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Múltiplas leituras,

múltiplos saberes
por marina colasanti

No dia 24 a escritora Marina Colasanti ministrou a conferência de sua capacidade leitora (embora a internet, ao oferecer já pronta a
abertura do Congreso Internacional Lectura 2013: para leer el XXI leitura “central” dos livros do cânone e daqueles mais requisitados
– Congresso Internacional de Leitura 2013: para ler XXI, em Havana, do momento, esteja dificultando grandemente essa avaliação).
falando sobre Múltiples lecturas: múltiples saberes. Segue a publi- Nos livros de literatura, porém, a leitura “central” não é a mais
cação do texto, cedido pela escritora especialmente ao Notícias. importante. O que dá valor ao livro literário é o conteúdo filosó-
fico, a análise de mundo, o estudo da alma humana que, muitas
Quando a organização me mandou este titulo, minha primeira vezes, não estão explicitados na história, mas estão por ela conti-
impressão foi de que não precisaria dizer mais nada. Estavam dos. É a leitura do não dito. Abre-se com ela, para o leitor, a pos-
aqui afirmadas as duas verdades fundamentais a respeito da lei- sibilidade de uma leitura individual, paralela àquela coletiva, mas
tura, as mesmas que há tantos anos nos esforçamos por difundir. conduzida por suas necessidades interiores e pelo momento que
Primeira, que a leitura se baseia na multiplicidade. ele atravessa. Quem é leitor sabe, ao ler pela segunda vez um livro
Segunda, que leitura é saber. já lido antes, fazemos dele outra leitura. Poderíamos parafrasear
Mas há sempre como ampliar uma conversa, e embora eu esteja a conhecida frase do filosofo espanhol Ortega Y Gasset: “Todo
começando já com o pé direito no estribo, falta ainda montar na homem é ele e suas circunstâncias”, dizendo: “Todo leitor é ele e
sela. E só no final saberemos se consegui algum galope. suas circunstâncias”.
Não deixa de ser surpreendente que uma atividade duplamen- Tomemos, por exemplo Madame Bovary, um livro que todos
te solitária seja, em sua essência, tão múltipla. A leitura é solitária nós conhecemos. A história, ou leitura “central”, nos fala de uma
ao nascer, porque o escritor escreve sozinho; e é solitária na frui- jovem mulher encharcada de leituras românticas, desejosa de
ção, porque o leitor lê sozinho – excetuados, é claro, os mais pe- amor e de glamour, que casada com um médico modesto e depa-
quenos. Mas como em um processo químico, a fusão dessas duas rando-se com uma vida acinzentada, vai buscar fora do casamen-
solidões gera um desdobramento quase celular, dando origem a to aquilo que deseja, caindo numa rede de dívidas e de fracassos
infinitas possibilidades. amorosos que acabará levando-a ao suicídio.
Ainda há poucos meses, em uma conferência na Amazônia, ao Todos os leitores do livro lêem esta mesma história.
falar de leitura, eu disse que cada leitor lê um livro à sua maneira, Mas as mulheres a lêem tomadas de empatia pela personagem
estritamente pessoal, como se de cada livro só existisse um exem- principal, quando não com identificação. Enquanto os homens,
plar. Depois, finda a conferência, o professor que havia organiza- ao contrario, a rechaçam. Pois se o próprio autor declarou em sua
do o congresso, amigo meu de longa data, veio me dizer discre- correspondência pessoal o mal que ela lhe fazia, levando-o até
tamente que minha afirmação era perigosa porque a escola tem a vomitar após escrever determinada passagem, como ficariam
tido problemas com isso. Baseados nessa “unicidade”, estudantes imunes a esse sentimento os seus leitores masculinos?
que leram precariamente o livro proposto em aula apresentam-se A leitora que vive um cotidiano rotineiro e um casamento pou-
ao professor com leituras estapafúrdias, alegando: “Esta é a mi- co saboroso enquanto olha novelas na TV e sonha com amores e
nha leitura”. A recusa, por parte do professor, dessa leitura-não compras em Paris, lerá o livro de uma forma. E a jovem executiva
-leitura é considerada antidemocrática pelos estudantes. independente, que tudo pode com seu cartão de crédito, o lerá de
Eu me referia, entretanto, a algo bem mais extenso do que aqui- outra. O psicanalista acompanhará na leitura o progredir daquela
lo que foi entendido. Certamente me expliquei mal naquela oca- neurose que viria a se chamar “bovarismo”, enquanto o cientista
sião. Aproveito, para explicar melhor agora. social lerá rastreando sua origem nas estruturas sociais da época.
