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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS

ANDRESSA NORA DOS ANJOS

RESENHA SOBRE “MEMÓRIAS DA PLANTAÇÃO: HISTÓRIAS DE


RACISMO COTIDIANO” DE GRADA KILOMBA
O papel exercido pela academia na produção de conhecimento: qual narrativa é considerada
legítima?

Rio de Janeiro
2023
INTRODUÇÃO

A autora Grada Kilomba, a quem dedicarei nas próximas linhas minhas simplórias
análises acerca de sua obra, é escritora do livro Memórias da Plantação: episódios de racismo
cotidiano, publicado em 2008. Enquanto mulher negra intelectual de origens da Angola e São
Tomé e Príncipe, Grada é também filósofa e psicanalista, tendo sido aprovada como doutora
em Filosofia pela Universidade Livre de Berlim, na Alemanha.
Reconhecida por ser uma artista interdisciplinar que reúne em suas produções
acadêmicas debates sobre raça, gênero e classe aliando, ainda, discussões sobre a linguagem,
a questão da memória, do trauma e do racismo, Grada amplia o debate e destrincha os temas
partindo de uma perspectiva psicanalítica pós-colonial, perfazendo críticas as consequências
deixadas pela colonização europeia na vida de pessoas racializadas.
Escrito e publicado originalmente em inglês com o título Plantation Memories:
Episodes of Everyday Racism, no Brasil, a obra só foi publicada cerca de dez anos após seu
lançamento, tendo sido traduzida em 2019 pela Editora Cobogó. A obra que carrega as
palavras “memórias” e “plantação” em sua titulação, remete histórias de um passado colonial,
na qual quase todas as memórias de pessoas negras ou racializadas perpassam, em algum
momento, por um cenário de violência, sendo colocados numa posição de objetificação, de
exploração e/ou de escravização.

DESENVOLVIMENTO

Tendo em vista isso, em sua carta à editora brasileira, Grada assinala que escreveu este
livro para entender quem ela é. Escreveu este livro se colocando em um lugar que a negaram
durante séculos, o lugar de uma pessoa preta na academia que pode produzir conhecimento
científico. Lugar esse que não foi dado, mas sim conquistado por meio de muita luta e
persistência enquanto um corpo que veio da margem, e não do centro.
Desse modo, Grada irá dizer que a língua possui “dimensão política de criar, fixar e
perpetuar relações de poder e violência, pois cada palavra que usamos define o lugar de uma
identidade” (p. 14). Por isso, utiliza terminologias que visam abranger todos os públicos em
sua obra, disponibilizando um mini glossário com um novo vocabulário das palavras que
utilizará, uma vez que as mesmas carregam em sua forma heranças coloniais e patriarcais em
seu modo de escrita, sendo necessária a sua problematização e um direcionamento para novas
formas de escrevê-las.
Nesse contexto, ao tratar da questão da linguagem, a autora tenta abarcar todos os
gêneros, visto que cada grupo social denota sentidos diferentes para as palavras, em que
muitas das vezes, seus significados podem ser deturpados, carregando em suas raízes
dimensões de dominância. Diante disso, Grada indica como utilizou essas palavras em seu
texto, enfatizando que quando escritas em itálico, apresentam “a problemática das relações de
poder e violência na língua portuguesa” (p. 15); já quando são palavras que expressam
traumas, estas são escritas de maneira abreviada ou em letras minúsculas; e aquelas
resultantes de “autodefinição, com uma história de resistência e de luta pela igualdade” (p. 17)
são escritas com a primeira letra em maiúscula.
Em sua introdução, a autora inicia o parágrafo com um poema de Jacob Sam-La Rose,
em que o poetista diz que escreve porque durante muito tempo a sua voz foi calada. Essa
associação faz referência aos longos anos em que pessoas negras tiveram suas vozes
interrompidas forçadamente, de tal maneira que foram impossibilitados não só de falar, mas
de provar sua existência enquanto sujeitos. Ao referenciar bell hook, a autora faz a ponte entre
os conceitos de “objeto” e “sujeito”, uma vez que durante muito tempo em produções
científicas, os corpos negros serviam somente como objeto de análise, sem terem direito a
estarem numa posição de pesquisador, somente de seres passíveis a serem estudados. Grada,
diante desse cenário, irá dizer que não é um objeto, mas sim um sujeito e que, enquanto
escreve, emerge “como um ato político” (p. 28). Isto é, através do processo de escrita, ela
passa a se tornar sujeito, que descreve a sua própria realidade a partir de seu ponto de vista e
não da perspectiva do outro – o sujeito branco.
Assim como Grada referencia bell hooks em sua obra, a mesma indica que sujeitos são
aqueles que "têm o direito de definir suas próprias realidades, estabelecer suas próprias
identidades, de nomear suas histórias” (hooks, 1989, p.42). Enquanto isso, como já observava
a autora Patricia Hill Collins (2016)1, ela evidencia o porquê de mulheres negras ocuparem
posições marginalizadas no ambiente acadêmico, uma vez que:
“O status de ser o “outro” implica ser o outro em relação a algo ou ser
diferente da norma pressuposta de comportamento masculino branco. Nesse modelo,
homens brancos poderosos definem-se como sujeitos, os verdadeiros atores, e
classificam as pessoas de cor e as mulheres em termos de sua posição em relação a
esse eixo branco masculino."
(COLLINS, 2016, p. 105)

