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múltiplos saberes
por marina colasanti
No dia 24 a escritora Marina Colasanti ministrou a conferência de sua capacidade leitora (embora a internet, ao oferecer já pronta a
abertura do Congreso Internacional Lectura 2013: para leer el XXI leitura “central” dos livros do cânone e daqueles mais requisitados
– Congresso Internacional de Leitura 2013: para ler XXI, em Havana, do momento, esteja dificultando grandemente essa avaliação).
falando sobre Múltiples lecturas: múltiples saberes. Segue a publi- Nos livros de literatura, porém, a leitura “central” não é a mais
cação do texto, cedido pela escritora especialmente ao Notícias. importante. O que dá valor ao livro literário é o conteúdo filosó-
fico, a análise de mundo, o estudo da alma humana que, muitas
Quando a organização me mandou este titulo, minha primeira vezes, não estão explicitados na história, mas estão por ela conti-
impressão foi de que não precisaria dizer mais nada. Estavam dos. É a leitura do não dito. Abre-se com ela, para o leitor, a pos-
aqui afirmadas as duas verdades fundamentais a respeito da lei- sibilidade de uma leitura individual, paralela àquela coletiva, mas
tura, as mesmas que há tantos anos nos esforçamos por difundir. conduzida por suas necessidades interiores e pelo momento que
Primeira, que a leitura se baseia na multiplicidade. ele atravessa. Quem é leitor sabe, ao ler pela segunda vez um livro
Segunda, que leitura é saber. já lido antes, fazemos dele outra leitura. Poderíamos parafrasear
Mas há sempre como ampliar uma conversa, e embora eu esteja a conhecida frase do filosofo espanhol Ortega Y Gasset: “Todo
começando já com o pé direito no estribo, falta ainda montar na homem é ele e suas circunstâncias”, dizendo: “Todo leitor é ele e
sela. E só no final saberemos se consegui algum galope. suas circunstâncias”.
Não deixa de ser surpreendente que uma atividade duplamen- Tomemos, por exemplo Madame Bovary, um livro que todos
te solitária seja, em sua essência, tão múltipla. A leitura é solitária nós conhecemos. A história, ou leitura “central”, nos fala de uma
ao nascer, porque o escritor escreve sozinho; e é solitária na frui- jovem mulher encharcada de leituras românticas, desejosa de
ção, porque o leitor lê sozinho – excetuados, é claro, os mais pe- amor e de glamour, que casada com um médico modesto e depa-
quenos. Mas como em um processo químico, a fusão dessas duas rando-se com uma vida acinzentada, vai buscar fora do casamen-
solidões gera um desdobramento quase celular, dando origem a to aquilo que deseja, caindo numa rede de dívidas e de fracassos
infinitas possibilidades. amorosos que acabará levando-a ao suicídio.
Ainda há poucos meses, em uma conferência na Amazônia, ao Todos os leitores do livro lêem esta mesma história.
falar de leitura, eu disse que cada leitor lê um livro à sua maneira, Mas as mulheres a lêem tomadas de empatia pela personagem
estritamente pessoal, como se de cada livro só existisse um exem- principal, quando não com identificação. Enquanto os homens,
plar. Depois, finda a conferência, o professor que havia organiza- ao contrario, a rechaçam. Pois se o próprio autor declarou em sua
do o congresso, amigo meu de longa data, veio me dizer discre- correspondência pessoal o mal que ela lhe fazia, levando-o até
tamente que minha afirmação era perigosa porque a escola tem a vomitar após escrever determinada passagem, como ficariam
tido problemas com isso. Baseados nessa “unicidade”, estudantes imunes a esse sentimento os seus leitores masculinos?
que leram precariamente o livro proposto em aula apresentam-se A leitora que vive um cotidiano rotineiro e um casamento pou-
ao professor com leituras estapafúrdias, alegando: “Esta é a mi- co saboroso enquanto olha novelas na TV e sonha com amores e
nha leitura”. A recusa, por parte do professor, dessa leitura-não compras em Paris, lerá o livro de uma forma. E a jovem executiva
-leitura é considerada antidemocrática pelos estudantes. independente, que tudo pode com seu cartão de crédito, o lerá de
Eu me referia, entretanto, a algo bem mais extenso do que aqui- outra. O psicanalista acompanhará na leitura o progredir daquela
lo que foi entendido. Certamente me expliquei mal naquela oca- neurose que viria a se chamar “bovarismo”, enquanto o cientista
sião. Aproveito, para explicar melhor agora. social lerá rastreando sua origem nas estruturas sociais da época.
Todo livro nos oferece como base uma leitura que podemos E, sobretudo, independente de interesses mais evidentes, cada
chamar “central”, igual para todos os leitores. É, basicamente, a lei- leitor se sentirá tocado por uma frase, uma descrição, um mo-
tura da história, dos fatos que a compõem, do arcabouço. É tam- mento que, naquele suceder-se de frases, descrições e momentos,
bém a leitura daquilo que está escrito e que, a não ser em casos lhe parece especialmente escrito para si, como se naquele ponto
específicos ou por determinação do próprio autor, costuma ser mais do que em qualquer outro o autor tivesse tomado a sua mão
bastante clara. Esta leitura é a que encontramos nas resenhas, e a e escrito o seu sentir.
que os professores querem ouvir dos estudantes para comprovar O que eu queria dizer, ao afirmar que cada leitor tem uma lei-