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PREFÁCIO INTERESSANTÍSSIMO

Leitor:

Está fundado o Desvairismo.

Este prefácio, apesar de interessante, inútil.

Alguns dados. Nem todos. Sem conclusões. Para quem me aceita são inúteis amos. Os
curiosos terão prazer em descobrir minhas conclusões, confrontando obra e dados. Para
quem me rejeita trabalho perdido explicar o que, antes de ler, já não aceitou.

Quando sinto a impulsão lírica escrevo sem pensar tudo o que meu inconsciente me grita.
Penso depois: não só para corrigir, como para justificar o que escrevi. Daí a razão deste
Prefácio Interessantíssimo.

Aliás muito difícil nesta prosa saber onde termina a blague, onde principia a seriedade.
Nem eu sei.

E desculpo-me por estar tão atrasado dos movimentos artísticos atuais. Sou passadista,
confesso. Ninguém pode se libertar duma só vez das teorias-avós que bebeu; e o autor
deste livro seria hipócrita se pretendesse representar orientação moderna que ainda não
compreende bem.

[…]

Não sou futurista (de Marinetti). Disse e repito-o. Tenho pontos de contato com o
futurismo. Oswald de Andrade, chamando-me de futurista, errou. A culpa é minha. Sabia
da existência do artigo e deixei que saísse. Tal foi o escândalo, que desejei a morte do
mundo. Era vaidoso. Quis sair da obscuridade. Hoje tenho orgulho. Não me pesaria
reentrar na obscuridade. Pensei que discutiriam minhas idéias (que nem são minhas):
discutiram minhas intenções. Já agora não me calo. Tanto ridicularizariam meu silêncio
como esta grita. Andarei a vida de braços no ar, como o "Indiferente" de Watteau.

[…]

Virgílio, Homero, não usaram rima. Virgílio, Homero, têm assonâncias admiráveis.

A língua brasileira é das mais ricas e sonoras. E possui o admirabilíssimo "ão".

Marinetti foi grande quando redescobriu o poder sugestivo, associativo, simbólico,


universal, musical da palavra em liberdade. Aliás: velha como Adão. Marinetti errou: fez
dela um sistema. É apenas auxiliar poderosíssimo. Uso palavras em liberdade. Sinto que
o meu copo é grande demais para mim, e ainda bebo no copo dos outros.

Sei construir teorias engenhosas. Quer ver? A poética está muito mais atrasada que a
música. Esta abandonou, talvez mesmo antes do século 8, o regime da melodia quando
muito oitavada, para enriquecer-se com os infinitos recursos da harmonia. A poética, com

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rara exceção até meados do século 19 francês, foi essencialmente melódica. Chamo de
verso melódico o mesmo que melodia musical: arabesco horizontal de vozes (sons)
consecutivas, contendo pensamento inteligível.

Ora, se em vez de unicamente usar versos melódicos horizontais: "Mnezarete, a divina, a


pálida Frinéia comparece ante a austera e rígida assembléia do Areópago supremo...",
fizermos que se sigam palavras sem ligação imediata entre si: estas palavras, pelo fato
mesmo de se não seguirem intelectual, gramaticalmente, se sobrepõem umas às outras,
para a nossa sensação, formando, não mais melodias, mas harmonias. Explico melhor:
Harmonia: combinação dos sons simultâneos. Exemplo: "Arroubos... Lutas... Setas...
Cantigas... Povoar!..." Estas palavras não se ligam. Não formam enumeração. Cada uma
é frase, período elíptico, reduzido ao mínimo telegráfico. Se pronuncio "Arroubos", como
não faz parte de frase (melodia), a palavra chama a atenção para seu insulamento e ficava
vibrando, à espera duma frase que lhe faça adquirir significado e QUE NÃO VEM.
"Lutas" não dá conclusão alguma a "Arroubos"; e, nas mesmas condições, não fazendo
esquecer a primeira palavra, fica vibrando com ela. As outras vozes fazem o mesmo.
Assim: em vez de melodia (frase gramatical) temos acorde arpejado, harmonia, - o verso
harmônico. Mas se em vez de usar só palavras soltas, uso frases soltas: mesma sensação
de superposição, não já de palavras (notas) mas de frases (melodias). Portanto: polifonia
poética. Assim, em "Paulicéia Desvairada" usam-se o verso melódico: "São Paulo é um
palco de bailados russos"; o verso harmônico: "A cainçalha ... A Bolsa... As jogatinas...";
e a polifonia poética (um e à vezes dois e mesmo mais versos consecutivos): "A
engrenagem trepida... A bruma neva..." Que tal? Não se esqueça porém que outro virá
destruir tudo isto que construí.

