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Apresentação

Da Filosofia do Progresso
Natália Montebello*

Primeira Carta

Praga, um gelado fim de tarde de janeiro de 1904, e o


jovem Franz, então com vinte anos, escreve a seu amigo
Oskar sobre a leitura, uma atividade para ele vital, nessa
sua vida solitária. Para o jovem e solitário Franz, a leitura
não é uma saída ou um efeito da solidão: ele lê
avidamente, compra livros avidamente. Sua vida, frugal e
singela em tantos aspectos, torna-se exuberante quando
se trata de livros. Ao ler não está só, não está doente.
Franz gosta de ler Goethe, Thomas Mann, Hermann Hesse,
Dickens, Flaubert, Kierkegaard, Dostoievski. Desde a
infância, e por toda sua vida, lerá contos de fadas. Enfim,
Franz quer prolongar, nesta carta, uma conversa que tivera
com Oskar alguns dias atrás, e lhe escreve: “De modo
geral, penso que só devemos ler livros que nos mordam e
nos aguilhoem. Se o livro que estamos lendo não nos
desperta numa sacudidela, como uma pancada na cabeça,
para que perder tempo em lê-lo? (...) Para que nos faça
felizes, como diz você? Deus meu, ficaríamos igualmente
felizes se não tivéssemos livro algum; os livros que nos
tornam felizes, nós mesmos poderíamos escrevê-los.
Precisamos é de livros que nos atinjam como um infortúnio
extremamente doloroso, como a morte de alguém a quem
amássemos mais do que a nós mesmos, que nos façam
sentir como se tivéssemos sido desterrados para os
bosques, para longe de qualquer presença humana, como
um suicídio. Um livro deve ser o machado com que se
rompe o mar congelado dentro de nós. É nisso que
acredito.”
Da sua janela, Kafka desenhava com o dedo dois ou três
círculos no ar. Sua vida toda, dizia, tinha transcorrido
nesses círculos. Sua vida toda, e mais um mês: quarenta e
um anos. De qualquer maneira, viver depois dos quarenta,
como lera nas memórias de outro funcionário público, é
indecente. Que seja! Alguns círculos da janela, pouco mais
de quarenta anos: há vida onde não há tempo ou espaço.
O que percebemos em Kafka leitor não é uma saída para a
doença ou a tristeza ou a solidão: é um confronto com a
dor e com a morte. Ler, só para romper o mar congelado
dentro de nós. Livros não devem ensinar-nos a viver,
devem desterrar-nos, como um suicídio. Para que ler? Se
quisermos encontrar a felicidade, nos diz Kafka, então que
cada um escreva seus próprios livros; livros não resolvem
nossos problemas. Então, de novo, para que ler?
Certamente não resolveremos o mundo, assim como não
resolveremos a nossa própria vida, mas talvez mordidas e
aguilhoadas nos incomodem o suficiente como para
abandonar a boa intenção, a magnificência, de querer
salvar a humanidade — não sei do quê. Essa história tão
antiga: as grandes ideias, as grandes gestas, campanhas,
projetos, sistemas, teorias. Tudo em nome da felicidade.
Interessa-me, por ora, a leitura, não leitores atrás de
soluções, leitores caçadores de fórmulas. Leitores
explicativos, interpretativos, leitores etcétera. A leitura de
Kafka não desperta uma consciência, mas morde, pica,
arranha num corpo. Mas poderíamos pensar que existem
livros que foram escritos para nos ensinar a viver, livros
que nos prometem a felicidade — na mesma medida em
que nos avisam sobre a desgraça. E existem leitores para
eles — e seguramente esses leitores escrevem e
continuarão a escrever justamente esses livros —, e
existem tantas outras coisas. Interessa-me, porém, a
leitura-suicídio de Kafka, os livros que cortam. Mais ainda,
escritos inconformados. E claro que não falo dos livros,
nem me interessa uma crítica literária neste sentido; falo
de minha leitura, e nada de neutralidade axiológica. Lê-se
um livro porque ele se circunscreve a uma época ou lugar?
Lê-se um livro no seu departamento histórico e teórico?
Deixando-o lá, no seu lugar? Para conhecer as épocas e
seus relatos? Lemos livros, ou lemos retalhos — ou
frangalhos — da história das ideias?
Não sei se há textos que nos impõem um tempo ou um
lugar, ou um caminho e sua chegada — ou mesmo desvios,
que são outros caminhos. Parece-me que não devemos
menosprezar o leitor e, talvez, na maior parte das vezes,
leituras assim resultam de leitores empenhados em
solucionar qualquer coisa: suas próprias vidas, a
humanidade, tanto faz. Sei que há textos que dificilmente
podem ser lidos como fórmulas para a felicidade, e sempre
me surpreende algum comentário sobre eles neste sentido.
Sei de vários, mas não é de todos eles que quero falar
aqui.

Outras Cartas

Por exemplo, definir um livro como anarquista porque


nele se ensina a viver sem governo, me parece, no mínimo,
um comentário descuidado e sem a menor importância. Já
a intenção ou a necessidade de definir um livro como
anarquista me parece alguma coisa bastante complicada,
assim como a necessidade de definir o anarquismo. Enfim,
definir, a necessidade de definir, exige sérias
considerações, que sempre me levam ao problema da
conceituação e das teorias. Digo que definir não é o tipo de
verbo que dá conta nem do pensar nem da anarquia. A
própria palavra anarquismo não resume nem o pensar nem
a anarquia, ou melhor, resume, mas talvez apenas isto.
Para aqueles que se conformam com uma palavra, não há
o menor problema na catalogação, e não que esta
resguarde um erro — do tipo “será que este livro é
realmente um livro anarquista?” —, mas não há problema
porque a catalogação resguarda um cômodo ponto final.
Bem, e se o anarquismo se resume a alguns livros e
outro tanto de anedotas, todos mais ou menos românticos,
mais ou menos humanistas, então não há necessidade
alguma de pensá-lo, e a memória, a famosa memória
coletiva, se encarregaria do álbum de recordações. Não
diria que um texto é anarquista, mas que há anarquia nele,
quando, longe de me mostrar o caminho da felicidade, ele
me incomoda até romper meu próprio mar congelado. E
diria que essa anarquia não se explica ou se define em
nenhuma geografia teórica.
Para quê ler os chamados livros anarquistas? não para
salvar a humanidade, não para descrever como o mundo
poderia ser perfeito. Para quê? Não se trata disto: o
anarquismo — uso a palavra para não me demorar mais
em considerações — não nos ensina a viver. Lê-se um livro
destes como um golpe no crânio, a menos que, ao ler,
exista o interesse de pacificar as épocas passadas e tomar
notas para desvendar as próximas, e daí tanto faz se o livro
é anarquista ou o que for, depende só do gosto do leitor.
Para ser atingido por uma leitura, não há outro momento
que não o presente. E a história deve deslizar-se para a
superfície, não para desaparecer, mas para tornar-se
ferramenta, e deixar de ser santuário. Quase quarenta e
um anos ou o século XIX: não são caixinhas de cristal, mas
movimento, tempos de superfície, no qual combinamos
ideias, tempos que nos atingem com suas palavras, mas
que também atingimos, ao combinar ideias e palavras de
outras maneiras, porque a nossa vontade assim o quer,
porque pensamos. Assim como Praga ou Paris, ou tantos
lugares, são lugares que visitamos, que reconhecemos
entre as palavras, mas que são círculos que fazemos no ar.
Outras leituras: em carta a Villaumé, de janeiro de 1856,
descreve Proudhon o resultado de suas leituras, entre 1839
e 1852, sobre as ideias, seu significado e seu alcance: “(...)
encontrei quase em tudo e por tudo, que nem as teorias
estão de acordo com seus próprios elementos, nem as
instituições em harmonia com seu objeto e seus fins, nem
os autores com suficientes dados, nem com suficiente
independência e lógica.”**. Proudhon inventa seu olhar: o
olhar, de uma maneira geral, perece-lhe estático, falta ao
olhar, ao pensamento, a noção de movimento. O
movimento ele imprime no pensamento com a noção de
progresso. Mas a palavra progresso nos parece uma
daquelas palavras tão carregadas de sentido, tão pesadas,
que seguramente não deveríamos nos dar o trabalho de
pensá-la, a não ser para erguer alguma estátua. Enfim,
nada mais apressado do que ver numa palavra uma época,
um sistema, um sentido. Não se trata de novas estátuas:
não me detenho na palavra para encontrar e desvendar
mistérios, numa suposta profundidade, mas para evitar a
pressa de nossa tão contemporânea leitura de acumulação
e catalogação.
Certo: falar de progresso, quanto mais de filosofia do
progresso, findo o século XX, pode sugerir muito mais um
saudosismo inconsequente do que qualquer interesse no
pensamento, em sua força, que está em seu movimento.
Relutei em escrever estas linhas justamente por não raro
suspeitar a necessidade de um esforço titânico na intenção
de dimensionar, na atualidade de um pensar radical, uma
palavra que está mais próxima, a primeira vista, do
passado que ela resguarda do que de alguma possibilidade
de vida ou significado no presente. Pior ainda: meu receio
dirigia-se também à possibilidade de provocar um
significado presente a partir da simbologia que hoje
descreve, como em um museu a céu aberto, não mais do
que a cristalização do grande sentido da palavra no século
XIX.
O símbolo: o trem, a estrada de ferro. O sentido
cristalizado: o caminho certeiro, se dentro dos trilhos, da
humanidade em direção ao seu aperfeiçoamento, a
estágios cada vez mais superiores do que pode ser
entendido como evolução social. Os séculos XVIII e XIX nos
brindaram fartamente estas teses, deste ou daquele ponto
de vista, e considero que o humanismo que as inspira as
distingue, no máximo, em nome da boa intenção que
leituras bem-intencionadas possam desenterrar nelas.
Se meu interesse fosse mostrar, num museu a página
aberta, o sentido da palavra para reviver, por algumas
linhas, o símbolo, certamente este texto reclamaria por um
cuidado ritualístico em relação à história e à teoria. E não
haveria o receio de provocar significados quaisquer, já que
estaria descrevendo uma figura, concentrando-me em suas
formas, suas cores, sem mais, no mais puro rigor da
observação plástica. Enfim, depois de duvidar sobre como
escrever sobre as ideias deste livro, gostaria de escrever
um pouco sobre a leitura a que ele me leva, que ele me
provoca.
Ao ler as duas cartas que compõem a edição aqui
referida da Filosofia do Progresso, uma de 1851 e a outra
de 1861, não estou interessada em preservá-las, no formol
da história das ideias, para a posteridade. Proudhon se
interessa pelo movimento das ideias, movimento de pensar
que é condição sine qua non do pensamento afirmativo de
liberdade, este também como ponto de vista crítico, não só
de relações absolutistas mas, também, e ao mesmo tempo,
do absolutismo do próprio pensamento, que adormece as
vontades, mesmo que sempre em nome do bem e da
felicidade geral. A noção de movimento em Proudhon nos
distancia tanto de afirmações categóricas acerca da
verdade quanto nos aproxima da noção de série, um
pensar que não exige de nós nem teorias, nem épocas,
nem símbolos, nem sentidos históricos. A série é uma
intencionalidade de pensamento que mostra apenas
combinações possíveis de unidades, segundo pontos de
vista. Não há totalidade, não há nada a ser preservado.
Assim, detenho-me aqui na palavra progresso: “(..) é a
afirmação do movimento universal e por consequência a
negação de toda forma e de toda fórmula imutáveis, de
toda doutrina de eternidade, de imobilidade, de
impecabilidade, etc., aplicada a um ser qualquer; de toda
ordem permanente, sem excetuar nem mesmo a do
universo; de todo sujeito ou objeto, empírico ou
transcendental, que não seja suscetível de mudança”. Ao
investir numa filosofia do progresso, Proudhon descreve
um pensar que prescinde “(...) do eterno, do imutável, do
perfeito, do definitivo, do não suscetível de transformação,
do indiviso (...)”, daquilo que é, “(...) o status quo em tudo
e por tudo.”
Se relacionada à lógica, a noção de progresso, diz
Proudhon, refere-se à noção de série. Série: formam-se
séries ao libertar o pensamento de categorias absolutistas,
de conceitos ou de vetores, do tempo e do espaço. A série
reclama nosso olhar, nossa história: quem combina as
unidades não desaparece pelo esforço, ingênuo esforço, da
neutralidade. A noção de movimento dissolve, como
filosofia do progresso, a separação entre vida e pensar.
Proudhon pensa o pensamento como a vida, como
transformação constante, imprevisível. Qual a qualidade
deste pensar? Pensa-se o presente.
Tentar definir o anarquismo parece-me apenas um gesto
daquilo que, umas quantas linhas atrás, me provocava
receio: aprisionar ideias em datas ou em teorias. Descrevê-
lo em sua multiplicidade é uma interessante cartografia
que cabe a muitos, em diferentes lugares e momentos;
interessante porém titânica (agora sim), se o que se
pretende é dar conta de toda sua extensão — diria que
impossível, se considero, como prefiro considerar, esta
extensão como movimento constante. Como pensar, há
uma anarquia que reúne o pensamento com a vida, que dá
ao pensar a força das vidas que o pensam, e às vidas um
pensamento que não as preserva, que não as ensina a
viver, nem as torna felizes, e assim inventa olhares
libertários.
Ao ler a Filosofia do Progresso, pouco me importa, a
pertinência da metáfora do trem, ou coisa que o valha, leio
o anarquismo como ideias que nos aguilhoam. De qualquer
maneira, leituras são sempre possíveis: nisto, é claro,
também não há recomendação. Trata-se de um ponto de
vista. Prefiro ler em Proudhon e sua filosofia do progresso
uma problemática sobre o pensamento, que nos incita a
pensar em “ismos” e outras definições como superfícies
nas quais podemos combinar ideias em movimento,
movimentando séries para perpassar dúvidas com
incômodos, nunca com certezas. Mesmo assim, pensar e
anarquia continuam em movimento, sem explicações.
Prefácio
A França exauriu os princípios que outrora a
sustentavam. Sua consciência está vazia, assim como sua
razão. Todos os escritores famosos que ela produziu no
último meio século - os de Maistres, os Chateaubriands, os
Lamennais, os de Bonalds, os Cousins, os Guizots, os
Lamartines, os Saint-Simons, os Michelets, católicos,
ecléticos, economistas, socialistas e membros do
parlamento - não deixaram de prever esse colapso moral
que, graças à misericórdia de Deus, à tolice do homem e à
necessidade das coisas, finalmente chegou. Os filósofos da
Alemanha ecoaram os profetas da França, já que
finalmente o destino de nossa pátria se tornou comum a
todo o mundo; pois está escrito que, como a sociedade
francesa é, assim se tornará a raça humana.
A Igreja, que outrora nos vangloriamos de ser a mais
antiga, não é mais nada além de uma instituição de
conveniência para nós, protegida mais pela polícia do que
pela simpatia. Retire o braço secular e o subsídio do
Estado, e o que se tornaria daquela Igreja Gálica, a glória
da qual fazia Bossuet estremecer, a última fortaleza da
cristandade, agora caída aos ultramontanos?...
Um homem, após ter lido a profissão de fé do vicário de
Savoia, os sermões de Robespierre, o Catecismo dos
maçons, as Paroles d'un Croyant, as Lettres sur la Religion
de M. Enfantin, a Histoire de la Révolution de M. Bûchez e o
preâmbulo da Constituição de 1848, poderia dizer a si
mesmo: Há, neste país, a necessidade de um conselheiro
da igreja, e ela será satisfeita a qualquer preço. Tragam de
volta os jesuítas! - É por isso que ainda somos, depois de
fevereiro, da religião de nossos pais.... Isso lhe faz
murmurar: lhe é repugnante que a religião de trinta
milhões de almas, uma coisa tão santa, permaneça à
discrição de um chefe de Estado, ele mesmo perfeitamente
desinteressado na questão. O que você poderia ter feito
melhor? Eu lhe darei uma centena de palpites.
A antiga monarquia poderia se comparar a um
casamento contraído sob o regime de propriedade
conjunta, que, dado o desentendimento entre o casal, foi
convertido em casamento parafernal. Pensava-se que, se o
marido fosse tornado o simples administrador dos bens da
esposa, a harmonia seria perfeita e imperturbável entre
eles. Todo ano, com grande pompa, o rei vinha apresentar
suas contas à nação, que, por sua parte, através de seus
representantes, escusava o rei. Desse encontro
cerimonioso e solene nasceu, da maneira natural, a Lei, a
terceira pessoa na trindade constitucional. Mas, quaisquer
precauções que fossem tomadas, o diálogo
constantemente acabava em disputa. — Não é este o caso,
o homem obstinadamente insistia. A paz só pode existir no
lar se a esposa obedecer sem falar, e o marido falar por
sinais. E, além disso, hoje de fato é apenas uma questão
de negociação! .... Agora estamos casados, como dizem
nos subúrbios, no décimo terceiro, morganaticamente.1
A democracia, como foi formulada pelos atos de 1793 e
de 1848, sucumbiu à lógica de sua aplicação. Quem
ousaria afirmar hoje, no sentido da Réforme, a soberania
popular, o sufrágio universal e direto? Sete vezes em oito
anos, as pessoas foram convocadas para manifestar sua
vontade, para agir como soberanas; sete vezes elas
responderam, como Thiers: O povo reina e não governa!
A Burguesia! O que ela exigiu em 89? Sieyès o disse:
Tudo! Ela não tentou esconder isso. Uma vez que a
aristocracia foi despojada, e os bens nacionais colocados à
venda, a burguesia gritou que a revolução estava
realizada, que havia apenas anarquia para além disso. Ela
favoreceu todos os governos traidores, traindo no próprio
ato de preservar e estabelecer a ordem.... O que ela tem
exigido desde 1830? Doações, prêmios, posições,
monopólios, privilégios, actions de jouissance, concessões,
canais, minas e ferrovias, ou seja, ainda e sempre: TUDO.
Qualquer governo que seja dado a ela, monarquia,
república ou império, ela recebe com ambas as mãos. O
povo não teria, exceto por ela, o Direito ao trabalho,
invocado pela primeira vez por um burguês de 89, Malouet.
Para melhor tomar posse de tudo, a burguesia toma crédito
por uma ideia socialista, se forma em companhias, se
coloca sob a patronagem do Estado, que ela torna seu
organizador, contratante e fornecedor. Quanto a se
produzir, através do trabalho e da genialidade, da
conquista agrícola, mercantil ou industrial, ela não se
lembra mais como. O mínimo empreendimento, para essa
burguesia degenerada, parece uma revolução. Para
aplainar um montículo, ela tomaria a enxada emprestada
do Estado. Apenas o tamanho das anuidades não a
assusta. Anuidades! Este é o seu Positivismo: ela o
inventou antes de M. Comte.
A Burguesia está doente de gras-fondu: enquanto
instituição, ela deixou de existir nas ordens política e
social. No lugar dessa palavra, que ninguém mais ouve,
colocou-se capital, um termo de avareza, e, em oposição
ao capital, um temo de inveja, o assalariado. O assalariado
é o nível revolucionário, inventado pelo capital. Essas duas
palavras-chave entraram na linguagem do povo. É por isso
que nada está acabado! O capital, assim como os salários,
está, de agora em diante, à discrição dos príncipes; e,
agora que o príncipe toma emprestado toda a estabilidade
do povo, não há nada estável, nem a religião, nem o
governo, nem o trabalho, nem a propriedade, nem a
confiança.
Graças aos ecléticos modernos, não temos nenhuma
filosofia. Graças aos novelistas e aos românticos, estamos
no fim da literatura. Os dançarinos nos produziram
estatuário, e os modistas, pintura. Hoje em dia, na pátria
do bom gosto, fazemos livros, pinturas, estátuas de
mármore, da maneira que fazemos decorações de latão ou
poltronas: artigos de Paris, para exportação transatlântica.
Enquanto o trabalho na bolsa, organizado com privilégio,
justifica a teoria dos MM. Malthus e Dupin, e nos faz
duvidar mais e mais da realidade de uma ciência
econômica, a prerrogativa central, sempre invasiva,
esmaga as instituições, mina, modifica e revoga
incessantemente um sistema de leis que mal duraram
cinquenta anos! A justiça, cega pelo comércio, não sabe de
nada do que acontece na Bolsa e, se o soubesse, não
poderia fazer nada. Enquanto javalis e ursos selvagens
devastam os campos da nação, ela caça sapos e lagartos.
Mais inepta ainda, a propriedade aplaude o despotismo e,
a salvo de insultos vindos de baixo, acredita que nenhum
decreto vindo de cima pode lhe aguardar. Ha, ha! Vocês
esmagaram a anarquia; vocês terão o Estado em toda sua
glória.
Atingidos no coração, os antigos partidos dinásticos
perderam, junto com a compreensão dos fatos, uma
consciência de sua posição: tão irritados contra o golpe de
2 de dezembro que eles se arrependem não ter dado o
golpe eles mesmos. O mesmo frenesi de absolutismo os
possui: eles acreditam, por conta dessa inveja do comércio,
inspirar no povo uma inveja dos ricos?
O que! Bourbon, filho mais velho da França, você ainda
nutre um rancor contra a Revolução! Você não foi capaz de
se reconciliar com 89! Aquela brava burguesia lhe deixa
com medo: Mounier lhe parece vermelho, Mirabeau, um
terrorista, Chateaubriand, um ateu! Tão hostil à carta
quanto seu avô, é ainda no lit de justice de 23 de junho de
1789 que se extrai de você a esperança de uma terceira
restauração! Você sabe disso, no entanto; seu senhor Henri
IV se tornou rei da França por um traço da mente: Paris é
bem digna de uma missa, ele disse. Ele pensava esse tanto
sobre a pregação. Você não acredita que Paris também seja
bem digna de liberdade?...
E vocês, senhores de Orleans, que deveriam ter sido para
a França, de acordo com a frase de Lafayette, a melhor das
repúblicas; tão-somente vocês que a burguesia não
restaurará, vocês não têm uma única palavra para o pobre
trabalhador? O socialismo nasceu sob seu pai: o velho rei
teria sido muito feliz, se tivesse jogado ao diabo os 150
milhões para suas fortalezas! Existe, então, também uma
incompatibilidade entre seu título e nossas aspirações?
Ouça a oferta popular: Vinte-e-cinco milhões! Vós não sois
vexados nem um pouco por isso?
Não falemos dos republicanos. Sabe-se, ai de mim!, que
a adversidade não desencorajou seu respeito pela lei, que
nunca terá havido nada entre eles além de crianças
perdidas que tomam, por grito de guerra, a ditadura, com
Pompeu, em vez de César, como ditador.
A França acredita apenas na força, obedece apenas a
instintos. Ela não tem mais indignação; parece ter achado
por bem não pensar. Que povo, que governo! O poder, que
nenhuma inspiração do país ilumina, não retorna, por sua
vez, qualquer ideia ao país. Ele avança conforme as mesas
viram, sem impulso visível: pode-se defini-lo como uma
espontaneidade. Assim se vê após as grandes crises, o
horror das discussões e sistemas se torna tal que
governados e governantes, partidos vencidos e
vencedores, todos, de novo e de novo, fecham seus olhos,
cobrem suas orelhas, à mera aparição de uma ideia.
Superstição e suicídio: essas duas grandes palavras
resumem o estado moral e intelectual das massas. A
direção dos negócios está na mão dos profissionais e é
para os homens de ação; esperem um pouco mais os
ideólogos! Fala-se do isolamento do atual poder em meio a
populações silenciosas: o fato é que as populações não
têm nada a dizer ao poder. Elas devolvem a ele seu lugar
nos céus; elas acreditam em sua vocação, em sua
predestinação, assim como acreditam nele em si. Que ele
fale, e suas palavras serão tomadas como lei. Ita jus esto!
disseram os plebeus latinos. La révolution protege seus
amados: esta é a verdade sobre as comunicações entre o
país e o governo. O alvorecer virá logo? Não sabemos nada
sobre isso, mas não duvidamos.
A política externa é como a opinião doméstica. Ela busca
a si mesma, aguardando o golpe do destino, escrevendo
notas que seriam chamadas de carentes de boa-fé, se não
fossem totalmente sem sentido. Os poderes signatários do
tratado de Vestefália e da Sagrada Aliança não mais
acreditam no equilíbrio europeu. Contra o ocidente em
revolução, eles invocam o barbarismo oriental, a guerra
das raças, a absorção de nacionalidades. Polônia, não
mais! Itália, não mais! Hungria, não mais! Turquia, não
mais, em breve! Eles não disseram, em um sussurro:
França, não mais! Ó, toque do sino de 92! ... A diplomacia
vai como a especulação e a estação. Encorajado pela
chuva, o czar faz um gesto para o imperador, que o recusa:
fogo montado para a cara do soldado. Mas ele, olho fixo na
mão da Bolsa, talvez ele espere pela hora soar sobre o
chauvinismo do burguês.
O papado, contudo, acredita ter se retornado aos seus
dias bons - não aos dias de Leão X, mas àqueles de
Inocêncio III. Sonha com inquisição e cruzada. A expedição
de Roma contra os democratas não é suficiente para ele,
ele exige uma expedição a Jerusalém contra os
muçulmanos e os gregos. É por esta razão que ele ventila,
como uma chama, a questão dos locais sagrados: Avante,
Gália e Francos! Não estaríamos surpresos se esta raça de
lutadores começasse a gritar, como o passado: Deus o
quer. Distribua a eles, Pai Sagrado, seus escapulários e
seus rosários: eles não trarão relíquias de volta para você.
Reina por toda a Europa uma sombra solene, similar à
escuridão com a qual os oráculos eram cercados, nas
profundezas de seus bosques de carvalhos e em suas
cavernas. Tome cuidado, Napoleão! Preparem-se,
Guillaume, Ferdinand, Nicolas, toda a companhia dos
coroados! E vocês, papas e pontífices, preparem seu Kyrie
eleison e seu Requiem. Pois o espírito das nações não mais
habita as tribunas; ele deixou a boca do orador e a pena do
escritor. Ele marcha com o soldado, carregado como um
resplendor na ponta de sua baioneta.
Contudo, é certo que o discurso francês, inaugurado pela
antiga monarquia, não pode perecer, não mais do que a
nação pode subsistir sem unidade e sem direito.
É certo que a democracia, que não é nada mais, afinal,
do que o partido do movimento e da liberdade, não pode
ser apagada da história pelas aberrações e ingenuidade de
1848.
É certo que a burguesia tinha uma missão política e
social a cumprir em relação ao proletariado. Você
preferiria, deixando a César o cuidado de nutrir os eleitores
de César, eternalizar, por seu egoísmo, o poder de uma
multidão retrógrada e destituir os países de suas
liberdades?
É certo, finalmente, que a Europa é uma federação de
estados tornados solidários por seus interesses e que,
nessa federação, inevitavelmente acarretada pelo
desenvolvimento do comércio e da indústria, a prioridade e
a predominância da iniciativa pertencem ao oeste. Essa
predominância - obtida por Luís XIV e Napoleão, na medida
em que agiram, o primeiro em nome do princípio das
nacionalidades postulado por Henrique IV e Richelieu, o
segundo em nome da Revolução Francesa, no interesse de
nossa preservação, muito mais do que naquele de nossa
glória - nos ordena que a aproveitemos uma vez mais.
Deveríamos, para este fim, proceder pela estrada da
conquista ou aquela da influência? O chefe do estado
francês deveria ser o presidente da república europeia, ou
você prefere permitir que ele persiga a oportunidade de ser
seu monarca, ao risco de uma terceira invasão e a rendição
da pátria?...
O que estou dizendo? Se há uma coisa óbvia para todo
observador, é que a França lucra neste momento apenas
pelas próprias ideias que ela tem proscrevido; é que a
civilização moderna, fervendo com tradições e exemplos,
está irrevogavelmente comprometida com o caminho da
revolução, onde nem precedentes históricos, nem a lei
escrita, nem a fé estabelecida podem guiá-la mais.
Desta forma, é necessário que realistas e democratas,
burgueses e proletários, franceses, alemães e eslavos
ponham-se a buscar os princípios desconhecidos que os
governam. É necessário substituir as fórmulas empíricas de
1648, 1789, 1814 e 1848, por uma ideia, anterior e
superior, que não teria nada a temer dos sofismas
diplomáticos e parlamentares, das falhas burguesas e das
alucinações plebeias. É necessário, a humanidade
aspirando saber e não sendo capaz de acreditar,
determinar a priori sua rota, escrever a história antes que
os fatos sejam realizados! Queremos ser governados pela
ciência, ou abandonados à fatalidade?
Toda era é governada por uma ideia, que é expressa em
uma literatura, desenvolvida em uma filosofia e
incorporada, se necessário for, em um governo. Houve, no
pensamento secreto de 1848, assim como naquele de
1793, 1814 e 1830, a coisa de uma democracia, de uma
dinastia talvez: esse pensamento tem sido desprezado...
como uma pedra angular cortada por maus pedreiros. Não
deixaremos de reproduzi-lo, e qualquer que venha a ser o
porta-estandarte dos destinos franceses, príncipe ou
tribuna, nós o proclamamos, com uma fé e energia
crescentes: É por este sinal que vós triunfareis!
Já se disse: O que se publica na presente situação?
Eis aqui a situação: nossa tarefa é enfrentar, através da
reflexão, a necessidade de coisas; é começar novamente
nossa educação social e intelectual; e, como um partido
fundado na própria natureza da mente humana não pode
perecer, é dar à democracia a ideia e a bandeira de que ela
carece.
Até agora, a democracia seguiu as formas do governo
monárquico, da política monárquica e da economia
monárquica. É por isto que a democracia sempre foi
apenas uma ficção, incapaz de se constituir. É hora de ela
aprender a pensar por si mesma; de ela postular o princípio
que é próprio dela e, ao se afirmar de uma maneira
positiva, de ela levar a termo o sistema de ideias sociais.
As duas cartas que vocês lerão foram escritas no fim de
1851. Elas deveriam ter aparecido na La Presse, em
resposta às questões de um crítico instruído. M.
ROMAINCORNUT, quando o golpe de 2 de dezembro
ocorreu. - Elas podem ser consideradas como a profissão
de fé filosófica e social do autor.
Nada persiste, disseram os antigos sábios: tudo muda,
tudo flui, tudo devém; consequentemente, tudo permanece
e tudo está conectado; por consequência adicional, todo o
universo é oposição, balanço, equilíbrio. Não há nada, nem
fora, nem dentro, à parte da dança eterna; e o ritmo que a
comanda, pura forma da existência, ideia suprema à qual
qualquer realidade pode responder, é a concepção mais
elevada que a razão pode alcançar.
Como, então, as coisas estão conectadas e são
engendradas? Como os seres são produzidos e como eles
desaparecem? Como a sociedade e a natureza são
transformadas? Este é o único objeto da ciência.
A noção de Progresso, levada a todas as esferas da
consciência e da compreensão, se torna a base da razão
prática e especulativa, deve renovar todo o sistema de
conhecimento humano, expurgar a mente de seus últimos
preconceitos, substituir as constituições e os catecismos
nas relações sociais, ensinar ao homem tudo que ele pode
legitimamente saber, fazer, esperar e temer: o valor de
suas ideias, a definição de seus direitos, a regra de suas
ações, o propósito de sua existência...
A teoria do Progresso é o trilho da liberdade.
Antes de publicar, com a procissão de provas que é
necessária, o conjunto de nossas visões sobre essas
elevadas questões, pensamos necessário consultar o
público e nossos amigos sobre a sequência a ser dada a
nossas pesquisas. Ousamos esperar que a crítica não
faltará para esta primeira amostra: estaremos felizes se,
informados por conselhos salutares, formos capazes de
levantar um canto do véu que rouba de nós a luz!...
Usus et impigrae simul experientia
mentis
Paulatim docuit pedetemptim
progredientis.
LUCRETIUS, De rerum natura.
Primeira Carta: Da Ideia do Progresso
Sainte-Pélagie, 26 de novembro de 1851

