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DALCASTAGNÈ, Regina. O lugar da fala. In:_____.

Literatura brasileira
contemporânea: um território conquistado. Vinhedo: Horizonte, 2012, p. 17-48.

De acordo com as considerações de Regina Dalcastagnè (2012), em sua obra


Literatura brasileira contemporânea: um território contestado, mais especificamente
no tópico em que trata sobre “o lugar de fala”, no contexto literário, o problema de
representatividade e multiplicidade de perspectivas está ligado à falta de acesso a voz.
Sendo assim, a teórica esclarece que há ainda um silenciamento da voz de grupos
marginalizados por fatores como sexo, cor, etnia, orientação sexual, condição física e
etc.
Esses grupos sociais marginalizados, segundo Dalcastagnè, são estabelecidos
pela vivência “de uma identidade coletiva, que recebe valoração negativa da cultura
dominante (p.21). Dessa forma, por estarem à margem da sociedade, estes não são
ouvidos por conta da sobreposição de vozes, que a eles se impõe. Ou seja, há sempre
uma voz tida como mais capacitada, para falar por esse sujeito. Além disso, aqueles que
lutam para serem ouvidos são barrados pela legitimação imposta por padrões literários.
Portanto, a partir dessa privação do “expressar popular”, pode-se concluir que a
grande questão da representação falha da realidade está na ausência de uma
representatividade de certos grupos sociais, que não deve se ater a inserção de
personagens representativos, mas se estender a legitimação de produtores literários
advindos desses grupos.
Ainda segundo Dalcastagnè, essa falta de perspectivas representativas culmina
na ausência de diversidade e de diferentes pontos de vista. Isso, porque apesar da
possível boa intenção, um homem não poderá representar em sua totalidade uma
mulher, visto que homem e mulher enxergam e expressão o mundo de maneiras
diferentes, pois possuem vivências distintas.
Possuindo, então, conhecimento sobre esse problema, a solução mais viável,
assim como em outras esferas sociais, é a inclusão. A literatura sempre foi um meio que
impõe padrões e exclui toda e qualquer forma que não siga esses padrões impostos,
dividindo a representação dos marginalizados entre a voz de autores “autorizados” e
autores que lutam, sem sucesso, para serem ouvidos. Dessa forma, acredita-se que seja
papel da crítica e da pesquisa acadêmica o auxílio a esse processo de legitimação, visto
que esses são espaços de legitimação.
A teórica ainda cita o regionalismo e suas fases, como fonte de análise dessa
representatividade assaltada. Mesmo em suas três fases (pitoresco, problemático e
super-regionalismo), que são distintas pela visão apresentada sobre o homem do campo,
há um fator comum: o apoio no exotismo. Tal meio de representação peca ao descrever
a existência do outro sobre a perspectiva do escritor urbano.
Ou seja, não há representação completa do outro, visto que, segundo
Dalcastagnè, as narrativas com foco em personagens marginalizados, dizem muito mais
sobre a classe dominante, seus medos preocupações e sobre a forma que se enxerga esse
espectro distante. Por fim, a teórica ainda cita as narrativas sobre a ditadura militar, que
tinham em mão duas problemáticas: as restrições de liberdade, e os problemas
econômicos, mas que se focaram na primeira, visto que esta afeta a classe média,
enquanto a outra só afeta estratos populares.
Focalizando o recurso do exotismo, Dalcastagnè aponta as dificuldades com que
os autores contemporâneos brasileiros lidam, ao tentarem ser críticos, conseguindo
apenas reforçarem preconceitos e linhas divisórias, entre os que possuem a voz e os que
são “representados”. Nesses casos, “o outro aparece com as feições que a tradição lhe
deu” (p.32), sempre modificadas pela visão de superioridade e por conceitos pré-
estabelecidos.
Analisando alguns contos de autores como Rubem Fonseca e Dalton Trevisan, a
teórica pontua a perspectiva dominante e o apego a violência extrema, como pontos
comuns entre as narrativas de um de outro. No entanto, essas narrativas apresentam
distinções ao tratarem de personagens de perfis econômicos sociais diferentes.
Por exemplo, em narrativas sobre personagens mal caráter, se são ricos, são tidos
como simplesmente perversos, frios, calculista, enquanto os bandidos pobres são
descritos como “desorganizados, invejosos e animalescos”. Dessa forma, a tendência é
