Você está na página 1de 20

3.1.

4 O lugar do “Outro” e a identidade feminina na obra A Hora


da Estrela (Clarice Lispector)

Marília Gomes Ghizzi Godoy; Guilherme Soares de Moura

UniÍtalo em Pesquisa, São Paulo SP, v.12, n.2, abr/2022.


O lugar do “Outro” e a identidade feminina na obra A Hora da
Estrela (Clarice Lispector)

M. G. G. GODOY6; G. S. de MOURA7

COMO CITAR O ARTIGO:

GODOY,M.G.G.; MOURA,G.S. O lugar do “Outro! E a identidade feminina na obra A Hora


da Estrela (Clarice Lispector). URL: www.italo.com.br/portal/cepep/revista eletrônica.html.
São Paulo SP, v.12, n.2, p. 224-243, abr/2022

6 Mestre em Antropologia Social (USP), doutora em Psicologia Social (PUC-SP),


professora do Mestrado em Ciências Humanas da Universidade Santo Amaro
(UNISA). São Paulo – Brasil. E-mail: mgggodoy@yahoo.com.br
7 Graduado em Letras pela Universidade Santo Amaro (UNISA). São Paulo – Brasil.

E-mail: guilhermesoaresmoura.4@hotmail.com
UniÍtalo em Pesquisa, São Paulo SP, v.12, n.2, abr/2022.
RESUMO

Este trabalho tem por objetivo analisar as expressões culturais do


mundo feminino, na obra A Hora da Estrela, de Clarice Lispector. Pode-
se refletir os sentidos de identidade que permeiam as narrativas,
pontuando os pertencimentos das personagens e possibilitando uma
análise de seus valores. As discussões seguem reproduzindo a
realidade cultural brasileira marcada pelos contrastes, diversidades e
suas projeções no meio urbano do Rio de Janeiro. As identidades
femininas reproduzem compreensões dos movimentos feministas,
direcionados a uma concepção decolonial dos gêneros.
Palavras-chave: Feminismo, identidade, Clarice Lispector, A Hora da
Estrela, modernidade.

UniÍtalo em Pesquisa, São Paulo SP, v.12, n.2, abr/2022.


ABSTRACT

This work aims to analyze the cultural expressions of the female world, in
the work A Hora da Estrela, by Clarice Lispector. It is possible to reflect
the senses of identity that permeate the narratives, pointing out the
characters' belongings and enabling an analysis of their values. The
discussions continue reproducing the Brazilian cultural reality marked by
contrasts, diversities and their projections in the urban environment of
Rio de Janeiro. Female identities reproduce understandings of feminist
movements, directed to a decolonial conception of genders.

Keywords: Feminism, identity, Clarice Lispector, A Hora da Estrela,


modernity.

UniÍtalo em Pesquisa, São Paulo SP, v.12, n.2, abr/2022.


INTRODUÇÃO

Aprende-se a ver o mundo de outra forma, a ter um olhar sobre


o(s) outro(s), a diversidade cultural que nos cerca. Este seria um
exercício contínuo de descoberta sobre as pluralidades que envolvem o
nosso mundo cultural. Destaca-se uma influência de um movimento
universalista de valores globais onde a cultura perdeu suas próprias
raízes, seus sopros expressivos do nosso viver humano, o cotidiano.
Uma nova tendência do tempo se impõe sobre os diferentes espaços
que se tornam marcados por uma uniformização expressa pela
comunicação, indústria cultural, influências da mídia. “Homogeneização
cultural” é o fenômeno que traduz essas tendências que se reproduzem
a uma crescente quebra das tradições (HALL, 2006, p. 75-76). Diante de
uma tendência eurocêntrica e de confluência dos valores
contemporâneos em escala de uma mundialização, este artigo tem
como foco a análise das mulheres personagens da obra A Hora da
Estrela, de Clarice Lispector, como um caminho para o reconhecimento
de valores humanos expressivos de um espelho onde se projetam as
identidades femininas sob o impacto da modernidade. Uma rica
bibliografia situa a obra desta autora, para os domínios literários
vinculados às expressões próprias de entendimento do universo social,
dando um cunho particular e original às personagens. Destaca-se nessa
obra a problemática de uma nordestina que vira imigrante no Rio de
Janeiro. Ao enfrentar desafios na sociedade carioca com suas
mesmices, a personagem começa trabalhar como datilógrafa, nota-se
um estranhamento que se constrói a partir da cultura nordestina
UniÍtalo em Pesquisa, São Paulo SP, v.12, n.2, abr/2022.
enraizada na vida da personagem. As obras de Clarice Lispector na
literatura brasileira são marcadas pelos seus tons de intimismo, que se
projetam na realidade social. Segundo Prazeres,