1
Patricia Hill Collins, renomada pesquisadora e professora universitária de Sociologia e autora de
“Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro”.
Logo, Collins utiliza o conceito de outsider within referente a posição das mulheres
afro-americanas no ambiente universitário para indicar uma situação coletiva e estrutural, na
qual intelectuais negras se sentem reclusas e desintegradas da academia, tendo as suas
experiências invalidadas, dado que essas mulheres são definidas e avaliadas a partir dos
estereótipos dos outros. Então, essas representações estereotipadas passam a ser validadas
como autênticas e, por isso, se faz necessária a sua própria autoavaliação e autodefinição. O
que, na obra de Grada, reflete em seu processo de escrita, a maneira como a dinâmica de
poder fundamenta esse processo.
Diante disso, observa-se que a colonização deixou marcas na vida de pessoas
racializadas, visto que historicamente, a produção de conhecimento nas ciências sociais e
humanas não era permitida a quem não fosse homem, branco, europeu e cisheterossexual.
Tornando grupos sociais que não se adequam a esse espectro como oprimidos, ao passo que
quando emitissem sua voz, sua fala seria invalidada. Diante disso, Grada permite que
identifiquemos essa circunstância a partir da alusão referente o retrato da escravizada
Anastácia, no capítulo “A Máscara”, em que:

“A máscara representa o colonialismo como um todo. Ela simboliza políticas sádicas


de conquista e dominação e seus regimes brutais de silenciamento da das/os chamadas/os
“Outras/os”: Quem pode falar? O que acontece quando falamos? E sobre o que podemos
falar?”
(KILOMBA, 2019, p. 33)

