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Estudos de

Literatura Comparada

Sílvio Takeshi Tamura


(Organizador)
Estudos de Literatura
Comparada
Conselho Editorial Técnico-Científico Mares Editores e Selos Editoriais:

Renato Martins e Silva (Editor-chefe)


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Estudos de Literatura
Comparada

1ª Edição

Sílvio Takeshi Tamura


(Organizador)

Rio de Janeiro
Mares Editores
2017
Copyright © da editora, 2017.

Capa e Editoração
Mares Editores

Dados Internacionais de Catalogação (CIP)

Estudos de Literatura Comparada / Sílvio Takeshi


Tamura (Org). – Rio de Janeiro: Mares, 2017.
290 p.
ISBN 978-85-5927-029-7
1. Análise e crítica literária. 2. Literatura I. Título.

CDD 801.95
CDU 82

2017
Todos os direitos desta edição reservados à
Mares Editores
Contato: mareseditores@gmail.com
Sumário

Apresentação .................................................................................................. 9

El Astronauta Paraguayo nas Cidades Invisíveis ...........................................15

Entre metamorfose presentes em Inocência de Visconde de Taunay e Os


Semelhantes de Ricardo Guilherme Dicke ....................................................47

O gênero textual “Contos de Terror”: uma proposta de análise de contos de


autores iniciantes publicados em blogs ........................................................70

Rastros da Poética de Cesário Verde em Alberto Caeiro e João Cabral .....104

As possíveis influências de Kant na poética de Cecília Meireles: um estudo


sobre o belo e o sublime.............................................................................134

O caminho do herói: o phármakon em Tristão e Isolda .............................159

Sobre o sublime no popular: a poesia em quadra de Fernando Pessoa e Mario


Quintana .....................................................................................................186

Teoria e ficção em Uno, nessuno e centomila ............................................219

Eu sou um lobo! Um lobo? Chapeuzinho Vermelho, de Jacob e Wilhelm


Grimm (Irmãos Grimm); e Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque:
Literatura Infantil, Recontos e Comparatismos ..........................................244

“Sirvo-me de Animais para Instruir os Homens”. Fábulas: Jean de La Fontaine,


Monteiro Lobato e a Moral da História. .....................................................267

Sobre os Autores .........................................................................................288


Apresentação

Com o objetivo de apresentar algumas das pesquisas realizadas


atualmente na academia acerca da Literatura Comparada, reunimos
neste livro digital trabalhos com temáticas e enfoques diversos que
trazem à lume algumas das atuais perspectivas nesta área de estudos.
Desse modo, apresentamos O texto “El Astronauta Paraguayo
nas Cidades Invisíveis”, de Warleson Peres, pretende fazer uma leitura
comparada entre duas obras literárias: As cidades invisíveis, de Ítalo
Calvino e El astronauta paraguayo, de Douglas Diegues. Através de um
diálogo entre as obras, o pesquisador pretende levar o “astronauta
paraguayo” a transitar pelas “cidades invisíveis”, extraindo uma
possibilidade de leitura que as aproxime das propostas, do próprio
autor italiano, para um milênio, por ora já iniciado.
Em “Entre metamorfose presentes em Inocência de Visconde
de Taunay e Os Semelhantes de Ricardo Guilherme Dicke”, de Andréia
Vieira Netto, a pesquisadora realizara uma análise comparativa das
personagens, priorizando as femininas, nos romances de Inocência
escrito por Visconde de Taunay e Os Semelhantes escrito por Ricardo
Guilherme Dicke, embora sejam obras escritas em épocas diferentes,
apresentam personagens femininas, com ações marcantes no enredo
das obras e perpassam em uma mesma região. O que instiga o
interesse de mostrar as diferenças e semelhanças entre as
personagens femininas de ambas as obras. São obras que destacam a
-9-
mudança de personalidade da mulher em períodos históricos e meios
sociais diferentes, ambas personagens perdem-se na angústia da alma
humana, desistindo lutar pela vida. Apontaremos algumas atitudes e
costumes das personagens femininas, erguendo pontos relevantes do
meio histórico-sócio-cultural que possam ter contribuído para
metamorfose das personagens em destaque nas obras.
No texto de Denise Menin Tortelli, intitulado “O gênero textual
‘Contos de Terror’: uma proposta de análise de contos de autores
iniciantes publicados em blogs”, a autora tem como objetivo verificar
se há ou não uma padronização na “forma” e no “conteúdo” para o
gênero textual “Contos de terror” veiculados em blogs da internet. A
pesquisadora analisa a estrutura composicional de três contos
retirados de diferentes blogs sob a luz dos seguintes critérios: a)
conteúdo temático; b) estrutura composicional; c) objetivos e funções
sociocomunicativas; d) características da superfície linguística; e)
condições de produção. Para tanto, além da base de análise centrar-
se nos conceitos de Travaglia (2007), também apoiou-se em reflexões
feitas por Marcuschi (2008) acerca da questão dos gêneros e suportes,
Köche (2012) sobre as características do gênero textual “conto” e
Todorov (1975-1980) quanto ao “fantástico”. Ao final na análise,
constatou-se que os textos analisados, veiculados no suporte blog na
mídia virtual, não seguem um padrão específico, apresentando pontos
em comum e pontos divergentes quanto aos critérios e parâmetros
estabelecidos para os gêneros de tipologia narrativa.

- 10 -
Em “Rastros da Poética de Cesário Verde em Alberto Caeiro e
João Cabral, Maria Aparecida Barros de Oliveira Cruz” objetiva
investigar as marcas da poética de Cesário Verde em dois poetas:
Alberto Caeiro, heterônimo do poeta português Fernando Pessoa,
considerado o seu mestre, e João Cabral de Melo Neto, poeta
contemporâneo brasileiro, autor de obras consagradas como O Cão
sem Plumas e Educação pela pedra, por exemplo. Partindo do
pressuposto de que tanto Alberto Caeiro quanto João Cabral revelam
consciência de leitura em relação a Cesário Verde e outros poetas
modernos, investigam-se os indícios de tradução e traição praticados
por cada um. Tanto Caeiro quanto João Cabral se afastam da poesia de
tom confessional ao mesmo tempo em que optam por uma poética
pautada no mundo das coisas, na objetividade. Desta forma, praticam
a traição e a tradução conforme assinala o crítico João Alexandre
Barbosa (1986).
No capítulo “As possíveis influências de Kant na poética de
Cecília Meireles: um estudo sobre o belo e o sublime”, Alessandra
Zelinda Sousa Bessa estuda os poemas de Cecília Meireles segundo o
juízo de gosto kantiano e pontua onde acontecem afastamentos e
aproximações no entendimento acerca do belo e do sublime. Tais
comparações objetivam criar uma maior análise sobre o entendimento
de mundo da escritora, mostrando um novo olhar acerca dos seus
poemas e traduzir as percepções da filosofia de Immanuel Kant sob a
linguagem artística.

- 11 -
Em “O caminho do herói: o phármakon em Tristão e Isolda”,
Thamires dos Santos M. Fassura apresenta um estudo comparatista
que tem por objetivo discutir o caminho do herói através da estrutura
e dos efeitos do phármakon, conceito estudado por Derrida (1991)
para designar a escritura, que seria uma substância, cujo cerne abriga
dois contrários: remédio e veneno. Tomaremos como objeto de
análise a obra de Joseph Bédier, Tristão e Isolda (2006) e sua
adaptação cinematográfica homônima (2006) dirigida por Kevin
Reynolds. Buscando exemplificar as nuances do phármakon no
caminho do herói, utilizaremos A farmácia de Platão obra de Jacques
Derrida (1991) como suporte teórico principal para nossa análise.
Além de observar os conceitos propostos por Joseph Campbell, em
suas análises dos arquétipos míticos, que nos revela essa assimilação
de opostos como fonte interna, para o nascimento do herói.
No capítulo “Sobre o sublime no popular: a poesia em quadra
de Fernando Pessoa e Mario Quintana”, de Kelio Junior Santana
Borges, o pesquisador promove, a partir da obra de dois importantes
nomes da Literatura em Língua Portuguesa, algumas reflexões sobre a
presença do popular na lírica do século XX. Tem-se como objetivo
analisar de que modo Fernando Pessoa e Mario Quintana resgatam do
passado a trova popular, concedendo a ela um tratamento estilizado
e impondo-lhe novos valores, num processo de atualização em que
sob a máscara da simplicidade do passado, se perceba uma complexa
e intensa manifestação de consciência e de ideologias do momento

- 12 -
em que ambos os poetas vivenciaram em seus respectivos países,
período em que vigoravam as influências de uma poesia moderna
propagadas pelo movimento Modernista.
No capítulo intitulado “Teoria e ficção em Uno, nessuno e
centomila”, Andrea Quilian de Vargas propõe uma análise do diálogo
existente entre o romance Uno, nessuno e centomila e o ensaio crítico
L’Umorismo, a base teórica que mais claramente explica a produção
de Luigi Pirandello, que é o criador de uma vasta produção que
abrange textos ficcionais e ensaios críticos, não sendo raras as
ocasiões em que o autor mescla tipologias textuais distintas em uma
mesma obra.
Em “Eu sou um lobo! Um lobo? Chapeuzinho Vermelho, de
Jacob e Wilhelm Grimm (Irmãos Grimm); e Chapeuzinho Amarelo, de
Chico Buarque: Literatura Infantil, Recontos e Comparatismos”, Sílvio
Takeshi Tamura demonstra como, no imaginário popular, Chapeuzinho
Vermelhou ganhou inúmeras versões, interpretações e traduções pelo
mundo todo.
No artigo intitulado “Sirvo-me de Animais para Instruir os
Homens”. Fábulas: Jean de La Fontaine, Monteiro Lobato e a Moral da
História, Sílvio Takeshi Tamura aborda a origem das fábulas e seus
maiores representantes ao longo da história. Esopo é considerado o
primeiro fabulista e acredita-se que ele tenha vivido entre os séculos
VII e V a.C. Outros, defendem que ele nem existiu, constituindo-se,

- 13 -
assim, como uma figura popular. Característica marcante em Esopo é
a oralidade, contando fábulas por meio da linguagem oral.
No século XVII, surge outro grande fabulista: Jean de La
Fontaine. Diferença marcante entre a estética literária de Esopo e La
Fontaine é o fato de o primeiro fundamentar-se na perspectiva oral,
estruturado em prosa. O segundo se baseava na grafia e sustentação
em versos. No início do século XX, Monteiro Lobato publica Fábulas,
inspirado em Esopo e La Fontaine. A disparidade entre as estórias de
Lobato e La Fontaine residia no reconto em prosa, acrescida dos
comentários da turma do Sítio do Pica-Pau Amarelo, sobretudo das
satíricas intervenções da boneca Emília.
Sílvio Takeshi Tamura

- 14 -
El Astronauta Paraguayo nas Cidades Invisíveis

Warleson Peres1

Introdução
Este capítulo pretende fazer uma leitura comparada entre duas
obras literárias: As cidades invisíveis, de Ítalo Calvino e El astronauta
paraguayo, de Douglas Diegues. Pretende-se, através de um diálogo
entre elas, levar o “astronauta paraguayo” a transitar pelas “cidades
invisíveis”, extraindo uma possibilidade de leitura que as aproxime das
propostas, do próprio autor italiano, para um milênio, por ora já
iniciado.
Para nortear esse debate serão trazidos para a arena de
discussão: Néstor Garcia Canclini, através de seu livro: “Culturas
Híbridas: Estratégias para entrar e sair da modernidade” (2013),
Myriam Ávila com “Douglas Diegues por Myriam Ávila” (2012) e o
mesmo Ítalo Calvino, com a obra “Seis propostas para o próximo
milênio. Lições americanas”, de 1990.
O livro El astronauta paraguayo foi publicado em 2007 e trata-
se de um poema longo, dividido em vinte cantos, todos encabeçados
por títulos-sumários, e traz a ideia de errância, motivo épico por

1
Doutorando em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora sob a
orientação da Profa.Dra. Silvina Liliana Carrizo

- 15 -
excelência, aliada ao cenário latino-americano (ÁVILA, 2012, p. 41-2).
Utilizando o seu portunhol selvagem, Diegues nos leva a uma
experiência pela Triplefrontera – Brasil, Paraguai e Argentina – ao
permitir que se adentre em sua língua poética e no “caráter
descompromissado e lúdico da viagem” (ÁVILA, 2012, p. 43).
O livro As Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino, configura-se como
um império de imagens, construído através da narração do viajante
veneziano Marco Polo para o imperador dos tártaros Kublai Khan, ao
descrever as cidades que supostamente visitou. As Cidades Invisíveis
são divididas em temas: as cidades e a memória, as cidades e o desejo,
as cidades e os símbolos, as cidades delgadas, as cidades e as tocas, as
cidades e os olhos, as cidades e o nome, as cidades e os mortos, as
cidades e o céu, as cidades contínuas, as cidades ocultas.
A viagem se dá no imaginário, e através do símbolo “cidade” é
possível estabelecer relações com as formas de existência humanas. O
próprio autor nos revela: “Se meu livro Le cittá invisibili continua sendo
para mim aquele em que penso haver dito mais coisas, será talvez
porque tenha conseguido concentrar em um único símbolo todas as
minhas reflexões, experiências e conjecturas” (CALVINO, 1990, p.87-
8).
As cidades invisíveis têm nomes de mulheres sedutoras, e “o
homem que cavalga longamente por terrenos selváticos sente o
desejo de uma cidade” (CALVINO, 2003, p.12) e o astronauta
paraguayo não pode deixar de passar por essas selvas, por “La belleza

- 16 -
de las Selvas de la Tatú Ró ô de la Vida2 con sus millones de estrellas
que existem y nom existem mais” (Diegues, 2012, p.3).
Assim como Marco Polo chegou ao imperador sem saber uma
palavra, e isso não o impediu de relatar suas viagens, utilizando-se de
gestos e vocábulos soltos, até apreender o idioma local e iniciar as
detalhadas narrativas, o portunhol – hibridação do Português com o
Espanhol – vem chegando e ganhando relevância linguística e literária
nos últimos anos, principalmente pelo fenômeno da globalização e
fragilização das fronteiras territoriais.
O poeta brasileiro-paraguaio Douglas Diegues emergiu na
primeira década deste século, e desde 2002, nos apresenta uma nova
forma de poética e com características múltiplas: o portunhol
selvagem – que difere do portunhol fronteiriço, mas é influenciado por
sua experiência na fronteira Brasil/Paraguai.
O poeta assim define o Portunhol Selvagem:

(El portunhol tiene forma definida.) El portunhol


selvagem non tiene forma. (El portunhol es um mix
bilíngue.) El portunhol selvagem es um mix
plurilíngüe. [...] (El portunhol es bisexual.) El
portunhol selvagem es polisexual. [...] (El portunhol
es meio papai-mamãe.) El portunhol selvagem es
mais ou menos kama-sutra. [...] (El portunhol es um
esperanto-luso-hispano-sudaka.) El portunhol
selvagem es uma lengua poétika de vanguarda
primitiva que inventei para fazer mia literatura, um
deslimite verbocreador indomábel, uma

2
O glossário anexo ao poema explica que tatu ró ô significa Vulva Karnuda

- 17 -
antropófagica liberdade de linguagem aberta ao
mundo y puede incorporar el portunhol, el guarani,
el guarañol, las 16 lenguas (ou mais) de las 16
culturas ancestraes vivas em território
paraguayensis y palabras del árabe, chinês, latim,
alemán, spanglish, francês, koreano etc […]
Resumindo sem concluziones precipitadas: el
portunhol selvagem es free (DIEGUES in TEIXEIRA,
2011, s/p).3

Vale ressaltar que a inovação estética foi deslocada para as


tecnologias eletrônicas e hoje, nos é permitido efetuar leituras
acionando hipertextos que expandem ainda mais as ligações em rede
e a globalização. Esse movimento fragiliza fronteiras e abre espaço
para a hibridação, nos transportando para “outros lugares ou não-
lugares” (CANCLINI, 2013, pág. XXXVII).
Enquanto Marco Polo descreve as cidades invisíveis criando um
universo de imagens para que o imperador visualize as cidades
existentes e as que existirão no futuro em seu império, “el astronauta
paraguayo” se volta

para a beleza de la tatu ró ô de la vida, e o delírio


erótico desse personagem não o impede de trazer
ao poema tomadas de posição políticas
“triplefronteirizas”. Sobrevoando cidades de todos
os portes e portos, o astronauta não se afasta da
triplefrontera, da qual as três línguas mescladas
são uma figuração perfeita (ÁVILA, 2012, p.45).

3
Entrevista a Rodrigo Teixeira em que faz referência à entrevista concedida a Álvaro
Costa e Silva em 10/08/2011. Disponível em:
http://www.overmundo.com.br/overblog/triplices-fronteiras-literarias. Acesso em:
24/07/15.

- 18 -
Nessa hibridação de línguas e culturas, Diegues vai construindo
estratégias para transitar pela modernidade. Assim, é possível
reconhecer elementos que vão ao encontro das Seis propostas para o
próximo milênio4 de Ítalo Calvino, e que fazem do poema El astronauta
paraguayo e da obra As cidades invisíveis, terrenos férteis de
características relacionadas à leveza, rapidez, exatidão, visibilidade e
multiplicidade. Calvino em 1985, já enunciava: “O milênio que está
para findar-se viu o surgimento e a expansão de línguas ocidentais
modernas e as literaturas que exploraram suas possibilidades
expressivas, cognoscitivas e imaginativas” (CALVINO, 1990, p.13).
E como a língua sempre se reinventa e se ressignifica, o
portunhol selvagem é processo contemporâneo para compreensão
dessa hibridação que cria novas identificações; e quando essa língua
poética extravasa a comunicação oral e surge como material para
criação e publicação de obras literárias, ela ganha relevância no campo
literário deste milênio.
Desse modo, neste trabalho, almeja-se discutir a afinidade das
duas obras literárias, e apresentar uma leitura dialogal entre elas,
levando El astronauta paraguayo a percorrer As cidades invisíveis.

4
“Em 6 de junho de 1984, Calvino foi oficialmente convidado a fazer as Charles Eliot
Norton Poetry Lectures: um ciclo de seis conferências que se desenvolvem ao longo
de um ano acadêmico... na Universidade de Harvard”. (Esther Calvino In CALVINO,
1990, p.7 – introdução). Entretanto, o autor faleceu antes de escrever a sexta
conferência e por isso o livro traz as cinco propostas finalizadas.

- 19 -
Leveza

Cada vez que o reino do humano me parece


condenado ao peso, digo para mim mesmo que à
maneira de Perseu eu devia voar para outro
espaço. Não se trata absolutamente de fuga para o
sonho ou o irracional. Quero dizer que preciso
mudar de ponto de observação, que preciso
considerar o mundo sob uma outra ótica, outra
lógica, outros meios de conhecimento e controle.
As imagens de leveza que busco devem, em
contato com a realidade presente e futura,
dissolver-se como sonhos... (CALVINO, 1990, p.21).

Douglas Diegues inicia sua obra com o sumário-título “El


astronauta paraguayo ojerá volando em silênzio por el oscuro azul de
la infinita belleza Del tatú ró ô de la vida5”, apresentando uma imagem
leve que aparece de repente no céu, já que o astronauta voa:

¡8, 4, 2, zero y zás!


¡Qué lindo flutua”
¡Que lindo flutua el primeiro Astronauta
Paraguayo!
[...]
El Astronauta Paraguayo ha muerto de amor como
um idiota romantiko alemán pero sigue vivo, segue
em
mobimiento, segue enamorado de la yiyi de la
minifalda

5
“O astronauta paraguaio aparecerá de repente voando em silêncio pelo escuro azul
de infinita beleza da vulva carnuda da vida”. Algumas traduções do portunhol
selvagem apresentadas ao longo desse trabalho serão feitas de forma livre pelo
autor do presente artigo para fins de melhor compreensão.

- 20 -
salvaje y su flor de xocolate endemoniada6.
[...]
Y flanando flotando fálico flamejante por la belleza
de
las selvas de la Tatú Ró ô de la Vida uma iluzión sem
iluziones entre Burakos Negros y Estrellas Kalientes
el astronautita siente um olor a flor de xocolate
endemoniada, um olor a néctar di cachorra, olor a
jambo
girl de los asfaltos selvagens7.
[...]
Soy el astronautita que vuela como un amor
insepulto
guaraní punk hispano paubrasil paraguayo. (p.3-4)

O astronauta, representante da hibridação de culturas:


“guarani, punk, hipano, brasileiro e paraguaio” flutua e do alto ele
consegue ver de fora as imagens construídas por dentro, já que o amor
não foi sepultado e pulsa pela morena, “garota jambo”, que atiça o
desejo do personagem.
Apresentando a relação entre a cidade e o desejo, o
personagem Marco Polo na obra de Calvino descreve Despina. Essa
cidade pode ser alcançada de navio ou de camelo e para cada acesso
ela se apresenta de uma forma diferente. Calvino aborda neste ponto
a questão do ponto de vista e o que os olhos captam.

6
O astronauta paraguaio morto de amor como um idiota romântico alemão, mas
segue vivo, segue em movimento, segue enamorado da morena da minissaia
selvagem e sua flor de chocolate endemoniada.
7
E flanando flutuando fálico flamejante pela beleza das selvas da vulva carnuda da
vida uma ilusão sem ilusões em Buracos Negros e Estrelas Quentes o astronautinha
sente um olor a flor de chocolate endemoniada, um olor a néctar de cachorra, olor
a garoa jambo dos asfaltos selvagens.

- 21 -
O cameleiro que vê despontar no horizonte do
planalto os pináculos dos arranha-céus, as antenas
de radar, os sobressaltos das birutas brancas e
vermelhas, a fumaça das chaminés, imagina um
navio; sabe que é uma cidade, mas a imagina como
uma embarcação que pode afastá-lo do deserto,
um veleiro que esteja por zarpar, com o vento que
enche as suas velas ainda não completamente
soltas, ou um navio a vapor com caldeira que vibra
na carena de ferro, e imagina todos os portos, as
mercadorias ultramarinas que os guindastes
descarregam nos cais, as tabernas em que
tripulações de diferentes bandeiras quebram
garrafas na cabeça uma das outras, as janelas
térreas iluminadas, cada uma com uma mulher que
se penteia.
Na neblina costeira, o marinheiro distingue a forma
da corcunda de um camelo, de uma sela bordada
de franjas refulgentes entre duas corcundas
malhadas que avançam balançando; sabe que é
uma cidade, mas a imagina como um camelo de
cuja albarda pendem odres e alforjes de fruta
cristalizada, vinho de tâmaras, folhas de tabaco, e
vê-se ao comando de uma longa caravana que o
afasta do deserto do mar rumo a um oásis de água
doce à sombra cerrada das palmeiras, rumo a
palácios de espessas paredes caiadas, de pátios
azulejados onde as bailarinas dançam descalças e
movem os braços para dentro e para fora do véu
(CALVINO, 2003, p.23-4).

O homem deseja o que lhe falta e assim, o marinheiro vê a


cidade de fora, desejando aquilo que lhe é interior e pode lhe trazer
firmeza em meio a tanta água, vista como um deserto para ele que
almeja um oásis. Já o cameleiro vê a cidade de dentro e almeja a

- 22 -
liberdade e a possibilidade de navegar pelos mares através das
embarcações que podem de fato, lhe retirar do deserto.
As imagens do mundo inspiram os poetas e a partir do ângulo
que se olha, elas mudam e ganham inúmeras interpretações. Para
Calvino, a poesia do invisível, do imprevisível, tal como a poesia do
nada, nascem de um poeta que não duvida quanto ao caráter físico do
mundo. E assim, a leveza é criada quando se escreve, com os recursos
linguísticos próprios do poeta, independente da doutrina filosófica
que ele pretenda seguir (CALVINO, 1990, p. 23-4).
Diegues mantém o emprego da leveza ao seu poema:

El astronauta paraguayo delira sin apoyo de la


NASA y flota como una cumbia di amor sincero por
la fascinante belleza de la tatu ró ô de la vida
El astronauta paraguayo segue volando kontra los
boludos de siempre. Volando com um Xico As
inflable
de verdade. Volando de lujo ritmo cumbia villera
caliente.
Pero nim Teleshow nim Teleprêmio extra nim
Telesuerte
nim Teletubi kuéra de 4 pueden ser el xocolate
purére de
la mínima hechizera8 (DIEGUES, 2012, p.12).

8
O astronauta paraguaio segue voando contra os idiotas de sempre. Voando com
um Xico Sá inflável de verdade. Voando de luxo ao ritmo de cumbia quente das vilas.
Mas nem Teleshow nem Teleprêmio extra nem Telesorte nem Teletube podem ser
o chocolate da mínima feiticeira.

- 23 -
Inúmeras imagens vão dando fluidez ao poema e o astronauta
continua seu delírio sem o apoio da NASA para voar, mas é
impulsionado pelo amor sincero, e prêmio nenhum tem mais valor que
o sabor do chocolate, metáfora desse objeto de desejo do astronauta:
a mulher amada. Em Douglas Diegues, é possível perceber a hibridação
semântica, associações inusitadas em um ritmo acelerado de
invenções (ÁVILA, 2012, p.46).
Tal estratégia enquanto escritor corrobora da afirmação do
teórico “a leveza está associada à precisão e à determinação”
(CALVINO, 1990, p.30). Calvino ainda, apresenta exemplos de leveza a
partir de três acepções distintas:

1) um despojamento da linguagem por meio do


qual os significados são canalizados por um tecido
verbal quase imponderável até assumirem essa
mesma rarefeita consistência.
2) a narração de um raciocínio ou de um processo
psicológico no qual interferem elementos sutis e
imperceptíveis, ou qualquer descrição que
comporte um alto grau de abstração.
3) uma imagem figurativa da leveza que assuma um
valor emblemático. Há invenções literárias que se
impõem mais pela sugestão verbal que pelas
palavras (CALVINO, 1990, p. 30-32)

Tais acepções podem ser também reconhecidas nas obras


literárias analisadas neste trabalho. Em Douglas, encontramos o
despojamento da linguagem e a natureza criadora de uma língua
poética, que se pretende livre de padronizações, já que “El portunhol

- 24 -
selvagem es néctar del delírio de las lenguas mixturadas” (DIEGUES,
2012, p.25-6).
A segunda acepção pode ser exemplificada pelo trecho
introdutório do livro As Cidades Invisíveis, uma vez que Calvino narra
um processo psicológico com uma riqueza de detalhes que nos levam
a abstrair e viajar para dentro do sentimento do imperador.

Não se sabe se Kublai Khan acredita em tudo o que


diz Marco Polo quando este lhe descreve as cidades
visitadas em suas missões diplomáticas, mas o
imperador dos tártaros certamente continua a
ouvir o jovem veneziano com maior curiosidade e
atenção do que a qualquer outro de seus enviados
ou exploradores. Existe um momento na vida dos
imperadores que se segue ao orgulho pela imensa
amplitude dos territórios que conquistamos, à
melancolia e ao alívio de saber que em breve
desistiremos de conhecê-los e compreendê-los,
uma sensação de vazio que surge ao calar da noite
com o odor dos elefantes após a chuva e das cinzas
de sândalo que se resfriam nos braseiros, uma
vertigem que faz estremecer os rios e as
montanhas historiadas nos fulvos dorsos dos
planisférios, enrolando um depois do outro os
despachos que anunciam o aniquilamento dos
últimos exércitos inimigos de derrota em derrota,
e abrindo o lacre dos sinetes de reis dos quais
nunca se ouviu falar e que imploram a proteção das
nossas armadas avançadas em troca de impostos
anuais de metais preciosos, peles curtidas e cascos
de tartarugas: é o desesperado momento em que
se descobre que este império, que nos parecia a
soma de todas as maravilhas, é um esfacelo sem
fim e sem forma, que a sua corrupção é gangrenosa
demais para ser remediada pelo nosso cetro, que o

- 25 -
triunfo sobre os soberanos adversários nos fez
herdeiros de suas prolongadas ruínas. Somente nos
relatórios de Marco Polo, Kublai Khan conseguia
discernir, através das muralhas e das torres
destinadas a desmoronar, a filigrana de um
desenho tão fino a ponto de evitar as mordidas dos
cupins (CALVINO, 2003, p. 9-10).

Em ambas as obras literárias é possível encontrar a descrição


de imagens figurativas que são emblemáticas, que extrapolam as
palavras e levam o leitor a adentrar nesses cenários, podendo
reconhecê-los ou “sonhá-los”. No poema de Diegues, o astronauta
segue voando e avistando uma imagem paradisíaca com a leveza da
morena tropical entre Palmeiras e Cataratas do Iguaçu.

El Astronauta Paraguayo sigue volando flotando


flanando flamejante fálico pau-brasil-
paraguayensis sigue
avanzando em médio a la Belleza de la Tierra
mezclada a
la Belleza de la Tatú Ro’ô de la Vida.
Y vê a uma hermosa yiyi en minúskulo bikíni entre
Palmeras Azules y Cataratas Del Yguazú. (DIEGUES,
2012, p.24)

Em determinado ponto da narrativa, o imperador Kublai Khan


interrompe Marco Polo e diz que vai descrever cidades por ele
imaginadas para que o viajante confirme se elas existem. Após uma
rica descrição pergunta se ele a conhece, se sabe onde fica e qual o
seu nome. E Marco Polo responde que já estava falando sobre essa
cidade quando foi interrompido:

- 26 -
– Não tem nome nem lugar. Repito a razão pela
qual quis descrevê-la: das inúmeras cidades
imagináveis, devem-se excluir aquelas em que os
elementos se juntam sem um fio condutor, sem um
código interno, uma perspectiva, um discurso. É
uma cidade igual a um sonho: tudo o que pode ser
imaginado pode ser sonhado, mas mesmo o mais
inesperado dos sonhos é um quebra-cabeça que
esconde um desejo, ou então o seu oposto, um
medo. As cidades, como os sonhos, são construídas
por desejos e medos, ainda que o fio condutor de
seu discurso seja secreto, que as suas regras sejam
absurdas, as suas perspectivas enganosas, e que
todas as coisas escondam uma outra coisa
(CALVINO, 2003, p. 46).

Para o teórico deve-se pensar “a literatura como função


existencial, a busca da leveza como reação ao peso de viver”
(CALVINO, 1990, p.41). Essa vida leve habita o imaginário popular e
configura-se um privilégio, retratado nesse diálogo entre Marco Polo
e Kublai, acerca da cidade de Lalage, em que esse desejo de leveza é
personificado.

— A cidade que você sonhou é Lalage. Os


habitantes dispuseram esses convites a uma
parada no céu noturno para que a lua permita a
cada coisa da cidade crescer e recrescer
indefinidamente.
— Há algo que você não sabe — acrescentou o
Khan. — Agradecida, a lua concedeu à cidade de
Lalage um privilégio ainda mais raro: crescer com
leveza (CALVINO, 1990, p.72) (grifo meu).

- 27 -
Rapidez

A narrativa é um cavalo: um meio de transporte


cujo tipo de andadura, trote ou galope, depende do
percurso a ser executado, embora a velocidade de
que se fala aqui seja uma velocidade mental
(CALVINO, 1990. P.54-5).

Calvino aborda a velocidade mental que se emprega na


literatura, retomando a necessidade de se saber empregar ritmo à
narrativa, sempre considerando a relatividade do tempo, uma vez que
“a experiência das grandes velocidades se tornou fundamental para a
vida humana” (CALVINO, 1990, p.56).
Nas obras em estudo, muitas imagens de movimento e
experimentação tornam a leitura fluida, com descrições marcantes. A
rapidez proposta por Calvino acerca-se do que Ávila aponta na obra de
Diegues: uma proximidade que a linguagem pode ter com o sublime.
Acelerado pelo “amor amor” o astronauta paraguayo se desloca numa
fronteira exígua do espaçotempo. (ÁVILA, 2012, p.43).

El astronauta paraguayo passa batido por


los cielos de Paris, Sam Paulo, Lagoa Santa,
Curitiba, Ponta Porã, Berlin, Kaákupê, Madrid,
Ñu Guazú, Roma, San Ber, Kurepilândia y
Pedro Juan Almodóvar Caballero.

El Astronauta Paraguayo parece uma bolsa de


suenhos de
karne molida
sobrevolando la espetakular realidade de las
pequenas y

- 28 -
grandes ciudades.
(DIEGUES, 2012, p. 7).

Assim como o astronauta paraguayo que cruza “batido” as


fronteiras e chega a inúmeras cidades como espectador das
realidades, o grande Khan também reflete, sobre a velocidade com
que muda o nome dos lugares, acompanhando a transformação das
línguas.

O atlas também representa cidades que nem


Marco nem os geógrafos sabem se existem ou
onde ficam, mas que não poderiam faltar entre as
formas das cidades possíveis: uma Cuzco de
desenho radiado e multifragmentado que reflete a
perfeita ordem das trocas, uma cidade do México
verdejante à beira do lago dominado pelo paço real
de Montezuma, uma Novgorod de cúpulas
bulboides, uma Lhassa cujos tetos alvos erguem-se
acima do teto nebuloso do planeta. Para essas
cidades, Marco também dá um nome, não importa
qual, e sugere um itinerário a percorrer. Sabe-se
que o nome dos lugares muda tantas vezes quantas
são as suas línguas estrangeiras; e que cada lugar
pode ser alcançado de outros lugares, pelas mais
variadas estradas e rotas, por quem cavalga guia
rema voa. (CALVINO, 1990, p. 130) (grifo meu).