a preocupação de Clarice Lispector com o social aparece de


forma sutil. Ela atribui inequívoca relevância ao trabalho de
tantos escritores mais atentos aos fenômenos sociológicos e
históricos de sua época, mas não se sente igualmente apta a
seguir a mesma trilha, confessa (PRAZERES, 2015, p. 50).

Essa propensão é também considerada por Nádia Gotlib (1995),


como contraditória, pois: “[...] diz sim e não ao mesmo tempo. Ou
melhor: afirma o não, argumentando com o sim” (GOTLIB, 1995, p. 436).

As personagens femininas de Lispector, na obra A Hora da


Estrela, originam-se em seus próprios contextos sociais e construem
saberes expressivos de uma linguagem que se inicia das
particularidades vivenciadas. As histórias são recriadas na própria
realidade, o ser e a vida é uma tarefa que rompe com as barreiras que
bloqueiam os discursos genéricos e distantes. Uma linguagem
emancipatória, libertária, das personagens como próprias do discurso
narrativo impõe-se comprometida com uma literatura que toca em
nossos sentidos, nossa vida.

Sinaliza-se assim, duas janelas de conteúdos teóricos e


acadêmicos, próprios da reflexão aqui proposta: as mulheres diante de
construções do conhecimento científico sobre o feminismo e os
fundamentos e significado aos processos de identidades. Quem é quem
na linguagem narrada atravessa os dramáticos protagonismos
representados no itinerário da obra em destaque.

UniÍtalo em Pesquisa, São Paulo SP, v.12, n.2, abr/2022.


As considerações compreendem também o entendimento cultural
sobre o mundo rural nordestino de Macabéa, como a heroína a ser aqui
familiarizada. Em suas expressões periféricas e da vida silenciosa dos
oprimidos, o mundo se descobre nas linguagens narradas, uma
recriação onde a ficção não é um mero exercício afetivo, mas, carregada
de mistérios que dão sentidos à vida espiritual.

Os universos sociais vivenciados pelas personagens ganham


valores e conteúdos culturais onde os sujeitos expressam suas
identidades como uma representação do eu no meio coletivo. Ordena-se
a construção do sujeito como expressão cultural compreensível no
contexto histórico, onde os fatos se desenrolam. Conforme Hall as
identidades são construídas por significados inseridos na modernidade e
pós-modernidade, recriados em situações coletivas e simbólicas. As
memórias do passado e a recriação do presente expressam as
representações ativas dos sujeitos. Não podem ser entendidas conforme
uma visão essencialista e reificada da realidade que aprisiona o ser em
sua origem no convívio coletivo. Como afirma Hall:

Assim, a identidade é realmente algo formado, ao longo do


tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato,
existente na consciência no momento do nascimento. Existe
sempre algo “imaginário” ou fantasiado sobre sua unidade. Ela
permanece sempre incompleta, está sempre “em processo”,
sempre “sendo formada” (HALL, 2006, p. 38).

Dessa forma, a identidade é definida historicamente, e não


biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes
momentos, identidades que não são unificadas, ao redor de um "eu"
coerente, padronizado. Dentro de nós há identidades contraditórias,
empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas

UniÍtalo em Pesquisa, São Paulo SP, v.12, n.2, abr/2022.


identificações estão sendo continuamente deslocadas (HALL, 2006, p.
12).