SENHOR,
Antes de reportar ao público acerca de minhas várias
publicações, você deseja, para maior exatidão, perguntar-
me como eu vislumbro o todo, como eu entendo a unidade
e as conexões.
Este desejo de sua parte, senhor, não poderia ser mais
legítimo, e a questão é tão justa quanto é razoável. Não há
nenhuma doutrina onde não haja unidade, e eu não
mereceria uma hora de investigação, como pensador ou
como revolucionário, se não houvesse algo, na multidão de
proposições, que às vezes são muito díspares, que eu já,
cada uma por seu turno, sustentei e neguei, algo que as
conecte e forme a partir delas um corpo de doutrina. Em
tempos passados, perguntava-se a um homem que vagava
longe de sua casa: Qual é o seu Deus? Qual é sua
religião?.... É o mínimo que se poderia exigir de um recém-
chegado, saber qual, em última instância, é seu princípio.
Eu não sei como lhe agradecer o suficiente, senhor, por
essa elevada imparcialidade, por essa boa fé na crítica,
que o faz buscar, antes de tudo o mais, não a fraqueza do
escrito - que é apenas muito aparente - mas seu
verdadeiro pensamento, o valor exato de suas afirmações.
Em todas as operações judiciais é necessário, antes de
pronunciar a sentença, ouvir o réu: o mais justo julgamento
é aquele que resulta do testemunho e das confissões do
acusado.
Eu vou, senhor, tentar satisfazer sua exigência ou,
melhor, vou me entregar, de mãos e pés amarrados, à sua
justiça, apresentando a você aqui, não uma defesa, mas
uma confissão geral. Tome-me, então, se puder, pelo meu
testemunho. Não terei o direito de apelar de sua sentença.
I
Aquilo que domina todos os meus estudos, seu princípio
e fim, seu ápice e base, em uma palavra, sua razão; aquilo
que dá a chave para todas minhas controvérsias, todas
minhas disquisições, todos meus lapsos; aquilo que
constitui, enfim, minha originalidade enquanto pensador,
se eu puder reclamar tal coisa, é que eu afirmo, resoluta e
irrevogavelmente, em todo e qualquer lugar, o Progresso e
que eu nego, não menos resolutamente, o Absoluto.
Tudo que eu já escrevi, tudo que eu já neguei, afirmei,
ataquei, combati, eu escrevi, eu neguei ou afirmei em
nome de uma única ideia: o Progresso. Meus adversários,
pelo contrário, e você logo verá que eles são numerosos,
são todos partidários do absoluto, em omni génère, casu et
numero, como Sganarelle disse.
O que, então, é o Progresso? - Por quase um século,
todos têm falado sobre ele, sem que o Progresso, enquanto
doutrina, tenha avançado sequer um passo. A palavra é
declamada: a teoria ainda está no ponto em que Lessing a
deixou.2
O que é o Absoluto, ou, para melhor designá-lo, o
Absolutismo? - Todos o repudiam, ninguém o quer mais; e,
ainda assim, eu posso dizer que todos que são cristãos,
protestantes, judeus ou ateus, monarquistas ou
democratas, comunistas ou malthusianos: todos, a
blasfemar contra o progresso, são aliados do Absoluto.
Se, então, eu pudesse, por um instante, pôr meu dedo na
oposição que eu coloco entre essas duas ideias e explicar o
que eu quero dizer com Progresso e o que eu considero o
Absoluto, eu teria lhe dado o princípio, o segredo e a chave
de todas as minhas polêmicas. Você possuiria o elo lógico
entre todas as minhas ideias e você poderia, com apenas
essa noção, lhe servindo como um critério infalível em
relação a mim, não apenas estimar o conjunto das minhas
publicações, mas prever e sinalizar com antecedência as
proposições que, mais cedo ou mais tarde, eu devo afirmar
ou negar, as doutrinas das quais eu terei me feito defensor
ou adversário. Você seria capaz, digo eu, de avaliar e julgar
todas as minhas teses pelo que eu tenho dito e pelo que eu
não sei. Você me conheceria, intus et in cute, tal como eu
sou, tal como eu tenho sido toda minha vida e tal como eu
me encontraria em mil anos, se eu pudesse viver mil anos:
o homem cujo pensamento sempre avança, cujo programa
nunca estará terminado. E, qualquer que seja o momento
de minha carreira em que você viesse a me conhecer,
qualquer que seja a conclusão que você chegasse em
relação a mim, você sempre teria que me absolver em
nome do Progresso, ou me condenar em nome do Absoluto.
O Progresso, no sentido mais puro da palavra, que é o
menos empírico, é o movimento da ideia, processus; é
movimento inato, espontâneo e essencial, incontrolável e
indestrutível, que é para a mente o que a gravidade é para
a matéria (suponho eu, com os vulgares, que mente e
matéria, deixando de lado o movimento, são algo) e que se
manifesta principalmente na marcha das sociedades, na
história.
Disso se segue que, a essência da mente sendo
movimento, a verdade - isto é, a realidade, tanto na
natureza quanto na civilização - é essencialmente histórica,
estando sujeita a progressões, conversões, evoluções e
metamorfoses. Não há nada fixo e eterno além das
próprias leis do movimento, o estudo das quais forma o
objeto da lógica e da matemática.
Os vulgares, pelo qual eu quero dizer a maioria dos
savants, assim como os ignorantes, entendem o Progresso
em um sentido inteiramente utilitário e material. O
acúmulo de descobertas, a multiplicação das máquinas, o
aumento no bem-estar geral, todos através da maior
extensão da educação e da melhoria dos métodos; em
uma palavra, o aumento da riqueza material e moral, a
participação de um número sempre maior de homens nos
prazeres da fortuna e da mente: tal é, para eles, mais ou
menos, o Progresso. Certamente, o Progresso é isso
também, e a filosofia progressista seria míope e teria
poucos frutos se, em suas especulações, ela começasse
por colocar de lado a melhoria física, moral e intelectual da
classe mais numerosa e mais pobre, como as fórmulas de
Saint-Simon diziam. Mas tudo isso nos dá apenas uma
expressão restrita do Progresso, uma imagem, um símbolo,
(como devo dizer?) um produto: filosoficamente, tal noção
de Progresso é sem valor.
O Progresso, mais uma vez, é a afirmação do movimento
universal, consequentemente a negação de toda forma e
fórmula imutável, de toda doutrina de eternidade,
permanência, impecabilidade, etc., aplicadas a qualquer
ser que seja; é a negação de toda ordem permanente,
mesmo daquela do universo e de todo sujeito ou objeto,
empírico ou transcendental, que não mude.
O Absoluto, ou absolutismo, é, ao contrário, a afirmação
de tudo que o Progresso nega, a negação de tudo que ele
afirma. É o estudo, na natureza, na sociedade, na religião,
na política, na moral, etc. do eterno, do imutável, do
perfeito, do definitivo, do inconversível, do indivisível; ele
é, para usar uma frase tornada famosa em nossos debates
parlamentares, em todo e qualquer lugar, o status quo.3
Descartes, raciocinando inconscientemente, de acordo
com os preconceitos da antiga metafísica, e buscando uma
fundação inabalável para a filosofia, um aliquid
inconcussum, como se dizia, imaginou que a encontrara no
eu e postulou este princípio: Penso, logo sou; Cogito, ergo
sum. Descartes não percebeu que sua base, supostamente
imóvel, era a mobilidade em si. Cogito, penso, essas
palavras expressam movimento; e a conclusão, de acordo
com o sentido original do verbo ser, sum, ειναι, ou
‫)היה‬haïah), ainda é movimento. Ele deveria ter dito:
Moveor, ergo fio, Movo-me, logo devenho!
Dessa definição dupla e contraditória de progresso e
absoluto primeiro se deduz, como corolário, uma
proposição bastante estranha para nossas mentes, que
foram moldadas por tanto tempo pelo absolutismo: é que a
verdade em todas as coisas, o real, o positivo, o praticável,
é o que muda ou pelo menos estar suscetível à progressão,
conciliação, transformação; ao passo que o falso, o fictício,
o impossível, o abstrato é tudo que se apresenta como fixo,
inteiro, completo, inalterável, infalível, não suscetível à
modificação, conversão, aumento ou diminuição,
resistente, por conseguinte, a toda combinação superior, a
toda síntese.
Assim, a noção de Progresso nos é fornecida de maneira
imediata e antes de toda experiência, não o que se chama
de critério, mas, como diz Bossuet, um preconceito
favorável, por meio do qual é possível distinguir, na
prática, aquilo que pode ser útil empreender e perseguir
daquilo que pode se tornar perigoso e mortal, —uma coisa
importante para o governo do Estado e do comércio.
De fato, entre os muitos projetos de melhoramento e
reforma que são produzidos diariamente na sociedade, é
inquestionável que se descobre alguns úteis e desejáveis,
ao passo que outros não são. Ora, antes que a experiência
tenha decidido, como se pode reconhecer, a priori, entre o
melhor e o pior, entre a coisa prática e a especulação
falsa? Como você escolhe, por exemplo, entre propriedade
e comunismo, federalismo e centralização, governo direito
pelo povo e ditadura, sufrágio universal e direito divino?....
Essas questões são tão mais difíceis, uma vez que não há
carência de exemplos de legisladores e de sociedades que
tomaram por regra um ou o outro desses princípios e uma
vez que todos os contrários igualmente encontram sua
justificativa na história.
Para mim, a resposta é simples. Todas as ideias são
falsas, isto é, contraditórias e irracionais, quando se as
toma em um sentido exclusivo e absoluto ou quando se
permite ser levado por esse sentido; todas são
verdadeiras, suscetíveis à realização e ao uso, quando se
as toma elas junto com outras ou em evolução.
Assim, quer você tome como lei dominante da República,
seja a propriedade, como os romanos, ou o comunismo,
como Licurgo, ou a centralização, como Richelieu, ou o
sufrágio universal, como Rousseau, —qualquer que seja o
princípio que você escolha, uma vez que, em seu
pensamento, ele toma precedência sobre todos os outros,
—seu sistema é errôneo. Há uma tendência fata à
absorção, à purificação, exclusão, estase, que leva à ruína.
Não há uma revolução na história humana que não possa
ser facilmente explicada por isso.
Pelo contrário, se você admitir, em princípio, que toda
realização, na sociedade e na natureza, resulta da
combinação de elementos opostos e de seu movimento,
seu curso está traçado: toda proposição que vise seja
avançar uma ideia devida ou obter uma combinação mais
íntima, um acordo superior, é vantajosa para você e é
verdadeira. Ela está em progresso.
Por exemplo, a filosofia moral e a experiência das
sociedades não se pronunciaram, de uma maneira
definitiva, sobre a questão de se, em uma legislação
aperfeiçoada, o divórcio é permitido. Nunca se falha em
citar, nessa conexão, os exemplos dos romanos, dos
gregos e dos orientais, os sentimentos da Igreja Grega e da
Igreja Reformada, a autoridade de Moisés e do próprio
Jesus Cristo. Ante essa massa de testemunhos, pergunta-se
de que importa a opinião da França e dos outros países
governados pela disciplina católica. —Eu admito, por mim,
que não fico muito movido por essa argumentação, que
seria fácil fazer servir à defesa da poligamia, com efeito,
até mesmo da promiscuidade. Os antigos socialistas, como
muitos entre os modernos, não se abstiveram disso. Eu não
me pergunto qual foi nos séculos passados e qual ainda é
na maioria das nações o estado da mulher, a fim de
deduzir, por comparação, o que seria adequado produzir
entre nós; eu busco aquilo que está a caminho de se
tornar. A tendência é à dissolução ao à indissolubilidade?
Esta é a questão para mim. Ora, me parece óbvio,
independente das considerações sobre interesses
domésticos, moral, dignidade, justiça e até mesmo
felicidade, que pode se afirmar aqui que a monogamia
latina, sustentada e enobrecida pelo catolicismo,
demonstra uma tendência triunfante à indissolubilidade;
me parece que a igreja grega continuou estacionada neste
ponto, que a igreja protestante tem sido retrógrada, e que
o código francês, com suas exceções para a nulidade,
ainda é a expressão mais avançada do Progresso.
Adicionemos que a questão do divórcio, resolvida na
afirmativa, implicaria uma retrogradação de toda a ordem
política e social, uma vez que, no fim da questão do
divórcio, existe uma outra questão de desigualdade, como
se viu a partir da teoria saint-simoniana. É isto que eu
chamo de um preconceito favorável; uma vez que, para
mim, perguntar se introduziremos o divórcio em nossas leis
é perguntar, implicitamente, se retornaremos ao
feudalismo através do capitalismo, se o governo será
despótico ou liberal, em suma, se seremos progressistas ou
reacionários.
Tal, então, é, na minha opinião, a regra de nossa conduta
e de nossos julgamentos: existem graus de existência, de
verdade e do bem, e o mais extremo não é nada além do
que a marcha do ser, o acordo entre o maior número de
termos, ao passo que a unidade pura e a estase é
equivalente ao nada; é esta própria ideia, toda doutrina
que secretamente aspira à prepotência e à imutabilidade,
que visa se eternalizar, que se lisonjeia dar a última
fórmula da liberdade e da razão, que, consequentemente,
esconde, nas dobras de sua dialética, exclusão e
intolerância; que alega ser verdadeira em si mesma, pura,
absoluta, eterna, à maneira de uma religião e sem
consideração para com qualquer outra; essa ideia, que
nega o movimento da mente e a classificação das coisas, é
falsa e fatal, e mais, ela é incapaz de ser constituída na
realidade. É por isto que a igreja cristã, fundada sobre uma
ordem supostamente divina e imutável, nunca foi capaz de
se estabelecer no rigor de seu princípio; por isso que cartas
monárquicas, sempre deixando latitude demais para a
inovação e para liberdade, são sempre insuficientes; por
isso, pelo contrário, que a Constituição de 1848, apesar
das desvantagens com as quais abunda, ainda é a melhor
e mais verdadeira de todas as constituições políticas. Ao
passo em que outras obstinadamente se postulam no
Absoluto, apenas a Constituição de 1848 proclamou sua
própria revisão, sua perpétua reformabilidade.4
Com isto entendido, e a noção de Progresso ou
movimento universal introduzida no entendimento,
admitida na república das ideias, enfrentando seu
antagonista, o Absoluto, tudo muda em aparência para o
filósofo. O mundo da mente, como aquele da natureza,
parece virado por sobre sua cabeça: lógica e metafísica,
religião, política, economia, jurisprudência, moral e arte,
todas aparecem com uma nova fisionomia, revolucionada
de cima para baixo. O que a mente havia acreditado ser
verdade até este momento se torna falso; aquilo que ela
havia rejeitado como falso se torna verdadeiro. A influência
da nova noção se fazendo sentir por todos e mais a cada
dia, disso logo resulta uma confusão que parece
inextricável aos observadores superficiais e como o
sintoma de uma loucura geral. No interregno que separa o
novo regime do Progresso do antigo regime do Absoluto, e
durante o período enquanto as inteligências passam de um
ao outro, a consciência hesita e tropeça entre suas
tradições e suas aspirações; e, como poucas pessoas
sabem como distinguir a dupla paixão que obedecem,
separar o que elas afirmam ou negam de acordo com sua
crença no Absoluto daquilo que elas negam ou afirmam de
acordo com seu apoio ao Progresso, disso resulta, para a
sociedade, a partir dessa efervescência de todas as noções
fundamentais, uma confusão de opiniões e interesses, uma
batalha de partidos, na qual a civilização logo seria
arruinada, se a luz não conseguisse se fazer vista no vazio.
Tal é a situação em que a França se encontra, não
apenas desde a revolução de Fevereiro, mas desde aquela
de 1789, uma situação pela qual eu culpo, até um certo
ponto, os filósofos, os publicistas, todos aqueles que, tendo
uma missão de instruir o povo e de formar opinião, não
viram ou não quiseram ver, que a ideia do Progresso
sendo, de agora em diante, universalmente aceita—tendo
adquirido direitos da burguesia, não apenas nas escolas,
mas até mesmo nos templos—e finalmente elevada à
categoria de razão, as antigas representações das coisas
naturais, assim como as sociais, são corrompidas e que é
necessário construir novas, por meio dessa nova lanterna
do entendimento, da ciência e das leis.
Dimsit lucem à tenebris! A separação de ideias positivas,
construídas sobre a noção do Progresso, das teorias mais
ou menos utópicas que sugerem o Absoluto: tal é, senhor,
o pensamento geral que me guia. Tal é o meu princípio,
minha ideia em si, aquela que forma a base e cria as
conexões em todos os meus julgamentos. Será fácil para
mim mostrar como, em todas as minhas controvérsias, eu
tenho pensado para obedecê-la: você dirá se eu tenho sido
fiel.
II
Desta forma, eu mantenho, e é uma das minhas mais
inabaláveis convicções, que, com a noção de Progresso,
toda nossa antiga lógica aristotélica, toda aquela dialética
escolástica fica sem valor e que devemos nos livrar dela
rapidamente ou então falar coisas sem sentido por toda
nossa vida. O que se toma por raciocínio hoje, uma
miscelânea de ideias absolutistas e progressistas, é apenas
uma associação fortuita e arbitrária de ideias, um anfiguri
brilhante, um phébus precioso ou sentimental. Não lhe
citarei exemplos: nossa literatura contemporânea, do
ponto de vista das ideias e deixando de lado a questão da
forma, é, em meu julgamento, apenas um desperdício
imenso. Ninguém mais entende seu vizinho ou a si mesmo,
e se, às vezes, particularmente em assuntos do partido,
alguns parecem entrar em acordo, é porque algum resíduo
de preconceito os faz repetir as mesmas palavras e frases,
sem atribuir o mesmo significado a elas. Uma vez que a
noção de Progresso entrou em nossas mentes, o Absoluto
tendo preservado a maioria de suas posições, o caos está
em todas as cabeças; e como o Progresso, em algum grau,
se impõe a todos com uma força invencível, o mais insano
ainda é aquele que, acreditando-se livre dele, finge não ser
louco.
Eu tenho feito o que pude, na medida em que minha
força permitiu, sem dúvida com mais boa vontade do que
aptidão, lançar um pouco de luz sobre essa escuridão: não
cabe a mim dizer em que medida eu tenho tido sucesso,
mas eis aqui, mais ou menos, como eu tenho procedido.
O movimento existe: este é meu axioma fundamental.
Dizer como eu adquiri a noção de movimento seria dizer
como eu penso, como eu sou. É uma questão à qual eu
tenho o direito de não responder. O movimento é o fato
primitivo que é revelado de uma só vez pela experiência e
pela razão. Eu vejo o movimento e eu o sinto; eu o vejo
fora de mim e eu o sinto em mim. Se eu o vejo fora de
mim, é o porquê eu o sinto em mim, e vice-versa. A ideia
de movimento é, assim, dada de uma só vez pelos sentidos
e pelo entendimento; pelos sentidos, uma vez que, a fim
de ter a ideia de movimento, é necessário tê-lo visto; pelo
entendimento, porque o movimento em si, através do
sensível, não é nada real e porque tudo que os sentidos
revelam em movimento é que o mesmo corpo que, apenas
um momento atrás, estava em um certo lugar está, no
próximo instante, em outro.
A fim de que eu possa ter uma ideia de movimento, é
necessário que uma faculdade especial, que eu chamo de