[…]

Lirismo: estado afetivo sublime - vizinho da sublime loucura. Preocupação de métrica e


de rima prejudica a naturalidade livre do lirismo objetivado. […]

A gramática apareceu depois de organizadas as línguas. Acontece que meu inconsciente


não sabe da existência de gramáticas, nem de línguas organizadas. E como Dom Lirismo
é contrabandista...

Você perceberá com facilidade que se na minha poesia a gramática às vezes é desprezada,
graves insultos não sofre neste prefácio interessantíssimo. Prefácio: rojão do meu eu
superior. Versos: paisagem do meu eu profundo.

Pronomes? Escrevo brasileiro. Se uso ortografia portuguesa é porque, não alterando o


resultado, dá-me uma ortografia.

Escrever arte moderna não significa jamais para mim representar a vida atual no que tem
de exterior: automóveis, cinema, asfalto. Se estas palavras freqüentam-me o livro não é
porque pense com elas escrever moderno, mas porque sendo meu livro moderno, elas têm
nele sua razão de ser.

Sei mais que pode ser moderno artista que se inspire na Grécia de Orfeu ou na Lusitânia
de Nun' Álvares. Reconheço mais a existência de temas eternos, passíveis de afeiçoar pela
modernidade: universo, pátria, amor e a presença-dos-ausentes, ex-gozo-amargo-de-
infelizes.

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Não quis também tentar primitivismo vesgo e insincero. Somos na realidade os primitivos
duma era nova. Esteticamente: fui buscar entre as hipóteses feitas por psicólogos,
naturalistas e críticos sobre os primitivos das eras passadas, expressão mais humana e
livre da arte.

[…]

Quando uma das poesias deste livro foi publicada, muita gente me disse: "Não entendi".
Pessoas houve porém que confessaram: "Entendi, mas não senti". Os meus amigos...
percebi mais duma vez que sentiam, mas não entendiam. Evidentemente meu livro é bom.

Escritor de nome disse dos meus amigos e de mim que ou éramos gênios ou bestas. Acho
que tem razão. Sentimos, tanto eu como meus amigos, o anseio do farol. Se fôssemos tão
carneiros a ponto de termos escola coletiva, esta seria por certo o "Farolismo". Nosso
desejo: indicaremos o caminho a seguir, bestas: náufragos por evitar.

[…]

Mas todo esse prefácio, com todo o disparate das teorias que contém, não vale coisíssima
nenhuma. Quando escrevi "Paulicéia desvairada" não pensei em nada disto. Garanto
porém que chorei, que cantei, que ri, que berrei... Eu vivo!

Aliás versos não se escrevem para leitura de olhos mudos. Versos cantam-se, urram-se,
choram-se. Quem não souber cantar não leia Paisagem n.º 1. Quem não souber urrar não
leia Ode ao Burguês. Quem não souber rezar, não leia Religião. Desprezar: A Escalada.
Sofrer: Colloque Sentimental. Perdoar: a cantiga do berço, um dos solos de Minha
Loucura, das Enfibraturas do Ipiranga. Não continuo. Repugna-me dar a chave de meu
livro. Quem for como eu tem essa chave.

E está acabada a escola poética "Desvairismo". nova arte moderna cheia de conflito

Próximo livro fundarei outra.

E não quero discípulos. Em arte: escola = imbecilidade de muitos para vaidade dum só.

Poderia ter citado Gorch Fock. Evitava o Prefácio Interessantíssimo. "Toda canção de
liberdade vem do cárcere."

Mário de Andrade, Paulicéia Desvairada, 1922.

KLAXON
Organizado por: significação, estética, cartaz e problema

Significação.