Os trânsitos vivenciados subjetivamente pelas personagens


possibilitam uma reflexão sobre a identidade vivida pela mulher a qual
sugere um debate teórico. Este artigo ganha uma visibilidade que
acompanha as narrativas possibilitando-lhes uma reflexão sobre a
mulher em uma realidade tradicional e o impacto que a mudança cultural
e a modernização acarretam. Embora Clarice Lispector não seja uma
militante feminista, podemos entrever na dimensão aqui enfocada que
as personalidades femininas demonstram seus dramas com um
significado expressivo do tempo por elas vivenciado, histórica e
antropologicamente. Afirma-se a esse repeito:

A escritora reivindica, mesmo implicitamente, os direitos das


mulheres na ficção e, assim, parece ensiná-las a olhar para
seu universo de um modo divergente. Fazendo de sua
produção um ato de criação sem concessões, transgredindo
parâmetros e modelos, estéticos e sociais, da época em que
viveu. Também sua vida revela uma mulher que desafia os
papéis reservados às mulheres de seu tempo (PRAZERES,
2015, p. 50).

Clarice não poderia ter se declarado feminista, mas nas suas


obras. Ela destaca sempre a personagem feminina expressiva de uma
identidade, seus trânsitos poderiam ser diferentes conforme o tempo.
Desta forma, este artigo propõe inicialmente uma reflexão sobre Clarice
Lispector, enfatizando dados de sua história de vida e a obra por ela
escrita. Nesta descrição enfoca-se detalhadamente as narrativas da
obra a ser examinada A Hora da Estrela. Em seguida, procura-se refletir
sobre o movimento feminista como a aprovação de um conhecimento
libertário sobre a mulher, seguindo para as representações contidas na
obra, as subjetividades reveladas em uma linguagem de realização
UniÍtalo em Pesquisa, São Paulo SP, v.12, n.2, abr/2022.
pessoal.

CLARICE LISPECTOR: VIDA E OBRA

Clarice Lispector (1920-1977), foi um grande nome da literatura


brasileira do século XX. Com os seus romances inovadores e cheios de
mistérios, Clarice se destacava por ser simplesmente estranha em suas
escritas e pensamentos. O seu primeiro livro públicado foi o conto Perto
do Coração Selvagem, que conta a travessia de uma heroína rumo à
transgressão de uma sociedade patriarcal. Essa grande autora recebeu
o Prêmio Graça Aranha. Nascida na aldeia de Tchetchelnik, na Ucrânia,
no dia 10 de dezembro de 1920. Era filha de Pinkouss e Mania
Lispector, casal de origem judaica que fugiu de seu país diante da
perseguição aos judeus durante a Guerra Civil Russa. Ao chegarem ao
Brasil, fixaram residência em Maceió, Alagoas, onde morava Zaina, irmã
de sua mãe. Clarice tinha apenas dois meses de idade. Por iniciativa de
seu pai, todos mudaram o nome. Nascida em Haya Pinkhasovna,
Lispector, passou a se chamar Clarice. Depois, a família mudou-se para
a cidade do Recife onde Clarice passou sua infância no Bairro da Boa
Vista. Aprendeu a ler e escrever muito nova e logo começou a escrever
pequenos contos. Foi aluna Grupo Escolar João Barbalho, onde fez o
curso primário. Estudou inglês e francês e cresceu ouvindo o idioma dos
seus pais o ídiche. Ingressou no Ginásio Pernambucano, o melhor
colégio público da cidade. Com 12 anos, Clarice mudou-se com a família
para o Rio de Janeiro, indo morar no Bairro da Tijuca. Ingressou no
Colégio Sílvio Leite, onde terminou o ginasial. Era frequentadora
assídua da biblioteca. Em 1941, Clarice ingressou na Faculdade
UniÍtalo em Pesquisa, São Paulo SP, v.12, n.2, abr/2022.
Nacional de Direito, e empregou-se como redatora da "Agência
Nacional". Depois passou para o jornal "A Noite". Em 1943 casa-se com
o amigo de turma Maury Gurgel Valente. Devido à profissão de seu
marido, Clarice viveu em muitos países (Itália, Inglaterra, Suíça e
Estados Unidos). Em 1959, Clarice retornou ao Rio com seus filhos. A
escritora foi naturalizada brasileira e se declarava pernambucana.
Clarice falece no dia 09 de dezembro de 1977, véspera de seu
aniversário de 57 anos, na cidade do Rio de Janeiro, vítima de câncer
de ovário.

