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A LITERATURA COMO ACONTECIMENTO

Weslley Barbosa
© José Weslley Barbosa de Lima

Revisão, preparação e edição:


Everton Avelino
Diagramação, edição digital e visual:
Thiago Almeida
Capa:
Weslley Barbosa

A BIROSCA DO MEROVEU
– EDITORA, SEBO E CAFÉ –
omeroveu@gmail.com
www.meroveu.com.br

Dados internacionais de catalogação na publicação (CIP)


(Câmara brasileira do livro, SP, Brasil)
LIMA, José Weslley Barbosa

A literatura como acontecimento [livro eletrônico] / Weslley


Barbosa. -- 1. ed. -- Campina Grande, PB : A Birosca do Meroveu -
Editora, Sebo e Café, 2022.
PDF.

Bibliografia.
ISBN: 978-65-997133-3-0

1. Ensaios brasileiros 2. Literatura – Estudo e ensino 3. Teoria


literária - Estudo ensino
I. Título.
22-118290 CDD-801.07
DOS DIREITOS DO AUTOR

Por decisão do autor, este livro, em sua


versão digital, não é um produto comercializável e
pode ser livremente distribuído e acessado, sendo
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para trabalhos escolares ou acadêmicos, citação
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A apropriação indevida de obra intelectual,
assumindo a autoria ou não reconhecendo a fonte
é tida como plágio, de acordo com a Lei nº 9.610,
de 19 de fevereiro de 1998.
Para Juliana,
Letícia e Heitor
SUMÁRIO

DOS DIREITOS DO AUTOR 4


ADVERTÊNCIA 7
APRESENTAÇÃO 8
INTRODUÇÃO 17
CONCEITOS BASILARES 26
LITERATURA E EXPRESSÃO 31
A ARTE DA PALAVRA 41
LITERATURA E HISTORICIDADE 49
LITERATURA E INTUIÇÃO CRIATIVA 59
A BUSCA PELO BELO 78
PALAVRAS FINAIS 89
BIBLIOGRAFIA 93
SOBRE O AUTOR 98
7

ADVERTÊNCIA

Os parágrafos deste ensaio são numerados


(exceto na apresentação, na introdução e nas
palavras finais). Produzindo o texto,
constantemente me deparei com a necessidade de
fazer menções às minhas próprias ideias, algo
confuso quando ainda não se tem noção, no
momento de produção, da página em que
determinado trecho ocupará no livro. A solução
que encontrei foi a numeração e creio que ela
atendeu satisfatoriamente ao meu objetivo.
8

APRESENTAÇÃO

Este ensaio surge com um objetivo


modesto, porém necessário: apresentar a minha
contribuição para a sondagem da natureza da
literatura. Se é bem verdade que muito papel já foi
gasto com tal objetivo e muitas palestras,
simpósios e congressos já se realizaram buscando
este mesmo fim, é fato também que tal
preocupação está cada dia mais relegada a um
segundo (terceiro, quarto?) plano, embora esteja
longe de se esgotar, principalmente diante da
enxurrada de novos textos, expressões e temas que
as últimas décadas presenciaram.

O fato é que ainda há muito o que dizer e,


principalmente no Brasil, a carência de materiais
9

nesse sentido é notável. As grandes obras ou já


estão esgotadas (e sem qualquer previsão ou
esperança de reedição) ou, nos casos raros em que
ainda é possível encontrá-las nas livrarias,
refletem preocupações e discussões de algumas
décadas atrás.

Se é fato que no âmbito acadêmico tais


discussões não estão mais na “crista da onda”, que
outras preocupações entraram com mais força no
centro das atenções dos pesquisadores, é fato
também que o estudante ainda sente a
necessidade de encontrar materiais que lhe deem
um norte a seguir em suas próprias sondagens. E a
questão é bem esta mesmo: um norte. Este livro é
antes de tudo uma provocação, um convite à
reflexão, ao estudo, ao aprofundamento.

O leitor perceberá a minha preocupação de


não apenas apresentar a minha visão sobre cada
questão aqui discutida, mas também de indicar
possíveis caminhos de aprofundamento. Entendo
10

que aquele que decide buscar o conhecimento


adequado sobre todos os temas e aspectos ligados
à problemática da literatura está assumindo não
apenas a necessidade de uma atitude (o simples
estudo), mas o imperativo de um processo (o
primeiro passo será apenas o início de uma longa
trajetória).

Quando aqui me colocar a respeito de


qualquer aspecto, estarei sempre procedendo com
base naquilo que foi colhido da leitura de grandes
mestres e mestras sobre os quais tenho me
debruçado desde o início de minha trajetória.
Embora não me negue a expressar muitas vezes
um posicionamento particular sobre determinado
ponto (ainda que discordante da opinião
majoritária), não posso negar que esta obra é
principalmente uma organização sucinta de toda
uma rica tradição de estudos literários e estéticos.
E, já que mencionei minha trajetória, talvez seja
apropriado resumi-la aqui, para que o leitor tenha
uma noção das minhas bases teóricas.
11

Minhas pesquisas sobre a literatura se


iniciaram assim que ingressei no ensino superior,
na Licenciatura Plena em Letras – Língua
Portuguesa (UFCG, 2006 – 2010). Nos primeiros
anos, minha formação foi bastante teórica,
colhendo dos grandes manuais de Teoria Literária
os aspectos metafísicos e historiográficos a
respeito do tema. Foi uma época de muito
questionamento a respeito do que é literatura, de
sua função, sua divisão em gêneros e subgêneros
(bem como toda a teoria a respeito das
peculiaridades intrínsecas a cada um deles). Nesse
período, ocorreu minha filiação à Estilística
(método de abordagem que ainda hoje inspira
muitos dos meus procedimentos quando do estudo
cotextual de uma obra), bem como nasceu o
interesse pela literatura paraibana, que mais tarde
resultou no meu livro Ensaios de poesia
paraibana (2014).

Num segundo momento, a partir do final da


graduação, mas principalmente após ingressar no
12

Programa de Pós-Graduação em Linguagem e


Ensino da UFCG, para o mestrado em Literatura e
Ensino (2012 – 2014), minhas preocupações se
voltaram para o leitor e a recepção do texto
literário. Foi o momento de entrar em contato com
a Estética da Recepção e as teorias sobre leitura e
ensino de literatura. A princípio, o choque de
perspectivas foi grande e obviamente fui
encontrando aos poucos o ponto de contato
possível entre as duas abordagens para que o meu
pensamento a respeito do acontecimento literário
não se convertesse num posicionamento caótico
que entendesse a literatura como algo dividido em
dois momentos que fossem totalmente separados e
independentes um do outro (a produção e a
leitura). Precisava, certamente, relacionar tudo
numa mesma direção, a fim de justificar a própria
necessidade de cada uma das preocupações.

Após concluir o mestrado, fui entrando em


contato com todo um universo de leituras que
ainda mais abriram meus horizontes e, posso
13

dizer, foram fundamentais para que a minha


noção de um todo que envolve a literatura, da
produção à leitura, se formasse: foi o momento de
conhecer a Filosofia da Arte, a Estética, a
Hermenêutica, a Sociologia da Arte, a Crítica
Biográfica, o Marxismo etc. Obviamente, não
posso deixar de reconhecer que a própria prática
de produção e ensino da literatura me
proporcionou um olhar sobre a vinculação de fato
daquilo que eu ia lendo com o que se dava no
âmbito real, pragmático. Toda essa gama de
olhares e minha tendência de conciliar as
contribuições que recebo das minhas leituras foi
instigando as reflexões que hoje reúno neste
ensaio.

A literatura como acontecimento parte


do pressuposto de que a literatura não surge do
nada nem acaba com a publicação do texto. Acima
de tudo, é algo como um processo que se espraia
em vários momentos, em vários contextos (cada
um com suas particularidades) e sempre coloca em
14

relação pelo menos dois sujeitos: um autor e um


leitor. Argumentarei, nas páginas que seguem,
sobre a necessidade de se pensar o texto não como
um produto acabado, mas verdadeiramente como
uma semente (pois se origina de algo, mas por sua
vez é a própria origem de outra coisa). Tudo isso
está ligado e sem essa íntima relação a arte, e
consequentemente a literatura, não seria possível.

Como toda obra que se pretende


introdutória ao estudo de algum objeto, este texto
se exime da tentação de aprofundamento (ainda
que por vezes me pareça necessário). Às vezes,
querer abordar tudo e a tudo explicar pode suprir
muito mais as necessidades e o rigor de método do
autor do que do leitor, prejudicando a fluidez do
texto e trazendo, para um livro introdutório,
aquilo que só caberia numa obra de maior fôlego.
Por isso, sempre que julgue necessário o
aprofundamento a respeito de algum assunto (e
isso ocorre em vários pontos do ensaio), sugiro
leituras por meio de notas de rodapé. Claro que
15

tais sugestões se ligam à minha própria trajetória


de estudos e muitas outras coisas podem ser
buscadas. Há sempre um mundo a se descobrir a
respeito de cada tema. Se há vantagens em sermos
indivíduos do século XXI, esta é uma delas.

Também evito colocar citações diretas no


corpo do texto, como é praticado em modelos
acadêmicos de publicação (dissertações, teses,
artigos científicos etc.). Inspirando-me numa vasta
tradição ensaística, deixo por vezes as referências
subentendidas, levando em conta que esta obra
indica ao término do texto as leituras que lhe
serviram de base.

O leitor perceberá que este texto tem bem a


proposta de ser acessível, de rápida leitura e
rápida compreensão. O meu esforço aqui foi
sempre ir até o ponto em que não se ultrapassa o
nível da reflexão introdutória. O mais que não for
possível, é que a natureza do objeto não permite
simplificar tanto.
16

Aceito com esta publicação não apenas o


desafio de posicionar-me a respeito de tema tão
amplo, polêmico, multifacetado, mas também a
possibilidade de receber críticas e o prazer de
contar com sugestões e apontamentos que
poderão aperfeiçoar o meu olhar a respeito da
literatura e o meu trabalho com toda a gama de
textos que ela engloba. Este ensaio, como a
própria literatura, apenas começa sua história com
a publicação. O resto é por conta de vocês!