Todo livro nos oferece como base uma leitura que podemos E, sobretudo, independente de interesses mais evidentes, cada
chamar “central”, igual para todos os leitores. É, basicamente, a lei- leitor se sentirá tocado por uma frase, uma descrição, um mo-
tura da história, dos fatos que a compõem, do arcabouço. É tam- mento que, naquele suceder-se de frases, descrições e momentos,
bém a leitura daquilo que está escrito e que, a não ser em casos lhe parece especialmente escrito para si, como se naquele ponto
específicos ou por determinação do próprio autor, costuma ser mais do que em qualquer outro o autor tivesse tomado a sua mão
bastante clara. Esta leitura é a que encontramos nas resenhas, e a e escrito o seu sentir.
que os professores querem ouvir dos estudantes para comprovar O que eu queria dizer, ao afirmar que cada leitor tem uma lei-

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tura, é que não apenas o livro tem múltiplas folhas. O seu conteú- resistência, sobre suas reações na adversidade. E de um aprofun-
do também. E à medida que as atravessamos verticalmente, atin- damento na análise do poder e do seu exercício, da força e da
gimos camadas mais profundas nas quais nos orientamos usan- sujeição.
do, como um sonar, as identificações com nossas próprias cama- Certamente, esquecerei em breve grande parte do que li. É o
das internas. que sempre acontece comigo – não tenho memória suficiente
O mesmo acontece com as crianças, embora por terem me- para armazenar a biblioteca que compõe a minha vida. Mas o que
nos experiência tenham acumulado menos camadas. O menino conta não é apenas o tanto, ou o pouco, que conseguirei guardar,
que tem um parente – pai, padrasto ou tio- ameaçador, gordo ou e sim as ramificações que foram se abrindo em meu pensamen-
alto – e todos são altos para quem é pequeno- recebe histórias to aguçado pela leitura, como se o tempo todo ela me propusesse
de ogros de maneira diferente daquele que só tem modelos mas- questões, que a mim também cabe avaliar e tentar resolver.
culinos protetores. E é certo que, em qualquer família, os caçu- Impossível prever de antemão tudo o que um livro vai nos dar.
las ficam mais felizes que os irmãos, ao ouvirem ou lerem tantas Pois além da história, além dos dados, ele vai nos levar a um diá-
histórias dos Grimm em que o sucesso final cabe ao mais moço logo silencioso, uma espécie de complementação em que, agindo
e ao mais fraco. como um computador, nosso pensamento estabelecerá ligações
com o repertório interno e externo, armando uma rede que teria
Múltiplos saberes sido absolutamente imprevisível no início da leitura. Nessa rede
Se a leitura é múltipla, parece lógico que múltiplos sejam também acolhemos o saber.
os conhecimentos que extraímos dela.
Ando lendo, nesses dias, Os afogados e os sobreviventes (I som- Um terror e muitos olhares
mersi e i salvati), do italiano Primo Levi. Gosto de exemplificar Vamos sair da literatura em si, e falar de literatura infantil. Citei
com aquilo que estou lendo, porque a experiência leitora é ainda o livro de Primo Levi porque o estive lendo e porque nos remete
fresca, vibrante, sem sedimentação. Primo Levi escreveu seu pri- a um clima de terror, de brutalidade. Nesse clima, podemos fazer
meiro livro em 1947, É isto um homem?, só ganhando reconhe- uma correspondência e tratar de um dos contos mais espantosos
cimento mundial com a segunda edição, em 1958. Tratava-se do do repertório clássico da infância: “Barba Azul”.
