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Representações sobre

a docência: a construção
da identidade profissional
Maria Heloísa Aguiar da Silva
Os professores vivem tempos difíceis e paradoxais.
Apesar das críticas e das desconfianças em relação
às suas competências profissionais, exige-se-lhes quase tudo.
Temos de ser capazes de pensar nossa profissão.

Antonio Nóvoa

Começando o diálogo
Refletir sobre a docência no Ensino Superior é um desafio que acompanha
a expansão quantitativa desse nível de escolaridade. Assistimos, na última
década do século XX, a um crescimento vertiginoso das vagas nas univer-
sidades. O sonho de se graduar em um curso universitário tornou-se uma
realidade para um número cada vez maior de pessoas.

Essa nova realidade gerou um aumento da demanda para o Ensino Su-


perior que o levou a profissionalizar o seu corpo docente quanto ao aspecto
pedagógico.

Aqui pretendemos apresentar algumas questões para a reflexão sobre


esse desafio profissional que se apresenta a um pós-graduado, ou seja, pre-
parar-se para a docência universitária.

Há uma representação muito negativa em relação à atividade profis­


sional do professor, gerando inclusive uma rejeição à docência. Por que isso
acontece?

O que caracteriza a docência no Ensino Superior? O que a diferencia da


docência na educação básica? Responder a essas questões iniciais é o objeti-
vo central dessa aula. Para tanto, será necessário trilhar alguns caminhos.
Docência no Ensino Superior

Ser professor universitário:


ambiguidades e conflitos
O que é ser professor?

Se buscarmos uma definição objetiva, encontraremos descrições como


“professor é aquele que ensina”. No dicionário, é possível obter a seguinte de-
finição: “aquele que professa ou ensina uma ciência, uma arte, uma técnica,
uma disciplina, um mestre” (HOUAISS, 2008). Segundo uma definição legal,
professor é o profissional habilitado a lecionar.

Contudo, se fizermos a mesma pergunta a alguns professores a partir da


mesma questão, obteremos outros tipos de respostas tais como: “professor é
aquele que prepara o amanhã”, “um eterno sofredor”, “um abnegado”, “um ser
paciente”, entre outras.

Se indagarmos os alunos, é possível obter respostas como: “aquele que se


compraz em nos reprovar”, “aquele que nos prepara para a vida”, “aquele que
trabalha muito e ganha pouco”.

Cabe fazer aqui uma primeira distinção: temos diferentes respostas para
uma única questão. Por que isso acontece? Em primeiro lugar, é preciso dis-
tinguir definição e representação.

No dicionário, encontramos definições para diversos tipos de palavras, ou


seja, encontramos o significado dos termos, “aquilo que são”. Por isso, os si-
nônimos da palavra professor indicam um caminho, uma compreensão do
significado da profissão docente.

Porém, a discussão ficará limitada se nos ativermos apenas a essa defini-


ção. Para avançarmos um pouco mais nessa discussão, devemos compreen-
der o sentido das representações, isto é, “modos de ver” a profissão docente,
que são baseados em interpretações de vivências e experiências. Isso signi-
fica dizer que a maneira como eu compreendo uma determinada questão
depende das experiências que tive, do lugar que ocupo na sociedade, das
influências que recebo. Por isso encontramos representações diversas sobre
a docência, tanto positivas como negativas. O cuidado a ser tomado é não
substituir a representação pela definição e compreender a representação
no seu contexto de produção. A docência possui uma definição objetiva e
clara que explica o sentido da ação docente. Mas é necessário compreender
também os diferentes modos de ver essa profissão e entender como isso in-
terfere na sua imagem social.
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Representações sobre a docência: a construção da identidade profissional

Segundo Arroyo (2000), a profissão docente se constitui também como


um ofício construído artesanalmente, a partir de experiências concretas.
Tornamo-nos professores no exercício cotidiano da docência. Não nascemos
prontos para o exercício do magistério, nem predestinados a sermos profes-
sores, como muitos já acreditaram.