Suas principais obras: Perto do coração selvagem (1942), O Lustre


(1946), A Cidade Sitiada (1949), Laços de Família (1960), A Maçã no
Escuro (1961), A Legião Estrangeira (1964), A Paixão Segundo G. H
(1964), O Mistério do Coelho Pensante (1967), A Mulher que Matou os
Peixes (1968), Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres (1969),
Felicidade Clandestina (1971), Água Viva (1973), A Imitação da Rosa
(1973), Via Crucis do Corpo (1974), Onde Estivestes de Noite? (1974),
Visão do Esplendor (1975) e A Hora da Estrela (1977).

Este último livro, tema deste artigo, introduz uma narrativa


inquietante e reflexiva que nos conduz a uma indagação sobre a vida
cotidiana de indivíduos em um contexto urbano, a cidade do Rio de
Janeiro. A narrativa que se originou durante os dois anos em que a
autora redigiu o livro, tece a infância por ela vivida no nordeste e o
ambiente carioca onde presencia-se personagens com uma dimensão
de acolhimento próprio.

Assim, destaca-se Macabéa, a heroína que imigra do nordeste


para o Rio de Janeiro, onde passou a trabalhar como datilógrafa. No
trabalho, compartilha situações de controle e discriminação
UniÍtalo em Pesquisa, São Paulo SP, v.12, n.2, abr/2022.
representadas pela presença do chefe e da colega Glória. Nota-se que o
seu envolvimento com o namorado segue para um desfecho negativo.
As trajetórias de Macabéa indicam suas vivencias em frequentar
ambientes civilizados que causam grande atração à imigrantes. As
dificuldades da personagem retratam as suas impossibilidades de
participar efetivamente, com sucesso e sensação de um convívio
coletivo. Nesse percurso, onde a solidão vai crescendo, Macabéa foi a
cartomante e o futuro brilhante que esta prediz no jogo de cartas, torna-
se surpreendente quando o desfecho anuncia a sua morte.

A literatura teve um papel importante para representação da


mulher na sociedade, fazendo cada vez mais o leitor entender que a
mulher desenvolve a sua identidade no âmbito social, cria o seu valor
como representação. Segundo Keyniziana, o leitor lendo as obras de
Clarice:

Essas afirmações de Clarice Lispector causam um certo


impacto e mexem com os sentimentos mais íntimos e secretos
de nós leitores. Essa obra possui uma narrativa inquietante e
reflexiva. Essa obra de arte surge como um veículo capaz de
levar-nos a refletir sobre os papéis das classes sociais,
aclarando a realidade cotidiana, colocando em evidência as
amarras ideológicas que prendem o indivíduo a convenções e
ideias dominadoras, impedindo-o de criar o seu próprio espaço
e ter sua liberdade. Convém observar que essa dominação e
“escravidão” social, têm origem na ideologia (SOUZA, 2015, p.
01).

TRAJETÓRIAS DO MOVIMENTO FEMINISTA: COLONIALISMO E PÓS-


COLONIALISMO.

O primeiro movimento feminista ocorreu no século XIX. Mulheres


se organizando contra o patriarcado para ter direito ao voto, querendo

UniÍtalo em Pesquisa, São Paulo SP, v.12, n.2, abr/2022.


exercer seus direitos na cidadania. Afirma-se que foi nos anos sessenta,
desde a legalização do voto feminino, que o feminismo surgiu como
força política importante no mundo ocidental.

Antes das mulheres conseguirem espaço de autonomia de suas


identidades na sociedade, vigorava o impasse do machismo próprio da
época colonial. Até meados dos anos 60, as mulheres dominavam no
mundo doméstico, utilizavam trajes adequados ao mundo tradicional
feminino e poucas se projetavam na área do letramento.