Campina Grande, julho de 2022.

Weslley Barbosa
17

INTRODUÇÃO

Opinar a respeito da natureza da arte e, por


conseguinte, da literatura não é tarefa pacífica. A
qualquer momento pode surgir (e surgirá!) um
novo texto que extrapolará qualquer compreensão
anteriormente apresentada sobre a questão.
Quando se faz isso num livro, então, é grande a
possibilidade de ver contrariadas, no dia seguinte
ao da publicação (com o agravante de que já não é
possível refazer), as reflexões desenvolvidas ao
longo de anos.

Nesse sentido, cabe sempre um pacto entre


o estudioso e o leitor: é preciso ter-se em mente
que um conceito é fruto das reflexões de alguém e
que pode variar de autor para autor (ou, num
18

mesmo autor, ao longo do tempo). Não


trabalhamos com definições acabadas em arte, ou
pelo menos não devemos ser tão ingênuos a ponto
de imaginar que elas são possíveis. Os conceitos
são importantes, são essenciais mesmo quando se
pensa na necessidade humana de refletir a
respeito do que nos cerca, mas nunca são
absolutos.

Lembro de Terry Eagleton 1, argumentando


que não é possível afirmar que a literatura seja
ficção por ser possível encontrar obras que
contrariam essa vinculação ficcional. Em seguida,
o mesmo autor alega ser mais apropriado falar na
literatura como o conjunto de obras que
apresentam uma utilização peculiar da linguagem.
Ora, não precisa procurar muito para nos
depararmos com o poema Veneza: com ou sem
bienal, de José Paulo Paes ou o Poema do beco,
de Manuel Bandeira, que não parecem, a menos

1 (EAGLETON, 2019, p. 1 – 3).


19

que se force muito o conceito, proceder numa


utilização especial da linguagem.

Obviamente, pode-se argumentar que tais


textos são exceções e que, de um modo geral, a
literatura possui sim uma utilização especial da
linguagem. Mas é obvio também que os
partidários da posição de que a ficção é inerente ao
acontecimento literário (entre os quais me coloco)
podem também alegar que a ausência de ficção é
uma exceção. Logo, nem uma nem outra posição
estão anuladas, simplesmente porque a literatura é
inalcançável a colocações absolutas.

O fato é que muito se equivocaria aquele


que procurasse explicar a arte a partir de um único
aspecto. Ficção, linguagem especial, belas letras,
textos criativos ou para deleite... nada disso abarca
de modo satisfatório o acontecimento literário e,
por isso, não se pode ser tão reducionista. Parece
mais adequado tentar-se abarcar várias
possibilidades e é isso que procuro fazer aqui.
20

A necessidade de apresentar respostas, de


opinar, de analisar para deste processo se retirar
ocorrências gerais, tudo isso (cuja importância não
pode jamais ser negada) não implica a delimitação
de fronteiras precisas. As fronteiras ou limites
precisos 2, felizmente, não existem na arte, que,
como um rio caudaloso, sempre nos apresenta
como única margem possível a terceira, como
aquela do conto de Guimarães Rosa.

Étienne Gilson3 afirmou a respeito da tarefa


de filosofar sobre a arte que, ao afirmar-se o que a
arte é, nega-se tudo o que ela não é. Embora sua
discussão a respeito da essência das coisas e do
objeto artístico seja bastante lúcida, tenho
pensado diferente do grande filósofo. Penso que
sempre que afirmamos algo a respeito da arte
nunca devemos esperar ter conseguido delimitar o

2 “quando o poeta diz: lata / pode estar querendo dizer o


incontível” (Gilberto Gil, Metáfora).

3 (GILSON, 2010).
21

que ela não é, mas apenas o que ela costuma


rejeitar na maioria dos casos. Sempre aparecerá
um texto que vai em direção oposta.

Portanto, tendo em vista que os limites não


estão na arte, mas nas interpretações que ela
suscita, o que resta é aceitarmo-nos como
portadores não de verdades, mas de possibilidades
de entrada nas discussões a respeito dela.

Como tudo que vem do ser humano, a


literatura é também matéria de interesse, de
curiosidade, de reflexão e de comentários de nossa
parte. A quantidade de grupos de discussão, perfis
em redes sociais, comentários os mais diversos nas
mais diferentes plataformas digitais mostra (na
internet, que é atualmente, para o bem e para o
mal, um retrato perfeito das mais naturais
inclinações humanas) que não nos contentamos
apenas com o fruir a arte: queremos submetê-la a
uma opinião, queremos sondar os seus “porquês”,
os seus “comos”, as suas motivações. Deixar de
22

perguntar-se a respeito de sua natureza é negar


nossa própria postura natural diante de qualquer
objeto.

Aceito aqui o desafio de lançar mais um


olhar à questão. Espero que este ensaio possa
auxiliar nos primeiros contatos do estudante de
letras e do interessado em geral com o
acontecimento literário, que possa esclarecer
alguns pontos, inspirar indagações, reflexões.

Antes de concluir e passarmos, enfim, às


colocações específicas a respeito do acontecimento
literário, é necessário que eu situe o termo
literatura dentro de toda uma discussão a respeito
dos limites que ele possui. Como nosso objetivo no
próprio corpo do texto é sondar a natureza da
literatura dentro de uma determinada
compreensão a respeito do que tal palavra
representa, é necessário que primeiro tratemos
dessa palavra.
23

Durante muito tempo, o termo literatura


foi relacionado às diversas áreas de conhecimento
produzidas pelo homem, desde as ciências até a
filosofia. Além disso, o termo também costuma ser
usado, até mesmo nos dias atuais, para se referir à
bibliografia produzida a respeito de determinado
assunto, ou seja, o conjunto de obras de certa área
do conhecimento: literatura jurídica, literatura
médica etc. 4.

Cabe destacar, ainda, que litteratura (que


remonta ao latim) tinha, nas origens de sua
utilização, o mesmo sentido de grammatiké, seu
correlato grego. Logo, originariamente literatura
significava o ensino das Letras e da escrita em
geral 5, não tendo nada a ver com a arte produzida

4 A respeito das várias aplicações do termo, sugiro a leitura


de Wellek e Warren (1976), Veríssimo (2001), Moisés (2012)
e Aguiar e Silva (2018).

5 (TAVARES, 2002, p. 21).


24

por meio de palavras, conforme adotado


atualmente.

A partir do século XVIII passa-se


gradualmente ao conceito de literatura hoje
adotado pela maioria dos manuais e meio que já
bastante difundido no senso comum, referindo-se
às manifestações escritas com finalidade estética,
ou seja, aos textos escritos com objetivos
artísticos, dedicados à fruição, ao deleite. Quando
aqui aparecer o termo literatura, é em tal acepção
que ele deve ser entendido.

Por isso e por tudo o que ainda será


afirmado, o leitor certamente perceberá que tal
conceito é amplo e poderá acolher uma grande
variedade de obras. Nesse sentido, fica excluída
aqui a noção de valor, não porque eu a julgue
irrelevante, mas por acreditar que tal discussão
foge aos objetivos de um texto que é antes de tudo
uma reflexão sobre a natureza do acontecimento
literário e, portanto, inscreve-se mais nos campos
25

da Teoria da Literatura e da Filosofia da Literatura


do que no da Crítica Literária.
26

CONCEITOS BASILARES

§ 1º A literatura é a expressão verbal e


historicamente situada de uma intuição criativa,
voltada para o belo. É sobre tal conceito que me
apoiarei para desenvolver todas as considerações
presentes neste ensaio. Cada um dos títulos que o
dividem trata particularmente de uma das noções
que compõem nosso conceito: expressão,
linguagem verbal, vinculação histórica, intuição
criativa e propensão para o belo.

§ 2º O motivo de eu iniciar minhas


colocações apresentando o conceito numa frase-
síntese é bem claro: quero que o estudante já
comece sabendo em que tipo de solo está pisando.
Não é o meu objetivo complicar a trajetória
27

daquele que a mim confiou o direcionamento do


seu estudo. De um modo geral, o modelo atual de
produção é bem distinto: recusa-se a apresentação
de conceitos sob o pretexto da impossibilidade de
eles serem universais, conforme apontei na
introdução. Coloco-me em posição distinta porque
creio ser bem mais proveitoso começar uma
viagem sabendo-se o destino final do que se
perguntando sobre o porquê de viajar. O conceito
inspira os caminhos a buscar, enfatiza pontos de
vista e até mesmo alerta para a necessidade de
reflexão a respeito da sua validade.

§ 3º Meu conceito busca abarcar alguns


pontos fundamentais da produção literária: o que
se expressa, como se expressa, de que lugar se
expressa e com que objetivos se expressa. Como
todo conceito, é provável que mereça revisões e
críticas, mas nem por isso sua importância se
anula. Temos aí um norte que guiará as opiniões
aqui colocadas e poderá mostrar aos leitores os
limites da minha abordagem.
28

§ 4º Ao longo deste ensaio, o leitor


encontrará constantemente a expressão
acontecimento literário 6, que adoto sempre que
quero me referir a algo que vai além do texto em
si, mas que ainda é inerente à literatura. Trata-se
do estar no mundo da literatura, que é concebida,
mas nunca acabada e, por isso mesmo, sempre
ressignificada num processo que não deve ser
ignorado em detrimento do texto puro e simples.
É, dessa forma, algo que percebo como uma

6 É comum utilizar-se, nos estudos literários, a expressão


“fenômeno literário” quando se pretende levar em
consideração algo mais na natureza da literatura que o texto
em si. Foi, durante certo tempo, o termo que também
utilizei. Porém, atualmente não o tenho adotado pois
percebo que muitas vezes ele aparece sem muito critério (ora
tratando do texto, ora de suas características, ora da relação
entre texto e leitura etc.). Outra possibilidade é a escolhida
por Castagnino (1970), que adotou a expressão “fato
literário”. Para os contornos que aqui eu pretendo dar à
questão, pareceu-me mais apropriado utilizar um termo
próprio, até porque a expressão “fenômeno” traz em si uma
conotação um tanto “sobrenatural”, que não é o que eu
pretendo inspirar com minhas colocações, e o termo “fato”,
por sua vez, faz pensar em algo acabado, pronto, já dado.
“Acontecimento” remete, ao mesmo tempo, ao ser e ao estar
da literatura, sua natureza e sua relação com pelo menos um
momento histórico, sua vinculação com o tempo. Eis aí a
abordagem que é mais coerente com minhas reflexões.
29

trindade una, englobando a produção da obra em


si, o texto dela resultante e a sua recepção
(leitura), de forma indissociável. Não dá para
pensar no autor sem observar o texto que
produzirá nem a expectativa que tem de encontrar
leitores para esse texto; não dá para pensar no
texto como elemento isolado, sem imaginar os
contextos históricos de sua produção ou recepção;
não dá para pensar na recepção, senão numa
relação constante com o texto e o contexto de sua
produção.