sentidos, e uma outra faculdade, que eu chamo de
entendimento, concordem, em minha CONSCIÊNCIA, em
me fornecê-la: isto é tudo que eu posso dizer sobre o modo
dessa aquisição. Em outras palavras, eu descubro o
movimento fora porque eu o sinto dentro; e eu o sinto
porque eu o vejo: na base, as duas faculdades são apenas
uma; o interior e o exterior são duas faces de uma única
atividade, é impossível para mim ir além.
A ideia de movimento obtida, todas as outras são
deduzidas dela, intuições assim como concepções. É um
erro, em minha opinião, que, entre os filósofos, alguns, tais
como Locke e Condillac, tenham alegado explicar todas as
ideias com a ajuda dos sentidos; outros, tais como Platão e
Descartes, negam a intervenção dos sentidos e explicam
tudo através do que é inato; os mais razoáveis, finalmente,
com Kant à sua frente, fazem uma distinção entre ideias e
explicam algumas através da relação dos sentidos e outras
através da atividade do entendimento. Para mim, todas as
nossas ideias, sejam intuições ou concepções, vêm da
mesma fonte, a ação simultânea, conjunta, adequada e, na
raiz, idêntica dos sentidos e do entendimento.
Assim, toda intuição ou ideia sensível é a apercepção de
uma composição e é, ela mesma, uma composição: ora,
toda composição, quer ela exista na natureza ou resulte de
uma operação da mente, é o produto de um movimento.
Se não fôssemos nós mesmos uma força motriz e, ao
mesmo tempo, uma receptividade, não veríamos objetos,
porque seríamos incapazes de examiná-los, de restaurar a
diversidade a sua unidade, como Kant dizia.
Toda concepção, pelo contrário, indica uma análise do
movimento, que ainda é, em si, um movimento, o que eu
demonstro da seguinte maneira:
Todo movimento supõem uma direção, A -> B. Esta
proposição é fornecida, a priori, pela própria noção de
movimento. A ideia de direção, inerente à ideia de
movimento, sendo adquirida, a imaginação toma posse
dela e a divide em dois termos: A, o lado a partir do qual o
movimento vem, e B, o lado para onde ele vai. Esses dois
termos dados, a imaginação os sumariza nesses dois
outros, ponto de partida e ponto de chegada ou, de outra
forma, princípio e objetivo. Ora, a ideia de um princípio ou
de um objetivo é apenas uma ficção ou concepção da
imaginação, uma ilusão dos sentidos. Um estudo completo
demonstra que não há, nem poderia haver, um princípio ou
um objetivo, tampouco um começo ou um fim, para o
movimento perpétuo que constitui o universo. Essas duas
ideias, puramente especulativas de nossa parte, indicam,
nas coisas, nada mais do que relações. Conceder qualquer
realidade a essas noções é criar para si uma ilusão
deliberada.
A partir deste conceito duplo, de começo ou princípio e
de objetivo ou fim, todos os outros são deduzidos. Espaço e
tempo são duas maneiras de conceber o intervalo que
separa os dois termos assumidos a partir do movimento,
ponto de partida e ponto de chegada, princípio e objetivo,
começo e fim. Considerado em si mesmos, tempo e
espaço, noções igualmente objetivas ou subjetivas, mas
essencialmente analíticas, não são, por causa da análise
que lhes deram origem, nada, são menos que nada; eles
têm valor de acordo com a soma de movimento ou de
existência que se supõe que contenham, de modo que, de
acordo com a proporção de movimento ou existência que
ele contém, um ponto pode valer uma infinidade, e um
instante, a eternidade. Eu trato a ideia de causa da mesma
maneira: ela ainda é um produto da análise, que, após ter-
nos feito supor, no movimento, um princípio e um objetivo,
nos leva a concluir, ao supor ainda mais, através de uma
nova ilusão do empirismo, que o primeiro é o gerador da
segunda, tanto quanto no pai vemos o autor ou a causa de
seus filhos. Mas é sempre apenas uma relação
ilegitimamente transformada na realidade: não há, no
universo, uma causa primeira, segunda ou última; há
apenas uma única corrente de existências. O movimento é:
isso é tudo. O que chamamos de causa ou força é apenas,
como aquilo que chamamos de princípio, autor ou motor,
uma face do movimento, a face A; ao passo que o efeito, o
produto, o motivo, a meta ou o fim, é a face B. No conjunto
das existências, essa distinção não tem mais lugar: a soma
das causas é idêntica e adequada à soma dos efeitos, o
que é a própria negação de ambos. Movimento ou, como
dizem os teólogos, criação é o estado natural do universo.
Da ideia de movimento, eu deduzo ainda, e sempre pelo
mesmo método analítico, os conceitos de unidade, de
pluralidade, de mesmo e de outro, o que, por sua vez, me
leva àqueles de sujeito e objeto, de mente e matéria, etc.,
aos quais eu retornarei em breve.
É assim que, com a ajuda de uma única noção, sobre a
qual eu admito, além disso, a impenetrabilidade, porque
ela é a própria existência e a vida, com a noção, digo eu,
de movimento e de Progresso, eu consigo dar conta da
formação de ideias e explicar todas as intuições e
concepções, as primeiras por meio da composição, as
últimas por meio da análise. Esta não é, imagino eu, a rota
que tem sido seguida até o momento pelos filósofos que
especularam sobre o movimento: não fosse por isso, eles
teriam há muito feito uma aplicação de seu método à
prática social; há muito eles teriam revolucionado o
mundo. Pois tal é a teoria das ideias, e tal é a economia da
raça humana.
III
A teoria das ideias me leva àquela do raciocínio.
A partir do momento em que eu concebo o movimento
como a essência da natureza e da mente, segue-se que o
raciocínio, ou a arte de classificar ideias, é uma certa
evolução, uma história ou, como eu às vezes chamei, uma
série. Disso, segue-se que o silogismo, por exemplo, o rei
dos argumentos da antiga escola, tem apenas um valor
hipotético, convencional e relativo: é uma série truncada,
apropriada apenas para produzir a balbuciação mais
inocente sobre o mundo, por parte daqueles que não
sabem como retorná-lo à sua completude, provocando sua
reconstrução completa.
O que eu digo sobre o silogismo deve ser dito sobre a
indução baconiana, sobre o dilema e sobre toda a antiga
dialética.
A indução, permanecendo estéril nas mãos dos filósofos,
apesar da declaração de Bacon, retornaria como o
instrumento da invenção e a mais feliz fórmula da verdade,
se fosse concebida, não mais como um tipo de silogismo
tomado em sentido inverso, mas como a descrição
completa de um movimento da mente, inverso àquele
indicado pelo silogismo, e traçado, assim como no
silogismo, por um pequeno número de marcas.
O dilema, considerado os mais fortes dos argumentos,
não mais seria considerado nada além de uma arma de má
fé, a adaga do salteador que lhe ataca na sombra, por trás
e pela frente, na medida em que não tenha sido retificado
pela teoria da antinomia, a forma mais elementar e a mais
simples composição do movimento.
Mas isso não é tudo que a reforma dos instrumentos
dialéticos influencia. Ainda é necessário saber, e nunca
perder de vista, que mesmo o método mais autêntico e
mais certo de raciocínio não pode sempre, por si só, levar a
uma distinção completa da verdade. É, eu disse em outro
lugar, na classificação das ideias, assim como naquela de
animais e plantas, como nas próprias operações
matemáticas. Nos dois reinos, animal e vegetal, os gêneros
e as espécies não estão, em todo lugar e sempre,
suscetíveis a uma determinação precisa; eles são bem
definidos apenas nos indivíduos localizados nas
extremidades da série; os intermediários, comparados a
esses, são frequentemente inclassificáveis. Quanto mais se
prolonga a análise, mais se ver surgir, a partir da
observação de características, razões a favor e contra
qualquer dada classificação. É o mesmo na aritmética,
naquelas divisões onde o dividendo, estendido até quantas
casas decimais você queira, não pode nunca ser resolvido
em um quociente exato. É assim com ideias, e todos
aqueles que examinaram os tratados de jurisprudência,
que se ocuparam com julgamentos e com precedentes, o
sentiram; ideias, digo eu, não são sempre, qualquer que
seja a sutileza da dialética que empregamos,
completamente determináveis; há uma massa de casos
onde a elucidação sempre deixará algo a ser desejado. E,
como se todos tipos de dificuldades se reunissem para
atormentar o dialético e levar o filósofo ao desespero,
nunca é nos casos duvidosos que a massa dos humanos
hesita e se divide: por um estranho capricho, eles apenas
batalham e disputam as soluções mais bem
demonstradas...
Em suma, e para concluir este artigo, eu afirmo que o
antigo método de raciocínio sobre o qual a filosofia
subsistiu até o presente e no qual nossa geração foi criada,
está - de agora em diante - provado falso, que ele é tanto
mais falso e pernicioso conforme admite hoje, em seu
velho arsenal, um novo instrumento de guerra, o
Progresso: a partir do que eu concluo que nossa lógica
deve, tão logo quanto possível, ser reformada pela
construção dessa nova ideia, sob a pena de infâmia e
suicídio.
IV
Se, da lógica e da dialética, passarmos à ontologia,
encontramos, depois da introdução da ideia de Progresso,
impossibilidades não menos numerosas e não menos
graves, que surgem de observações análogas e pedem
pela mesma reforma.
Tudo que nossos tratados de física, química e história
natural contêm de ideias gerais sobre o corpo, assim como
sobre a inteligência, é extraído das especulações de
Aristóteles, Abelardo, Descartes, Leibniz, Kant, etc., o que
se chamou na Idade Média de universais e categorias:
Substância, causa, mente, matéria, corpo, alma, etc. Uma
única noção, a mais importante, não recebeu seu
contingente, o Progresso.
Sem dúvida, não se fala mais para nós de qualidades
ocultas, de entidades, equidades, do horror do vácuo, etc.
Tudo isso desapareceu da ontologia, mas somos mais
avançados? Não é verdade que todos os nossos cientistas,
sem exceção, o mesmo com nossos psicólogos, ainda são,
por bem ou por mal, dualistas, panteístas, atomistas,
vitalistas, materialistas, até mesmo místicos, partidários
finalmente de todos os sistemas, de todos os sonhos aos
quais a antiga ontologia deu luz?
Não consigo me evitar de notar, de passagem, a ilusão
que, por tantos séculos, fez os filósofos desfiarem tantos
absurdos ontológicos.
A condição de toda a existência, depois do movimento, é,
inquestionavelmente, a unidade; mas qual é a natureza
dessa unidade? Se consultássemos a teoria do progresso,
ela responde que a unidade de todo ser é essencialmente
sintética, que é uma unidade de composição.5 Desta
forma, a ideia de movimento, ideia primordial de toda
inteligência, é sintética, uma vez que, como acabamos de
ver, ela se resolve analiticamente em dois termos, que
representamos através desta figura, A -> B. Similarmente,
e por maior razão, todas as ideias, intuições ou imagens
que recebemos de objetos são sintéticas em sua unidade:
elas são combinações de movimentos, variados e
complicados ao infinito, mas convergentes e únicos em sua
coletividade.
Essa noção do UM, de uma só vez empírico e intelectual,
condição de toda realidade e existência, tem sido
confundida com que aquela do simples, que resulta da
série ou expressão algébrica do movimento e, como causa
e efeito, princípio e objetivo, começo e fim, é apenas uma
concepção da mente e não representa nada real e
verdadeiro.
É deste simplismo que toda a dita ciência do ser, a
ontologia, tem sido deduzida.
Foi dito que a causa é simples; - consequentemente, o
sujeito é simples, e a mente, a expressão mais alta da
causa do eu, é igualmente simples.
Mas, como Leibniz observou, se a causa é simples, o
produto dessa causa deve ainda ser simples: isto é, a
mônada. Se o sujeito é simples, o objeto que ele cria para
se opor a si mesmo, não pode ser simples, assim a matéria
é simples também: isto é o átomo.
Vamos extrair a consequência: causa e o efeito, o eu e o
não-eu, mente e matéria, todas essas simplicidades
especulativas que a análise deriva da noção única e
sintética de movimento, são concepções puras do
entendimento; nem corpos nem almas existem, nem
criador nem criado, e o universo é uma quimera. Se o autor
da monadologia fosse de boa-fé, ele teria concluído assim,
junto com Pyrrho, Barclay, Hume e os outros.
Desta forma, o sistema das mônadas, apesar do gênio de
seu autor, permaneceu sem partidários: ele era claro
demais. Testemunhe a pobreza, ou a covardia, da razão
humana! Preservamos, como artigos de fé, a simplicidade
da causa, a simplicidade do eu, a simplicidade da mente,
mas afirmamos a composição de criaturas e a divisibilidade
da matéria: é sobre esta estranha transigência que
repousa a ontologia dos modernos, sua psicologia e sua
teodiceia!
Com a ideia de movimento ou progresso, todos esses
sistemas, fundados sobre as categorias de substância,
causalidade, sujeito, objeto, espírito, matéria, etc., caem
ou, antes, se dispensam em explicações de si mesmos,
para nunca reaparecerem de novo. A noção de ser não
pode mais ser buscada em um algo invisível, seja espírito,
corpo, átomo, mônada ou que seja. Deixa de ser simplista
e se torna sintética: não é mais a concepção, a ficção de
um je ne sais quoi indivisível, imodificável, intransmutável
(etc.): a inteligência, que primeiro postula uma síntese,
antes de atacá-la com uma análise, não admite nada a
priori desse tipo. Ela sabe o que a substância e a força são,
em si mesmas; ela não toma seus elementos como
realidades, uma vez que, pela lei da constituição da mente,
a realidade desaparece enquanto busca resolvê-la em seus
elementos. Tudo que a razão sabe e afirma é que o ser,
assim como a ideia, é um GRUPO.
Assim como, na lógica, a ideia de movimento ou
progresso se traduz naquela outra, a série, assim, na
ontologia, ela tem como sinônimo o grupo. Tudo que existe
está agrupado; tudo que forma um grupo é um.
Consequentemente, é perceptível e, consequentemente, é.
Quanto mais numerosos e variados os elementos e
relações que se combinam na formação do grupo, tanto
mais poder centralizador se encontrará ali e tanto mais
realidade o ser obterá. À parte do grupo, há apenas
abstrações e fantasmas. O homem vivo é um grupo, como
a planta ou o cristal, mas de um grau maior do que esses
outros; ele é mais vivo, tem mais sentimento e mais
pensamento, na medida em que seus órgãos, grupos
secundários, estão em um acordo mais perfeito uns com os
outros e formam uma combinação mais extensa. Eu não
mais considero que o eu, que eu chamo de minha alma6,
como mônada, governando, da sublimidade de sua
chamada natureza espiritual, as outras mônadas,
injuriosamente consideradas materiais: estas distinções
escolares me parecem sem sentido. Eu não me ocupo com
esse caput mortuum dos seres, sólidos, líquidos, gasosos
ou fluidos, que os doutores pomposamente chamam de
SUBSTÂNCIA; eu sequer sei, por mais inclinado que esteja a
supor, se há algo que responde à palavra substância. A
substância pura, reduzida à sua expressão mais simples,
absolutamente amorfa e que se poderia bem felizmente
chamar de pantógeno, uma vez que todas as coisas vêm
dela, se eu não posso exatamente dizer que não é nada,
parece à minha razão como se não fosse; é igual a NADA. É
o ponto matemático, que não tem comprimento, nem
tamanho, nem profundidade e que, ainda assim, dá luz a
todas as figuras geométricas. Eu considero em cada ser
apenas sua composição, sua unidade, suas propriedades,
suas faculdades, de modo que restauro tudo a uma única
razão—variável, suscetível a elevação infinita—o grupo.7
V
É seguindo essa concepção de ser em geral e, em
particular, do eu humano, que eu acredito ser possível
provar a realidade positiva e, até um certo ponto,
demonstrar as ideias (as leis) do eu social ou grupo
humanitário e afirmar e mostrar, acima e além de nossa
existência individual, a existência de uma individualidade
superior do homem coletivo, uma existência de que a
filosofia não poderia nem mesmo suspeitar antes, porque,
seguindo seus conceitos ontológicos, ela era
absolutamente incapaz de concebê-la.
De acordo com alguns, a sociedade é a justaposição de
indivíduos similares, cada um sacrificando uma parte de
sua liberdade, de modo a serem capazes, sem causar dano
uns aos outros, de se manterem justapostos e viverem lado
a lado em paz. Tal é a teoria de Rousseau: é o sistema de
arbitrariedade governamental, não, é verdade, como se
essa arbitrariedade fosse o feito de um príncipe ou tirano,
mas, o que é muito mais sério, em que ela é o feito da
multidão, o produto do sufrágio universal. A depender de
se convém à multidão ou àqueles que a incitam estreitar
mais ou menos os laços sociais, dar mais ou menos
desenvolvimento às liberdades locais e individuais, o dito
Contrato Social pode ir desde o governo direto e
fragmentado do povo até o cesarismo, de relações de
simples proximidade à comunidade de bens e ganhos,
mulheres e filhos. Tudo que a história e a imaginação
podem sugerir de extrema licença e extrema servidão é
deduzido com igual facilidade e rigor lógico da teoria social
de Rousseau.
De acordo com outros, e estes, apesar de sua aparência
científica, me parecem pouco mais avançados, a
sociedade, a pessoa moral, ser raciocinante, pura ficção, é
apenas o desenvolvimento, entre as massas, do fenômeno
da organização individual, de modo que o conhecimento
sobre o indivíduo fornece imediatamente o conhecimento
sobre a sociedade, e a política se resolve em fisiologia e
higiene. Mas o que é a higiene social? Aparentemente, ela
é, para cada membro da sociedade, uma educação liberal,
uma instrução variada, uma função lucrativa, um trabalho
moderado, um regime confortável: ora, a questão é
precisamente como obtermos tudo isso!
Para mim, seguindo as noções de movimento, progresso,
série e grupo, as quais a ontologia está compelida, de
agora em diante, a leva em conta, e as várias descobertas
que a economia e a história fornecem sobre a questão, eu
considero a sociedade, o grupo humano, como sendo sui
generis, constituído pelas relações fluídas e pela
solidariedade econômica de todos os indivíduos, da nação,
da localidade ou corporação, ou de toda a espécie;
indivíduos os quais circulam livremente uns entre os
outros, se aproximam uns dos outros, se juntam,
dispensando-se, por sua vez, em todas as direções;—um
ser que tem suas próprias funções, alheias à nossa
individualidade, suas próprias ideias, que nos comunica,
seus julgamentos, que de forma alguma lembram os
nossos, sua vontade em oposição diametral aos nossos
instintos, sua vida, que não é aquela do animal ou da
planta, embora encontre analogias ali;—um ser,
finalmente, que, partindo da natureza, parece o Deus da
natureza, os poderes e as leis da qual ele expressa em um
grau superior (sobrenatural).8
Doutrinas similares, eu sei, quando não alegam uma
revelação superior, podem se estabelecer apenas pelos
fatos. É, também, com a ajuda dos fatos, nada além dos
fatos, não argumentos, que eu creio que posso demonstrar