A interação entre os povos fomenta a hibridação das línguas e


o portunhol é registro contemporâneo dessa transformação
linguística. O Portunhol Selvagem é uma língua poética que brota de
dentro para fora, com todo vigor enunciativo de seu criador: “El
portunhol selvagem es espetakular / mismo que nunka lo seja, es

- 29 -
vulgar, es bizarro, es / hermoso, es imprevisible, es vitaminado, es vita
nueba” (DIEGUES, 2012, p.25). Na obra de Calvino também
encontramos essa necessidade de um crescimento interior:

Da alta balaustrada do palácio real, o Grande Khan


observa o crescimento do império. Primeiro, as
fronteiras haviam se dilatado englobando os
territórios conquistados, mas o avanço dos
regimentos encontrava regiões semidesertas,
combalidas aldeias de cabanas, aguaçais em que o
arroz crescia mal, populações magras, rios secos,
miséria. “É hora de o meu império, crescido demais
em direção ao exterior”, pensava Khan, “começar
a crescer para o interior”, e sonhava bosques de
romãs maduras com as cascas partidas, zebus
assados no espeto gotejando gordura, veias
metalíferas que manam desmoronamentos de
pepitas cintilantes (CALVINO, 2003, 71) (grifo meu).

Ao pensar essa segunda proposta de Calvino, é possível aplicar


uma rápida associação: assim como as cidades invisíveis descritas com
nomes de mulheres sedutoras, que atraem o olhar do imperador com
suas particularidades “El portunhol selvagem encanta Bombomcitas
Escolásticas Domenicas Corleones Moraimas Julianas Marias a full”
(DIEGUES, 2012, p. 25).
A rapidez de estilo e de pensamento requer agilidade,
mobilidade e desenvoltura combinadas com uma escrita propensa a
divagações, transitando de um tema a outro, a perder o fio do relato
para reencontrá-lo no final depois de inúmeros circunlóquios
(CALVINO, 1990, p. 61).

- 30 -
Exatidão

A literatura – quero dizer, aquela que responde a


nossas exigências – é a Terra Prometida em que a
linguagem se torna aquilo que na verdade deveria
ser (CALVINO, 1990, p. 74).

Calvino inicia a conferência, fazendo uma reflexão sobre um


incômodo pessoal: o descuido no uso da linguagem e das imagens.
Para ele há uma chuva ininterrupta de imagens promovida pelos meios
de comunicação, multiplicando inúmeras delas como em um jogo de
espelhos. Entretanto, elas se dissolvem como sonhos não deixando
traços na memória, daí a necessidade de se buscar dosar a linguagem
e imagens com exatidão (CALVINO, 1990, p.75). Para ele, exatidão
quer dizer três coisas:

1) um projeto de obra bem definido e calculado;


2) a evocação de imagens visuais nítidas, incisivas,
memoráveis, ... “icastico”;
3) uma linguagem que seja a mais precisa possível
como léxico e em sua capacidade de traduzir as
mudanças de pensamento e da imaginação
(CALVINO, 1990, p.73-4).

Tais características podem ser encontradas tanto nas obras em


análise, haja vista que ambas são frutos de projetos literários bem
definidos que evocam imagens nítidas: reais na obra de Diegues e
memoráveis no texto de Calvino. N’As cidades invisíveis tem-se um
texto conciso, em que cada cidade é descrita de modo exuberante,

- 31 -
mas em uma, duas e às vezes apenas três páginas. O autor revela
acerca dessa obra:

consegui construir uma facetada em que cada


texto curto está próximo dos outros numa
sucessão que não implica uma consequencialidade
ou uma hierarquia, mas uma rede dentro da qual
se podem traçar múltiplos percursos e extrair
conclusões multíplices e ramificações (CALVINO,
1990, p.88).

A descrição da cidade de Sofrônia surpreende o leitor, uma vez


que Marco Polo desmonta a cidade feita de cimento, como se o fizesse
com brinquedos. A cidade dividida em uma parte fixa e outra
provisória mexe com o imaginário permitindo associar essa construção
com viver pelas metades ou por inteiro nas relações humanas.

A cidade de Sofrônia é composta de duas meias


cidades. Na primeira, encontra-se a grande
montanha-russa de ladeiras vertiginosas, o
carrossel de raios formados por correntes, a roda-
gigante com cabinas giratórias, o globo da morte
com motociclistas de cabeça para baixo, a cúpula
do circo com os trapézios amarrados no meio. A
segunda meia cidade é de pedra e mármore e
cimento, com o banco, as fábricas, os palácios, o
matadouro, a escola e todo o resto. Uma das meias
cidades é fixa, a outra é provisória e, quando
termina a sua temporada, é desparafusada,
desmontada e levada embora, transferida para os
terrenos baldios de outra meia cidade.
Assim, todos os anos chega o dia em que os
pedreiros destacam os frontões de mármore,
desmoronam os muros de pedra, os pilares de

- 32 -
cimento, desmontam o ministério, o monumento,
as docas, a refinaria de petróleo, o hospital,
carregam os guinchos para seguir de praça em
praça o itinerário de todos os anos. Permanece a
meia Sofrônia dos tiros ao alvo e dos carrosséis,
com o grito suspenso do trenzinho da montanha-
russa de ponta-cabeça, e começa-se a contar
quantos meses, quantos dias se deverão esperar
até que a caravana retorne e a vida inteira
recomece (CALVINO, 2003, p. 63).

Já em El astronauta paraguayo pulsa o portunhol selvagem de


Douglas, que se enquadra perfeitamente no terceiro ponto elencado
por Calvino: “uma linguagem que seja a mais precisa possível como
léxico em sua capacidade de traduzir as mudanças de pensamento e
da imaginação” (CALVINO, 1990, p. 74). Essa linguagem plurilíngue é a
marca da hibridação de culturas que acontece na fronteira.

El portunhol selvagem non es bueno nim malo nim


apenas makoñero. El portunhol selvagem es
espetakular
mismo que nunka lo seja, es vulgar, es bizarro, es
hermoso, es imprevisible, es vitaminado, es vita
nueba. El
portunhol selvagem encanta Bombacitas
Escolásticas
Domenicas Corleones Moraimas Julianas Marias a
full.
El portunhol selvagem fulmina monos y princesas.
El
portunhol selvagem es la noche ou la manhana que
non te podés perder y cuando la perdés nunca
perdés
nada. El portunhol selvagem es la cumbia o la
aburrida

- 33 -
kachaka. El portunhol selvagem es remédio
refreskante.
El portunhol selvagem es Água Mineral Kaákupe.
Me
encanta Maria San Bomba hermosamente
despeinada.
El portunhol selvagem non es moderno nim
atrasado.
El portunhol selvagem enkurupiza hasta las
catchorras
funkeras. El portunhol selvagem non tem nada a
ver
com el ambiente folclórico. El portunhol selvagem
non
es Nokia ou Motorola. El portunhol selvagem
rompe el
hielo de russas brasileiras kurepas madrileñas y
siberianas.
El portunhol selvagem non es el kapo que te quiere
declarar loko. El portunhol selvagem es free y es
pago y
es vendido y non se vende. El portunhol selvagem
es mucho
mais y mucho menos que todo ló que necessitás
saber. El
portunhol selvagem no le jode al rollete en la
Terminale.
El portunhol selvagem es néctar del delírio de las
lenguas
Mixturadas. El portunhol selvagem vai bem com
xixi de
virgen el drink mais caliente del verano recifensis.
(DIEGUES, 2012, p.25-6).

Imagens e contextos contemporâneos ganham significação no


poema elaborado com jogos de palavras, permitindo reconhecer o
“uso rico de recursos pobres” que se aproxima “da graça das

- 34 -
composições populares” (ÁVILA, 2012, p. 24-5). Essa identificação com
a massa que transita pela fronteira e se reconhece nessa linguagem
híbrida que não representa um Estado-Nação específico, mas uma
nação de pessoas com características afins. Canclini (2013) aborda a
questão da hibridação na formação identitária:

Esses processos incessantes, variados de


hibridação levam a relativizar a noção de
identidade. [...] A ênfase na hibridação não
enclausura apenas a pretensão de estabelecer
identidades “puras” ou “autênticas”. Além disso,
põe em evidência o risco de delimitar identidades
locais autocontidas ou que tentem afirmar-se
como radicalmente opostas à sociedade nacional
ou à globalização (CANCLINI, 2013, pág. XVII-XVIII).

A pesquisadora ainda complementa:

Ao deixar nascer da superfície confusa do dia a dia


urbano-selvático do segundo milênio seu discurso
híbrido, Douglas faz convergir em si as linhas de
forças da “vida danificada”, transformando assim
sua poesia em caso exemplar, ícone e avatar dos
desenvolvimentos mais recentes (ÁVILA, 2012, p.
8).

Finalizando a linha de raciocínio sobre a exatidão, vale


apresentar uma reflexão sobre o império de Kublai Khan a partir das
imagens evocadas com precisão:

Outras vezes, o Khan era acometido por


sobressaltos de euforia. Ficava de pé sobre as
almofadas, media com longas passadas os tapetes

- 35 -
estendidos sobre os canteiros, debruçava-se nos
balaústres dos terraços para abranger com os olhos
deslumbrados a extensão dos jardins do palácio
real iluminados por lanternas penduradas nos
cedros.
— Todavia — dizia —, sei que o meu império é feito
com a matéria dos cristais, e agrega as suas
moléculas seguindo um desenho perfeito. Em meio
à ebulição dos elementos, toma corpo um
diamante esplêndido e duríssimo, uma imensa
montanha lapidada e transparente. Por que as suas
impressões de viagem se detêm em aparências
ilusórias e não colhem esse processo irredutível?
Por que perder tempo com melancolias não
essenciais? Por que esconder do imperador a
grandeza de seu destino?
E Marco:
— Ao passo que mediante o seu gesto as cidades
erguem muralhas perfeitas, eu recolho as cinzas
das outras cidades possíveis que desaparecem para
ceder-lhe o lugar e que agora não poderão ser nem
reconstruídas nem recordadas. Somente
conhecendo o resíduo da infelicidade que
nenhuma pedra preciosa conseguirá ressarcir é que
se pode computar o número exato de quilates que
o diamante final deve conter, para não exceder o
cálculo do projeto inicial (CALVINO, 2003, p. 59).

Visibilidade

a fantasia, o sonho, a imaginação é um lugar dentro


do qual chove (CALVINO, 2003, p.99).

Calvino ao discorrer sobre essa proposta faz uma viagem ao


mundo da imaginação, apresentando uma retrospectiva a partir da
Divina Comédia de Dante, e evocando outros autores que utilizam os

- 36 -
processos imaginativos para dar forma e visibilidade as suas imagens
através da expressão verbal. Ao final do século passado, o teórico
aponta uma questão: como se forma o imaginário de uma época em
que a literatura, já não mais se refere a uma autoridade ou tradição
que seria sua origem ou seu fim, mas visa antes à novidade, à
originalidade e à invenção? Ele revela ainda que esse processo
imaginativo liga-se a emissores terrestres como o inconsciente
individual ou coletivo. (CALVINO, 1990, p.104).
“De onde provem as imagens que “chovem” na fantasia?”
(CALVINO, 1990, p.104).
No caso do Portunhol Selvagem, o próprio autor afirma que a
origem de sua língua poética, inicia-se na infância, nas relações
familiares e se reforça nas relações sociais.

Non se trata dum portunhol encenado desde um


gabinete, pero sim ouvido primeiramente en las
calles de La frontera de Punta Porã (Brasil) y Pedro
Juan Caballero (Paraguay), y em ñande roga mi
(nossa pequena casa), onde el portunhol era la
lengua mais falada por mio abuelo, la xe sy (mi
madre), la empregada, los parientes que venían a
comer alli los domingos kuê. La primeira lengua en
la kual me he expressado quando aprendi a falar
non fue el portugues nim el español nim lo guarani,
mas sim el portunhol de indole selvática (DIEGUES
em GASPARINI et al, 2012, p.159-160, grifo meu).

Essa linguagem Diegues empresta ao astronauta paraguayo:

- 37 -
¡Que hermosa era la yiyi del mulatismo
afroguarango
nhembo caduveo fantasiando el Astronauta
Paraguayo
embambinandola com suo fálico flamejante
portunhol
roubado de las calles sujas de lasa descnocidas
fronteras
selvagens! (DIEGUES, 2012, p.6).

No caso de Calvino ele próprio esclarece:

Se incluí a Visibilidade em minha lista de valores a


preservar foi para advertir que estamos correndo o
perigo de perder uma faculdade fundamental: a
capacidade de pôr em foco visões de olhos
fechados, de fazer brotar cores e formas de um
alinhamento de caracteres alfabéticos negros
sobre uma página branca, de pensar por imagens.
Penso numa possível pedagogia da imaginação que
nos habitue a controlar a própria visão interior sem
sufocá-la e sem, por outro lado, deixá-la cair num
confuso e passageiro fantasiar, mas permitindo
que as imagens se cristalizem numa forma bem
definida, memorável, autossuficiente, “icástica”
(CALVINO, 1990, p.110).

E de fato, faz uso dessa “pedagogia da imaginação” em sua


obra, concedendo ao seus personagens os referenciais de cidade para
que possam imaginar.

Mas as cidades visitadas por Marco Polo eram


sempre diferentes das imaginadas pelo imperador.
— Entretanto, construí na minha mente um
modelo de cidade do qual extrair todas as cidades
possíveis — disse Kublai. — Ele contém tudo o que

- 38 -
vai de acordo com as normas. Uma vez que as
cidades que existem se afastam da norma em
diferentes graus, basta prever as exceções à regra
e calcular as combinações mais prováveis.
— Eu também imaginei um modelo de cidade do
qual extraio todas as outras — respondeu Marco.
— É uma cidade feita só de exceções,
impedimentos, contradições, incongruências,
contrassensos. Se uma cidade assim é o que há de
mais improvável, diminuindo o número dos
elementos anormais aumenta a probabilidade de
que a cidade realmente exista. Portanto, basta
subtrair as exceções ao meu modelo e em qualquer
direção que eu vá sempre me encontrarei diante de
uma cidade que, apesar de sempre por causa das
exceções, existe. Mas não posso conduzir a minha
operação além de um certo limite: obteria cidades
verossímeis demais para serem verdadeiras
(CALVINO, 1990, p.69).

Encaminhando o texto para finalização da conferência o


teórico afirma:

que a fantasia do artista é um mundo de


potencialidades que nenhuma obra conseguirá
transformar em ato; o mundo em que exercemos
nossa experiência de vida é um outro mundo, que
corresponde a outras formas de ordem e de
desordem; os estratos de palavras que se
acumulam sobre a página como os estratos de
cores sobre a tela são ainda um outro mundo,
também ele infinito, porém mais governável,
menos refratário a uma forma. (CAVINO, 1990,
p.115).

- 39 -
Multiplicidade

Há o texto multíplice, que substitui a unicidade de


um eu pensante pela multiplicidade de sujeitos,
vozes, olhares sobre o mundo, segundo aquele
modelo de Mikhail Bakhtin chamou de “dialógico”,
“polifônico” ou “carnavalesco”, rastreando seus
antecedentes desde Platão a Rabelais e Dostoiévski
(CALVINO, 1990, p.134).

Calvino inicia esse último tema fazendo uma citação literária de


Carlo Emilio Gadda, escritor italiano para exemplificar como o
romance contemporâneo vem estabelecendo uma rede de conexões
entre os fatos, pessoas e coisas do mundo, e isso promove uma
multiplicidade de olhares sobre a realidade. Na obra de Gadda, Calvino
reconhece:

Gadda se entrega todo a cada página que escreve,


dando vazão às suas angústias e obsessões, de
sorte que não raro o projeto se perde e os detalhes
acabam crescendo de modo a tomar todo o
quadro. O que deveria ser um romance policial
permanece sem solução; pode-se dizer que todos
os seus romances ficaram no estado de obras
incompletas ou fragmentárias, ruínas de
ambiciosos projetos, que conservam os sinais do
fausto e do cuidado meticuloso com que foram
concebidas (CALVINO, 1990, p. 124).

A relação entre os autores italianos pode ser construída através


de uma analogia quanto ao cuidado meticuloso com as palavras e
detalhes. Todavia a obra literária de Calvino aqui analisada não é um

- 40 -
romance e não fica sem solução, já que consegue atingir seus
objetivos: apresentar suas reflexões e conjecturas a partir do
detalhamento de imagens deste símbolo que são as cidades.
Na obra As cidades invisíveis as imagens multiplicam-se aos
olhos do leitor que é levado a enxergar para além do visível, e inclusive
perceber, a partir das desconstruções das cidades, o que as ruínas
revelam – e elas têm muito a dizer. Tudo no livro de Calvino leva a
expansão de conhecimento acerca de si e do mundo, e as mínimas
coisas ganham significação.
É possível perceber a importância de se multiplicar detalhes,
buscando o contínuo inacabamento, de modo que as obras não se
encerrem em si mesmas, mas estejam abertas “a relações infinitas,
passadas e futuras, reais ou possíveis”. O teórico ainda explica: “Isso
ocorre mediante exploração do potencial semântico das palavras, de
toda a variedade de formas verbais e sintáticas, com suas conotações
e coloridos e efeitos o mais das vezes cômicos que seu relacionamento
comporta” (CALVINO, 1990, p.125).
As reflexões sobre a obra de Gadda despertam pontos para
pensar a multiplicidade nas obras em estudo. N’As cidades invisíveis,
Marco Polo descreve com riqueza de detalhes um cenário a partir do
tabuleiro de xadrez do grande Khan. Importante destacar que a partir
das descrições das cidades invisíveis é possível criar inúmeras relações.

— O seu tabuleiro, senhor, é uma marchetaria de


duas madeiras: ébano e bordo. A casa sobre a qual

- 41 -
se fixou o seu olhar iluminado foi extraída de uma
camada do tronco que cresceu num ano de
estiagem. Observe como são dispostas as fibras.
Aqui se percebe um nó apenas esboçado: um broto
tentou despontar num dia de primavera precoce,
mas a geada noturna obrigou-o a desistir. — Até
então o Grande Khan não se dera conta de que o
estrangeiro sabia se exprimir fluentemente em sua
língua, mas não foi isso que o surpreendeu. — Eis
um poro mais largo: talvez tenha sido o ninho de
uma larva; não de um caruncho, pois este, logo
depois de nascer, teria continuado a escavar, mas
de uma lagarta, que roeu as folhas e foi a causa pela
qual a árvore foi escolhida para ser abatida… Esta
margem foi entalhada com a goiva pelo ebanista a
fim de aderi-la ao quadrado vizinho, mais saliente…
A quantidade de coisas que se podia tirar de um
pedacinho de madeira lisa e vazia abismava
Kublai; Polo já começava a falar de bosques de
ébano, de balsas de troncos que desciam os rios,
dos desembarcadouros, das mulheres nas janelas…
(CALVINO, 2003, p. 127-8). (grifo meu)

Diegues constrói seu astronauta paraguayo assim como cria


seu portunhol selvagem, de modo errático e aberto a incorporar
culturas. Assim, ele pode visitar outras cidades para além da fronteira.
O personagem visita cidades visíveis enquanto espectador do
espetáculo real da vida, reproduzindo imagens captadas pelos olhos
do astronauta que sempre “sigue volando e flotando”.

Y nem el Papa puede kalcular cómo um pobre


astronautita
muerto de amor como um idiota toba quom
todabia

- 42 -
respire todavia delire todavia hable todavia suenhe
todavia
brille ternura en sus ojos todavía baile cumbia
todavía siga
flotando flanando fálico flamejante rupestre feo
original
belo verdadero indomable erotico selvagem turko
chino
alemán paraguayo brasileiro guarani.
(DIEGUES, 2012, p.10)

São múltiplas imagens e culturas que compõem esse


astronauta e múltiplas ações ele desempenha para continuar vivendo
e sentindo nesse mundo selvático.

Considerações finais
O presente capítulo pretendeu promover um diálogo entre
duas obras literárias que ocupam lugares distintos no cenário
contemporâneo. Enquanto Calvino já é um cânone da literatura,
Diegues emerge da fronteira, longe dos grandes centros culturais, com
uma obra construída em uma língua poética inovadora, e que guarda
relações próximas com o portunhol, linguagem por muito tempo
estigmatizada, por não representar a oficialidade dos Estados-Nações.
As cidades invisíveis guardam muito das realidades humanas e
situações que seduzem os homens a conhecê-las. Desse modo, o
astronauta paraguayo poderia visitá-las e trazer a sua percepção
captada de cima, uma vez que flutua pelos céus ou voa na imaginação.

- 43 -
As discussões suscitadas e leituras comparadas permitem
concluir que as propostas feitas por Calvino para esse milênio, que já
se vivencia, foram encontradas em sua própria obra literária, bem
como na obra de Douglas Diegues.
As viagens de Marco Polo e do astronauta paraguayo
relacionam identificações reais e imaginárias, e promovem essa busca
incessante por conquistas, seja por descobertas de novas cidades que
poderemos habitar ou que já nos habitam.

- 44 -
Referências

ABRANTES, Fernanda Arruda. Portunhol Selvagem: hibridação


linguística, multiterritorialidade e delírio poético. Dissertação
(Mestrado em Estudos Literários) – Universidade Federal de Juiz de
Fora, Juiz de Fora, 2012.

ÁVILA, Myriam. Douglas Diegues por Myriam Ávila. Rio de Janeiro:


EdEURJ, 2012. (Coleção Ciranda da Poesia).

CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. Tradução: Diogo Mainardi. Rio de


Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de São Paulo, 2003.

CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. Lições


americanas. Tradução: Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras,
1990.

CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas Híbridas: Estratégias para entrar e


sair da modernidade. São Paulo: EDUSP, 2013.

CANCLINI, Néstor Garcia. Introdução à Edição de 2001. As Culturas


híbridas em tempos de Globalização. In: Culturas Híbridas: Estratégias
para entrar e sair da modernidade. São Paulo: EDUSP, 2013, pág.XVII-
XLIII.

DIEGUES, Douglas. El astronauta Paraguayo. Buenos Aires: Eloisa


Cartonera, 2012.

GASPARINI, Pablo et al. Entrevista a Douglas Diegues, poeta em


“portunhol selvagem miri michi”. In: “Corregirlo sería matarlo”.
Associação Brasileira de Hispanistas (abehache - ano 2 - nº 2 - 1º
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http://www.hispanistas.org.br/arquivos/revistas/sumario/revista2/1
59-166.pdf Acesso em 08 abr. 2016.

TEIXEIRA, Rodrigo. (Tríplices) Fronteiras Literárias. Campo Grande,


2011. Entrevista concedida em 10 ago. 11. Disponível em:

- 45 -
http://www.overmundo.com.br/overblog/triplices-fronteiras-
literarias Acesso em 24 jul 2015.

- 46 -
Entre metamorfose presentes em Inocência de
Visconde de Taunay e Os Semelhantes de Ricardo
Guilherme Dicke

Andréia Vieira Netto9

Introdução
A literatura é uma área do conhecimento, que nos possibilita a
conhecer sonhos, problemas e carências de uma sociedade através da
ficção, para Abdala Jr. A literatura é vista como um processo do
conhecimento. A crítica necessária, substantiva, capaz de contribuir
para dinamização do campo intelectual (2007, p.81). Possui língua
viva, pois os escritores discorrem sobre a sociedade da qual faz parte
ou não, muitas vezes sobre povos que não têm condições de
manifestar seus sonhos, desejos, problemas e (des) aventuras. Através
da ficção apresentam as classes sociais que vivem as margens da
sociedade conservadora. Vimos em Antônio Candido que (2000, p.
186);

[...] a literatura é essencialmente uma


reorganização do mundo em termos de arte; a
tarefa do escritor de ficção é construir um sistema
arbitrário de objetos atos, ocorrências,

9 Andréia Vieira Netto – mestranda da UNEMAT de Tangará da Serra-MT

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sentimentos, representados ficcionalmente
conforme um princípio de organização adequado a
situação literária dada [...]

Nesta construção de sistemas arbitrários a literatura se


completa, pois através da identificação do leitor com o texto lido,
ocorre ligação entre autor, obra e leitor, para BRUNEL (1995, p,140 )
na tríade formada pelo autor, pela obra e pelo público, este não é um
simples elemento passivo que apenas reagiu em cadeia, ele desenvolve
por sua vez uma energia que contribui para fazer a história. História de
uma sociedade composta por diversas culturas, de acordo com
Abadala Jr. Uma cultura marcada pela crioulidade, isto é, uma
mesclada, onde pedações de varias culturas [...], se mesclaram desde
o período de colonização do país, em que os imigrantes atravessaram
o oceano Atlântico em busca de melhoria de vida, com eles vieram
suas culturas, fazendo da cultura brasileira uma colcha de retalhos
composta por várias culturas.
Com isso passamos a falar de hibridação cultural, o que não
precisa ir além das fronteiras, o Brasil por ser de grande extensão
territorial e dividida em cinco regiões em virtude das diferenças de:
clima, relevo, vegetação e cultura. Cada uma composta por diferentes
dialetos que sofreram influência da colonização local, por influência do
clima diferem nas: vestimenta, culinárias, danças, lendas etc. Ainda
falando das diferenças, dentro destas regiões ocorrem as culturas de
gênero, classes econômicas, cultura rural tradicional e urbana

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moderna, os ciganos, os índios. Diante disso Abdala Jr. (2007, p.68)
coloca que na vida cultural, discursos e práticas tendem à
administração da diferença – uma maneira de se exercer e justificar a
ordem hegemônica.
Podemos dizer que é através da literatura, que se encontra e
combinam a originalidade de cada ser, o espírito coletivo com todos
seus questionamentos e estilos de diferentes épocas. Assim entramos
em uma perspectiva comparatista, cuja função se enquadra à
Literatura Comparada, essa que tem por objetivo o estudo das
diferentes literaturas, estabelecendo relações entre obras, questões
sociais, políticas, históricas e problemas literários. BRUNEL (1995, ps.
141-142) traz as seguintes definições;

Literatura comparada: descrição analítica


comparação metódica e diferencial interpretação
sintética dos fenômenos literários interlinguístico
ou interculturais, pela história, pela crítica e pela
filosofia, de melhor compreender a literatura como
uma função específica de espírito humano.

Nesse aspecto, da função da literatura comparada é pautar a


influência e relação entre: identidade, diferenças, relações políticas,
sociais, filosóficas, religiosas, cientificas, artísticas e literárias. Sendo o
objetivo deste trabalho, apresentar as semelhanças e diferenças, entre
personagens femininas de duas obras escritas em momentos
histórico-sócio-cultural e autores diferentes, porém em um mesmo
Estado.

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Quando falamos em literatura, mais precisamente do Mato
Grosso, Hilda Magalhães (2001), que discorre que a produção iniciou
no Século XX, a princípio a literatura local era conservadora uma
mistura de história e arte, devido ao isolamento, distância territorial,
a falta de comunicação e de transporte. No séc. XIX Visconde de
Taunay escreveu uma narrativa que teve como lócus enunciativo o
Estado, mas de acordo com a ensaísta Olga Maria Castrillon-Mendes,
ele representou uma nação “modelo”, devido sua aproximação com o
Imperador. Nesta narrativa Taunay realizou um trabalho
revolucionário na literatura, pois ultrapassava o simples sentido
estético para o período literário do momento. (MENDES, 2008, p.45);
In: Silva, Agnaldo Rodrigues (org) 2008.

Estaria Taunay antecipando a visão modernista?


Em outras palavras os modernistas renovam os
temas românticos? Como leitor da tradição dos
relatos de viagem e, particularmente, dos relatos
das viagens de Taunay [...] parece reconhecer o
espírito moderno como “afinamento” das
expressões românticas e do desejo de
descentralização intelectual, relevando e
sistematizando uma cultura nacional.

A partir de 1950 com o programa de ocupação de Getúlio


Vargas em Mato Grosso, tornou atuante aumentando os meios de
comunicação, infraestrutura e educação. Diante dessas mudanças a
literatura refletiu formas de percepção de poder emergente. Mas
somente após a divisão do Estado em 1977 houve um novo

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posicionamento dos poetas mato-grossense e passaram fazer arte
com temas universais. Após a integração do Estado as demais regiões
e com destaque econômico, a literatura manifesta um olhar social para
esse panorama. Dando destaque aos conceitos filosóficos e situações-
limites do “esvaziamento do ser no mundo” sendo R.G. Dicke um autor
que deu ênfase a esse aspecto. Conforme (MACHADO, 2014, p. 85), “A
literatura feita em Mato Grosso, especificamente a obra ficcional do
prosador Ricardo Guilherme Dicke, tem entre seus atrativos uma visão
da terra que corrobora para entender o homem do tempo presente”.
Com relação à Dicke MACHADO ( 2014, p. 17) aborda que :

Ricardo Guilherme Dicke, faz do espanto, uma


palavra para galgar esta sabedoria. Quando o
artificie da palavra não fornece uma reposta, mas
condições para se fazer a pergunta; não tranquiliza
o leitor, pelo contrario, desestabiliza as certezas,
não revela o mistério, deixa por outro tanto que o
leitor se transporte a ele.

Tanto Visconde de Taunay como Ricardo Guilherme Dicke são


grandes escritores em seu tempo, com trabalhos voltados a descrição
de experiências vividas e observadas, proporcionadas pelo contato,
que ambos obtiveram do sertão do Mato Grosso.
Iniciaremos um argumento relacionado ao romance Inocência
de Alfredo d’Escragnolle de Taunay (1843-1899), nele o autor mistura
ficção e realidade, em uma obra composta de trinta capítulos,
descreve as paisagens do cerrado e dos pântanos do sertão mato-

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grossense, como se retratasse um retrato de paisagem perfeita, com
olhar detalhista de pintor que era. O enredo gira em torno dos
relacionamentos amorosos, a princípio era o casamento arranjado
pelo pai, depois o amor proibido, pois a moça era prometida ao
capataz.
Em Inocência quem faz o papel de viajante é Cirino o
protagonista da obra, este apresentava contraste de costumes, em
relação ao povo do sertão, pois era moço da cidade, entendedor dos
fármacos e fora autopromovido a médico. O Senhor Pereira, é um
pequeno produtor da região e pai de Inocência, moça de saúde frágil.
Fato que possibilita o encontro entre Inocência e Cirino, pois estava
acamada necessitando de cuidados medicinais, assim o Senhor Pereira
leva o médico aos aposentos da filha, antes lhe faz várias advertências,
a Cirino e pediu que mante-se distância da moça, porque já era
prometida a um capataz Manecão Doca. Porém durante as inúmeras
consultas médicas o casal apaixona-se.
Naqueles tempos havia muitos estudiosos que dedicavam à
natureza, para conhecê-la viviam viajando, o narrador nos apresenta
o Alemão Meyer, que pesquisava sobre borboletas, dentre as quais
seus estudos a Borboleta Azul tinha atenção especial.
Cirino fora convidado a hospedar na casa do senhor Pereira
para cuidar de Inocência e o Senhor Meyer também hospedou na casa,
eles são os personagens representantes da cultura moderna. Com
decorrer do tempo surgiram intrigas entre os moços hospedados com

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os moradores da casa, pois os hospedados possuíam costumes
inovadores, pensamentos de liberdade. Já os moradores da casa
viviam em um ambiente estático, carregado de costumes tradicionais
do campo. Desconfiado de que algo errado estava acontecendo o pai
de Inocência decidiu apressar o casamento.
Desta forma ele e Manecão descobrem o romance de Cirino e
Inocência, pois ela renúncia de Inocência ao casamento arranjado,
cada um teve uma reação deferente, o pai desorientado agrediu a
filha, o noivo sente-se traído e cobra sua honra matando Cirino. De
acordo com o narrador depois de algum tempo Inocência também
morre. Assim encerra a narrativa em meio à tragédia do amor
proibido.
Essa obra foi publicada em 1872, período de colonização do
país, embora o autor tenha nascido no Rio de Janeiro, teve contato
com o sertão mato-grossense a partir das experiências que teve em
suas viagens de expedição por participar da guerra do Paraguai, o que
permite a descrição com alteridade e verossimilhança desse lócus
enunciativo, para MENDES (2008; p. 240) esse,

[...] o estilo detalhado determina a verossimilhança


da paisagem e de tipo humano que vivifica a cena
a ser configurada, do que se pode inferir que
Taunay é fruto de sólida formação de pintor. Fatos
da vida real fazem parte do idílio, o que se pode
notar pela personagem Inocência, cujas
características podem ser da sua experiência
amorosa com uma índia guaná. Bosi diz que:

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Taunay enquadrou a história de Inocência em
cenário e conjunto de costumes sertanejos onde
tudo é verossímil.