§ 5º Quando se falar em leitura7 neste


texto, não se entenda jamais como uma situação
ideal, seguindo um modelo esperado de leitor ou
de recepção. A leitura aqui contemplada é plural:
diz respeito a possibilidades, não a uma
determinada expectativa. Perceba-se que, como

7 Obviamente, temos aí uma simplificação. Como se verá ao


longo do texto, considero como literatura também os textos
orais. Portanto, onde se lê “leitura” e “leitor(es)” deve-se
considerar, como possibilidades, também “audição” e
“ouvinte(s)”.
30

irei argumentar no momento próprio, o


acontecimento literário pressupõe o contato de
várias subjetividades com o texto, em momentos
distintos e com interesses distintos. É nisso que
pensamos ao tratar de leitura, leitores e recepção.

§ 6º Outra noção que merece explicação é


a de tempo. Quando ela aqui aparecer não será em
referência a um dos elementos da narrativa (como
o narrador, o espaço etc.), pois este estudo não
procede, em nenhum momento, na sondagem de
questões particulares dos gêneros literários.
“Tempo”, neste texto, tem a ver com questões
extrínsecas, contextuais, históricas e se relaciona
indistintamente tanto à prosa quanto à poesia e ao
teatro.
31

LITERATURA E EXPRESSÃO

§ 7º O termo expressão utilizado no § 1º


deve aqui ser entendido de forma ampla. A arte
necessariamente surge da intenção de
comunicação despertada numa consciência. Trata-
se, portanto, de suprir uma necessidade básica de
se fazer ouvir, de comunicar-se.

§ 8º Logo, enquanto fruto inconteste da


capacidade humana de linguagem, que é interativa
e cultural8, a literatura não deixa de repercutir: i)

8 A quantidade de estudos à disposição do interessado em


sondar a problemática da linguagem é enorme. Não poderei
dar uma noção completa da bibliografia já produzida, nem
mesmo dos livros que possuo em minha biblioteca. Deixarei
como indicações três obras introdutórias, a partir das quais o
estudante poderá seguir seus próprios caminhos: i) LYONS,
John. Lingua(gem) e linguística: uma introdução. Rio de
Janeiro: LTC, 2013; ii) FIORIN, José Luiz (org.).
32

os anseios individuais, a necessidade de


exteriorizar o que se sente, de encontrar a
cumplicidade de uma consciência ouvinte/leitora;
ii) o complexo sociocultural no qual o autor está
inserido, pois parece impossível a expressão de
conteúdos puramente subjetivos, sem qualquer
interferência exterior.

§ 9º Porém, contiguamente à necessidade


de se fazer ouvir vem o interesse por escutar. Está
aí a outra face da capacidade de linguagem. A
intenção comunicativa de que falamos não pode
realizar-se senão tendo em vista alguém com quem
nos comunicaremos. Não se fala para ninguém,
não se escreve sem a ideia de um leitor (ainda que
num diário, escreve-se ou para que o próprio autor
possa ler no futuro ou na expectativa de que um
dia alguém desvende os segredos ali contidos). A

Introdução à linguística: I. objetos teóricos 6. ed. São


Paulo: Contexto, 2019; iii) MARTELOTTA, Mário Eduardo
et al. Manual de linguística. 2. ed. São Paulo: Contexto,
2020.
33

literatura é expressão porque ela é fruto de uma


necessidade de interação.

§ 10 O impulso criativo é também um


impulso da consciência que quer gritar ao mundo
suas impressões a respeito de algo, que quer
compartilhar com alguém os seus sentimentos e
anseios. É o grito incontido de quem precisa ter
voz, é o chamado ao diálogo ou à ação, é a ânsia
pelo contato, o desejo de aceitação ou a
expectativa do choque.

§ 11 Expressar-se é também (ou


principalmente) um ato de coragem. É aceitar o
risco de expor sua subjetividade, de mostrar suas
fraquezas e temores. É apresentar sua face para o
beijo acolhedor ou o tapa de ódio. Nunca é um
grito para o vazio, é um chamado à comunhão ou
ao debate.

§ 12 Assim sendo, como todo texto, a


literatura serve de elo, de contato, entre duas
subjetividades: a de quem produz/comunica e a de
34

quem exerce o papel de destinatário daquela


informação.

§ 13 Pelo que ficou dito no § 12, percebe-


se que o texto literário carrega em si o status de
“ponto de encontro”. É provável que ninguém vá a
um romance, um conto, um poema, buscando
apenas as palavras. O grande foco nunca é o texto,
não costumamos pensar nele quando abrimos um
livro, por mais que saibamos ou imaginemos que
aquele texto é envolvente, elegante, chamativo,
intrigante. Abrimos um livro de literatura em
busca de vivências, de experiências, de
humanidade (ainda que aceitemos a possibilidade
de aquelas vivências serem fruto de uma
“invenção”, mas justamente por serem invenção
apoiada, inspirada, ocasionada por sentimentos
bem reais e bem humanos). Como ponto de
encontro, o texto é aquele lugar privilegiado onde
duas consciências interagem, dialogam, doam-se,
completam-se, apaixonam-se, disputam,
combatem.
35

§ 14 Perceba-se: foi dito no § 13 que num


texto literário duas consciências “doam-se”,
colocando não apenas o autor, mas também os
leitores como sujeitos ativos do acontecimento
literário. A verdade é que um bom autor reveste
sim o seu texto de uma criatividade muitas vezes
inebriante, mas isso de nada adiantaria sem o
outro lado da história. O texto não termina quando
o autor o coloca no papel. Ali apenas começa a sua
história, que se completa um pouco mais a cada
nova leitura.

§ 15 Quando da leitura da obra literária,


as consciências do autor e do leitor meio que
ocupam o mesmo lugar, num diálogo. Daí porque
a literatura é tão encantadora: nela encontramos
as repercussões daquilo que sentimos, daquilo que
sofremos, daquilo que ansiamos. O texto literário é
tão intenso porque ao lê-lo não estamos apenas
decodificando palavras, estamos dialogando. Ali
experimentamos novas vidas, ali relembramos
36

experiências, ali nos assustamos com a


possibilidade do futuro.

§ 16 O encanto do acontecimento literário


está no fato de que ele nunca é expressão a esmo e,
muito mais: ele nunca expressa nada que não seja
humanamente possível 9 e que irá encontrar
repercussão em outras consciências. Mais à frente
(§ 50 e seguintes) será possível entender que a
literatura é fruto de uma intuição e, por isso,
resulta de um impulso natural que, no fim,
desperta um novo e intenso impulso natural (nas
mentes dos leitores). Isso é vida!

§ 17 Os leitores são, portanto, não apenas


receptores de informações e, por conseguinte, sua

9 Certamente há de se ter a compreensão de que mesmo um


texto de ficção científica reflete as expectativas do ser
humano em relação ao futuro, à vida em outros planetas, a
outras possibilidades de real amparados nos avanços
científicos. Mesmo a literatura fantástica ou de horror,
expressando o sobrenatural, reflete nossos medos, nossas
crenças, nossos fantasmas interiores. Tudo isso é bem
humano!
37

tarefa não é apenas interpretar os sentidos


colocados numa obra. O ato da recepção do texto
literário10, tal qual o compreendemos, é sempre
uma coparticipação na criação de significados para
um texto literário.

§ 18 Portanto, o fato de a literatura ser


fruto de uma “expressão” não quer dizer que sua
natureza anula o diálogo e a interação 11. Pelo
contrário, pela própria exigência mesmo de um
interlocutor, o caráter expressivo do texto literário
aponta para o contato inevitável do autor com os
leitores durante a efetivação do acontecimento
literário.

10 A respeito da importância da recepção para a constituição


do acontecimento literário, indico o estudo da Estética da
Recepção, tendo como ponto de partida a leitura dos vários
textos presentes em Lima (2002).

11 A leitura de Candido (2006) pode auxiliar na


compreensão da literatura a partir do seu caráter dialógico,
que ele chama de “sistema simbólico de comunicação inter-
humana” (p. 31).
38

§ 19 Os leitores, sujeitos ativos de todo


esse processo, tomam conhecimento do universo
sugerido pela obra (fruto do impulso criativo do
autor, fruto de sua intuição) e, a partir daí,
agregam-lhe significados. Dá-se, por meio do texto
um encontro de subjetividades: i) aquela que
inspirou o texto e que, por assim dizer, está dentro
dele, de forma latente; ii) aquela que frui o texto,
no momento da leitura, trazendo também, para
esse momento de recepção, todo um complexo de
sentimentos, experiências, ideologias, expectativas
etc.

§ 20 É óbvio que esse processo pode


colocar em jogo não apenas um contato amistoso,
integrado, harmonioso, prazeroso entre essas duas
subjetividades. Como processo histórico e
ideológico, o acontecimento literário pode resultar
em crise, crítica, desconstrução, repulsa, negação
etc. Da mesma forma que não se escreve um texto
senão de um lugar ideológico, também não se lê
um texto desvinculado desse caráter (nos
39

parágrafos destinados a tratar de literatura e


historicidade - § 35 a 49 - voltarei a tratar disso).