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A luta começou de verdade em princípios de 1921 pelas colunas do Jornal do Commercio
e do Correio Paulistano. Primeiro resultado: “Semana de Arte Moderna” – espécie de
Conselho Internacional de Versalhes. Como este, a Semana teve sua razão de ser. Como
ele: nem desastre, nem triunfo. Como ele: deu frutos verdes. Houve erros proclamados
em voz alta. Pregaram-se ideias inadmissíveis. É preciso refletir. É preciso esclarecer. É
preciso construir. Daí, KLAXON. (= buzina)

E KLAXON não se queixará jamais de ser incompreendido pelo Brasil. O Brasil é que
deverá se esforçar para compreender KLAXON.

Estética

KLAXON sabe que a vida existe. E, aconselhado por Pascal, visa o presente. KLAXON
não se preocupará de ser novo, mas de ser atual. Essa é a grande lei da novidade.

KLAXON sabe que a humanidade existe. Por isso é internacionalista. O que não impede
que, pela integridade da pátria, KLAXON morra e seus membros brasileiros morram.

KLAXON sabe que a natureza existe. Mas sabe que o moto lírico, produtor da obra de
arte, é uma lente transformadora e mesmo deformadora da natureza.

KLAXON sabe que o progresso existe. Por isso, sem renegar o passado, caminha para
diante, sempre, sempre. O campanile de São Marco era uma obra-prima. Devia ser
conservado. Caiu. Reconstruí-lo foi uma erronia sentimental e dispendiosa – o que berra
diante das necessidades contemporâneas.

KLAXON sabe que o laboratório existe. Por isso quer dar leis científicas à arte; leis
sobretudo baseadas nos progressos da psicologia experimental. Abaixo os preconceitos
artísticos! Liberdade! Mas liberdade embridade pela observação.

KLAXON sabe que o cinematógrafo existe. Perola White é preferível a Sarah Bernhardt.
Sarah é tragédia, romantismo sentimental e técnico. Perola é raciocínio, instrução,
esporte, rapidez, alegria, vida. Sarah Bernhardt = século 19. Perola White = século 20. A
cinematografia é a criação artística mais representativa da nossa época. É preciso
observar-lhe a lição.

KLAXON não é exclusivista. Apesar disso jamais publicará inéditos maus de bons
escritores já mortos.

KLAXON não é futurista.

KLAXON é klaxista.

Cartaz

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KLAXON cogita principalmente de arte. Mas quer representar a época de 1920 em diante.
Por isso é polimorfo, omnipresente, inquieto, cómico, irritante, contraditório, invejado,
insultado, feliz.

KLAXON procura: achará. Bate: a porta se abrirá. Klaxon não derruba campanile algum.
Mas não reconstruirá o que ruir. Antes aproveitará o terreno para sólidos, higiénicos,
altivos edifícios de cimento armado.

KLAXON tem uma alma colectiva que se caracteriza pelo ímpeto construtivo. Mas cada
engenheiro se utilizará dos materiais que lhe convierem. Isto significa que os escritores
de KLAXON responderão apenas pelas ideias que assinarem.

Problema

Século 19 - Romantismo, Torre de Marfim, Simbolismo. Em seguida o fogo de artifício


internacional de 1914. Há perto de 130 anos que a humanidade está fazendo manha. A
revolta é justíssima. Queremos construir a alegria. A própria farsa, o burlesco não nos
repugna, como não repugnou a Dante, a Shakespeare, a Cervantes. Molhados, resfriados,
reumatizados por uma tradição de lágrimas artísticas, decidimo-nos. Operação cirúrgica.
Extirpação das glândulas lacrimais. Era dos 8 Batutas, do Jazz-Band, de Chicarrão, de
Carlito, de Mutt & Jeff. Era do riso e da sinceridade. Era de construção. Era de KLAXON.

A REDACÇÃO

(publicado na Revista Klaxon (São Paulo), n. 1, Maio, 1922)

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MANIFESTO DA POESIA PAU-BRASIL

A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela,
sob o azul cabralino, são fatos estéticos.
O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner
submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. Riqueza
vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança.

[…]

O lado doutor. Fatalidade do primeiro branco aportado e dominando politicamente


as selvas selvagens. O bacharel. Não podemos deixar de ser doutos. Doutores. País de
dores anônimas, de doutores anônimos. O Império foi assim. Eruditamos tudo.
Esquecemos o gavião de penacho.

A nunca exportação de poesia. A poesia anda oculta nos cipós maliciosos da


sabedoria. Nas lianas da saudade universitária.