Visconde de Taunay vinha de família de elite, teve uma boa


educação a melhor que o Brasil podia oferecer na época, sendo
interrompido durante a guerra do Paraguai, da qual fez parte, das
expedições como ajudante da Comissão de Engenheiros. Essa
experiência o possibilitou contato com a natureza e costumes do
sertão do Maro Grosso, dando possibilidade de descrever o que
conhecia e situações vivenciadas. Foi um político bem-sucedido e de
prestígio, tornando amigo de D. Pedro II. Nesta perspectiva de
MENDES (2008) acredita que em virtude do amor vivido por Taunay
durante a guerra, pode ter o inspirado a instituir o rapaz de cultura
urbana moderna, representado por Cirino nessa trama.
Durante o período que discorre a narrativa, o Brasil passava
pela Regência de D. Pedro II o imperador, encerra a guerra do Paraguai
e nesta data ocorre à fundação do Partido Republicano Brasileiro, em
1871 é baixada a Lei do Ventre Livre sendo livres os filhos de escravas
nascidos a partir daquela data. Durante esse período há conflitos entre
a Igreja Católica e a monarquia brasileira. Também neste período inicia
a imigração de italianos, espanhóis, japoneses e alemães, para
trabalhar na lavoura, o país passava por grandes mudanças
econômicas e hibridação da população em virtude de povos oriundos
de outros locais. Nesta narrativa Taunay representa o conflito ocorrido

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entre o meio rural e urbano, através, de Inocência e sua família
representantes do meio rural tradicional e o meio urbano é
representado pelos viajantes: Cirino, Meyer e seu ajudante.
O autor representa a linguagem do sertanejo do interior de
Mato Grosso, sendo caracterizado como romance regionalista, por
relatar detalhes dos costumes, crenças e vocábulos dos sertanejos, da
região, uma obra do romantismo em declínio, as vésperas do realismo.
Uma narrativa de fácil compreensão, escrita em parágrafos curtos e
linguagem de fácil entendimento, apresenta narrador em terceira
pessoa e onisciente, que tudo sabe, sem intervenção. Descreve a vida
mato-grossense, valorizando a cultura local, através da escrita elucida
a oralidade do povo sertanejo. Também relata a vida, experiências,
tragédias e sonhos de um povo, que pode ser comum a outros povos,
indo além das fronteiras, seja, da região ou do pais.
Inocência a protagonista que recebe o nome da obra, é uma
moça definida pelo narrador com “beleza deslumbrante” e tímida, que
diferente de seu irmão ela manteve sempre perto de seu pai, fora
criada sem mãe e submissa aos mandos do pai, recebeu educação para
ser uma boa dona de casa, aprendendo os afazeres domésticos, sendo
negado acesso a educação formal. Como personificação da borboleta
azul, também era linda, a borboleta azul representa transformação
que os seres humanos passam ao longo da vida física e social, na
psicanálise moderna é símbolo de renovação, ou seja, Inocência

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perpassa por essas mudanças, mas não consegue sair do casulo que é
a casa dos pais, morrendo sufocada.
O pai de Inocência, Senhor Pereira era um pequeno
proprietário de terra, representante típico do meio rural com uma
personificação do homem rústico e tradicional, com valores típicos de
sua época e região. Ele trazia sua vida rural planejada dentro de seus
costumes e tudo caminhava em conformidade, até a chegada de
Cirino, em vez de levar a cura da filha, trouxe foi desordem.
O Alemão Meyer é o segundo a desestruturar a estabilidade
daquela família, que surge na narrativa junto com seu criado Juca, com
uma carta de recomendação do irmão mais velho de Pereira o Sr.
Chiquinho. Meyer com sua ingenuidade inicia o desiquilíbrio ao elogiar
Inocência, atraindo a ira e desconfiança do Senhor Pereira, fazendo
com que não desconfiasse do romance de sua filha com Cirino.
Com relação à outra narrativa, Os Semelhantes de Ricardo
Guilherme Dick, também toma como cenário o Mato Grosso, nas
proximidades da Capital Cuiabá, em uma região de garimpo, nesta
obra a mulher é apresentada com um diferencial, com relação à obra
de Inocência, pois traz a presença da mulher no mundo hostil do
garimpo, mulheres fortes, desbravadoras. Sendo característica do
autor essa, busca empreendida pelas personagens : mulheres fortes,
destemidas, com objetivos claros que, em meio a rota existencial,
param ouvirem a melodia da vida. (MACHADO, 2014, p.36).

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A novela é apresentada em duas partes a primeira inicia com
Abadia assassinando seu companheiro e sócio de garimpagem, o
assassinado era o turco Salomão que encontrara um belo diamante do
tamanho de um caroço de café. Entre eles havia um acordo, que era a
divisão do que encontrassem, mas depois que Salomão encontrou a
pedra queria abandonar tudo e ir embora, iniciando os
desentendimentos, entre as discussões e xingos, veio o assassinato,
Abadia da um tiro em seu sócio e joga-o no rio tomando-o a pedra.
O protagonista recorra ao ditado popular que, “ladrão que
rouba ladrão tem cem anos de perdão”, como justificativo para seu
crime, mas mesmo assim, passou a viver atormentado por sua
consciência, representada pela Mãe lua, que soava sons todas as
noites “quem foi, foi, foi” e às vezes via o rosto redondo de Salomão.
As mulheres da região tinham o abito de lavar roupas no rio,
quando Ramonita e sua avó foram ao rio Aguaçú, lá encontraram a
caveira de Salomão, então conversam sobre várias lendas da região
deixando a moça impressionada com as histórias da avó.
Ali próximo ao garimpo havia a casa de Maria Ramona, onde
morava Umbelina, amada de abadia, ele dizia que ela exalava cheiro
de açúcar, antes da posse da pedra não tinha esperança de casar por
achar que sua amada era de elite, mas após tomar o diamante foi das
primeiras coisas que planejou. Então leva a pedra para vender.
Na estrada da guia encontra junto negro cego da carona para
Ramonita, que fugia por ser culpada aparentemente injustamente,

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pela morte de uma criança recém nascida que encontrara nas margens
do rio. Após um acidente e a morte do burro que puxava a carroça,
resolvem parar para descanso. Foi quando Abadia admira o diamante
e Ramonita o vê, quando o preto adormece ela rouba a pedra e foge
sem deixar rastro. Ao acordar ele não encontra a pedra, desconfia do
velho cego e mata-o, deixando ao relento para os urubus junto do
cadáver do burro, próximo ao rio vermelho.
Ramonita se arrepende e volta para devolver a pedra, mas
encontra apenas a cena do crime e o mau cheiro, indignada decide a
não devolver mais. Um pouco adiante encontra Roseno, conta tudo o
que acontecera e mostra pedra, fala dos planos para juntos
construírem uma vida, usufruído do que o diamante lhes
proporcionaria. Mas Roseno a recrimina pela atitude de roubar e fala
para ela escolher entre ele e a pedra. Entusiasmada pela pedra ela
escolhe a pedra em meio às lágrimas seguindo sozinha para seu
destino.
A segunda parte da novela transcorre vinte anos. Abadia fica
no distrito da Guia mendigando, atormentado pelos crimes que
cometera e a perda do diamante. Ramonita assume uma posição de
protagonista, com o dinheiro torna proprietária de vários imóveis em
Cuiabá e de um prostibulo. O destino une Umbelina a mãe da criança
morta e Ramonita, as quais se tornam amigas. A patroa considerava a
amiga como uma irmã, que se tornaram companheira e sempre
presente. Em virtude disso, fez um testamento passando todos os seus

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bens para Umbelina, esta ao tomar conhecimento do testamento à
ambição toma conta de seu coração.
Ao receber a visita de Roseno, Ramonita fica muito depressiva
e resolve tirar sua vida, toma uma dose de bebida com formicida.
Umbelina ambicionando a riqueza que iria herdar deixa-a agonizando
sem socorre até morrer. No dia do velório de Ramonita bebe muito e
se veste de noiva, neste momento Abadia chega, e encontra quem lhe
tinha causado tanto sofrimento em um caixão. Abadia aproxima do
cadáver e despede com um beijo cheio de ódio e vingança. Depois
conversa com sua amada que sempre o esperou de braços abertos,
voltam e anunciam que ele era dono de tudo. Assim a narrativa
encerra com Abadia rico, porém bêbado e atormentado pela sua
consciência que o acusava dos assassinatos.
Os personagens masculinos, como o protagonista Abadia é um
personagem atípico com relação à beleza de heróis Românticos, sofre
com a miséria e feridas do corpo e da alma, entrega alcoolismo, fica
mendigar, descorçoado após perder a pedra. Salomão era imigrante
turco e racista, o que causou ódio em Abadia, por romper com a
sociedade, pois o imigrante deseja retornar para sua terra, após ter
encontrado a pedra de diamante. Roseno mineiro é um personagem,
que o autor traz com boa índole não cedeu ao dinheiro, porém vivia
angustiado, pois seu irmão gêmeo sumiu misteriosamente, seu pai
dedicou à vida a procura-lo, esquecendo de Roseno.

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Já com relação aos personagens femininos, temos como
antagonista Ramonita a princípio era uma personagem com boa
índole, de acordo com os conceitos sociais conservador, tinha laços
familiares, perdera os pais, mas morava com a avó. Umbelina era moça
do prostibulo que sonhava em casar com seu noivo Abadia. Parecia
boa, mas quando teve a oportunidade de adquirir a riqueza da amiga,
a inveja foi mais forte e a deixou morrer sem socorro.
A novela Os Semelhantes foi escrita por volta de 1970 em um
período de Ditadura militar. Em meio a muitas mudanças histórico-
político-social, como a literatura brasileira contemporânea em geral é
focada na vida humana, retratam a vida social e seus dilemas como: a
solidão, a violência, as questões políticas, os crimes impunes. Ricardo
Guilherme Dicke como filósofo dá destaque ao lado sombrio das
personalidades dos personagens.
O autor conduz ao questionamento da condição e existência
humana. Característica marcante do pós-modernismo, a prosa urbana
contemporânea, refletindo os problemas gerados pelo progresso, pelo
capitalismo selvagem: a solidão, a marginalização, a violência, a luta
sem pudor pelo desejo e ao conquistar, perdendo a razão de ser,
desencadeando no vazio da alma e ao mal do século que é a
depressão.
Segundo Birman essa frustação da sociedade moderna, trata
da turbulência de sujeito e seus desejos, a busca pele compreensão do
individualismo humano formulado pela teorização freudiana:

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[...] a problemática da civilização se transformou
em questão crucial para a filosofia e das ciências
humanas. Assim, é sempre a questão da
modernidade que está em pauta para o discurso
freudiano quando este toma a civilização como
objeto de pesquisa e reflexão. (BIRMAN, 2009,
p.140).

Diante de tantas frustações interiores, ocasionadas pelo social,


pelas atitudes humanas a morte é vista como válvula de escape para
tanta aflição, que perpassa a sociedade.
O narrador de Os Semelhante traz os vários conflitos de
personalidade do ser humano sem referencial. Como a solidão e a
angustia, após conquistar a riqueza neste caso simbolizada pelo
diamante. O remorso vinha por que para adquirir o dinheiro, tinha
sobre si a culpa da morte de alguém, mas o narcisismo não
possibilitava pensar no outro.
Quando realizamos a analogia entre Inocência e Os
Semelhantes, precisamos observar que o ser humano é fruto da
sociedade e do meio que vive, com ideais e dogmas de acordo com os
acontecimentos sociopolíticos e históricos. Assim durante algum
tempo a literatura trouxe personagens perfeitos, próximo ao ideal
para a aceitação social, que é representada aqui por Inocência. Já R.G.
Dicke traz a representação da classe marginalizada da sociedade na
década de 70. Uma sociedade hibrida, com várias etnias, culturas,
classes sociais, o autor representa traz personagens marcantes e

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discriminados como garimpeiros clandestinos e as prostitutas,
apresentando os sonhos de cada um.
Entre as duas obras escolhidas, temos quase cem anos de
diferença, Inocência escrita em 1872 e Os Semelhantes escrita por
volta de 1970, embora seja na mesma região, mostra meios sociais e
culturais diferentes. A primeira narra à vida pacata do campo, com
uma cultura aprisionada as tradições e felizes. Mas para sair da
monotonia ocorre o conflito de culturas, submergindo uma a outra, ao
encontrarem as duas culturas, representadas por Inocência e Cirino,
ambos morrem. Já a segunda da traz a vida hostil do garimpo do
sertão, composto por um povo sofrido, desprendido do romantismo,
que luta primeiramente pela sobrevivência. Na primeira a natureza é
bela, já a segunda o ambiente é agressivo, sempre lembrando a
solidão, o medo, aflição.
Na obra Inocência Visconde de Taunay mostra os imigrantes
presentes na região que vieram em busca de novidades como o
alemão Meyer, ou em busca de terra como o pai de Inocência, para
plantar e construir uma família modelo, diferente de Os semelhantes,
pois os imigrantes vinham em busca de riqueza, na maioria das vezes
sem famílias, como no caso do turco Salomão, que após encontrar a
pedra de diamante, queria retornar para sua cidade, ou construir uma
vida próspera em outro lugar como Ramonita queria.
Tanto a protagonista Inocência como a Ramonita,
desencadeiam angústias na alma, em virtude de circunstâncias

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diferentes as angústias e solidão conduzem-nas a morte, a primeira
jovem obediente exemplo de moça para época, vivia com o pai e tinha
um padrinho o qual respeitava e esperava por proteção. A segunda
Ramonita perdera os pais no início da narrativa morava com a avó.
Despois da morte da criança sente obrigada a fugir, desligando dos
laços familiares, rouba o diamante e vai embora sozinha, deixando o
amor para trás, mudando totalmente o rumo de sua vida, passou a
viver rica e infeliz.
Com relação à personalidade da mulher, vemos características
bem diferentes, pois em Inocência era filha de fazendeiro, não
conhecia problemas financeiros, era tratada pelo pai como
“coitadinha”, de saúde frágil e sem voz ativa e submissa. Em toda obra
encontramos poucas mulheres, além da protagonista e Maria Conga
era uma escrava que cuidava dos afazeres domésticos. Já em Os
Semelhantes são várias mulheres que buscam pela sobrevivência, se
preciso abrem mão de tudo inclusive do amor, para ir à busca de vida
melhor, um enredo realista, que mostra que diante do instinto de
sobrevivência o ser humano pode apresentar ações ligadas à usura, à
inveja, ao ódio, à avareza, mas essas ações podem conduzir a morte
da alma ou do corpo,

[...] Os Semelhantes, a diferença fica conta de uma


de agora ser uma pedra de diamante. A posse da
pedra transforma a personalidade de todos que
detém, fazendo com que cada um deles perca
valores, sentido de retidão, em toca de se tornar

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rico. Nem amor, amizade, afeto são levados em
consideração quando agir para garantir a posse do
diamante está em jogo. Mulheres e homens
narrativos compõem um quadro, um espelho que
os fazem iguais aos homens reais por meio da
penúria de se descobrirem sem importância no
mundo das coisas. (MACHADO, 2014, p.36).

Inocência era uma moça que aceitava as ordens do pai, tinha


um casamento arranjado, fora prometida a Manecão o qual não
amava, percebemos que ela aceitava aquela vida porque não conhecia
outra situação, quando teve o contato com outro amor quis
desprender das teias do conservadorismo que a prendia, mas não
conseguiu. Para os quem compunha a sua sociedade rural, como
Pereira e o padrinho, acreditavam que ela deveria estar muito alegre
por encontrar um casamento. É o que seu padrinho fala para Cirino,
quando em meio à angústia do casal, busca ajuda ao padrinho o Sr.
Antônio Cesário, porém não houve resultado Cirino se cala quando
ouve as palavras a seguir:

[...] uma menina como ela não sabe o que lhe fica
bem ou mal... Ninguém a vai é consultar. Mulheres
o que querem é casar [...] mulher é para viver muito
quietinha perto do tear, tratar dos filhos e cria-los
no temos de Deus; não é nem para parolar-se com
ela, nem a respeito dela. [...] Minha afilhada
continuou Cesário, deve levantar as mãos para os
céus. Achou um marido que a há de fazer feliz e
torna-la mãe de uma boa dúzia de filhos.
(TAUNAY,1998, p. 131)

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As mulheres não tinham voz, eram criadas para casar e cuidar
dos afazeres domésticos e do marido. A presença de Cirino na vida de
Inocência mudou sua característica de inocente, ela se comportou
como uma borboleta que queria sair do casulo, enfrentando a decisão
do pai e não aceitou casar, apresentando iniciativas de revolução
femininas, desejo de mudar o que estava posto para ela, porém não
saiu de perto do pai, ela não sabia voar. Inocência queria que seu pai
aceitasse o romance dela com Cirino, não abandonando o mundo que
vivia, queria unir o mundo de Cirino com o seu, o urbano moderno com
o rural tradicional. Então ambos morrem.
Já em Os Semelhantes à mulher comanda seu destino,
Ramonita vivia presa em si e no só em seu quarto, até que em uma
noite vai ao rio Aguaçu, encontra uma criança recém-nascida na beira
do rio, ao pegar em seus braços resolve leva-la para casa então o bebe
morre. Ela passa a noite com a criança morta e assustada, pois tinha
medo de mortos. No outro dia quando resolve deixar à criança onde
encontrou, mas lá estava a mãe da criança com alguns ciganos que a
culpam pela morte, deixando um feroz cachorro a atacar.
Em meio às acusações e feridas causadas pelo cão, Ramonita
chega a ficar em dúvida se ela teria ou não assassinado mesmo a
criança. Foge da perseguição e da acusação, encontrado com Abadia
na estrada pegando carona. Encanta-se com o diamante na primeira
oportunidade que teve apossou do diamante e fugiu da presença do
“preto” no escuro da noite. Com relação a morte da criança, pode

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estar representando a morte da inocência presente na personalidade
de Ramonita. E quando depara com o diamante, instaura o mal,
refletido na inveja e usura da protagonista aflora, rouba a pedra e vai
embora, ela sabia que o assassino mataria o velho cego, porém pensou
apenas em proteger-se fugiu imediatamente. E na estrada escura, ela
passava a travessia da vida, rompendo com laços de sentimentalismo
e familiares.
Diferente de Inocência, Ramonita não ficou esperando o
desenlace do destino, que poderia ser de perseguição ou de morte,
pela acusação de ter matado a criança, ela fugiu. Diferente de
Inocência, Ramonita pode ficar com seu amor, pois ele lhe deu a opção
para escolher entre ele e a pedra, e ela prefere o diamante e vai
embora sozinha, constrói sua riqueza e vive assim por vinte anos. Em
seu aniversário de quarenta anos, ao receber a visita de um homem
moreno, que tudo indica ser de Roseno, começa a nostalgia e angústia,
a ponto de não querer mais viver, toma uma bebida misturada com
veneno formicida.
Na obra Inocência, vemos que mulher e homem são diferentes,
a mulher apenas obedece, não tem voz ativa nem para decidir a
própria vida, o autor traz como sexo frágil. Em Os Semelhantes
verificamos outro cenário, de uma sociedade em que homens e
mulheres assemelham-se, com relação às personalidades colocadas
em cheque diante frente à riqueza, uma sociedade contaminada com
um pensamento individualista, imediatista que não pensa o futuro e

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consequências das ações, reflexo do caos dos anos loucos, na
subjetividade.
Tanto Inocência como Ramonita morrem no final das
narrativas, porém a primeira não pode escolher seu destino, na solidão
e tristeza pela falta do amado ela morre. A segunda também morre
sem seu amado, mas por sua escolha, essa escolhe o dinheiro que não
supre a necessidade da alma deixando um enorme vazio e dor, desiste
de viver e suicida.

Considerações Finais
Após a realização desse trabalho percebemos que, embora as
narrativas sejam do mesmo Estado, são de meios sociais e culturais
diferentes, pois Visconde de Taunay traz a cultura do meio social do
campo, e R.G.Dicke trabalha com o meio do garimpo. Apresentam a
mesma paisagem, a mesma região. Na primeira o autor destaca a
beleza e a fragilidade da mulher, a protagonista era filha de fazendeiro,
não precisava lutar para sobrevivência, na segunda Dicke traz a
semelhança entre homem e mulher, um mundo hostil onde todos
lutam para sobrevir, e que diante das adversidades e prova da vida, se
embrutecem para defender seus próprios interesses, acabam
matando ou omitindo socorro como Ramonita e Umbelina, com
sentimento narcisista, pensam apenas no dinheiro e deixa que o outro
morra. Temos em Inocência uma mulher romântica que desejava viver
com seu amor, como a morte de seu amado Cirino, morre. Já em Os

- 67 -
Semelhantes temos Ramonita que também amava Roseno, mas
direciona seus objetivos a aquisição de dinheiro, perde o sentido da
vida preencher a vida com coisas materiais e não com sentimentos.
Enfim mesmo que com personalidades e tempos bem
diferentes, são obras que transcendem, pois ainda hoje temos
mulheres românticas e submissas como Inocência, em variados locais
do mundo, como também temos, mulheres como Ramonita que
decidem viver em função própria. Assim podemos encontrar várias
Inocências ou Ramonitas em diversos lugares do mundo, com
indecisões, angústias, inibidas ou destemidas, sonhadoras rompendo
as fronteiras do tempo e do espaço.

- 68 -
Referências

ABDALA JR., Benjamin. Literatura, história e política. São


Paulo:Ateliê,2007.

BIRMAN, Joel. Mal-estar na atualidade- A psicanálise e as novas


formas de subjetivação. 7 Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2009

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Comparada?Trad. Célia Berretini. São Paulo: Editora Perspectiva,
1995.

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literárias. 8. Ed. São Paulo: T.A. Queiroz, 2000.

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2011.

GARCIA, Canclini, Nestor. Culturas hibridas, poderes oblíquos.


Tradução Heloisa Pezza Cintrão, Ana Regina Lessa; tradução prefacio à
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MACHADO, Madalena. A condição humana nadificada, in SILVA,


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críticas. São Paulo: Arte e Ciência, 2014.

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Grosso: século XX. Cuiabá: Unicen, 2001.

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romances de Ricardo Guilherme Dicke. 2007. Tese (Doutorado em
Letras) – Universidade Federal de Goiás Goiânia, 2007.

TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Inocência. São Paulo. Ática: 1998.

- 69 -
O gênero textual “Contos de Terror”: uma proposta de
análise de contos de autores iniciantes publicados em
blogs10

Denise Menin Tortelli11

Considerações iniciais
Marcuschi (2008, p.154) afirma que “é impossível não se
comunicar verbalmente por algum gênero, assim como é impossível
não se comunicar verbalmente por algum texto”. Dessa forma, a
comunicação verbal só é possível através de algum gênero. Estamos
expostos a uma grande variedade de gêneros textuais que nos
permitem o trato sociointerativo da produção linguística.
Para o autor, quando dominamos um gênero textual, não
dominamos uma forma linguística e sim uma forma de realizar
linguisticamente objetivos específicos em situações sociais

10
Artigo apresentado à disciplina “Teorias dos gêneros discursivos” do Programa de
Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS), sob a
supervisão da professora doutora Francieli Matzembacher Pinton no 2º semestre de
2016 como trabalho final da disciplina.
11
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Letras, Área de concentração em
Estudos Linguísticos, linha de pesquisa Linguagem e Interação, pela Universidade
Federal de Santa Maria (UFSM, RS).

- 70 -
particulares. Os gêneros são um mecanismo de socialização, uma
inserção prática nas atividades comunicativas humanas.
Marcuschi (2008) ressalta que cada gênero sempre é
identificado na relação com seu suporte. O suporte diz respeito ao
modo de manifestação material dos discursos, bem como ao seu modo
de difusão: enunciados orais, no papel, radiofônicos, na tela do
computador, etc. Para Travaglia (2007), o suporte é um critério ou
parâmetro que pode contribuir para a caracterização das categorias de
texto, sobretudo dos gêneros.
Dessa forma, se tomarmos a categoria de texto12 “conto”,
observaremos que é possível encontrar esse gênero tanto em suportes
convencionais13 (livros, livros didáticos, etc.) como em outros meios
que prestam serviços em função da atividade humana, como a
internet. A internet, conforme Marcuschi (2008),é um suporte que
alberga e conduz gêneros dos mais diversos formatos. Ela contém
todos os gêneros possíveis.
Tendo em vista o exposto acima, o objetivo deste capítulo é
fazer um levantamento dos elementos presentes na constituição do
gênero textual “contos de terror” em contos veiculados no suporte
blog, da internet, escritos por autores iniciantes e verificar, de acordo

12
Ao referir-se ao “gênero”, Travaglia (2007) utiliza o termo “Categoria de texto”; já
“Marcuschi” adota o termo “gênero discursivo”. Nesse artigo, o enfoque está nos
conceitos de Travaglia, porém, também será mantida a terminologia empregada por
Marcuschi ao citar sua teoria.
13
Categoria descrita por Marcuschi (2008, p. 178) como “típicos ou característicos,
produzidos para essa finalidade”.

- 71 -
com Travaglia (2007), a estrutura composicional em termos de: a)
conteúdo temático; b) estrutura composicional; c) objetivos e funções
sociocomunicativas; d) características da superfície linguística; e)
condições de produção. Para tanto, além da base de análise centrar-
se nos conceitos de Travaglia (2007), também nos apoiaremos em
reflexões feitas por Marcuschi (2008) acerca da questão dos gêneros e
suportes, Köche (2012) no que se refere às características do gênero
textual “conto” e Todorov (1975-1980) quanto ao “fantástico”. O
objetivo é verificar se esses critérios são recorrentes em todos os
contos e se é possível “padronizar” esse gênero nesse suporte.

Fundamentação teórica
Algumas considerações acerca dos gêneros, tipos e espécies textuais
Conforme Bakhtin (1979) citado por Marcuschi (2008, p. 155)
todas as atividades humanas estão relacionadas ao uso da língua, que
se efetiva através de enunciados (orais e escritos) “concretos e únicos,
que emanam dos integrantes de uma ou de outra esfera da atividade
humana”. Por esse motivo, o gênero não pode estar desvinculado de
sua realidade social e de sua relação com as atividades humanas. Eles
são entidades poderosas que, na produção textual, nos condicionam a
escolhas que não podem ser totalmente livres nem aleatórias, seja sob
o ponto de vista léxico, grau de formalidade ou natureza dos temas.
Conforme Marcuschi (2008), gênero e tipo não formam uma
visão dicotômica, pois eles são aspectos constitutivos do

- 72 -
funcionamento da língua em situações comunicativas diárias. Todos os
textos realizam um gênero e todos os gêneros realizam sequências
tipológicas diversificadas. Os gêneros são partes integrantes da
sociedade e estão à disposição toda a vez que desejamos produzir
alguma ação linguística em uma situação real.
O autor segue a linha bakhtiniana, na qual os gêneros não são
entidades formais, mas sim entidades comunicativas em que
predominam os aspectos relativos a funções, propósitos, ações e
conteúdos. Nesse sentido, pode-se dizer que a tipicidade de um gênero
vem de suas características funcionais e organização retórica. Para o
autor:

As distinções entre um gênero e outro não são


predominantemente linguísticas e sim funcionais.
Já os critérios para distinguir os tipos textuais
seriam linguísticos e estruturais, de modo que os
gêneros são designações sociorretóricas e os tipos
designações teóricas. Temos muito mais
designações para gêneros como manifestações
empíricas do que para tipos (Marcuschi, 2008,
p.159).

Seguindo essas mesmas concepções, Travaglia (2007), no


artigo “A caracterização de categorias de texto: tipos, gênero e
espécies”, também orienta-se nas considerações feitas por Bakhtin no
que concerne à identificação, distinção e caracterização das diferentes
categorias de texto. O artigo tem por objetivo levantar e estruturar
parâmetros e critérios que podem ser usados para caracterizar o

- 73 -
grande número de categorias de texto existentes em uma sociedade e
cultura, sejam elas tipos, gêneros ou espécies. Alguns conceitos
importantes do texto de Travaglia (2007) serão abordados a partir
deste momento.
1º) Categorias de texto: é um conjunto de textos com
características comuns, ou seja, uma classe de textos que têm uma
dada caracterização, constituída por um conjunto de características
comuns em termos de conteúdo, estrutura composicional, objetivos e
funções sociocomunicativas, características da superfície linguística,
condições de produção, etc., mas distintas de outras categorias de
textos, o que permite diferenciá-las. São exemplos de categorias de
textos: descrição, dissertação, narração, injunção, romance, novela,
conto, fábula, parábola, etc.
2º) “Tipelementos”: classes de categorias de texto de uma
dada natureza, a saber: o tipo, o gênero e a espécie.
a) O tipo: instaura um modo de interação, uma
maneira de interlocução. Por exemplo: texto descritivo,
dissertativo, injuntivo, narrativo, texto do mundo comentado e
do mundo narrado, texto lírico, épico/narrativo e dramático,
etc.
b) O gênero: se caracteriza por exercer uma função
sociocomunicativa específica. Estas nem sempre são fáceis de
explicitar. Os gêneros são compostos pelos tipos e pelas
espécies e eventualmente por outros gêneros. Alguns

- 74 -
exemplos de gêneros são: romance, conto, novela, piada,
editorial, artigo científico, conferência, entrevista, ata,
resolução, edital, atestado, certidão, prece, tese, resenha,
mandado, procuração, contrato, tragédia, comédia, farsa,
esquete, etc.
c) A espécie: se define e se caracteriza “apenas”
por aspectos formais de estrutura (inclusive superestrutura) e
da superfície linguística e/ou por aspectos de conteúdo.
Conforme Travaglia (2007), diversas categorias de textos
podem ter características comuns, por exemplo, as categorias de texto
que têm o tipo narrativo como necessariamente presente em sua
composição e como dominante: romance, conto, novela, fábula,
parábola, apólogo, mito, etc. Todos esses gêneros terão em comum
características de narração, porém sempre haverá características que
permitam distingui-los entre si.

Cinco parâmetros (ou critérios) que caracterizam as categorias de


texto, em textos de tipologia narrativa, conforme Travaglia (2007)
Travaglia (2007) ressalta que a caracterização das categorias de
texto é feita por uma conjugação de critérios que pode ocorrer de
diferentes modos e, muitas vezes, a distinção depende de uma
combinação diversa dos mesmos elementos e não da presença de
elementos distintos. Nem sempre uma categoria se caracteriza por

- 75 -
critérios e parâmetros de todos os cinco grupos, mas de apenas alguns
deles. Na tipologia “narrativa”, definiremos os seguintes critérios:
a) O conteúdo temático: refere-se ao que pode ser dito
em uma dada categoria de texto, à natureza do que se espera
encontrar dito em dado tipo, gênero ou espécie de texto (ligado a um
tipo de informação).
Para Travaglia (2007, p.43) o tipo narrativo tem como conteúdo
temático os acontecimentos ou fatos organizados em episódios
(indicação e detalhamento – geralmente por meio de descrição – de
lugar, tempo, participantes /actantes /personagens + acontecimento:
ações, fatos ou fenômenos que ocorrem).
No caso da espécie história da narração, os episódios
aparecem encadeados entre si caminhando para um desfecho ou
resolução e um resultado. Por exemplo, os gêneros romance e conto
apresentam várias espécies que se definem e caracterizam tendo em
vista o conteúdo temático (históricos, psicológicos, regionalistas,
indianistas, fantásticos, de ficção científica, policiais, eróticos, etc). No
caso de nossa pesquisa, a espécie “contos fantásticos14”, uma das
características quanto ao conteúdo temático é, de acordo com
Travaglia (2007, p.46), o aparecimento de fatos mágicos ou estranhos
sem muita explicação dentro do senso comum e/ou científico.

14
Os “contos de terror” se enquadram na espécie “contos fantásticos” por
apresentarem características comuns a esses tipos de contos.

- 76 -
Conforme Köche (2012, p.100), os temas mais comuns
abordados nos contos fantásticos são metamorfoses, feitiçarias,
lobisomens, fantasmas, vampiros, o invisível, o sobrenatural, o
espectro animal e a morte. Esta última pode ser uma temática
bastante envolvente, uma vez que representa uma certeza e, ao
mesmo tempo, o desconhecido.
b) A estrutura composicional: conforme Travaglia (2007,
p.48), vários elementos podem ser considerados quando pensamos
em estrutura composicional. O primeiro critério a lembrar é a
superestrutura (fundamental na caracterização das categorias de
texto).
Os textos que têm o tipo narrativo e são da espécie história
(romance, conto, novela, etc.) encaixam-se na superestrutura geral,
proposta por Travaglia (1991) e apresentada no esquema abaixo:

- 77 -
Para o autor (2007, p.48), a complicação e a resolução são as
únicas partes ou categorias obrigatórias da superestrutura da
narrativa história. São recursivas, podendo aparecer várias vezes: a) a
introdução, a complicação, o clímax os comentários, os resultados,
quando há várias linhas ou cadeias de episódios; e b) a orientação, que
pode aparecer para cada novo episódio ou cadeia de episódios.
O autor citado afirma, ainda, que todas as partes ou categorias
da superestrutura que são opcionais podem ou não se realizar,
conforme o gênero e quando isto é sistemático faz parte da
caracterização do mesmo. Por exemplo: o gênero “piada” geralmente
só tem uma pequena orientação quando necessária para tipificar
minimamente os personagens e a situação, buscando-se estabelecer o
humor; já no gênero “romance”, que será construído de um grande

- 78 -
número de episódios e com diferentes núcleos de personagens, a
orientação vai aparecer recursivamente em muitos momentos – vários
clímax e resoluções intermediários ou secundários podem acontecer,
visando manter o interesse pela narrativa e estabelecer condições
para um acontecimento posterior.
A estrutura composicional apresentada por Travaglia (2007)
para os textos de tipologia narrativa é composta por:
1º) Personagens: algumas categorias de texto incluem outros
aspectos nesta superestrutura. Assim, alguns gêneros e espécies que
são “narrativas história” incluem personagens típicos ou prototípicos,
como o caso dos “contos de fadas”: reis, rainhas, príncipes, princesas,
fadas, bruxas, objetos e animais mágicos ou fantásticos.
2º) Sequências textuais: ainda conforme o autor, outro
elemento importante para a caracterização dos gêneros, na dimensão
da estrutura composicional, é a sua composição por tipos e espécies.
As “narrativas história” podem ser compostas pelos tipos descritivo,
dissertativo, injuntivo e narrativo, em conjugação. O narrativo é o
dominante e os outros aparecem subordinados a ele.Em
conformidade com o exposto acima, Köche (2012, p. 84) ressalta que,
no gênero textual “conto”, a sequência de base é narrativa, pois o
objetivo do texto é contar o que aconteceu. A sequência descritiva,
quando empregada, está a serviço da narração, uma vez que verbaliza
um processo de observação sobre o objeto descrito. Já a sequência
dissertativa, que busca construir uma opinião, quase não se faz

- 79 -
presente. O produtor vale-se dessa tipologia apenas quando o conto
se aproxima da fábula ou do apólogo.
3º) Dimensão: outro aspecto de estrutura composicional que
geralmente é utilizado na caracterização dos gêneros é a dimensão: o
tamanho médio dos textos daquele gênero. Travaglia (2007, p.57)
afirma que, “embora nunca se possa estabelecer e nunca se estabeleça
um tamanho exato para um gênero há um padrão esperado de
dimensão”. O autor lembra que alguns gêneros podem apresentar
dimensão muito variável, como os “contos de fadas”, que não têm a
dimensão como um critério válido em sua caracterização, pois há
contos de fadas curtos e outros bastante longos.
4º) Linguagem: igualmente importante, a linguagem é um
outro critério da estrutura composicional de um gênero. Grande parte
dos gêneros é composta exclusivamente pela língua, como é o caso
dos contos, do romance. Porém, de acordo com o autor, alguns
gêneros, como as histórias em quadrinhos e as tiras, são compostas
pela linguagem verbal (língua), geralmente dialogada, e pelas imagens
em desenhos, que representam outra forma de linguagem. Alguns
gêneros lançam mão de outros recursos, como cores (para exprimir
atmosferas, sentimentos, estados de espírito), gestos, expressões
fisionômicas, música, etc.