§ 21 Porém, é necessário estar atento a


uma verdade inquestionável: se o texto literário
inspira várias leituras, é bem verdade que ele não
inspira todas. O leitor, por mais que esteja
inserido nesse diálogo de subjetividades, não pode
deixar de observar o texto. Suas colocações, suas
interpretações devem partir do que
verdadeiramente foi expresso pelo autor. É em
relação a isso que o leitor deve se colocar, nunca
baseando-se em “achismos” ou inferências falsas.
Enfim, é necessário não cair no perigo da
superinterpretação 12.

§ 22 O texto literário é um objeto palpável


que representa, para contemplação do público,
aquilo que se passou na mente do artista no
momento de criação. Ali está o seu olhar, a sua
visão de mundo, sua intuição a respeito de algo e

12 Cf. Aguiar e Silva (2018, p. 35 e 36).


40

as conclusões que tirou daquilo. É nisso tudo que o


leitor deve basear-se para construir sua
interpretação, ainda que traga, também, toda uma
série de elementos de sua própria experiência para
agregar ao processo interpretativo.

§ 23 Em momento oportuno (§ 50 e
seguintes), voltarei a tratar da expressão literária
no que diz respeito ao objeto dessa expressão.
Agora, é chegado o momento de abordar a forma
como o artista se expressa quando decide produzir
literatura. De um modo geral, a noção de
expressão pode ser aplicada a todas as artes. A
especificidade da expressão literária não está na
comunicação de sentimentos ou na interação que
daí resulta. Tem-se aqui uma forma particular
plasmar sentimentos e impressões: a palavra. É
dela que tratarei abaixo.
41

A ARTE DA PALAVRA

§ 24 Foi dito no § 1º que a literatura é


expressão, mas expressão verbal. Entende-se por
verbal o tipo de linguagem que se expressa por
meio de palavras, orais e/ou escritas.

§ 25 Se a expressão em si é inerente ao
próprio caráter humano e se, conforme apontado
no § 7º, a arte de um modo geral é expressiva,
faltava indicar o que necessariamente diferenciava
a literatura das demais formas de produção
humana no que diz respeito ao seu meio de
expressão.

§ 26 A diferença da literatura para as


demais artes está no fato de que ela se utiliza das
palavras como forma de expressão, assim como o
42

que torna a pintura única são as cores, o que


constitui a matéria prima do músico é o som, o
que faz o expectador tomar conhecimento da
dança são os movimentos do corpo do dançarino.

§ 27 O escritor literário é, portanto,


aquele indivíduo que escolhe expressar sua
intuição criativa por meio de textos, assentes sob a
forma de gêneros literários 13. Cada um à sua
maneira, com sua organização e ponto de vista
próprio, expressando também sempre um modo
específico de intuição, os gêneros são um molde
que o artista utiliza para orientar sua produção e,
ao mesmo tempo, são as searas férteis em que ele
cultivará novas formas de expressão.

§ 28 Uma obra literária é


consequentemente um artefato linguístico e, como

13 Uma discussão a respeito dos gêneros literários escapa aos


objetivos deste ensaio. Pretendo discuti-la a fundo em obra
posterior. Por enquanto, para o estudante interessado,
indico a leitura de Tavares (2002), Coutinho (2008), Samuel
(2011), Moisés (2012), Hamburger (2013), Aguiar e Silva
(2018), Todorov (2018).
43

tal, carrega em si todo o potencial significativo,


estilístico, sonoro, morfológico, sintático que a
língua na qual foi produzida possui (inclusive, a
própria busca por explorar esse potencial
significativo é condição para que o texto alcance o
belo, conforme abordarei a partir do § 88).

§ 29 Muitos estudiosos já se voltaram


para a linguagem literária a fim de sondar suas
especificidades 14. Não cabendo aqui explorar a
fundo tais aspectos, lembro que o texto literário é
sempre assente numa determinada língua (pois a
linguagem verbal não é possível de outra forma),
elevando ao grau máximo as suas possibilidades
expressivas. É sempre por meio da literatura que
uma língua logra alcançar alguns dos patamares

14 Para uma revisão do debate a respeito da natureza da


literatura, indico as seguintes leituras: Castagnino (1969),
Wellek e Warren (1976), Veríssimo (2001), Tavares (2002),
Amora (2006), Samuel (2011), Moisés (2012), Hamburger
(2013), Pound (2013), Aguiar e Silva (2018), Todorov (2018
– principalmente o primeiro capítulo) e Eagleton (2019).
44

mais ricos de plurissignificação e da


metaforização.

§ 30 De tudo isso resulta a não submissão


à clareza, à transparência na expressão das ideias.
O texto literário por vezes é ambíguo, opaco,
insubordinado sintaticamente, repleto de
metáforas. Obras que serviriam de exemplo para
tais afirmações são abundantes em qualquer
literatura, pelo menos as ocidentais.

§ 31 Na literatura, a escolha das palavras


não obedece a critérios de clareza e
informatividade, mas é sempre diretamente ligada
ao objetivo estético, lúdico.

§ 32 Em O ser e o tempo da poesia,


Alfredo Bosi 15 afirma que, no poema, força-se o
signo para o reino do som. Parafraseando o
mestre, eu diria que na literatura em geral força-se
o signo para o reino do improvável. Dentro de uma

15BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo:


Companhia das Letras, 2000.
45

obra literária uma palavra, um sintagma, uma


imagem sempre podem ter significados variados,
inesperados. O termo “memória”, ao aparecer no
romance de Machado de Assis (Memórias
póstumas de Brás Cubas), adquire um novo
matiz, supera expectativas, ganha contornos
inusitados. A palavra “pedra”, quando no poema
de Drummond (No meio do caminho tinha
uma pedra) é ressignificada, abunda em
possibilidades interpretativas.

§ 33 Retomando o que foi exposto no §


24, chamo atenção para o fato de que, sendo a
literatura uma expressão verbal, ela se constitui
como uma materialização da capacidade
linguística por meio de textos tanto orais quanto
escritos.

§ 34 Portanto, considero as manifestações


orais como partes do conjunto que forma a
literatura. Assim, ao lado de contos, romances,
crônicas, poemas impressos, roteiros teatrais etc.,
46

estão os mitos, as lendas, as parlendas, a poesia


oral... Tais manifestações comungam de várias das
características que exploro ao longo deste ensaio16
e seria pouco criterioso exclui-las do âmbito da
literatura apenas levando em conta sua não
impressão no papel. Já em termos de abordagem
crítica, parece adequado concordar com Massaud
Moisés 17, quando ele afirma que o exercício da
crítica pressupõe a contemplação do texto
impresso (ainda que seja o próprio pesquisador
quem tome a iniciativa de verter para o papel o
texto que até então apenas circulava oralmente).

§ 35 O fato é que, oral ou escrita, a


linguagem literária se reveste de peculiaridades.
Cada estudioso vai aplicar a tais peculiaridades um
determinado conceito: linguagem portadora de
metáforas polivalentes (MOISÉS, 2012), de

16 Embora, também, possuam suas determinações próprias,


que implicam e exigem posturas específicas por parte
daqueles que pretendem estudá-las. Sobre tais
especificidades, sugiro a leitura de Candido (2006).
17 (2012, p. 6).
47

literariedade (JAKOBSON apud EICHENBAUM,


2013), de significantes parciais (ALONSO, 1966) ...
Independentemente do termo utilizado, fica clara
essa peculiaridade, que faz com que a linguagem
seja o primeiro aspecto que salta os olhos na
leitura de um romance, de um conto e
principalmente da poesia. Dificilmente passam
despercebidos os textos de Guimarães Rosa, de
Clarice Lispector, de Manuel de Barros, de
Augusto dos Anjos, de Machado de Assis. Cada um
ao seu modo, uns de forma mais intensa, outros de
modo mais comedido, todos apresentam um
tratamento particular em relação à linguagem.

§ 36 Se a linguagem literária tem na


metáfora o seu núcleo 18, se ela é “carregada de
significados” 19, se nela chama atenção “o valor
significativo e expressivo dos termos” 20, temos aí a
justificativa do título desta seção. Estamos diante

18 Moisés (1982).
19 Pound (2013).
20 Tavares (2002).
48

da arte da palavra, a arte que faz do verbo seu


aliado para a reconstrução da realidade.
49

LITERATURA E HISTORICIDADE

§ 37 A literatura é expressão verbal


historicamente situada. Por isso, o acontecimento
literário tem uma vinculação indiscutível com o
tempo e a sociedade 21. Não existe obra isolada
desses dois fatores 22, assim como a própria leitura

21 Sobre a relação da literatura com a sociedade, com o


tempo, com as ideologias há muitos trabalhos importantes à
disposição. Indico principalmente a leitura de Candido
(2006), mas também pode ser relevante a consulta de Bosi
(2000, op. cit.). Embora trate especificamente do gênero
poético, o livro de Bosi é de uma sensibilidade ímpar na
consideração do caráter sempre socialmente vinculado da
literatura. E muito influenciou a abordagem que ponho em
prática neste ensaio.

22 Nem sempre isso salta aos olhos. Em alguns casos tal


caráter só é percebido quando refletimos melhor a respeito
do texto. Como exemplo, cito o poema Namorados, de
Manuel Bandeira. Num tom coloquial o poeta parece
simplesmente abordar, com muita sensibilidade uma cena
cotidiana de um jovem casal. Mas a liberdade do texto, a
50

não pode alhear-se deles. Tempo cronológico,


história, cultura e ideologias são aspectos
(contextuais) essenciais da relação dos elementos
linguísticos da obra literária (cotextuais) com o
mundo palpável, real. Desconsiderá-los é correr o
risco de não entender uma obra em sua totalidade,
é privar-se de estar atento às referências que uma
obra faz ou de compreender as ideias que
motivaram sua produção.