Ou seja, a sociedade que vivemos enquanto um corpo social que reproduz as práticas
do colonialismo no cotidiano é, também, criadora de "máscaras" que censuram, oprimem e
objetificam o ser. O retrato ilustrado pelo francês Jacques Arago durante os anos 1817 e 1818,
representa a figura de Anastácia utilizando um colar de ferro juntamente com uma máscara
facial que a impedia de falar, cuja relação denota que “no âmbito do racismo, a boca se torna
o órgão da opressão por excelência” (p. 33). Sendo assim, observa-se que durante muito
tempo a boca, enquanto um órgão que "simboliza a fala e a enunciação" (p. 33) se tornou um
instrumento de controle mediado por pessoas brancas para impedir que pessoas negras se
expressassem. Afinal, o que teriam os negros a dizer se sua função é somente servir?
Essa lógica de raciocínio, até hoje cultivada por algumas vertentes de pensamento,
remete a dificuldade de pessoas racializadas em serem ouvidas. No capítulo “Quem pode
falar?” Grada nos submete a uma discussão de que o que está em discussão não é o fato de
pessoas negras saberem ou não se articular, mas sim que esses sujeitos – até então
considerados como “coisas” – não possuem o direito de se expressarem, existindo somente
enquanto corpos subalternos.
Esse tipo de discurso coloca em evidência a relação da produção de conhecimento
dentro do ambiente acadêmico. Nesse contexto, a palavra “epistemologia”, conceito da
filosofia que se dedica a estudar o que é o conhecimento, está preocupada em responder uma
de suas principais questões: O que é a ciência? O que é o conhecimento científico verdadeiro?
Como conseguimos alcançá-lo? Ou mais que isso, se problematizamos um pouco mais a
questão: O que é esse conhecimento? Quem é reconhecido como uma pessoa que produz
conhecimento? Quem possui permissão para tal?
Muito mais que questionamentos sem respostas, a contribuição que Grada faz em sua
obra acerca dessas questões é trazer exemplificações práticas de que essa ciência tão admirada
e seguida por inúmeros filósofos e cientistas rumo ao caminho da verdade, baseia-se em um
mito do conhecimento universal. Observa-se, nessa conjuntura, que o colonialismo enquanto
prática de dominação política, cultural e econômica que auto determinou a Europa Ocidental
como o “centro do mundo determinou, portanto, que a produção de conhecimento científico
se restringisse a estabelecer uma nova ordem mundial, a qual Aníbal Quijano2 irá nomear a
Europa como uma nova liderança hegemônica, pois detém “o controle da subjetividade, da
cultura, do conhecimento e da produção de conhecimento'' (QUIJANO, 2005, p. 117). E, por
isso, como indica Quijano, com a construção da ideia de raça e de uma colonialidade do
poder, instaura-se não só uma divisão social do trabalho, mas também uma divisão racial do
trabalho, visto que uma vez estando no centro do mundo, possuem poder de determinar novas
formas do que é o conhecimento.
Ademais, ao modo que os colonizadores determinam a existência “raças superiores” e
“raças inferiores”, nas quais o inferior se refere aos indivíduos não brancos e aos povos
colonizados, inicia-se então uma segregação, em que pessoas racializadas são sempre
reduzidas à servidão enquanto pessoas brancas de classe média e alta são destinados a ocupar
durante a sua vida os mais altos cargos de poder. Essa relação hegemônica instaurada pela
Europa, coloca em destaque os rumos em que a produção de conhecimento seguiu, uma vez
que o eurocentrismo segue presente na produção científica das universidades ocidentalizadas
determinando qual conteúdo é tratado como verdadeiro e científico.

2
Aníbal Quijano, sociólogo e pensador de origem peruana reconhecido por ter desenvolvido o
conceito de “colonialidade de poder”. Em seu campo de estudos o autor realiza um trabalho baseado
em teorias decoloniais e de perspectiva crítica.
Ao passo que ao longo da história o conhecimento ficou restrito a poucos grupos
sociais que possuem o poder de monopolizar o discurso, esse saber também é ancorado em
uma estrutura. De tal forma que esse saber científico tem de se adequar a metodologia
imposta por essa ciência que se preze como algo neutro, imparcial e objetivo, caso contrário
será subentendido como mera experiência ou subjetividade. No entanto, o que Grada irá
enfatizar em sua obra é justamente o contrário, pois devido a forma como se monopoliza a
autoridade do conhecimento no mundo, o que falta no espaço acadêmico é a compreensão de
que discursos baseados em experiências são muito mais que subjetividades individuais, mas
também vivências coletivas compartilhadas por seus semelhantes.
Diante disso, a escolha de trazer em seu trabalho um método de pesquisa empírica que
é baseado em "entrevistas não diretivas baseadas em narrativas biográficas" (p.85) tem como
efeito fazer com que pessoas negras articulem suas próprias perspectivas, falando por si
próprias. O mito da neutralidade consiste em apontar a incapacidade de se fazer uma ciência
neutra, pois o conceito de ser “neutro” ou “isento” de algo passa a se tornar um critério para
qualificar ou desqualificar discursos e produções acadêmicas vindas de pessoas que
pertencem à margem.
Esse mito do universal, portanto, é mais uma das formas do colonialismo de controlar
narrativas e determinar quem pode ou não falar tanto no meio universitário, quanto na vida.
Assim como Ramón Grosfoguel3 cita que “o conhecimento se produz a partir de um espaço
particular do mundo e, assim, não existe produção de conhecimento não situada”
(GROSFOGUEL, 2016, p. 29).