No curso superior, recebemos as primeiras orientações para o exercício


profissional, mas essa formação se complementa no cotidiano da sala de
aula. Ao exercemos o nosso ofício, construímo-nos como profissionais. A
ação docente ultrapassa os limites da sala de aula e interfere na nossa con-
dição humana, marcando-nos profundamente como pessoas e profissionais
porque
Somos professores, somos professoras. Somos, não apenas exercemos a função docente.
Poucos trabalhos e posições sociais podem usar o verbo ser de maneira tão apropriada.
Poucos trabalhos se identificam tanto com a totalidade da vida pessoal. Os tempos de
escola invadem todos os outros tempos. (ARROYO, 2000, p. 27)

Contudo, isso também gera um desconforto, pois há que se buscar um


equilíbrio que permita construir o distanciamento necessário. Há, hoje, uma
vasta literatura (ARROYO, 2000; NÓVOA, 1995b; ESTEVE, 1999) que aponta
para a existência de uma crise de identidade entre os professores. O que ca-
racteriza essa crise? É facilmente identificado um quadro atual de insatisfação
profissional, gerado pelos baixos salários, a violência, a indisciplina e o este­
reótipo depreciativo em relação à docência.

Segundo Nóvoa (1995b), essa crise está associada à sobrecarga de traba-


lho que, atribuída ao professor, ultrapassa a ação pedagógica de sala de aula,
a relação de ensino e aprendizagem e passa a exigir o desempenho de tarefas
burocráticas tais como o preenchimento de fichas, relatórios, entre outras.
Isso leva o professor a um afastamento do cerne do seu trabalho (que deve
ser essencialmente criativo e autônomo), conduzindo-o a uma situação para-
doxal, uma vez que seu trabalho se torna alienado. Assim sendo, ele fica im-
possibilitado de refletir sobre sua ação, que se torna mecânica e repetitiva.
A crise de identidade dos professores, objeto de inúmeros debates ao longo dos últimos
vinte anos, não é alheia a esta evolução que foi impondo uma separação entre o eu
pessoal e o eu profissional. A transposição dessa atitude do plano científico para o plano
institucional contribui para intensificar o controle sobre os professores, favorecendo o seu
processo de desprofissionalização. (NÓVOA, 1995b, p. 15)

A profissionalização docente continua como um processo a ser conquis-


tado, pois essas situações transformam o docente em um mero executor, de-
sempenhando uma ação técnica e não reflexiva. Contudo, o autor nos indica
uma saída ao buscar no próprio significado do termo crise uma possibilidade
de superação. Devemos entendê-la “na sua acepção original (krisis = decisão),
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Docência no Ensino Superior

assumindo-a como um espaço para tomar decisões sobre os percursos de


futuro dos professores” (NÓVOA, 1995a, p. 23).

Seria este um momento de reflexão sobre os rumos dessa profissão nesse


início de século, em que tantos desafios se colocam à sociedade. É comum
ouvirmos afirmações que caracterizam este momento, o da virada do milênio,
como a “era do conhecimento”, a “sociedade da informação”. Essas afirmações
baseiam-se, antes de tudo, no acesso que temos a uma quantidade sem fim
de informações com uma velocidade sem comparações em qualquer outro
período do desenvolvimento da humanidade. Isso gera uma nova demanda
para a escola como a instituição reconhecida socialmente como aquela que
tem por finalidade educar e, por consequência, também há uma nova de-
manda para o professor, que viabiliza essa missão da escola.

Contudo, a competência desse profissional está sempre em cheque. Por


muitas vezes, o professor é visto como o bode expiatório de todos os proble-
mas educacionais. Isso destaca sua importância, porém por vias tortas. Ao
mesmo tempo em que encontramos imagens idealizadas desse profissional
como um “salvador da humanidade”, também nos deparamos com imagens
que o depreciam.

