnicas,
familiares, profissionais; [...] Na sociedade atual, o indivíduo – e não mais o local
onde ele vive ou aqueles com quem convive diretamente – é determinante na
formação de redes sociais. (VERGUEIRO; BARI, 2009, p. 592-593)

Esta peculiaridade enquadra-se nos fenômenos sociais considerados de nível meso,


ou seja, em “que se apresentam simultaneamente interações individuais, institucionais e
fenômenos sociais observáveis empiricamente” (MOLINA, 2005, p. 71, apud
VERGUEIRO; BARI, 2009, p.595). Por conta dessas propriedades, a elaboração e
publicação de Malu representa uma contribuição na discussão do universo transexual, que
vai permear diferentes segmentos da sociedade e até gerar empatia em grupos sociais que
originalmente não representam o segmento LGBT ou seus simpatizantes.

DEPOIMENTOS AUTOBIOGRAFICOS E CITAÇÕES ALHEIAS

Em tese de doutorado, Carneiro (2015) analisa a obra Contre la bande dessinée, do autor
francês Jochen Gerner que coloca em jogo os próprios códigos que a constitui, em uma
metalinguagem em quadrinhos recorrendo às práticas literárias e artísticas do acúmulo, do
inventário, da assemblage e da citação. Na tese a autora define o livro de Gerner como
“uma antologia de frases alheias”, e sobre as frases alheias define que:
[...] são enunciados, eventos discursivos que são aqui re-enunciados. Um
enunciado depende de um indivíduo (o enunciador), que realiza o enunciado em
um evento (enunciação). Esse plural da “antologia de frases” pressupõe
enunciações múltiplas, provindas de indivíduos diversos [...] Alheias no sentido
jurídico: essas frases têm sua posse tomada por Gerner, desviadas, apartadas de
seus proprietários “originários”. Elas estão alhures (ailleurs), em um lugar outro
que seu lugar primeiro de enunciação. Dessa forma, elas estão reunidas ali (em
Contre la bande dessinée) alheias ao seu evento primário. [...] São alheias por
serem de um outro (alieno) e por poderem ser (re) ditas malgrado aquele quem a
disse (para além do indivíduo-enunciador). (CARNEIRO, 2015, p. 19, grifo
nosso).

Aplicadas as definições de Carneiro à leitura de Malu, foi possível estabelecer


paralelo entre a produção de Cordeiro e a de Sacco. Ambos, indivíduos diferentes à
representação de suas produções, recorreram a relatos dos pertencentes ao segmento social
observado e os representaram através de citações de frases alheias em suas obras.
Cordeiro de Sá declara que a HQ foi elaborada a partir de relatos autobiográficos, o
que é evidente em seu enredo e história. Com isso, vale ressaltar que “o narrador do auto
relato não coincide completamente com o personagem que protagoniza a ação”
(CARVALHO, 2004, p. 4). Ou seja, o discurso (re) enunciado “depende dos atos da
conceitualização: a criação de esquemas de interpretação pelos quais a memória semântica
dá coerências aos elementos da memória episódica” (BRUNER; WEISSER, 1997, p. 149).
Memória esta que estabelece nexo entre quem somos hoje e o que fomos (ECO, 2005, p.
18).
Contudo, Malu é uma personagem redonda, construída a partir dos relatos de um
coletivo, sendo ao mesmo tempo ficcional e representante de muitas situações reais, que se
sintetizam em suas memórias. As experiências analisadas na narrativa pela Malu adulta não
refletem a situação real de indivíduos isolados. Malu compartilha com os leitores suas
memórias. Estas por sua vez são vividas com outros personagens dentro da história. Aqui
estes coadjuvantes, como representações dos outros segmentos sociais se relacionando
socialmente, que carregam parte dos relatos de vida levantados para a elaboração da obra.
Com isso, as personagens mantem a coerência no decorrer do enredo, visto que uma
única narrativa não seria capaz de sintetizar e representar um panorama de tanta diversidade
(e adversidade), como o presente no segmento social em questão.
Sendo assim, as citações diretas, vinhetas, a seguir exemplificam através de (re)
enunciados da HQ, as frases alheias extraídas dos depoimentos autobiográficos recolhidos.
E como estas evidenciam comportamentos cisnormativos da sociedade brasileira, por meio
das relações entre a personagem Malu e seus coadjuvantes, que representam segmentos
sociais sintetizados.

Figura 1
Fonte: Vinhetas extraídas de “Malu: memórias de uma trans” (SÁ, 2013, p.3).

Dentre esses personagens coadjuvantes, o interesse especial da presença do homem


heterosexual é manifestada na personagem de Bertão (Figura 1). Pai de Malu, que no inicio
da história não tem uma relação boa com o filho, mas desenvolve a afetividade no decorrer
da HQ. A transformação de Bertão faz parte do amadurecimento do diálogo entre pai e filho
e as possibilidades que se abrem para o futuro dos transgêneros.

Figura 2
Fonte: Vinhetas extraídas de “Malu: memórias de uma trans” (SÁ, 2013, p.11).
Com isso, evidenciamos um fluxo da memória episódica (Figura 2) no qual o “si-
mesmo como narrador não apenas relata, mas justifica. E o si mesmo como protagonista
está sempre, por assim dizer, apontando para o futuro” (BRUNER, 1997, p. 104).
As tendências Bissexuais aparecem em dois outros personagens. Jorjão é o valentão
que agride fisicamente e assedia a protagonista durante a infância, mas oculta um desejo
sexual que não se concretiza (Figura 3). João, filho único, se envolve em segredo com Malu
e a abandona quando descoberto por sua mãe. Mais tarde, ao casar-se, João passa a levar
uma vida promíscua, exacerbando sua bissexualidade de forma perigosa e possessiva.