essa existência superior, verdadeira encarnação da alma
universal... Mas, enquanto aguardamos que os fatos sejam
apresentados, pode ser útil relembrar certas
consequências que já haviam sido apresentadas, em
relação a questões, insolúveis no estado anterior da
filosofia, que agitam, neste momento, a consciência dos
povos.
Falemos, então, da religião, dessa respeitável fé, à qual o
descrente ainda sabe apenas como expressar desprezo, o
crente como formar apenas desejos, e, a fim de resumir em
uma palavra tudo que importa, abordar o problema da
Divindade. Aqui, novamente, encontro-me colocado em
novo terreno, onde a ideia de Progresso vem para reformar
todo que foi escrito e ensinado pelos eruditos, em nome do
Absoluto.
VI
Eu observo, primeiro, algo que todo mundo sabe hoje em
dia, que é que com a questão teológica assim como é com
a questão da política; que ela é essencialmente móvel e
oscilante por natureza, às vezes maior, às vezes menor em
suas variações, sem, em qualquer de suas posições, jamais
ser capaz de se estabelecer ou satisfazer a mente. O
filósofo lançado em busca do ser divino é continuamente
levado de uma hipótese a outra, do fetichismo ao
politeísmo, desse ao monoteísmo, do monoteísmo ao
deísmo, então ao panteísmo, depois ao idealismo, ao
niilismo, a fim de começar novamente com materialismo,
fetichismo, etc. É assim que, para o homem que busca
ordem social por meio da autoridade, a razão é
invencivelmente extraída da monarquia absoluta para a
monarquia constitucional, desta para uma república
oligárquica ou qualificada, da oligarquia à democracia, da
democracia à anarquia, da anarquia à ditadura, para
começar novamente com a monarquia absoluta e assim
sucessivamente, perpetuamente. Essa necessidade de
transições sem fim, que havia sido tão claramente
percebida, em relação à questão política, por Aristóteles e
que foi estabelecida em nossa própria época, em relação à
questão religiosa, pela filosofia alemã é talvez a única
conquista positiva da filosofia, forçada a reconhecer,
através do testemunho de seus maiores escritores, que
mesmo no círculo de suas categorias absolutistas, a mente
está sempre em movimento.
Esse curso circular da mente sobre as duas questões que
interessam à sociedade no mais alto grau, religião e
governo, estabelecida para além da dúvida, pergunto-me
eu se isso não vem de alguma ilusão metafísica e, nesse
caso, que correção é necessária fazer?
Ora, olhando mais de perto, eu descubro que tudo que
foi escrito sobre o Ser Supremo, de Orfeu até o Dr. Clarke,
é apenas um trabalho da imaginação sobre as categorias,
ou seja, sobre as concepções analíticas (simplistas e
negativas), que o entendimento tem a capacidade de
extrair da ideia primordial (sintética e positiva) do
movimento; uma obra que consiste, como observei mais
cedo, em dar uma realidade a signos algébricos, em
afirmar enquanto ser vivo,— ativo, inteligente e livre—
aquilo que, não obstante, não é nem homem, nem animal,
nem planta, nem estrela, nem qualquer coisa conhecida ou
sensível, definida ou definível, quanto mais qualquer coisa
agrupada ou seriada. Este ser seria pura substância, pura
causa, pura vontade, pura mente, a pura essência, em
suma, de toda a série de abstrações que são deduzidas da
face A da ideia de movimento, através da exclusão da face
B. E tudo isso, de acordo com os eruditos, se tornaria o ser
concebido em um grau superior, uma potência infinita,
uma duração eterna, no absoluto dos absolutos.
Eu rejeito essa linha de dedução, primeiro como marcada
por ignorância, uma vez que Deus, o ser dos seres, ens
realissimum, de acordo com a ideia que temos feito dele,
deve abranger todos os atributos, todas as condições de
existência e uma vez que ele carece aqui do elemento
mais essencial da definição, o Progresso. E, então, eu nego
essa mesma dedução como destrutiva do ser que seu
objetivo é provar e, consequentemente, como
contraditória, precisamente porque ela repousa sobre uma
série de análises que, prolongada tanto quanto se queira,
só pode levar a uma cisão, a uma negação desse ser. E eu
concluo, por minha vez, tomando a afirmativa, assumens
parabolam, como disse Jó, de que se a ideia de movimento
e de progresso, por tanto tempo mantida nas sombras
pelos metafísicos, for reintegrada em seu direito, o Deus
que buscamos não pode mais ser tal como a antiga
teologia ensinou; ele deve ser inteiramente diferente do
que os teólogos o fizeram. Na verdade, se aplicarmos ao
Ser Supremo a condição do movimento, de progressão, e
não podemos deixar de aplicá-las a ele, uma vez que sem
elas ele não seria supremo, acontecerá que esse ser não
mais será, como antes, simples, absoluto, imutável, eterno,
infinito, em todo sentido e toda faculdade, mas organizado,
progressivo, evolutivo, consequentemente aperfeiçoável,
suscetível ao aprendizado na ciência, na virtude, etc., ao
infinito. O infinito ou absoluto desse ser não está mais no
atual, ele está no potencial... O deus de Kant, de
Aristóteles, de Moisés e de Jesus, assim, não é verdadeiro,
pelo menos de acordo com os documentos apresentados,
uma vez que ele exclui a condição mais essencial da
existência na natureza e na humanidade, e essa exclusão
implica em uma contradição com a vida que, não obstante,
se concede a ele. Eu juro pelo Deus vivo, diz a Igreja em
seus exorcismos. Deus, em uma palavra, não é e não pode
ser, no sentido que os metafísicos dão a essa palavra, uma
vez que a privação de toda condicionalidade, ou
simplicidade, longe de indicar a potência mais elevada do
ser, marca, pelo contrário, o grau mais baixo; Deus pode
apenas se tornar, e é sob esta condição apenas que ele é.9
E se agora, depois de ter dissipado as sábias quimeras
da teologia, eu consultasse os testemunhos espontâneos
das raças humanas sobre a essência e a função do ser
divino? Eu descubro primeiro que a ideia de Progresso,
inadvertidamente deixada de fora da lista das categorias
da escola, não foi esquecida pelas massas; que, por virtude
dessa ideia, as pessoas, raciocinando na liberdade de seus
instintos, falando em seu próprio nome, sem o meio da
Academia, do Pórtico, tampouco da Igreja, constantemente
tomaram Deus por um ser que é ativo, móvel, progressivo
e, finalmente, sensível; que apenas, na medida em que sua
inteligência se desenvolveu, elas enobreceram seu ídolo e
que a mais alta perfeição que elas pensaram em lhe dar foi
torná-lo um homem. Eu vejo que, em todos os momentos,
a Humanidade tendeu, através de suas evoluções
religiosas, a antropomorfizar ou, antes, socializar o ser
inefável; que em todo lugar e sempre, na consciência
popular, o problema das religiões foi, ele mesmo, resolvido
na identidade da natureza social e da natureza divina; que
se, de um lado, as pessoas emprestaram a Deus as
faculdades, paixões, virtudes e misérias da humanidade, —
uma vez que é necessário que ele nasça, fale, aja, sofra e
morra como um homem — do outro, ela lhe conferiu
atributos de sociedade, governo, legislação e justiça;
proclamou-lhe sagrado como a sociedade e livre da morte
como a sociedade, que é imortal.
Assim, o que afirmamos, buscamos e louvamos como
Deus não é nada além da pura essência pura da
Humanidade, natureza social e natureza individual
indivisivelmente unida, mas distinta, como as duas
naturezas em Jesus Cristo. É isto que é atestado pela
consciência popular e pela série das religiões, de acordo
com uma metafísica retificada e completa.
Isso não é tudo: enquanto o movimento de humanização
do ser divino era perseguido nas massas, um outro
operava, sempre sem o conhecimento dos teólogos e dos
filósofos, na disciplina intelectual: era a renúncia
progressista dos misticismos ontológicos, o abandono das
categorias, reconhecidas como tão inúteis para a
explicação da natureza e da sociedade quanto revelações e
milagres. Em um sentido, a raça humana, por suas
tendências antropomórficas, entrou em contato e
identificou a si mesma com a Divindade; no outro sentido,
por seu crescente positivismo, ela se moveu para longe de
Deus e, por assim dizer, o fez recuar. É assim que, onde
Newton, impedido por uma dificuldade que lhe parecia
insolúvel, fez a Divindade intervir em favor do equilíbrio do
mundo, Laplace, com uma ciência superior, tornou essa
intervenção inútil e dispensou o deus e sua máquina para o
sótão.
Resumindo todos esses fatos e todos esses conceitos,
resta a mim a questão religiosa: o que a Humanidade
busca na religião, sob o nome de Deus, é sua própria
constituição, ela própria; não obstante, Deus sendo, de
acordo com o dogma teológico, infinito em seus atributos,
perfeito, imutável e absoluto, e a Humanidade, pelo
contrário, sendo aperfeiçoável, progressiva, móvel e
mutável, o segundo termo nunca seria entendido como
adequado ao primeiro; resta então uma antítese, um termo
sendo sempre a expressão reversa do outro, e a
consequência dessa antítese ou antiteísmo, como eu o
tenho chamado, é abolir toda a religião ou adoração,
idolatria, pneumolatria, cristolatria ou antropolatria, uma
vez que, por um lado, a ideia de Deus, oposta àquela de
movimento, grupo, série ou progresso, não representa
qualquer realidade possível, e, por outro, a Humanidade,
essencialmente aperfeiçoável, mas nunca perfeita,
permanece constantemente abaixo de sua própria ideia
apropriada e, consequentemente, sempre aquém do
louvor. Isto eu resumo em uma fórmula de uma só vez
positiva e negativa e perfeitamente clara em nossa língua:
Substituição do culto do suposto Ser Supremo pela cultura
da Humanidade10.
VII
Vale a pena agora, senhor, eu relembrar aquelas de
minhas proposições que, em política, economia política,
moral, etc., fizeram mais ruído e causaram mais
escândalo? Devo mostrar como todas elas resultaram da
noção de Progresso, que é idêntica, em minha mente,
àquela de ordem?
Eu escrevi em 1840 aquela profissão de fé política, tão
notável por brevidade quanto por energia: Eu sou um
anarquista. Eu postulei com essa palavra a negação ou,
antes, a insuficiência do princípio da autoridade.... Isso era
para dizer, como mais tarde mostrei, que a noção de
autoridade é apenas, assim como a noção de um ser
absoluto, uma ideia analítica, incapaz, a partir de qualquer
direção que se pudesse chegar à autoridade e de qualquer
maneira que ela fosse exercida, de oferecer uma
constituição social. A autoridade, a política, eu então
substituí pela ECONOMIA, uma ideia sintética e positiva,
única capaz, em minha opinião, de levar a uma concepção
racional e prática da ordem social. Contudo, eu nada fiz
nisso além de repetir a tese de Saint-Simon, tão
estranhamente desfigurada por seus discípulos e
combatida hoje, por razões táticas que eu não consigo
entender, pelo M. Enfantin. Ela consiste em dizer, baseado
na história e na incompatibilidade das ideias de autoridade
e progresso, que a sociedade está a caminho de realizar,
pela última vez, o ciclo governamental; que a razão pública
obteve certeza da impotência da política, em relação à
melhoria da condição das massas; que a predominância
das ideias de poder e de autoridade começou a ser
sucedida, na opinião assim como na história, pela
predominância das ideias de trabalho e troca; que a
consequência dessa substituição é trocar o mecanismo dos
poderes políticos pela organização das forças econômicas,
etc., etc.
Eu confio em você, senhor, para me dizer se tenho sido
lógico em minhas deduções, se verdadeiramente, como
penso, a ideia de progresso, o sinônimo da qual é
liberdade, leva ali.
É nas questões econômicas que eu levei o
desenvolvimento e a aplicação do meu princípio mais
longe. Eu demonstrei, e com algum sucesso, me parece,
que a maior parte das noções sobre as quais a prática
industrial repousa neste momento e, assim, todas as
economias das sociedades modernas ainda são, como as
noções de poder, autoridade, Deus, demônio, etc.,
concepções analíticas—partes mutualmente deduzidas das
outras por meio de oposição—do grupo societário, de sua
ideia, de sua lei, e cada uma desenvolvida separadamente,
sem restrição e sem limites. Como resultado, a sociedade,
em vez de repousar sobre a harmonia, está sentada em um
trono de contradições e em vez de progredir em direção à
riqueza e à virtude, como é seu destino, apresenta um
desenvolvimento paralelo e sistemático na miséria e no
crime.
Assim eu mostrei, ou creio eu ter mostrado, que a teoria
malthusiana da produtividade do capital, justificável
enquanto meio de ordem mercantil e, até um certo ponto,
favorável ao movimento econômico, se torna, se ela é
aplicada em uma grande escala, quando se alega
generalizá-la e fazer dela uma lei da sociedade,
incompatível com a troca, com a circulação e,
consequentemente, com a própria vida social; que, a fim
de acabar com essa incompatibilidade, é necessário
reconstruir a ideia integral, fazê-la de tal forma que cada
mutuário seja um credor, cada credor um mutuário e de
modo que todas as contas, ao débito e ao crédito, se
equilibrem; que, se a circulação não é hoje regular, se o
retorno dos valores pela venda não é realizado por cada
produtor com a mesma facilidade que seu fluxo de saúde
pela compra; se as estagnações, crises e desempregos,
são para o falido um meio permanente de equilíbrio, é,
primeiro, porque a valorização dos produtos cessa com o
ouro e a prata, porque todas as mercadorias não são, como
o ouro ou a prata, tomadas como moeda, o que constitui,
dentro da riqueza geral, uma desigualdade destrutiva;—em
segundo lugar, porque a prelibação11 capitalista, uma
consequência das prerrogativas do dinheiro; — em terceiro
lugar, por causa da renda da terra, que é a pedra angular,
sanção e glorificação de todo o sistema.
Eu tenho dito que o direito do capitalista, proprietário ou
mestre, — que detém o movimento econômico e dificulta a
circulação dos produtos, que faz uma guerra civil da
concorrência; da máquina um, instrumento de morte; da
divisão do trabalho, um sistema de exaustão para o
trabalhador; da tributação, um meio de extenuação
popular; e da posse do solo, um domínio feroz e insociável
—não era nada além do direito da força, direito real ou
divino, tal como os bárbaros concebiam e como resulta das
definições de política e dos casuístas, a mais alta
expressão do absoluto, a mais completa negação das
ideias de igualdade, ordem e progresso.
Se algo me surpreendeu, no curso desta polêmica
socialista, é muito menos a irritação produzida pelas
minhas ideias do que as contradições que foram
levantadas contra elas. Eu poderia entender o egoísmo; eu
não entendo o argumento na presença da verdade e dos
fatos. A fim de tirar a sociedade do círculo vicioso em que
ela sofreu morte e paixão por tantos séculos, é necessário,
eu insisto, entrar resolutamente no caminho da progressão
e da associação; perseguir a redução da renda e do juros a
zero; reformar o crédito, elevando-o da noção inteiramente
individualista de empréstimo à totalmente social de
reciprocidade ou troca; liquidar, de acordo com esse
princípio, todas dívidas públicas e privadas; expurgar todas
as hipotecas, unificar a tributação, abolir os octrois e taxas,
criar o patrimônio do povo, assegurar produtos e aluguéis
baratos, determinar os direitos do trabalhador, refazer a
administração corporativa e comunal, reduzir e simplificar
as alocações do Estado. Aí, os fenômenos econômicos
ocorreriam de um modo oposto; ao passo em que hoje o
mercado carece de produção, será a produção que
carecerá de um mercado; ao passo que a riqueza cresce de
maneira aritmética e a população geometricamente,
veremos essa relação invertida, e a produção se tornará
mais rápida do que a população, porque é uma lei de nosso
ânimo natural moral e estético que quanto mais
intensidade adquirida pelo trabalho e quanto mais
perfeição por parte do homem, menos fecundidade é
possuída pela faculdade genética, etc.
Eu tenho observado, desde a primeira vez que abordei
essas questões, que a sociedade já está engajada, em
todos os pontos, com o conceito de progresso industrial;
que, assim, a definição de propriedade, seguindo a
constituição de 1848, está em completa contradição com o
Código e, na base, justifica a minha própria definição; que,
sob a influência das mesmas causas, toda a jurisprudência
tende a se aproximar cada vez mais da ideia de justiça
comutativa e a desertar o tribunal civil pelo tribunal do
comércio, etc., etc.
Não há uma crítica de minha parte, nem uma afirmação
ou uma negação que, nessa ordem de ideias, assim como
em todas as outras, não seja explicada, justificada ou
desculpada, como quer que você queira colocar, pela
mesma lei. Tudo que eu tenho dito sobre centralização,
sobre a polícia, sobre justiça, sobre associação, sobre culto,
etc., se segue disso.
Eu tenho feito mais: depois de afastar qualquer pretexto
de irritação e ódio, eu tomei o cuidado de distinguir, no
Progresso, aceleração de movimento. Eu repeti ad
neuseam que a questão da velocidade poderia ser deixada
para a estima das maiorias e que eu não considerava como
adversário ou como inimigos do Progresso aqueles que,
aceitando comigo a ideia de movimento e o sentido de sua
direção geral, diferissem talvez sobre os detalhes e sobre o
tempo envolvido. Devemos correr ou rastejar? Este é um
assunto prático, não é para a consideração do filósofo, mas
do estadista. O que eu mantenho é que não podemos
preservar o status quo.
Muitas vezes me foi dito: Diga-nos como é. Você é um
homem da ordem: você quer o governo, ou não? Você
busca justiça e liberdade e você rejeita as teorias
comunitárias: você é a favor ou contra a propriedade? Você
defendeu, em toda circunstância, a moral e a família: você
não tem religião?
Bem, eu mantenho de maneira completa todas as
minhas negações da religião, do governo e da propriedade;
eu digo que não apenas essas negações são, em si
mesmas, irrefutáveis, mas que já os fatos as justificam; o
que temos visto brotar e se desenvolver, por diversos anos,
sob o antigo nome de religião não é mais a mesma coisa
que estávamos acostumados a entender sob esse nome;
aquilo que se agita na forma de império ou cesarismo,
mais cedo ou mais tarde, não será mais império, nem
cesarismo, nem governo; e, finalmente, aquilo que
modifica e se reorganiza sob a rubrica da propriedade é o
oposto da propriedade.
Eu adiciono, não obstante, que eu manterei, junto ao
povo comum, essas três palavras: religião, governo,
propriedade, por razões das quais eu não sou o mestre,
que participam da teoria geral do Progresso e, por essa
razão, me parecem decisivas: primeiro, não é minha
função criar novas palavras para novas coisas, e sou
forçado a falar a língua comum; segundo, não existe
nenhum progresso sem tradição, e a nova ordem tendo
como seus antecedentes imediatos a religião, o governo e
a propriedade, é conveniente, para a própria garantia
dessa evolução, preservar para as novas instituições seus
nomes patronímicos, nas fases da civilização, porque