Mas houve um estouro nos aprendimentos. Os homens que sabiam tudo se


deformaram como borrachas sopradas. Rebentaram.
A volta à especialização. Filósofos fazendo filosofia, críticos, critica, donas de casa
tratando de cozinha.
A Poesia para os poetas. Alegria dos que não sabem e descobrem.

Tinha havido a inversão de tudo, a invasão de tudo: o teatro de tese e a luta no palco
entre morais e imorais. A tese deve ser decidida em guerra de sociólogos, de homens de
lei, gordos e dourados como Corpus Juris.
Ágil o teatro, filho do saltimbanco. Ágil e ilógico. Ágil o romance, nascido da
invenção. Ágil a poesia.
A poesia Pau-Brasil. Ágil e cândida. Como uma criança.

[…]

Contra o gabinetismo, a prática culta da vida. Engenheiros em vez de jurisconsultos,


perdidos como chineses na genealogia das idéias.
A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição
milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos.

Não há luta na terra de vocações acadêmicas. Há só fardas. Os futuristas e os outros.


Uma única luta – a luta pelo caminho. Dividamos: Poesia de importação. E a Poesia
Pau-Brasil, de exportação.

Houve um fenômeno de democratização estética nas cinco partes sábias do mundo.


Instituíra-se o naturalismo. Copiar. Quadros de carneiros que não fosse lã mesmo, não
prestava. A interpretação no dicionário oral das Escolas de Belas Artes queria dizer
reproduzir igualzinho... Veio a pirogravura. As meninas de todos os lares ficaram artistas.
Apareceu a máquina fotográfica. E com todas as prerrogativas do cabelo grande, da caspa
e da misteriosa genialidade de olho virado – o artista fotógrafo.

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Na música, o piano invadiu as saletas nuas, de folhinha na parede. Todas as meninas
ficaram pianistas. Surgiu o piano de manivela, o piano de patas. A pleyela. E a ironia
eslava compôs para a pleyela. Stravinski.
A estatuária andou atrás. As procissões saíram novinhas das fábricas.
Só não se inventou uma máquina de fazer versos – já havia o poeta parnasiano.

[…]

A Poesia Pau-Brasil é uma sala de jantar domingueira, com passarinhos cantando


na mata resumida das gaiolas, um sujeito magro compondo uma valsa para flauta e a
Maricota lendo o jornal. No jornal anda todo o presente.

Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos


livres.

Temos a base dupla e presente – a floresta e a escola. A raça crédula e dualista e a


geometria, a álgebra e a química logo depois da mamadeira e do chá de erva-doce. Um
misto de "dorme nenê que o bicho vem pegá" e de equações.
Uma visão que bata nos cilindros dos moinhos, nas turbinas elétricas; nas usinas
produtoras, nas questões cambiais, sem perder de vista o Museu Nacional. Pau-Brasil.

Obuses de elevadores, cubos de arranha-céus e a sábia preguiça solar. A reza. O


Carnaval. A energia íntima. O sabiá. A hospitalidade um pouco sensual, amorosa. A
saudade dos pajés e os campos de aviação militar. Pau-Brasil.

O trabalho da geração futurista foi ciclópico. Acertar o relógio império da literatura


nacional.
Realizada essa etapa, o problema é outro. Ser regional e puro em sua época.

O estado de inocência substituindo o estado de graça que pode ser uma atitude do
espírito.

O contrapeso da originalidade nativa para inutilizar a adesão acadêmica.

A reação contra todas as indigestões de sabedoria. O melhor de nossa tradição lírica.


O melhor de nossa demonstração moderna.

Apenas brasileiros de nossa época. O necessário de química, de mecânica, de


economia e de balística. Tudo digerido. Sem meeting cultural. Práticos. Experimentais.
Poetas. Sem reminiscências livrescas. Sem comparações de apoio. Sem pesquisa
etimológica. Sem ontologia.
Bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos. Leitores de jornais. Pau-Brasil. A floresta
e a escola. O Museu Nacional. A cozinha, o minério e a dança. A vegetação. Pau-Brasil.

