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“ESCREVIVÊNCIAS”: EVARISTO E A SUBVERSÃO DE GÊNERO EM

INSUBMISSAS LÁGRIMAS DE MULHERES

Sueli Meira Liebig

Universidade Estadual da Paraíba

suelibig@hotmail.com

RESUMO:: Este estudo analisa a fala das protagonistas da coletânea de contos Insubmissas Lágrimas de
Mulheres (2011), da ficcionista afro-brasileira Conceição Evaristo, a partir dos espaços periféricos em que a
sua obra se insere, sejam eles o geográfico, o político ou o social , através da apreciação da escolha
vocabular das personagens, que vai desembocar, ipso facto, em uma visão gendrada da mulher negra na
contemporaneidade. A análise é desenvolvida através da perspectiva pós-colonial da falta de enunciação da
subalternidade baseada em Gayatri Spivak, da relação entre discurso feminino e identidade social como
defende Dina Maria Ferreira e da representação social da periferia segundo estudos feitos por Stuart Hall.
Assim, este trabalho visa eminentemente a apontar a desconstrução feita pela autora do modelo metafísico da
cultura ocidental, em que a mulher (com mais intensidade a mulher negra, semialfabetizada e indigente) não
sabe traduzir em palavras o significado do seu cotidiano, sua mobilidade social e as suas relações sociais e de
gênero. Numa forma toda original de “ler o mundo”, as personagens de Conceição Evaristo expressam em
seus diálogos e monólogos traços valorativos e comportamentais que contradizem a etnografia
monocentrista, demonstrando que nem sempre a marca linguística do narrador gramatical reflete o sujeito
social, enquanto encenam o tema da opressão feminina sob uma perspectiva engenhosamente gendrada.

Palavras-chave: Narrador gramatical, Sujeito social, Mulher negra. Sujeito gendrado.


