O ilustre conto de Machado de Assis, A Sereníssima República, publicado no século XXI,
período em que se colocava em xeque a monarquia brasileira, relata a conferência de Cônego Vargas, um narrador privilegiado da trama que declara ter descoberto a língua das aranhas, e que, através delas, foi capaz de organizar uma sociedade com a espécie. Em sua obra, Machado de Assis retrata a realidade da época a partir do comportamento humano, analisando os assuntos sociais, econômicos e políticos por meio de alegorias, sendo elas, a própria população brasileira do século XXI. Logo, ao longo do conto, observa-se uma relação que Machado de Assis constrói que perpassam entre os conceitos de poder e política. Sendo assim, é possível dizer que houve uma invenção da política na sociedade das aranhas? De acordo com o filósofo Francis Wolff, em sua obra A Invenção da Política, “existe política a partir do momento em que uma comunidade se coloca a par da questão do poder ou desde que o poder exercido por alguns (tais indivíduos, tais castas ou tal classe social) se exerça no quadro de uma comunidade, tendo em vista o seu modo de vida”, ou seja, nenhuma sociedade é mais política que a outra ou teve a virtude de criá-la, pois a política, segundo Wolff, passa a existir a partir do momento em que houve humanidade em alguma parte da terra. Tendo em vista essa definição, não é cabível afirmar que houve uma invenção da política entre as aranhas, visto que elas, enquanto uma espécie, sempre foram um coletivo, que, vivendo de forma independente ou não, obtinham o político, isto é, a existência de uma relação de poder. Dessa forma, no conto, verifica-se a urgência de Cônego Vargas em restaurar ou dar origem a um governo para a comunidade das aranhas, pois era necessário um governo que fosse capaz de gerir as relações de poder existentes. Vargas, conclui, portanto, que a república seria o modelo de governo mais adequado para organizar as aranhas, visto que, como aponta João Ubaldo Ribeiro, em Política: quem manda, por que manda, como manda, “a política refere-se ao exercício de alguma forma de poder e, naturalmente, às múltiplas consequências desse exercício” (...) “em que toda sociedade possui mecanismos estabelecidos, através dos quais as decisões públicas são formuladas e efetivadas”. Desse modo, com a criação de uma república na sociedade das aranhas, o conceito de João Ubaldo Ribeiro aponta que, a política tende a perpassar por relações de poder, não apenas reproduzindo-o, mas sim, criando novas relações de poder. Pois política é um jogo de poder que, segundo o filósofo Michel Focault, em Omnes et singulatim: Para uma crítica da razão política, possui dimensões micro e macro, não estando presente somente nas instituições, mas também na relação com o outro. Sendo assim, a relação de poder se constrói com base na legitimidade, na qual o indivíduo passa a seguir e obedecer determinadas regras com base no que é legítimo para ele, ou seja, na figura que possui o poder e a representatividade. Como por exemplo, a ideia do pastor que Foucault apresenta em sua obra, em que o pastor, uma figura de liderança, representatividade, sabedoria possui contato mais próximo com Deus e interliga a relação dele com a de seus fiéis. Assim como em A Sereníssima república, o exemplo de legitimidade se apresenta também próximo a ideia de Deus, visto que a comunidade das aranhas só obedecia ao Cônego Vargas por pensar que ele era uma espécie de divindade que estaria ali para julgar os seus pecados as suas virtudes. Além disso, outra forma de exemplificar as relações de poder existentes na sociedade das aranhas é através da implantação de um governo e sob a decisão de que as aranhas precisavam trabalhar para que a sociedade pudesse funcionar. Então, cria- se um sistema eleitoral, pois acreditava-se que estava no ato eleitoral a base de uma vida pública e política. A partir disso, foi através desse sistema que se viu a possibilidade de administrar a vida social das aranhas por meio do sorteamento de leis que decidiriam a ordem social da comunidade. Porém, um sistema que era pra apresentar regularidade, apresentava fraudes e mais fraudes, o que colocava em disputa o poder que as aranhas tinham umas sob as outras, desvalidando, assim, o seu regime. Posto isto, percebe-se que nenhum governo sobrevive sem legitimidade e sem a conciliação do poder entre seus indivíduos. Conclui-se, portanto, que a comunidade das aranhas é quem vai adaptando uma instância política e a unidade do político ao longo de sua formação. E, nota-se, ainda, que as questões trazidas por Machado de Assis naquela época ainda permanecem atuais, pois é necessário compreender o conto desde o seu ponto de vista histórico. Assim, ao longo da obra, Machado de Assis ironiza o modelo de governo da comunidade das aranhas que, apesar de tentar copiar Veneza, as aranhas, individualistas como eram, nunca seriam como as formigas, trabalhadoras e harmônicas, pois a sociedade das aranhas possuía esse “jeitinho” brasileiro de ser. Mas, apesar das eventualidades, segundo Cônego Vargas, um dia elas talvez conseguissem alcançar a sociedade republicana ideal devido a sua persistência. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Machado de Assis, Joaquim M. em “A Sereníssima República”.
Wolff, Francis. em “A Invenção da Política”. Ribeiro, João Ubaldo. em “Política: quem manda, por que manda, como manda, capítulos 1 e 2”. Foucault, Michel. em “Omnes et singulatim: por uma crítica da ‘razão política’”.