- 80 -
Objetivos e função sociocomunicativa:
Para Travaglia (2007, p.60), embora os gêneros sejam definidos
por sua função sociocomunicativa, os tipos também apresentam
objetivos. “Na narração, o objetivo é contar, dizer os fatos, os
acontecimentos, entendidos estes como os episódios, a ação em sua
ocorrência”.

Características da superfície linguística do texto:


Conforme Travaglia (2007, p. 62), “as características da
superfície linguística do texto, a que Bakhtin (1992) chamou de estilo,
são elementos composicionais de formulação da sequência linguística,
do que muitos chamam de superfície linguística”. Essas características
podem referir-se a qualquer plano da língua (fonológico, morfológico,
sintático, semântico ou pragmático) ou nível (lexical, frasal, textual).
Neste capítulo, caberá analisar os tempos verbais15 e sua função.
Ao referir-se ao uso dos verbos e situações por eles indicadas,
o autor (2007) ressalta que a escolha das formas e categorias verbais
é altamente regulada pelos quatro tipos de texto (descrição,
dissertação, injunção e narração), havendo uma correlação clara entre
propriedades e marcas linguísticas na formulação de cada tipo de
texto. Dessa forma, em textos do mundo narrado, de acordo com o

15
Outros fatores são propostos por Travaglia (2007) quanto às características da
estrutura linguísticas, como os conectores, marcadores temporais, sequenciadores
ou encadeadores temporais, etc. Porém, não serão analisados em razão da extensão
do artigo.

- 81 -
autor, a perspectiva é de não comprometimento do
locutor/enunciador com o que diz. Por esse motivo, é comum o uso
dos tempos: pretérito imperfeito, perfeito e mais-que-perfeito
(simples e composto) do indicativo, futuro do pretérito (simples e
composto).
Outras características quanto ao emprego dos verbos na
tipologia narrativa são: o prevalecimento de verbos dinâmicos (ações,
fatos, fenômenos, transformativos); aparecimento de verbos de
contar e assistir; e narrações caracterizadas pelo uso do “aspecto
perfectivo” para indicar pontualidade das ações.

Condições de produção
Nesse parâmetro, Travaglia (2007, p.71) inclui aspectos como:
“quem produz, para quem, quando, onde (geralmente um quadro
institucional, o suporte, o serviço, etc.)”

O critério de ‘quem produz’ inclui tanto o indivíduo


(geralmente ocupando um lugar social) como a
comunidade discursiva (SWALES, 1990) ou esfera
de ação social (BAKHTIN, 1992), ou formações
sociais (BRONCKART, 2003), ou domínio discursivo
(MARCUSCHI, 2002). A comunidade discursiva é
importante na caracterização sobretudo dos
gêneros que, como vimos, são os que realmente
circulam e funcionam em dada sociedade e cultura.
(TRAVAGLIA, 2007, p. 71-72)

- 82 -
O autor (2007, p. 74) salienta ainda que, dentre as condições
de produção, parece interessante observar “aquilo que se tem
denominado nos estudo sobre gênero de suporte, definido de modo
geral como o espaço-objeto que porta o texto, em que o texto ganha
materialidade” e que alguns gêneros só existem em determinados
suporte, não em outros. A questão do suporte será tratada na próxima
seção.

A questão do suporte dos gêneros textuais: gêneros da mídia virtual


De acordo com Maingueneau (2001) citado por Marcuschi
(2008), é necessário reservar um lugar importante ao modo de
manifestação material dos discursos, ao seu suporte, bem como ao seu
modo de difusão: enunciados orais, no papel, radiofônicos, na tela do
computador, etc. Para o autor citado, “o médium não é um simples
‘meio’, um instrumento para transportar uma mensagem estável: uma
mudança importante do médium modifica o conjunto de gênero de
discurso16” (2001, p. 71-72).
O suporte não é neutro e o gênero não fica indiferente a ele.
Dessa forma, o conteúdo não muda, mas o gênero sempre é
identificado na relação com o suporte.
Marcuschi (2008, p. 174) define o suporte como “um locus
físico ou virtual com formato específico que serve de base ou ambiente

16
Não é o objetivo do artigo aprofundar essa questão.

- 83 -
de fixação do gênero materializado como texto”. Entende-se assim o
suporte de um gênero como uma “superfície física em formato
específico que suporta, fixa e mostra um texto”. Nesse quesito, o
suporte deve ser algo real, e pode ter realidade virtual, como no caso
do suporte representado pela internet.
No caso de nosso objeto de estudo, o gênero textual “conto”,
observamos que é possível encontrar esse gênero tanto em suportes
convencionais17 (livros, livros didáticos, etc.) como em outros meios
que prestam serviços em função da atividade humana, como a
internet.
Marcuschi (2008, p. 199) coloca que a internet transmuta de
maneira bastante radical gêneros existentes e desenvolve alguns
realmente novos. Porém, não há como desvincular esses gêneros da
escrita, já que na internet a escrita continua essencial. Assim, a
comunicação mediada por computador abrange todos os formatos de
comunicação e os respectivos gêneros que emergem nesse contexto.
Entre os gêneros mais conhecidos, o autor cita os weblogs (blog;
diários virtuais) como um dos mais praticados.

O gênero textual “blog”


Marcuschi (2008, p. 202) conceitua blog como “diários pessoais
na rede; uma escrita autobiográfica com observações diárias ou não,

17
Categoria descrita por Marcuschi (2008, p. 178) como “típicos ou característicos,
produzidos para essa finalidade”.

- 84 -
agendas, anotações, em geral muito praticados pelos adolescentes na
forma de diários participativos”. Esse gênero18, assim como e-mail,
chats, busca uma interação entre indivíduos reais, embora suas
relações sejam no geral virtuais. É um gênero que pode ser escrito em
duplas ou em “n-tuplos” de participantes que colaboram para
construir um texto sempre em evolução.
Barbosa e Serrano (2005) conceituam blog como um registro
eletrônico, que apresenta “um caráter dinâmico e de interação
possibilitados pela facilidade de acesso e de atualização”. Para as
autoras, o que distingue o blog de um site convencional é a facilidade
com que se podem fazer registros para a sua atualização. Isso o torna
muito mais dinâmico do que os sites, pois sua manutenção é mais
simples e apoiada pela organização automática das mensagens, ou
posts, pelo sistema, permitindo que novos textos sejam inseridos sem
a dificuldade de atualização de um site tradicional. Seus registros
aparecem em ordem cronológica inversa (o último lançamento
aparece sempre em primeiro lugar) e utiliza programas simples que
praticamente exigem apenas conhecimentos elementares de
informática por parte do usuário.

18
Marcuschi (2008) considera blog um gênero emergente na mídia virtual. Porém,
há trabalhos que contestam essa classificação, discutindo se estamos diante de um
gênero ou de uma plataforma que manifesta vários gêneros. Essa questão não será
aprofundada nesse artigo. Para maiores informações ver o trabalho de ANGELI, G. H.
“BLOG: um estudo sob a luz do conceito de gêneros textuais” (2011), endereço
eletrônico disponível nas referências bibliográficas.

- 85 -
Conforme Angeli (2011, p. 26), para compreender melhor o que
é um blog e o que significa sua presença na internet, é necessário
também conhecer seus principais elementos: o “blogueiro”, os posts e
os comentários.
Os “blogueiros” são os responsáveis pela criação, manutenção,
caracterização e atualização dos registros. Escrevem sobre os assuntos
que mais lhes agradam, podendo um blog versar sobre praticamente
qualquer coisa, dependendo unicamente do interesse do seu
responsável. Um blog pode ter um ou vários blogueiros, conhecidos
ou desconhecidos, conforme a sua função. São chamados posts os
registros publicados pelos blogueiros. Podem ser constituídos de
apenas imagens, textos e imagens, apenas textos, vídeos, áudios, etc.
Já os comentários são um espaço importante para a constituição dos
blogs, porque possibilitam a dinamicidade de interação, evitando que
se transformem em uma publicação estática de textos.
Quanto ao público-alvo que tem acesso aos blogs, conforme os
resultados de pesquisas apresentados por Angeli (2011, p. 27),
contata-se que, nos quesitos gênero e faixa etária, 59% são mulheres
com idades entre 18 e 34 anos, correspondendo a um público jovem e
adulto. Quanto à escolaridade, verifica-se uma pequena
predominância de visitantes de nível superior (55%). Por último, o
tema que mais gera interesse e acessos é entretenimento (68%),
seguido de tecnologia (17%), esportes (11%) e beleza e moda (1,5%),

- 86 -
já os blogs relacionados à educação têm uma audiência de 1%,
ocupando o quinto lugar na lista de interesses.

O “fantástico” nas narrativas


Os contos de terror pertencem ao “fantástico”. De acordo com
Köche (2012, p. 97), o conto fantástico é um gênero textual de cunho
literário que mostra uma realidade não lógica dentre de uma lógica.
Liga-se à ficção e à realidade, pois o fantástico e o real são
indissociáveis. Todorov (1975, p. 30-66) citado por Köche (2012)
aponta três condições necessárias para a existência do fantástico. Elas
se referem à história, à personagem e à postura do leitor para com a
narrativa.
Para Todorov (1980), a história deve fazer com que o leitor
encare o mundo das personagens como real e, perante os fatos
narrados, hesite entre uma explicação natural e sobrenatural. Nas
palavras do autor (1980, p.157), “o ‘fantástico’ é uma hesitação
prolongada entre uma explicação natural e uma outra, sobrenatural,
que concerne aos mesmos eventos. Nada além de um jogo em torno
desse limite, natural-sobrenatural”.
Dessa forma, o sujeito que percebe o fato deve optar por uma
das duas soluções possíveis: ou se trata de uma ilusão dos sentidos, ou
então ele realmente ocorreu. Conforme o autor, é a hesitação que dá
vida ao conto, uma vez que a fé absoluta, bem como a incredulidade
total, nos levam para fora do fantástico.

- 87 -
A segunda condição para a existência do fantástico, conforme
Todorov, refere-se à personagem: a hesitação vivenciada pelo leitor
pode ser experimentada também pela personagem, tornando-se um
dos temas da obra. Tanto o leitor quanto a personagem devem decidir
se o que percebem depende ou não da realidade, tal qual existe na
opinião comum. Essa hesitação, característica do fantástico, situa-se
no presente, ou seja, no momento em que acontecem os fatos. Nas
palavras do autor (1980, p.162), “Se nos limitarmos às explicações
naturais, é preciso aceitar o caso, as coincidências na organização da
vida; se queremos que tudo seja determinado, devemos também
admitir as causas sobrenaturais”.
A terceira condição faz alusão à postura do leitor para com a
narrativa. Para Todorov, citado por Köche (2012, p.98) “O leitor não
pode aceitar a interpretação alegórica nem a interpretação poética do
texto; deve interpretar literalmente o discurso figurado, pois é a
adoção dessa postura que origina frequentemente o sobrenatural”.
Assim, a alegoria19 implica a existência de, no mínimo, dois sentidos
para as mesmas palavras: o sentido literal e o figurado. Conforme
Todorov, esse duplo sentido aparece na obra explicitamente e não
depende da interpretação do leitor; já a poesia refere-se aos textos
que apresentam rimas, ritmo, figuras retóricas, etc.

19
O conceito de alegoria aqui é entendido como “uma representação figurativa que
transmite um significado outro que o da simples adição ao literal. É geralmente
tratada como uma figura da retórica”. Fonte:
http://www.dicionarioinformal.com.br/alegoria

- 88 -
Ainda para o autor já citado (1975, apud Köche, 2012, p.98), a
primeira e a terceira condições constituem verdadeiramente o
fantástico; e a segunda condição pode ou não se cumprir.
Outra característica dos contos fantásticos é apresentar
narrador em primeira pessoa. Para Todorov,

[...] isso torna a prova da verdade frágil, pois um


narrador em terceira pessoa nunca é questionado
a respeito do que diz, mas a personagem sim; ela
pode mentir. Logo, um narrador-personagem
possui o crédito da verdade e da dúvida, o que
contribui para a hesitação fantástica. O pronome
eu pertence a todos, por isso um narrador em
primeira pessoa possibilita mais facilmente a
identificação do leitor com a personagem.
(TODOROV, 1975, apud Köche, 2012, p.99)

No entanto, isso não é regra, e há autores que empregam,


nesse gênero, a terceira pessoa do discurso para narrar os fatos.
Quanto à composição desses contos, Todorov afirma que, para que
ocorra a identificação leitor-personagem, a narrativa é construída de
tal forma que deve ser lida do início ao fim, sem interrupções. Isso não
é possível em releituras do gênero fantástico, pois o efeito não mais
existe.
Quanto aos tempos verbais, Todorov (1975, p.37) afirma que
um fato fantástico, para integrar o leitor ao mundo das personagens,
deve ser narrado de forma a causar uma percepção ambígua dos

- 89 -
acontecimentos. Esse recurso é possível com o uso do pretérito
imperfeito do indicativo e da modalização.
O pretérito imperfeito do indicativo aponta um acontecimento
do passado que pode ter continuidade no presente. Porém, para
Todorov (1980), é pouco provável que isso ocorra. Já a modalização
consiste no emprego de certos elementos linguísticos que alteram a
relação entre o enunciador e o enunciado, causando a incerteza do
sujeito quanto à veracidade do que afirma, mantendo o leitor dividido
entre o mundo real e o sobrenatural. Entre os modalizadores,
destacam-se os advérbios (talvez, acaso, etc.), o modo verbal
subjuntivo, o verbo auxiliar modal e a oração principal cujo verbo
expressa modalidade. (Köche, 2012, p.100).
Conforme Köche (2012, p.100), o conto fantástico pertence ao
gênero do narrar, pois recria o real, constituindo um gênero da cultura
literária ficcional. Nele predomina a sequência tipológica narrativa de
curta duração, com um único episódio e número limitado de
personagens. Normalmente segue a estrutura dos demais contos:
apresentação, complicação, clímax e desfecho.
a) Apresentação: expõe um estado de equilíbrio.
Situa o leitor diante dos fatos narrados e mostra as
personagens e sua caracterização, bem como o espaço e o
tempo;

- 90 -
b) Complicação: inicia quando ocorre o
rompimento do equilíbrio inicial devido a um conflito que
conduz ao clímax da narrativa.
c) Clímax: é o ponto máximo de tensão da
narrativa, que leva ao desfecho;
d) Desfecho: acontece no momento em que se
restabelece o equilíbrio. Geralmente há uma solução para as
situações conflituosas, porém, em alguns contos, o final fica em
aberto para que o leitor imagine qual será o desfecho.

Metodologia
Para realizar a análise a seguir, foram selecionados, de blogs da
internet, três contos de terror, entitulados “O jardim”, “A boneca” e
“As flores da morte”. Os contos foram escolhidos por serem
publicados em blogs de livre divulgação e por serem escritos por
escritores iniciantes. Para a análise, os contos receberão,
respectivamente, a nomenclatura CONTO 1, CONTO 2 e CONTO3.
Escolhidos os contos, buscou-se analisar os seguintes critérios
estipulados por Travaglia (2007) quanto à estrutura composicional:
a) Conteúdo temático;
b) Estrutura composicional: presença (ou ausência)
dos elementos constituintes da “superestrutura” proposta por
Travaglia (2007) para os textos de tipologia narrativa,
personagens, sequências textuais, dimensão e linguagem;

- 91 -
c) Função sociocomunicativa;
d) Superfície linguística: emprego dos tempos
verbais;
e) Condições de produção.

Desses critérios analisados, foram elaboradas tabelas para


localizar melhor os resultados obtidos e fazer uma comparação da
recorrência dos mesmos nos contos, conforme o exposto abaixo:

TABELA 1: Conteúdo temático


TABELA 1 – CONTEÚDO TEMÁTICO
Questões Conto 1 Conto 2 Conto 3

1 – Há aparecimento de fatos não sim sim


mágicos ou estranhos, sem muita
explicação dentro do senso comum
e/ou científico?
2 – Qual é a temática do conto? Vingança Sobrenatural Sobrenatural
e a morte e a morte e a morte

TABELA 2 – Estrutura composicional


TABELA 2 – ESTRUTURA COMPOSICIONAL
Critérios Conto 1 Conto 2 Conto 3
1 – O conto apresenta Orientação Orientação Orientação
quais critérios da Complicação Complicação Complicação
“superestrutura” Clímax Clímax (mais de Resolução
proposta por Travaglia Resolução um) Desfecho
(2007)? Resultados Resolução
Desfecho Resultados
Desfecho
2 – Personagens Não há Uma boneca Um espírito
típicos ou prototípicos com poderes
sobrenaturais
3 – Sequências Narrativa Narrativa Narrativa
textuais Descritiva Descritiva Descritiva

- 92 -
Dialogal Dialogal
4 - Dimensão Texto curto Texto curto Texto muito
curto
5 - Linguagem Escrita narrada Escrita narrada e Escrita narrada
e dialogada dialogada

TABELA 3 – Função sociocomunicativa


TABELA 3 – FUNÇÃO SOCICOMUNICATIVA
Conto 1 Conto 2 Conto 3
1 – Qual é o nome Contos de Clube dos Sobrenatural.org
do blog? mistério medos
2 – Quem são os Flávia e Não há Mateus Fornazari
organizadores/ Ruth, informações. Responsável pelos sites
criadores do blog? graduandas Sobrenatural.Org,
do curso de LojaSobrenatural.com.br
Licenciatura e Documentarios.Org.
da UFSC
É licenciado e bacharel
em Ciências Biológicas e
Técnico em
Processamento de Dados.
2 – Como os Não há Não há “um espaço aberto para
organizadores do informações informações todos os visitantes
blog definem a publicarem seus
função comentários sobre
sociocomunicativa determinado conteúdo
de seu conteúdo? em todas as seções”.

TABELA 4 - Superfície linguística: emprego dos tempos verbais


TABELA 4 – SUPERFÍCIE LINGUÍSTICA
Questão Conto 1 Conto 2 Conto 3
1 – Qual tempo Pretérito Pretérito Pretérito
verbal prevalece na imperfeito do imperfeito do imperfeito do
orientação / indicativo indicativo indicativo
descrições
2 – Qual tempo Pretérito perfeito Pretérito Presente e
verbal prevalece no do indicativo perfeito do pretérito
desenrolar das ações indicativo perfeito do
indicativo

- 93 -
TABELA 5 - Condições de produção.
TABELA 5 – CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO
Conto 1 Conto 2 Conto 3
Quem produz Larissa Spézea ToyFreddy606 Rise above

Para quem Leitores do blog Leitores do blog Leitores do blog


produz

Quando produz 25 de nov. 2010 Não há informações 13 de abr. 2010

Onde produz Blog em mídia Blog em mídia Blog em mídia


(suporte) virtual virtual virtual

Discussão e resultados
Após uma análise na qual se buscou observar as convergências
e divergências estilísticas e composicionais dos contos acima
nomeados, tendo os critérios de Travaglia (2007) como base, chegou-
se às seguintes conclusões:
1º Quanto ao conteúdo temático, apenas um conto não
apresenta a presença de elementos mágicos ou estranhos, sem muita
explicação dentro do senso comum e/ou científico. Nesse conto, as
personagens são pessoas comuns, e o assassino (personagem
principal) é movido a agir pelo sentimento de vingança, e não por
causas sobrenaturais;
2º Quanto à estrutura composicional, observou-se que todos
os contos apresentam a complicação e a resolução, que são as únicas
partes da “superestrutura” obrigatórias na narrativa história. Outras
partes aparecem de forma recorrente. Verificou-se também a

- 94 -
presença de personagens típicos ou prototípicos em dois contos, e a
prevalência da sequência narrativa sobre a descritiva e a dialogal. A
sequência descritiva, quando aparece, está a serviço da narrativa, mais
especificamente na orientação, para caracterizar o espaço, e também
na caracterização das personagens. O gênero conto é um gênero de
dimensão relativamente curta, portanto todos os contos são de
dimensão apropriada. E a linguagem de todos os contos é a escrita
narrada, com pequenos diálogos entre as narrações;
3º Os blogs consultados não apresentam informações a
respeito da função sociocomunicativa de seus conteúdos. Podemos
deduzir que o objetivo de todos os blogs seja o entretenimento para
leitores que se interessam pelo gênero, e que esses blogs atuam como
facilitadores a todos os usuários na publicação ou acesso aos
conteúdos, uma vez que apenas um dispõe de um conteúdo especial
para assinantes;
4º A superfície linguística dos contos analisados demonstra um
padrão, com a utilização de verbos no pretérito imperfeito do
indicativo para descrições e de pretérito perfeito do indicativo para
ações e desenvolvimento da trama. Apenas um conto apresentou uma
mistura de tempos presente e pretéritos do indicativo, revelando
desconhecimento das características do gênero. No entanto, é
possível sentir um clima de suspense que envolve o leitor.
5º Quanto às condições de produção, percebemos que,
dependendo do blog, algumas informações são disponibilizadas aos

- 95 -
usuários e outras não. Quem produz não necessariamente precisa
identificar-se ou usar seu nome real; já para quem e onde são
produzidos os contos são critérios-padrão que concernem ao gênero
analisado.
Por fim, constatou-se que os textos analisados, veiculados no
suporte blog na mídia virtual, não seguem um padrão específico,
apresentando pontos em comum e pontos divergentes também. Isso
se deve ao fato de, segundo Coutinho e Souza (2001) apud Köche,
2012 p. 83) o conto ser flexível, com infinitas possibilidades, não
obedecendo a regras fixas; é um gênero que se liga a cenas e episódios
de complexidade reduzida, ações isoladas, cortes de vida menores,
estudo de caracteres ou situações, acontecimentos cotidianos e
banais, mas representativos de ações ou personagens, conversações e
fantasias. Essa diversidade de possibilidades é abordada de forma
estética.

Considerações finais
Ao final desse trabalho, podemos concluir que não é possível
“padronizar” o gênero textual “Contos de terror” no suporte blog da
internet. Sendo o conto um gênero flexível, que não obedece à regras
fixas de produção, verificou-se que os escritores iniciantes escrevem
de forma livre e sem preocupação com a estrutura composicional ou
estilística nos textos. Apenas preocupam-se em seguir a temática do
gênero.

- 96 -
Também constatou-se que os blogs analisados apresentam
semelhanças e diferenças entre si quanto à disposição dos conteúdos
na página, à linguagem, ao perfil e papel dos usuários, à informações
sobre os blogueiros (responsáveis pelo blog) e à organização da página
de forma geral. Um ponto em comum é a facilidade na postagem e
acesso aos conteúdos.
Por fim, ficou claro que os quesitos conteúdo temático, função
e finalidade são praticamente indissociáveis nesse gênero textual, pois
estão vinculados ao interesse do blogueiro e ao objetivo do blog,
sendo definidos e selecionados em função desses. São textos escritos
predominantemente por e para uma faixa-etária jovem e interessada
em entretenimento, com o objetivo de narrar histórias ficcionais sem
preocupação em seguir fórmulas ou critérios estéticos e estilísticos.

- 97 -
Referências

ANGELI, G. H. BLOG: um estudo sob a luz do conceito de gêneros


textuais. Trabalho de conclusão de curso (Letras). Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011.

BARBOSA, C. A. P; SERRANO, C. A. O blog como ferramenta para


construção do conhecimento e aprendizagem colaborativa. Ceará,
UFC, 2005. Disponível em: <
http://www.virtual.ufc.br/cursouca/modulo_web2/parada01_cid2/p
ara_saber_mais/011tcc3.pdf > Acesso em 08 de dez. 2016.

KÖCHE, V. S. Estudo e produção de textos: gêneros textuais do relatar,


narrar e descrever. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de gêneros e


compreensão. São Paulo: parábola editorial, 2008.

SOARES, A. Gêneros literários. São Paulo: Ática, 1997

RISE ABOVE. As flores da morte. Sobrenatural.org. Disponível em:


<http://www.sobrenatural.org/conto/detalhar/11732/10_contos_de
_terror/> Acesso em 12 de nov. 2016.

SPÉZEA, L. O jardim. Contos de mistério. Disponível em:


<http://lm702.blogspot.com.br/2010/11/o-jardim.html> Acesso em
12 de nov. 2016.

TOYFREDDY606. A boneca. Clube dos medos. Disponível em:


<http://clubedosmedos.blogspot.com.br/2015/08/historias-de-
terror-boneca.html> Acesso em 12 de nov. 2016.

TRAVAGLIA, L. C. A caracterização de categorias de texto: tipos,


gêneros e espécies. Alfa, São Paulo, 51 (1): 39-79, 2007.

______ [2003]. Tipelementos e a construção de uma teoria tipológica


geral de textos. In FÁVERO, Leonor Lopes; BASTOS, Neusa M. de O.

- 98 -
Barbosa e MARQUESI, Sueli Cristina (org.). Língua Portuguesa
pesquisa e ensino – Vol. II. São Paulo: EDUC/FAPESP, 2007b. p. 97-
117.
TODOROV, T. Os gêneros do discurso. São Paulo: Martins Fontes,
1980.

ANEXOS
CONTO 1: O JARDIM
09 de Junho de 1963. Nesse dia John jurou se vingar de sua esposa,
Sophie Wilkinson. O motivo da vingança? Traição. Ele havia descoberto, mas
ela não sabia. Então, ele levou sua esposa para passar um final de semana na
casa de seu avô, já falecido, George Wilkinson. John Wilkinson era um
homem calmo, mas jurou matar sua mulher, pois não aceitava a traição. Ao
chegarem a casa, que ficava no Mississipi e se localizava em um lugar mais
afastado de frente para um lago, ele mostrou a casa para sua mulher. A casa
era linda por fora, mas assustadora por dentro, pois foi ali mesmo na sala,
que George Wilkinson foi morto pelo próprio neto, Orlando irmão de John.
Orlando após matar o avô com dois tiros, um no peito e outro no abdômen,
se matou com um tiro na cabeça.
A casa era fria, escura, assustadora e silenciosa, as vezes dava medo
e outrora era perturbador. Sophie e John deixaram as malas em um canto do
quarto e caíram em um sono profundo. Logo pela manhã, eles acordaram
cedo, tomaram café e foram ao jardim, que ficava atrás da casa. Sophie
admirava o jardim, um belo jardim cheio de rosas.
Enquanto ela olhava para o jardim, John decidiu colocar seu plano de
vingança em ação. Ele pegou uma pá e aproximou-se de Sophie, chamando-
a. Ela estava de costas para ele, virou-se e ele lhe deu um tapa na cara com
as costas da mão, fazendo-a cair. Ao ver o marido com a pá na mão ela ficou
desesperada, já imaginando o motivo da reação dele. Ele deu um passo em
sua direção e o coração dela começou a bater mais forte. A cada passo dele
o coração dela batia mais rápido e mais forte. Quando ele finalmente chegou
ao lado de Sophie, ele colocou a pá no pescoço dela e falou :
- Adeus Sophie!

- 99 -
O olhar dela era de desespero. Com um golpe rápido e certeiro com
a pá, ele arrancou-lhe a cabeça que saiu rolando e foi parar no meio do
jardim. Depois de matar a própria esposa, John jogou o corpo dela no lago,
pegou uma pedra e jogou em cima do corpo de Sophie. Após o
acontecimento, John Wilkinson voltou a sua vida normal, mas com uma
diferença: vivendo na casa de seu avô.
Autora : Larissa Spézia
CONTO 2: A BONECA
No dia de seu aniversário Lúcia foi acordada por sua madrasta lhe
trazendo um grande pacote recebido pelos correios e endereçado a ela.
Animada com o embrulho a garota rapidamente desembrulhou o
pacote e ficou horrorizada com o seu conteúdo, pois dentro da caixa havia a
boneca mais repugnante que ela já havia visto.
A boneca era velha, completamente careca, com a pele rachada e
coberta de poeira. Mas, o pior de tudo era a boca do brinquedo que
apresentava dentes longos e afiados como se fossem as presas de um animal
Com um calafrio percorrendo seu corpo a criança atirou a boneca no
chão, em direção a um canto. No mesmo instante sua madrasta lhe chamou
a atenção, dizendo que alguém deveria ter tido trabalho para lhe enviar esta
boneca antiga, e por isto, ela deveria se sentir agradecida.
Lúcia tentou protestar , mas sua madrasta não quis ouvi-la e a forçou
a continuar com a boneca se recusando a jogar o brinquedo fora. Para não
contrariar sua madrasta, a criança enfiou a boneca em um armário embaixo
da escada, bem atrás de uma pilha de sapatos onde ela não precisaria olhar
para aquela coisa feia.
Passada algumas noites, Lúcia estava deitada na cama quando ouviu
um barulho: era um som estranho que ela não conseguia identificar... O
barulho cessou e depois continuou por alguns minutos. Agora ela conseguia
perceber que o som era como se algo caminhasse com pequenos passos.
Lúcia tremia em sua cama, incapaz de se mover. Ela dormia sempre
com a porta aberta para aproveitar a luz que vinha do corredor, pois morria

- 100 -
de medo do escuro. Logo pareceu que ouvira uma voz surrando para ela lá
do corredor:
- Lúcia, eu estou no quinto degrau.
A criança, completamente apavorada, cobriu sua cabeça com os
cobertores e ficou tremendo de medo, porém os sons pararam subitamente.
Naquela noite Lúcia não conseguiu mais dormir e ficou embaixo das
cobertas até o dia amanhecer, quando sua madrasta entrou no quarto para
acordá-la.
Lúcia contou o ocorrido para sua madrasta, que lhe explicou que
tudo isso deveria ter sido um pesadelo. Mesmo assim a criança implorou a
sua madrasta para que a deixasse jogar a velha boneca fora, mas ela insistiu
que o brinquedo tinha sido um presente e ela deveria guardá-la. A madrasta
dela ainda foi até o armário e lhe mostrou que o objeto estava no mesmo
lugar de sempre.