Apresenta-se então mais um elemento dessa crise de identidade: quem


somos nós?
Volto à pergunta que nos persegue: quem somos? Dominando competências mudaremos
a imagem? Um ponto de partida para responder estas perguntas poderia ser este:
somos a imagem que fazem do nosso papel social, não o que teimamos ser. Teríamos de
conseguir que os outros acreditem no que somos. Um processo social complicado, lento,
de desencontros entre o que somos para nós e o que somos para fora. Entre imagens e
autoimagens. É frequente lamentar que não somos socialmente reconhecidos. Mas como
se constrói o reconhecimento social de uma profissão? Repito, seria um bom ponto de
partida: somos a imagem social que foi construída sobre o ofício de mestre, somos as
formas diversas de exercer esse ofício. Sabemos pouco sobre nossa história. Nem nos
cursos normais, de licenciatura e pedagogia nos contaram quanto fomos e quanto não
fomos. O que somos? (ARROYO, 2000, p. 29)

Segundo Arroyo, responder a essa questão seria um bom ponto de par-


tida para entendermos os rumos dessa profissão. Para isso, o autor faz uma
distinção entre imagens e autoimagens, ou seja, o que somos para os outros
(imagens) e o que somos para nós (autoimagens).

As representações (imagens) acerca da profissão são diversas e históri-


cas, são modelos construídos nos mais diferentes espaços, são heranças que
carregamos.

O professor é obrigado, muitas vezes, a conviver com imagens negativas


acerca da sua profissão e isso tem gerado um sentimento de rejeição à do-
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Representações sobre a docência: a construção da identidade profissional

cência. Pesquisas apontam para uma crescente tendência de abandono da


profissão e diminuição do ingresso dos jovens nos cursos de licenciatura, que
correspondem à formação inicial para a docência.

Vejamos a reportagem abaixo, resultado de uma pesquisa realizada pelo


Ministério da Educação (MEC) em 2003:

Apagão na educação –
professor foge da sala de aula
(ARCE, 2003)

MEC identifica falta de 250 mil profissionais nas escolas do país. Baixos
salários e más condições de trabalho são apontados como causas.

Sem merenda, sem infraestrutura e sem o ingrediente principal: pro-


fessor. Um levantamento do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais do Ministério da Educação (Inep/MEC) identificou a falta de
250 mil professores de 5.ª a 8.ª séries e de Ensino Médio nas escolas de
todo o país, prejudicando cerca de 23 milhões de estudantes. As áreas
mais carentes são física e química, que daqui a dez anos ainda terão um
déficit de 40 mil profissionais. Em muitas disciplinas, como matemática,
não faltam vagas no Ensino Superior para formar professores habilitados,
porém os recém-formados aposentam o diploma e preferem outros em-
pregos. Baixos salários e condições de trabalho desestimulantes são os
problemas que afugentam os mestres. Estamos à beira de um apagão nas
escolas, classifica o secretário de Educação Média e Tecnológica do MEC,
Antônio Ibañez, comparando a situação do ensino à crise de fornecimen-
to de energia elétrica que assolou o país em 2001.

De acordo com o estudo, para atender a demanda atual são necessários


235 mil professores no Ensino Médio e 476 mil nas turmas de 5.ª a 8.ª séries,
num total de 711 mil docentes. Mas nos últimos anos formaram-se 457 mil
profissionais nos cursos de licenciatura, que habilitam professores para o
magistério. Com isso, o déficit é de cerca de 254 mil professores, quase 90
mil deles apenas para língua portuguesa. As vagas têm sido preenchidas
de forma precária, com professores não habilitados para a função e proce-
dentes de outras áreas, sem a formação necessária para ensinar, como os
engenheiros que assumem as aulas de física, matemática e química sem
conhecimentos de didática. Além disso, os professores chegam a trabalhar
nos três turnos para suprir a demanda.
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Docência no Ensino Superior

Podemos observar que em 2003 se desenhava um quadro caótico em re-


lação ao futuro da docência em nosso país. Como reverter esse quadro? As
políticas públicas se ocupam de ações de formação docente para suprir essa
demanda, tais como cursos a distância, contratação emergencial de profis­
sionais de outras áreas, entre outras. Porém, é necessário pensar sobre os mo-
tivos que geram essa crise e não se ater a situações que visam atingir apenas
as consequências.

O professor universitário goza de um status profissional um pouco di-


ferenciado, uma vez que, em geral, essa seria a sua segunda profissão. Na
graduação, ele obtém um título profissional – dentista, advogado, engenhei-
ro – e, após concluir uma pós-graduação, torna-se também um professor
universitário.