§ 38 A produção do texto literário é um


ato historicamente vinculado e o texto carrega em
si as marcas dessa vinculação. A recepção desse
mesmo texto se constitui num novo ato histórico,
que o ressignifica, o enriquece e o expande. Se um
texto nunca é vazio de sentidos e de riqueza
estética e estilística antes da leitura, é bem

própria escolha do tema e a forma como é realizado


evidenciam a vinculação do autor ao período literário
conhecido como Modernismo. Às vezes a o momento
histórico e a sociedade não são o tema, mas a inspiração ou,
ainda, o elemento influenciador do estilo, que muitas vezes
só é percebido num segundo momento, já de reflexão a
respeito da leitura.
51

verdade que após ela (ou as várias leituras) aquele


texto ganha um pouco mais de riqueza, pois foi
ressignificado num novo contexto, contemplado
sob um olhar diferente daquele que tivera o seu
autor, expandido pelas nuances de um novo
momento histórico.

§ 39 Um estudo sério a respeito da


literatura não pode deixar de mencionar essa
vinculação, ainda que não possua como objetivo a
sondagem detalhada de tal relação. Este ensaio
não é nem pretenderia ser uma Sociologia da Arte
ou uma Crítica Política, mas ao assumir a tarefa de
apontar os principais aspectos que entram em jogo
para a existência do acontecimento literário, eu
não poderia me esquivar da necessidade (e mesmo
da obrigação) de observar o quanto a arte em geral
e a literatura bebem dos elementos contextuais.

§ 40 A relação da literatura com a


historicidade passa, inevitavelmente, pelo tempo.
Enfatizo o termo “tempo” para referir-me aos
52

contextos historicamente situados em que cada


texto é concebido e lido, que nunca são iguais,
porque sempre recebem a influência do período
em que se estabelecem 23. A escolha tem também
outra razão: a relação da obra literária com o
tempo é tão forte que chega a ser conflitiva, de
modo que o acontecimento literário pode colocar
em jogo até quatro tempos distintos (de uma vez!).

§ 41 Pense num leitor contemporâneo de


Dom Casmurro, de Machado de Assis. Ao tomar
o livro para leitura ele se insere num
acontecimento literário que de pronto coloca em
evidência dois tempos históricos e bem reais: o de
produção da obra e o de recepção. São tempos
diferentes, mas também sociedades diferentes que
se relacionam naquele momento. Pode haver um
choque, pode haver o estranhamento, pode haver a
cumplicidade, mas a diferença estará sempre

23 Talvez seja interessante, para entendera importância da


historicidade na constituição do acontecimento literário, a
leitura de Castagnino (1970).
53

latente. Porém, não é tudo: o próprio texto possui


um tempo interno, como qualquer obra. Esse
tempo interno menciona dias, anos, institui
referências históricas de um passado anterior ao
da escrita do texto... Perceba-se: temos um escritor
produzindo uma obra na República Velha,
ambientando seu livro no Segundo Império e
sendo lido no século XXI. Mas é claro que não é só
isso. Há ainda a sucessão das várias leituras da
obra ao longo do tempo, os diferentes impactos
que causou, as mudanças de opiniões (que
refletem mudanças sociais) ... É provável que tudo
isso venha à tona, principalmente num livro que já
entrou para o imaginário cultural do país:
certamente nosso leitor hipotético sabe da grande
dúvida (traiu ou não?) antes mesmo de abrir o
livro. Essa sucessividade de momentos e recepções
inegavelmente contribui para a história do texto.

§ 42 São quatro tempos em relação (em


harmonia ou em choque), mas poderiam ser três,
dois (às vezes o contexto de produção é o mesmo
54

da recepção, então não há nem a disparidade


temporal nem uma sucessão de recepções). Não
importa agora sondar tais questões quantitativas
quando nosso objetivo é perceber que literatura (e
arte) não seria nada se não trouxesse em si, em
tudo o que a envolve desde a gênese até a leitura
(complexo que chamo aqui de acontecimento
literário) as repercussões da relação do homem
com o tempo. Ela careceria de verdade.

§ 43 História também é cultura e


ideologia (desde aquilo que motiva as relações
humanas até o que determina a própria narrativa
da história). Quando um texto nasce, não flutua
sobre as nuvens ou descansa sob uma redoma: ele
nasce num mundo que pulsa com a variedade
cultural, social, política, ideológica, religiosa. O
autor se filia, ao seu modo, a cada um desses
aspectos. Ele tem (ou não) uma religião, uma visão
do que é a cultura, uma filiação política, um
conjunto de ideologias, um lugar social... A obra
traz tudo isso em si, mas não paramos por aqui.
55

Sendo fruto de uma vinculação cultural e


ideológica, o acontecimento literário é palco de
afirmações e de disputas.

§ 44 O autor pretende muitas vezes não


apenas se fazer ouvir, mas convencer, inspirar,
afrontar. Se daí para o panfleto é um passo (e a
arte perde muito quando é usada como pretexto
para o puro panfleto), a verdade é que a boa
literatura, logrando aliar a riqueza da forma com a
força do conteúdo, irá sim, ao passo em que
encanta, diverte, distrai, trazer em si as marcas
dessas relações, com aquilo que tem de
agregamento e disputa.

§ 45 Parece mesmo que toda grande obra


é política. É assim de Jorge Amado a Itamar Vieira
Júnior, passando por Chico Buarque, por
Drummond. Mas não nos enganemos: isso não é
produto da contemporaneidade. Sempre foi assim!
Homero (e sua tomada de partido em prol dos
gregos na Ilíada - o “Catálogo das Naus” é um
56

grande canto sobre o poderio militar e político) e


Victor Hugo (com seu monumental manifesto que
é Os Miseráveis) são exemplos perfeitos.

§ 46 Mas, assim como acontece com o


tempo, que se liga não apenas à produção, mas
também à recepção das obras, a cultura e as
ideologias também estão presentes em cada leitor.

§ 47 E, se no § 40 evidenciei que o
acontecimento literário pode colocar em relação
ou conflito até quatro tempos distintos, é
importante destacar que o mesmo pode ser dito da
cultura. Pode haver uma cultura do autor, uma do
leitor, uma interna da obra e todo o complexo de
diferentes culturas das várias possíveis recepções
que somaram à obra visões de mundo, significados
etc. ao longo do tempo. Pense no poema I-Juca-
Pirama, de Gonçalves Dias. Tal poema remete a
uma cultura (que lhe “habita” internamente), mas
que não é evidentemente a mesma do seu autor.
Um leitor do interior do Nordeste brasileiro do
57

século XXI possui uma cultura distinta das duas já


mencionadas e a história do texto desde a sua
produção, há mais de 170 anos (que também
integra o seu acontecimento literário, porque o
texto sempre é ressignificado a cada leitura),
evidencia a enorme quantidade de diferentes
culturas que com ele já se relacionaram.

§ 48 A história do texto literário vai se


adensando e enriquecendo à medida em que novas
leituras vão sendo feitas ao longo do tempo, cada
uma delas trazendo para a recepção as marcas do
seu contexto.

§ 49 É por isso que obras são esquecidas,


autores são “sepultados”, tendências estéticas
surgem e desaparecem. Quando já não são aceitas
como portadoras das mensagens que precisam ser
ditas, as obras e as estéticas são relegadas ao
ostracismo, novos autores são exaltados, novas
obras passam a figurar entre as mais comentadas,
estudadas, recomendadas. Mas, como nada é
58

eterno, ou mesmo como a história humana parece


ser antes um grande ciclo do que um contínuo, não
é incomum que tendências ressurjam, que autores
sejam “ressuscitados”, que obras voltem a ser lidas
e estudadas. Sobre isso, ninguém tem controle,
apenas segue-se a marcha do tempo.
59

LITERATURA E INTUIÇÃO CRIATIVA

§ 50 O texto literário é fruto de uma


intuição criativa. Não basta, para tratar do
acontecimento literário, associá-lo à expressão
verbal ou à historicidade. O cientista, o jornalista,
o historiador, todos eles se utilizam de palavras e,
claro, em sua atuação profissional não se
desvinculam de uma época nem de uma cultura.
Porém, o escritor literário não produz o mesmo
tipo de texto que o jornalista, o cientista, ou o
historiador. Há na literatura uma postura
diferente diante dos objetos e é sobre tal postura
que pretendo tratar nos próximos parágrafos.
60

§ 51 É na noção de intuição 24 que reside o


cerne do fazer literário. Ao intuir a respeito de
determinada coisa, o ser humano submete aquele
objeto do mundo real ou realizável aos imperativos
de sua consciência. A intuição independe de
conhecimento teórico ou racional, tratando-se de
uma faculdade subjetiva e inata de nossa espécie.

24 A noção de intuição como fator fundamental do


acontecimento literário foi explorada por Tavares (2002) e
Amora (2006). Indico também a leitura de ALONSO,
Dámaso. Poesía española: ensayo de métodos y limites
estilísticos. Madrid: Gredos, 1966, que embora seja uma
obra específica sobre o texto poético, muito pode esclarecer a
respeito da intuição não apenas do autor, mas também do
leitor para a consolidação do acontecimento literário. Em
termos mais gerais, o livro de Croce (2008), tratando da arte
como um todo, também aborda a questão. Já para uma
noção mais ampla de intuição, extrapolando o campo
estético e já dentro de uma perspectiva que sonda os
componentes do pensamento e do conhecimento humano,
indico STEINER, Rudolf. Intuitive thinking as a
spiritual path. Hudson: Anthroposophic, 1995. Para um
passeio rápido, porém panorâmico, das discussões acerca da
intuição ao longo da história da filosofia, recomendo a
leitura do verbete específico em ABBAGNANO, Nicola.
Dicionário de filosofia. 6. Ed. São Paulo: Martins Fontes,
2012. Vale ressaltar que, embora minha compreensão a
respeito da intuição artística tenha como base esses e outros
textos, ela assume aqui contornos bem específicos e, em
certa medida, originais.
61

§ 52 O olhar intuitivo para o mundo é o


olhar básico, primordial, essencial, não-mediado
que estabelece uma relação subjetiva do indivíduo
com aquilo que é contemplado. O mesmo dizemos
dos sentimentos: também intuímos a respeito
daquilo que sentimos e o resultado dessa intuição
nem é nem precisa ser igual ao olhar
especializado, como o do psicólogo, o do cientista
etc.

