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O texto de orelha da edição que li (publicada pela editora Companhia das Letras) o
editor escreve que “Italo Calvino consegue uma proeza notável: unir o prazer voraz da leitura
às tortuosas questões da vanguarda literária” (CALVINO, 1999), ele se refere a uma
preocupação com a chamada “crise de representação”, onde os romances contemporâneos
estão diante de uma crise de identidade, já que as narrativas tradicionais começam a ser
preteridas, no qual o leitor atual está sujeito “às leituras espinhosas de obras que se debruçam
sobre si mesmas e procuram desesperadamente uma saída para literatura, ou a
superficialidade descartável dos best-sellers. Calvino vem em resgate desse leitor”
(CALVINO, 1999).
É a partir dessa tentativa de resgate, proposta por Italo Calvino, que o enredo se
elabora. Como o protagonista é quem está lendo Se um viajante numa noite de inverno, a
história começa com uma espécie de diálogo entre o autor e o leitor, onde o escritor se dirige
diretamente a quem está em posse do livro e o aconselha a se colocar em diversas posições, a
mais confortável possível, para bem aproveitar a leitura. Após serem feitas todas as
recomendações, tem-se início o romance prometido.
Entretanto, algo inesperado ocorre. Um erro de impressão danificou a edição e o leitor
tem uma quebra no meio da leitura. Inconformado, esse leitor (que na realidade é você) vai
até a livraria tentar descobrir o que houve. Lá ele conhece uma outra leitora, uma personagem
chamada Ludmilla, que comprou a mesma edição e com o mesmo problema. O impasse faz
surgir ali uma amizade que vai permitir ao Italo Calvino explorar as diversas relações
literárias e variados tipos de leitores, dentro do vasto campo de possibilidades de narrativas
diferentes.
O Leitor e Ludmilla saem em busca do romance inacabado e terminam por encontrar
outros romances, onde um leva ao outro, no qual os dois acabam tendo acesso apenas aos
incipits (início textual, carregado de sentido, do qual um escritor inicia um romance, pode ser
o primeiro capítulo, um ou mais parágrafos, mas que dê ao legente compreensão sobre o livro
do qual está iniciando a leitura), fazendo com que percorram dez estilos diferentes do
romance, passando pelo clássico, ação, erótico e até mesmo o distópico.
Para tal efeito, Calvino lança mão da narrativa tradicional, e opta por uma escrita
intercalada, onde apresenta os determinados incipits interpostos com capítulos que conduzem
o Leitor pela aventura proposta: encontrar o romance desejado. Artifícios fundamentais até
mesmo para compreensão de sua intenção dentro do texto, que é fazer o leitor percorrer as
variáveis temáticas que compõem a literatura, além de desenhar tipos de autores,
especificidades de leitores, estilos, processos de leitura e interpretação.
Desta forma, ele consegue ser polissêmico, assim como o livro, e exemplifica com
coerência e ironia, os significados sociais do livro, desde a sua liberdade até a sua censura.
Calvino demonstra que todos os livros são uma unidade, mesmo com ideias divergentes e que
cada leitor é único ao seu modo e utiliza de metodologias diferentes de leitura.
Se um mundo de leitores
A intenção de Italo Calvino com Se um viajante numa noite de inverno é nos
apresentar os multíplices leitores que compõem o mundo. Além do Leitor (protagonista),
somos apresentados a mais três personagens fundamentais, que abraçam essa diversidade de
leitores: Ludmilla (primeiro contato do leitor), Lotaria e Irnério.
A relação entre o Leitor e Ludmilla é mais estreita do que com os demais
personagens, inclusive é entre eles que as manifestações românticas de Calvino se acentuam.
Ambos representam os dois principais tipos de leitores mais comuns. Embora algumas
características entre eles sejam semelhantes, eles se diferenciam nos gostos e métodos de
experimentação. O Leitor é aquele que sai em busca do autor, de sua história, dos processos
de criação e produção de um livro e se apresenta até mesmo confortável na leitura, desde que
esta lhe possibilite uma apreciação completa da obra. Ludmilla percorre um caminho inverso,
ela prefere o distanciamento desses processos e até mesmo do escritor, criando uma espécie
de aura mística na persona do autor. Para ela existe “uma linha limítrofe: de um lado estão
aqueles que fazem os livros, do outro, aqueles que leem” (CALVINO, 1999), ela prefere estar
sempre do lado dos que apenas leem, já que o seu gosto pela leitura se constrói no prazer
desinteressado e na constante busca por um livro com a história ideal a ser lida naquele
momento.
Lotaria e Irnério são dois leitores ainda mais distantes do Leitor e de Ludmilla. Irnério
é uma criatura peculiar que se recusa a ler qualquer palavra escrita, vivendo um desafio
praticamente impossível, visto que uma pessoa minimamente alfabetizada está cercada
constantemente por palavras escritas nos múltiplos lugares que a vista alcança. Uma simples
caminhada pela rua é capaz de bombardear uma pessoa com fachadas, placas, anúncios,
cartazes. Ele acredita ser um não leitor, mas acaba se tornando um leitor do mundo,
principalmente quando expõe sua sensibilidade artística ao compor esculturas utilizando
como matéria prima os livros.