doloroso relato de sua experiência como prisioneiro judeu em Todos conhecem esse conto, que portanto resumo aqui ao má-
Auschwitz. ximo. Um homem rico e sinistro, de barba azul e fama obscu-
O livro que estou lendo aborda o mesmo tema, embora por ra – diz-se que já matou várias esposas - quer casar. Pede a uma
outro ângulo. Com ele eu poderia aprender como se desenrola- Dama que lhe dê qualquer uma das suas duas filhas e, depois de
va o dia-a-dia do campo, qual a metodologia das câmaras de gás, hesitar, a caçula casa com ele. Com ele vai para o castelo. Em bre-
quem eram os assistentes dos SS na manutenção da disciplina fe- ve, ele lhe diz que precisa viajar, e lhe entrega todas as chaves da
roz, como era feita a triagem na chegada ao campo, como atu- casa. Faça o que quiser, convide a irmã, as amigas, divirta-se, mas
ava a organização clandestina de defesa dentro do lager. Tudo não abra a tal porta, com a tal chave. Ele se vai. Ela abre a porta.
isso, entretanto, eu já sei, li em outros livros, dele mesmo e de No espanto do que vê, a chave cai no sangue que cobre o chão,
outros autores. O que estou aprendendo nessa leitura é de outra vindo das esposas mortas pregadas nas paredes. E o sangue não
vertente. sai da chave, o sangue não sai. O marido volta, vê a chave man-
Aprendo com Levi a impossibilidade de julgar. Como julgar chada, pega a espada disposto a executar o castigo fatal. A irmã
alguém que se encontra em situações extremas, se nós mesmos olha do alto da torre para ver se os seus dois irmãos vêm a cavalo
não estamos nessas situações ou se, estando ou tendo estado, ain- socorrê-las. Barba Azul ergue a espada. A irmã olha novamente.
da assim não somos aquela pessoa, não temos nem o físico nem Ele agarra a esposa pelos cabelos. Os irmãos chegam e matam o
a psique daquela pessoa, e não podemos, portanto, saber o que vilão. Salva, ela herda todos os bens.
comanda suas ações? O primeiro a escrever este conto foi Perrault. Dizem, porém, os
Aprendo o conceito de “morte da alma”, que não é de Levi, mas estudiosos que não o inventou. Alguns acreditam que tenha ido
que ele cita “ninguém pode saber por quanto tempo, e a quais buscá-lo- na história, inspirando-se no terrível Gilles de Rais, no-
provas, sua alma resistirá antes de dobrar-se ou de quebrar”. bre bretão do séc. XV que, embora tendo lutado ao lado de Joan
Leio: “Todo ser humano possui uma reserva de forças cuja me- d’Arc, era brutal e assassino. Consta que tenha degolado crianças
dida lhe é desconhecida: pode ser grande, pequena ou nula, e só e cometido crimes contra 140 mulheres, pelo que acabou execu-
a adversidade extrema lhe permite avaliá-la”. tado. Para que seu nome não mais manchasse a honra da família,
Não pretendo elencar todos os saberes que vêm ao meu en- foi trocado pelo de um partisan inglês, Blue Barb ou Blue Beard.
contro à medida que avanço na leitura. Mas em seu conjunto tra- Dizem outros que a origem é mais longínqua e pode ser en-
ta-se de um estudo percuciente sobre o ser humano, sobre sua contrada na obra de São Gildas. O santo, que viveu entre o século

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V e VI, escreveu a história do nobre “Conomor, o amaldiçoado”, feminina redundou em calamidade para os outros e castigo para
outro sanguinário bretão. Tendo se casado com ele, a jovem aris- elas próprias.
tocrata Triphine é avisada pelos fantasmas das ex-esposas assas- Não farei aqui, em relação a este tema, a digressão feminista
sinadas quando grávidas, de que o marido a matará assim que ela que meu espírito solicita. Seja dito apenas que curiosidade é von-
engravidar. De fato, é o que acontece. Mas São Gildas a ressuscita. tade de saber, e a vontade de saber das mulheres sempre foi vista
Quando ele a leva de volta ao castelo de Conomor, as paredes to- como muito ameaçadora pelos homens.
das desabam e do castelo só restam ruínas. A versão de Perrault enfatiza somente a curiosidade. É ela o
Seja qual for a origem dessa história, ela visivelmente já esta- mote da moral que o autor colocou no final do conto. A incon-
va na boca do povo quando Perrault a colheu. E como a boca do trolável curiosidade feminina é também o ponto chave – e esta
povo desconhece fronteiras, também os Grimm a colheram de palavra “chave” se encaixa aqui com perfeição - da versão ale-
boca alemã, praticamente igual à de Perrault, e a incluíram no seu mã. Para as mulheres do século XXI, porém, o eixo desse conto
livro. Temendo, entretanto, tratar-se de uma tradução da versão não é a curiosidade feminina, e sim a prepotência e a brutalida-
francesa, a trocaram na segunda edição por outro conto mais ale- de masculina.
mão, “O pássaro estranho”.