que o leitor sinta certa simpatia pelo bandido rico e bem articulado, enquanto se sente
ameaçado pelo bandido pobre. Mais que isso, o primeiro tipo apela para uma percepção
ficcional, enquanto o segundo transparece uma sensação de ameaça real.
Além disso, a teórica aponta outros recursos em narrativas contemporâneas, que
reforçam as percepções da classe média em relação aos grupos marginalizados. Um
deles é o uso da voz narrativa em primeira pessoa, o que aciona a ideia de “eles são
assim”, os bandidos reais.
Outro recurso utilizado é a descrição do desejo de possuir, que é apontado como
normal em personagens classe média e patológico em personagens pobres. Com isso, os
desejos atribuídos aos bandidos pobres conferem aos desejos que a classe média
imagina que eles tenham. Como se os personagens à margem estivessem ali para roubar
o que é da elite, como forma de reparação. Além disso, ainda é observado pela teórica o
recurso da coletivação, que culmina na caricatura, ao apagar as características
individuais no processo da troca da parte pelo todo, como quando a categoria
trabalhador representa vivências de inúmeras figuras de forma uniformizada.
Assim sendo, na maior parte das narrativas em que uma voz busca falar sobre e
representar a voz da população excluída, o que ocorre é o alargamento da distância entre
o dito “intelectual” e o os grupos em representação. Ou seja, “o que está representado
não é o outro, mas o modo como nós queremos vê-lo” (p.37).
Apesar de parecer tarefa impossível, é possível, por meio da escrita de um autor
sem a vivência marginalizada, que se aprimore a representação do “outro”. Segundo
Dalcastagnè, a chave para esse aprimoramento está na consciência de que ao falar do
outro, está se exercendo domínio sobre este, e que é inevitável a presença de sua
subjetividade, de seus preconceitos.
Ou seja, é preciso reconhecer que muito do que se escreve tem mais a ver com a
vivências e percepções do escritor, do que com as figuras em representação. Dessa
forma, é necessária uma autodenúncia, um autoquestionamento, que deve ser inserido e
exposto dentro das narrativas. Vale destacar, que a escrita sobre o outro não deve ser
censurada, mas sim deve estar consciente de suas limitações.
Tratando, enfim, sobre a representação que vem “de dentro”, ou seja, escrita por
autores à margem, Dalcastagnè cita três nomes brasileiros: Carolina Maria de Jesus,
Paulo Lins e Férrez. Carolina, antes de produtora literária é vista como “fenômeno
estranho”, sua obra de maior destaque, “O quarto de despejo”, mesmo com vocabulário
amplificado, valor estético literário, é vista por muitos, como documento para estudo
sociológico, por se tratar de um relato em diário.
Dessa forma, a autora é constantemente desvalorizada, e tem sua autoridade,
enquanto autora, ignorada, por ser negra, pobre, catadora de lixo. Seu considerável
repertório de obras literárias é pouco apreciado, ou nem mesmo publicado, é como se
estivesse limitada a ser reconhecida como alguém capaz de escrever um diário,
deixando a alta literatura para aqueles que são legitimados socialmente para escrevê-la.
No entanto, são em narrativas como a da autora que se consegue obter o “olhar
de dentro”, e assim, alcançar uma variedade de perspectivas. Por exemplo, o olhar
feminino em sua narrativa, revela uma pluralidade de perspectivas e vivências. A partir
da valoração (ou ausência), Dalcastagnè ainda levanta outra questão: “O lugar de onde
se ouve”, que segundo a teórica, é de onde se define a valoração. Isso, pois, para a
favela, Carolina é vista como escritora, para o restante da sociedade, é vista apenas
como voz subalterna.
Todo esse impasse representativo na literatura, descrito por Regina Dalcastgnè,
revela a carência de democratização sobre a escrita literária, além da necessidade se
estar aberto a conhecer o outro, pela voz do outro, pelo seu olhar e próprias
perspectivas. Além disso, se faz necessário uma maior atenção aos preconceitos
camuflados pela nas páginas de representação do outro. Por fim, é preciso que haja essa
consciência da limitação representativa por autores distantes das realidades de que
escreve, para que assim se gere uma discussão honesta que se reflita em suas narrativas.
E, que se reconheça a qualidade estética de textos como os de Carolina, e sua
capacidade de ficcionar a pluralidade de perspectivas.

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