Contrariada,Lúcia passou a dizer a si mesma que tudo não tinha


passado de um sonho.
Naquela noite, Lúcia tentou ficar acordada o maior tempo possível ,
mas logo foi vencida pelo cansaço. Depois de um tempo foi acordada por
uma voz abafada que dizia:
- Luuciaaaa eu estou no décimo degrau...
Novamente a criança colocou o cobertor na cabeça e passou a chorar
de medo, não dormindo mais naquela noite. Como da outra vez, o som da
voz acabou e ela não ouviu mais nada até o amanhecer.
Na escola Lúcia contou aos seus amigos sobre a boneca, porém todos
riram e fizeram piadas sobre ela. Lúcia então calculou que se a boneca subia
cinco degraus por noite na próxima chegaria até o alto da escada e ficaria de
frente para o seu quarto.
Apavorada, Lúcia decidiu dormir com a porta de seu quarto fechada
e com a luz acesa. Quando a sua madrasta entrou no quarto para lhe dar boa
noite perguntou por que ela fechara a porta. Lúcia então perguntou se
poderia deixar a luz de seu quarto acesa, em vez de deixar a porta aberta,

- 101 -
para aproveitar a luz do corredor. Mas, sua madrasta lhe disse que a luz do
quarto era muito forte e isso não lhe deixaria dormir.
Dessa forma, Lúcia concordou em dormir com as luzes apagadas e
com a porta fechada. Para não ficar completamente escuro ela abriu as
cortinas para tentar clarear um pouco seu quarto.
Assim que ela começou a cochilar passou a ouvir um barulho... e
então a voz veio, mais clara e alta do que das outras vezes:
- Lúciaaa eu estou no topo da escada....
Na escuridão de seu quarto ela viu a porta abrir lentamente...
Na manhã seguinte o corpo da garotinha foi encontrado na parte
debaixo das escadas. Eles imaginaram que ela teria ido até o banheiro
durante a noite, tropeçado e caído pela escada quebrando seu pescoço.
Ao lado da criança fora encontrada uma velha boneca, sua madrasta
então, pediu que ela fosse enterrada com o brinquedo.
- Ela amava tanto esta boneca... Agora elas podem ficar juntas para
sempre – disse a madrasta.
Autor: ToyFreddy606

CONTO 3: AS FLORES DA MORTE


Conta-se que uma moça estava muito doente e teve que ser
internada em um hospital. Desenganada pelos médicos, a família não queria
que a moça soubesse que iria morrer. Todos seus amigos já sabiam. Menos
ela. E para todo mundo que ela perguntava se ia morrer, a afirmação era
negada.
Depois de muito receber visitas, ela pediu durante uma oração que
lhe enviassem flores. Queria rosas brancas se fosse voltar para casa, rosas
amarelas se fosse ficar mais um tempo no hospital e estivesse em estado
grave, e rosas vermelhas se estivesse próxima sua morte.
Certa hora, bate a porta de seu quarto uma mulher e entrega a mãe
da moça um maço de rosas vermelhas murchas e sem vida. A mulher se
identifica como "mãe da Berenice". Nesse meio de tempo, a moça que estava

- 102 -
dormindo acordou, e a mãe avisou pra ela que a mulher havia deixado o
buquê de rosas, sem saber do pedido da filha feito em oração.
Ela ficou com uma cara de espanto quando foi informada pela mãe
que quem havia trazido as rosas era a mãe da Berenice. A única coisa que a
moça conseguiu responder era que a mãe da Berenice estava morta há 10
anos.
A moça morreu naquela mesma noite. No hospital ninguém viu a tal
mulher entrando ou saindo.

- 103 -
Rastros da Poética de Cesário Verde em Alberto Caeiro
e João Cabral

Maria Aparecida Barros de Oliveira Cruz20

Alberto Caeiro, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, no


terceiro poema de O Guardador de Rebanhos, declara:

Ao entardecer, debruçado pela janela,


E sabendo de soslaio que há campos em frente,
Leio até me arderem os olhos
O Livro de Cesário Verde.
(CAEIRO, 2005, p. 20).

João Cabral de Melo Neto também revela ter sido leitor do


poeta português. Na obra Serial, escrita entre os anos de 1959-1961,
elege uma série de intelectuais da tradição que contribuíram de
alguma forma com sua formação. Cesário Verde é o quinto da lista:

Cesário Verde usava a tinta


De forma singular:
Não para colorir,
Apesar da cor que nele há.
(MELO NETO, 2007, p. 275).

20
Aluna do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da UFG com área de
concentração em Estudos Literários; nível: doutorado

- 104 -
De imediato, fica clara a aproximação entre esses dois poetas
que na maior parte do tempo se encontram em lados opostos. O leitor
assíduo de João Cabral sabe que ele não apreciava bem os poetas
portugueses e a razão é simples: muitos eram levados pelo excesso de
sentimento, pela emoção fácil e pela imaginação sem técnica. Em uma
entrevista à jornalista Alice Maria, chega a declarar: “[...] para mim, o
maior de todos [dos poetas portugueses] é o Cesário Verde. É aquele
poeta que eu sinto mais perto de mim, com quem mais me
identifico”21. Essa identificação diz respeito, principalmente, a um
traço típico da poética de Cesário Verde: seu apego ao mundo das
coisas. Neste ensaio, defendemos a hipótese de que Cesário Verde foi
fundamental para a formação poética de Alberto Caeiro e João Cabral.
Partimos do pressuposto de que o poeta se forma a partir das leituras
que empreende, bem como das escolhas que faz ao longo de sua
trajetória enquanto escritor. Da primeira ação resulta uma
“consciência de leitura”, que conforme João Alexandre Barbosa
(1986), é responsável pela constituição identitária do escritor,
mediante a permanência ou à ruptura dessa consciência. Nas palavras
da professora e pesquisadora Goiandira de F. Ortiz Camargo (2008, p.
100): “[...] entendemos o ato de leitura do poeta como produção,
reinvenção, apropriação criadora, o que implica também o

21
Entrevista a Alice Maria, Diário de Notícias, Lisboa, 20 jan. 1985.

- 105 -
comparecimento do mundo e suas circunstâncias, no resgate da
‘qualidade histórica’ que o poema deve ter”.
Para corroborar essa hipótese, inicialmente, demarcaremos os
principais traços da poesia de Cesário Verde. Para tanto vamos nos
ater aos poemas: “Contrariedades”; “Num bairro moderno”; “Noite
fechada” e, por fim, “Nós”. Na sequência, destacaremos quais
elementos foram incorporados por Alberto Caeiro e João Cabral, com
vistas à confirmação da hipótese da consciência de leitura como um
mecanismo fundamental para a formação dos poetas modernos.

As Lições do Mestre: Cesário Verde, um poeta original


Cesário Verde pertence a uma geração de poetas marcados
pelo espírito de combate aos valores tradicionais. Contudo, não
compartilhou da glória que muitos de sua época alcançaram. Aliás, sua
filiação à geração de 1870 é parcial. Isso porque, diferentemente de
seus colegas, não frequentou os círculos de debate da época. De
origem pequeno-burguesa, desde cedo se envolveu com os negócios
paternos, vivendo à margem das rodas literárias e dos grupos de
intelectuais que sacudiam a sociedade portuguesa da época. Não se
tem notícia de que tenha participado da Questão Coimbrã (1865), até
porque era muito jovem à época. Também não organizou as
Conferências do Cassino Lisbonense (1871), nem consta que tenha
sido um dos membros do grupo do Cenáculo (1868), nem tão pouco
chegou a tomar ciência da existência do grupo Os Vencidos da Vida

- 106 -
(1887-1888)22. Apesar disso, esse poeta português, considerado o
precursor da modernidade em Portugal, revelou, desde cedo, uma
inquietação própria de quem não se dá por satisfeito com os caminhos
já percorridos e, ao seu modo, concebe uma poética pautada em
valores novos.
Diferentemente de seus contemporâneos, que construíram
poesia encharcada de intuitos revolucionários ou sociais, a chamada
poesia engagée, Cesário Verde faz poesia focada nas tensões sociais
do processo de urbanização de Portugal, sem, contudo, utilizar
linguagem panfletária. Em seus poemas, desfilam os trabalhadores das
mais diversas áreas; as mulheres aristocráticas, burguesas e operárias;
os comerciantes; os burgueses abastados e a fina aristocracia em
decadência. Além disso, sua poética é marcada pela convergência de
vários estilos. Segundo os estudiosos Benjamin Abdala Júnior e Maria
Aparecida Paschoalin (1982, p. 114):

Sua escrita poética é o ponto de partida de várias


tendências de vanguarda e do modernismo de seu
país, como o tratamento estilístico do
decadentismo-simbolismo ou o sensacionismo de
Fernando Pessoa. Sua consciência artesanal do
poema, visto como objeto estético construído a
partir de uma multiplicidade de perspectivas,
aproxima-o igualmente da modernidade dos
movimentos de vanguarda e da literatura
contemporânea.

22
Cesário Verde morre prematuramente, aos trinta e um anos de vida (1855-1886),
vítima da tuberculose.

- 107 -
Está claro que o poeta enxerga para além do seu tempo. Tanto
que produz uma poesia que destoa do gosto da época. Pode se dizer
que seu único livro, publicado postumamente, O Livro de Cesário
Verde (1901), é um caleidoscópio que aponta para vários temas caros
à poesia moderna, como: o homem comum imerso nas cidades; a
artesania do poema (metalinguagem), a ironia e a analogia, o
heroísmo moderno, dentre outros. E essa não afinidade com a
literatura que vigorava no período lhe provoca, ao mesmo tempo, um
certo desconforto e a consciência de que a poesia que faziam estava
manchada pelos interesses pessoais e pela visão medíocre de Arte. Em
“Contrariedades”, nos deparamos com versos célebres como:

Eu nunca dediquei poemas às fortunas,


Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
Me negam as colunas.
(VERDE, 2010, p.32)

De imediato, o leitor desavisado pode achar que se trata de


mais um poeta romântico, voltado para seus dramas pessoais.
Contudo, à proporção que a leitura avança, é nítido o equilíbrio entre
a dor do poeta e a da tísica, a quem o eu poeta representa. A mediação
indireta da vizinha adoentada faz-lhe ver que seu problema com os
jornais, e por extensão com a sociedade letrada da época, não é mais
grave que a doença que a aflige e as parcas condições de que goza.
Desta forma, a fúria vai se amenizando, ao mesmo tempo que reflete

- 108 -
sobre a real situação na qual se encontra a literatura do período: os
escritores colocam-se nas mãos dos leitores que parecem ditar as
regras; o texto em prosa, em especial o romance melodramático, tem
mais chance de cair nas graças do público do que um poema feito em
moldes modernos; os jornais fecham as portas aos autores
desconhecidos e distantes das tônicas vigentes; reinam a hipocrisia e
o puxa-saquismo e, por fim, a crítica utiliza-se ainda de métodos
ultrapassados.
Nesse cenário extremamente restrito, não há espaço para a
sinceridade, à originalidade e para o despojamento do poeta. Nem tão
pouco para a concepção de um novo estatuto da poesia, projeto que
o poeta persegue e que não chega a viabilizar-se. Interessante
destacar que essa confissão utiliza-se de moldes românticos, contudo,
subvertendo-os. O sujeito poético põe-se no texto a conta gotas,
dividindo o espaço com o dilema da outra personagem. Nesse balanço
entre a dor do poeta e a da engomadeira, nota-se a consciência
histórica do primeiro que não escamoteia os problemas do mundo
nem se refugia numa torre de marfim. Sua realidade é
contrabalançada com a realidade do outro e nesse jogo de
objetividade/subjetividade pesa o mundo histórico com suas tensões
e seus dilemas reais, o que confirma a asseveração feita por estudiosos
como Antonio José Saraiva e Oscar Lopes (2008, p. 926): “Ele é o poeta
cuja neurastenia se retrata e ironiza num quadro real, à vista de
dramas flagrantes dos vizinhos; que, perceptivelmente, deambula e

- 109 -
namora em Lisboa, ou examina o campo com o olhar objectivo do
administrador rural”.
Pode se dizer que Cesário Verde principia o processo de
dessubjetivação do sujeito. Isto é, na poética verdiana a subjetividade
do poeta é empurrada, aos poucos, para a margem, cedendo espaço
para o outro, o objeto. Em “Contrariedades”, é o jogo entre o eu e o
não-eu que equilibra todo o poema. É pela percepção da dor do outro
que o eu poético avalia a sua dor até chegar à conclusão de que a
situação na qual se encontra é pequena frente ao que o outro passa.
Essa visão social lançará o autor de “O Sentimento dum ocidental”
num campo da tradição que será amplamente explorado por seus
sucessores, dentre eles Alberto Caeiro e João Cabral, de tal forma que
este último vai levá-la à exaustão.
Outro tópico recorrente na poética de Cesário Verde e
incorporado como lição é a condição de deambulador, de observador
atento aos fatos e movimentos ao seu redor. Vários são os poemas nos
quais o eu poético coloca-se no papel de poeta-pintor, tal é sua
precisão e riqueza de detalhes. Nada lhe passa despercebido. Seu
olhar percorre todos os ângulos, apesar de limitar-se ao que é
observável ao olho humano. Em “Num bairro moderno”, por exemplo,
essa habilidade é posta à prova. O poema é constituído por vinte
estrofes regulares que funcionam como cenas capturadas pelo olhar
de um trabalhador adoentado que, às dez horas da manhã, dirige-se
ao trabalho. O bairro por onde passa é descrito como um ambiente

- 110 -
que já sofreu as intervenções do processo de urbanização, próprias das
grandes cidades do século XIX. As ruas são pavimentadas, as casas são
palacetes, não há sujeira, nem odores desagradáveis e nem mesmo
animais perdidos. Em outras palavras, o ambiente é requintado, um
reflexo dos moradores do lugar:

Dez horas da manhã, os transparentes


Matizam uma casa apalaçada;
Pelos jardins estancam-se os nascentes,
E fere a vista, com brancuras quentes,
A larga rua macadamizada
[...]
Como é saudável ter o seu aconchego,
E a sua vida fácil! Eu descia,
Sem muita pressa, para o meu emprego,
Aonde agora quase sempre chego
Com as tonturas duma apoplexia.
(VERDE, 2010, p. 38).

Nesse ambiente, os desvalidos ocupam o papel de


trabalhadores que passam pelo local, seja para dirigir-se ao trabalho,
seja para ganhar seu próprio sustento. Além destes, há os
trabalhadores do bairro que ocupam o papel de serviçais. Contudo,
eles não se consideram como iguais aos demais:

Do patamar responde-lhe um criado:


“Se te convém, despacha: não converses.
Eu não dou mais”. E muito descansado,
Atira um cobre lívido, oxidado.
Que vem bater nas faces d`uns alperces.
(VERDE, 2010, p. 39).

- 111 -
O criado que se dirige à vendedora de hortaliças não se coloca
no mesmo nível dos demais trabalhadores. Aliás, parece não ter
consciência de sua real condição de trabalhador e por isso a trata com
desdém e indiferença. Até sua localização, no alto da escada, é uma
indicação simbólica do quanto se sente superior aos seus pares.
Provavelmente consequência do ambiente que respira e da alienação
na qual está imerso. Esse incidente entre o criado e a vendedora é
flagrado pelo observador que parece ter ciência dos ângulos que
escolhe, bem como dos flashes que deseja eternizar ou mesmo
ampliar. Ao leitor fica a sensação de que o conjunto observado é muito
mais amplo do que o descrito. Por fim, a cumplicidade entre o sujeito
deambulador e os desvalidos é reforçada, tal como se percebe em
“Contrariedades” bem como em “Noite Fechada” e em tantos outros
poemas que poderiam aqui ser arrolados.
Essa relação de cumplicidade implícita entre o sujeito poético
e os excluídos é outro traço típico da poética de Cesário Verde. Em
“Noite Fechada”, o eu lírico recupera um passeio longo, feito ao lado
da amada, percorrendo ruas, vielas, travessas, cemitérios, igrejas e
cais, onde, guiado pela jovem sorridente, vê desmoronar seus sonhos
de romântico incurável:

E tu que não serás somente minha,


Às carícias leitosas do luar,
Recolheste-te, pálida e sozinha,
À gaiola do teu terceiro andar.
(VERDE, 2010, p. 59).

- 112 -
No contraponto entre o eu e o não-eu, fica evidente um traço
fundamental. Enquanto ele se sente totalmente tocado por aquilo que
vê, ao ponto de sentir compaixão pelo próximo, ela encara tudo com
leveza, indiferença e riso:

Sei que tudo atentavas, tudo vias!


Eu por mim tinha pena dos marçanos
Como ratos, nas gordas mercearias,
Encafurnados por imensos anos!

Tu sorrias de tudo: os carvoeiros,


Que aparecem ao fundo dumas minas,
E à cruz luz os pálidos barbeiros
Com óleos e maneiras femininas!
(VERDE, 2010, p. 56-57).

A miséria perceptível ao eu poético passa totalmente


despercebida à burguesa que encara a visita à periferia como um
passeio pitoresco ao luar. Ao retornar para sua “gaiola do terceiro
andar”, refugia-se totalmente daquele universo à parte,
comportando-se como se ele não existisse. Está clara a distância entre
os amantes e essa não tem relação apenas com o nível social. A
perspectiva adotada por ambos é diversa e essa constatação pelo eu
poético causa-lhe profundo desgosto. Ele tudo sente: a lua com suas
“trêmulas brancuras”, o “jardim com árvores escuras/ Como uma jaula
todo gradeado!”, a flor da sua pele, a dor dos caixeiros, a miséria do
povo que aos finais de semana folga, enfim, o ambiente não lhe é
indiferente. Essa dor provocada pela constatação da existência

- 113 -
deplorável do outro e das próprias coisas faz-lhe admirar o “plebeu
cambaleante”, talvez porque tenha encontrado um anestesiante,
ainda que provisório, para o problema que o aflige.
Além do desfile dessa massa humana que abarrota a cidade -
os heróis da poesia moderna, na percepção de Charles Baudelaire -
esse poema destaca-se por mais um detalhe. Ele expressa o desejo do
poeta de produzir uma obra que fosse moderna e original: “E eu que
busco a moderna e fina arte” (BAUDELAIRE, 2010, p. 58).
Esse projeto apresenta-se espalhado em toda a sua obra e
aponta para outra marca da poética verdiana. Cesário Verde não só
escreve poesia como também pensa em como fazê-la. Isto é, os
andaimes da construção do texto são problematizados por ele, assim
também como o papel que cabia ao leitor e ao escritor. Em vários
momentos de sua obra, revela que tinha consciência da recepção de
seus poemas. Para ele alguns leitores da época eram estúpidos e
pouco ousados, pois não aceitavam bem as novidades. Em “Nós”, por
exemplo, chega a afirmar:

Para alguns são prosaicos, são banais


Estes versos de fibra suculenta;
Como se a polpa que nos dessedenta
Nem ao menos valesse uns madrigais!

Pois o que a boca trava com surpresas


Senão frutas tônicas e puras!
Ah! Num jantar de carnes e gorduras
A graça vegetal das sobremesas!...

- 114 -
Jack, marujo inglês, tu tens razão
Quando ancorado em portos como os nossos,
As laranjas com cascas e caroços
Comes com bestial sofreguidão!
(VERDE, 2010, p. 98-99)

Num ambiente fechado e tradicional como o da sociedade


portuguesa, onde a repetição e a mesmice são recorrentes, é preciso
jogo de cintura para impor novos gostos. Por meio de uma ironia fina
o eu poético compara sua poesia às frutas tônicas e puras que,
reconhecendo seu lugar, desempenham o papel de equilibrar os
excessos e de estabelecer novos gostos. A referência ao marujo inglês
é uma evidência de que sua arte é mais apreciada pelos estrangeiros
do que por seus conterrâneos e/ou colegas das letras, ao mesmo
tempo que sugere ser ele um estrangeiro em terras nacionais.
Para Saraiva e Lopes (2008, p. 927), Cesário Verde foi
responsável pela renovação estilística da poesia portuguesa:

[...] Cesário consegue valorizar poeticamente o


vocabulário e o tom de fala mais correntios na
linguagem coloquial urbana, embalando o leitor
num ritmo que ondula entre a atenção ao
pormenor e um abrir de horizontes, entre a sátira
ou a degradação, que nos oprimem, e um relance
de beleza imprevista, que nos expande.

Mais do que isso, esse poeta português inovou a relação entre


o poeta e o mundo. A geração contemporânea a Cesário Verde ainda
está embebida pelos preceitos e valores vigentes à época. Vale
lembrar que o propósito mais ousado da geração de 70 era romper

- 115 -
com a literatura romântica, por considerá-la a principal responsável
pela situação de marasmo e decadência na qual se encontrava a
sociedade portuguesa, à época. Segundo Helder Macedo (1975),
Cesário Verde incorpora bem a lição de Taine à poesia, que consiste
em tornar o real representado na obra de arte o próprio significante,
a partir de uma análise profunda dos fatos ou acontecimentos. Nessa
perspectiva, não há distinção entre a percepção objetiva e a subjetiva
do mundo:

O ‘ser’ subjectivo é um compósito dinâmico de


acontecimentos, sensações, imagens, recordações,
ideias e resoluções; e a única realidade do ‘eu’ é o
fluir dos seus acontecimentos. O ‘eu’ é assim
entendido como um fenómeno positivo - tão
complexo ou tão contraditório como a realidade
externa- que como tal deve ser analisado.
(MACEDO, 1975, p. 17)

Desta forma, a figura do poeta emerge como a de alguém que


deve registrar a realidade em seu dinamismo, daí o emprego da
técnica cinematográfica, perceptível em muitos de seus poemas. Além
disso, cabe ao artista combinar e analisar as partes inter-relacionadas
do real, evidenciando, assim, as características essenciais ou
dominantes mais do que o próprio elemento em si. A consequência
desse trabalho se traduz em quadros que podem ser olhados a partir
de várias perspectivas, sem deixar de lado a estética literária. Em
outras palavras, o poema passa a ser um constructo social e o poeta,
o agente imerso na sociedade, dela retirando a matéria para sua arte.

- 116 -
Essa relação entre lírica e sociedade será talvez a lição mais
significativa deixada por Cesário Verde. Sua importância no cenário
literário se justifica pela quantidade de poetas modernos que se
construíram a partir da leitura de sua obra. Alberto Caeiro e João
Cabral não são os únicos a compor essa galeria, entretanto, para este
trabalho a investigação dos rastros em ambos ajudará a corroborar
essa hipótese. A pergunta que nos move inicialmente é: Alberto Caeiro
e João Cabral, frente à poética verdiana, praticam a tradução ou a
traição dessa consciência de leitura?

Alberto Caeiro no Rastro da Tradição Portuguesa Recente


Alberto Caeiro é considerado por Fernando Pessoa o seu
“maior e mais íntimo amigo”. Além da admiração do seu criador, que
o considerava seu mestre, essa persona literária também é admirada
por seus pares - Ricardo Reis e Álvaro de Campos - que lhe dedicam
versos, prefácios e notas, considerando-o o seu grande libertador. Sua
gênese é assinalada por um eivo de divindade. Segundo Richard Zenith
(2005, p. 211):

Este parto divino, também anunciado – quase com


as mesmas palavras- no prefácio de Ricardo Reis
para os poemas de Caeiro, teria supostamente
acontecido em 8 de março de 1914, dia a que
Pessoa chamaria, numa carta escrita 21 anos
depois, “o dia triunfal da minha vida”. Um dia de
revelação e revolução.

- 117 -
Essa importância toda dada a Alberto Caeiro justifica-se por
vários fatores. Para Zenith (2005), o universo de Pessoa pode ser
dividido em dois tempos: antes e depois de Caeiro. Mesmo tendo vida
efêmera- o poeta pastor é “morto” por Pessoa em 1915 -Caeiro entrou
para a tradição como o poeta “revelador da realidade”. Acreditamos
que Cesário Verde esteja inscrito nessa tradição literária recém-
fundada. Em outras palavras, Alberto Caeiro lê o poeta de
“Cristalizações”. O poema III é prova inconteste:

Ao entardecer, debruçado pela janela,


E sabendo de soslaio que há campos em frente,
Leio até me arderem os olhos
O livro de Cesário Verde.
(CAEIRO, 2005, p. 20)

A consciência de leitura revelada por Alberto Caeiro indica que


ele foi leitor assíduo do precursor da modernidade em Portugal e
talvez por isso ele soube compreender o poeta em toda a sua
complexidade, habilidade que não chegou a ser desenvolvida pelos
contemporâneos do poeta de “A débil”. Em outras palavras, a
construção poética de Cesário Verde o inspira na formulação de sua
própria poiesis. Depois de se declarar leitor de Cesário Verde e de dizer
que, tal como ele, era um poeta camponês, Alberto Caeiro revela a
razão de seu tributo ao mestre:

[...]
Que pena que tenho dele! Ele era um camponês
Que andava preso em liberdade pela cidade.

- 118 -
Mas o modo como olhava para as casas,
E o modo como reparava nas ruas,
E a maneira como dava pelas pessoas,
É o de quem olha para as arvores,
E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai
andando
E anda a reparar nas flores que há pelos campos...
(CAEIRO, 2005, p. 20)

É esse jeito de apreender a realidade que o cerca que faz com


que Caeiro queira lhe seguir os passos. Implicitamente, o poeta
compara-se ao seu mestre; o que os diferencia é apenas o ambiente
onde circulam: o primeiro ronda a cidade, embrenha-se pelos becos e
ruas pavimentadas. Percorre o cais e o centro, perscruta os mais
diversos transeuntes e com sua lente amplia fatos e paisagens para
oferecer melhor percepção ao leitor. Também Caeiro percorre os
campos como quem nunca tinha visto nada antes: “E eu sei dar por
isso muito bem.../Sei ter o pasmo comigo/ Que tem uma criança se,
ao nascer,/ Reparasse que nascera deveras..”. (CAEIRO, 2005, p. 19).
Essa postura frente à realidade constatada é fundamental para
a concepção de novos valores, de ideias novas, bem como para a
formação de uma subjetividade marcada pela alteridade. É porque o
sujeito poético não se deixa contaminar pelas “verdades” existentes e
pelos olhares já manchados, que ele apreende os seres e objetos em
seu estado de pureza. A grande tristeza que Caeiro revela perceber em
Cesário Verde é consequência desse olhar apurado que o poeta lança
para as camadas subterrâneas da realidade e por isso sua análise

- 119 -
acaba se tornando mais complexa. Ele põe, às claras, a realidade
latente que a maioria da população desconhecia ou não queria
perceber. Além disso, o poeta também as relaciona, analisa e informa
suas imbricações. Essas ações provocam-lhe profundo pesar, como já
afirmado: “E triste como esmagar flores em livros/ E pôr plantas em
jarros..”.. (CAEIRO, 205, p. 20).
No primeiro poema de O Guardador de Rebanhos, o eu poeta
revela nuances de sua poiesis. Sua escrita, tal como sua imaginação,
estão condicionadas ao ver e ao sentir:

Quando me sento a escrever versos


Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo versos num papel que está no meu
pensamento,
Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mim...
(CAEIRO, 2005, p. 17)

Isto é, a realidade que o circunda é a responsável por ditar-lhe


os rumos de sua poética. Além desta, o eu poeta também revela
consciência da existência do leitor, fechando assim o ciclo vital da
poesia moderna: autor-obra-leitor. E o que deseja do leitor é que ele
perceba a naturalidade de seus versos tal como ele percebe em seu
mestre. Esse desejo por uma poética não-artificial, não-forçada,
condiciona-se à ideia de que o poema é fruto da observação atenta da
realidade e não da imaginação do autor. O poema X é um reforço desse
conceito de poesia. No diálogo entre o guardador de rebanhos e seu

- 120 -
interlocutor, possivelmente um poeta romântico, o embate se formula
a partir da ideia que cada um tem da natureza:

Nunca ouviste passar o vento.


O vento só fala do vento.
O que ouviste foi mentira,
E a mentira está em ti.
(CAEIRO, 2005, p. 35)

Para Caeiro, a natureza não se personaliza; é apenas ela


mesma. Tudo o que o homem nela deposita é reflexo de si mesmo. A
ideia de que a natureza é uma extensão da alma humana, atuando
como um reflexo do indivíduo, perpassa boa parte da literatura, desde
o Trovadorismo, contudo é no Romantismo que ela ganha mais força.
Para esses últimos, a natureza deve refletir o estado de espírito dos
heróis, sendo um complemento da sondagem do mundo anímico.
Caeiro, ao negar essa característica dada à natureza, também nega a
tradição mais remota para filiar-se a uma outra tradição: àquela
recém-fundada por Cesário Verde. Dito de outro modo, o eu poético
nega a existência de um mundo subjetivo, idealizado e representado
pela relação harmoniosa entre homem e natureza para fixar uma nova
relação, desta vez marcada pela intervenção do homem no meio, com
vistas à análise, a partir do emprego de dois órgãos dos sentidos,
principalmente: visão e audição:

O que nós vemos das cousas são as cousas.


Por que veríamos nós uma cousa se houvesse
outra?

- 121 -
Por que é que ver e ouvir seriam iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?

O essencial é saber ver,


Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê
Nem ver quando se pensa.
(CAEIRO, 2005, p. 49)

Fica claro que para o guardador de rebanhos o mais importante


é saber ver e ouvir, isto é, enxergar a realidade tal como ela se mostra
aos olhos e não como ela se revela à alma. Para a prática desse
exercício é preciso se despojar das ideias preconcebidas, é preciso
praticar “Uma aprendizagem de desaprender” (CAEIRO, 2005, p. 49).
Isso implica em abandono das lições do passado e apreço às novas.
Implica também na apreensão da realidade por ela mesma, sem
subterfúgios: “Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas/
Nem as flores senão flores,/ Sendo por isso que lhes chamamos
estrelas e flores” (CAEIRO, 2005, p. 49).
Na poética de Caeiro, percebe-se tanto a tradução de uma
consciência de leitura, como ora já apontado, como também uma
traição dessa consciência. No poema “XXVIII”, por exemplo, o poeta
revela ter lido os românticos, a quem ele chama de “poetas místicos”,
“filósofos doentes”: “Li hoje quase duas páginas/ Do livro dum poeta
místico,/ E ri como quem tem chorado muito”. (CAEIRO, 2005, p. 53).
Depois de declarar ironicamente que leu determinado poeta, o
eu lírico apresenta uma definição para os mesmos, o que indica um

- 122 -
desajuste frente à tradição mais remota. Essa desfiliação é
argumentada nos versos seguintes:

Porque os poetas místicos dizem que as flores


sentem
E dizem que as pedras têm alma
E que os rios têm êxtases ao luar.

Mas as flores, se sentissem, não eram flores,


Eram gente;
E se as pedras tivessem alma, eram cousas vivas,
não eram pedras;
E se os rios tivessem êxtases ao luar,
Os rios seriam homens doentes. (CAEIRO, 2005, p.
53)

Assim, há na poesia de Caeiro rastros não só da poética de


Cesário Verde, a quem ele traduz, como também de poetas outros, os
quais ele nega. Conforme Barbosa (1986, p. 14): “[...] a consciência que
o poema deixa aflorar não é apenas descritiva do poeta enquanto
personalidade: cada verso, cada imagem, ritmo ou anotação
semântica, tudo propõe a recuperação da qualidade histórica do
poema”. Desta forma, o poeta, na condição de leitor, deixa entrever
alguns indícios das leituras feitas, ao mesmo tempo em que também
propicia a continuidade desse ato.
Não pensemos que há uma subserviência total à tradição. Na
verdade, o que se percebe é o desejo de ruptura. Conforme Barbosa
(1986), não é difícil encontrar poetas que menosprezaram a história. E
eles não teriam outra saída, dada a alta tensão corrosiva da

- 123 -
consciência enquanto indício de uma leitura da tradição. Caso
contrário, não marcariam seu lugar no mundo literário. Esse anseio por
construir seu próprio caminho também se percebe em Caeiro:

Procuro despir-me do que aprendi,


Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me
ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,
Mas um animal humano que a Natureza produziu.
(CAEIRO, 2005, p. 72).

Para realizar esse feito, Caeiro, assim como os demais poetas


modernos, investirá na linguagem. Por meio dela ele ordenará o caos
do mundo real, do mundo do objeto, assim como, também, o da
poesia:

O mundo da poesia que o poeta descobre,


porquanto mundo de contradições e de conflitos
desesperados, sempre é interpretado por um
discurso único e incontestável, as contradições,
conflitos e dúvidas permanecem no objeto, nos
pensamentos, nas emoções, em uma palavra, no
material, porém sem passar para a linguagem.
(BAKHTIN, 2002, p. 94).

Conforme Mikhail Bakhtin (2002), o estilo poético é marcado


pela unidade e pela unicidade da linguagem. Daí resulta o caráter de
monodia presente no gênero poético, o que significa dizer que o poeta
utiliza uma linguagem que lhe é própria, diferentemente do prosador
que pode lançar mão da linguagem de outrem. Assim, “[...] a
- 124 -
linguagem da poesia, criada artificialmente, será diretamente
intencional, peremptória, única e singular” (BAKHTIN, 2002, p. 95).

João Cabral e as Lições da Pedra


João Cabral, como Caeiro, também se afasta da emoção fácil,
dos “poetas místicos”. Em uma entrevista concedida a “O Estado de S.
Paulo”, em 19 de junho de 1986, Cabral afirma:

Eu nunca quis ter emoção. Quando o sujeito fala


em emoção, fala nesse tipo de emoção barata e
fácil. Eu nunca quis ser um Casimiro de Abreu nem
um Castro Alves. Não sou um instintivo, não sou um
romântico. Eu me considero um intelectual, um
sujeito que vive para ler e, portanto, conheço bem
a poesia das línguas que sei ler. (MELO NETO, apud
ATHAYDE, 1998, p. 28)

O desejo de se ver na contramão dos poetas líricos vai persegui-


lo por toda a vida e marcará seu compromisso com uma poiesis mais
cerebral. Daí a presença recorrente da imagem da pedra. Para Barbosa
(2008), a pedra traduz o trabalho com a poesia e é, ao mesmo tempo,
o elemento que o relaciona a vários poetas, os quais leu e releu. Na
medida em que o poeta vai amadurecendo, suas escolhas são mais
nítidas. Ao lado de Mallarmé, Valéry, Murilo Mendes e Carlos
Drummond de Andrade, João Cabral edifica sua poética sob “o signo
da recusa e da negatividade, assumindo abertamente a fratura
moderna entre expressão e composição” (BARBOSA, 2008, p. 20).