INTRODUÇÃO Raison d'être, uma vez que não haveria mais
Através do discurso e da ação, o ser um ator; “ [...]e o ator, realizador de feitos, só
humano pode distinguir-se das demais é possível se for, aos mesmo tempo, o
criaturas: ele pode até viver sem trabalhar, pronunciador de palavras” (ARENDT, 2010,
obrigando os outros a trabalhar por ele; pode p.223).
usar e abusar das coisas do mundo sem lhe Neste ponto deparamo-nos com a
acrescentar nada de útil; pode ser um abertura de uma espécie caixa de Pandora, ao
explorador, um gigolô ou um parasita, mas considerarmos o seminal ensaio "Can the
sua vida certamente será humana, ao passo Subaltern Speak?" (2010), da crítica e teórica
que uma vida sem ação e sem discurso é indiana Gayatri Chakravorty Spivak. O texto
morta para o mundo, deixando de ser humana demonstra a sua preocupação com o processo
pelo simples fato de que é pelas nossas através do qual os estudos pós-coloniais
palavras e pelos nossos atos que nos ironicamente reinscrevem, cooptam, e
inserimos no universo humano. ensaiam os imperativos da dominação política
De acordo com a filósofa alemã neocolonial, a exploração econômica e o
Hannah Arendt (2010), essa inserção seria apagamento cultural do colonizado. Em
como um segundo nascimento, no qual outras palavras, a crítica pós-colonial estaria
confirmaríamos e assumiríamos o nosso inconscientemente sendo cúmplice do
aparecimento biológico. Assim, segundo esta Imperialismo? Seria o discurso do pós-
concepção, agir significa “tomar a iniciativa”, colonialismo um discurso especificamente
“começar” ou “governar”, enquanto que primeiro-mundista, masculino, privilegiado,
discutir que dizer “ distinguir-se”, “efetivar- acadêmico e institucionalizado que classifica
se” dentro da pluralidade da condição e categoriza o Oriente na mesma medida dos
humana, ao viver como um ser diferente e atuais moldes de dominação colonial que ele
único entre os da mesma espécie. Os termos próprio procura desestabilizar?
ação e discurso estão intimamente ligados No referido artigo, Spivak encoraja ao
porque o ato humano deve conter a resposta à mesmo tempo em que critica os esforços do
pergunta “Quem és ?”, questão que está Grupo de Estudos Subalternos, do qual faz
implícita tanto nas ações quanto nos feitos dos parte, a fim de alocar e reestabelecer uma
que nascem. Sem o discurso, a ação perderia “voz” ou um lócus coletivo de ação na Índia
não só o seu caráter revelador, como também pós-colonial. Muito embora ela reconheça a
o seu sujeito, pois a ação muda não teria “violência epistêmica” perpetrada contra os
subalternos indianos, sugere que qualquer categoricamente que o ser marginalizado seja
tentativa externa de melhorar a condição do mudo, no sentido estrito do termo, mas
povo ao garantir-lhe uma fala coletiva , defende a ideia de que a crença do intelectual
invariavelmente encontrará dois problemas: 1) de poder falar pelo outro é uma falácia. Ele
uma logocêntrica presunção de solidariedade não pode falar pelo subalterno e sim criar
cultural entre povos heterogêneos e, 2) a condições sob as quais o oprimido possa se
dependência dos intelectuais ocidentais para articular e, como consequência, possa também
que eles “falem pela” condição do subalterno ser ouvido. A intelectual indiana termina o
ao invés de permitir-lhes falar por si sós. seu ensaio com as seguintes palavras:
Como argumenta Spivak , ao referir-se e
reclamar uma identidade cultural coletiva, os O subalterno não pode falar. Não há valor algum
atribuído à “mulher”como um item respeitoso
subalternos irão na verdade reinscrever a sua nas listas de prioridades globais. A
posição subordinada na sociedade. Sendo representação não definhou. A mulher intelectual
como uma intelectual tem uma tarefa circunscrita
assim, o grupo deveria refletir a respeito de que ela não deve rejeitar como um floreio.
(SPIVAK, 2010, p. 126)
uma perquirição permanente nos estudos pós-
coloniais: pode o subalterno falar? 1 Para Spivak, dentro deste contexto, a
Desta maneira, a autora revela o lugar mulher subalterna encontra-se em uma
incômodo e a cumplicidade do intelectual que posição ainda mais periférica em relação ao
julga poder falar e agir pelo outro para homem, pelos problemas que subjazem as
construir um contradiscurso, quando se sabe questões de gênero. Na apresentação do livro
que nenhum ato de resistência pode ocorrer Poéticas da Diversidade (2002), Eduardo de
em nome do oprimido sem que esteja Assis Duarte e Marli Fantini Scarpelli
implícito no discurso hegemônico. O processo atentam para o fato de que a temática que rege
da fala seria caracterizado por uma posição a obra mostra-se sensível a indagações acerca
discursiva aonde o espaço de diálogo não iria de questões como identidade e diferença,
jamais se concretizar para o sujeito subalterno subalternidade e hegemonia, diversidade e
que, sem poder agir, também não tem como globalização, quando consideram pertinente