Em uma sociedade em que a educação ainda é tratada como um privilé-


gio, ter mais de um título profissional, obtido no ensino superior, confere ao
seu portador um respeito intelectual, gerando assim o status profissional di-
ferenciado em relação ao professor da Educação Básica. Contudo, o professor
universitário não está imune à desvalorização profissional do docente, assim
passando a viver, uma ambiguidade. Ele está sujeito a todas as dificuldades e
angústias dessa profissão e acrescenta-se ainda o fato de, muitas vezes, não
se sentir preparado para o exercício da docência universitária.

Cinema e literatura:
desvelando o estereótipo depreciativo
Precisamos compreender o que tem levado a esse processo de rejeição
da docência. A história da profissão docente está associada a diferentes ima-
gens, que oscilam entre a grandiosidade e a mitificação, de um lado, e o des-
prezo e depreciação de outro.

Essas imagens são de diferentes maneiras, construídas a partir das expe­


riências e vivências que se colocam diante de nós pelas mais diversas vias.
São modelos construídos socialmente que passam a configurar nosso modo
de ver a profissão.

Muitas vezes, ouvir de um aluno expressões como: “Nossa, você não parece
uma professora!”, remetemo-nos a uma reflexão sobre qual parâmetro esse
aluno usou para chegar à conclusão de que alguém parece ou não uma pro-

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Representações sobre a docência: a construção da identidade profissional

fessora. Ele partiu de um modelo, uma representação. Essas representações


estão presentes na música, nas novelas, nos comerciais de TV, na literatura,
no cinema, entre outros.

O cinema e a literatura serão aqui usados como exemplos de construção e


divulgação de imagens acerca da profissão docente. Quantos personagens de
filmes ou livros que conhecemos são professores? Inúmeros. Podemos lem-
brar com facilidade da melodia que tocava ao fundo no filme Ao Mestre com
Carinho, que influenciou gerações inteiras e ainda é uma referência presente.

Em geral, no cinema e na literatura as imagens de professores são ma-


niqueístas: ora é o carrasco, autoritário, sarcástico, que se compraz das difi-
culdades de seus alunos; ora é o herói, salvador da humanidade, abnegado,
totalmente dedicado.

Esses filmes e livros contribuíram para que nós construíssemos imagens


acerca do que é ser um bom ou um mau professor. Como professores, nosso
imaginário é perpassado de imagens metafóricas,
[...] funcionando como elementos de adesão ou de rejeição, que configuram distintos
modelos profissionais. A linguagem metafórica está impregnada de projetos educativos,
sendo utilizada para demarcar posições e para definir atitudes face à profissão. Desde as
metáforas mais agressivas do domesticador ou do escultor, até as metáforas mais doces do
companheiro ou do jardineiro, eis um imenso universo de imagens que nos permite contar
todo o passado e todo o presente dos professores. (NÓVOA, 1995b, p.13)

O uso dessas metáforas contribui para a fixação de modelos a serem re-


produzidos, sendo comum ainda hoje se referir ao professor como “escultor”,
“jardineiro”, entre outras. Dom, sacerdócio, abnegação e vocação são caracte-
rísticas muito associadas à imagem do professor, sendo reforçadas pela litera-
tura e pelo cinema. Vamos observar alguns exemplos dessas manifestações.

Cecília Meireles, educadora, jornalista e poeta formou-se pela Escola


Normal, no Rio de Janeiro em 1917. Em 1923, ela escreve Criança Meu Amor1,
em que demonstra sua preocupação com a infância. Porém, em um dos seus
“Mandamentos”, destaca-se a figura da professora:
I – Devo amar a escola como se fosse meu lar.

II – Devo amar e respeitar a professora, como se fosse minha mãe.

III – Devo fazer dos meus colegas meus irmãos.

[...]

1
Criança Meu Amor é um livro de literatura infantil publicado em 1924, quando a autora tinha apenas 23 anos. O livro foi adotado nas escolas
do Rio de Janeiro, Pernambuco e Minas Gerais nas décadas de 1920 e 1930.

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Docência no Ensino Superior

II – Durante o dia todo, a professora pensa em mim, pensa no que sou, pensa no que hei
de ser.

