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Gostaria de lhes falar não da leitura e dos riscos que ela comporta, mas de um
risco que é anterior a este, isto é, da dificuldade ou da impossibilidade de ler;
gostaria de tentar falar não da leitura, mas da ilegibilidade.
Quando o monge acidioso tenta ler, interrompe-se inquieto e, um minuto depois, cai no sono;
esfrega as mãos no rosto, estica os dedos e segue na leitura por algumas linhas, tartamudeando o
final de cada palavra que lê; e, enquanto isso, vai enchendo a cabeça com cálculos ociosos, conta o
número de páginas que ainda tem para ler e as folhas dos cadernos, e sente ódio pelas letras e pelas
belas miniaturas que tem diante dos olhos, até que, por fim, fecha o livro e o usa como travesseiro
para a cabeça, caindo num sono breve e profundo.
Há também outra impossibilidade mais radical de ler, que até há poucos anos
era, aliás, muito comum. Refiro-me aos analfabetos, essas pessoas esquecidas
com demasiada rapidez, que há apenas um século eram maioria, pelo menos na
Itália. Um grande poeta peruano do século XX escreveu num dos seus poemas:
“por el analfabeto a quien escribo”[a]. É importante compreender o sentido
daquele “por”: não tanto “para que o analfabeto me leia”, visto que por
definição não poderá fazê-lo, mas “em seu lugar”, tal como Primo Levi dizia
testemunhar por aqueles que no jargão de Auschwitz se chamavam
muçulmanos, isto é, aqueles que não podiam nem teriam podido testemunhar,
porque, pouco depois de ingressarem no campo, haviam perdido a consciência
e a sensibilidade.
Gostaria que refletissem sobre o estatuto especial de um livro que é destinado a
olhos que não podem lê-lo e foi escrito com uma mão que, em certo sentido,
não sabe escrever. O poeta ou o escritor que escreve para o analfabeto ou para o
mulçumano tenta escrever o que não pode ser lido, põe o ilegível no papel.
Mas é bem isso que torna sua escrita mais interessante do que a que foi escrita
somente para quem sabe ou pode ler.
Há mais um caso de não leitura do qual gostaria de falar. Refiro-me aos livros
que não encontraram o que Benjamin chamava a hora de sua legibilidade, que
foram escritos e publicados, mas estão – talvez para sempre – à espera de serem
lidos. Conheço – e cada um de vocês, acredito, poderia citá-los também –
livros que mereciam ser lidos e não foram lidos, ou foram lidos por
pouquíssimos leitores. Qual é a situação desses livros? Acredito que, se esses
livros forem realmente bons, não se deverá falar de espera, mas de exigência.
Esses livros não esperam, mas exigem ser lidos, ainda que não tenham sido
lidos e nunca o serão. A exigência é um conceito muito interessante, que não se
refere ao âmbito dos fatos, mas a uma esfera superior e mais decisiva, cuja
natureza deixo que cada um de vocês especifique.
Mas então gostaria de dar um conselho aos editores e àqueles que trabalham
com livros: parem de atentar para as infames – sim, infames – listas de livros
mais vendidos e (presume-se) mais lidos e, ao contrário, tentem construir
mentalmente uma lista dos livros que exigem ser lidos. Só um mercado
editorial baseado nessa lista mental poderia fazer o livro sair da crise que – pelo
que ouço dizer e repetir – ele está atravessando.
Certa vez um poeta sintetizou sua poética na fórmula: “Ler o que nunca foi
escrito”. Trata-se, como se vê, de uma experiência de alguma forma simétrica à
do poeta que escreve para o analfabeto que não pode lê-lo: à escrita sem leitura
corresponde aqui uma leitura sem escrita. Deixando-se claro que os tempos
também estão invertidos: ali uma escrita que não é seguida por nenhuma
leitura, aqui uma leitura que não é precedida por nenhuma escrita.
Mas talvez em ambas as formulações se trate de algo parecido, ou seja, de uma
experiência da escrita e da leitura que põe em questão a representação que
costumamos ter dessas duas práticas tão estreitamente ligadas, que se opõem e,
ao mesmo tempo, remetem a algo ilegível de inescrevível que as precedeu e não
deixa de acompanhá-las.
[a] Verso de “Himno a los voluntarios de la República”, de César Vasllejo (1892-1938). (N. E.)