§ 53 Porém, se é verdade que a intuição


pura e simples é natural e está presente,
potencialmente, em todos os seres humanos, não
há que se negar dois aspectos muito importantes
na consideração da questão: i) não intuímos de
forma semelhante - a experiência com o real, com
o fato, o objeto, o sentimento é sempre única,
como únicas são as personalidades; ii) em se
tratando de arte, o processo de intuição vai além
da pura impressão. Isso porque, partindo da
contemplação, o olhar do artista se reveste de uma
62

intuição criativa, e a presença de tal adjetivo já


demonstra uma postura diferente a ser adotada.

§ 54 Com a intuição criativa é


estabelecido um complexo de relações que passa
pela contemplação, pela assimilação, pela
pressuposição, pela idealização, pela avaliação e
pela conclusão.

§ 55 O ato de contemplar o objeto ou


experimentar o sentimento é o primeiro passo da
produção literária. É ele que desperta o artista
para a necessidade de expressão, é ele o ponto
inaugurador do acontecimento literário. Perceba-
se: aqui tenho me referido mais especificamente a
“objetos” e “sentimentos”, mas a verdade é que a
intuição pode partir de uma ideia. Isso não anula o
processo: contemplar a ideia, o impulso cognitivo
que veio à mente é, também, uma forma de iniciar
a intuição criativa.

§ 56 A assimilação pressupõe o início da


reflexão a respeito do objeto. O ato de produção
63

literária nunca se esgota na simples observação ou


no simples experimentar de um sentimento
qualquer. É aqui que o escritor “traz” a realidade
para o convívio de sua mente. Mais à frente, irei
argumentar que a literatura nunca é a realidade e
é na assimilação que se inicia esse processo de
conversão da realidade em algo distinto. O objeto
contemplado passa, agora, na mente do artista,
pelo confronto com a subjetividade e os elementos
de caráter histórico (como o tempo e a ideologia,
que citei anteriormente).

§ 57 Com a pressuposição inicia-se o


processo de levantar-se conjecturas a respeito do
objeto contemplado. Aqui a subjetividade do autor
começa a trabalhar de modo mais intenso,
trazendo contribuições importantes não apenas
para a significação do objeto que será despertada
na mente, mas principalmente para o confronto
que o indivíduo fará dos seus sentimentos com o
objeto. Que tipo de sentimentos aquilo desperta?
Quais ideias são trazidas à mente? E por quê?
64

Nesta etapa os aspectos históricos e ideológicos


que tinham entrado em cena na assimilação
começam a influenciar o artista na compreensão
que dará e nas afinidades que terá em relação ao
que é contemplado. Também é nesta etapa que a
intuição artística começa verdadeiramente a
ganhar contornos diferenciados em relação à
intuição natural presente em todos.

§ 58 A idealização é a gênese da ficção. É


aqui que o acontecimento literário se volta para o
campo das possibilidades e o escritor começa a
desprender-se dos contornos reais do objeto
contemplado e a analisá-lo a partir dos contornos
subjetivos que sua mente lhe foi dando desde o
início do processo. Trata-se, pois, de colocar em
evidência o processo imaginativo, a criatividade.

§ 59 Na avaliação o autor reflete sobre o


produto dos processos anteriormente realizados. É
aqui que a ideia, já formada, passa pelo confronto
com a consciência crítica do autor. Aqui, avaliar
65

não passa, obviamente, pela atribuição de critérios


quantitativos, mas sim pela autocrítica e pela
análise.

§ 60 Na conclusão o processo intuitivo


enfim se completa. É neste ponto que o autor já se
prepara para sair do campo da intuição pura e
simples e partir para o campo da expressão.
Dando por finalizada a contemplação e retirando
dela todo um jogo de relações e significados, o
escritor se sente pronto para devolver ao mundo
palpável aquilo que dele colheu. Sua contemplação
não se dera sem propósito, pois desencadeou um
processo que estabeleceu uma nova existência,
distinta daquilo que foi contemplado: a ideia
intuída, que resultará na obra expressa.

§ 61 Do momento em que observamos a


coisa ou experimentamos o sentimento até o exato
ponto em que concluímos algo a seu respeito, tudo
pode se dar de maneira muito rápida (e não
necessariamente linear), mas sempre estabelece
66

fortíssimos impulsos emocionais em nossa


consciência. Da observação de uma bela paisagem
ou da experiência do amor ou do medo, podem
resultar inúmeras impressões, todas elas
estabelecidas a partir de uma atitude intuitiva.

§ 62 Assim, um texto literário é sempre


repleto de subjetivismo, de sentimentos e de
visões do real, posto que é o resultado (e a
expressão) de uma intuição.

§ 63 Todavia, ao observar esse resultado,


esse texto, veremos que aquele objeto que fora
observado e intuído jamais será o mesmo.
Submetido ao processo de idealização, o objeto ou
sentimento agora não mais tem o aspecto de antes,
mas aquele aspecto que lhe deu o autor. Trata-se
da coisa não como ela é, mas como poderia ser,
conforme já nos ensinava Aristóteles 25.

25 Aqui me refiro à questão da mimese aristotélica


(ARISTÓTELES, 2017) e sua particularidade de ser não a
cópia do real, mas a representação do real, de criar uma
67

§ 64 Ou seja, a literatura tem como base a


realidade, mas nunca é a realidade. Por isso que a
ficção é possível. Diante da pergunta: “o Poema
tirado de uma notícia de jornal, de Manuel
Bandeira é literatura?” a única resposta possível é
que sim, pois ele não é uma notícia de jornal. Ele
até pode ter se baseado em notícias reais, como já
foi provado por estudiosos, mas ele não é a notícia.
Sua organização (em versos), seu ritmo, o lugar
que ocupa (um livro de poesia), tudo isso denuncia
que o texto apresenta uma possibilidade de real,
mas não é o real. Sua gênese não está no fato, mas
na intuição do artista a respeito do fato.

§ 65 Talvez agora seja possível entender


porque eu argumentei no § 50 que o texto
produzido pelo escritor literário é diferente
daquele produzido pelo jornalista, o cientista ou o
historiador: em todos estes casos o ponto de

outra realidade, possível, em que seres agentes


desempenham ações inspiradas no mundo real (LIMA,
2003; HAMBURGER, 2013).
68

partida é o objeto real, é lá que o olhar do escritor


está ancorado. Além disso, o real não é apenas o
ponto de partida: o produto das reflexões e
informações ali contidas também direciona o leitor
para o mesmo real que originou o texto. Na
literatura o ponto de partida não é o real, mas a
intuição, e aquilo que estará no texto nunca será
também o real em si, mas um real transfigurado,
reconstruído, ressignificado.

§ 66 Argumentei na seção anterior (§ 37


até 49) que o texto literário é fruto não apenas dos
sentimentos do artista, mas também da
historicidade, sendo por ela influenciado a partir
principalmente de dois elementos básicos: o
tempo e a ideologia. Tais elementos obviamente
têm sua influência direta no processo intuitivo,
principalmente nas etapas de assimilação e
pressuposição. É por isso que o resultado desse
processo, plasmado no texto, reflete sempre uma
69

visão de mundo 26 do autor, ou seja, seu modo


pessoal de interpretar o mundo e as relações
humanas.

§ 67 Daí também resulta que, sendo a


literatura fruto de um processo intuitivo e
trazendo em si uma visão de mundo, ela não pode
englobar todo o real. Temos aqui não apenas uma
limitação, mas principalmente uma escolha. Pense
num fotógrafo: ele não capta com sua câmera toda
a realidade que o cerca, mas apenas aquela(s)
cena(s), aquela(s) pessoa(s), aquele(s)
acontecimento(s) que lhe parecem interessantes,
intrigantes, marcantes, ou seja, dignos de
eternizarem-se. O mesmo se dá com o escritor: sua
sensibilidade se volta para um recorte do real e,
consequentemente, o seu texto jamais poderá
ultrapassar os limites desse olhar sensível.

26 Massaud Moisés (2004 e 2012) discute com muita


propriedade a relação entre a visão de mundo (cosmovisão;
mundividência) e a literatura. Tal discussão extrapola os
objetivos deste ensaio.
70

§ 68 A visão de mundo, pode-se concluir,


é sempre um recorte possível, uma janela aberta
que mostra apenas a parte do mundo exterior que
cabe nas suas dimensões. O conjunto das obras
literárias é como uma série de janelas numa
parede de um casarão: cada uma mostra um ponto
de vista, nenhuma mostra tudo, mas todas nos
ajudam a entender melhor o que é o mundo.

§ 69 Até o momento, tenho enfatizado um


dos aspectos que formam o binômio que dá nome
a esta seção: intuição criativa. Já tratei demasiado
da intuição e sabemos como ela se dá e que dela
não resulta o real, mas uma possibilidade do real.
A essa possibilidade chamei de ficção. Agora resta
refletir sobre tal termo.

§ 70 O resultado do fazer literário é


a ficção, porque esse fazer se apoia numa intuição,
mas numa intuição criativa! O escritor literário
“cria” uma realidade possível, inspirada no mundo
real, mas nunca igual a ele, uma realidade
71

paralela. Sem esse passo decisivo não haveria


literatura, mas apenas uma reflexão comum
(senão um devaneio diante da emoção muitas
vezes exagerada que toma o artista).

§ 71 Logo, essa realidade possível,


também chamada de pararrealidade, 27 é um
ambiente inspirado em nosso mundo real, mas
diferente dele, porque, em última análise, ele não é
o nosso mundo, mas uma possibilidade acerca de
como ele poderia ser 28, uma reconstrução do
mundo, operada no interior da consciência do
artista e externada por meio do texto literário. Tal
é o grau de perícia e beleza conferido pelos bons
artistas que, verdadeiramente, passamos a
considerar os textos lidos como verdadeiros, de tal
modo que, por meio deles, rimos, nos

27 (MOISÉS, 2012, P. 11). Há autores que falam numa


“supra-realidade” (TAVARES, 2002), termo com o qual não
concordo.

28 (ARISTÓTELES, 2017, p. 95).