Ela deseja ver-me instruído e bom; e para isso trabalha. Não conhece cansaço, porque não
tem tempo de descansar. Não conhece doenças, porque não pode adoecer. Quem zelaria
por nós?

Não conhece diversões. Que tempo de se divertir, se ela vive pensando em nós, se ela vive
para nós, unicamente para nós!

A professora é a minha proteção e o meu guia. Devo amá-la e respeitá-la como se fosse
também minha mãe. (MEIRELES, 1924, p. 68)

A professora apresentada neste trecho é abnegada, não tem vida própria,


é quase um ser superior, afastada das situações terrenas. Essa professora, to-
talmente entregue aos seus alunos, era cultuada nos “Mandamentos”.

Em seu livro Coração: diário de um aluno, Edmundo de Amicis (1997) des-


creve seus professores. Observemos a diferença ressaltada entre o professor
e a professora:
[...] o nosso professor é alto, sem barba, com os cabelos grisalhos e compridos, tem uma
ruga na testa; tem a voz grossa, e olha-nos fixamente, um depois do outro, como para ler-
-nos no íntimo; e nunca ri [...] É sempre a mesma, pequena, com o seu véu verde em volta
do chapéu, vestida modestamente, com um penteado simples, pois não lhe sobra muito
tempo para adornar-se; está um tanto mais descorada do que no ano passado, com alguns
cabelos brancos, e uma tosse que não a deixa nunca [...]. (AMICIS, 1997, p. 10, 17)

O professor é descrito como uma figura severa, sisuda, forte, enquanto a


professora aparece como pessoa frágil, de vestes modestas, além de adoen-
tada. São muitos os exemplos desta oposição de gêneros na construção de
imagens de professores.

Assim, as noções de sacerdócio, dom e abnegação anunciadas anterior-


mente estão presentes em uma memória sobre a profissão docente. Em
grande medida, isso pode ser explicado pelo viés religioso, pois a própria
terminologia advém da Igreja. Contudo, isso adquire um sentido ainda mais
forte quando se refere fundamentalmente às mulheres. Como explica o estu-
dioso da área:

A partir de então passam a ser associadas ao magistério características tidas como


“tipicamente femininas”: paciência, minuciosidade, afetividade, doação. Características
que, por sua vez, vão se articular à tradição religiosa da atividade docente, reforçando
ainda a ideia de que a docência deve ser percebida mais como um “sacerdócio” do que uma
profissão. Tudo foi muito conveniente para que se constituísse a imagem das professoras
como “trabalhadoras dóceis, dedicadas e pouco reivindicadoras”, o que serviria futuramente
para lhes dificultar a discussão de questões ligadas a salário, carreira, condições de trabalho
etc. (LOURO, 1997b, p. 450)

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Representações sobre a docência: a construção da identidade profissional

Ainda hoje, o magistério é uma profissão majoritariamente ocupada por


mulheres, quadro que se reflete no cinema e na literatura que contam as his-
tórias de normalistas e mestres.

No cinema, observamos a ênfase do mito do professor-herói. Há alguns filmes,


em geral hollywoodianos, em que se narra a história de um professor chegando
a uma escola, em geral localizada em um gueto norte-americano, em que con-
vivem todos os estereótipos de exclusão social, tais como indivíduos negros e
hispânicos, a violência, a gravidez na adolescência, dentre outros. Ao longo
da narrativa, esses filmes mostram que a força e a determinação dos profes-
sores – que muitas vezes são rígidos – “salva” a todos, dando um novo rumo à
vida dos alunos. Cabe ressaltar que, se o filme retratar uma professora, muitas
vezes ela conquista a classe com a ternura. Ao final, depois de vencer todos os
contratempos, o professor sai vitorioso, um verdadeiro herói.

Contudo, ao sairmos das salas de cinema e nos depararmos com a reali-


dade, percebemos que as mudanças não ocorrem de forma mágica, como se
fosse apenas uma questão de determinação. O mito do professor-herói tem
colaborado para a construção de uma onipotência entre os professores, fa-
zendo-os acreditarem que são responsáveis por todas as mudanças da socie-
dade. Ao não conseguirem realizá-las, por causa das condições reais impostas
pelo exercício de sua própria profissão, eles desenvolvem um sentimento de
impotência e frustração.