nunca existem linhas bem definidas, e tentar realizar a
revolução em um salto estaria para além de nossos meios.
Creio que é inútil, com um juiz tão bem informado quanto
você, senhor, prolongar esta exposição. Eu afirmo o
Progresso e, enquanto encarnação do Progresso, a
realidade do Homem Coletivo e, finalmente, como
consequência dessa realidade, uma ciência econômica:
este é o meu socialismo. Nada mais, e nada menos.
VIII
Permita-me, senhor, antes de passar adiante, resumir os
diferentes significados desse termo genérico, o Progresso.
Na lógica, ele é traduzido pela série, a forma geral do
raciocínio, que não é nada além, me parece, do que a arte
de classificar ideias e seres. — Se a série for reduzida a
dois termos em oposição essencial, em contradição
necessária e recíproca, como ocorre, por exemplo, na
formação dos conceitos, ela indica uma análise e toma o
nome de antinomia. O dualismo antinômico, reduzido pela
equação ou fusão de dois termos em um, produz a ideia
sintética e verdadeira, a síntese, celebrada entre os
místicos sob o nome de trindade ou tríade.
Na ontologia, o Progresso é o grupo, isto é, o ser, em
oposição a todas as quimeras, sejam elas substanciais,
causativas, animistas, atomísticas, etc.
Da ideia do ser, concebido enquanto grupo, eu deduzo,
através de um único e singular argumento, esta proposição
dupla: que o deus simplista, imutável, infinito, eterno e
absoluto dos metafísicos, não devindo, não é e não pode
ser; ao passo em que o ser social, que é agrupado,
organizado, aperfeiçoável, progressivo e que, por sua
essência, sempre devém, é. Comparando, então, os fatos
da consciência religiosa com aqueles da metafísica e da
economia, eu chego a esta conclusão decisiva, de que a
ideia de Deus, com relação ao seu conteúdo, é idêntica e
adequada àquela de Humanidade, ao passo em que, com
relação à sua forma, ela é antagonista.
Na ordem política, o sinônimo de Progresso é liberdade,
isto é, espontaneidade coletiva e individual que evolui sem
obstáculos, através da gradual participação dos cidadãos
na soberania e no governo. Mas essa participação
permanece sempre ilusória, e o movimento político se
realizaria em um ciclo invariável de revoluções sem fim e
de tiranias uniformes, se a razão política, finalmente
reconhecendo que o verdadeiro objeto do governo é
garantir a liberdade do produtor e do comerciante, ao
assegurar a justa distribuição da riqueza, não acabasse,
depois de ter separado os conteúdos da ideia política, por
mudar sua organização. A autoridade, então, tem, como
sua fórmula orgânica, a ECONOMIA, e o correlativo da
liberdade é a igualdade, não uma igualdade real e
imediata, como o comunismo pretende, nem uma
igualdade pessoal, como a teoria de Rousseau supõe, mas
uma igualdade comutativa e progressiva, que dá uma
direção completamente diferente à Justiça.
Admitamos, de fato, por um momento, o princípio da
igualdade a priori de bens e de pessoas. Que coisa
singular! A consequência desta alegada igualdade seria
uma estase, o absoluto, consequentemente, a miséria. A
sociedade, sem dúvida, continuaria a estagnar ou se
agitar; não mais progrediria. A espécie humana, constituída
sobre uma antecipação, tomando seu fim por seus meios,
em vez de ser em si, não mais seria qualquer coisa além
de um análogo de certos animais, tais como formigas,
castores, etc., sociedades dos quais existiram desde a
criação, mas que não avançam de forma alguma. Para uma
sociedade assim constituída, o princípio da ordem, ou para
colocar melhor, da posição, se descobriria, como em todas
as sociedades fundadas sobre a desigualdade ou sobre a
casta, um poder imperativo, dominando todas as vontades,
subordinando todas as energias, absorvendo em sua
virtualidade coletiva todas as individualidades
espontâneas. É de acordo com este sistema de
absolutismo que os primeiros Estados eram organizados; é
desta forma que, ao ceder sempre um pouco sob a pressão
invisível da liberdade, através de mil contradições e de mil
inconsequências, eles se mantiveram no antigo espírito de
sua instituição.
Mas deixe que uma revolução, como aquela de 89,
proclame de uma só vez a liberdade industrial e, através
dessa única palavra, a noção de igualdade muda: aí a
civilização não pode mais encontrar obstáculos em seu
avanço, no mesmo golpe, a antiga forma política se torna
inaplicável. Com o princípio da liberdade no trabalho e da
igualdade na troca, o que implica a aceitação da tributação
e do monitoramento, o equilíbrio da sociedade não pode
mais depender, em princípio, do comando soberano, do rei
ou do povo; ele resulta virtualmente da determinação
sinalagmática e cotidiana dos direitos e dos haveres dos
membros. A centralização governamental é, assim,
sucedida pela solidariedade contratual; a constituição dos
poderes políticos é substituída pela organização das forças
econômicas. É por causa disso que o socialismo estava
certo em dizer, em 1848, que todas as declarações de
direitos e deveres, todas as cartas régias e todos os
códigos promulgados anteriormente ou a serem
promulgados no futuro se reduzem a dois artigos, o direito
de trabalhar e o direito de trocar: trabalho e troca são o
alfa e o ômega da revolução.
Assim, de um lado, a supressão das formas políticas não
é nada além da supressão dos obstáculos impostos ao
Progresso pela tirania política; de outro, é a emancipação
do trabalhador, ou a exata compensação dos produtos, que
é o ato decisivo e solene pelo qual a Humanidade,
quebrando a cadeia do privilégio, entre na infinita carreira
da Justiça.
Faça aos outros como gostaria que fizessem a você, disse
o autor do Evangelho, Jesus Cristo, seguindo todos os
antigos sábios. Uma boa máxima, mas vaga, e seu ardor
incerto não impediu, por trinta séculos, a servidão da raça
humana. Pois o que é que eu deveria querer que os outros
façam a mim? .... Enquanto uma resposta precisa não for
criada para essa questão, a justiça colapsa. A ciência
econômica coloca um fim a essa indecisão ao declarar que
para cada cidadão capaz, a receita deve ser igual ao
produto. A fórmula, desta vez, é categórica e concreta; ela
não visa nem o sublime, nem o sentimental; ela não tem
mais pretensão de surpreender o erudito do que de fazer
as frívolas caillettes desfalecerem. Mas encontre-me uma
fórmula que é mais esmagadora do orgulho, mais
desesperadora para a má fé, que melhor remove a
desculpa para a covardia e inveja, que assegura, além
disso, o direito de todos ao deixar mais liberdade para cada
um?
IX
Dessa maneira, senhor, uma única noção, a noção de
Progresso, restaurada à sua posição na clave intelectual, é
suficiente para que eu demonstre a razão de minhas
doutrinas e reforme de cima a baixo tudo que nossa
educação clássica, doméstica e religiosa nos faz considerar
com indubitável, definitivo e sagrado. De tudo que
aprendemos, você e eu, no Colégio, na Igreja, na
Academia, no Palácio, na Bolsa e na Assembleia Nacional,
nada persiste, tão logo o examinemos à luz dessa noção
inevitável, anterior a qualquer outra e, por essa razão,
menos sentida e menos percebida, o movimento ou
Progresso.
E se agora, depois de ter, com a ajuda dessa noção de
Progresso, purificado meu cérebro, refeito meu julgamento
e renovado minha alma, olhando ao meu redor e
considerando as figuras que me cercam, eu não mais
encontrar nos outros homens, ontem minhas contrapartes,
nada além de contraditores, (eu quase diria inimigos)?
Aqui, senhor, você tem que tomar nota desse estilo
belicoso e agressivo, pelo qual muitos me repreenderam,
mas do qual eu não tive sempre consciência e sobre o qual
eu insisto apenas que meus adversários e eu mesmo,
penetrados como estivemos por diferentes ideias, não
fomos capazes de nos entender. Alguém disse há muito
tempo que eu tenho escrito apenas uma linha: Há na
sociedade apenas dois partidos, o partido do movimento e
o partido da resistência, os progressistas e os absolutistas.
E, ainda assim, quão poucos dos primeiros você conhece!
Quantos, pelo contrário, você não conhece dos segundos!
Absolutistas do primeiro escalão, os falsos céticos que,
compreendendo mal a lei do movimento intelectual e a
natureza essencialmente histórica da verdade, conseguem
ver nas opiniões humanas apenas uma montanha de
incertezas, que cada vez mais acusam a filosofia de
contradição e a sociedade de inconsequência e que, a
partir da alegada impossibilidade de se descobrir a
verdade e de fazer os homens aceitarem-na, concluem
indiferentemente, alguns a favor do laissez-faire e outros
pelo capricho, reconhecendo como sedicioso e culpável
apenas a discussão e a liberdade! Como se a verdade na
filosofia e na política pudesse ser qualquer outra coisa
além da cadeia de vislumbres da razão, e como se essa
cadeia, mesmo se conseguirmos abarcá-la com a mente,
pudesse se realizar de qualquer maneira além de no tempo
e na série das instituições! Como se o trabalho do filósofo e
do reformador, depois de ter reconhecido a progressão de
ideias, não consistisse unicamente em indicar, por turnos,
os vários momentos da lei, postulando a cada dia um novo
marco na grande estrada da Humanidade! ... Pascal, que
ficava tão escandalizado se a fórmula do direito variasse
sequer um grau do meridiano e que queria tornar a razão
jurídica uniforme nos dois lados do Pirineus, — Pascal,
muito mais do que Pyrrho, que é tão caluniado, — era o
tipo desses absolutistas.
Até mais absolutistas são aqueles que, impacientes com
essa mobilidade perpétua, querem resolver a civilização
em um sistema, a lógica em uma fórmula e o direito em
um plebiscito; que, tomando concepções por princípios,
alegam ligar toda a atividade humana exclusivamente a
estes princípios e, fora de suas fantasias passionais,
hierárquicas, dualistas, trinitárias e comunitárias, não mais
percebem a sociedade, ou a moral, ou o bom senso de
forma alguma. Como se cada afirmação do filósofo não
levantasse uma negação equivalente; como se cada
decreto do soberano, revogando o decreto anterior, não
postulasse antecipadamente o decreto que o revogaria!
Absolutistas, aqueles pretensos políticos que impõem à
sociedade, como um jugo, seus axiomas inflexíveis e a
ordenam a obedecer, qualquer que seja o custo, sem se
dar nenhuma conta do avanço das ideias, nem do atraso
das populações. Nada é mais ordinário, de fato, do que
uma sociedade que, no próprio momento em que busca
certas reformas, deixam para trás as instituições em que é
uma questão de abolir. É assim que os rigoristas se tornam
tão terríveis a ela quanto os retrógrados.
A unidade e perpetuidade do poder, diz um, é a primeira
das leis sociais. Não há salvação fora de uma monarquia
legítima!
Os reis são feitos para o povo, responde um outro, não o
povo para os reis. Não há salvação fora de uma monarquia
constitucional!
Todos raciocinam da mesma maneira: Não há salvação
afora a prorrogação do presidente, adiciona este. Não há
salvação afora a constituição, adiciona aquele. Mas se um
acento foi removido ou adicionado, tudo está perdido!
Outros, cheios de suas teorias sobre soberania,
exclamam: Apenas os interesses reinam e governam. Não
há salvação afora a lei de 31 de maio! Se há mais do que
sete milhões de eleitores, se eles votassem pela servidão e
pelo direito de nascimento, tudo está perdido! — Ao que a
resposta não demora a vir: O direito ao sufrágio é um
direito natural e inalienável. Não há salvação afora a lei de
março de 1849! Se há menos do que dez milhões de
eleitores registrados, se eles votassem por uma
comunidade ou um império, tudo está perdido!
Essas são as contradições do absolutismo! Esses são os
debates com os quais setecentos e cinquenta
representantes ocupam seus dias, aqueles que o povo
escolheu para supervisionar a manutenção da paz, para
governar e para fazer compromissos amigavelmente pela
satisfação da maioria, se não todos, dos interesses gerais,
para organizar um sistema de concessões e reformas, a
prática da liberdade! As pessoas ignorantes são levadas à
guerra civil por seus próprios representantes! Ai de nós se
eles forem salvos por alguém! Ai se eles vierem a se salvar.
Absolutistas, finalmente, aqueles que, enquanto
proclamam uma lei geral do progresso e a necessidade de
transições, foram inteiramente incapazes de discernir sua
direção, abusando de palavras e ideias a fim de mudar
mentes e, de maneira alternativa, colocando a opinião
pública para dormir com seus compromissos
autointeressados ou agitando o ardor popular, às vezes
reclamando que o século estava abaixo de seu gênio, às
vezes o empurrando de acordo com sua impaciência e, por
sua incapacidade de liderá-lo, lançando-o de precipícios.
Assim, a literatura romântica, revolucionária em forma,
resultou, em última análise, em uma questão retrógrada.
Poderia ser útil resgatar do esquecimento a poesia da
Idade Média, prestar alguma medida de estima à
arquitetura das masmorras e catedrais, mas ao reviver o
feudalismo enquanto elemento literário, os românticos
anularam, tanto quanto foram capazes, o movimento
filosófico do século XVIII e tornaram o século XIX
ininteligível. Devemos-lhes a maior parte da reação que
saudou a República.
Assim, o ecletismo, com intenções tão honestas, com
uma crítica tão imparcial, mas com visões tão tímidas, tão
atento em sua mediocridade, depois de ter dado um forte
ímpeto ao estudo, acabou em intolerância. Com sua
psicologia emprestadas dos escoceses e seu teísmo sendo
um pouco de Platão renovado, ele havia estabelecido um
cordão sanitário ao redor do status quo. O catolicismo lhe
deve a extensão de seu sopro de vida e paga a dívida o
eliminando: isso não é justiça?
Assim, desde 1830, ao passo em que a publicação das
teorias de Saint-Simon, Fourier, Owen e a ressureição das
ideias de Babœuf colocaram de maneira tão poderosa a
questão social, a real questão do século, fomos distraídos,
desviados, enganados por um liberalismo falso
democrático e doutrinário. Sob o pretexto de lealdade às
tradições de 89 e 93, jogamos tanto descrédito quanto
pudemos sobre as teorias socialistas; em vez de auxiliar a
investigação, a suprimimos. Sem dúvida era necessário
redimir e vingar os homens da grande época; o progresso
de nossa geração se acelerou com toda a Justiça que lhes
foi prestada. Mas era necessário tomar-lhes como modelos,
nos impor suas práticas e preconceitos? Neste momento, é
o socialismo que as chamadas rodas revolucionárias, que
são todas em sua maioria insurrecionárias, culpam todo o
mal desde 1848 na revolução. Se o socialismo, dizem eles,
isto é, se a revolução não tivesse existido, a revolução não
teria provocado a contra-revolução! .... Também, e não se
engane, aquela antiga democracia não aspira apenas
salvar a sociedade do socialismo uma última vez e se
arrepende de não a ter salvado melhor em 1848. Graças a
essa distinção absurda entre o partido socialista e o partido
revolucionário, um punhado de ditadores jurou, como se
diz em seu zelo patriótico, o extermínio do socialismo, a
supressão do Progresso! Você sabe onde a cegueira dos
neo-jacobinos nos empurraria? A uma reação sem limites,
da qual eles não seriam os heróis, mas a vítimas, mas da
qual, também, para coroar sua miséria, eles não teriam o
direito de reclamar, uma vez que também teriam sido seus
cúmplices...12
Progresso é saber, prever. Aqueles que foram acusados
de efetuar o progresso em 1848 eram todos, por várias
razões, homens do passado: é surpreendente que eles não
souberam como fazer o amanhã? Convencidos hoje por
suas próprias confissões de terem visto na revolução
apenas uma mudança de funcionários, eles causaram a si
mesmos um declínio fatal. Qualquer tentativa de retorno,
que não justificaria uma conversão explícita, seria um
crime de sua parte.
Liberdade é riqueza; é nobreza. Jogamos o direito
eleitoral aos meurt-de-faim, como Bridaine disse; eles
responderam como escravos. O que é espantoso? Deixe
que o proletariado vote em 52 como o fizeram em 48, com
um estômago vazio, e logo estaremos todos em servidão, e
a democracia francesa, refutada por seu próprio princípio,
sem bandeira, sem programa, terá deixado, por um
momento, de ser uma realidade.
Forçado, em 1848, a lutar por minha defesa e pela
afirmação revolucionária, eu logo reconheci, pelo
aborrecimento que novas ideias provocaram no partido
democrático, que o momento não havia chegado; e eu fiz
todos os meus esforços para ocultar um antagonismo que,
de agora em diante, não serve a propósito algum e para
trabalhar uma necessária reconciliação entre a classe
trabalhadora e a burguesia. Eu creio, por isso, ter feito um
ato de boa política, sobretudo de progresso. Quando os
partidos se demonstram unanimemente refratários, eles só
podem ser revolucionados por uma média, fusão...
Você tem, senhor, minha profissão de fé. Eu nunca a
escrevi antes; confesso que raramente refleti sobre ela. Fui
carregado pela corrente do meu século. Fui adiante sem
nunca me virar, afirmando o movimento, buscando a
totalidade de minhas ideias, negando as concepções
analíticas, sustentando a identidade entre ontologia e
lógica, mostrando que a liberdade está acima até da
religião13, pleiteando, em nome da justiça, a causa dos
assalariados e dos pobres, defendendo a igualdade ou,
antes, a equação progressiva das funções e dos destinos;
além disso, acreditando pouco no desinteresse, tendo o
martírio em baixa estima apesar de minha prisão,
pensando que a amizade é frágil, a razão vacilante, a
consciência duvidosa e considerando a caridade, a
irmandade, o trabalho atraente, a liberação das mulheres,
o governo legítimo, o direito divino, o amor perfeito e a
felicidade como caricaturas do Absoluto.
Se fui, sem o meu conhecimento, no calor da polemica,
em má fé do espírito partidário ou de qualquer outra
maneira, infiel a essa doutrina, é um lapsus calam de
minha parte, um argumento ad hominem, uma falha da
mente e do coração, que eu repudio e retiro.
Além disso, essa humildade filosófica me custa pouco. A
ideia de progresso é tão universal, tão flexível, tão
fecunda, que aquele que a toma como compasso quase
não precisa mais saber se suas proposições formam um
corpo de doutrina ou não: a concordância entre elas, o
sistema, existe pelo mero fato de que estão em progresso.
Mostre-me uma filosofia em que uma similar segurança
seja encontrada! .... Eu nunca reli minhas obras, e aquelas
que eu escrevi primeiro, eu as esqueci. Do que importa, se
eu me movi durante doze anos e se hoje eu ainda avanço?
O que alguns lapsos, alguns passos em falso poderiam
diminuir da retidão da minha fé, da gentileza de minha
causa? .... Você me agradará, senhor, de aprender por si
qual estrada viajei e quantas vezes eu caí no caminho.
Longe de corar de tantos tombos, eu estaria tentado a me
vangloriar deles e a medir meu valor pelo número de
minhas contusões.
Sou, senhor, etc.
Segunda Carta: Da Certeza e de seu
Critério
Sainte-Pélagie, 1º de dezembro de 1851.