As poucas mulheres cultas, eruditas, pertenciam a burguesia,


mesmo assim, essas mulheres também eram dependentes da
autoridade paterna e do marido. As mulheres foram atrás dos seus
direitos de igualdade, procurando defender uma classe capaz de
trabalhar, ter sua emancipação, construir suas identidades na
sociedade. Mulheres que eram donas do seu corpo. Mesmo cada uma
tendo suas identidades diferentes pertenciam a um grupo social, que
tinham desejos e vontades, trabalhavam, namoravam e sonhavam em
ter uma família. O pós-colonial ajudou as mulheres irem atrás dos seus
sonhos e em luta umas com as outras por igualdade, seja ela de classe,
gênero e raça. Mas unidas para combater o machismo da sociedade.

Os movimentos identitários ligados à mulher, ao índio, ao negro


ganham visibilidade nos anos 70, com uma tendência política de
definição da cidadania que segue em direção à criação da Constituição
Federal de 1988. Com essas influências, o movimento socialista ganha
visibilidade entre as mulheres, resultante de pressões que sofriam com
relação a alimentação, moradia, educação dos filhos, violências
cotidianas.

Em 1975, a Organização das Nações Unidas, instituiu o Ato da


UniÍtalo em Pesquisa, São Paulo SP, v.12, n.2, abr/2022.
Mulher. Com o movimento de redemocratização nos anos 80,
projetaram-se demandas igualitárias das mulheres organizando frentes
de auto-afirmação (sexual, saúde, educação). No século XXI, a luta das
mulheres ganha espaço reinvindicatório, consolidando meios de
inclusão. Nortearam-se trajetórias de luta e definição de espaços
femininos da organização política.

Origina-se assim, uma lógica que classifica a vida da mulher longe


das categorias hierarquicas heterossexuais que valorizam as mulheres e
homens brancos no contexto de domínio burguês. As reflexões seguem
introduzindo outras reflexões longe dos processos de conquista e de
colonização, a colonialidade de gênero, expressiva de hierarquias de
status, casta, raça e sexo. Os saberes e interpretações tomam novos
rumos, ativos, das manifestações do discurso feminino. As constatações
seguem pela compreensão representativa de sujeitos em situação de
transformação e formação de uma realidade complexa. Originam-se
como construtoras da concepção de gênero introduzindo um novo
paradigma científico, longe de uma concepção binária sobre a definição
dos sexos. É desta forma que podemos situar as visões de Scott e
Judith Butle que conduzem uma nova compreensão das antigas
mentalidades fundamentadas na heteronomia. Scott e Judith Butler são
autores e pesquisadores sobre o feminismo, suas militâncias, quebrando
barreiras indicativas da dominação masculina com as mulheres. Scott
discute sobre as relações do gênero, sobre sua história e definição
social. Butler, autora feminista, filósofa, militante, aborda os temas sobre
sexo, corpo e identidade. Ela também compreende as mulheres e
homens além de uma visão biológica, ou seja, a desnaturalização do
sexo, do binarismo ligado ao sexo, levantando-se bandeiras para a

UniÍtalo em Pesquisa, São Paulo SP, v.12, n.2, abr/2022.


autoafirmação das minorias: gays, lésbicas, trans e bi. Para Butler
(1987, p. 142), “[...] o gênero é um modo contemporâneo de organizar
normas passadas e futuras, um modo de nos situarmos através dessas
normas, um estilo ativo de viver nosso corpo no mundo”. A identidade de
gênero não é definitiva porque se constitui num ato reflexivo, embora
não seja inteiramente consciente. Não se assume uma identidade de
gênero de pronto e em caráter definitivo, este ato constitui-se num
projeto sutil e quase sempre velado, haja vista que “tornar-se um gênero
é um processo impulsivo, embora cauteloso, de interpretar uma
realidade apenas de sanções, tabus e prescrições” (BUTLER, 1987, p.
143).