- 125 -
Em uma entrevista anterior, dada em 1969, a Carlos Alberto
Tenório, jornalista de “O Globo” (MELO NETO, apud ATHAYDE, 1998),
Cabral corrobora a tese de que a leitura da tradição foi fundamental
para que escolhesse seu caminho e os poetas dos quais gostaria de se
aproximar ou se afastar. Contudo, é no contato com a poesia moderna
que o poeta pernambucano encontra sua verdadeira filiação. Dos
poetas portugueses declara manter distância, dado o lirismo
exacerbado recorrente neles. Todavia, há um escritor a quem ele se
filia de bom grado. Trata-se de Cesário Verde:

[...] Sabe o que acho maravilhoso em Cesário


Verde? É que exatamente não tem nada dos
defeitos que apontei. Cesário Verde não é lírico, é
subjetivo, como Pessoa, de quem não gosto
totalmente. [...] Cesário Verde descreve a realidade
através da qual se sente a alma do poeta, mas não
por transcrição abstrata. [...] Em Cesário, são as
coisas que ele mostra que exprimem o que ele
sente e não a confissão lamurienta e lírica e pessoal
do que ele é, do que ele sofre, etc. (MELO NETO,
apud ATHAYDE, 1998, p. 54).

Na obra Serial, escrita entre os anos de 1959 a 1961, João


Cabral escreve um poema seriado, intitulado “O Sim contra o Sim”, que
é constituído de oito poemas, dedicados à arte de determinados
intelectuais, sendo quatro poetas e quatro pintores. Um deles tem
como tema Cesário Verde e confirma a razão de sua admiração ao
poeta. Para o eu poético, Cesário usava a tinta necessária para
registrar a realidade observada, sem floreá-la, sem manchá-la com sua

- 126 -
emoção pessoal. Dito de outro modo, o poeta, empregando o método
de Taine, que tanto apreciava, põe o objeto/a cena em evidência ao
mesmo tempo em que se afasta para melhor sondá-lo. O vocábulo
lavar e seus variantes, existentes na terceira estrofe, destacam traços
próprios da poiesis do poeta português e que João Cabral tanto
aprecia. Sua forma de construção, conforme já afirmado, não se pauta
no encobrimento da realidade, mas na sua apresentação sem
subterfúgios.
Aliás, o apreço à realidade vai se apresentar em vários poemas
de João Cabral, marcando sua preferência pela matéria concreta:

Vivo com certas palavras,


Abelhas domésticas.

Do dia aberto
(branco guarda-sol)
Esses lúcidos fusos retiram o fio de mel
(do dia que abriu
também como flor)

que na noite
(poço onde vai tombar
a aérea flor)
persistirá: louro
sabor, e ácido,
contra o açúcar podre.
(MELO NETO, 2007, p. 71)

O poema estrutura-se a partir de ideias antitéticas: dia versus


noite; mel ácido versus açúcar podre; palavras duras, reais versus
palavras doces. Tudo isso culmina na defesa de uma poesia distante

- 127 -
do lirismo derramado, de tom confessional, ao mesmo tempo em que
reforça o valor da palavra poética- assumida como um compromisso
com a arte planejada nos mínimos detalhes- construída a partir do
labor intenso e cotidiano, daí a imagem recorrente do engenheiro, isto
é, do arquiteto das palavras:

O lápis, o esquadro, o papel;


O desenho, o projeto, o número:
O engenheiro pensa o mundo justo,
Mundo que nenhum véu encobre.
(MELO NETO, 2007, p. 46).

Nesse contexto, predomina a construção de uma poética,


marcada pela tensão em que “o dizer e o fazer estão de tal modo
articulados que o seu consumo apenas temático, tanto quanto sua
apreciação somente artesanal, deixariam o leitor a meio caminho”
(BARBOSA, 1986, p. 108). O compromisso de João Cabral com a escrita
de uma poesia que contempla a forma e o conteúdo, a partir da
realidade, resultou no alargamento dos espaços de significação,
responsáveis pela consolidação de sua obra. Preocupado com a
edificação de uma poiesis sem devaneios, João Cabral instituiu uma
educação moldada a partir da imitação das coisas:

[...] aprendendo com os objetos, coisas, situações,


pessoas, paisagens, etc., a sua linguagem foi, aos
poucos, montando uma nova forma de ver - que o
leitor, por sua vez, aprende a apreendê-la-, jamais
permitindo-se a facilidade de um fazer didático,

- 128 -
desde que sempre dependente do fazer poético.
(BARBOSA, 1986, p. 108).

Como consequência tem-se a fundação de uma poesia


metalinguística, entretanto, forjada em outros moldes. Conforme a
advertência de Barbosa (1986), é metalinguística porque se trata de
uma poesia que se constrói a partir da linguagem dos objetos que
reflete:

Uma educação pela pedra: por lições;


para aprender da pedra, frequentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
Ao que flui e a fluir, a ser maleada;
A de poética, sua carnadura concreta;
A de economia, seu adensar-se compacta:
lições da pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem quer soletrá-la.
(MELO, NETO, 2007, p. 312)

A pedra (ou se quisermos designar de as coisas, a realidade e


até a própria linguagem poética) é o elemento externo, que ensina
lições ao poeta: de moral, de poética e de economia. Logo, ela se
constitui em um pedagogo completo já que contempla todas as faces
das quais a linguagem poética deve se ocupar. Ela também é o
elemento interno, “uma pedra de nascença” que penetra a alma e
desperta no ser/poeta a necessidade de escrever. Logo, a educação
pela pedra pressupõe a apreensão de dois movimentos: o externo e o
interno, ou, a realidade e a subjetividade do poeta que se expressa via

- 129 -
linguagem, tendo como espelho a realidade. É nesse campo que João
Cabral se torna um poeta completo, uma vez que ele cumpre a
assertiva expressa por Bakhtin (2002, p. 103):

O poeta deve assumir o domínio completo e


pessoal de sua linguagem, aceitar a total
responsabilidade de todos os seus aspectos e
submetê-los todos às suas intenções e somente a
elas. Cada palavra deve exprimir de maneira
espontânea e direta o desejo do poeta; não deve
existir nenhuma distância entre eles e suas
palavras. Ele deve partir da linguagem como um
todo intencional e único: nenhuma estratificação
pluridiscursiva e muito menos plurilíngue deve ter
qualquer reflexo marcante sobre sua obra poética.

Para cumprir com esse papel é preciso desvencilhar as palavras


de intenções alheias, é preciso dar-lhes outros significados,
desligando-as de contextos existentes, o que implica no cultivo de
palavras extintas:

[...]
Os homens que em geral
lidam nessa oficina
têm no almoxarifado
só palavras extintas:
[...]
Palavras que perderam
No uso todo o metal
E a areia que detém
A atenção que lê mal.
(MELO NETO, 2007, p. 189)

- 130 -
Todavia, essa perda não implica em ausência de historicidade
do poema, isso porque a “pedra” não é retirada do vazio, ela não se
localiza em lugar nenhum. Ao contrário, a realidade do poema está
imbricada na “história de leituras anteriores da poesia”. Essas histórias
se juntam à identidade do poeta. Por outra forma, na poética
cabralina, a circunstância social e histórica do poema se interpenetra
com a própria linguagem que o constrói. Por esse caminho o poeta
traduz Cesário Verde, Carlos Drummond de Andrade, Francis Ponge,
Mallarmé, Valéry e outros. Por ele também pratica a traição. Isto é, ele
se afasta propositalmente de muitos poetas, marcando seu território
na contramão do lirismo de um Manuel Bandeira, por exemplo.
Concluindo, a edificação de uma educação moldada pela
realidade remete a uma tradição iniciada por Cesário Verde, o poeta
do cotidiano, como afirma Moisés (2008). De Cesário Verde o poeta
engenheiro retoma vários elementos, como por exemplo, a presença
de um sujeito deambulador (O Rio (1953), Morte e Vida Severina
(1954-1955); a dessubjetivação do sujeito que vai ser ampliada até se
tornar uma nova forma de subjetivação (O Engenheiro (1942-1945),
Psicologia da Composição (1946-1947) e a perseguição de um projeto
poético pautado na objetividade e no rigor formal, sem deixar de lado
o trato com a palavra poética. Por tudo isso é possível afirmar que João
Cabral não só leu Cesário Verde como também soube dar continuidade
ao projeto poético ensaiado por aquele, tornando possível a
construção de uma poiesis marcada essencialmente pela arquitetura

- 131 -
do verso que se equilibra via linguagem. Pode se concluir, finalmente,
que a consciência de leitura em Cabral foi fundamental para que a sua
identidade enquanto poeta pudesse ser formada.
Ao fim deste, cabe mais um questionamento: se Alberto Caeiro
e João Cabral revelam rastros do poeta português, não seria de duvidar
a afirmação feita por João Cabral no sentido de negar-se como leitor
de Fernando Pessoa? Não haveria entre esses dois poetas mais
semelhanças do que Cabral desejou evidenciar?

- 132 -
Referências

ABDALA JÚNIOR, Benjamin; PASCHOALIN, Maria Aparecida. História


Social da Literatura Portuguesa. São Paulo: Ática, 1982.

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Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

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BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética: A Teoria do
Romance. São Paulo: Annablume Editora, 2002. 85-106p.

BARBOSA, João Alexandre. As Ilusões da Modernidade: Notas Sobre a


Historicidade da Lírica Moderna. São Paulo: Editora Perspectiva, 1986.

______. João Cabral de Melo Neto. 2 ed. São Paulo: Publifolha, 2008.

CAEIRO, Alberto. Poesia Completa. In: PESSOA, Fernando. São Paulo:


Companhia das Letras, 2005.

CAMARGO, Goiandira de F. Ortiz. Subjetividade e Experiência de


Leitura na Poesia Lírica Brasileira Contemporânea. In: PEDROSA, Célia.
ALVES, Ida (Orgs.). Subjetividades em Devir: Estudos de Poesia
Moderna e Contemporânea. Rio de janeiro: 7letras, 2008. 99-107p.

MACEDO, Helder. Nós: Uma Leitura de Cesário Verde. Lisboa: Platano


Editora, 1975.

MELO NETO, João Cabral. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova


Fronteira, 2007.

SARAIVA, Antonio José; LOPES, Oscar. História da Literatura


Portuguesa. Coimbra: Porto Editora, 2008.

VERDE, Cesário. O livro de Cesário Verde. Porto Alegre: L&PM, 2010.

ZENITH, Richard. Caeiro Triunfal. In: PESSOA, Fernando. Poesia


Completa de Alberto Caeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
- 133 -
As possíveis influências de Kant na poética de Cecília
Meireles: um estudo sobre o belo e o sublime

Alessandra Zelinda Sousa Bessa23

Introdução
Desde cedo, Cecília Meireles entrou em contato com a morte,
pois perdeu seus pais quando criança e familiarizou-se com as
dimensões profundas da vida. Com isso, a poeta desenvolveu um lado
extremamente reflexivo. “Tais aspectos influenciaram nas escolhas
filosófico-religiosas da autora”. (Marchioro, 2014, p.56) Com isso, ao
refletir acerca do belo, que está presente na natureza, ela demostra
um olhar refinado e detalhado sobre o mundo.
Observa-se em Cecília a manifestação do belo, pelo viés da
imaginação da poesia, o leitor vai absorvendo as imagens que
aparecem no corpo do poema e usa o lúdico para chegar até o belo.
Os esforços do eu-lírico são intensos ao tentar transmitir os sentidos
das palavras. Este, por sua vez, sentirá prazer ou desprazer e isso o
levará ao entendimento intuitivo do belo. Portanto, a beleza é uma
ação construída individualmente, onde o sujeito reconhece algo como

23
Mestranda em Literatura Comparada da Universidade Federal do Ceará-UFC.

- 134 -
belo através da faculdade da imaginação. Assim, segundo as palavras
de Kant:

O juízo de gosto não é, pois, nenhum juízo do


conhecimento; por conseguinte, não é lógico e sim
estético, pelo qual se entende aquilo cujo
fundamento de determinação não pode ser se não
subjetivo ( e ela significa então o real de uma
representação empírica); somente não pode sê-lo
a referência ao sentimento de prazer e desprazer,
pelo qual não é designado absolutamente nada no
objeto, mas no qual o sujeito sente-se a si próprio
do modo como ele é afetado pela sensação.(
KANT,p.38,2012)

Desse modo o juízo de gosto não se baseia em regras para a


sua produção, pois é a natureza do próprio sujeito o que determinará
seu gosto por tal objeto contemplado. Segundo Gardner:

Ele (Kant) acreditava que uma ciência tem de


aplicar leis matemáticas aos dados empíricos, e que
estes têm de ser coletados em experimentos reais,
mas como a psicologia lida com elementos que
supostamente não possuem dimensões espaciais
pensamentos puros tal experimentação não era
possível. Um segundo problema era que a
psicologia teria de investigar o instrumento do
conhecimento o eu; mas não é possível que o eu
examine suas próprias operações, e muito menos
de forma desinteressada (GARDNER, 199, p. 113)

Por conseguinte, deve acontecer de maneira imediata,


inconsciente e de manifestação puramente interior:

- 135 -
Aqui a representação é referida inteiramente ao
sujeito e na verdade ao sentimento de vida, sob o
nome de sentimento de prazer ou desprazer, o que
funda uma faculdade de distinção e ajuizamento
inteiramente peculiar, que em nada contribui para
o conhecimento, mas somente mantém a
representação dada no sujeito em relação com a
inteira faculdade de representações, da qual o
ânimo tornar-se consciente no sentimento de seu
estado. (KANT, p.38, 2012)

Assim, várias imagens poéticas da poética de Cecília Meireles


resgatam algumas ideias Kantianas acerca do Juízo de gosto. Pode-se
dizer que o filósofo divide a beleza em quatro momentos para explicar
os movimentos conceituais e suas ideias essenciais do juízo de gosto.
Segundo Kant:

O agradável, o belo, o bom designa, portanto, três


relações diversas das representações ao
sentimento de prazer e desprazer, com referencial
ao qual distinguimos entre si objetos ou modos de
representação. Agradável chama-se para alguém
aquilo que o deleita; belo, aquilo que meramente o
apraz; bom, aquilo que é estimado, aprovado, isto
é, onde é posto por ele um valor objetivo. (KANT,
p.46,2012)

Com isso, Kant deixa visíveis as diferenças existentes entre


ambos. Diferenças, estas, que são compreendidas pelo tipo de
enfoque dado tanto pelo sujeito como pelo objeto, que pode ir do
entendimento meramente superficial (imediato) até uma avaliação
mais complexa e interiorizada do objeto. Nessa perspectiva, o juízo de

- 136 -
gosto é um ato contemplativo e destituído de conceitos, visto que é
ato subjetivo e parte do sentimento de ânimo do sujeito.
As representações se envolvem de nobre lirismo, através de
comparações, metáforas e símbolos que partem do sensível para o
espiritual. Por conseguinte, fazem parte do processo de identificação
do Absoluto (divino) na obra de Cecília Meireles, o que nos liga ao
sublime de Kant.
Do ponto de vista literário “a imagem poética ilumina com tal
luz a consciência que é em vão procurar-lhe antecedentes
inconscientes. [...] a fenomenologia tem boas razões para tomar a
imagem poética em seu próprio ser, como uma conquista positiva da
palavra” (BACHELARD, 2006, p. 3).
Compreende-se que é patente nas poesias de Cecília Meireles
esse enigma direcionado ao belo e ao sublime kantiano, pois os
sentimentos se mostram vagos e interiorizados no sujeito. A poesia
desemboca em um “jogo de sombras”, visto que a complexidade das
suas obras é como um labirinto, onde não há uma só solução para o
que é proposto pela poesia-jogo de Cecília. Pode-se perceber isso no
poema que segue:

Que procuras? - Tudo.


Que desejas? - Nada.
Viajo sozinha com o meu coração.
Não ando perdida, mas desencontrada.
Levo o meu rumo na minha mão.

- 137 -
A memória voou da minha fronte.
Voou meu amor, minha imaginação...
Talvez eu morra antes do horizonte.
Memória, amor e o resto onde estarão?
(MEIRELES, 2001)

Portanto, a percepção do belo é detectada pelo sujeito a partir


do próprio sujeito que percebe, em seu estado de ânimo, a
manifestação da beleza apreciada. “Não se tem de simpatizar
minimamente com a existência da coisa, mas ser esse respeito
completamente indiferente para em matéria de gosto desempenhar o
papel de juiz”. (KANT, p.40,2012).
Nessa perspectiva, não deve haver complacência, ou seja,
interesse intelectual pelo objeto quando se fala em juízo de gosto. Já
que o belo é algo que deve desvencilhar-se da influencia de fatores
externos para ser verdadeiramente manifestado no sujeito. “Vê-se
facilmente que se trata do que faço dessa representação em mim
mesmo, não daquilo em que dependo da existência do objeto, para
dizer que ele é belo e para provar que tenho gosto”. (
KANT,p.40,2012).
Porém, diferentemente da poesia, que abre espaço para uma
apreciação como um caminho para chegar a um lugar aberto e fluido,
Kant, de outro modo, coloca a beleza e o sublime como uma maneira
de atingir o homem moral. Mas ambos compactuam da visão da qual
entende que as palavras e os objetos são só reflexos da verdadeira
“coisa-em-si”. Ainda no mesmo poema, ela diz:

- 138 -
Não digas onde acaba o dia.
Onde começa a noite.
Não fales palavras vãs.
As palavras do mundo.
Não digas onde começa a Terra,
Onde termina o céu.
Não digas até onde és tu.
Não digas desde onde és Deus.
Não fales palavras vãs.
Desfaze-te da vaidade triste de falar.
Pensa, completamente silencioso.
Até a glória de ficar silencioso,
Sem pensar.
(MEIRELES, 2001)

Nesse sentido, a transcendência emana do espírito do eu-lírico,


mas o “horizonte não se encontra” como uma condição-limite
invencível e intransponível. Cecília Meireles percebe, de maneira
peculiar, o mundo. Ligando essa ideia à Kant, entende-se que essa
maneira peculiar de entender o mundo, está ligada aos órgãos do
sentido que selecionam como filtros as sensações humanas. Por
conseguinte, são "aparelho de percepções" e esse aparelho
condicionará ao modo de como os sentidos irão compreender o real.
O juízo de gosto é um ato puro e que começa a priori no ato
de apenas contemplar um objeto de maneira desinteressada. “O qual
parte da natureza racional como fim em si mesmo” (HÖFFE, 2005, p.
202) Com isso a sua poesia se volta a um estado de contemplação
tanto do belo como do sublime. “Assim, mediante o conceito de
“coisa-em-si”, Kant pretende resolver a aparente antinomia, ou,

- 139 -
“figura de contradição” (GIACOIA, 2006, p. 21), que surgiria da
admissão da possibilidade de intuição de um objeto, antes mesmo
desse objeto nos ser dado a um dos órgãos dos sentidos e unicamente
no intelecto, aventando a possibilidade de solução com o argumento
que se segue”
Nesse caminho se podem apontar o tempo e o espaço como
norteadores das possíveis primeiras sensações do belo e do sublime.
Vejamos a diferenciação entre intuição empírica e intuição a priori que
Kant faz:

O efeito de um objeto sobre a capacidade


representativa, na medida em que por ele somos
afetados, é a sensação. A intuição que se relaciona
com o objeto, por meio de sensação, chama-se
empírica. O objeto indeterminado de uma intuição
empírica chama-se fenômeno. Dou o nome de
matéria ao que no fenômeno corresponde à
sensação; ao que, porém, possibilita que o diverso
do fenômeno possa ser ordenado segundo
determinadas relações, dou o nome de forma do
fenômeno. (KANT, 2008, p.61-62)

Portanto, o agradável é ligado às sensações manifestadas pelas


faculdades dos sentidos. Estes deixam marcas e representações no ser
humano que os identificam imediatamente como algo que o apraz ou
não. “A resposta encontra-se na autonomia da vontade” (HÖFFE,
2005, p. 208), que, segundo Kant, é ligado ao interesse, visto que estas
formas de impressões do sentido determinam as faculdades de juízo.

- 140 -
Entretanto, “se uma determinação do sentimento de prazer ou
desprazer é denominado sensação, então esta expressão significa algo
totalmente diverso do que se denomino a representação de uma coisa
(pelos sentidos, como uma receptividade pertencente à faculdade do
conhecimento),sensação”. (KANT,p.42,2012)
Ao conhecer, com antecedência, a sensação o sujeito estará
condicionado a ter uma opinião antecipada acerca deste. Com isso, o
filósofo diz que os meios dos sentidos (olfato, paladar, audição, tato e
visão) são objetivos. “Leis necessárias que são válidas para todos os
casos e todas as inteligências” (DELBOS, 1969, p. 279)
Por outro lado, a sensação que deles é sentida, se mostra
subjetiva. Na voz de Kant vê-se, por exemplo, que “a cor verde dos
prados pertence à sensação objetiva, como percepção de um objeto
do sentido; o seu agrado, porém, pertence à sensação subjetiva”.
(KANT, p.42,2012).
E, por fim, a complacência no bom, que é mediada pela razão.
E, também, ligada ao interesse. O bom é influenciado por infinitos
conceitos. Nesse sentido é feita mediante a reflexão e na construção
de ideias. Conceituar o objeto apreciado e julgá-lo de acordo com seus
conhecimentos de mundo. “Pois o bom é o objeto da vontade (isto é,
de uma faculdade da apetição determinada pela razão)”.(
KANT,p.45,2012)
O próprio Platão também argumentava sobre o Mundo
Sensível (o mundo percebido pelos cinco sentidos). De acordo com

- 141 -
Silveira para “Platão [...] os conceitos éticos e estéticos, como de
Justiça, de Virtude e de Beleza, também são objetos do Mundo das
Idéias”. (2002, p.29)
Mas Kant vai além, pois funde dois princípios fundamentais do
pensamento filosófico moderno: o mecanicismo e o subjetivismo.
Nesse sentido cria uma substância racional de mundo que, por outro
lado, se resolve em puras relações. Com isso, a existência humana
também se divide em dois espaços: o mundo empírico, chamado de
fenomênico, sujeito às leis da mecânica; e o mundo da coisa em si, que
é racionalmente incognoscível. Fernandes (2007, p.87) completa:

Tal pode ser facilmente constatado em nós por


uma obscura distinção da Faculdade de julgar, à
qual o entendimento comum chama sentimento,
que para Kant é a forma subjetiva de cada ente
racional receber e distinguir, por intermédio da
faculdade do Juízo, as representações dadas
mediante fenômenos, e denuncia, assim, a
existência de algo mais nos objetos que não se
deixaria apreender pelos órgãos sensoriais, e tal é
a “coisa em si”

Comparando essa visão de Kant com a poética ceciliana,


percebe-se que esta mostra também um olhar de infinidade
direcionado à natureza e de interiorização das sensações que formam
o mundo do sujeito. “Esse caminho percorrido pela autora encontrou
suporte em autores como Shelley, John Keats, W.B Yeats, e mesmo
William Blake. Esses poetas apresentam em sua poesia referências a

- 142 -
uma possível compreensão de mundo onde há uma realidade
primordial, ou seja, o Absoluto” (MARCHIORO,2014, p.16)
Mas o desejo de Cecília pelo desprendimento dos vínculos
terrenos lhe dá um olhar mais amplo sobre o homem e sua existência.
Nessa perspectiva, Cecília tal como Kant possui uma proposta poética
voltada para a ascensão universalizante, visto que os poemas mostram
a desmaterialização do homem que vaga em dimensões do espírito na
busca de grandezas metafísicas.
Grosso modo, pode-se dizer que Immanuel Kant coloca o juízo
de gosto dentro de um contexto livre e desinteressado, evidenciando
um mundo poético, de tempos e espaços, que garante uma
temporalidade do desapego dos aspectos cronológicos e alcançando o
sentimento lírico de efemeridade de Cecília Meireles.
Nessa perspectiva, a primeira comparação possível que
podemos fazer acerca da filosofia Kantiana em Cecília Meireles, é a
observação do afastamento de qualquer identificação com a matéria
imediata, vista como limitadora.
Compreende-se que, nos textos poéticos de Cecília Meireles, o
assunto primordial é a fugacidade do tempo, tendo como causa basilar
o instinto que o eu-lírico possui de buscar a eternidade e o
transcendente. “Para evocar o passado em forma de imagem, é
preciso poder abstrair-se da ação presente, é preciso saber dar valor
ao inútil, é preciso querer sonhar”. (BERGSON, 1999, p.90)

- 143 -
E este “sonho” de poeta estende-se ao mencionado filósofo,
que observa a matéria como uma correspondência para um mundo
abstrato, onde é uma substância-tida a priori - que conduz o ser além
dele mesmo, ou seja, conserva um sentido figurado daquilo que o
pensamento quer realmente manifestar.
Assim o sentido “filosófico” de Cecília Meireles origina-se das
tentativas de buscar uma definição para os fenômenos da vida. E a
poetisa tem consciência da transitoriedade da existência. Para esta a
poesia se alcança como uma substância inconstante e
incompreensível: delicada matéria transcorrida pelo tempo.
Em O Motivo da rosa compreende tal pensamento:

Vejo-te em seda e nácar,


e tão de orvalho trêmula,
que penso ver, efêmera,
toda Beleza em lágrimas
por ser bela e ser frágil.

Meus olhos te ofereço:


espelho para a face que terás,
no meu verso,
quando, depois que passes,
jamais ninguém te esqueça.

Então, de seda e nácar,


toda de orvalho trêmula,
serás eterna. E efêmero
o rosto meu, nas lágrimas
do teu orvalho... E frágil...
(MEIRELES,2001)

- 144 -
Percebe-se que, nos versos anteriores, o eu lírico oferta à rosa
seus olhos – abrindo o campo da beleza – e perpetua o belo presente
na rosa por meio do poema. Com isso, depois do encontro com a
beleza, é invadido pela consciência das deformidades e limitações
deste mundo material e concede os versos do poema como condição
de superar os caminhos dolorosos do tempo. A voz poética mostra
compreender o breve percurso natural da vida.
Nota-se a influência da ideia do belo e do sublime Kantiano,
onde se visualiza a elevação dos valores individuais, a categoria
universal e o isolamento do mundo para proporcionar um estado
contemplativo das coisas.
Por mais afastado que esteja o ser de um poeta, ele tenta
repetir para si mesmo a criação, continuar, se possível, a exageração.
Então, a associação não é mais encontrada, suportada. É procurada,
desejada. É uma constituição poética, especificamente poética.
(BACHELARD, 1998, p. 257). Vejamos no Poema das súplicas essa
vontade de ser uno:

Eu quero ser igual


À terra negra,
Igual aos rios esquecidos,
Igual ao vento humilde,
Àquele que anda de rastro,
Chorando
(MEIRELES,2001)

- 145 -
Para tanto, esta preconiza a suspensão do tempo. Como algo
que não existe começo nem fim. Mas só existe:

Não seja o de hoje.


Não suspires por ontem...
Não queiras ser o de amanhã.
Faze-te sem limites no tempo.
(MEIRELES, 2001)

É como se a razão possuísse um tipo de lente, que filtra e dá


sentido ao mundo. Essa lente é a noção de tempo e espaço, formados
por nossa mente.
Assim, Kant entende a limitação dos sentidos humanos que não
pode conhecer tudo, porque nosso corpo está fadado ao engano e as
barreiras materiais. Questões, estas, que ficam além da compreensão
humana.
“E através da contemplação que o sujeito pode intuir e refletir
acerca daquilo que é contemplado. O sublime está ligado à grandeza,
por isso não deve ser procurado nas coisas da natureza, mas no
interior do espírito humano” (NASCIMENTO, 2014, p.1). Nota-se,
portanto, que o conceito de sublime em Kant na obra de Cecília é visto
quando a poeta mostra, em suas poesias, um olhar do qual percebe
uma dimensão de caráter mais elevada do que o belo.
Em Mar absoluto, por exemplo, o eu-lírico não se contenta
com a parte material e concreta do mar. Procura a sua plena e absoluta
manifestação: o sublime que se refere a um sentimento despertado

- 146 -
no sujeito que não se encontra na natureza, mas no espírito. Vejamos
nos versos:

Foi desde sempre o mar,


E multidões passadas me empurravam
como o barco esquecido
[...]
E fico tonta.
acordada de repente nas praias tumultuosas.
E apressam-me, e não me deixam
sequer mirar a rosa-dos-ventos.
[...]
Aceita-me apenas convertida em sua natureza:
plástica, fluida, disponível,
igual a ele, em constante solilóquio,
sem exigências de princípio e fim,
desprendida de terra e céu.
(MEIRELES, 2001).

Cecília Meireles, além de comunicar-se com a sua memória


afetiva, considera que há uma longa linhagem, na literatura ocidental,
que canta a passagem do tempo por meio do símbolo da rosa e trata
de refletir a respeito do papel da poesia perante o mundo, posto que
“os poemas em questão são de teor metaliterário” (SILVA, 2006, p.3).
A contemplação da natureza de Cecília permite entrever uma
dimensão espiritual oposta, que caracteriza o ser humano. Exemplo
claro é sua visão extasiada do sublime, nos fazendo perceber o divino
como um lugar idealizado pela vontade. “A partir de Viagem (1939), o
Absoluto passa a ser buscado e identificado no mesmo universo do eu-

- 147 -
lírico, sendo simbolizado pela música, mar, e encontrado no confronto
do eu-lírico consigo mesmo”. (MARCHIORO, 2014, p.80).
Assim, “do ponto de vista da conceituação filosófica, portanto,
há uma dupla abordagem que repõe o sublime entre o equilíbrio ideal
e um movimento que ultrapassa a razão, que toca o seu limite,
violentando-a: felicidade e infelicidade”. (SIMPSON, p.157). Vejamos
no poema Motivo:

Eu canto porque o instante existe


e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste: sou poeta.
(MEIRELES, 2001).

Por conseguinte, diz-se que o sublime, diferente do belo,


resume uma natureza mais profunda que causa inquietude, pois vai
além dela mesma e cria várias dimensões. Enfim, hoje, a estética
“lança luzes sobre pluralidade, liberando o acontecer do puramente
racional, ao mesmo tempo em que pode projetar luzes sobre a
formação, visto a estética compreender uma pluralidade de
experiências” (LAGO, 2011, p.30)
Observa-se que no mundo material é repleto de alegorias
simbólicas que equivalem a uma condição espiritual atingida. Em
Cecília Meireles, o eu-lírico ver inteiramente a partir do mundo
material a manifestação do divino. Ambos se defrontam com os
dilemas da existência de Deus, da eternidade e da emancipação do
homem.

- 148 -
Para Jean Chevalier e Alain Gheerbrant: "um símbolo é muito
mais do que um simples signo: transporta para lá da significação,
depende da interpretação e, esta, de certa predisposição. Está
carregado de afectividade" (CHEVALIER, GHEERBRANR, s/d, p. 13).
Porém, compete ao ser humano a chave para decodificar o
mistério (disfarçado de símbolo), para acessar o divino (sublime). No
Poema da ternura Cecília deixa visível o sublime como algo não
humano:

Se tu fosses humano,
As minhas mãos
Viveriam tecendo
Carinhos e sedas,
Para te darem trajes prodigiosos
De lenda...
Se Tu fosses humano,
Os meus olhos andariam acesos,
Noite e dia,
E tão postos em Ti
Que brilharias todo,
Como quem se houvera coroado
Com o sol...
(MEIRELES, 2001)

Percebe-se que na poesia enigmática de Cecília há certa


iluminação do ser, pois esta faz este deparar-se com o sublime. Nesse
sentido, o interlocutor é um ser divinizado, os versos são uma
dimensão que sucinta a luz no caos de sentimentos da poetisa. Por
conseguinte, o sublime kantiano é percebido na obra Cecília Meireles
quando esta contempla o mundo natural para chegar ao divino.

- 149 -
Nesse contexto a sua poesia se volta a um estado de
contemplação tanto do belo como do sublime. “Assim, mediante o
conceito de “coisa-em-si”, Kant pretende resolver a aparente
antinomia, ou, “figura de contradição” (GIACOIA, 2006, p. 21), que
surgiria da admissão da possibilidade de intuição de um objeto, antes
mesmo desse objeto nos ser dado a um dos órgãos dos sentidos e
unicamente no intelecto, aventando a possibilidade de solução com o
argumento que se segue”
Assim, para diferenciarmos o belo do não belo, Kant diz que se
deve, antes, expor a capacidade de representação do objeto, que não
se evidencia a partir do olhar objetivo, mas pela faculdade da
imaginação do sujeito.
“O sublime religioso se situaria, assim, em função da humildade
da fé, em vez do medo angustiado. Kant o definiria também a partir de
um respeito por nossa destinação, pela ideia de humanidade, e que
deve ser buscado “somente em nós”, movimento do espírito como
possuído por uma finalidade subjetiva, quer seja do poder de conhecer
ou desejar”. (SIMPSON, 2012, p.157)
Com isso entende-se que para Kant “o juízo é, pois, constitutivo
do objeto e, ao mesmo tempo, permite a unidade da consciência; é
apreendendo o objeto que eu me apreendo como sujeito”. Essa
reinvenção é constante e fugaz, pois na busca do que queremos a
partir de nossa vontade o próprio sujeito se refaz e entende o seu
interior. Nos versos a seguir percebe-se esse fato:

- 150 -
A vida só é possível
reinventada.
Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas…
Ah! tudo bolhas
que vem de fundas piscinas
de ilusionismo… — mais nada.
[...]
(MEIRELES, 2001)

O mundo é o próprio ser humano e suas transformações dadas


pelo tempo. Por conseguinte, “o conteúdo do tempo é o esquema da
qualidade; o tempo preenchido pela sensação corresponde à categoria
da realidade; o tempo vazio corresponde à categoria de negação”

Vem a lua, vem, retira


as algemas dos meus braços.
Projeto-me por espaços
cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira
da lua, na noite escura.
Não te encontro, não te alcanço…
Só — no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
Só — na treva,
fico: recebida e dada.
Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.
(MEIRELES,2001)

- 151 -
Nesse sentido, o belo, em Kant e Cecília, sugere uma finalidade
sem a ideia de fim. Noutras palavras: a beleza alcança uma finalidade
que não procura. Já que o belo é visto como algo que não é
intencionado a acontecer, não há começo nem fim ou tempo
determinado. Portanto é algo sem rumo definido. Mas é uma
manifestação de um instante do qual permanece dentro daquele que
o percebe. A poesia de Cecília compreendia essa sensação de
mutabilidade e fragmentação do ser humano:

Se eu nem sei onde estou,


como posso esperar que
algum ouvido me escute?
Ah! Se eu nem sei quem sou,
como posso esperar que
venha alguém gostar de mim?
(MEIRELES,2001)

É necessário compreendermos ainda que “Kant não pode


deixar de perceber o abismo que abrira entre o mundo da natureza e
o da liberdade. O que evidencia a consciência do tempo é a
transformação do ser humano. Manifestado no corpo e nas suas
ideias. Assim diz Kant “nenhum objeto poderia aparecer-nos sem ser
apreendido no espaço e no tempo”.
Ao olhar-se no espelho, o eu-lírico percebe a realidade do ser
humano como “ser-no-tempo” e infere que “o fundamento da
existência é o tempo finito”.