72

emocionamos, nos revoltamos, refletimos... É


como se estabelecêssemos um pacto com o autor,
aceitando tomar sua obra como uma extensão do
mundo palpável, como a confissão de algo real. Ou
mais: como a confissão de algo nosso, ou pelo
menos acontecendo ao nosso redor.

§ 72 Porém, para que a minha posição


fique clara, é necessário que eu explique duas
coisas fundamentais a respeito do termo ficção
antes de seguir adiante.

§ 73 Em primeiro lugar, ao tratar da


ficção como inerente à literatura, estou aqui
englobando tanto a prosa de ficção propriamente
dita, quanto a poesia e o teatro29. Isso quer dizer

29 Há discussões a respeito de o teatro ser parte da literatura


ou ser uma arte autônoma. Embora modernamente se
agregue poesia, prosa e teatro sob o mesmo rótulo de
literatura, a verdade é que o texto teatral, como o roteiro de
cinema, tem propósitos diferentes. O acontecimento literário
se dá num processo que começa com a intuição artística e
termina com a recepção, ou seja a leitura (mas também
audição, em caso de literatura oral) e interpretação da obra.
O teatro, como o cinema, funciona de modo diferente. O
acontecimento teatral envolve no meio do caminho entre
73

que toda obra que se pretende literária cria


ficção 30. Mesmo um poema lírico subjetivo e
confessional, mesmo um romance histórico ou
biográfico terá ficção (caso contrário não serão
nem poema nem romance, ou seja, não serão
literatura). Mesmo nesses casos o autor parte do
sentimento real, do fato histórico ou da vida de
alguém, mas só logrará êxito na escolha do nome
que dá aos seus textos (poema ou romance) se de

intuição e recepção todo um complexo de relações que lhe é


próprio (ensaios, escolha do elenco, figurino, montagem do
cenário, encenação em si etc.). Todavia, é fato que o texto
teatral isolado (por mais que isolá-lo seja podar um pouco de
sua natureza) pode ser lido perfeitamente como um
romance, um conto... É, sem dúvidas, um tema complexo e,
embora esteja chamando a atenção do leitor para tal fato,
pretendo aqui apenas despertar a reflexão. Não é meu
objetivo aqui, conforme já mencionado antes, tocar na
problemática dos gêneros literários. Portanto, seguindo a
prática majoritária, mencionei o teatro como parte das
manifestações literárias.

30 Käte Hamburger (2013) apresenta uma discussão


interessante a respeito da relação da literatura com a ficção
partindo da diferenciação entre a narrativa épica (terceira
pessoa) e a narrativa em primeira pessoa e o gênero lírico.
Tal distinção, embora relevante para a reflexão a respeito da
natureza da literatura, não será contemplada aqui.
74

sua intuição resultar um texto em alguma medida


criativo, ficcional. O fato é que um dado
personagem histórico, quando no texto, está preso
ao ponto de vista do autor (é a imagem da janela,
que utilizei acima). Só nos será dado à
contemplação aquilo que o autor vê (ou quer ver).
Tal personagem não pode agir de tal ou tal modo,
não tem liberdade alguma, além daquela que o
texto lhe dá (ou lhe impõe) 31.

§ 74 No caso do poema lírico, a carga


subjetiva colocada no momento da intuição a
respeito do sentimento, da angústia, da paixão, da
vivência é tão forte que o objeto que gerou a
reflexão é muitas vezes exagerado, envolto numa
aura mística, exaltado, desfigurado (expresso
como belo ou feio ao extremo), enfim, o
sentimento é real (como, de fato, todo ponto de

31 Chamo atenção para as considerações de Wellek e Warren


(1976, p. 27): “uma personagem de romance é diferente de
uma figura histórica ou de uma figura do mundo real. É
formada meramente pelas frases que a descrevem ou pelas
que foram postas na sua boca pelo autor”.
75

partida em literatura tem alguma ancoragem no


real), mas a obra que dele resulta é bem diferente.
Não é o sentimento, é sua recriação. O poeta toma
a realidade para dentro de si, submete-a a todas as
etapas da intuição acima mencionadas e a devolve
para contemplação, mas aí ela já não é a mesma.
Portanto, tanto quanto a prosa, a poesia é também
ficção!

§ 75 No caso do romance histórico ou


biográfico, creio ser presumível que o próprio
olhar subjetivo cria um ponto de vista específico
para o que é narrado, dá àquele fato ou vida real
contornos bem particulares, indissociáveis da
consciência que criou a obra. Os sertões não é a
Guerra de Canudos, embora (ou justamente por
isso) Euclides da Cunha tenha presenciado os fatos
de perto, assim como a Batalha de Waterloo nOs
miseráveis não é a batalha em si, bem como
Inconfidências mineiras, de Sonia Sant’anna
não é a vida dos inconfidentes. Tudo isso é a
criação de mundos possíveis, ou seja, ficção.
76

§ 76 Em segundo lugar, quando falo em


ficção, não estou anulando a possibilidade de o
real servir de base para a obra, muito menos de
esta ser verossímil, possuir uma verdade interna,
como já ficou claro anteriormente. Ficção não
necessariamente é mentira, ou negação do real.
Como já foi dito, “o oposto da ficção não é a
verdade, mas o fato”32.

§ 77 Ao instaurar a ficção, o escritor


literário não se nega a dialogar com o mundo real,
a trazer para o texto os reflexos dos seus embates,
das suas incoerências, daquilo que possui de
encantador e de repulsivo. Ele não se nega a
refletir no seu texto sentimentos bem humanos,
esses mesmos sentimentos que repercutirão em
nós, quando da leitura, e nos conduzirão à
emoção, ao choro, ao riso, à revolta. O que ocorre é

32(WELLEK; WARREN, 1976, p. 37). Obviamente, como já


demonstrei anteriormente, tenho conhecimento da posição
de Eagleton (2019) a respeito da inutilidade da distinção
entre “ficção” e “fato”. Não me filio à mesma posição,
contudo.
77

que o escritor se propõe a não ficar preso ao fato, a


não se subordinar aos seus limites, mas ir além,
trabalhar com possibilidades, explorar vários
matizes. É aí que reside o cerne da problemática
da ficção.
78

A BUSCA PELO BELO

§ 78 A literatura pode conseguir muito.


Pode induzir o outro à reflexão, pode proporcionar
um momento de distração e lazer, pode
emocionar, revoltar, incomodar, conscientizar e
ensinar. Ela pode ser o elo de comunicação entre o
autor e os seus leitores. Ela pode tornar-se um
documento histórico, um panfleto para
determinada atuação social, o ponto de partida
para acionarmos memórias há muito perdidas.
Enfim, pode ser tudo isso e muito mais, mas é bom
que se tenha em mente que, quando surge, a única
e originária finalidade do texto literário é
comunicar uma intuição a respeito de algo, mas
79

comunicar de forma interessante, de modo a


encantar, emocionar, distrair 33...

§ 79 Quando se propõe a produzir um


texto de cunho artístico, o escritor, muito mais que
ensinar, criar uma teoria ou fazer história,
pretende escrever um texto agradável, encantador,
que sirva à fruição, ao deleite, ao entretenimento.
É óbvio que não se exclui do processo de produção
o objetivo de convencer, de despertar a reflexão,
de inspirar atitudes. Porém, se o objetivo fosse
apenas esse, poder-se-ia escrever um tratad0, um
texto didático, uma reportagem etc.

§ 80 Está claro que a literatura surge de


um objetivo a mais. O escritor literário busca,
acima de qualquer coisa, produzir arte e, para isso,
ele pretende fundamentalmente comunicar-se
através do belo.

33 “Despertar noleitor o tipo especial de prazer, que é o


sentimento estético” (COUTINHO, 2008, p. 23)
80

§ 81 Neste ponto do ensaio, eu acabo


entrando, pela própria natureza das questões aqui
desenvolvidas, numa discussão a respeito da
função da literatura. Muitos estudos já se
debruçaram sobre tal problemática, alguns dos
quais são citados nas referências bibliográficas
deste texto. Embora minhas colocações conduzam
inevitavelmente para a compreensão de que a
principal função da literatura é servir à fruição (e
toda a argumentação que venho construindo se
insere justamente neste posicionamento da arte
como produção principalmente estética e não
necessariamente útil), é bem verdade aquilo que
nos afirmam Wellek e Warren (1976) e Gilson
(2010) sobre toda boa arte conseguir harmonizar o
“doce” e o “útil” (conceitos já presentes em
HORÁCIO, 2005), o esteticamente agradável e o
pragmaticamente situado34.

34 Embora não se possa deixar de notar que há opiniões bem


contrárias, como a de Croce (2008).
81

§ 82 O fato é que, embora possam (e


mesmo devam ser úteis) a literatura e a arte em
geral partem prioritariamente da intenção de
serem fruídas, de instituírem um ponto mágico de
contato entre a consciência que se confessa ou
mostra sua visão particular da realidade e a
consciência que será tomada pela beleza daquela
obra, que inspirará o contato com uma nova
experiência. Perceba-se que minha opinião é de
que a utilidade vem como consequência do logro
artístico, não como meta 35.

§ 83 Tendo em vista tais colocações,


dentro dos limites deste ensaio, considero que
belo 36 é aquilo que agrada 37, que prende a

35 O próprio Gilson (2010) trata disso, ao diferenciar a


beleza de objetos de utilidade prática e a beleza da obra de
arte.

36 É grande a discussão a respeito do belo, seus limites, suas


especificidades. Como foge aos objetivos aqui estipulados
discorrer detalhadamente a respeito de tal problemática,
preferi apresentar um conceito suficientemente adequado
aos meus objetivos, sem entrar em questões como gosto,
utilidade, moralidade, ou categorias estéticas. Porém, fica o
82

atenção daquele que contempla o objeto e, em


consequência disso, serve à fruição.