O que é o burnout
A crise de identidade vivida atualmente pelos professores tem sido levada
a situações extremas, tal como o desenvolvimento da síndrome de burnout,
cada vez mais comum entre esses profissionais. Esse distúrbio se caracteriza
pela desmotivação, ou melhor, pela “perda do brilho” e pela desistência pro-
fissional, como veremos a seguir.

A síndrome do burnout
(CANTONE, 2006)

O termo burnout é uma composição de burn = “queima” e out = “exte-


rior”, sugerindo assim que a pessoa com esse tipo de estresse consome-
-se física e emocionalmente, passando a apresentar um comportamento
agressivo e irritadiço.

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Docência no Ensino Superior

Tal síndrome se refere a um tipo de estresse ocupacional e institucional


com predileção para profissionais que mantêm uma relação constante e
direta com outras pessoas, principalmente quando esta atividade é con-
siderada de ajuda (médicos, enfermeiros, professores).

A síndrome de burnout é definida como uma reação à tensão emocio-


nal crônica gerada a partir do contato direto, excessivo e estressante com
o trabalho. É caracterizada pela ausência de motivação ou desinteresse;
mal-estar interno ou insatisfação ocupacional que parece prejudicar, em
maior ou menor grau, a atuação profissional de alguma categoria ou
grupo profissional.

É apresentada como formas de condutas negativas, como por exem-


plo, a deterioração do rendimento, a perda de responsabilidade, atitudes
passivo-agressivas com os outros e perda da motivação, onde se relacio-
nariam tanto fatores internos, na forma de valores individuais e traços de
personalidade, como fatores externos, na forma das estruturas organiza-
cionais, ocupacionais e grupais. Podemos dizer que é uma resposta ao es-
tresse ocupacional crônico. A síndrome de burnout pode trazer sérias con-
sequências não só do ponto de vista pessoal bem como institucional; é o
caso do absenteísmo, da diminuição do nível de satisfação profissional,
aumento das condutas de risco, inconstância de empregos e repercussões
na esfera familiar.

Alguns autores a definem como uma das consequências mais marcan-


tes do estresse profissional, onde se destacam a exaustão emocional, ava-
liação negativa de si mesmo, depressão e insensibilidade com relação a
quase tudo e todos (até como defesa emocional).

Inicialmente, a síndrome foi observada em profissionais que estavam


predominantemente em contato interpessoal mais exigente, tais como
médicos, psicanalistas, carcereiros, assistentes sociais, comerciários,
professores, atendentes públicos, enfermeiros, funcionários de departa-
mento pessoal, telemarketing e bombeiros. Atualmente as observações
já se estendem a todos profissionais que interagem de forma ativa com
pessoas, que cuidam e/ou solucionam problemas de outras pessoas, que
obedecem técnicas e métodos mais exigentes, fazendo parte de organi-
zações de trabalho submetidas a avaliações.

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Representações sobre a docência: a construção da identidade profissional

Entre os fatores aparentemente associados ao desenvolvimento da sín-


drome de burnout está a pouca autonomia no desempenho profissional,
problemas de relacionamento com as chefias, problemas de relaciona-
mento com colegas ou clientes, conflito entre trabalho e família, senti-
mento de desqualificação e falta de cooperação da equipe.

A síndrome de burnout se difere do estresse; envolve atitudes e condu-


tas negativas com relação aos usuários, clientes, organização e trabalho,
enquanto o estresse apareceria mais como um esgotamento pessoal com
interferência na vida do sujeito e não necessariamente na sua relação
com o trabalho.

Ao longo do desenvolvimento da história da profissão, temos convivido


com inúmeros paradoxos. De um lado, discursos que glorificam a profissão,
sempre bem representados no cinema. Em contrapartida, encontramos ima-
gens depreciativas que apresentam o professor como o bode expiatório de
todos os problemas educacionais. Esse excesso de missão, aliado às inúmeras
desconfianças em relação ao docente, leva muitos professores a desenvolve-
rem essa doença profissional. Isso exige do docente um momento de refle-
xão sobre o seu futuro profissional.