SENHOR,
A questão que você me coloca em sua segunda carta não
poderia ser mais judiciosa e, se eu não a abordei primeiro,
é porque me pareceu pertencer ao círculo de provas e
justificativas que eu teria fornecido mais tarde, não o
esboço geral que eu precisava lhe fazer. Já que pergunta,
não posso mais recusar seu desejo e vou tentar, se
conseguir, explicar-me claramente sobre esta difícil
questão.
O problema da certeza está certamente dentro do
domínio da filosofia: a teoria do Progresso o admite
também e apenas essa teoria, em minha opinião, pode
resolvê-lo de maneira satisfatória. Mas a certeza é uma
coisa; o que os gregos chamavam de χριτηριον, o critério
da certeza, é outra. A certeza é, como disse, racional e
filosófica por direito; o alegado critério é apenas uma
importação da teologia, um preconceito da fé religiosa,
sem sentido dentro dos limites da razão e é mesmo, do
ponto de vista do movimento intelectual que constitui a
razão, uma hipótese contraditória.
Mas, você pergunta, como você concebe a certeza sem
um critério? E se a certeza não pode ser concebida sem um
critério, como, sem esse meio de discernimento e de
garantia, a ciência é possível? Como, em relação à certeza,
a fé pode ser mais favorecida do que a razão? É
precisamente o contrário do que é sempre assumido; é em
virtude dessa suposição mesma que a filosofia existe e se
opõe à fé. A negação do critério, na filosofia, é a coisa mais
estranha imaginável...
Espero, senhor, que essa negação logo lhe pareça a mais
natural e que você veja nela, comigo, não mais a
condenação, mas a glória da ciência.
I
São Paulo disse: A fé é o argumento para as coisas não
vistas, isto é, coisas que carecem de evidência ou certeza
intuitiva, argumentum non apparentium. Ora, coisas não
vistas formam a maioria dos objetos que ocupam a mente
e consciência dos homens. Isto significa, de acordo com o
Apóstolo, que não sabemos nada, ou quase nada, sobre as
coisas do universo e da humanidade, exceto através da fé.
É assim que a fé se tornou um critério para a mente
humana.
Todas as sociedades começam daqui e, talvez
surpreendentemente em nossa época de discussão e
dúvida, a massa, na qual eu incluo a Universidade e o
Estado, não tem outra fé. Em questões duvidosas, e todas
as questões práticas são desse tipo, a maioria dos homens
conhece apenas a fé. Se seguem a razão, é sem sabê-lo;
pois, repito, eles não concebem a razão sem um decreto,
ou a filosofia sem um critério.
Vamos explicar isso.
O cristão acredita que Jesus Cristo é o Filho de Deus,
enviado à terra e nascido de uma virgem para ensinar aos
homens as verdades necessárias à ordem política, à
sociedade doméstica e à salvação pessoal.
Ele acredita que este Cristo transmitiu seus poderes à
sua Igreja, que ele está permanentemente com ela através
do Espírito que ele lhe comunicou e que, em virtude dessa
contínua revelação, a Igreja governa o louvor e a moral
com uma autoridade infalível.
Munido dessa fé, o cristão possui, ou crê que possui, para
todas as questões, não apenas de teologia, mas de política
e moral, que não caia diretamente sobre o bom senso, um
instrumento de controle que lhe dispensa de refletir e até
mesmo de pensar, e o uso do qual não poderia ser mais
simples. É apenas uma questão de comparar as questões
controversas seja com as palavras de Cristo reportadas nos
Evangelhos ou com a interpretação eclesiástica, o valor
das quais é igual para o cristão.
Toda proposição que confirme o Evangelho ou que apoie
a Igreja é verdadeira;
Toda proposição que refute o Evangelho ou que condene
a Igreja é falsa;
Toda proposição que nem o Evangelho nem a Igreja
tenham pronunciado é irrelevante.
As palavras do messias e a definição canônica são, para
o cristão, a verdade absoluta, da qual toda outra verdade
emana. Eis aqui, consequentemente, o critério.
É claro que um processo judiciário similar não é nada
além do que a tirania da inteligência. Igualmente, todos os
governos, constituídos sobre o tipo divino da igreja, estão
ansiosos por imitá-la. Mas a razão protesta: "Esse ditado é
difícil!". Mesmo na presença de Jesus Cristo, os apóstolos
disseram Durus est hic sermo! Pois, no fim das contas, o
Evangelho não disse tudo, nem previu tudo; quanto à
Igreja, ela tem falhado tão frequentemente e tão
escandalosamente! E se eu demonstrasse, em um
momento, que o chamado critério nunca serviu para
discernir uma única verdade, para proferir um único
julgamento!
Ainda assim, em vez de dispensar como duvidoso o
critério cristão, tentamos primeiro torná-lo mais universal e
mais exato. Corrigir o critério da verdade poderia se passar
por loucura real: E daí! Não existiu nenhum meio de fazer
de outra maneira. E a coisa foi vista como uma dificuldade
não maior do que uma retificação de pesos e medidas.
Assim, seguindo a reforma, Cristo é Deus, ou quase isso;
seu ensinamento é soberano e, como critério, nas questões
às quais ele pode ser aplicado imediatamente, é infalível.
Quanto à exegese episcopal e à autoridade dos concílios e
do papa, a Reforma rejeita todos eles como limitados,
parciais, sujeitos à pressa e à contradição. No lugar da
igreja, cada um dos fiéis é investido com o direito de ler
por si mesmo o texto sagrado e buscar seu sentido. Em
outras palavras, o critério evangélico, que anteriormente
apenas a Igreja Romana tivera o direito de usar, foi
colocado nas mãos dos batizados: esse foi o resultado da
reforma.
Lamennais, em seu Essai sur l'indifférence en matière de
religion, o coloca de uma maneira diferente. De acordo
com esse Croyant, Deus é revelado em todos os momentos
à humanidade, não apenas pelos patriarcas, padres e
profetas do Antigo Testamento, não apenas por Jesus e sua
Igreja, mas por todos os fundadores da religião: Zoroastro,
Hermes, Orfeu, Buda, Confúcio, etc. Todas as ideias morais
e religiosas que a Humanidade já possui vêm dessa
revelação singular e permanente. Assim como os estados
da Europa moderna são o produto do cristianismo, mais ou
menos adaptados às circunstâncias e raças, assim os
Estados da antiguidade eram o produto da religião
primitiva, professada por Adão, Noé, Melquisedeque, etc.
Na base, as legislações, como os cultos, são idênticas:
todos repousam sobre um comunicado original da
Divindade. Caso se fizesse um inventário das instituições
políticas e religiosas de todos os povos e se separasse o
conteúdo da forma, se obteria um código de fórmulas
perfeitamente homogêneas, que se poderia considerar
como a sabedoria revelada das alturas, o critério da
espécie humana.
Claramente, esta maneira de ver o cristianismo o
enfraquece, no sentido de que o coloca de volta no sistema
geral de manifestações religiosas e o obriga a fraternizar
com todos os cultos sobre os quais ele há tanto lança
anátema. Mas, de tudo que perde, pode se dizer que
também aumenta também, criando um catolicismo maior
do que aquele que os primeiros cristãos conceberam. Os
cultos são geralmente considerados em solidariedade
também; sua causa agora é comum, e Edgard Quinet, ao
escrever o Génie des religions, claramente postulou o
princípio da religiosidade moderna. A universidade
concorda, em princípio, com os jesuítas, e o Papa pode
oferecer sua mão ao sultão e ao Grande Lama. A grande
reconciliação é realizada, a fé é uma como o Logos, e a
república universal encontrou seu critério.
Temo, contudo, que este cristianismo de poetas e
arqueólogos tenha levado apenas a uma mistificação e
que, ao generalizar o critério, eles o perderam.
A Reforma disse: Todos os fiéis recebem, através do
batismo e da comunhão, o Espírito Santo. Todos são, por
consequência, interpretadores das palavras de Cristo: a
definição canônica é inútil.
Lamennais, Quinet, Mazzini e outros adicionam: Todos os
povos receberam, através de suas iniciações individuais, o
Espírito Santo; todos os cultos são, consequentemente,
versões do Evangelho, e a autoridade dessas versões
juntas tem precedente sobre à da Igreja de Roma.
Não importa como você olhe, tão logo você rejeite a
autoridade especial, a fim de colocar em seu lugar seja o
sentimento individual ou, o que equivale à mesma coisa, o
testemunho universal, isto não quebra o elo com a fé e faz
um apelo à razão? Pensávamos que havíamos assegurado
nosso critério: ele desapareceu.
Uma vez que somos forçados a retornar à razão, vejamos
o que ela oferece. Ela também tem um critério?
II
Nada de novo sob o sol! Logo no início, a razão, sob o
nome de ciência, conhecimento, επιστημη, γνωσις, ou sob
o nome mais modesto de filosofia, aspiração à ciência, se
opôs à fé e reivindicou a posse da verdade, não mais
através das palavras de um médium espiritual, fides ex
auditu, mas por uma contemplação que é direta e, por
assim dizer, face-a-face, sicuti est facie ad faciem. Ver a
verdade em si mesma, com a única garantia de seus
próprios olhos e de sua própria razão, é claramente rejeitar
a hipótese de um critério: estou surpreso que a filosofia
não tenha sido capaz de entender esse apólogo. Tal era,
contudo, o pensamento daquela multidão de religionistas,
contemporâneos de Jesus e dos apóstolos que, sob o nome
geral de gnósticos, conhecedores, enfrentaram a Igreja por
mais de seis séculos e desapareceram de maneira
completa apenas com a chegada da Reforma.
O gnosticismo, não tenho dúvida, logo teria suprimido o
cristianismo e se tornado a religião universal, se tivesse se
demonstrado mais verdadeiro ao seu nome, se tivesse sido
mais prático, mais empírico e menos iluminado. Mas isso
supunha que a gnose era cinco vezes mais complicada,
mais misteriosa, mais hiper-física do que a emergente fé
que ela desprezava: de tal maneira que, em suas cartas,
Paulo, o doutor par excellence da fé, o homem do critério
transcendental, tratava as sublimidades da gnose como
contos da carochinha e amontoava seu sarcasmo por sobre
elas. Ai de mim! O senso comum é o último a chegar à
mente humana, e aquele que se acredita sábio por
protestar contra um certo grau de superstição, ele mesmo
é supersticioso apenas de uma maneira mais maligna e
incurável. O gnosticismo, que faz, em seu próprio tempo,
apenas uma tentativa de fusão religiosa, análoga àquela
que é tentada em nossos próprios tempos, foi derrotado,
então, tanto por suas próprias contradições quanto pela
real superioridade de seu adversário. Aqueles que
alegavam ter um conhecimento direito foram persuadidos
a experimentar apenas as quimeras de seus próprios
cérebros; e agora, mais do que nunca, se pedirá por um
preservativo contra as ilusões do encéfalo. Graças a eles, a
ciência foi adiada por quinze séculos. Ela nunca teria se
desenvolvido, se tivesse dependido dos teosofistas
modernos.
Foi com Bacon e a Renascença que a ciência foi formada,
à parte do sobrenatural e do absoluto, experimental,
positiva, certa e, se me atrevo dizer, sem critério. Primeiro
explicarei este aparente paradoxo: você logo verá como,
ao exemplo dos gregos, os modernos conseguiram colocar
de novo em questão a certeza do conhecimento e como
suas mentes, purgadas de maneira incompleta das noções
teológicas, caíram novamente na criteriomania dos
antigos.
Tudo que existe, eu disse em minha primeira carta, está
necessariamente em evolução; tudo flui, tudo muda,
modifica-se e transforma-se incessantemente. O
movimento é a condição essencial, quase a matéria, do ser
e do pensamento. Não há nada fixo, estável, absoluto ou
invencível, exceto a própria LEI do movimento, isto é, as
relações de peso, número e medida, de acordo com as
quais toda a existência aparece e se conduz. Aqui, a
filosofia do progresso absorve aquela de Pitágoras e lhe dá
sua posição e caráter.
Desta forma, a totalidade do universo é idêntica e
adequada à totalidade das séries ou evolução. Por
exemplo, a totalidade da existência animal está contida no
período incluído entre a concepção e a morte: o ser
vivente, em qualquer momento desse período, é apenas
uma fração de si mesmo. Segue-se disto que toda a
atualidade é imperfeita e irreal, sempre representando
apenas um movimento de evolução, um termo na série,
em suma, uma fração ou aproximação da existência,
transmitindo apenas de maneira incompleta a lei.
A lei em si mesma é, assim, definitiva, e podemos ter
uma ideia exata dela através de sucessivas observações
das manifestações parciais que a revelam. Mas nada
sensível, nada presente, nada real jamais pode representá-
la: tal realização, em uma dada hora, é contraditória. Não
há, então, nenhum espécime possível do movimento,
nenhuma cópia exata e autêntica. O arquétipo, disse
Platão, é e sempre será apenas uma ideia; nenhum poder
sabe como obter uma norma.
Se é assim para a existência considerada em sua
plenitude, se a realidade existe apenas de maneira
fracionária em relações e em coisas, segue-se:
Que podemos conhecer bem a lei de nossos
pensamentos, a regra de nossas ações, o sistema de
nossas evoluções, o curso de nossas instituições e de
nossas maneiras; que nos conformamos, o melhor que
podemos, no exercício de nossa liberdade, a essa lei, a
essa regra, a esse sistema, a esse curso providencial; que
podemos, finalmente, na prática da vida, fazer julgamentos
equitativos, mas que não podemos nunca tornar esses
julgamentos JUSTOS. Deus em si não pode fazê-lo. Sua
razão, assim como a nossa, só se pronuncia corretamente
sobre o conjunto, nunca sobre os detalhes: apenas sob
essa condição pode-se dizer, com o salmista, que os
julgamentos divinos são absolutos, justificata in semetipsa.
Deixe-nos tornar isso mais sensato através de alguns
exemplos.
A ideia de valor é elementar na economia: todo mundo
sabe o que se quer dizer com isso. Nada é menos arbitrário
do que essa ideia; ela é a relação comparativa de produtos
que, em cada momento da vida social, compõem a riqueza.
O valor, em uma palavra, indica uma proporção.
Ora, uma proporção é algo matemático, exato, ideal, algo
que, por sua alta inteligibilidade, exclui o capricho e a
fortuna. Há, então, acima da oferta e da demanda, uma lei
para a comparação de valores, portanto, uma regra da
avaliação dos produtos.
Mas essa lei ou regra é uma ideia pura, da qual é
impossível, em qualquer momento e para qualquer objeto,
fazer a aplicação precisa, ter-se a norma exata e
verdadeira. Os produtos variam constantemente em
quantidade e em qualidade; o capital na produção e seu
custo variam igualmente. A proporção não permanece a
mesma para dois instantes em sequência: um critério ou
padrão de valores é, assim, impossível. O pedaço de
dinheiro, com cinco gramas de peso, que chamamos de
franco, não é uma unidade fixa de valores: é apenas um
produto como os outros que, com seu peso de cinco
gramas a nove décimos de prata e um décimo de liga, às
vezes vale mais, às vezes menos, do que o franco, sem
que jamais sejamos capazes de saber exatamente qual é a
sua diferença do franco padrão.
Sobre o que, então, repousa o comércio, uma vez que
está provado que, carecendo de um padrão de valor, a
troca nunca é igual, embora a lei da proporcionalidade seja
rigorosa? É aqui que a liberdade vem ao resgate da razão e
compensa pelas falhas da certeza. O comércio repousa
sobre uma convenção, o princípio da qual é que as partes,
depois de terem buscado, infrutiferamente, as relações
exatas dos objetos trocados, chegam a um acordo para
conceder uma expressão suposta exata, contanto que ela
não exceda os limites de uma certa tolerância. Essa
expressão convencional é o que chamamos de preço.
Assim, na ordem das ideias econômicas, a verdade está
na lei e não nas transações. Há uma certeza para a teoria,
mas não há nenhum critério para a prática. Sequer haveria
prática, e a sociedade seria impossível, se, na ausência de
um critério anterior e superior a ela, a liberdade humana
não tivesse encontrado um meio para ofertá-lo por
contrato.
Da economia, passemos para a moral. A justiça, de
acordo com a lei romana, consiste em dar a cada um o que
lhes é devido, suum cuique. Prender-me-ei a essa
definição, a fim de evitar qualquer disputa.
A lei da justiça é absoluta: a lei civil, escrita ou usager,
repousa sobre ela. Ninguém jamais disputa a validade
dessa lei: por outro lado, o mundo ressoa com reclamações
contra suas aplicações. Onde, então, está o critério? Eu
observei, em minha primeira carta, que a máxima, Faça
aos outros como gostaria que fizessem a você, não é um
instrumento para uma avaliação exata, uma vez que seria
necessário saber o que deveríamos legitimamente desejar
que nos fosse feito. A fórmula econômica pela qual o
socialismo substitui esse antigo adágio, A cada um de
acordo com sua capacidade, a cada capacidade de acordo
com seu produto, é mais certa, uma vez que postula de
uma só vez o direito e o dever, o benefício e sua condição.
Mas não é mais um critério do que a outra, uma vez que,
de acordo com que acabou de ser dito sobre o valor, nunca
sabemos exatamente o que uma coisa vale ou o que um
homem merece.
Eu respeito profundamente a propriedade, assim como
respeito cada instituição, cada religião. Mas aqueles que
acusam o socialismo de querer abolir a propriedade e que
tomaram tanto cuidado inútil de defendê-la, ficariam
profundamente embaraçados de dizer como eles
reconhecem, com certeza, que tal coisa é a propriedade de
um tal e que não há nessa coisa um outro direito. Qual, em
uma palavra, é o critério da propriedade? Se alguma parte
da revelação deve ter tido que intervir nos julgamentos
humanos, é definitivamente naqueles que se tratam da
propriedade. Quanta terra e quanta propriedade pessoal
devem retornar a cada um? Parece-me que, nessa questão,
os olhos grandes de nossos conservadores estão
preocupados e que seu lado egoísta está desconcertado.
É a conquista, a primeira ocupação, que cria a
propriedade? —Eu observo que a força não faz a lei e que
na primeira oportunidade, eu saberia, sem mais delongas,
me vingar.
É a instituição do Estado? —Eu respondo que o que o
estado fez, o Estado pode desfazer; e como eu tenho o
maior interesse na coisa, tentarei me fazer mestre do
Estado.
É o trabalho? —Eu pergunto quais devem ser as
recompensas do trabalho? Se cada um trabalhou? Se
aqueles que trabalharam receberam o que deveria retornar
para eles, cuique suum, nem mais nem menos?
Alguns filósofos que se pensam profundos e que são
apenas impertinentes, imaginam que encontraram uma
recusa direta do princípio da igualdade, que forma a base
da crítica anti-proprietária. Eles dizem que não existem
duas coisas iguais em todo o universo. — Muito bem.
Admitamos que não houve duas coisas iguais no mundo:
pelo menos não se negará que todas têm estado em
EQUILÍBRIO, uma vez que, sem equilíbrio, assim como sem
movimento, não há nenhuma existência. O que, então, é o
equilíbrio das fortunas? Quais são seus minima e seus
maxima? Qual é a relação entre os minima e os maxima