Figura 3
Fonte: Vinhetas extraídas de “Malu: memórias de uma trans” (SÁ, 2013, p. 6 - 40).

Pat é personagem coadjuvante que compartilha certas semelhanças com a


protagonista. A amiga de infância de Malu também assume a expressão trans de sua
identidade (Figura 4). A diferença entre elas se dá no fato de que Pat não anseia pelas
transformações transgênero. Então, Pat encontra sua identidade sem a necessidade de
modificações anatômicas, enfatizando algumas características pelo uso de cabelos longos e
adereços femininos.
Figura 3
Fonte: Vinheta extraída de “Malu: memórias de uma trans” (SÁ, 2013, p. 7)

Mahi é a travesti dona do salão de beleza onde Malu trabalha na adolescência. Em


suas conversas, compartilha com a personagem Malu sua experiência de vida e impressões
sobre a prostituição. Os clientes do salão apresentam sua visão sobre a homossexualidade e
transgênero, classificando muitas vezes como correta a posição serviçal dos mesmos e a
limitação para essas atividades laborais.

Figura 4
Fonte: Vinheta extraída de “Malu: memórias de uma trans” (SÁ, 2013, p. 16)

Diferente de Pat, Mahi investiu em transformações, para tornar seu corpo mais
semelhante ao feminino, por meio de experiências “domésticas” e uso clandestino de
silicone e seus derivados, correndo extremo risco de vida e saúde (Figura 4).
Figura 5
Fonte: Vinhetas extraídas de “Malu: memórias de uma trans” (SÁ, 2013, p. 13 - 20).

Ao mesmo tempo em que conversam com Malu, os personagens falam aos leitores
através do recurso da metalinguagem (Figura 5). Esse recurso também é utilizado para
apresentar a visão sobre os transgêneros durante as entrevistas de emprego de Malu e outros
momentos de relações de trabalho, nas quais a marca social se sobrepõe às habilidades,
competências, formação e vocações.

Figura 6
Fonte: Vinhetas extraídas de “Malu: memórias de uma trans” (SÁ, 2013, p. 26).

Com a mudança de cenário para a cidade grande, há a representação de mais relatos


em três situações de destaque, que vão protagonizar diferentes momentos com a
personagem Malu. Nathalia, uma travesti que se prostitui para viver e recebe sua prima Pat
em seu apartamento, assim como Malu (Figura 6), dando instruções de como se iniciar na
profissão.
Após sofrer um estupro, Malu desiste da prostituição. Também está preocupada com
a drogadição, que sujeita grande parte das pessoas envolvidas com o comércio sexual. Vai
ter oportunidade de mudança com Deya, a empresária, dona do salão de beleza onde Malu
irá trabalhar, após abandonar a prostituição. E os membros do movimento social que lutam
por direitos LGBT, que irão finalmente discutir a identidade transgênero como uma
possibilidade dentro da estrutura social presente.

Figura 7
Fonte: Vinhetas extraídas de “Malu: memórias de uma trans” (SÁ, 2013, p. 35).

O fecho do enredo, apesar de aliviar a situação da personagem Malu e encaminhar a


sua aceitação social e estabilização da vida adulta, reflete o caminho tortuoso que ainda
deverá ser trilhado pelo segmento transexual, mediante a exclusão social declarada fora dos
grandes centros urbanos, ao mesmo tempo que a situação urbana ainda transita entre a
tolerância e a aceitação.
CONCLUSÃO

Neste artigo, foram relatadas algumas questões referentes à produção analisada. Como
surgiu a ideia da obra, a problemática relacionada à representação do transgênero pelo
cisgênero e a importância dos depoimentos, auto-relatos, recolhidos para a elaboração da
HQ.
Com isso é preciso que a representação transgênero seja aceita para que a proposta
de Cordeiro de Sá tenha êxito. Para tanto os recursos da produção são utilizados a fim de
proporcionar uma leitura agradável, apesar da temática séria. Logo conclui-se que a HQ
Malu: memórias de uma trans contempla os requisitos da narrativa sequencial gráfica
autoral e demanda apreciação intelectual. Como representação da complexa relação social
transgênero, Malu sintetiza o contexto social, cultural e relacional do cotidiano, assim
como a construção da identidade, segundo pressupostos que vão muito além da preferência
sexual.
Do ponto de vista da formação de redes sociais meso, a HQ logra êxito, devido a
riqueza de sua narrativa, à referência à realidade, à efetividade da observação social, ao
caráter de reportagem observável. É uma leitura que auxilia o debate da condição transexual
no Brasil, observável por leitores de diversos segmentos sociais e formações intelectuais,
sem perda de qualidade, por ser uma questão amplamente de cunho também social.
Mas, além de todas as características pesquisadas e exploradas neste estudo,
concluímos enfatizando que o chamamento para a leitura de Malu: memórias de uma trans
pode se dar independente do interesse em qualquer um dos temas que aborda, em sua
metodologia de elaboração, em seu compromisso social. Simplesmente, é possível apreciar
esta HQ por suas qualidades artísticas, narrativas e quadrinhísticas, como uma leitura de
muito boa qualidade.
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common social space and history, and common imaginings, entered the field of applied linguistics through the study of language in its
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