falar. É claro que a autora não está afirmando recolocar a pergunta de Spivk: _ Pode a
alteridade falar?
1
Segundo Spivak, o termo “subalterno” descreve as Desta forma, a obra adentra a cena
camadas mais baixas da sociedade, constituídas pelos
modos específicos de exclusão dos mercados, da inscrita pela indagação que leva a escutar o
representação política e legal, e da possibilidade de se
Outro, pela interpretação de discursos de
tornarem membros plenos no estrato social dominante.
sujeitos culturais marcados pela diferença e setores da atividade humana. A ordem do dia
por isto mesmo periféricos, onde se destacam na agenda cultural do presente é a mudança
as ricas possibilidades de leituras presentes no do equilíbrio de poder nas relações
tecido cultural do pensamento crítico do interculturais; é ainda a mudança das
mundo contemporâneo. Estes múltiplos disposições e configurações do poder cultural
olhares sobre os textos que compõem a obra e não se retirar dele; é a substituição da
em questão descartam, como não poderia invisibilidade pela ainda parca mas evidente
deixar de ser, a univocidade da resposta visibilidade. Em Da Diáspora: Identidades e
definitiva e do sentido que recalca valores Mediações Culturais (2009), o crítico pós-
outros que não os hegemônicos e que fazem moderno jamaicano Stuart Hall observa que
surgir as falas inseridas no terreno movediço
das identidades em processo de construção e Se o pós-moderno global representa ma abertura
ambígua para a diferença e para as margens e faz
que ganham substância a partir de certas com que um certo tipo de descentramento da
especificidades, tais como as de gênero, classe narrativa ocidental se torne provável, ele é
acompanhado por uma reação que vem do âmago
social, opção sexual ou deslocamentos das políticas culturais: a resistência agressiva à
diferença; a tentativa de restaurar o cânone da
territoriais. civilização ocidental; o ataque direto e indireto ao
Este trabalho tentará desmistificar multiculturalismo; o retorno às grandes narrativas
da história, da língua e da literatura (os três
afirmação de que o subalterno não pode falar, grandes pilares de sustentação da identidade e da
cultura nacionais) ; a defesa do absolutismo
pois os textos aqui analisados retratarão os
étnico, de um racismo cultural que marcou as
discursos de seres triplamente marginalizados, eras Tatcher e Reagan; e as novas xenofobias que
estão prestes a subjugar a Europa. (HALL, 2009,
por serem mulheres, pobres e negras, mas que p. 322)
discursam e agem em causa própria,
Não podemos inferir daí que a
demonstrando que o subalterno pode falar .
dialética cultural tenha acabado. O problema é
Dentro dos estudos culturais a marginalidade,
que nos esquecemos do tipo de espaço
embora periférica em relação ao status-quo,
reservado à cultura popular, inclusive o da
nunca foi tão produtiva quanto o é nos dias
cultura negra. É necessário desconstruir o
atuais, numa confirmação que resulta das
popular de uma vez por todas para que não
políticas culturais da diferença, da produção
retornemos a uma visão ingênua do que ele
de novas identidades e do aparecimento de
consiste. Nas palavras de Hall, “não importa o
novos sujeitos no panorama político e
quão deformadas, cooptadas e inautênticas
cultural. Falamos da luta pela hegemonia
sejam as formas como os negros e as
cultural que hoje é travada em todos os
tradições e comunidades negras pareçam ou
2
sejam representadas na cultura popular, nós modernidade tardia as identidades estão se
continuamos a ver nessas figuras e provando cada vez mais fragmentadas, o
repertórios[...] as experiências que estão por sujeito moderno vem se desagregando das
trás delas” (Opus Cit., p.323). Refere-se ele à amarras das tradições e se deslocando através
expressividade, à musicalidade, à oralidade, de uma série de rasuras ou rusgas no seu
às contranarrativas e ao uso metafórico do discurso, o que vem provocando o
vocabulário musical em que a cultura popular descentramento final do sujeito cartesiano.
negra tem feito emergir outras formas de vida Para o autor,
e outras tradições de representação. A
apropriação, cooptação e rearticulação de A identidade é realmente algo formado, ao longo
do tempo, através de processos inconscientes,
ideologias, culturas e instituições europeias e não algo inato, existente na consciência no
junto a um patrimônio africano conduziram a momento do nascimento. Existe sempre algo
“imaginário” ou fantasiado sobre sua unidade. Ela
inovações linguísticas na estilização retórica permanece sempre incompleta, está sempre
“em processo”, sempre “sendo formada”. [...]
do corpo, nas maneiras de ocupar um espaço Assim, em vez de falar da identidade como uma
social do outro, nos estilos de cabelo, coisa acabada, deveríamos falar de identificação
e vê-la como um processo em andamento.
gingados, posturas e modos de falar, enfim, (HALL, 2006, pp. 38-39)
no ato de significar a partir de um espólio