De fato, a da primeira edição apresenta pouquíssimas diferen- O olhar feminino
ças, a principal sendo a ausência da irmã - quem grita no alto da A analista jungiana Clarissa Pinkola Estés é uma mulher do sé-
torre é a própria esposa ameaçada - e a quantidade de irmãos, que culo XXI. A leitura de “Barba Azul” que apresenta em seu livro
não são dois, mas um bando. No conto da segunda edição, entre- Mulheres que correm com os lobos é extensa e complexa. Ela iden-
tanto, temos um feiticeiro em lugar de Barba Azul, e três irmãs tifica o vilão como sendo o “predador natural da psique” e diz
sequestradas, uma de cada vez. As duas primeiras cedem à curio- ainda, “Barba Azul simboliza um complexo profundamente re-
sidade, e são assassinadas, a terceira, mais esperta, consegue res- cluso, que fica espreitando às margens da vida da mulher, obser-
suscitar as irmãs, matar o vilão, e incendiar a sua casa. vando, à espera de uma oportunidade para atacar.”
Mas, como bem se vê, a base da história é a mesma: um homem Seria demasiado longo transcrever a sua análise, mas dois pon-
monstruoso que mata suas esposas, uma interdição desrespeita- tos são expressivos.
da, e uma jovem que escapa a seu destino. Um, quando ela diz que a chave “é o acesso ao segredo que to-
De boca em boca, de caneta em caneta, esta história foi sen- das as mulheres conhecem, e ainda assim não conhecem”. Se le-
do reescrita em prosa, verso e música. Do século XVIII até o fi- varmos o sentido simbólico para a narrativa do conto, veremos
nal da década de 60, mais de 40 versões de qualidade haviam como no início é dito que uma das razões pelas quais as moças
sido registradas, e de lá para cá a lista só fez aumentar. Aos no- hesitavam em aceitar seu pedido era, além da tremenda barba
mes de Grétry, que compôs a musica para ópera de Sedaine, de azul, porque “ele já havia se casado com numerosas mulheres, e
Offenbach, autor de uma ópera buffa, de Maeterlick que escreveu não se sabia o que havia sido feito delas”. Não se sabia, mas se sus-
um drama, de Anatole France, autor de um conto em chave sa- peitava. Um perfeito segredo que se conhece e não se conhece.
tírica, e de Bela Bartok, autor de mais uma ópera, vieram se jun- O segundo ponto enfatizado por Pinkola Estés, é a ilusão de li-
tar na modernidade mais recente a inglesa Ângela Carter, o su- berdade que Barba Azul dá à esposa ao partir: divirta-se, diz ele,
íço Max Frish, a canadense Margareth Atwood, Kurt Vonnegut, convide suas amigas, leve-as a passear, abra todas as portas, vá
Alice Hoffmann, e até o famoso quadrinista e escritor inglês Neil aonde quiser. Toda essa liberdade destoa da única proibição e a
Gaiman. coloca em foco, tornando o pequeno gabinete fechado mais atra-
Cada um deles repetiu o percurso de Perrualt, colhendo a his- ente do que todas as riquezas abertas.
tória pré-existente e recriando-a através de uma nova leitura. A escritora Ângela Carter é uma mulher do século XX.
Feminista, grande estudiosa dos contos de fadas, até a hora da
A curiosidade castigada sua morte prematura trabalhou na finalização da sua segunda
A leitura mais óbvia é a que Perrault lhe imprimiu repetindo um coletânea de contos. É dela uma famosíssima versão do conto
antiqüíssimo preconceito: a da mulher curiosa, que por sua curio- que agora nos ocupa, “The Bloody Chamber”, considerada sua
sidade é castigada. A pobre moça do seu conto sequer é nomea- obra-prima.