OSWALD DE ANDRADE

(Correio da Manhã, 18 de março de 1924)


O manifesto focaliza-se na criação de uma arte que estivesse próxima do povo, ou seja, com uma linguagem natural.
Assim, seria criada uma poesia nacionalista que expressasse raízes primitivas e não apenas a importação de modelos
estrangeiros.
Oswald de Andrade refere elementos da cultura brasileira: o Carnaval, os índios e o pau-brasil. Desta forma, a população
brasileira que anteriormente deveria importar elementos de outras culturas, agora passa a ser vista como exportadora de
costumes e crenças. 7
Concluindo, o autor apresenta um caráter social que procura uma identidade cultural brasileira, baseada nas tradições e
culturas do Brasil.
Manifesto Antropófago
Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.

Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De


todas as religiões. De todos os tratados de paz.

Tupi or not tupi that is the question.

Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.

Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.

Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em drama. Freud acabou com o
enigma mulher e com outros sustos da psicologia impressa.

O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A
reação contra o homem vestido. O cinema americano informará.

Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade,
pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes. No país da cobra grande.

Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era
urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil.
[…]

Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas
eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do
homem.
[…]

Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia.
Ou em Belém do Pará.

Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós.

Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão. O rei-analfabeto
dissera-lhe: ponha isso no papel mas sem muita lábia. Fez-se o empréstimo. Gravou-se o açúcar
brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia.

O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo. O antropomorfismo. Necessidade da vacina


antropofágica. Para o equilíbrio contra as religiões de meridiano. E as inquisições exteriores.

[…]

Contra o mundo reversível e as idéias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico.
O indivíduo vítima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. Das injustiças românticas. E o
esquecimento das conquistas interiores.

Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.

O instinto Caraíba.

Morte e vida das hipóteses. Da equação eu parte do Cosmos ao axioma Cosmos parte do eu. Subsistência.
Conhecimento. Antropofagia.
[…]

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Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de
Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses.

Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro.

Catiti Catiti

Imara Notiá

Notiá Imara

Ipeju

A magia e a vida. Tínhamos a relação e a distribuição dos bens físicos, dos bens morais, dos bens
dignários. E sabíamos transpor o mistério e a morte com o auxílio de algumas formas gramaticais.

Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da
possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Mathias. Comi-o.

[…]

Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um antropófago, o Visconde de
Cairu: – É mentira muitas vezes repetida.

Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo, porque
somos fortes e vingativos como o Jabuti.
[…]

Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.

Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio
de Mariz.

A alegria é a prova dos nove.

No matriarcado de Pindorama.

Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada.


[…]

Contra Anchieta cantando as onze mil virgens do céu, na terra de Iracema, – o patriarca João Ramalho
fundador de São Paulo.

A nossa independência ainda não foi proclamada. Frase típica de D. João VI: – Meu filho, põe essa coroa
na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça! Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar o espírito
bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte.

Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem
loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama.

OSWALD DE ANDRADE
Em Piratininga Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha. (Revista de Antropofagia, Ano 1, No. 1, maio
de 1928.)
Os Sapos

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Urra o sapo-boi:
- "Meu pai foi rei!"- "Foi!"
Enfunando os papos, - "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos. Brada em um assomo
A luz os deslumbra. O sapo-tanoeiro:
- “A grande arte é como
Em ronco que aterra, Lavor de joalheiro.
Berra o sapo-boi:
- "Meu pai foi à guerra!" Ou bem de estatuário.
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!". Tudo quanto é belo,
Tudo quanto é vário,
O sapo-tanoeiro, Canta no martelo".
Parnasiano aguado,
Diz: - "Meu cancioneiro Outros, sapos-pipas
É bem martelado. (Um mal em si cabe),
Falam pelas tripas,
Vede como primo - "Sei!" - "Não sabe!" - "Sabe!".
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo Longe dessa grita,
Os termos cognatos. Lá onde mais densa
A noite infinita
O meu verso é bom Veste a sombra imensa;
Frumento sem joio.
Faço rimas com Lá, fugido ao mundo,
Consoantes de apoio. Sem glória, sem fé,
No perau profundo
Vai por cinquüenta anos E solitário, é
Que lhes dei a norma:
Reduzi sem danos Que soluças tu,
A fôrmas a forma. Transido de frio,
Sapo-cururu
Clame a saparia Da beira do rio...
Em críticas céticas:
Não há mais poesia,
Mas há artes poéticas..." Manuel Bandeira, 1918