Tu tens um medo:

- 152 -
Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo o dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.
[...]
(MEIRELES,2001)

Existem também várias menções do transcorrer temporal nos


versos. Darcy Damasceno enfatiza este pensamento de fuga do tempo
como "mola mestra do lirismo ceciliano" (Damasceno, 1972, p. 17).
Assim, Cecília compreende que o tempo que permanece dentro do
homem é “a unidade do mundo na individualidade do ser”.
Por um lado, os objetos nos são dados na intuição como
fenômenos; por outro são pensados como “coisas em si” kantiana,
independentemente de toda intuição”.

Entre mim e mim, há vastidões bastantes


Para a navegação dos meus desejos afligidos.

Descem pela água minhas naves revestidas de


espelhos.
Cada lâmina arrisca um olhar, e investiga o
elemento que a atinge.

- 153 -
Mas, nesta aventura do sonho exposto à
correnteza,
Só recolho o gosto infinito das respostas que não
se encontram.

Virei-me sobre a minha própria existência, e


contemplei-a
Minha virtude era esta errância por mares
contraditórios,

E este abandono para além da felicidade e da


beleza.
Ó meu Deus, isto é a minha alma:

Qualquer coisa que flutua sobre este corpo


efêmero e precário,
Como o vento largo do oceano sobre a areia passiva
e inúmera...
(MEIRELES, 2001)

O espelho evidencia seu rosto atual e confirma a


transitoriedade da material. Mas o belo, no entanto, ainda está lá
vagando por entre o tempo:

Procuro pelo meu rosto


O tempo que se desprende.

Pela celeste ampulheta


flui-me a vida em cinza breve.

(MEIRELES,2001)

Portanto, ao refletirmos acerca do belo e do sublime vindos da


filosofia kantiano dentro da poética ceciliana, conclui-se que o belo

- 154 -
está ligado ao equilíbrio, ou seja, o entendimento harmônico com os
sentidos. Por sua vez o sublime causa uma inquietação dos sentidos,
pois estes percebem o objeto de maneira ampla e se deparam com o
divino. Mas tanto os belos como o sublime usam a habilidade
imaginativa e desapegada do mundo material.
Destarte, percebe-se que nos poemas cecilianos como: O
motivo da rosa, Poema das súplicas, Mar absoluto, Viagem e Motivo
há a noção de belo e sublime no pensamento kantiano, onde o belo se
dá a partir da apreciação que cada ser humano faz de algo: belo é a
apreciação da natureza exterior das coisas e o sublime a contemplação
da grandeza de um objeto que se percebe na natureza interior do
espírito do sujeito, onde o tempo e o espaço são os mediadores.

- 155 -
Referências

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- 158 -
O caminho do herói: o phármakon em Tristão e Isolda

Thamires dos Santos M. Fassura

Introdução
Cabe começar este capítulo com algumas indagações acerca do
herói: por que o herói, em quase todas as narrativas, nunca é
associado a uma figura paterna? Por que seu caminho é o do êxodo?
Por que tentando remediar os desacertos do mundo a sua volta, acaba
por deslocá-los ao invés de eliminá-los? Por que em seu processo de
busca, às vezes, deixa decair sua nobreza, mostrando um lado
condenável? Por que sua vida é também um percurso da morte? Todas
estas questões têm uma única resposta: o caminho do herói é o
caminho do phármakon.
A palavra acima, proposta por Derrida (1991) no livro A
farmácia de Platão, conceitua a estrutura e os efeitos da escritura,
que, destituída da presença do logos, segue em deslocamento
contínuo, no qual suas forças internas de remédio e magia ocultam sua
identidade, ou melhor, conferem-lhe uma não identidade, cujo efeito
é sempre o caminho de vida e morte. Todavia, aqui a utilizaremos
sobre outro prisma, não apenas para retratar a escritura como um
todo, mas para observá-la sob a representatividade do herói. Para
melhor exemplificar isto, abordaremos o livro Tristão e Isolda escrito
- 159 -
por Bédier (2006) e o filme homônimo dirigido por Kevin Reynolds
(2006), demonstrando como o caminho do herói é o caminho do
phármakon.
Bédier e Reynolds não são os criadores deste mito celta, na
verdade, este mito teve início em canções trovadorescas, passando
por releituras em poemas, ópera, enfim, foi (re)exposto e (re)moldado
por diversas linguagens, contendo pontos diferentes em cada versão.
Nesse sentido, nas obras literária e cinematográfica por nós
selecionadas são notórias as diferenças, todavia, elas não se devem
apenas pela diferença dos suportes, mas principalmente por se
tratarem de propostas diferentes. No livro de Bédier (2006), o herói
está num plano fantástico, no qual a magia interfere no desencadear
da história; já no filme de Reynolds (2006), o herói está num plano
mais realístico, há uma tentativa de determinar que aquela seja uma
“história real”, ou seja, de desconstruir o mito.
Entretanto, mesmo com uma simbologia diferente, o caminho
percorrido pelo herói é o mesmo. Tristão perde os pais, sai de sua
terra, serve ao rei Marc como bom vassalo, arrisca a vida, é curado por
Isolda, apaixona-se perdidamente por ela, a paixão é proibida, Isolda
fora conquistada pelo herói para que se tornasse rainha do rei Marc, o
herói trai seu rei e morre. Então, observaremos as diferentes
representações do herói no caminho do phármakon, no qual ciência e
magia revelarão que embora possam sanar uma doença, também
podem criar uma, pois, o percurso do phármakon resulta em dois

- 160 -
efeitos: um benéfico e outro maléfico, porém, segundo Derrida (1991),
nem mesmo a virtude benéfica o impede de ser doloroso, como um
filtro está destinado alterar a luz, ou seja, é fonte de deslocamento
ontológico de quem o percorre, pois neste caminho o herói é rei e
escravo ao mesmo tempo:

O herói, deus ou deusa, homem ou mulher, a figura


de um mito ou o sonhador num sonho, descobre e
assimila seu oposto (seu próprio eu insuspeitado),
quer engolindo-o, quer sendo engolido por ele.
Uma a uma, as resistências vão sendo quebradas.
Ele deve deixar de lado o orgulho, a virtude, a
beleza e a vida e inclinar-se ou submeter-se aos
desígnios do absolutamente intolerável. Então,
descobre que ele e seu oposto são, não de espécies
diferentes, mas de uma mesma carne. (CAMPBELL,
2007, p.110)

Tiraremos assim, a identidade rígida do herói, para a


designarmos segundo o efeito desconstrutivo do phármakon,
sobretudo relacionando seu efeito no relacionamento com a figura
paterna.

Órfão errante na busca do pai


Tristão nascera sobre mau auspício, filho da tristeza, “E como
vieste ao mundo por tristeza, terás o nome de Tristão” (BÉDIER, 2006,
p.2). Tendo seu pai morrido em guerra por traição e sua mãe pela
saudade dele, foi amparado pelo fiel escudeiro de seu pai e cresceu
acreditando ser filho daquele que o acolhera quando órfão. Mas, por

- 161 -
obra do destino fora raptado em seu país, e, depois entregue à sorte
do mar, acabou aportando nas Cornualhas, onde fora apresentado ao
seu tio materno ainda como um vagante desconhecido, e, enfim,
quando os laços sanguíneos são revelados descobre uma nova
representação paterna. Diferentemente do livro, na adaptação
cinematográfica do diretor Kevin Reynolds (2006), Tristão tem parte
de sua infância assistida por seus pais, todavia num dia em que as
tribos celtas decidem assinar um tratado para estabilizar a situação da
Grã-Bretanha, a Irlanda os ataca. Tristão sobrevive, mas seus pais
morrem. Então, lorde Marc o abriga em seu coração como a um filho.
Mesmo com versões diferentes sobre a perda de seus pais, é para
tentar remediá-la, que o órfão, mesmo sem o saber, inicia a busca pelo
phármakon. Sendo este inicialmente um processo de procura, o que
se dará é o deslocamento do herói, ele percorrerá o caminho de
desorientação, pois suas ações não serão para o simples cumprimento
da palavra do rei Marc, embora seja esse o seu desejo inicial.
Na obra A farmácia de Platão, Jacques Derrida (1991), ao
analisar a origem e estrutura da escritura, demonstra que ela é um
descaminho, pois “Começa-se por um repetir sem saber ─ por um mito
─ a definição de escritura: repetir sem saber” (DERRIDA, 1991, p.18).
Isto é, comparada ao discurso racional que tem por suporte um pai
presente, que o profere e lhe testifica a veracidade, a escritura segue
o caminho inverso, pois só existe na ausência do pai. Logo, não tem
origem e está desatrelada do presente, corre solta num tempo

- 162 -
múltiplo que se esvazia e se enche de diversos contextos a cada
deslocamento no espaço em que é repetida. Mas, para, além disso,
esse “repetir sem saber” é um processo de procura, de tentar
preencher a ausência de um pai, para recriá-lo, pois embora a escritura
tenha por especificidade a ausência do pai, ela também deseja quem
a reconheça. Quando em A farmácia de Platão, Derrida (1991) retoma
o mito do deus da escritura, o deus Theuth, demonstra que este ao se
dirigir ao deus dos deuses para apresentar sua técnica (escritura)
afirma que ela será o remédio para memória e instrução, mas o deus
dos deuses, como rei da fala, a condena, pois insiste que a escritura
não serve para memória e sim como uma recordação, assim estaria
longe do plano da experiência, cuja fala tem pertencimento. No
entanto, isto nos revela que a escritura também é uma forma de suprir
a ausência da fala (pai/lógos). Seria uma forma de recordá-la sem a sua
força presente, seria uma forma de representá-la. Com isto,
percebemos que a relação da escritura com a figura do pai se dá de
três formas: a perda do pai, a representação do pai perdido para
conferir valor a si e a supressão do pai.
Tristão, então, por ter perdido o pai por morte violenta, e,
mesmo tendo tido um pai adotivo, sofreu com a drástica ruptura
genealógica, perdendo o contato presente com pai e com isto a
memória dessa relação. Logo, o herói parte do que seria o descaminho,
a recordação criativa que é seu único meio de representar um pai. Ele
é um mito de busca pelo pai (discurso racional, lógos), ele procura uma

- 163 -
fala que lhe testifique seu valor: “A figura do pai, sabe-se, é também
aquela do bem (agathón). O lógos representa isto ao que ele é
devedor, o pai que é também um chefe, um capital e um bem. Ou
antes, o chefe, o capital, o bem” (DERRIDA, 1991, p.26). Na obra
literária, Tristão cresceu como filho de um escudeiro, quando na
verdade era rei do país de Loonnois, viveu em sua terra como servo
daquele que assassinara seu pai. E, depois nas Cornualhas, país em que
seu tio, ainda não reconhecido, reinava, Tristão é encontrado por seu
pai adotivo, Rohalt, que prova sua estirpe real e seu laço sanguíneo
com o rei das Cornualhas: “─ Rei Marc, este é Tristão de Loonnois,
vosso sobrinho, filho de vossa irmã Blanchefleur e do rei Rivalen. O
duque Morgan governa sua terra muito injustamente; é hora de ela
voltar ao seu herdeiro de direito” (BÉDIER, 2006, p.7). No filme, Tristão
sabe da sua linhagem, não é filho de um rei, e sim de um nobre, mas
além da perda do pai, perde também sua terra e torna-se vassalo do
rei Marc, que mesmo sem o laço sanguíneo o ama como a um filho.
A ligação entre o livro e o filme está no fato de Tristão desde
criança sofrer a intervenção do phármakon, perdendo ao mesmo
tempo um modo de discurso, um valor e a identidade. Por isto, tenta
encenar o pai, sobretudo, um que o valorizasse, na figura do rei Marc,
que representa o resgate de sua origem, que pode conferir a ele o
status de lógos, afinal o rei faz cumprir as leis e as dita, tendo por base
um discurso racional, no qual a honra e o dever demonstram sua
essência. Isto denota duas coisas: a primeira é que Tristão e o rei Marc

- 164 -
representam discursos diferentes, o primeiro está na ordem do
emocional e o segundo está na ordem do racional; e a segunda é que
estas instâncias distintas produzem efeitos contrários ao desejo do
herói. Infelizmente, suas tentativas de provar que o amor que sentia
pelo rei não era fundamentado no desejo de angariar riquezas, e de
tentar sempre cumprir as ordens deste como vassalo, o levam a um
caminho sem volta, cujo efeito a ele destinado é o oposto do que
desejava:

As folhas da escritura agem como um phármakon


que rexpulsa ou atrai para fora da cidade aquele
que dela nunca quis sair, mesmo no último
momento, para escapar da cicuta. Elas o fazem sair
de si e o conduzem por um caminho que é
propriamente de êxodo. (DERRIDA, 1991, p.14)

Entretanto, o caminho do phármakon não é reversível, um


lógos perdendo o pai tornar-se-á um phármakon, mas um phármakon
não pode ressuscitar o pai, exceto representá-lo, e isto já o caracteriza
como um desvio. Ele não possui um chefe, deseja um capital e seu
valor é dúbio, o que, ao mesmo tempo, o liberta de uma identidade
fixa também o torna escravo de um deslocamento continuo de si.
Logo, Tristão, não ciente dos efeitos deste caminho que percorre, verá
que não tem o domínio de seu próprio destino. Cobiçará algo muito
mais importante para o rei e com isto tornar-se-á traidor do pai que
outrora desejava, assim irá suprimi-lo, e perderá parte do valor
conquistado.

- 165 -
E, este descaminho do herói irá se desenrolar à medida em que
se afastar do pai, ultrapassando o limiar entre o conhecido e o
desconhecido, provando numa sucessão de eventos os efeitos do
phármakon. No livro o herói fará uma travessia, envolto por uma
atmosfera mágica, mostrando-se quase um deus. No filme também
será testado, mas numa atmosfera em que um desatino seu custará a
vida de um povo como escravo e a morte de seu rei. Mas em ambos o
herói trará sobre si um fim trágico, pois sendo o seu caminho o do
phármakon jamais terá um relacionamento simples na domesticidade
do lógos.

Esse phármakon, essa “medicina”, este filtro, ao


mesmo tempo remédio e veneno, já se introduz no
corpo do discurso com toda a ambivalência. Esse
encanto, esta virtude de fascinação, essa potência
de feitiço podem ser ─ alternada ou
simultaneamente ─ benéficas e maléficas.
(DERRIDA, 1991, p. 14)

Tristão é o discurso do mito, um invólucro vazio, que será


preenchido pelo caminho que seguir, tornar-se-á, assim, o próprio
caminho percorrido, no qual poderá, alternada e simultaneamente,
ser benfeitor para si e para o mundo, seguro de seu caminho, como
também, inimigo de si mesmo, incerto de suas certezas e incertezas.

- 166 -
A travessia do limiar e o retorno: os efeitos do phármakon
O phármakon é o caminho do êxodo, pois conduz o herói para
fora de seu círculo social. Segundo Joseph Campbell (2007) em seu
livro O herói de mil faces sobre os arquétipos míticos, todo herói tem
um chamado, e, quando o aceita, é transportado para uma terra
desconhecida, na qual figuras e forças ambíguas tornar-se-ão parte de
seu novo caminho, e o farão conhecedor de si. E, em A farmácia de
Platão Derrida (1991) afirma que o phármakon incompatível com a
verdade leva os homens para fora de si. Os dois argumentos denotam
que o phármakon de certo modo é o caminho da autoaniquilação, em
que o herói abre mão de si. Mas tratando-se do herói de Tristão e
Isolda este descaminho da identidade, por vezes aparece de forma
dúbia, pois está sempre disposto entre o ir e o ficar. O herói desde o
início de sua jornada já está no plano do phármakon, mas também não
abre mão do lógos, pois tende sempre a se voltar para a figura do rei
Marc.
Diferentemente do lógos que parte do interior para o exterior,
do pai para o filho, de quem profere para o proferido, o phármakon
parte de fora para dentro. É considerado por Derrida como uma
substância artificial, não natural. Ele representaria, pois, na obra de
Bédier (2006), as formas ambíguas que perfazem a trilha do herói que
na maioria das vezes aparecem sobre o invólucro de uma força
benigna. Acolhidas como sendo uma espécie de solução para seu ser,
essas forças na verdade têm também um efeito destrutivo, pois a

- 167 -
desconstrução da identidade e sua contínua transformação é um
processo doloroso, no qual o phármakon, remédio e veneno ao
mesmo tempo, conferem ao herói força e fraqueza, o eleva ao status
de um deus e também o condena a uma forma terrena e trágica,
fazendo-o transitar entre dois mundos.
Na obra literária, Tristão, ao selar o pacto de vassalagem com
o rei Marc – “Ao rei Marc, deixarei meu corpo; sairei deste país,
embora ele me seja muito caro, e irei servir ao meu senhor Marc nas
Cornualhas”. (BÈDIER, 2006, p.8) –, cria para si o percurso diferente,
no qual forças mágicas irão operar. Por duas vezes se coloca em perigo,
tudo para provar seu valor, para tentar recriar em sua vida a
luminosidade do lógos. Todavia, sem o saber, sua trilha o conduzia
para o afastamento da figura paterna, pois “ciência e magia, passagem
entre vida e morte [..]” (DERRIDA, 1991, p.38), o apresentariam àquela
que conduziria seu destino. Quando Morholt, o gigante guerreiro da
Irlanda, fora subjugar o povo das Cornualhas, ameaçando-o a pagar
tributo humano, trezentos jovens que se tornariam escravo, dizia
“Então, belos senhores cornualheses, já que este partido vos parece o
mais nobre, sorteai vossos filhos e levá-los-ei! Mas eu não acreditava
que este país fosse habitado só por escravos”. (BÉDIER, 2006, p.10),
Tristão levantou-se e decidiu combatê-lo para libertar o povo e provar
ao rei seu valor. Ele e Morholt, cada um em seu barco, saem das
Cornualhas e rumam a uma ilha. Morholt amarra seu barco, e fica
perplexo quando percebe que Tristão não amarrou o seu, e então

- 168 -
pergunta qual o motivo disto, ao que Tristão responde: para quê se
apenas um de nós retornará. O herói vence a batalha, todavia ferido
pela lança envenenada de Morholt sofre com seus efeitos, sobretudo,
o fato da ferida exalar um cheiro pútrido que afasta até mesmo o seu
rei. Não encontrando cura pede que seu tio lhe prepare um barco:
“Quero que ele me leve para longe, sozinho. Para que terra? Não sei,
mas talvez para onde encontre quem me cure. E talvez um dia servir-
vos-ei ainda, bom tio, como vosso harpista, vosso caçador e vosso bom
vassalo” (BÉDIER, 2006, p.13). Observando essa síntese sobre a
travessia de Tristão, percebemos dois pontos importantes: o primeiro
é o fato de todos em sua volta e até mesmo o rei serem considerados
escravos por Morholt, isto denota o quanto o lógos é um caminho
fixado, no qual nem mesmo quem o profere (o rei) tem o poder de
mandá-lo para longe de si, para enfrentar a morte, afinal, o lógos é o
caminho da vida, “os entes-vivos, pai e filho, anunciam-se a nós,
relacionam-se mutuamente na domesticidade do lógos” (DERRIDA,
1991, p. 26), isto é, nele há uma relação de dependência; o segundo
ponto é o fato de que o caminho do phármakon é uma entrega à
morte, pois o “deus da linguagem segunda e da diferença lingüística,
Thot só pode se tornar o deus da fala criadora por substituição
metonímica, por deslocamento histórico e, por vezes, por subversão
violenta” (DERRIDA, 1991, p.34), todo esse processo é de morte, e
somente ele garante que o herói possa seguir para um mundo mais
amplo.

- 169 -
No filme, Tristão luta com Morholt, mas não sai das Cornualhas
para isso, na verdade o combate é uma resposta quase que tardia, pois
o guerreiro da Irlanda já levava os escravos. Quando o herói o
enfrenta, numa luta nada fácil, acaba ferido pela espada de Morholt
que tinha a lâmina envenenada. Os fatos são parecidos no livro e no
filme, todavia Tristão é posto em um barco, não por esperança de
encontrar uma cura, mas num rito fúnebre, pois fora dado como morto
por seus companheiros e sequer teve a oportunidade de se despedir
de seu rei. Este quando soube da morte de Tristão, perguntou-se se
teria o amado como um filho ou apenas o tinha usado para seus
propósitos. Entretanto, embora o herói do filme não tenha se apartado
de seu mundo para enfrentar sua primeira prova, ele também foi
entregue ao mar, ao destino.
Derrida afirma em sua análise que o deus da escritura também
é o deus da morte. O fato é que a escritura é em si um jogo de morte
e vida, no qual o poder está no simulacro, ou seja, uma casca que se
assemelha a uma referência viva do real, mas sua parte interna não
está no âmbito da realidade, não é aquilo a que se assemelha. Sempre
enfatizando o veneno que é o phármakon, “Ele fez um veneno passar
por um remédio” (DERRIDA, 1991, p.45), o autor nos faz refletir que,
embora o caminho do phármakon possa salvar, remediar uma doença,
ou uma situação, ele não é menos doloroso por isso. Assim, o herói
conhecerá a figura da deusa que cria, preserva e destrói a um só
tempo, conhecerá Isolda a mulher que será o seu todo na história.

- 170 -
Em terras inimigas o herói foi curado por Isolda, a bela dos
cabelos de ouro, filha do rei da Irlanda, pois ela detinha o
conhecimento sobre os filtros de cura: “Mesmo que esteja morto, e só
um phármakon pode deter tal poder sobre a morte, sem dúvida, mas
também em conluio com ela. O phármakon e a escritura são, pois,
sempre uma questão de vida ou de morte” (DERRIDA, 1991, p. 52).
Portanto, o herói tendo sentido o efeito de seu deslocamento
(phármakon) ficará à mercê de outro que o curasse, e quando sentir o
veneno deste que foi cura, procurará outro. Por fim, o que se tem,
quando se trata das virtudes do caminho do phármakon, é o espaço
vazio em que reverbera o movimento atroz do seu conflito. E, é este
simulacro onde os contrários se movem e trespassam um ao outro,
que o torna detentor de poder sobre a morte, capaz de trazer à vida o
morto. Então, tendo em vista que o que sempre se acha em sua
jornada é contrário do que se busca como afirma Derrida “seu desenho
é tal que, por uma indecisão sistemática, as partes e os partidos
trocam frequentemente seus respectivos lugares, imitam formas e
servem-se dos caminhos do adversário” (1991, p.55), o herói decerto
não encontrará bem a cura, e sim o fator entorpecente do caminho
phármakon, que manipulará ardilosamente seu destino.
Na adaptação cinematográfica, o herói se apaixona por quem
o curou, Isolda. Há um discurso que mostra o rompimento com o lógos
por parte de Isolda. Ela não quer obedecer ao pai casando-se com
Morholt, que ela descobrirá depois fora morto por Tristão, o homem

- 171 -
que ela curara e amava. Porém, por receio de que descobrissem seu
amante, diz que ele deve fugir, para não ser morto. E, então, Tristão
se vê obrigado a fugir, e sem o saber carrega no peito o nome falso,
que Isolda lhe ofertara como identidade. Quis ela remediar o problema
dos contrários, o fato dos dois pertencerem a países inimigos, achando
que isto aliviaria a condição de amantes errantes. Assim, nega sua
identidade. Na obra literária, o herói foge da Irlanda, exatamente pelo
contrário, por saber a identidade da princesa que lhe curou. Mas é
comum às duas artes o fato de Tristão retornar às Cornualhas, como
vindo do mundo dos mortos, ficando sob eterna desconfiança
daqueles que o invejavam:

[..] mas por que magias pôde ele, quase morto,


vogar sozinho sobre o mar? Qual de nós, senhores,
dirigiria uma nau sem remos nem vela? Os mágicos
podem fazê-lo, é o que dizem. Depois, em que país
de sortilégio pôde ele achar remédio para suas
chagas? Certamente, ele é um bruxo; sim, sua
barca era fada e igualmente a espada, e sua harpa
é encantada, vertendo a cada dia venenos no
coração do rei Marc! (BÉDIER, 2006, p. 17)

A acusação é de que Tristão é um mentiroso, com poder capaz


de hipnotizar o rei, vertendo veneno em seu coração. A citação a cima
nos remete a separação entre lógos (rei Marc) e phármakon (o herói).
O primeiro no plano da verdade e o segundo no plano da mentira, mas
restringir assim o phármakon seria lhe dar uma identidade simples, e
talvez fácil de combater, se esse fosse o interesse do lógos. Contudo,

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se tratando desta obra o que percebemos é que o caminho do
phármakon, mesmo que quisesse, não poderia ser combatido, ele não
pode ser alterado, como se quem seguisse sua trilha dominasse o
percurso. Pois como atacar, aquilo que se oculta, que se faz outro, que
se faz o outro do lógos, mas que também é ele mesmo? Não há como,
principalmente se o phármakon estiver no interior de quem anda por
seus desfiladeiros, o caminho torna-se o próprio caminhante. Ora, se
por um lado o herói tentou criar um pai, e para tanto ofereceu seu
corpo para servir ao rei Marc, rogando à memória de seu tio seu valor
como cavaleiro, tendo voltado do mundo dos mortos, conseguira tocar
o coração de seu tio tão definitivamente, que este desejou que ele
fosse seu herdeiro. Por outro lado, a quase morte acabou por lhe
mostrar que essa relação nunca seria simples, sobretudo, com os olhos
agudos dos outros vassalos do rei acusando-lhe de usurpador
feiticeiro. Para sanar o problema, Tristão decide conquistar uma
esposa para o rei, para que ele tivesse um filho legitimo como
herdeiro. Ou seja, ele reconhece o seu não lugar, e que ele não pode
nunca ser um primeiro, sempre estaria a serviço do rei. Afinal, ele está
na instância do phármakon e este é secundário, pois como afirma
Derrida, ele é uma técnica, o rei está na instância da fala, do discurso
racional, todos seguem suas ordens, é um primeiro.
No entanto, o que deveria sanar os problemas, na verdade
tornar-se-á um novo, e, até pior. O herói tonará às terras inimigas, para
conquistar uma esposa para o rei Marc, mas por infelicidade do

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destino, ela e ele já se conhecem, ela foi quem o curara. Na obra
literária Tristão retorna à Irlanda com seus vassalos para conquistar
Isolda para o rei, sabendo quem ela era. Como estava em terra inimiga
tinha de arranjar um jeito de conquistá-la sem que isso lhe custasse a
morte dos seus homens, então, ouvindo que a mão dela seria
concedida a quem matasse o dragão que assolava aquela terra, não
hesitou e partiu para o combate. Todavia, guardando a língua do
dragão em suas roupas para ter uma prova de que matara a fera,
sofreu com o veneno e novamente foi parar nas mãos de Isolda para
ser salvo. Isto ocorreu, porque um homem que Isolda sabia ser um
grande covarde havia aproveitado a situação, vendo o dragão morto e
nenhum guerreiro quis tomar os despojos para si. Ele queria tê-la por
esposa, mas ela não deixou se enganar, saíra na busca de algo que
revelasse a mentira do infame cavaleiro, e em sua busca encontrou
Tristão caído. Novamente curara o herói, entretanto nutria ódio pelo
seu nome antes de conhecê-lo, pois ele havia matado seu tio Morholt.
Contudo, o herói mostra-lhe que não havia motivos para esse ódio, já
que ele estava no direito de combate, então ela aceita que ele seja o
campeão, e indo ter com seu pai afirma que o verdadeiro salvador de
sua pátria fora Tristão, e seu pai aceita que o herói a leve para tonar-
se rainha das Cornualhas. Isolda quando descobre que na verdade não
seria o herói seu esposo, fica ressentida, mas aceita seu destino. E tudo
vai bem, até que os dois na viagem às Cornualhas bebem um filtro de
amor. No filme, o herói, irá conquistar a filha do rei em torneio para

- 174 -
que se cumpra um tradado de paz com a Irlanda e a união das tribos
celtas, e por crueldade do destino Tristão acaba conquistando a sua
amada para seu rei. Derrida, analisando a artificialidade do
phármakon, sustenta a ideia de que todo ser vivo comporta prazos de
vida definidos, assim também como uma doença, que em sua
naturalidade também possui uma durabilidade. Então, se
contrariamente se extirpa uma doença antes de seu prazo, dela
surgem outras doenças, assim o problema não é eliminado e sim
deslocado:

O mesmo se passa para a composição das doenças.


Se, pela ação de drogas (phamakéiais), pomos fim
à doença antes do término fixado, de doenças leves
nascem então, de ordinário, doenças mais graves
e, de doenças em pequeno número, doenças mais
numerosas. [...] não se deve, drogando-se
(pharmakeúonta), irritar um mal caprichoso.
(DERRIDA, 1991, p. 48)

Percebemos que o cavaleiro toma o caminho do phármakon


por remédio, ludibriando a si mesmo quanto às causas dos problemas
e a solução terapêutica. Esquecendo, pois, das virtudes ocultas do
deslocamento, sente que pode administrar todos os problemas. No
entanto, solucionar os problemas, acabou por torná-los piores, pois
desejando aplacar a falta do pai, acabou por afastar seu tio e rei, tendo
sido salvo pela primeira vez, voltou para as garras da morte, tendo sido
salvo pela segunda vez, achou que os ventos lhe eram auspiciosos e se
enganou, e por uma única vez, tornou-se totalmente perdido, pois saiu

- 175 -
do plano de filho para vassalo e de vassalo para traidor do rei. Uma vez
curado no caminho do phármakon, por ele também ficara doente. Se
ele o trouxera à vida, com ele bebera a morte. O phármakon que antes
era o caminho, agora já se infiltrou no discurso do herói e ele não pode
mais ser outro, senão sob a encenação que o phármakon lhe permite.
Contudo, nesta nova perspectiva o herói terá de escolher preservar o
que lhe resta do lógos ou abrir mão do amor pelo rei para ficar com
Isolda. Assim, ele passará do herói de uma causa de um povo, para
tomar o aspecto dos romances de cavalaria, sempre tentando unir-se
a sua dama, tentando mantê-la num véu de pureza, tentando manter
seu amor numa idealização sagrada. Viverá dividido entre o amor e o
dever.

O filtro e a tragédia
O phármakon é um caminho, uma substância e uma identidade
para o herói, nas releituras aqui analisadas. Como caminho, implica
deslocamento; como substância, implica efeitos colaterais não
esperados; e como identidade, revela a desconstrução do sujeito em
relação a sua identidade de origem, que primeiro é social e
dependente. Assim, ele participa do que é visível e invisível, do corpo
e da alma. Quando na obra literária e na adaptação cinematográfica
Isolda entra na vida de Tristão, ela desencadeia uma transformação
espiritual e física no herói. Ela representa a entidade que está do outro
lado, que deveria ser o oposto, mas, na verdade, ela é o outro do herói.