Armand Mattelart (2005) nos diz que a
cultural ocidental recodificado e
partir dos anos 1960, a noção de imperialismo
transcodificado ou, em suma, híbrido. O
cultural, que mobilizava as resistências e
sujeito e a identidade cultural são
inspirava a efervescência nos campi,
conceptualizados de modo diferente no
convocava as ciências sociais que buscavam
pensamento contemporâneo. Stuart Hall
romper com a visão funcionalista do mundo.
(2006) centra-se em concepções mutantes do
Para os antropólogos, o imperialismo cultural
sujeito, que é visto como uma figura
seria uma “forma de etnocentrismo
discursiva cuja identidade racional era
politicamente atuante” (MEDORI, 1979, apud
pressuposta tanto pelo discurso do
MATTELART, 2005, p.75). Seria uma
pensamento moderno quanto pelos processos
espécie de etnocentrismo transformado em
que delinearam a modernidade e que lhe
uma ideologia que se queria redentora dos
foram essenciais. Acreditava-se antes que as
grupos subalternos. Durante os anos 1970, os
tradições e estruturas dos seres humanos eram
processos de independência das colônias
inatas, estabelecidas por Deus e que portanto
não estariam sujeitas a mudanças. Mas na 2
Período referente à segunda metade do século XX até
o presente.
africanas viriam a instigar a legitimação das políticas público-assistenciais. É através da
3
culturas invadidas e subjugadas, “escrevivência” dessas mulheres que ela
desestabilizando o paradigma da prevalência reconstrói e renegocia sua identidade de
da cultura ocidental sobre as demais, mulher negra e pobre. Marcada por formas de
consagrando a diversidade cultural como dominação que incluem separações,
condição sine qua non para a saída da deslocamentos e desmembramentos, ela
situação de subdesenvolvimento das colônias constrói através da escrita estratégias de
e resgatando a dignidade e a voz do sujeito reversão da condição fragilizada da mulher
subalterno. Com respeito à capacidade de negra e modos alternativos de redefinição de
elocução dos marginalizados, a escritora afro- suas identidades. Na coletânea Insubmissas
brasileira Mirim Alves (2010) assevera que lágrimas de mulheres, composta de treze
aqui no Brasil precisamos atentar para os contos em forma de relatos de vida de
novos atores sociais, surgidos na segunda diferentes mulheres negras, Evaristo enuncia
metade do século XX, que se revelam como os mais variados discursos sobre as
novos interlocutores e que forçam a entrada inquietações, os medos, os sonhos, as
de temas e pautas de reivindicações sociais no orientações sexuais, os desafios e as relações
proscênio público. Desta forma, Alves nos diz afetivas dessas narradoras que se negam a
que a literatura negra, dentro do seu contexto ceder às pressões devastadoras das suas cruéis
de surgimento e existência, vem revelando as experiências pessoais com o racismo, o
faces de um “Brasilafro em versos e em preconceito, o sexismo e as degradantes
prosa”. (ALVES, 2010, p.57). convenções étnico-raciais que refletem as
É justamente a partir da segunda suas experiências pela vida afora. Suas
metade do século XX que surgem as vozes de personagens, contrariamente ao que apregoa
escritores negros cujas obras examinam temas Spivak na obra antecitada, são mulheres
complexos, tais como a vida nas favelas, o insubmissas que têm o poder do discurso e
preconceito, a fome e a exclusão social e capacidade de se autonomear, como “Natalina
dentre estes se sobressai Conceição Evaristo. Soledad”, a primeira heroína do livro. Tendo
Suas perspectivas de viés feminista mostram a nascido mulher, a sétima, depois de seis filhos
constante busca identitária que empreende, homens, ela foi a decepção do pai, que por ter
como também a sua luta contra a injustiça gerado uma menina se considerava então
social, a opressão, a crítica aos governos, à
3
Termo cunhado por Conceição Evaristo para traduzir
corrupção generalizada e ao achincalhe das a escrita feminina em relação à sua vivência
marginalizada.
menos homem. Deu-lhe o nome de “Troçoleia Maria do Rosário Imaculado dos
Malvina Silveira”. Depois de crescida ela Santos, que de santa não tem nada, como ela
cultiva apenas o grande e único propósito de mesma observa, fora roubada do seio da
mudar de nome: família por um casal que a criara sem maus-
tratos, mas também sem demonstrações de
Inventar para si outro nome. E, para criar outro afeto. Quando adulta confessa que nunca
nome, para se rebatizar, antes era preciso
esgotar, acabar, triturar, esfarinhar aqueleque quisera ter filhos e das vezes que engravidara
haviam lhe imposto. Pacientemente, a menina não havia deixado a gestação chegar ao
Silveirinha esperou. A moça Silveirinha esperou.
A mulher Silveirinha esperou. E nas diversas término. O motivo? Não queria ter uma
andanças do tempo sobre o corpo dela, muitos
acontecimentos. família com medo de perder os seus. Esta
(EVRISTO, 2011, p. 23) protagonista de Evaristo revela um