O poeta, através da paródia e da ironia, apresenta uma crítica ao parnasianismo. Dado que, este movimento,
preocupava-se excessivamente com a linguagem formal. Desta forma, ao longo do poema, é visível observar
características defendidas pelos parnasianos: a métrica regular e a preocupação com a sonoridade, por exemplo.
O poema é composto por catorze estrofes: treze quadras e um terceto. Enquanto nas quadras a rima apresenta o
esquema rimático ABAB, ou seja, trata-se de uma rima cruzada, no terceto é destoante. Ainda, a utilização de
recursos estilísticos transmite necessidade de acabar e transformar a poesia.
Os sapos são utilizados metaforicamente para representar os diferentes tipos de poetas e as suas maneiras de
escrever. Primeiramente, o "eu" apresenta o «sapo tanoeiro» e descreve-o como o típico poeta parnasiano. Assim,
para ele, a grande poesia é como o ofício de um joalheiro, há que se lapidar com precisão e paciência («A grande
arte é como/ Lavor de joalheiro.»). Em segundo lugar, o sapo-cururu representa o poeta modernista que aspira
liberdade e usa uma linguagem cotidiana. Contudo, apresenta uma opinião diferente da dos outros sapos.
Concluindo, através da paródia, o poeta, critica a preocupação excessiva dos parnasianos com o aspeto formal da
linguagem sendo que, para elem, esse estilo de poesia deveria ser ultrapassado.

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pronominais

Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro

Oswald de Andrade, Pau-Brasil, 1925

O poeta come amendoim


a Carlos Drummond de Andrade

Noites pesadas de cheiros e calores amontoados...


Foi o sol que por todo o sítio imenso do Brasil
Andou marcando de moreno os brasileiros.

Estou pensando nos tempos de antes de eu nascer...

A noite era pra descansar. As gargalhadas brancas dos mulatos...


Silêncio! O imperador medita os seus versinhos.
Os Caramurus conspiram à sombra das mangueiras ovais.
Só o murmurejo dos cre'm-deus-padre irmanava os homens de meu país...
Duma feita os canhamboras perceberam que não tinha mais escravos,
Por causa disso muita virgem-do-rosário se perdeu...

Porém o desastre verdadeiro foi embonecar esta República temporã.


Neste poema, é apresentada a história do
A gente inda não sabia se governar... Brasil, desde a interação entre os europeus e
Progredir, progredimos um tiquinho indígenas até o período do Brasil Imperial e o
Que o progresso também é uma fatalidade... surgimento da república. Desta forma, o tema
Será o que Nosso Senhor quiser!... em enfase deste poema é o
nacionalismo/patriotismo.
Estou com desejos de desastres... Através do verso «[...] o desate verdadeiro foi
embonecar esta República temporã», o poeta
Com desejos do Amazonas e dos ventos muriçocas afirma que ela foi demasiado valorizada e que
Se encostando na cangerana dos batentes... apenas ajudou a progredir um «bocadinho».
Tenho desejos de violas e solidões sem sentido... Além disso, através da expressão «[...] Será o
que Nosso Senhor quiser! [...]», o sujeito
Tenho desejos de gemer e de morrer... poético, depreende o povo brasileiro por não se
saber governar e entregar tudo à vontade de
Brasil... Deus.
Mastigado na gostosura quente de amendoim... O poeta afirma que não ama o Brasil por ser a
Falado numa língua curumim sua pátria (amor patriota), mas sim por ser a
De palavras incertas num remeleixo melado melancólico...sua identidade.
Assim, a proclamação da República não trouxe
Saem lentas frescas trituradas pelos meus dentes bons... nenhuma mudança além de um “tiquinho” de
progresso, o qual aconteceria de um jeito ou de
outro, segundo o eu poético.
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Molham meus beiços que dão beijos alastrados
E depois remurmuram sem malícia as rezas bem nascidas...
Brasil amado não porque seja minha pátria,
Pátria é acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der...
Brasil que eu amo porque é o ritmo no meu braço aventuroso,
O gosto dos meus descansos,
O balanço das minhas cantigas amores e danças.
Brasil que eu sou porque é a minha expressão muito engraçada,
Porque é o meu sentimento pachorrento,
Porque é o meu jeito de ganhar dinheiro, de comer e de dormir.