CONCLUSÃO

Nesse sentido, a principal estratégia linguística da autora em sua obra perpassa por
humanizar o uso da palavra “sujeito” que tanto foi negado às pessoas negras. Utilizando,
assim, uma técnica de escrita textual que envolve as relações em sua totalidade, na
perspectiva macro e micro, trazendo questões que podem ser tanto culturais e naturais,
individuais e estruturais, quanto sociológicas e psicológicas. O que irá desencadear uma
espécie de sintoma multilateral, em que todas essas questões podem ser afetadas e
atravessadas por mais de um grupo social.

3
Ramón Grosfoguel, é um sociólogo e pesquisador porto-riquenho, tendo desenvolvido em seus
trabalhados temas acerca da modernidade e colonialidade.
Além disso, Grada visa também incorporar a relação entre tempo e espaço na sua
forma de escrita, em que seu texto não segue uma perspectiva unilinear, pois o tempo todo a
autora passeia pelo texto, retomando as suas ideias em diferentes espaço-tempo, o que a faz o
leitor ser transportado por todas essas cenas, vivenciando diferentes tipos de experiências.
(em aberto para falar dos capitulos)
Em sua análise, portanto, Grada identifica que na sociedade atual para se produzir
conhecimento acadêmico deve-se, essencialmente, obedecer a racionalidade, visto que a
mesma ainda é um pilar que está presente em todas as nossas relações sociais, o que acabam
por legitimar os discursos com base nessa “razão”.
Assim, quando introduzidos os valores de um sujeito na produção de ciência, estes
passam a carregar um estigma negativo que, por sua vez, acabam marginalizando as ideias e
produções desses grupos sociais – neste caso, a da mulher negra –, na qual suas narrativas são
consideradas ilegítimas por não se adequarem a perspectiva hegemônica.
Nesse movimento de pessoas afrocentradas ocuparem um “não-lugar” ao longo da
história, ao trazer episódios de racismo cotidiano vivenciados pela própria autora e por outras
mulheres negras entrevistadas ao longo da obra, o intuito de Grada é desenvolver uma
narrativa que vise abandonar o status de pessoas negras como o “outro”, reafirmando as suas
posições sociais enquanto intelectuais negras e produtoras de conhecimento científico.
Visto que por muito tempo o racismo epistêmico foi naturalizado, quando não
simplesmente ignorado na academia enquanto um problema teórico, Grada reafirma que o
racismo é muito mais do que apenas um fenômeno estrutural, mas também estruturante, uma
vez que se tornou um elemento fundamental que moldou a sociedade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano. Tradução de


Jess Oliveira. 1o. edição. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

COLLINS, P. H. Aprendendo com a outsider-within: a significação sociológica do


pensamento feminista negro. Revista Sociedade e Estado. Vol. 31, nº 1. Janeiro/Abril, 2016.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER,


Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais – perspectivas
latino-americanas. Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina: Clacso, 2005a. p. 107-30.

GROSFOGUEL, Ramón. A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas:


racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI.
Revista Sociedade e Estado – Volume 31 Número 1 Janeiro/Abril 2016.

MATIAS, K. D. (2021). KiILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: episódios de racismo


cotidiano.: Tradução de Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2019. 244p. Politeia -
História E Sociedade, 19(2), 342-348. Disponível em:
https://doi.org/10.22481/politeia.v19i2.7644. Último acesso: 03/01/2023.

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