Como somos feitos de “performances contradiscurso que se cristaliza no fato de ter

discursivas” (FERREIRA, 2009), podemos o efetivo controle sobre o seu corpo e na sua

engendrar outros discursos para outras ações. justificável negativa de ser mãe. Como todas

Podemos inaugurar novos sentidos para a as ações envolvem outros para quem elas são

nossa vida e, portanto, reinventar nossas desempenhadas, elas também abrangem

histórias. Shirley Paixão, protagonista do outros significados sobre quem podemos ser.

terceiro conto, tenta assassinar o marido, que Pensar e exercer formas de vida alternativas

está na iminência de estuprar a própria filha: como Maria do Rosário é o grande desafio a

“Queria matá-lo. Queria acabar com aquele atualidade, mas esta narrativa de Evaristo nos

malacafento, mas ele é tão ruim que não confirma que esta é uma tarefa exequível.

morreu! Não adianta me perguntar se Isaltina Campo Belo, heroína do conto

arrependi. Arrependi não. Confessei à polícia homônimo, como todas as outras, resolve

o meu desejo, a minha intenção”. assumir a sua homoafetividade:

( EVARISTO, 2011, p. 25).


Naquele momento, sob o olhar daquela moça, me
Ora, somos quem somos não por força dei permissão pela primeira vez. Sim, eu podia me
encantar por alguém e esse alguém podia ser uma
de uma essência anterior, mas por causa do mulher. Eu podia desejar a minha semelhante,
que fazemos. A ação (ou seria reação?) desta tanto quanto outras semelhantes minhas desejam o
homem. E foi então que eu me entendi mulher,
heroína de Evaristo nos faz perceber que a igual a todas e diferente de todas as que ali
estavam. Busquei novamente o olhar daquela que
vida social não está jamais pronta e acabada, e
seria a primeira professora da minha filha e com
sim em perene desempenho para os outros. quem eu aprenderia também a me conhecer, a me
aceitar feliz e em paz comigo mesma.
(EVRISTO, 2011, p. 57)
“consertei a minha vida, cuja mola estava
As questões concernentes à linguagem e à
enferrujando. Eu mesma imprimi novos
vida social, especialmente como as construções
movimentos aos meus dias. Fiz por mim e
discursivas das feminilidades no Brasil, têm se
pelas crianças” (EVARISTO, 2011, p. 84). O
constituído por meio da análise de algumas
expressões discursivas, da sua compreensão e sexo biológico, mesmo estando centrado no
interpretação e, desta forma, do encaminhamento corpo, também se circunscreve na prática
de alternativas à vivência social das mulheres. A discursiva, que é sociocultural. A escolha de
sexualidade inovadora tornou-se uma das estar no mundo, sua cosmovisão e as ações
principais características da globalização e, no que praticam nem sempre revelam discursos
processo de redefinição, merece novo reexame o referenciais próprios de cada universo de
papel sexual da mulher.
sujeitos. Se assim o fosse, Lia Gabriel jamais
Mary Benedita, apesar de estar muito
teria saído do seu casulo e enfrentado as
bem na pequena cidade de Manhãs Azuis, “só
adversidades de assumir os papéis de pai e
queria mais chão e mais céus” (EVARISTO,
mãe dos próprios filhos.
2011, p.62) do que havia por lá. Desatando as
Saura Amarantino, sem a menor
amarras com que o destino manifesto a prende
resolve que tem que agir: parcimônia, entrega ao pai a filha recém-
nascida, fruto de um relacionamento
Vi que meu destino estava prestes a ser traçado à sem maiores consequências. Mãe
minha revelia. Não podia ser assim. A vontade
tinha de ser minha4. Tratava-se de ma vie, de zelosa de dois filhos mais velhos de outros
mon avenir. Depois de muito choro de minha
parte, de lamentações de minha tia, de repreendas pais, a heroína de Evaristo decide desprezar
severas de minha mãe e da voz embargada de meu uma criança que ela simplesmente odeia,
pai, chegamos a um acordo. Eu ficaria.
(EVARISTO, 2011, p. 65) apesar das tentativas de dissuasão da sua mãe
e da severa crítica de outras pessoas: sendo
A tessitura do papel identitário da
verdadeira, ela não consegue inventar um
mulher serve-se de dois tipos de mulheres que