da, mas está tão frenética para abrir a porta proibida, que nem O mesmo luxo e a mesma riqueza traçados por Perrault estão
consegue apreciar todas as riquezas que suas amigas e sua irmã, aqui recriados, mas tudo se passa no despontar do século XX. A
convidadas na ausência do marido, se comprazem em descobrir. noiva inocente veste Poiret e Woth, a esposa anterior foi retrata-
Ela as abandona e corre sozinha para meter a chave na fechadura. da por Puvis de Chavannes, o riquíssimo marido fuma charutos
Por isso, está só diante da cena macabra. Romeu e Julieta, tem ações na bolsa, coleciona livros raros de
De mulheres curiosas o mundo tem estado cheio desde que co- pornografia, cita Baudelaire. E embora sua barba não seja azul,
meçou, aliás, teria começado justamente por culpa da primeira ele é igualmente assustador.
e mais famosa de todas, Eva. Dali para a frente, povoaram mito- Carter, estudiosa de Sade e do masoquismo, não escreveu esse
logia e literatura. Pandora abriu a fatídica caixa, Psiché não re- conto pensando nas crianças, mas relembrando Poe e Shelley.
sistiu sem ver o rosto do amado. E todas as vezes, a curiosidade Um horror bem construído, com vasos de lírios esparsos no

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castelo e cheiro de incenso, em que a heroína avança menos as- Outra possibilidade levantada por ele seria uma traição sexual
sustada do que atraída, até usar a chave e dar com a sala proibida. perpetrada pela esposa na ausência de Barba Azul, que a levaria a
Uma sala de tortura - não se sabe até que ponto consentida - em fantasiar esposas assassinadas por idêntica culpa.
que o torturador conserva o corpo embalsamado de uma esposa, Uma terceira está na proibição estabelecida pelo marido - não
o crânio coroado de rosas brancas da outra, e o corpo ainda en- abra a tal porta - e na quebra dessa proibição, que faria do conto
sangüentado da terceira. uma fábula sobre a tentação da traição sexual.
Não há irmãos a galope, nem homens salvadores nessa versão. A quarta, que enfeixa as outras, faz deste conto uma advertên-
Carter não o permitiria. O único homem presente no castelo não cia sobre os aspectos destrutivos do sexo. Embora correndo ris-
pode salvar a moça, é cego. Quem vem a galope varando a noite, co de vida, a jovem esposa não procura ajuda nem foge porque,
saias presas na cintura, cabelos ao vento, é a mãe, que quando jo- tendo traído o marido, espera ainda que ele não o descubra. Ou,
vem matou um tigre na Indochina e agora matará a fera humana. então, porque o que ela viu no quarto foi tão somente a projeção
Mas a mancha de sangue que não saía da chave, ficará para de suas fantasias ansiosas.
sempre impressa na testa da moça, como um estigma, ou uma Entre todas essas possibilidades levantadas por Bettelheim, ne-
marca de infâmia. Só o homem cego, com quem ela se casa, não nhuma diz respeito à ferocidade assassina do marido. Todas gi-
a vê. ram em torno da culpabilidade da esposa.
Duas leituras femininas, duas leituras modernas em grande O segundo olhar masculino é o do escritor Anatole France, au-
parte resultantes do feminismo, e ainda assim, quase opostas no tor de um conto muito curioso, “As sete mulheres de Barba Azul”.
significado do núcleo central: o quarto proibido. As suas intenções, sem dúvida irônicas, estão claras já no come-
A chave que a jovem esposa está proibida de usar é, segundo ço: “Desde muito tempo eu já suspeitava que Barba-Azul era ví-
Pinkola Estés, “a única chave que a traria de volta à consciência”, tima de uma fatalidade semelhante. Todas as circunstâncias da
pois para as mulheres a chave é símbolo de conhecimento, e com sua vida, da forma como as encontrei narradas, estavam longe de
ela se abrem as portas secretas da psique. O quarto fechado seria contentar o meu espírito e de satisfazer esta necessidade de lógica
então a própria psique da heroína, o reduto onde está trancada a e de clareza que incessantemente me devora. As minhas reflexões
Mulher Selvagem, essência de toda mulher. encontravam ali dificuldades insuperáveis. Insistia-se muito em
Já para Ângela Carter, a recém-casada suspeita estranhos pra- fazer-me acreditar na crueldade desse homem, e isso aumentou
zeres porque encontrou um cartão da esposa anterior com escri- as minhas dúvidas. [...] Desde então, tomei como uma obrigação
to: “lembre-se sempre que ‘o único e supremo prazer do amor é pessoal escrever a sua verdadeira história, sem nutrir qualquer
a certeza de que se está fazendo mal’”. E vai percorrer longos cor- ilusão quanto ao sucesso de uma tal empresa.”