Clarice não poderia ser feminista, mas já era um exemplo de


mulher independente, inteligente, escrevia o que queria, mesmo com a
ditadura, ela escrevia e fazia acontecer. Isso é empoderamento da
mulher, ser o que quiser ser na sociedade. Segundo Prazeres, ao propor
o estudo sobre os femininos nas narrativas de Clarice Lispector,
aceitamos o desafio de pensar correntes de pensamento e categorias
importantes para a construção de um suporte teórico adequado,
sobretudo, pela necessidade de entender o lugar do feminismo no
campo dos estudos (PRAZERES, 2015, p. 14).

REPRESENTAÇÕES IDENTITÁRIAS E O CENÁRIO FEMININO.

Macabéa chega no Rio de Janeiro, e se expressa seguindo o seu


lugar de origem e criação, muitas das vezes, expresso pelo sofrimento.
Foi ela criada por sua tia e após o seu falecimento, teve que se deslocar
para tentar a sorte na capital. Seus trânsitos não foram faceis. Macabéa
UniÍtalo em Pesquisa, São Paulo SP, v.12, n.2, abr/2022.
mostrou sua identidade como mulher nordestina, com mesmices mas
tentando ser incluida em um social totalmente diferente da sua
realidade. Ficou encantada com o mundo moderno da capital, e tinha
seus gostos bem definidos. No livro podemos perceber:

E tinha um luxo, além de uma vez por mês ir ao cinema:


pintava de vermelho grosseiramente escarlate as unhas das
mãos. Mas como as roía quase até o sabugo, o vermelho
berante era logo desgastado e via-se o suho preto por baixo
(LISPECTOR, 1998, p. 36.)

E quando acordava? Quando acordava não sabia mais quem


era. Só depois é que pensava com satisfação: sou datilógrafa e
virgem, e gosto de coca-cola. So então vestia-se de si mesma,
passava o resto do dia representando com obediência o papel
do ser (LISPECTOR, 1998, p. 36).

Ser mulher, vivendo em um lugar tradicional e cultural no nordeste


é, muitas das vezes ser apenas dona de casa. Casa-se cedo, acaba-se
tornando-se mãe muito jovem. Adquire-se uma cultura diferente, muitas
das vezes é impossível se tornar instruída.

As representações das mulheres na obra em destaque, ordenam


uma linguagem de sentidos que envolvem o conhecimento do outro, da
cultura que se origina nas vivências das autoras.

Uma outra vez se lembrava de coisas esquecida. Por exemplo


a tia lhe dando cascudos no alto da cabeça porque o cocuruto
de uma cabeça devia ser, imaginava a tia, um ponto vital.
Dava-lhe sempre com os nós dos dedos na cabeça de ossos
fracos por falta de cálcio. Batia mas não era somente porque
ao bater5 gozava de gramde prazer semsual – a tia que não se
casara por nojo – é que também considerava de dever seu
evitar que a menina viesse um dia a ser uma dessas moças
que em Maceió ficavam nas ruas de cigarro aceso esperando
homem (LISPECTOR, 1998, p. 36).

Nota-se que a passagem demonstra o ambiente de castigo e


violência que indicam uma forma de controle social que se mantêm pelo

UniÍtalo em Pesquisa, São Paulo SP, v.12, n.2, abr/2022.


medo e pela submissão. O ambiente de disciplina e do autoritarismo era
conduzido com rigor, impossibilitando a criação de valores individuais
que projetam uma emancipação do eu como será exigido no contexto
urbano. Podemos observar uma definição desta contestação na
passagem:

A menina não perguntaba por que era sempre castigada mas


nem tudo se precisa saber e não saber fazia parte importante
de sua vida. Esse não-saber pode parecer ruim mas não é
tanto porque ela sabia muita coisa assim como ninguém ensina
cachorro a abanar o rabo e nem a pessoa a sentir fome; nasce-
se e fica-se logo sabendo. Assim como ninguém lhe ensinaria
um dia a morrer: na certa morreria um dia como se antes
tivesse estudado de cor a representação do papel de estrela
(LISPECTOR, 1998, p. 28-29).