sentimento que não existe só para se “salvar
são percebidas pelo senso comum: a mulher
de julgamentos alheios” (p.104):
dócil e companheira do marido e a mulher
agente. Mary Benedita é do segundo tipo e o
O que minha mãe não entendia era que eu
discurso acima muito bem o ilustra. queria aquela criança longe de mim. Eu não
sentia nada por ela, aliás, sentia sim, muita,
Já Lia Gabriel concebe a própria
muita raiva. Queria esquecer a filha que eu
ressurreição e persiste vivendo apesar do não havia concebido, nem antes e muito
menos nos momentos após o parto, quando
sistema opressor e da violência doméstica:
contemplei a criança e me irritei com todos os
4
traços dela, que acintosamente negavam os
Grifo desta autora
meus. E assim, para o meu alívio, lá se foi a Como vimos, apresentam-se aqui
menina.
maneiras de falar representativas de diferentes
(EVARISTO, 2011, p.103)
formas de relações sociais assumidas. O
O principal tema abordado pelos estudo da relação eu/locutor e suas formações
estudos sexuais nos últimos 70 nos tem sido discursivas reflete esta diferença de
o sexo sem finalidade procriadora. Existe um posicionamento frente ao mundo,
empenho cada vez maior na concepção do ato demonstrando que nem sempre a marca
sexual como simples fonte de ludicidade e linguística da pessoa gramatical espelha o
prazer. Saura é uma mulher moderna e forte, imaginado sujeito social. O enunciador revela
em integração com a força produtiva da sujeitos determinados pelo contexto histórico,
sociedade, mãe, educadora, ser criativo e isto é, sujeitos sociais reconhecidos por suas
independente, mas que se rebela contra o estruturações linguísticas que, por sua vez,
sexismo que grassa a sociedade e quer ter o representam formações ideológico-culturais.
direito de tomar as rédeas do seu destino. Dina Maria Martins Ferreira (2009)
Por fim e talvez propositalmente, nos assegura que “ O inventário vocabular de
Evaristo nos apresenta a história de Regina determinado grupo deve refletir, de alguma
Anastácia. A saga de uma mocinha negra que forma, a realidade de quem o usa”
encanta o filho do aristocrata branco e ao final (FERREIRA, 2009, apud FISHMAN, 1988,
e muitos percalços e desavenças familiares, p.9). Respaldada na relação língua/sociedade,
logra com ele casar-se, ter cinco filhos bem Ferreira tenta provar que o desempenho social
estruturados na vida e uma linda história de condiciona a seleção vocabular.
amor e felicidade. “Contrariando mais uma Ferreira (2009) defende o ponto de
vez a expectativas de uma sociedade vista de que os estilos formal e informal
virulentamente preconceituosa e patriarcal, a estabelecem diferentes tipos de regulação
“rainha” Anastácia assim se traduz: social, cada um sendo atributo da mobilidade
social a que pertencem os falantes. Segundo
“ _ Tomei em minhas mãos o cedro do meu ela,
destino e dei o rumo que eu quis à minha vida.
Continuou a voz magestal [sic], narrando uma
história particular de vida, na qual, em muitas A mulher executiva faz do registro formal um
passagens, eu escutava não só a dela, mas também instrumento de objetividade e poder no trânsito
de muitas mulheres do meu clã familiar” hierárquico profissional que se expande para
(EVARISTO, 2011, p.107). toda a esfera social, e a da dona de casa utiliza o
registro informal como reflexo de uma intenção
discursiva envolvente e emotiva em detrimento narradoras, surpreendentemente, são discursos
à sinalização verbal objetiva e clara.5
lógicos, elaborados, compactos e que se
(FERREIRA, 2009, p.100) cristalizam na ideia de poder, desmistificando
A obra de Evaristo nos mostra o a crença popular de que as várias regulações
contrário. Os fragmentos discursivos por nós sociais ensejam a forma discursiva. Podemos
destacados indicam claramente que o eu- ainda perceber que este novo sujeito-mulher
falante dessas mulheres negras, pobres não mais se submete ao alter masculino. A
marginalizadas aponta para um sujeito identidade da mulher negra na