Mário de Andrade, Clã do Jabuti, 1927

Poética

Estou farto do lirismo comedido (=refere ao eu lírico de autores que não retratavam a realidade)
do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
[protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o
[cunho vernáculo de um vocábulo
O poeta faz uma crítica aos políticos que
Abaixo os puristas agem com esperteza para conquistar o
voto do povo, principalmente os humildes
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais e, depois que é eleito acaba com o bolso
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção do povo na cobrança de impostos. Além
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis disso, critica os parnasianos.

Estou farto do lirismo namorador


Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.

De resto não é lirismo


Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem
[modelos de cartas e as diferentes maneiras
[de agradar às mulheres, etc.

Quero antes o lirismo dos loucos


O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare

– Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

Manuel Bandeira, Libertinagem, 1930

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Poema de Sete Faces

Quando nasci, um anjo torto


desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida. Na primeira estrofe, o poeta apresenta, através da
palavra francesa "guache", a realidade em que vive.
As casas espiam os homens Deste modo, a expressão significa aquilo que não é
direito, ou seja, é torto. Além disso, o esquerdo
que correm atrás de mulheres.
apresenta algo que é depreciativo e que não é
A tarde talvez fosse azul,
valorizado.
não houvesse tantos desejos. Na segunda estrofe, o sujeito poético recorre à
descrição da paisagem para questionar os desejos da
O bonde passa cheio de pernas: humanidade, nomeadamente, o sexual.
pernas brancas pretas amarelas. Na terceira estrofe, o segundo o verso apresenta uma
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração. variedade de cores e etnias sendo que o "eu"
Porém meus olhos questiona-se sobre isso. Contudo, distancia-se da
não perguntam nada. realidade (" Porém meus olhos/não perguntam nada")
Na quarta estrofe, o poeta intitula-se como "o homem
O homem atrás do bigode atrás do bigode". Deste modo, usa uma máscara para
é sério, simples e forte. conseguir enfrentar o mundo que vive.
Quase não conversa. Na quinta estrofe, o " eu" recorre a Deus e questiona-o
pelo facto de ter sido abandonado no mundo e ter de
Tem poucos, raros amigos
seguir o caminho "guache" da vida.
o homem atrás dos óculos e do bigode. Na sexta estrofe, é notável que o poeta se sente
insignificante perante tudo o que o rodeia. Além disso,
Meu Deus, por que me abandonaste através do verso «seria uma rima, não seria uma
se sabias que eu não era Deus, solução», percebe-se que a solução para os
se sabias que eu era fraco. problemas da vida do sujeito poético não é escrever
poesia.
Mundo mundo vasto mundo Na última estrofe, está presente uma confissão do "eu"
se eu me chamasse Raimundo dado que, fala da noite como um tempo de reflexão.
seria uma rima, não seria uma solução. A lua, o álcool e a própria poesia permitem que o
Mundo mundo vasto mundo, sujeito, normalmente retraído, esteja em contato com
mais vasto é meu coração. as suas emoções. Tudo isso o comove e leva-o a
exprimir aquilo que realmente sente.
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

Carlos Drummond de Andrade, Alguma Poesia, 1930

No meio do caminho Neste poema, as pedras mencionadas podem ser


classificadas como obstáculos ou problemas que as
No meio do caminho tinha uma pedra pessoas encontram na vida, descrita neste caso como um
tinha uma pedra no meio do caminho «caminho». Essas pedras podem impedir a pessoa de
tinha uma pedra seguir o seu percurso, ou seja, os problemas podem
no meio do caminho tinha uma pedra. impedir de avançar na vida.
Os versos «nunca me esquecerei desse acontecimento na
Nunca me esquecerei desse acontecimento vida de minhas retinas tão fatigadas» transmitem uma
na vida de minhas retinas tão fatigadas. sensação de cansaço por parte do autor, e do
Nunca me esquecerei que no meio do caminho acontecimento que ficará sempre na memória do poeta.
tinha uma pedra Assim, as pedras mencionadas também podem indicar um
tinha uma pedra no meio do caminho acontecimento relevante e marcante para a vida de uma
no meio do caminho tinha uma pedra. pessoa.
Carlos Drummond de Andrade, Alguma Poesia, 1930.

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