A realidade do movimento migratório do nordeste para as cidades


urbanas da região sudeste acompanha a história brasileira e tem sido
um constante foco de conflitos e discriminações. A “nordestina”,
expressa no romance o poder de representação destes sujeitos que
passam a viver nas capitais de forma precária e a margem dos valores e
domínios políticos e sociais. É desta forma que Macabéa retrata-se por
sua posição de subalternidade, não sendo ouvida e tornando-se isolada
e marginalizada. Sobressai uma realidade expressa da identidade,
segundo Hall, onde ocorre uma situação de deslocamento e mobilidadee
diante de um contexto de globalização. Nota-se uma construção de
valores que emergem dando sentido aos indivíduos, em situações
coletivas. É desta forma, que “ser datilógrafa”, torna-se uma auto-
representação e auto-definição da protagonista no cenário em que ela
se expressava por um intenso desejo de ter uma moralidade e
honestidade.

Podemos considerar também que a década de 70 que marca os

UniÍtalo em Pesquisa, São Paulo SP, v.12, n.2, abr/2022.


momentos vividos pela personagem transita nos momentos de ascensão
do movimento feminista.

O texto retrata a presença do sertão como expressão da miséria


vivida no nordeste. Emerge o cenário que também foi vivido pela autora
quanda esta era pequena, quando também viveu uma situação de
privação e sofrimento. A tristeza e a dor, projetam-se no íntimo das
narrativas, há uma desvalorização da região nordeste do país, do sertão
como o lugar inculto, distante, longe do progresso e onde os imigrantes
fogem de sua realidade, da seca e crises econômicas. Nota-se
situações que contem uma dimensão unificadora de valores que
representam o que se estende aos nordestinos e que os diferenciam no
Rio de Janeiro:

Nascera inteiramente raquítica, herança do serão – os maus


antecendentes de que falei. Aos dois anos de idade lhe haviam
morrido os pais de febres ruins no sertão de Alagoas, lá onde o
diabo perdera as botas (LISPECTOR, 1998, p. 28).

A datilografia vivia numa espécie de atordoado nimbo, entre


céu e inferno. Nunca pensara em “eu sou eu”. Acho que
julgava não ter direito, ela era um saco. Um feito jogado na lata
de lixo embrulhado em um jornal. Há milhares como ela? Sim,
e que são apenas um acaso. Pensando bem: quem não é um
acaso na vida? (LISPECTOR, 1998, p. 36).

O leitor ao se familiarizar com a obra observa também uma


influência da modernidade e da globalização. As narrativas assinalam
que Macabéa é alguém letrada, pois tem domínio da leitura, da escrita,
reúne recortes de jornais, frequenta lojas, vai ao cinema e sonha em ser
uma futura artista de cinema. Ao ouvir de forma frequente o rádio-
relógio, desperta-se para o novo único vendo-se como alguém que se vê
a si mesmo. Configura-se “um agregado sem forma, sem rosto, sem
identidade e sem pleno direito à cultura” (LISPECTOR, 1998, p. 35).
UniÍtalo em Pesquisa, São Paulo SP, v.12, n.2, abr/2022.
A face de opressão, exclusão e representação da vida que se
desperta no universoi da Macabéa e de sua tia, fazendo parte de um
país de contraste social, também marca as outras duas margens
femininas da obra: Glória e a cartomante Madame Carlota.

Ambas retratam cenários da cultura brasileira, marcados por uma


visão exclusa, negativa. Registram-se sentidos de prostituição,
charlatarismo, viver a margem da legalidade. A presença de um homem
está sempre visualizada em um contexto machista, destacado por um
autoritarismo. Nas palavras de Carlota observamos aspectos de um
discurso ideológico que se expressa na dimensão teórica da visão
colonial, como discutido a seguir:

– Eu era pobre, comia mal, não tinha roupas boas. Então cai na
vida. E gostei porque sou uma pessoa muito carinhosa, tinha
carinho por todos os homens. [...] Eu era mais tolerante do que
as outras porque sou bondosa e afinal estava dando o que era
meu. Eu tinha um homem de quem eu gostava de verdade e
que eu sustentava porque ele era fino e não queria se gastar
em trabalho nenhum. Ele era o meu luxo e eu até apanhava
dele. Quando ele me dava uma surra eu via que ele gostava de
mim, eu gostava de apanhar. [...] Depois que ele desapareceu,
eu, para não sofrer, me divertia amando mulher. O carinho de
mulher é muito bom mesmo, eu até lhe aconselho porque você
é delicada demais para suportar a brutalidade dos homnes e se
você conseguir uma mulher vai ver como é gostoso, entre
mulheres o carinho é muito mais fino (LISPECTOR, 1998, p.
74).

No universo ficional a presença do preconceito e dos esteriótipos


seguem projetando a obra de Lispector engajada em um universo onde
o eu e o outro são marcas de alteridade, de entender o mundo de forma
diferenciada e com estranhamentos predefinidos hierarquicamente.

UniÍtalo em Pesquisa, São Paulo SP, v.12, n.2, abr/2022.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na análise aqui realizada nota-se um espaço de reflexão


representado pelos sentidos culturais narrados pelas personagens
femininas, na obra A Hora da Estrela, de Clarice Lispector. Aos olhos da
sociedade da época, pode-se entender a presença de valores
expressivos da construção das sujeitas analisadas, em suas próprias
identidades.

As colocações teóricas de Stuart Hall (2005) sobre a construção


cultural das identidades pode iluminar o caminho da análise. O
pertencimento e as dimensões de mudança projetam as influências da
globalização e as formas de articulação da vida. Em função de um
universo que se impõe por um elitismo e preconceito social contra
pessoas que se situam a margem do progresso, as personagens
traduzem olhares da autora no meio urbano, complexo onde emergem
muitas marcas sobre quem é quem, em suas raízes, seus deslocaments
e mobilidades. A análise realizada sobre a formação do movimento
feminista e suas dimensões pós-coloniais, mediante a consideração do
paradigma dos estudos de gênero, foram fundamentais para
entendermos as personagens, os seus sofrimentos.

Macabéa, com suas mesmices, projeta sua identidade no mundo


globalizado. Suas raízes culturais passadas, sofrem um impacto onde o
seu eu vê-se individualizado, fragmentado, isolado no novo contexto. A
vida humana segue em seus mistérios revelando-se, no silêncio, a
estrela.

UniÍtalo em Pesquisa, São Paulo SP, v.12, n.2, abr/2022.


REFERÊNCIAS

BUTLER, Judith. Variações sobre Sexo e Gênero Beauvouir, Wittig e


Foucault. In: CORNELL, Drucilla (org.). Feminismo como crítica da
modernidade releituras dos pensadores contemporâneos do ponto de
vista da mulher. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos, 1987.
GOTLIB, Nádia B. Um fio de voz: histórias de Clarice. In: LISPECTOR,
C. A paixão segundo G.H. Edição crítica. Brasília: Association Archives
de La Littérature Latino-Américaine, des Caraíbes et Africaine du Xxème
Siècle/CNPq, 1988.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução
Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro, 11º edição, Rio de
Janeiro: DP&A, 2006.

LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela, 23º edição, Rio de Janeiro:


Rocco, 1977.

PRAZERES, Lílian Lima Gonçalves Dos. Feminismo, identidades e


trânsitos de Clarice Lispector. Espírito Santo: UFES, 2015. Dissertação:
programa de pós grad. em Letras.

SCOTT, Joan w. História das mulheres. In: BURKE, Peter. São Paulo:
UNESP, 1995.

SOUZA, Keynesiana Macêdo.Nas entrelinhas da ideologia em a hora da


estrela, de clarice lispector. Anais XI Colóquio Nacional Representações
de Gênero e Sexualidades. Campina Grande: Realize Editora, 2015.

UniÍtalo em Pesquisa, São Paulo SP, v.12, n.2, abr/2022.

Você também pode gostar