objetivo e seguro das suas práticas contemporaneidade possui caminhos
linguísticas e performativas. interpretativos alternativos. Servindo-nos de
um exemplo de Ferreira (2009) , podermos
dizer que ao destrincharmos o irisado
universo em que a identidade se constrói,
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“ser mulher é ser o valor feminino de uma
Através da análise do discurso das variável rede sócio-cultural-ideológica”, isto
mulheres negras que povoam as narrativas de é, a identidade feminina mobiliza outros
Conceição Evaristo, pudemos constatar que as sentidos ideológicos no espaço social e
falas das personagens nem sempre estão cultural. Tomemos como exemplo a conquista
condicionadas ao desempenho social do do prazer sexual pela mulher: é claro que isto
sujeito enunciador. Por mais que saibamos não é novidade no cenário mundial, mas na
que, via de regra, o papel funcional seja modernidade tardia a cultura púbica tornou-se
responsável pela mobilidade social e auxilie cada vez mais sexualizada, havendo uma
na configuração da construção identitária da intensificação de foco e uma redução da força
mulher, ainda mais especificamente da mulher de outras definições de sexualidade e controle
negra, os contradiscursos aqui investigados sexual. A coletânea de Evaristo nos apresenta
nos revelam, para além da capacidade de diversos contos onde as personagens
elocução e empoderamento desses sujeitos assumem o controle da sua própria
periféricos, um inventário vocabular que sexualidade: Rosário Imaculado, que evita
tende à subversão. Os discursos das engravidar e quando isto acontece interrompe
5
Para efeito de entendimento do nosso propósito nesta as gestações; Isaltina Campo Belo, que
análise consideremos a “mulher executiva” como
protótipo da mulher bem educada, esclarecida e de uma resolve assumir sem culpas a sua
classe social mais abastada. Como “dona de casa”
entendamos as mulheres pobres , marginalizadas e com
homossexualidade; Saura Amarantino, que
pouca ou nenhuma instrução.
rejeita a filha por ter sido fruto de uma EVARISTO, Conceição. Insubmissas
gravidez indesejada; Regina Anastácia, que Lágrimas de Mulheres. Belo Horizonte:
desmistifica a crença de quer a mulher negra Nandyala, 2011
só serve para dar prazer quando consegue FERREIRA, Dina Maria Martins. Discurso
casar com um fidalgo branco e dele obter Feminino e Identidade Social. 2ª Ed. São
carinho e respeito. Paulo: Annablume, Fapesp, 2009
Em suma: podemos deduzir destes HALL, Stuart. A Identidade Cultural na pós-
textos que as cristalizações socioculturais não modernidade. 11ª Ed. Trad. Tomaz Tadeu da
resistem ao que existe de político na Silva e Guacira Lopes Lobo. Rio de Janeiro:
linguagem, passando a ser recurso de um DP&A, 2006
determinado construto identitário feminino.
As questões referentes à linguagem e à vida _____, Da Diáspora: Identidades e
social como construções discursivas das Mediações Culturais. Org. Liv Sovik; Trad.
feminilidades no Brasil têm se constituído por Adelaine La Gurdia Resende, Ana Carolina
meio da análise de tais expressões e devemos Ecosteguy. Clúdia Álvares, Francisco Rüdiger
buscar um meio de interpretá-las para que e Sayonara Amaral. Belo Horizonte: Editora
descubramos novas alternativas para viver da UFMG, 2009
nossas vidas sociais. Afinal de contas, como
diria Ferreira (2009, p. 142), “as SCARPELLI, Marli Fantini & DUARTE,
significações de mundo não finalizam, Eduardo de Assis. Poéticas da Diversidade.
continuam na busca de um fim que nunca Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002
chega”.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o
Subalterno Falar? Trad. Sandra Regina
Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa e
REFERÊNCIAS:
André Pereira Feitosa. Belo Horizonte:
ALVES, Miriam. Brasilafro Autorrevelado.
Editora da UFMG, 2010
Belo Horizonte: Nandyala, 2010

ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 11ª


Ed. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2010

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