Memória, autobiografia
e histórias de vida
Como uma possibilidade concreta de pensar sobre a profissão docente,
alguns teóricos têm desenvolvido o método autobiográfico de formação con-
tinuada que consiste em refletir sobre o processo pelo qual ele se tornou pro-
fessor, ou seja, sobre o desenvolvimento de seu próprio processo identitário.

O professor é estimulado a pensar sobre a sua trajetória escolar como


aluno e posteriormente como professor, buscando suas influências, identi-
ficando suas escolhas e refletindo sobre elas. A questão fundadora deve ser
“Como eu me tornei o professor que eu sou hoje?”. Essa questão o remete a
outra, anterior: “Que professor eu sou?”

Para responder a tais questões, ele deve refletir sobre suas práticas, a in-
tencionalidade do ato educativo, seus valores, suas crenças, ou seja: o seu de-
senvolvimento profissional está associado ao seu desenvolvimento pessoal.

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Docência no Ensino Superior

Esse movimento ganhou força no Brasil a partir dos anos de 1990, muito
influenciado por produções europeias como a do destacado educador portu-
guês Antonio Nóvoa (1995b). O uso que esse autor faz de algumas narrativas
de professores e de certos relatos autobiográficos permite que se compreen-
da como o professor pode construir sua autoimagem influenciado pelos anos
de exercício de magistério. Como afirma este autor, essa espécie de balan-
ço deve ser feita por todos os professores para que compreendam sob uma
perspectiva mais ampla a lógica que há subentendida em todo seu processo
de formação.

Portanto, em sua obra, Nóvoa (1995b) nos convida a pensar sobre as nossas
próprias questões e propõe a construção de um profissional reflexivo, que
rejeita as metáforas identitárias a que muitos docentes se submetem. Para
descobrirem quem realmente são, os professores não devem buscar amparo
em um discurso de valorização profissional de outras épocas. De acordo com
as palavras do educador português:
A defesa de uma maior autonomia do professorado não se baseia numa qualquer visão
nostálgica da profissão docente, isto é, numa tentativa de reconquista de um qualquer
“paraíso perdido”. Bem pelo contrário, esta defesa é uma aposta de futuro, que anuncia o
fim de um ciclo na história da profissão docente, um ciclo marcado pela subordinação do
professorado a outras instâncias e a outros grupos sociais. (NÓVOA, 1991, p. 528)

De acordo com essa passagem, nota-se que para a construção da identi-


dade docente não basta ir em busca do suposto “paraíso perdido”, mas sim
identificar em um passado recente um momento de valorização profissional.
Para o autor, não devemos separar o eu pessoal do eu profissional. Devemos
sim observar como eles se influenciam mutuamente: “diz-me como ensinas,
dir-te-ei quem és”. E vice-versa.

Podemos dizer então que o método autobiográfico é:

instrumento de reconstrução da identidade individual;

lugar de lutas e conflitos;

maneira de ser e estar na profissão;

construção da memória social da categoria;

instrumento de análise e reflexão;

proposta de intervenção para rever a prática docente.

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Representações sobre a docência: a construção da identidade profissional

Ao trabalharmos com relatos pessoais escritos por professores ao pensa-


rem sobre sua trajetória escolar e refletir sobre as influências recebidas, en-
contramos alguns traços em comum. Vejamos abaixo.

Aspectos positivos:

leva a compreender a matéria;

amizade;

extrapola o ensinar conteúdos;

confiança;

exemplo;

influência no curso universitário.

Aspectos negativos:

traumas;

humilhações;

não ensina bem;

gosta ou não gosta da disciplina.

Observamos assim que nossas experiências escolares nos marcam profun-


damente como pessoas e como profissionais. Pensar sobre essas questões
pode ser um bom caminho para a superação da tão propalada crise de iden-
tidade docente.

Para finalizar, vamos apreciar a leitura de uma reflexão tão pessoal escrita
por Paulo Freire, renomado educador brasileiro, que tão bem ilustra o método
autobiográfico aqui discutido. O texto faz parte de uma coletânea de peque-
nos textos do autor, escritos no decorrer de 1992 ou proferidos em palestras
e publicados sob a forma de livro, cujo título é Política e Educação (FREIRE,
2001). São textos reflexivos, que retratam a experiência política-pedagógica
do autor.