redores até o quarto proibido, achando que o marido quer man- É, este Barba Azul, um pobre marido amoroso cujas esposas
tê-lo só para si, para ali sentir-se solteiro, “Talvez houvesse semi desaparecem ou morrem de maneiras estranhas e praticamente
-imaginado que poderia encontrar-lhe o verdadeiro eu nessa ca- inaceitáveis, uma depois da outra. De todas, o viúvo lamenta o
verna”. O quarto proibido seria então o reduto dele, a sua psique, sumiço e chora a ausência. Enfim, um homem maltratado pelo
que ela quer conhecer. destino, e caluniado pelo mundo.
Não deixa de fazer sentido dentro da obra de Carter, autora de Conteúdo e ironia não deixam de ser reveladores. Aqui tam-
duas coletâneas de contos, The Virago book of fairy tales e The se- bém Barba Azul é inocente.
cond Virago book of fairy tales em que - como Andrew Lang que Não consegui encontrar, para ler, os dois contos de Neil
lhe serviu de inspiração - selecionou contos do folclore do mun- Gaiman. Sei, entretanto, que ele retoma Barba Azul a partir de
do inteiro. A diferença é que Carter escolheu somente contos que uma personagem da literatura inglês, Mr. Fox, um homem injus-
“giram ao redor de uma protagonista”, em que a mulher, boa ou tamente acusado de ter matado a esposa. A escolha desse injusti-
má, boba ou inteligente, está sempre “no centro do palco”. çado já nos dá uma idéia do posicionamento de Gaiman.
Vista nessa luz, a noiva de Barba Azul não é movida pela curio-
sidade, mas sim pela necessidade de agir, tomando a si o coman- A esposa obediente
do da situação. Pessoalmente, noto em Barba Azul mais um elemento sinistro,
que costuma passar desapercebido. É o fato de a interdição colo-
O olhar masculino cada pelo marido – você não deverá, em nenhuma circunstância,
Vimos o enfoque de duas mulheres, vejamos agora como dois abrir a tal porta – não ter nenhum intuito protetor, como tantas
homens lêem esse mesmo conto. vezes pretendem os maridos ao estabelecerem interdições. Muito
O primeiro, Bruno Bettelheim, é voz importantíssima na análi- pelo contrario, é posta ali como uma isca, para estimular a curio-
se dos contos de fadas. Para ele, há múltiplas possibilidades. sidade da esposa e levá-la a transgredir. Torna-se evidente que o
Uma delas seria o simbolismo da chave, que representa o ór- desejo daquele homem sedento de sangue é, desde o início, matar
gão masculino penetrando no quarto secreto. Seria, no caso do mais uma mulher.
conto, a primeira relação, com o sangue manando na ruptura do Nesse sentido, podemos até mesmo afirmar que a esposa não é
hímen. O sangue não pode ser lavado, porque o hímen não pode em absoluto desobediente. Pois debaixo da encenação com que o
ser reconstituído. marido proíbe o uso da chave, lateja evidente o pedido para que o

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faça, justificando assim sua própria morte. E é satisfazendo o de- Diz Perrault nas primeiras linhas de Barba Azul: “Era uma vez
sejo oculto mas imperioso do marido que ela abre a porta. um homem que tinha lindas moradas no campo e na cidade, bai-
xela de ouro e de prata, móveis estofados com bordados, e carro-
Finais e começos ças todas douradas: mas, infelizmente, esse homem tinha a Barba
De todas essas leitura que vimos, nenhuma é igual à outra – e azul: isso o tornava tão feio e tão terrível que qualquer mulher ou
certamente demos apenas a mínima amostra possível dentro das mocinha fugia ao vê-lo.” Estão aí contidas a riqueza que atrai, a
nossas limitações de tempo. feiúra que assusta, o lado terrível da personagem, e o segredo –
Vamos voltar então à questão da multiplicidade e da esco- pois uma barba azul é puro mistério inexplicado. Sete linhas de-
la, levantada pelo professor meu amigo após a conferência na pois, Perrault fala nas esposas desaparecidas. O final medonho
Amazônia. está a caminho.