§ 84 Embora tenha afirmado no § 83 que


“belo é o que agrada”, estou ciente de que nem
tudo o que agrada a um indivíduo agradará a
outro. Trata-se de um conceito em si mesmo
subjetivo, de modo que um texto certamente
encontrará os aplausos de uns e a resistência de
outros (isso por vezes aconteceu na literatura e na
arte em geral). Além disso, nem sempre o que
agrada à crítica agrada ao público, e vice-versa.
Mas nada disso anula a validade do conceito, posto

convite à pesquisa sobre o tema: para um contato inicial com


a questão, sugiro a leitura de Tavares (2002), principalmente
os capítulos iniciais. Em seguida, numa abordagem mais
específica, pois filiado à filosofia da arte, sugiro a leitura de
Gilson (2010), bem como o estudo introdutório de
Rosenfield (2006). Num terceiro momento creio que já se
esteja no ponto de conhecer obras mais específicas, como
Longino (2005) e Horácio (2020), assim como as obras de
Nunes (2016) e Croce (2008). Tal percurso já dará ao
estudante uma visão bastante abrangente da problemática
do belo (embora introdutória, em última análise, posto que
não citei aqui as obras de um Herder, de um Hegel...).

37 (NUNES, 2016; GILSON, 2010).


83

que sendo o belo uma busca constante do autor e


uma característica que será percebida pelo leitor
(conforme argumentarei no § 87), ele faz parte do
acontecimento literário, ainda que nem sempre
seja alcançado da maneira desejada pelos leitores,
em todos os textos que se pretendem literários.
Passemos, pois, à sondagem mais detalhada do
belo.

§ 85 A característica do belo que mais me


é cara, dentre aquelas que têm sido destacadas
pelos estudiosos do tema, é a harmonia. De
acordo com tal princípio, algo é belo quando é bem
formado, bem proporcionado, quando agrada
pelos seus sons, por suas cores, por suas formas.
Simetria e proporcionalidade são palavras-chave
nesse sentido. Se por um lado tal conceito parece
ser aplicável muito mais às artes plásticas, à
música e às artes do espaço, não cremos ser
inadequado associá-lo a uma manifestação
particular como a literatura.
84

§ 86 A verdade inquestionável é que


formas harmônicas são satisfatórias, tanto quando
fruídas imediatamente pelos olhos ou os ouvidos,
como quando são submetidas a um processo mais
profundo, ou seja, intuídas pela mente, como
acontece com o texto literário (aqui falamos do
ponto de vista do leitor e isso já deixa claro algo
fundamental, que discutiremos no próximo
parágrafo).

§ 87 O belo está presente no


acontecimento literário tanto no que diz respeito à
produção (enquanto busca, por parte do escritor)
quanto no que se relaciona com a recepção (a
fruição, por parte dos leitores). É essa fruição, essa
satisfação do leitor que o escritor busca despertar
com o seu texto e, por isso, todos os demais
elementos do processo criativo (a intuição e a
expressão) são etapas de um movimento “maior”,
que conduz inquestionavelmente ao belo.
85

§ 88 Mas, afinal, como se dá essa


harmonia que estabelece o belo dentro do texto
literário? Creio que isso passa, primeiramente,
pelos processos básicos de produção de qualquer
texto. O texto harmônico e, portanto, belo, é
aquele que não contradiz o critério da coesão, é
aquele texto agradável à leitura, que não abusa de
repetições enfadonhas nem de utilizações que
prejudicam sua sonoridade (cacofonia, por
exemplo). É um texto que possui uma boa
organização dos sintagmas, dos parágrafos, dos
versos, das estrofes. Que organiza adequadamente
suas imagens, suas metáforas, sua sonoridade.
Que não exagera, nem deixa faltar nada... Se a
escrita elegante chama atenção até mesmo em
textos técnicos, sua ocorrência num texto literário
é fundamental para o encantamento que a obra
produzirá nos leitores.

§ 89 Mas há que se atentar para um fato:


assim como o conceito de verossimilhança é
aplicado a uma verdade interna da obra, o
86

conceito de harmonia também deve sujeitar-se às


especificidades de cada texto. O texto literário
pode ter uma coesão própria, que no seu caso
específico lhe é adequada. Pode ter repetições,
desde que elas contribuam para os sentidos ali
colocados. E assim por diante, de modo a
estabelecer-se que nenhum critério estético ou
linguístico deve anteceder o texto. É apenas em
relação à verdade da obra que se instauram os
critérios que lhe devemos aplicar.

§ 90 Porém, não se esgota na harmonia o


belo artístico e, consequentemente, o literário. O
belo também anseia pelo grandioso. Um texto
literário sempre aspira ao máximo de
expressividade, de inovação, de beleza.
Obviamente, é comum encontrarmos exemplos de
malogro, mas eu trato aqui da motivação artística,
não do sucesso em si. O texto literário “volta-se”
para o belo, conforme nosso conceito, mas apenas
os bons textos logram alcançá-lo. A grandiosidade
de que falo salta aos olhos na elaboração de
87

metáforas e no recurso aos demais tropos, na


atenção à sonoridade, no cuidado com o léxico,
com a forma, com o título... Não basta ser
harmônico, busca-se o extraordinário, aquele texto
que arrancará aplausos do público ao ouvi-lo ou
suspiros dos leitores ao lê-lo no recolhimento de
um quarto ou biblioteca.

§ 91 Na busca do belo, o artista


obviamente há de submeter a realidade à sua
própria visão de mundo (a partir do processo de
intuição, conforme já destaquei), intentando
expressar aquilo que mais se aproxime dessa
visão, enriquecida de uma força criativa (que
resulta na ficção, como também já foi apontado).

§ 92 Pelo que ficou dito, talvez o leitor já


tenha percebido que o resultado do processo de
produção da obra literária, tendo muito de
intencionalidade, de escolha, de trabalho com as
palavras, traz em si, obviamente, a marca da
autoria. É por isso que cada texto literário, ainda
88

que tratando de tema já explorado, é único. É por


isso que a literatura é sempre uma possibilidade
de inovação.

§ 93 Ao intuir o objeto, o artista busca


expressar tal intuição por meio de palavras, mas
ao ter o objetivo de agradar, de despertar o
encanto e a fruição, ele inegavelmente faz
escolhas, de modo que o mundo ficcional, a
pararrealidade que dali resulta, é toda particular,
diz muito de sua subjetividade 38.

38“Atrás da obra de arte, sentimos sempre a presença do


homem que a produziu” (GILSON, 2010, p. 33).
89

PALAVRAS FINAIS

Ao longo deste ensaio, estabeleci uma


compreensão da literatura bastante ampla. Se
reconheço, por um lado, a importância do texto
como expressão da visão particular do artista a
respeito da realidade, se acredito na intuição
artística como fundamental para a existência da
arte, se defendo o texto como objeto de fruição
portador de uma utilização especial dos recursos
linguísticos, por outro lado não deixo de
reconhecer a importância da recepção para que a
obra siga tendo vida, para que ela seja
ressignificada, para que encontre sua própria
razão de ser, que é o diálogo com os leitores.
90

Por isso, a escolha por utilizar, além dos


termos referentes ao texto em si, à obra, um termo
mais abrangente (acontecimento literário), que
englobasse cada um dos aspectos que, a meu ver,
são fundamentais para a existência da literatura.
Porque, de fato, nunca é só o texto.

Considerar o acontecimento literário como


um grande diálogo de subjetividades (e destas com
o texto e o contexto) é fundamental para a
compreensão da própria riqueza que envolve esta
arte.

Parti de um conceito (A literatura é a


expressão verbal e historicamente situada de uma
intuição criativa, voltada para o belo) e todo o
percurso aqui empreendido buscou explicar cada
termo que o compõe. Por isso mesmo, limitei-me:
também não pude tratar de vários outros aspectos
relevantes para o acontecimento literário,
simplesmente pelo fato de não se relacionarem ao
conceito aqui adotado e, por isso, não ajudarem a
91

responder à pergunta básica: que é literatura? Tais


considerações, portanto, ficam para futuros
estudos.

Mas, creio que consegui alcançar os


objetivos delimitados desde o princípio:
apresentar possibilidades, suscitar reflexões e
inspirar a sondagem da questão. Acredito que ao
fim do percurso fica a certeza de que toda essa
discussão não necessariamente precisa responder
à referida pergunta, mas mostrar sua importância.

Sigamos perguntando e aceitando o desafio


de dar respostas. A verdade é que o trabalho não é
inútil: talvez uma característica inerente não só ao
acontecimento literário, mas à arte como um todo,
seja essa necessidade de falar a seu respeito, de se
perguntar sobre os motivos de suas
especificidades, sobre suas motivações, seus
limites. Parece que tal postura acompanha a arte
desde seus primórdios e meio que faz parte da
92

própria relação do ser humano com sua produção


artística.

De certo modo, talvez a própria produção


artística seja, no fundo, um conjunto de tentativas
de responder o que é a arte. Parece que cada
artista sempre se propõe a dar a sua resposta. Por
isso, somente observando o todo é que se pode ter
uma noção da real abrangência da arte.

Se todas essas perguntas e colocações


servirem de estímulo para alguém, se elas
despertarem as consciências dos estudantes que se
debruçarem sobre este livro para essa necessidade
de convivência com o texto literário, se delas
algum ensinamento puder ser retirado, eu terei a
certeza de que cheguei onde pretendia!
93

BIBLIOGRAFIA

Observação: ao longo deste ensaio, citei algumas


obras que serviram de norte para a
fundamentação de muitas das ideias presentes
aqui. Apenas esses livros fundamentais aparecerão
na lista abaixo. Livros citados, mas relevantes
apenas para alguns aspectos discutidos no texto
foram indicados nas notas de rodapé ao longo de
todo o livro.

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SOBRE O AUTOR

Weslley Barbosa é graduado em Letras – Língua


Portuguesa (UFCG, 2010) e mestre em Linguagem
e Ensino (UFCG, 2014). Professor de Língua
Portuguesa e Literatura, poeta e crítico literário,
tem publicados os seguintes livros: Suspiros
mal-ditos (poesia, 2010), Ensaios de poesia
paraibana (crítica literária, 2014) e As nuances
do mel (poesia, 2016).

Contato: weslleybarbosa.contato@gmail.com
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