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Docência no Ensino Superior

Texto complementar

Ninguém nasce feito: é experimentando-nos


no mundo que nós nos fazemos
Ninguém nasce feito. Vamos nos fazendo aos poucos,
na prática social de que tomamos parte
(FREIRE, 2001, p. 79)

Não nasci professor ou marcado para sê-lo, embora minha infância e


adolescência tenham estado sempre cheias de “sonhos” em que rara vez
me vi encarnando figura que não fosse a de professor.

“Brinquei” tanto de professor na adolescência que, ao dar as primeiras


aulas no curso então chamado de admissão no Colégio Osvaldo Cruz do
Recife, nos anos 1940, não me era fácil distinguir o professor do imaginário
do professor do mundo real. E era feliz em ambos os mundos. Feliz quando
puramente sonhava dando aula e feliz quando, de fato, ensinava.

Eu tinha, na verdade, desde menino, um certo gosto docente, que


jamais se desfez em mim. Um gosto de ensinar e de aprender que me
empurrava à prática de ensinar que, por sua vez, veio dando forma e sen-
tido àquele gosto. Umas dúvidas, umas inquietações, uma certeza de que
as coisas estão sempre se fazendo e se refazendo e, em lugar de inseguro,
me sentia firme na compreensão que, em mim, crescia de que a gente
não é, de que a gente está sendo.

Às vezes, ou quase sempre, lamentavelmente, quando pensamos ou


nos perguntamos sobre a nossa trajetória profissional, o centro exclusivo
das referências está nos cursos realizados, na formação acadêmica e na
experiência vivida na área da profissão. Fica de fora como algo sem im-
portância a nossa presença no mundo.

É como se a atividade profissional dos homens e das mulheres não ti-


vesse nada que ver com suas experiências de menino, de jovem, com
seus desejos, com seus sonhos, com seu bem-querer ao mundo ou com
seu desamor à vida. Com sua alegria ou com seu mal-estar na passagem
dos dias e dos anos.

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Representações sobre a docência: a construção da identidade profissional

Na verdade, não me é possível separar o que há em mim de profissional


do que venho sendo como homem. Do que estive sendo como menino
do Recife, nascido na década de 1920, em família de classe média, acos-
sada pela crise de 1929. Menino cedo desafiado pelas injustiças sociais
como cedo tomando-se de raiva contra preconceitos raciais e de classe a
que juntaria mais tarde outra raiva, a raiva dos preconceitos em torno do
sexo e da mulher.

Como não perceber, por exemplo, que de minha formação profis­sional


faz parte bom tempo de minha adolescência em Jaboatão, perto do
Recife, em que não apenas joguei futebol com meninos de córregos e de
morros, meninos das chamadas classes menos afortunadas, mas também
com eles aprendi o que significava comer pouco ou nada comer.

Atividades
1. Segundo Antonio Nóvoa (1995b), os professores vivem uma crise de
identidade. Explique essa afirmação.

2. O que caracteriza um professor universitário? Por que ele goza de um


status profissional diferenciado em relação ao professor da educação
básica? Pense sobre estas questões e elabore uma breve reflexão so-
bre o assunto.

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Docência no Ensino Superior

3. Relato autobiográfico: Pense no percurso de sua escolaridade. Pense em


um professor marcante, positiva ou negativamente, e escreva sobre ele.

Nesta atividade, você deve escrever um breve relato sobre sua traje-
tória escolar e refletir sobre as influências que recebeu e as marcas
deixadas na sua vida pessoal e profissional.

Dicas de estudo
Esses três filmes narram histórias docentes, a partir dos quais você poderá
compreender melhor o mito do professor-herói abordado nesta aula.

SOCIEDADE dos Poetas Mortos. Direção de Peter Weir. Abril Vídeo. EUA,
1989. (129min.).

MENTES perigosas. Direção de John N. Smith. EUA, 1995. (99min.).

O PREÇO de um desafio. Direção de Ramon Menendez. EUA, 1988.


(102min.).

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Representações sobre a docência: a construção da identidade profissional

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