Tenho me deparado constantemente com uma prática esco- A leitura é múltipla e ao mesmo tempo individual, mas não
lar, aplicada sobretudo no ensino fundamental que, visando es- pode fugir à coerência.
timular a capacidade criativa e a multiplicidade de leituras, soli-
cita às crianças a escrita de novos finais, pessoais, para histórias Uma versão a mais
preexistentes. E já que falamos tanto em leituras individuais, vou personalizar
Acabo de receber algo semelhante, que pode nos ser útil. Uma essa conversa por um instante e dar a minha própria versão de
menina francesa de aproximadamente 10 anos, Delphée, residen- Barba Azul. Não se assustem, estamos adiantados na hora e por-
te na ilha La Reunion e neta de uma amiga minha, em agradeci- tanto será apenas uma sinopse.
mento pelos meus contos, de que é leitora, me enviou uma sua Tudo começa como no conto clássico, a mocinha casa e vai
recriação de Chapeuzinho Vermelho. para o castelo, o marido avisa que precisa viajar e lhe entrega as
No seu “O chapeuzinho preto”, Chapeuzinho sai de casa para chaves proibindo o uso da menor de todas. Mas a esposa desta
ir à casa da avó e encontra o lobo. Mas a fera começa a chorar, minha versão não é nenhuma tonta, é a mais esperta das duas ir-
diz que está farto de ser o mau da história, não agüenta mais de- mãs, e intui algo estranho nas recomendações excessivas do ma-
vorar as duas. Pede à menina, então, que assuma o papel de má. rido. Olha por uma janela enquanto a carruagem dele se afasta e
Ela hesita, mas acaba aceitando, e vai à casa da avó para devo- pensa, com um sorriso, que ela não cairá na armadilha. Afinal, ao
rá-la. A avó não se submete de jeito nenhum, diz que é gorda aceitá-lo como esposo, o fizera consciente das lendas sobre sua
demais para ser devorada pela menina. Estão discutindo, quan- fama de assassino.
do chega o lobo, e oferece uma solução: visto que Chapeuzinho O marido regressa bem antes do combinado. Pede as chaves de
não pode ser a má, que passe então o papel para a avó, mais as- volta, e não consegue evitar uma expressão de surpresa ao recebê
sustadora e de dentes já quebrados. O lobo ficaria sendo bonzi- -las todas limpas. Por que, pergunta-se ele, a esposa não abriu o
nho, Chapeuzinho passaria a ser a avó, e a avó se tornaria lobo quarto? Intrigado, inventará em breve outra viagem, e tudo se re-
mau. Mas a avó novamente se recusa, não quer comer um ser petirá da mesma maneira. O homem fareja a ironia por baixo da
humano. Os três brigam, o lobo vai embora para a sua caverna, falsa obediência da esposa, e se enche de suspeitas; que mulher
Chapeuzinho volta para a casa da mãe, e a avó pendura um car- é esta? A chave tornada inútil perde seu valor, o homem sente o
taz diante da porta: “Livro fechado por causa de briga!!”. cetro escapar-lhe da mão. Progressivamente a situação se inver-
Ao modificar os papéis das personagens, tornou-se impossível te, ela que nada tinha, tem agora um segredo através do qual o
para a pequena autora organizar a história e conduzi-la a um fi- manipula; ele, que havia começado dono da situação, está agora
nal que fizesse sentido com o que havia sido narrado até então. A à sua mercê. Barba Azul já não quer matá-la, – nem teria justifi-
única solução foi “fechar” o livro. cativa para fazê-lo – quer descobrir quem ela é. Aplica-se em se-
É o mesmo equívoco em que incorre a prática escolar da rees- mear sua vida de artimanhas que a façam ceder. Inutilmente. O
critura do final: dá a entender à criança que qualquer final serve, segredo do quarto, que ela rejeita, vai sendo esquecido. Com o
anulando com isso o conceito de organização da história. Em um tempo, a barba antes azul se faz cinzenta, na porta que ninguém
bom conto, porém, assim como em um bom romance, o final co- abriu espessam-se teias de aranha. Cintilam os olhos da esposa
meça a ser estruturado desde o começo e, se modificado, torna que breve será viúva. Do alto da torre, a irmã anuncia a chegada
necessário alterar toda a estrutura narrativa. dos irmãos que vêm para o almoço.

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