Lotaria é uma leitora acadêmica. Para ela, todas as leituras devem ter um sentido ou
estarem ligadas a academia, mesmo que ela acredite extrair de cada livro o essencial e dele
tirar proveitos necessários para justificar as pesquisas ou caberem em seus argumentos
científicos, ela é a leitora mais superficial das quatro personagens apresentadas. Os caminhos
que ela percorre violam a consistência eficaz que o livro tem para transmitir ideias e
conhecimento, e seus resultados são sempre equivocados, já que ela desconsidera todos os
processos possíveis de composição do livro, lhe importando apenas uma dissecação vazia de
palavras.
Para Carneiro (1999) “o leitor é pluralidade”. Ele “não escreve, se deixa escrever pelo
texto” (1999). O teórico destaca alguns tipos importantes de leitores: o leitor ativo, o leitor
passivo, o leitor inventivo, o leitor espectador. Dentro de cada tipo existe ainda uma
diversidade de comportamentos, mas basicamente, existe um ponto que define cada um deles
e sua maneira particular de se apropriar da leitura.
Carneiro define o leitor ativo como aquele que não se limita ao simples exercício da
leitura, mas que elabora diálogos com o aquilo que lê, não deixando o texto passar
meramente por ele, sem nem uma transformação relevante. O contrário é o leitor passivo,
aquele que é acomodado, não se deixa, com licença poética mais uma vez, atravessar e nem
se desafiar pela obra que está lendo. O leitor passivo quer ler apenas por puro gosto, ele
deseja textos prontos, pré-fabricados.
O leitor inventivo é aquele que tem a mente fertil para a criação de imagens. Em sua
imaginação elabora todos os cenários e a leitura funciona como uma espécie de filme que vai
sendo construído na mente à medida que se lê, enquanto o intuitivo parte para o campo da
sensibilidade. A minha escolha desses quatro tipos de leitores é para demonstrar que há várias
leituras possíveis, como afirma Carneiro:
[...] em cada um desses casos, há várias formas de ler. Tanto o desencontro quanto as
duas formas de encontro possível entre texto e leitor ocorrem de variadas maneiras,
porque temos evidentemente uma infinidade de textos e de leitores, em diferentes
situações de leitura, que vão variar conforme a sociedade em que estão inseridos, a
época, o momento particular de quem lê. (CARNEIRO, 1999)
Se um livro na sociedade
Acredito que seja impossível pensar a sociedade sem livros, por mais que, no decorrer
da história da humanidade, regimes e ditaduras tenham tentado limitar o acesso a esse objeto,
considerado por alguns poderosos, um artefato perigoso. Na literatura distópica, por exemplo,
temos títulos como Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, onde o livro era o inimigo número 1
daquela sociedade e portanto eram queimados.
Na Alemanha nazista, fogueiras de livros considerados subversivos iluminavam as
noites escuras daquela nação, chamas que, ao invés de trazer luz, contraditoriamente lançava
aquele país uma profunda escuridão. Na União Soviética livros e escritores também foram
perseguidos. Inclusive a Rússia, tanto a czarista quanto a socialista, tem um triste histórico de
perseguição a livros e escritores. No Brasil a história não foi muito diferente. Fogueiras de
livros encheram de cinzas a história do regime ditatorial de Getúlio Vargas e a Ditadura
Militar, iniciada em 1964, carrega um histórico perverso de censura.
No entanto, não houve um só ditador ou regime que conseguiu calar as ideias e
impedir os livros que circulassem, mesmo que clandestinidade. Destaco esses pontos, por um
ponto de Se um viajante numa noite de inverno que percebo passar despercebido em alguns
textos que analisam a obra. Não que fosse esperado algo diferente de Calvino, que lutou
contra o fascismo italiano, pelo contrário. Sendo assim, acredito ser fundamental expor a
respeito do papel social de seu livro.
Caminhando para o clímax da história, o Leitor, continuando sua busca pelo romance
completo, é transportado para um país onde está em vigor um regime que proíbe
determinados livros, inclusive, o livro que ele estava lendo naquele momento e mais uma vez
é interrompido, é uma obra proibida naquele país. Logo que o objeto lhe é confiscado, ele
entra em contato com uma personagem feminina que aparenta ser Lotaria. Contudo, ela é
uma agente com vários nomes e que revela a ele que aqueles que lutam contra o regime, em
um mundo onde impera a falsificação, existem alguns subterfúgios para inserir os livros
proibidos.
O diálogo entre os dois não demora muito e o Leitor acaba entrando em uma
sucessiva perseguição que termina com ele preso. Na prisão ele tem acesso a toda uma
estrutura de censura do livro e Calvino nos apresenta mecanismos utilizados para proibir e
banir determinadas obras. No percurso traçado pelo escritor, acompanhamos como as
revoluções tecnológicas se tornam ferramentas aprimoradas de perseguição das ideias.
Italo Calvino nos leva a concluir que mesmo dentro de espaços de proibições e
vigilância compulsiva, escritores irão escrever seus livros e leitores irão em busca dos livros
que desejam ler.
CARNEIRO, Flávio. Breve passeio pelos bosques da leitura. In: Matraga, número 11,
1999.