das fortunas, e os minima e maxima das capacidades?
Permita-me perguntar: uma vez que, sem uma resposta,
tudo novamente se torna usurpação, e os mais ignorantes,
os mais incompetentes dos humanos têm o direito a serem
tratados tão bem quanto os mais instruídos e os mais
valentes, mesmo que apenas como compensação por sua
fraqueza e sua ignorância.
Claramente, esse não é nenhum critério para a
propriedade, nem para sua medida, nem para sua
transmissão, nem para seu gozo. Note também que, dessa
carência de critério para a justa apropriação dos bens, o
autor do Evangelho concluiu, seguindo Licurgo, Pitágoras,
Platão, pelo comunismo, toda a antiguidade pela
escravidão, e a economia malthusiana pelo salariat.
Ora, o que a nova ciência, a teoria do Progresso, diz
sobre a propriedade?
Ela diz que a propriedade, assim como o preço das
coisas, é originalmente o produto de um contrato, que esse
contrato é determinado pela necessidade do trabalho,
assim como a convenção que fixa o preço das coisas é
determinada pela necessidade da troça; mas que, assim
como, com o tempo e a concorrência, o preço de cada
coisa se aproxima cada vez mais de seu verdadeiro valor,
assim, com o tempo e o crédito, a propriedade tende cada
vez mais a se aproximar da igualdade. Apenas que, ao
passo que o preço das mercadorias, ou a justa
remuneração do trabalhador, geralmente alcançam sua
taxa normal em um período um tanto curto, a propriedade
apenas chega a seu equilíbrio depois de um tempo muito
maior: mais ou menos como se o movimento anual da terra
fosse comparado com a revolução dos equinócios.
Aqui, então, repetirei, existe uma regra para o legislador;
mas não há um critério para o juiz. Enquanto a justiça
eterna lentamente realiza sua obra, a jurisprudência é
forçada a obedecer ao costume, a obedecer a religião do
contrato.
As ciências naturais oferecem exemplos dessa distinção
entre a lei das coisas e sua realização: a primeira é
absoluta e imutável; a segunda, essencialmente móvel,
aproximada e incorreta. Assim, é uma lei que as estrelas
pesam umas sobre as outra em relação direta às suas
massas e inversa ao quadrado de suas distâncias; que elas
varrem áreas proporcionais ao tempo, etc., Mas estas leis,
que podemos compreender apenas ao adotar, no
pensamento, revoluções imensas e numerosas, são
praticamente tudo que é verdade na existência dos
mundos; quanto aos fenômenos, eles são tão irregulares
quanto se pode imaginar. É um fato, por exemplo, que os
círculos siderais não são redondos, tampouco são ovais.
Mais do que isso, suas curvas instáveis não retornam a si
mesmas, etc. Ao que tendem, finalmente? Ninguém sabe.
O exército celestial desliza em um espaço sem limites, sem
jamais apresentar duas vezes em seguida as mesmas
posições. É necessário concluir que a geometria e a
aritmética, através das quais calculamos esses
movimentos, são falsas, que a ciência ilustrada por
Newton, Laplace e Herschel é uma quimera? Não. Todas
essas variações do modo eterno provam uma coisa, a
saber, que a certeza não está no fenômeno, que,
considerado separadamente, não é nada além de um
acidente, mas na série de evolução que sozinha é a lei.
Mas permaneçamos com as coisas da humanidade, pois
é sobretudo ali que a questão da certeza assume sua
gravidade e nos interessa.
Eu disse que a ideia de um critério de certeza era uma
importação da teologia para o domínio filosófico; eu provei,
em relação à economia e à moral, que o suposto critério
não tinha aplicação possível. Mais curioso ainda, ele é
impotente na religião, a própria ordem de ideias que o
produziu e para a qual ele foi inventado. A religião, assim
como a justiça e a economia, está sujeita à lei do
Progresso; por essa razão, ela não tem mais um critério, de
modo que a fé, essa razão das coisas não vistas, se resolve
em alienação mental, ou retorna à dialética.
O cristianismo existia em Jesus? Não faço essa pergunta
para o cristão, mas para o filósofo. Ele existia em São
Paulo, em Agostinho, em Fócio, em Tomás, em Bossuet? Ele
existe em Pio IX, em Nicolau ou em Vitória?
O cristianismo seria diminuído, se fosse reduzido a
qualquer profissão de fé em particular. Os antigos não
sabiam tudo que os modernos aceitam; os modernos, por
sua parte, não retêm tudo aquele que os antigos
aceitavam. Em nenhuma época a forma foi a mesma para
todos os contemporâneos. De acordo com Cristo e os
apóstolos, o reino do Evangelho não é deste mundo; de
acordo com Hildebrando e os ultramontanistas, o papa,
elevado acima de todo poder, é o mestre do mundo; de
acordo com os gregos e os anglicanos, o chefe natural da
Igreja é o chefe de Estado. Todas essas oposições podem
ser igualmente justificadas pela tradição, pela Escritura e
pelo sistema geral das religiões; e não seria difícil mostrar
que a diferença de opiniões sobre a independência ou a
subordinação do poder temporal leva a um caso similar no
dogma. Em quem deve-se acreditar, em Cristo falando por
si mesmo, ou na Igreja afirmando sua supremacia? Nos
galegos que separam os dois poderes, ou nos russos e
anglicanos que os reúnem? Tudo isso é igualmente uma
parte do cristianismo e está em perfeita contradição. O que
se torna o critério?
Apenas a teoria do Progresso pode dar uma explicação
razoável de todas as variações da fé cristã, mas sob a
condição de que o cristianismo perca seu caráter Absoluto.
Essa teoria considera o cristianismo como uma corrente de
opiniões, que se formou na época de Alexandre por toda a
Grécia e pelo Oriente; que cresceu e foi complicada por
uma multidão de tributários, de Augusto a Teodósio; que se
dividiu próximo a Fócio; que, sob o nome de catolicismo,
pareceu alcançar seu apogeu, de Gregório VII a Bonifácio
VIII; que se subdividiu novamente com Lutero; que,
finalmente, embora assustada por seu próprio movimento,
tentou se consertar em Trento e, morta enquanto
catolicismo pela negação de sua inevitável mobilidade,
prosseguiu para se dispersar e se perder, enquanto
protestantismo, nos saibros da democracia americana.
Conhecer o cristianismo não é afirmar tal e tal sistema
de dogma, mais ou menos harmonicamente combinados e
que visam uma estagnação; é ter viajado e visitado o rio
cristão, primeiro em suas fontes oriental, judaica, egípcia,
grega, latina, germânica e eslava, e, então, em seu curso
tumultuoso e tão frequentemente dividido e, finalmente,
nas inúmeras ramificações onde ele pouco a pouco perdeu
seu caráter e desapareceu.
A Religião, assim como o Estado, assim como todas as
instituições humanas, se manifesta em uma série de
termos essencialmente opostos e contraditórios: é por esta
razão apenas que ela é inteligível. Seu verdadeiro critério
são suas variações. Quando Bossuet apontou para a
instabilidade do dogma nas igrejas reformadas e exigiu dos
seus uma constância da fé que não existe, ele fez, sem
sabê-lo, uma apologia aos seus adversários e pronunciou a
condenação do catolicismo.
A Religião é como a fala. Nada é mais móvel, mais
variado, mais elusivo que a língua humana e, ainda assim,
a linguagem é una em sua essência, e as leis da
linguagem, mais do que as fórmulas da lei e as definições
da teologia, são a própria expressão da razão. Aqui, como
em todo lugar, o absoluto é uma ideia pura, ao passo em
que o acidente é a realidade em si. Você diz que a fala é
apenas um som vão, a gramática uma tolice, a poesia um
sonho, porque a língua universal é e só pode ser uma
abstração?
Toda verdade está na história, assim como toda
existência está no movimento e na série;
consequentemente, toda fórmula, filosófica ou legislativa,
tem e pode ter apenas um valor transitivo. Negligenciar
essa máxima é a fonte fecunda de todas as nossas
aberrações e infortúnios.
Cícero considerava o consentimento universal como o
grau mais alto de certeza moral, e todos os nossos
tratados de filosofia ainda o citam como a prova mais
explícita da existência de Deus. Mas está claro, por tudo
que acabou de ser dito, que o consentimento universal só
tem valor se for tomado na sucessão de seus testemunhos.
Fora isso, existe apenas contradição e falsidade.
Considerado em qualquer momento de suas
manifestações, o consentimento universal perde seu nome;
torna-se sufrágio universal, a fantasia do momento,
estabelecida como um absoluto.
Você quer, então, que o sufrágio universal, que forma,
neste momento, a base de nossos direitos públicos,
adquira toda a autoridade que ele necessita? Não é
questão de aboli-lo: o povo sentiu o gosto do fruto proibido;
é necessário, para sua absolvição ou condenação, que ele
seja retificado até o fim. Abandonem seus sistemas de voto
eleitoral, cada um mais absurdo que o último e que só dão
luz à tirania da maioria ou à sua abdicação. Faça o sufrágio
universal à imagem do consentimento universal. Considere
essa massa que você vai questionar como uma
representação de todas as eras da Humanidade. Existem
os diaristas, os domésticos, os assalariados, a multidão
pobre e ignorante, constantemente convocados ao crime
por sua pobreza e que representam para você as gerações
primitivas; acima dessa multidão, uma classe média,
composta de trabalhadores, artesãos e mercadores, os
costumes, opiniões e fortunas da qual expressam bastante
bem o segundo grau da civilização; finalmente, uma elite,
formada de magistrados, funcionários públicos,
professores, escritores e artistas, que marcam o grau mais
avançado da espécie. Peça a esses interesses diversos, a
esses instintos semibárbaros, a esses hábitos teimosos, a
essas aspirações tão elevadas, o seu pensamento íntimo;
classifique todos esses desejos de acordo com a
progressão natural dos grupos; então você encontrará
nisso uma fórmula coordenada que, abarcando os termos
contrários, expressando a tendência e expressando a
vontade de nenhuma pessoa, será o contrato social, será a
lei. É assim que civilização geral tem avançado, por trás
das costas de legisladores e dos homens do estado, sob o
disfarce de oposições, revoluções e guerras...
Eu creio, senhor, que eu demonstrei de maneira
suficiente que o critério da certeza é uma ideia
antifilosófica emprestada da teologia e a suposição do qual
é destrutiva da própria certeza. Não apenas a metafísica, a
política, a legislação, a economia, a história e todas as
ciências todas rejeitam essa ideia: a própria religião que de
lhe deu à luz se torna inexplicável através dela. Essa
proposição me parece nova o suficiente para merecer
alguma elaboração: Chego agora ao cerne da dificuldade.
III
Seguindo o exemplo dos gregos, a filosofia moderna
primeiro nos pergunta como reconhecer o que o
entendimento chama de lei, mas que é inacessível aos
sentidos; — em segundo lugar, ela pergunta se essas
supostas leis, que supomos governar os seres, não são
simplesmente os efeitos de nossa atividade intelectual ou,
em outras palavras, uma aplicação involuntária das formas
de nossa razão aos fenômenos; — finalmente, ela pergunta
se temos certeza da realidade dos objetos e se a opinião
que temos de sua existência é algo além de uma fé
subjetiva. Esta é a dúvida transcendente, em prova da qual
citam-se as proposições contraditórias da metafísica, que
Jouffroy entre outros declararam invencíveis.
Minha resposta será breve, uma vez que é feita com
antecedência e então terá esperança de ser tão clara
quanto é decisiva.
Sobre o primeiro ponto, a saber, através de qual sinal
reconhecemos a ideia geral ou lei, eu respondo que ela
reconhecida pela unidade da diversidade que constitui a
série, o gênero ou a espécie, em suma, pelo grupo. É,
como o conhecimento das coisas em si mesmas, uma
simples intuição. Você perguntará em seguida como a
mente percebe a unidade? Isso equivale a perguntar como
existe algo ou alguém que vê e que pensa. Eu não
responderei a essa pergunta mais do que a esta outra:
Como algo existe? O pensamento, a faculdade de descobrir
e expressar a unidade diversificada, é fato original,
anterior, imediatamente dado e, assim, inexplicável da
ciência e do universo. Sem a faculdade de perceber a
unidade, não há mais pensamento, não há mais
consciência, não há mais existência, não há mais nada que
seja. Eu sou, eu penso, eu possuo a unidade. Ou, deixando
de lado essa personalidade gramatical, que é em si apenas
um acidente, algo é, algo pensa, algo é um: todas essas
proposições são idênticas para mim. Elas significam que a
condição essencial do meu pensamento é ver a lei e ver
apenas a lei. Eu não provo essa percepção; eu a afirmo,
junto a Descartes e a Malebranche: uma vez que eu penso
apenas em virtude da minha faculdade de perceber a
unidade, por um lado, eu descubro a unidade em todo
lugar e, por outro, eu vejo tudo em unidade.
Sobre o segundo ponto,—isto é, se a unidade ou lei que
meu pensamento descobre, que consequentemente se
torna imediatamente a lei ou forma do meu pensamento, é
um produto do meu pensamento ou se é, ao mesmo
tempo, a lei das coisas e se, consequentemente, terceiro
ponto, ela implica a existência, externa ao meu
pensamento, do que eu chamo de coisas—eu respondo que
essa dupla questão não é para mim e que ela só pode ser
dirigida àqueles que, não reconhecendo a ideia sintética do
movimento como a base da ontologia e da lógica, partem
da distinção das substâncias e, dos diversos graus do ser,
fazem muitos seres diferentes.
De fato, se for verdade, como creio ter provado, que o
dualismo ontológico é o resultado da análise da ideia de
movimento e da subsequente compreensão dos conceitos
dados por essa análise, todas as objeções extraídas da
distinção entre eu e o não-eu caem com essa própria
distinção.14 O ser, em seu mais alto grau de existência, é,
de uma só vez, eu e não-eu: ele pode igualmente dizer,
falando de si mesmo tanto quanto de outros, eu, você, ele,
nós, todos vós, eles. O que estabelece nele a identidade e
a adequação das pessoas, no singular, no dual e no plural,
é precisamente sua conjugação.
Assim como Descartes não poderia duvidar de que ele
pensava e uma vez que a dúvida levantada sobre seu
próprio pensamento seria ilegítima, assim também, e por
razões muito mais fortes, eu não posso duvidar de que me
movo, uma vez que o pensamento é apenas uma forma de
movimento: nestes casos, assim como no anterior, e muito
mais do que naquele caso, a dúvida é contraditória e
ilegítima.15
Ora, quem quer que diga movimento, diz série, unidade
diversificada, ou grupo, consequentemente, eu e não-eu,
eu e tu, nós e eles, etc. até o infinito. A revelação que eu
tenho de mim mesmo necessariamente implica a que eu
tenho dos outros, e vice-versa, ou melhor, essas duas
revelações equivalem a apenas uma: do que se segue que
as leis desse pensamento são, ao mesmo tempo e
necessariamente, as leis das coisas. O contrário seria uma
contradição.
Além disso, essa identidade decisiva entre eu e não-eu,
tão difícil de estabelecer no âmbito das ideias puras, será
provada de maneira direta e empírica pela fisiologia do
homem coletivo, pela demonstração de suas faculdades,
de suas ideias e de suas operações.
Quando se viu que, na espécie humana, o indivíduo e a
sociedade, indivisivelmente unidos, formam, contudo, dois
seres distintos, ambos pensantes, ativos e progressivos;
como o primeiro recebe uma parte de suas ideias do
segundo e exerce, por sua vez, uma influência sobre ele;
como, então, as relações econômicas, produtos da análise
individual e contraditórias entre si, na medida em que se
as considera no indivíduo, se resolvem em ideias sintéticas
na sociedade, de modo que cada homem raciocina e age
em virtude de um duplo eu, goza de uma dupla
inteligência, fala uma dupla linguagem, persegue um duplo
interesse; quando, digo, leva-se em conta que o dualismo
orgânico pressentido por todas as religiões e que compõe,
de uma só vez, a existência coletiva e as existências
individuais, se conceberá mais facilmente a resolução dos
contrários na ontologia e na metafísica, e o escândalo da
divergência e da contradição das filosofias chegará ao seu
fim.
Essas filosofias todas parecerão verdadeiras, como
deduções analíticas especiais da teoria universal do
movimento; mas cada uma delas também parecerá falsa,
na medida em que aspiram criar um cisma e excluir suas
rivais.16 Assim, O problema filosófico estando resolvido,
será verdade dizer que o movimento filosófico foi realizado:
no lugar de sistemas, que partem de uma concepção
arbitrária e levam a uma contradição fatal, teríamos uma
ciência progressiva, a compreensão cada vez maior do ser,
da lei e da unidade.
Assim, o dogmatismo religioso também receberia sua
interpretação racional, e a ordem política, sua constituição
livre: toda teosofia evaporando-se no âmbito da moral,
todo culto, na educação, todo o governo, na economia,
toda autoridade, em contratos.
Assim, finalmente, saberíamos por que, a ciência
econômica tendo estado em falta até recentemente, a
equidade geral tem que chegar tão tarde; por que a
evolução humanitária que acabou da primeira vez, para os
cultos, na queda do politeísmo, para a política, na ruína do
Império Romano, teve que começar novamente com o
cristianismo, o feudalismo e a filosofia moderna; por que,
em uma palavra, deixando de lado o progresso da indústria
e das ciências, a civilização foi, por quinze séculos, apenas
uma repetição.
Uma vez que a teoria dos interesses foi negligenciada, foi
necessário que copiássemos tudo, que repetíssemos tudo
dos romanos e dos gregos, da antiquada tirania até o
ecletismo, da escravidão ao comunismo, da mais feroz
superstição ao misticismo, a cabala e a gnose. Agora nada
resta para nos apropriarmos; a tradição foi exaurida:
somos forçados a nos tornarmos originais, por nossa vez, e
a continuar o movimento.
Mas nada na natureza é produzido sem dor: a última
revolução da Humanidade não escapou a esta lei. Os
interesses, surpreendidos em sua tolice, estão assustados;
a superstição ruge, a pedantice retumba, o status quo
protesta. Esses são os sintomas triunfantes que nos
indicam que a revolução penetra a sociedade, que age
sobre ela e a possui.
Durmam em paz, reformadores: o mundo não precisa de
vocês.
A ciência econômica, embora sua constituição não tenha
sido alcançada, já é poderosa demais para que ela permita
que os antigos preconceitos intentem qualquer coisa
contra seus decretos, que são os decretos da própria
revolução.
Sem mais bárbaros, capazes de impor à civilização a
tortura de um novo feudalismo. Fossem eles nossos
mestres, os Cossacos não seriam nada: tão logo
colocassem os pés sobre o solo sagrado do Progresso, eles
se tornariam seus apóstolos.
Sem mais corrente religiosa que possa, como no primeiro
século de nossa era, absorver e remoldar, em um culto
superior, a multiplicidade de Igrejas; sem mais Cristo, nem
Maomé, que ouse repetir, à maneira de Voltaire:

Precisamos de um novo culto, precisamos de novos


ferros,
Precisamos de um novo deus para o universo cego!
Tudo está acabado! Temos a salvação apenas na
inovação e no movimento. Não é para vós, senhor, que se
tem que gritar: Aqueles que têm ouvido, que ouçam! Você
ouve e, melhor do que qualquer outro, você sabe como
expressar para o público essas proposições bastante
simples:

Afirmação do PROGRESSO:
Negação do ABSOLUTO.
Eu sou, etc.
Notas
* - Mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP e pesquisadora
no Nu-Sol.

** - Nesta carta, Proudhon retoma sua famosa afirmação:


a propriedade é um roubo. Quer responder a Villaumé que,
ao escrever seu Novo tratado de Economia Política,
interrogara-o a respeito do que considerava sua
proximidade oscilante do socialismo e seu incongruente
distanciamento do comunismo. A leitura de O que é a
propriedade? parece-me fundamental para entender os
efeitos, no pensar econômico, da noção de movimento, ou
da analítica proudhoniana como pensar em movimento.
Pierre-Joseph Proudhon. Filosofia del progresso. Madrid,
Libreria de Alfonso Darán, s/d, p. 134.

1 - Nota do Tradutor da Edição Inglesa: No décimo


terceiro: isto é, "no décimo terceiro arrondissement de
Paris", que, antes de 1860, tinha apenas 12
arrondissements - isto é, falsamente casado, ou "vivendo
em pecado".

2 - A ideia de Progresso não é nova. Ela não havia


escapado aos antigos. (Vide de l'Idée du Progrès, de JAVERY,
1 vol. in-8", Orléans, 1850.) Platão e os estoicos, Aristóteles,
Cícero e uma multidão de outros, sem contar os poetas e
mitólogos, claramente a entendiam. Entre os modernos, ela
foi expressa por Pascal e cantada, como se fosse, por
Bossuet, em seu Discours sur l'histoire universelle,
compostos na imitação de Daniel et de Florus. Ela foi
reproduzida, com nova força, por Lessing, serviu como lema
à seita dos Illuminati de Weisshaupt e fez, na época da
Revolução Francesa, a originalidade de Condorcet. Mas é
sobretudo em nosso século que ela foi postulada com
brilhantismo. Todas as escolas socialistas a invocaram como
o princípio de sua crítica e, até um certo ponto, a fizeram
parte de seus sistemas. Sabe-se a divisão histórica de Saint-
Simon: Teocracia, Feudalismo ou governamentalismo,
Indústria; - aquela de August Comte: Religião, Metafísica ou
filosofia, e Positivismo; - aquela de Fourier: Édenismo,
Selvageria, Patriarcado, Barbárie, Civilização, Garantismo,
Harmonia. O Progresso serviu para que Pierre Leroux
rejuvenescesse o dogma da metempsicose, e, uma coisa
ainda mais estranha, Bûchez acredita que encontrou ali a
última palavra do Catolicismo. Seria inútil enumerar, não
apenas todos os escritores, mas todos os teóricos, todos os
sectos e escolas que são dominados pela ideia do Progresso.
A Democracia, por sua vez, tomou posse dela, sem
suspeitar que tal aquisição era tão incompatível com suas
doutrinas oficiais quanto com a própria teologia. Não
esquecemos a Revue du Progrès, que Louis Blanc compôs
até cerca de 1840. Muito recentemente, um outro autor
democrata, Eugène Pelletan, a tomou como assunto de uma
publicação que não carece, diz-se, nem de filosofia, nem de
interesse. Sob o nome de Liberté absolue, ainda é o
Progresso que é afirmado pelo editor-em-chefe de la Presse,
M. de Giradin. Finalmente, não há ninguém, mesmo entre
nossos mais amargos conservadores, que não reivindique o
Progresso: em sua linguagem, o Progresso, oposto à
Revolução, indica um movimento tão lento que é o
equivalente de uma estase. Apesar de todos esses estudos,
pode-se dizer que o Progresso permanece, dentro da
filosofia, no estado de um simples fenômeno: enquanto
princípio, ele não entrou em especulação. Ele ainda não é
nem uma verdade, nem um mero erro. Conquanto fora
concebido como o próprio ser dos seres, dificilmente se
pudera ver ali qualquer coisa além de um acidente da
criação, ou uma marcha da sociedade em direção e um
estado culminante e definitivo, que cada um tentara prever
ou descrever, de acordo com suas aspirações individuais, à
moda dos legisladores e utópicos de todas as eras.

3 - Por que o governo despótico também é chamado de


absoluto? Não é apenas porque o príncipe ou déspota
coloca sua vontade acima da vontade da nação, seu bel-
prazer no lugar da lei. Personalidade e arbitrariedade no
poder são apenas uma consequência do absolutismo. O
governo é chamado de absoluto, primeiro porque está em
sua natureza concentrar, seja em um único homem, em um
comitê ou uma assembleia, uma multiplicidade de
atribuições, a essência das quais deve ser separada ou
seriada, de acordo com uma dedução lógica; em segundo
lugar, porque, uma vez que essa concentração seja
realizada, todo movimento ou Progresso se torna impossível
no Estado e, assim, na nação. Os reis não são chamados os
representantes de Deus? .... É porque eles simulam, como
aquele alegado ser absoluto, universalidade, eternidade e
imutabilidade. —O povo, pelo contrário, todo divisão e
movimento, são a encarnação do Progresso. É por isto que a
democracia é avessa à autoridade: esta retorna à outra
apenas através da delegação, meio termo entre liberdade e
absolutismo.

4 - O governo absoluto é, assim, a priori, impossível.


Também, o crime dos déspotas é muito menos na
perpetração de sua ideia do que em sua vontade de
cometê-la: é esta vontade sem poder que cria o liberticídio.

5 - Protágoras diz: Não há nada, exceto em relação a


alguma outra coisa. O um é, assim, apenas uma hipótese; o
eu não é um ser: é um FATO, um fenômeno, e isso é tudo.
6 - Sabemos que o significado original das palavras alma e
espírito é fôlego, respiração. É de acordo com esta imagem
material que os antigos conceberam sua pneumatologia,
que colocava a alma nos pulmões e, bastante logicamente,
a negava às pedras e plantas, uma vez que elas não
poderiam ser vistas respirando. Mais tarde, por sua vez, a
chama se tornou o termo de comparação, e a alma foi
alojada no sangue. O sangue de um animal é sua alma, diz
a Bíblia. Descartes a colocou na glândula pineal. É
surpreendente que as descobertas da física moderna não
tenham levado a uma revolução mais radical na
pneumatologia. Todos os corpos que irradiam calor, luz e
eletricidade, estão todos em um estado de perpétua
absorção e exsudação, todos são penetrados e envolvidos
por um fluido que normalmente é invisível, mas que às
vezes se torna aparente, como na combustão, em
descargas elétricas, na aurora boreal, etc. É através deste
fluido, que gostamos de considerar a alma do mundo, que
os corpos agem uns sobre o outros, atraem, repelem e se
combinam uns com os outros, passam para o estado sólido,
líquido ou gasoso. O que nos impede de dizer que a alma
humana também é fluida, formada a partir da combinação
de diversas outras, como a carne e os ossos são compostos
de vários elementos, que envolvem e penetram o corpo,
correm pelos nervos, fazem o sangue circular, que nos
coloca, à distância, em relações mais ou menos íntimas com
nossos companheiros e, através dessa comunicação, cria
grupos superiores ou novas naturezas?... Se empurrarmos
esse estudo tão longe quanto se queira, nunca veremos, em
todas essas manifestações fluidas, — mesmo supondo-as
livres de erros, de charlatanismo e de superstição como a
mais rigorosa ciência pode exigir — nada além de
especulações analíticas ou simétricas sobre o ser, seus
atributos e suas faculdades. A existência transcendente, aos
nossos olhos, não é aquela de supostos espíritos ou aromas
que, separados de seus corpos, são tão quiméricas quanto o
tempo ou o espaço seriam, separados da ideia de
movimento; ela é o homem sensível, inteligente e moral; ela
é, sobretudo, o grupo humano, a Sociedade.

7 - A ciência moderna confirma esta definição do ser.


Quanto mais a física e a química avançam, mais elas
desmaterializam e tendem a se constituir sobre noções
puramente matemáticas.

8 - "O homem é apenas um fragmento do ser: o


verdadeiro ser é o ser coletivo, a Humanidade, que não
morre, que, em sua unidade, se desenvolve
incessantemente, recebendo de cada um de seus membros
o produto de sua própria atividade e comunicando-lhe, de
acordo com a medida na qual ele pode participar, o produto
da atividade de todos: um corpo cujo crescimento não tem
qualquer fim atribuível, que, segundo as leis imutáveis de
sua conservação e evolução, distribui vida aos vários órgãos
que perpetuamente o renovam, ao perpetuamente se
renovarem." (De la Société première et de ses lois, por
LAMENNAIS, 1848.) Quem não acreditaria, depois de ter lido
essa passagem, onde a realidade objetiva, orgânica, pessoal
do ser coletivo é afirmada com toda a energia e propriedade
de expressão da qual a língua é capaz, que o autor iria
fornecer a anatomia, a fisiologia, a psicologia, etc. da
sociedade? Mas Lamennais é um grande poeta e não tanto
um naturalista. A metáfora volta ao divino; e, ao passo em
que ele acredita que ele faz apenas uma alegoria, ele
postula, sem saber, um ser real do qual ele não está ciente.
Depois de ter falado como um filósofo humanitário do ser
coletivo, M. de Lamennais volta a buscar as leis da
sociedade na teologia; ele analisa os dogmas da Trindade e
da Graça e cai novamente no vácuo intelectual, apropriado
a místicos e fraseólogos. Eu poderia citar ainda outros
autores que, como Lamennais, parecem ter tocado a
realidade do ser social e falam nos termos mais refinados de
sua alma, de seu gênio, de suas paixões, de suas ideias, de
seus atos, etc., Mas rapidamente se percebe que tudo isso
são apenas imagens e palavreado de sua parte; não há um
fato, nem uma observação, que ateste que eles entenderam
suas próprias palavras. É como o estilo daqueles
economistas, que se julgaria, ao lê-los, discípulos de
Babœuf ou de Cabet, mas que logo se reconhece, por seus
protestos antissocialistas, como os mais hipócritas e mais
insípidos dos tagarelas.

9 - "Deus, a substância-causa, é simples ou múltiplo? Se


ele é simples como Spinoza pensava, por quais meios, por
qual ação, por qual lei, ele pode passar de seu modo de
ação metafísico para o modo de existência finita e se
manifestar fisicamente em forma, variedade e sucessão, no
espaço e no tempo, sem se dividir? Eis a cruz da
dificuldade. Spinoza não a resolveu e não poderia resolvê-la.
Com a constituição simples e individual dada à substância-
causa, Deus, dotada, ainda mais, de todos os outros
atributos teológicos, não é, no Espinozismo, nada além de
um átomo solitário cuja extensão é infinita. Esse átomo,
infinitamente estendido, ocupa por si só todo o espaço ou,
antes, não há espaço, e a expansão indivisível de Deus, em
sua infinidade, não é nada além do que queremos dizer com
espaço. Ora, nesse ser simples e indivisível, nesse Deus-
átomo, infinito em extensão, a propriedade da extensão
sendo indivisível, uma vez que o sujeito que a possui é
simples, não é possível, o número não existindo nela,
encontrar a razão ou os meios de qualquer ação que seja
através da qual Deus produza a multidão de seres extensos
e finitos que constituem os fenômenos do universo: sua
constituição é oposta a isso. Como ele é infinito em sua
extensão simples e indivisível e não há nada fora dele, ele
não pode ter em si mesmo nada além de si mesmo, isto é,
um simples átomo, infinito em extensão." (Ch. LAMAIRE,
Initiation à la philosophie de la Liberté, t. II.) M. de
Lamennais, Esquise d'une philosophie, pressentiu a
dificuldade e tentou resolvê-la, ao exemplo dos gnósticos e
cabalistas, fazendo uso das hipóstases divinas, Amor,
Vontade, Inteligência, a fim de fazê-las produzir em Deus,
de acordo com suas categorias, todos os seres. M. Ch.
Lameire refuta esse sistema desta maneira: "Com a
simplicidade constitucional de Deus, a condição que
necessariamente domina aquele seu atributo que
chamamos de entendimento, qualquer que seja, além disso,
o número e a variedade de outros atributos que tivermos
dado a Deus a fim de fazê-lo sair de sua inação e sua
impotência para formar, a partir de sua própria substância,
seres unidos, todos esses atributos, tais como Poder,
Ciência, mesmo Amor, só podem servir para formar
personificações mitológicas ou abstratas; mas elas não tem
eficácia para gerar o menor ser finito, a menor forma, a
menor personalidade distinta em Deus ou à parte de Deus,
e eles acabam logicamente falhando ante à simplicidade e
indivisibilidade desse Deus, sendo infinito e incomensurável
em relação à extensão. Com relação aos efeitos, Deus,
substância simples e indivisível, não pode, então, ser a
causa de seres finitos. Se se supõem, a fim de sair dessa
dificuldade, que os outros atributos de Deus, tais como o
poder e a ciência, poderiam mudar sua constituição original
e dividir aquilo se declara ser simples e indivisível, cai-se
em contradição e diz-se que o Deus que se declarara ser
simples destruiria, ele mesmo, a condição de sua própria
existência."

10 - Toda teoria social necessariamente começa com uma


teoria da razão e uma solução para o problema cosmo-
teológico. Nenhuma filosofia careceu dessa exigência. Isto é
o que explica por que todos os partidários da hierarquia
política e social começam de uma ideia teosófica, ao passo
em que os democratas geralmente se inclinam a uma
emancipação absoluta da razão e da consciência. A fim de
democratizar a raça humana, insiste Charles Lemaire, é
necessário desmonarquizar o Universo.

11 - Prelibação: oferecimento dos primeiros frutos.

12 - Eu permiti que esta passagem ficasse, não a fim de


insultar dos infortúnios dos quais compartilhei quando foi
escrita, mas a fim de responder a incansáveis calúnias. A
coisa que é especialmente patética sobre o golpe de estado
de 2 de dezembro é que os homens que ele atingiu de
maneira mais cruel são exatamente aqueles que parecem
entendê-lo menos. Queremos ver apenas o instrumento, a
ocasião e o pretexto, se me atrevo a colocar desta maneira,
a cordas: nós obstinadamente nos recusamos a reconhecer
a causa. A causa é o terror causado por uma revolução da
qual o caráter, a medida e o fim foram distorcidos; é a
direção retrógrada da opinião, a resistência obstinada dos
partidos, o maquiavelismo do Legislativo, a divisão dos
republicanos, dos quais alguns, na maioria, querem a
república sem a revolução, ou a revolução sem socialismo, a
palavra sem a coisa, e outros foram forçados a protestar
contra essa política absurda ou então ao suicídio; é
sobretudo o apelo aos instintos populares, sob as
circunstâncias mais infelizes, sob o nome do sufrágio
universal. De minha parte, eu confesso, se estou
preocupado pelo bem da liberdade, se às vezes tenho
dúvidas sobre o futuro da democracia, é porque vejo seus
defensores, mártires de uma fórmula vã, se voltarem
furiosamente contra a revolução social, tendo se tornado
indiferentes às ideias, não entendendo que a proliferação de
teorias socialistas é precisamente o que a torna forte, de
modo que alguns se juntam aos Orléanistas, por vergonha!
... ou se entregam a projetos quiméricos, denunciados tão
rapidamente quanto são concebidos! Que eles finalmente
acordem.... No dia em que abandonarem seu caminho
mortal, a liberdade não estará longe; na França, haverá
apenas um preconceito a derrubar.

13 - Um voltairiano que tinha grande temor do demônio, o


príncipe de Ligne, disse cinquenta anos atrás: "O ateísmo
vive à sombra da religião."—Desde então, as coisas
avançaram, e os papéis estão invertidos: a religião vive à
sombra do Estado. Ora, pergunte a Odilon Barrot qual é a
doutrina do Estado nas questões de fé? Sua resposta,
melhor do que qualquer uma que eu possa dar,
demonstrará a urgência de um princípio que possa servir,
de uma só vez, como fundamento da religião, isto é, da
moral e do Estado.

14 - Se pensar [penser] e pesar [peser] são impessoais


[anonymes], como a etimologia prova, o golfo que a
ontologia antiga havia cavado entre a mente e a matéria é
preenchido; as vibrações do éter podem transmitir as
impressões do cérebro; a consciência não é mais nada além
de uma fonte de movimento, que os corpos mais crus
podem ecoar. Pelo simples fato de que eu penso, eu me
movo; pela concepção, em meu cérebro, da ideia de
movimento, essa ideia é executada; e os músculos que
recebem o efeito por meio dos nervos, tendem a executá-la
por sua vez. Eles sem dúvida a executariam, se um
pensamento de sentido contrário não suspendesse sua ação
e fizesse o primeiro impulso morrer na extremidade dos
nervos. Se dois, três ou um número maior de sujeitos
pensantes se colocam em relação por meio de qualquer
condutor, se uma palavra é lançada em seu meio, ela
produzirá, sem o conhecimento deles, uma comoção geral,
traduzível em ideias, e a espontaneidade da qual indicará
para as pessoas supersticiosas a presença de um demônio
familiar, de uma alma que partiu. Uma carreira se abriria, a
partir disso, para os adivinhos e os necromantes? Perece o
pensamento. A natureza, por suas harmonias, pela
constância de suas leis, pela firmeza de seus tipos, nos
ensina o suficiente para zombar de prodígios e monstros; e
é o sinal de uma grande degradação da inteligência, um
prelúdio de grandes catástrofes, quando as pessoas,
incapazes de uma labuta científica, abandonam a razão e a
natureza para perseguirem evocações e milagres.

15 - Zenão de Eleia negava o movimento e pretendia


justificar sua negação através de um raciocínio matemático,
baseado no princípio da divisibilidade infinita do espaço.
Mas está claro: 1) que a demonstração de Zenão é, ela
mesma, apenas um movimento de sua mente, o que lhe
envolve em uma contradição; 2) que ela repousa, como a
ideia de espaço que se atravessa, sobre uma análise do
movimento, o que é uma outra contradição; 3) que, ao
postular a divisão infinita, ele exige uma retrogradação
infinita, o que é uma terceira contradição.

16 - A filosofia do Progresso reconcilia sistemas


demonstrando que seus apotegmas todos repousam sobre
noções analíticas que são verdadeiras apenas na medida
em que estão associadas a outras noções que são
igualmente analíticas, mas diametralmente opostas, em
uma síntese comum; de modo que cada uma é verdadeira,
mas sob a condição de que o contrário também o seja.
Table of Contents
Apresentação
Prefácio
Primeira Carta: Da Ideia do Progresso
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
Segunda Carta: Da Certeza e de seu Critério
I
II
III
Notas

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