- 176 -
Isolda tem conhecimento da alquimia, deseja afastar-se do pai, e, não
menos importante, pertence a uma terra inimiga. Na obra literária,
quando os dois bebem do filtro de amor achando que era vinho, a
camareira de Isolda, que deveria ter guardado a bebida que era para
selar a união de sua senhora com o rei Marc, diz: “Desgraçada! Maldito
seja o dia em que eu nasci e maldito seja o dia em que subi nesta nau!
Isolda, minha amiga, e vós, Tristão, foi a vossa morte que bebestes!”
(BÉDIER, 2006, p. 30). Este trecho retrata o phármakon como
substância que sai do controle, ela ao invés de trazer a cura, serve
apenas para confirmar a doença, isto é, Tristão e Isolda já estavam
apaixonados, a bebida só os fez reconhecer o sentimento:

O phármakon é esse suplemento perigoso que


entra por arrombamento exatamente naquilo que
gostaria de não precisar dele e que, ao mesmo
tempo, se deixa romper, violentar, preencher e
substituir, completar pelo próprio rastro que no
presente aumenta a si próprio e nisso desaparece.
(DERRIDA, 1991, p. 57)

E, assim, os dois são retirados da instância social a que pertence


o lógos, pois o casamento de Isolda com o rei Marc era um contrato
social que traria equilíbrio ao reino nas Cornualhas. Seria uma união
no campo lógico de um interesse. Mas sua relação com Tristão não
pode ser sublimada, pois era diferente, era amor, um intercurso
individual de identificação, eles eram um só no descaminho em que
seguiam. Segundo Joseph Campbell (2012), os trovadores exaltam as

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agonias do amor, enfermidade que os médicos não podem curar,
feridas que só podem ser curadas por quem as provoca. O amor
representaria para eles o apego individual: se a Igreja, na época,
pregava e impunha condutas, cujo principal efeito era o sustento da
sociedade, o trovadorismo fazia o caminho contrário, colocava o
indivíduo no centro. Na obra literária, a poção contribui para que o
próprio amor seja visto como phármakon. Por sua força oculta, ele
surge de um encantamento, mas isto, além de carregar a simbologia
de sua força, é também um artifício para justificá-lo ante a religião
cristã que condenaria esse tipo de amor. No filme, não há poção,
exceto os remédios usados por Isolda para curar Tristão. Eles
apaixonam-se sem o artifício da magia. O que é comum, em ambas as
linguagens, é o efeito que o amor provocará na vida dos amantes, uma
oposição entre o lógos e o phármakon ocasionando a tragédia, pois o
herói, voltando à presença do rei, tentará manter os dois discursos.
Sobretudo, tentará mover o que em essência não possui identidade,
para o campo da identidade.
Quando Derrida lança mão deste conceito de phármakon, a
discussão gira em torno de esquemas binários: fala/escritura,
escritor/leitor, dentro/fora, remédio/veneno. Mas o fato é que o
phármakon ultrapassa estes limites, ele não pode ser definido nem
mesmo por pares opostos, pois “não tem nenhuma identidade ideal,
ele é aneidético, e primeiro porque ele não é monoeidético [..]”
(DERRIDA, 1991, p. 73). Mas ele nem sempre está em oposição, e, às

- 178 -
vezes, sob uma aparência maléfica, pode ter um efeito bom. O seu
lado nocivo existe apenas quando, por ingenuidade, tentamos
dominá-lo como um conceito simples, pois o seu sistema é complexo,
e, embora seja um elemento artificial, seus efeitos participam no ser
de quem os experimenta. Ele tem um poder de repetição, que pode
duplicar a causa do sofrimento; não é somente um remédio, ele
extirpa mal de um local, mas, irreversivelmente, multiplica a doença,
ou a torna mais forte na medida em que a desloca. O herói ao analisar
seu percurso confessa:

Andret, Denoalen, Guenelon e Gondoine, biltres


que me acusáveis de cobiçar a terra no rei Marc!
Ah! Sou ainda mais vil! E não é a sua terra que
cobiço! Belo tio, que me amastes órfão antes
mesmo de reconhecer o sangue de vossa irmã
Blanchefleur, vós que choráveis com ternura
quando vossos braços me levavam até a barca sem
remos nem vela, belo tio, quando não deveis vós,
desde o primeiro dia, ter procurado a criança
errante para vos trair? (BÉDIER, 2006, p. 31)

No filme, o herói confessa que está dividido, fica atordoado


pelo sofrimento e culpa, pois, no início, assim que Tristão descobre
que conquistou sua amada para seu tio, há uma contenção do
sentimento, ele insiste para que os dois vivam conforme o dever, com
isto, sofre pela separação. Todavia, cedendo à paixão, vive em
constante sofrimento, pois se sente culpado pela dor causada ao rei
Marc. Percebemos que o sujeito é construído por representações de

- 179 -
ações diversas que sempre mudam, nada nele é fixo, exceto o fato de
representar fatos que se encadeiam contra a experiência comum,
contra o lógos, capaz de suscitar no pai o temor, o terror e a
compaixão. Na obra, a força do phármakon em todas as formas e
simbologias representadas reside na tragédia. Aristóteles (2011)
afirmava que a tragédia transpunha os limites dos caracteres que
qualificam o homem em bom ou mal, para nos revelar os sintomas de
suas ações: infelicidade ou felicidade. Entretanto, nas releituras aqui
analisadas essa fronteira entre os sintomas inexiste: a felicidade do
herói também é sua tristeza, e sua tristeza é sua felicidade, uma não
existe sem a outra, o phármakon é sempre em causa e feito colhido
como mistura. Por estes atributos, o herói consegue enganar o lógos
até mesmo quando repete seu discurso. Isto se torna claro no capítulo
nove, intitulado “O grande pinheiro”, no qual Tristão e Isolda,
percebendo que o rei estava de tocaia na floresta tentando flagrá-los
em sua traição, criam um discurso em que a mentira passa por
verdade, eles deslocam sua culpa de tal maneira que o rei se sente
envergonhado pela suspeita. No capítulo doze, “O julgamento pelo
ferro em brasa”, os amantes usam o sistema de julgamento do lógos
para afirmar a inocência de Isolda. Neste julgamento Isolda deveria
jurar que não tinha amor que fosse reprovável pelo herói, e, colocar as
mãos no ferro em brasa, se saísse ferida seria culpada, caso contrário
inocente, então astuciosamente ela avisa a seu amigo para que ele sob
um disfarce de peregrino compareça ao local de seu julgamento, como

- 180 -
ela teria fazer a travessia da barca até a terra, usou a desculpa de que
não queria se sujar de lama, e então foi carregada pelo peregrino
(Tristão), e antes de colocar as mãos em brasa disse: “juro que jamais
homem algum nascido de mulher me teve em seus braços a não ser o
rei Marc, meu senhor, e o pobre peregrino [...]” (BÉDIER, 2006, p. 92).
No filme, quando o rei Marc começa a suspeitar que Isolda
tivesse outro, pede auxílio a Tristão, diz que só poderia confiar nele
para a importante missão, Tristão se compadecendo do rei, afirma que
ela não poderia ser fiel a outro, senão o rei. E decide, pois, afastar-se
de sua amada. Porém, tanto no filme (2006) de Kevin Reynolds, quanto
na obra (2006) de Bédier, mesmo depois de descobertos, o rei, de
certo modo, também lhes é condescendente, ele abre mão da
memória para creditar valor numa imagem captada, numa
representação de um filho. Derrida (1991) observa que quando
Sócrates afirma que a escritura (phármakon) é o filho miserável a
reconhece como aquela que se desvia do pai, mas também explicita a
compaixão por este filho órfão, esta é bem a posição do rei, e decerto
modo é igualmente a posição do herói, que embora queira abandonar
o pai entregando-se à paixão por Isolda, também decide se distanciar
da amada para manter o pai. O que só resulta num final:
desintegração, desmembramento e morte do sujeito. O phármakon é
o caminho da desorientação, pois nele não há devidademente a cópia
do vivo, ele tudo simula, jamais é visto como a repetição do lógos, no
máximo é a repetição morta do vivo, como observamos anteriormente

- 181 -
na passagem supracitada do livro, em que os amantes utilizam a forma
com que o rei (lógos) faz seu julgamento, para enganar: fazendo o
morto se passar por vivo, ou seja, nele há simulação do vivo, quando
na verdade está no plano da morte.
Morte. Talvez este seja o todo pelo qual o herói caminha, pois
seu amor por Isolda é a morte do dever. No final do filme (2006)
Tristão, observando que seu amor seria culpado pela queda do rei
Marc (lógos/pai), deixa Isolda no rio e retorna para junto do rei, pois
afirmava que se fosse embora com ela, seu amor seria manchado pelas
circunstâncias, e, perderia totalmente o afeto de seu rei. Retornando
para salvar o rei, Tristão é gravemente ferido, entretanto consegue
salvar o rei e seu reinado. Levado para as margens do rio, para dar seu
derradeiro pulsar, o rei Marc se despede e diz “tenho de ir sou o rei, o
dever me chama”, o que denota a força vital de seu discurso, ele
embora tivesse um tempo de vida na terra, não poderia deixar-se
arrastar pelo caminho do phármakon. Ele tinha de agir no presente
com a verdade e o cumprimento dela, o dever. É interessante observar
o cenário neste momento, por que o herói poderia ter morrido antes
de chegar às margens do rio, no entanto, enquanto as águas passam
numa correnteza forte é que de se dá a despedida. As águas do rio são
de certo modo como o herói, embora tenha um simulacro fixo seus
significados mudam, nunca é a mesma água. O herói tem seus
caracteres como lealdade, honra, força, um coração gentil, mas seus
significados estão sempre num movimento plural.

- 182 -
No livro o herói se afasta das Cornualhas e como escrevera
Bédier (2006, p.103): “Os amantes não podiam viver nem morrer um
sem o outro. Separados, não era vida, nem morte, mas a vida e a morte
ao mesmo tempo”. Tudo isto, para tentar manter o lógos, mas até
mesmo louco ele fica, para depois morrer longe de sua terra e sem a
Isolda, esta chega tarde para lhe curar a ferida que fixava o espírito na
ausência de um corpo. Ela deita-se sobre seu amigo morto e recebe o
conforto da morte. Os amantes sempre estiveram na instância da
morte, da desconstrução, pois segundo Derrida (1991) o phármakon é
o caminho do disfarce, da magia que dissimula a morte sob a aparência
do vivo, ele apresenta e abriga a morte. E esse encantamento sempre
cativa a forma do outro, do vivo, pois provoca em nós um efeito
catártico que só pode ser experimentado num momento de
desconstrução.

Considerações finais
Podemos concluir que a história de Tristão e Isolda em suas
inúmeras releituras, e, principalmente, nas duas aqui analisadas, nos
revelou que o herói está sempre no patamar de representações, ele é
sempre um simulacro, um significante liberado do lógos. Não procura
uma origem que lhe adote, entretanto, sempre se dispõe como servo
do, lógos, de um pai que lhe julgue o valor. Com isto, ele pode se
entregar a todas as atividades, simulando ao acaso e não sendo
verdadeiramente nada. Todavia, como significante, é tudo, pois nele,

- 183 -
embora represente a morte desde sua infância, circula o poder de
forças opostas que desempenha o papel fundamental da escritura:
remédio e veneno, um nunca sendo sem o outro, fazem o corpo e a
alma provarem seus efeitos, para torná-lo possível como suplemento
do rei, afinal, é ele quem luta pelo rei e quem lhe concede uma esposa,
embora depois a tome. Ele pode ir além dos limites do rei, que estão
para além do controle do presente do rei Marc.
O caminho do phármakon, mesmo sendo contra a memória,
pois é um suplemento não ligado à experiência do pai, é o único que
pode ser trilhado pelo herói, uma vez que o caminho do rei tem um
limite de tempo e espaço; já o do herói está justamente da perda
destes. Segundo Derrida (1991), o phármakon é um produto artificial
que provoca em quem o ingere não verdadeiramente uma cura, mas
a proliferação da doença, e, mesmo quando traz algum benefício,
ainda provoca dor, mascara tudo, veste-se de outro, brinda a morte,
não tem em si identidade. Porém, é por tudo isso que o caminho do
phármakon é tão atrativo para o herói, e o único a ser trilhado, pois,
ele, apesar de ser um percurso de autoaniquilação, também nos faz
experimentar o que está fora. Ele, mesmo quando envolto num
sistema social, só existe para o indivíduo. Assim, Tristão bebera sua
morte inúmeras vezes, e vivia, quando não numa felicidade infeliz,
numa infeliz felicidade, pois phármakon fora para ele um caminho,
uma substância e sua (des)construção.

- 184 -
Referências

ARISTÓTELES; Trad. Edson Bini. Poética. São Paulo: Edipro, 2011.

BÉDIER, Joseph; Trad. Luis Claudio de Castro e Costa. Tristão e Isolda.


3ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

CAMPBELL, Joseph; Trad. Adail Ubirajara Sobral. O herói de mil faces.


São Paulo: Pensamento, 2007.

CAMPBELL, Joseph; Trad. Calor Felipe Moisés. O poder do Mito. 29ª


Ed. São Paulo: Palas Athena, 2012.

DERRIDA, Jacques; Trad. Rogério da Costa. A farmácia de Platão. São


Paulo: Iluminuras, 1991.

Filmografia

TRISTÃO e Isolda. Diretor Kevin Reynolds. Europa Filmes, 2006. DVD


125min.

- 185 -
Sobre o sublime no popular: a poesia em quadra de
Fernando Pessoa e Mario Quintana

Kelio Junior Santana Borges

A relação do letrado com o popular nunca é uma


relação inocente.
(Idelette Muzart Fonseca dos Santos)

Algumas palavras iniciais


Apesar de todas as possíveis distâncias entre as obras de
Fernando Pessoa e Mario Quintana, objetivamos estabelecer uma
relação entre esses dois poetas. Esse elo é, na realidade, uma postura
em relação à poesia, algo que entendemos ser digno de estudo já que
pode ser considerado um posicionamento de refinada perspectiva
crítica sobre a poesia e sua memória testemunhada pela história de
nosso idioma, a Língua Portuguesa.
Mesmo escrevendo em verso, ambos manuseiam a estrutura e
o conteúdo dela de modo diferenciado, isso fazendo com que cada um
dos dois seja vinculado a gêneros distintos de poesia. Pessoa possui
uma obra de caráter épico, enquanto Quintana pertence a uma
linhagem de poetas líricos, mesmo assim − separados por
distanciamentos geográficos e estilísticos − esses dois poetas de
reconhecida erudição intelectual trazem em comum o fato de terem

- 186 -
seus escritos vinculados à poesia moderna, influenciada pelas
tendências modernistas desenvolvidas em Portugal e no Brasil.
Mesmo compartilhando alguns pontos ideológicos em comum
pertencentes à modernidade e ao Modernismo, poucas relações
podem ser traçadas entre os escritos dos dois sem que se lance mão
de um aparato teórico bastante técnico e sofisticado. Entretanto a
poesia de Pessoa e de Quintana, em dois pontos, pelo menos,
apresenta certa confluência clara e facilmente percebida.
O primeiro desses pontos está ligado ao material básico com
que eles trabalham, isto é, ambos, apesar de pertencerem a diferentes
nações, têm a Língua Portuguesa como matéria prima de sua arte –
essa marca pode parecer simples, mas é de suma importância quando
se trata de poesia, isso porque a elaboração do verso parte de uma
estrutura rítmica e sonora que, em si, é um trabalho feito sobre as
características internas, intrínsecas à própria forma do idioma, é isso o
que explica Segismundo Spina: “Cada língua possui, portanto, não só
um ritmo particular, como também uma medida própria. Às vezes,
acontece que a extensão do verso acompanhe as fases evolutivas do
pensamento poético” (SPINA, 2002, p. 101). Os dois poetas −
escrevendo num mesmo idioma, ainda que a estrutura de seus versos
seja inovadora e individualizada − fazem com que essa estrutura
dialogue diretamente com o trajeto histórico poético dessa língua, isto
é, com a memória dos gêneros explorados e perpetuados pelo ritmo
do idioma.

- 187 -
O segundo ponto a ser estabelecido entre Pessoa e Quintana é
aquele sobre o qual aqui nos deteremos, fazendo dele o foco de nossa
discussão. Tanto o poeta português quanto o brasileiro, em momentos
específicos de suas produções, se dedicaram à composição de um
trabalho cuja fundamentação se encontra numa forma estrutural
poética marcada por uma essência popular. De certa forma, esse
segundo ponto de aproximação é uma consequência direta do
primeiro. Acreditamos que a exploração dessa vertente popular
decorre do fato de eles escreverem em Língua Portuguesa, isso porque
o gênero explorado por eles, em suas respectivas obras, é aquele que,
no passado, promoveu uma das mais ricas manifestações poéticas
nesse idioma, trata-se da quadra ou trova.
Tanto contra o livro de Pessoa quanto contra o de Quintana,
houve, por parte de certos críticos, uma manifestação desdenhosa,
postura fundamentada principalmente num ideal de lírica bem
distante daquele que esses dois trabalhos representavam. Entretanto,
numa atitude oposta a essa que tratou com descrédito as duas obras,
tencionamos observá-las a partir de outras perspectivas, tentando
perceber nelas traços de originalidade que derivam justamente
daquela ideologia estética que lhes concedeu tratamento ríspido e
desdenhoso.
O que chamamos acima de “estrutura poética de essência
popular” são poemas escritos em quadra, forma de estrofação em
desuso no mundo contemporâneo, mas que possui uma longa e

- 188 -
sublime história enquanto manifestação cultural nascida na oralidade,
além de ter sido amplamente explorada também nas cantigas escritas
por cancioneiros pertencentes aos séculos XII, XIII e XIV. Depois de seu
apogeu − período em que a quadra migrou da oralidade para a escrita,
sendo nesta amplamente explorada – o gênero foi caindo em desuso
graças, em especial, às novas ideologias e valores estéticos, cada vez
mais seletivos e aristocráticos, norteados por uma visão Clássica a
partir da qual era definido o cânone.
Mais do que uma forma em desuso, a quadra foi recebendo
valores negativos, sendo considerada inferior, ou ainda, uma forma de
pouca literatura, é o que pode ser exemplificado a partir da definição
encontrada no Pequeno dicionário de arte poética, em que Geir
Campos assim a define:

Também denominada de quadrinha ou TROVA, é o


QUARTETO de ARTE MENOR, autônomo, desligado
de qualquer compromisso estrófico, composto
quase sempre em HEPTASSÍLABOS em que a RIMA
só é obrigatória no segundo e no quarto VERSO,
podendo existir ou não entre os de ordem ímpar
(CAMPOS, 1960, p. 163, grifos do autor).

Nas palavras de Campos, pode ser percebida a valoração


menor dirigida às quadras, vale dizer que a expressão “arte menor”,
em princípio, era usada para definir a estrutura métrica dos versos
pertencentes à quadra, isto é, o heptassílabo − verso de sete sílabas
que recebeu o título de “verso de arte menor”−, só mais tarde é que a

- 189 -
expressão “arte menor” passa a relacionar-se também ao valor
estético desse gênero. Interessante é perceber que, tendo sido Geir
Campos um poeta, suas palavras passam a possuir um valor duplo,
expressando tanto a opinião da crítica quanto a opinião dos próprios
escritores em relação à estrutura definida. É por esse motivo que
muito chama a atenção o fato de dois escritores modernos e
contemporâneos ao modernismo se “aventurarem” numa imersão no
popular, eles desconsideram as tendências e as linhas de força dos
movimentos em que se encontraram inseridos.
A nosso ver, essa atitude pode ser de dois modos
compreendida, no primeiro caso, podemos relacioná-la a um
movimento de oposição às linhas de força da lírica contemporânea –
neste ponto, os dois poetas se encontrariam na contramão do que era
seguido pelos seus párias. Outra possibilidade é entender tal postura
como uma maneira diferenciada e ideologicamente sofisticada de
aderir às tendências, sendo elas percebidas apenas em profundidade,
o que pode ter ocasionado inclusive as críticas negativas dirigidas às
em questão.
Em Quadras ao gosto popular, de Fernando Pessoa, e em
Espelho mágico, de Mario Quintana – obras cujos poemas são todos
escritos em quadras −, a estrofe formada por quatro versos é
resgatada do passado, mas não livre de alterações estruturais e
temáticas relacionadas especificamente ao estilo personalíssimo de
cada um dos poeta. Nosso objetivo, no decorrer deste trabalho, será o

- 190 -
de promover algumas reflexões críticas sobre essas alterações
engendradas por Pessoa e Quintana no interior da forma usada na
elaboração de suas respectivas obras. Discutiremos também o próprio
valor das quadras, enquanto manifestação de cultura popular, dentro
do campo literário e artístico contemporâneo.

Sobre o popular e o universo canônico


Os livros Espelho mágico e Quadras ao gosto popular podem
ser entendidos como obras que se puseram na contramão das
tendências próprias de seu contexto de publicação, principalmente
considerando o apego formal derivado do gênero lírico usado na
composição dos textos e o valor dele no seio cultural da época. De
acordo com as revoltosas opiniões críticas24, os dois trabalhos
poderiam ser classificadas como “pouca literatura” cujo valor estético
é inferior comparadas àquelas pertencentes ao cânone. Sobre a
perspectiva valorativa canônica, fazemos nossas as palavras de Simone
Pereira Schmidt; a pesquisadora, ao questionar algumas opiniões
relativas à obra de Mario Quintana, diz o seguinte:

Ora, todo cânone é por princípio excludente, uma


vez que é pressuposto de sua existência a
atribuição de valor desigual (e não meramente
diferente) a textos e autores, a partir de uma série
de critérios, que, sendo subjacentes à escolha

24
- Esses posicionamentos críticos negativos podem ser representados de forma
metonímica pelas opiniões de Fernando Cabral Martins, no que diz respeito à obra
de Pessoa, e de Augusto Meyer, sobre as quadrilices de Quintana.

- 191 -
efetuada, ficam todos encobertos sob a cifra da
“qualidade estética” (SCHMIDT, 2006, p. 66, grifo
da autora).

Tal juízo valorativo rasteiro e, por isso, podendo ser


considerado equivocado, dirigido a essas obras tem como um de seus
fundamentos o fato de as composições em quadras trazerem de longa
data um vínculo com o que é denominado popular – conceito que, em
muitos contextos, torna-se sinônimo de folclórico. As manifestações
artísticas contemporâneas relacionadas às palavras “popular” ou
“folclórico” tendem a sofrer certo descrédito por parte do cânone,
sendo por ele questionadas ou mesmo ignoradas, isso porque, como
explica Idelette Muzart Fonseca dos Santos:

O termo traz em si, como herança, a complexidade


da palavra povo, que designa, ao mesmo tempo,
uma multidão de pessoas, os habitantes de um
mesmo país que compõem uma nação e a parte
mais pobre dessa nação “em oposição com os
nobres, ricos, esclarecidos” (SANTOS, 2009, p. 14,
grifos da autora).

Se esta postura de resistência ao popular é uma realidade


inclusive na área literária, isso se dá porque, movidos por uma
tendência errônea, os olhos da crítica e de muitas áreas do
conhecimento caem no erro de conceder valor ao popular tendo como
referência valores e concepções de uma arte e de um contexto de
produção de arte contemporâneos. Trata-se de um posicionamento
bastante superficial já que são avaliadas as manifestações do passado

- 192 -
a partir de uma consciência que não é a mesma do indivíduo de outras
épocas, um ser que considerava suas produções tão complexas e
representativas de sua condição, assim como o homem
contemporâneo considera o que por ele é produzido.
Contrária a essa visão redutora e preconceituosa contra o
popular, Maria Arminda Z. Nunes, em seu O cancioneiro popular em
Portugal, ao falar sobre as várias formas oriundas da oralidade, explica
que, dentre elas, se destaca a trova ou quadra porque: “Pela qualidade
estética, pelos assuntos múltiplos e até contrastantes nelas versados,
pelo número ainda, sobressaem as quadras, em que é de revelar um
notável poder de síntese – em quatro versos está, por vezes, contido
um imenso mundo” (NUNES, 1978, p. 93). O imenso mundo a que a
pesquisadora se refere não era primitivo ou inferior àqueles que o
vivenciavam, eles o tinham como fonte de tanto mistério como o é
este que nos cerca, mas era uma experiência vivenciada que conseguia
ser expressa em uma forma sintética como a trova, assim como
também sintética é a maneira com que nossas vivências se encontram
representadas num gênero como o haicai.
Se ela, a trova, hoje é uma forma em desuso, não é por sempre
ter sido um gênero inferior − pouca literatura −, mas por não conseguir
ser, de acordo o cânone, um arcabouço para a complexidade de
experiência do homem contemporâneo, o que antes fora. Em outros
tempos, “[c]onceitos de vida, sentimentos, crenças, usos e costumes
tradicionais, em grande parte dos casos já obliterados nas classes

- 193 -
evoluídas, tudo aí [nas quadras] se espelha” (NUNES, 1978, p. 94).
Num outro momento histórico, ela foi a porta-voz de um estar no
mundo que não deve ser dimensionado como primitivo se comparado
ao nosso, mas apenas diferente.

A relação do que é popular-oral com o letrado, que


se confunde amiúde com o literário, estabelece-se
geralmente como do simples ao complexo,
permitindo assim instituir a literatura, letrada,
erudita, “literária” enfim, como uma codificação do
folclore. Nega-se o valor estético da produção
popular porque aparece como um material pré-
literário designado a ser elaborado pelos criadores
da expressão literária, pela linguagem artística. A
permanência conceitual de uma simplicidade
primitiva da arte, assimilando cultura popular e
cultura simplista [...] apoia-se numa visão evolutiva
da arte e supõe uma confusão do simples e do
primitivo com as origens do homem (SANTOS,
2009, p. 15-16).

As composições em quadras estão historicamente ligadas a


uma origem oral e, acima de tudo, a um contexto de consciência
artística, muitas vezes, visto como primitivo, realidade bem distinta
daquela do mundo contemporâneo em que a erudição e a sobrecarga
de intelectualidade tornaram-se supervalorizados, condicionando um
universo artístico literário a que poucos têm acesso. Ao contrário da
elaboração lírica moderna − enobrecida quanto menos comunicativa
se faz e quanto mais esotérico é o seu público −, a poesia popular era
digna de sua alcunha “popular” justamente por ter um compromisso

- 194 -
com uma coletividade, elo expresso em diferentes direções
semânticas, como é explicado por Santos: “Num feixe semântico
concorrente e, às vezes, contraditório, ‘popular’ designa o que vem do
povo, o que é relativo ao povo, o que é feito para o povo e, finalmente,
o que é amado pelo povo” (SANTOS, 2009, p. 14).
Ainda que a carga semântica do termo “popular” fosse
complexa e, em alguns pontos, contraditória, fica claro que o que era
definido por esse termo possuía uma realidade bem simples, o popular
surgia do meio coletivo – isto é, do povo – e se voltava para ele mesmo,
engendrando um circuito comunicativo menos complexo que o da
produção artística atual. Talvez justamente por essa menor
complexidade, esse gênero alcançasse uma amplitude inacreditável
para um momento em que os veículos de divulgação eram poucos e
lentos, apesar disso: “Essa difusão é, sem dúvida, proveniente do
contacto entre trabalhadores rurais que, vivendo em condições sócio-
económicas idênticas, pensam, sentem e reagem de maneira
semelhante” (NUNES, 1978, p. 16).
Bem diferentes das contingências artísticas da poesia moderna
ou contemporânea, essas elaborações era geradas seguindo uma
ordem mais sensitiva, por isso, estão corretas e as palavras de Nunes
quando diz que “[n]a maioria dos casos patenteiam aliciante singeleza
aliada a franca espontaneidade”(NUNES, 1978, p. 93). O caráter
espontâneo desses textos se encontra principalmente no tipo de
conhecimento que buscam registrar e do qual são resultado, as trovas

- 195 -
estão ligadas principalmente a uma relação direta do homem com o
mundo, ou melhor, do homem com os mistérios do mundo. Mais do
uma convenção, a forma era uma interpretação do mundo, é que
podemos deduzir do que é exposto por Segismundo Spina sobre a
métrica das elaborações primitivas, dentre as quais prefigura a
estrutura das quadras: “O número de versos é muitas vezes
determinado pelo valor mágico de um número particular da tribo.
Pudemos verificar também que os números 3 e 4, com seus múltiplos,
são os mais frequentes da numerologia mágica cósmica com relação
ao canto” (SPINA, 2002, p. 103).
Na retomada dessas estruturas populares, feita por inúmeros
poetas, acontece uma reorganização no que se refere ao valor de
alguns de seus elementos e, principalmente, no processo de
transmissão dessas novas formas. Em vez de dialogar com o povo, as
vozes líricas presentes nas atualizações parecem dialogar com o
cânone, com a crítica literária ou com ideologias de contextos
históricos em que se encontram inseridas, isso faz com que o caráter
popular nessas construções assuma novo valor.
É assim que entendemos o que ocorre nos livros de Pessoa e
Quintana. Aquela poesia, ainda que expressa em uma estrutura
popular, perde esse valor coletivo e prosaico pelo fato de ser resultado
de um ato criativo derivado de mentes eruditas ligadas a um contexto
cultural que não é mais o do passado. O arcabouço estrutural de
outrora − a quadra ou trova − torna-se significativo por representar um

- 196 -
elemento que representa a questão da alteridade, essa forma
transforma-se num espaço de possibilidade, uma brecha em que a
consciência criativa moderna desses dois poetas encontra ambiente
para dar continuidade ao processo de representação do eu e do outro,
sendo essa possibilidade plural de representação uma das forças
motrizes da lírica moderna.

Sobre a atualização de um gênero: as trovas de Pessoa e de Quintana


Ainda que apresentem em comum a retomada de uma forma
do passado e promovam, cada um a seu modo, uma atualização dela,
Quadras ao gosto popular e Espelho mágico apresentam traços
distintivos marcantes quanto à composição do verso e, em especial,
no que se refere ao conteúdo. Diante da impossível análise
conteudística detalhada, optamos por abordar apenas a parte em que
ambas as obras se debruçam sobre si, fazendo uma sondagem da
própria arte literária, o que se convencionou chamar de metapoesia. É
nesse ponto que nos apoiaremos para fazer nossas considerações
finais sobre o questionável valor relacionado à forma escolhida pelos
autores em questão. Antes disso, é preciso que cada uma das obras
seja separadamente exposta, ainda que de modo bastante resumido.
Se começamos pela obra do poeta português, isso não se
justifica por considerá-lo mais importante que o brasileiro, é óbvio o
reconhecimento mundial da obra de Pessoa, mas não buscamos aqui
estabelecer ou reafirmar valores canônicos. Começaremos por

- 197 -
Fernando Pessoa devido ao fato de a composição de sua obra, pelo
menos seu início, ser comprovadamente mais remota que a do livro
de Mario Quintana. É importante dizer que as principais informações
e aspectos analíticos e críticos sobre as quadras pessoanas aqui
retomadas terão como referência o trabalho de Anamarija
Marinovic25.
Diferentemente dos escritos mais conhecidos de Fernando
Pessoa, os poemas de Quadras ao gosto popular26 não figuram entre
aquilo que fora preparado pelo próprio poeta para ser publicado, eles
foram retirados de uma arca deixada pelo poeta, ela foi aberta
postumamente e ali se encontravam mais de 27 mil papéis com
escritos dele. Conforme foi revelado por Georg Rudolf Lind e Jacindo
Prado Coelho, em 1965, os poemas em quadra estavam em um
envelope em que estrava escrito Quadras, dentro dele as 65 folhas
manuscritas com as 325 trovas, até aquele momento, completamente
desconhecidas, textos que seriam publicados só mais tarde em 1979,
sob a organização dos dois estudiosos acima citados.

25
- Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa: Trabalho de Seminário da cadeira:
Tópicos da Teoria Literária: Fernando Pessoa
26
-O título da obra, como não foi uma escolha do autor já que ela é póstuma, ficou
a cargo daqueles a quem coube a publicação das diferentes edições. Desse modo, há
pelo menos três diferentes títulos para o conjunto de poemas em quadras de
Fernando Pessoa. Anamarija Marinovic prefere a nomenclatura Quadras, coletânea
organizada por Luís Prista (1997), isso porque era essa a designação que o próprio
poeta concedeu a seus textos, conforme será explicado adiante.

- 198 -
Apesar da uniformidade estrutural e temática presente nos
textos, há uma separação temporal de mais de 20 anos entre as 8
trovas iniciais e as outras 317 do conjunto, isso porque as primeiras
foram compostas quando o poeta ainda era um adolescente pelos
anos de 1908/1909 − pouco depois de ele retornar a Portugal, após
morar e estudar certo tempo na África do Sul. O segundo conjunto de
trovas, é o maior e é aquele que daria continuidade ao projeto iniciado
na juventude, só seria escrito entre 1934-1935 – período final de sua
produção e também de sua vida.
Tendo como base estudos de importantes nomes da crítica
portuguesa, Anamarija Marinovic credita essa adesão pessoana às
quadras a uma possível influência oriunda de alguns companheiros
como Almeida Garret, António Nobre e Correia de Oliveira. Além disso,
essa imersão do jovem poeta numa aura popular é também
compreendida como uma tentativa de identificação entre ele e sua
nação, em especial, com sua língua, isso porque seus primeiros textos
foram escritos em inglês. Em uma das quadras, fica explícito o traço de
identificação com sua cultura portuguesa, o poeta canta de forma
orgulhosa a dádiva de seu povo em possuir uma língua que lhe
concede a prerrogativa de experienciar algo impossível em outro
idioma, isto é, expressar o sentimento de saudade.

Saudades, só portugueses
Conseguem senti-las bem,
Porque têm essa palavra

- 199 -
Para dizer que as têm (PESSOA, 2008, p. 101)

Pode-se dizer que a elaboração desses poemas marcou tanto o


início quanto o final da vida literária desse grande poeta. Sobre a
importância delas, concordamos com Jane Tutikian quando afirma
que: “Elas nos revelam um poeta seduzido pelo tradicional folclórico,
de um lado, e, de outro um poeta diferente dos conhecidos Pessoas
[...]”(TUTIKIAN, 2008, p. 20). A partir da afirmação de Tutikian − em
que se defende haver nesses textos populares outra vertente da
escrita de Fernando Pessoa − é possível fundamentar a suposição de
que, nessa manifestação de aura popular, possa ser reconhecida outra
máscara criada por ele, como que outro heterônimo, que em vez de
nomeado e individualizado, se reconheça e se diferencie dos demais
justamente por ser coletivizado, por se fazer representado por uma
voz de origem popular.
Ainda que não estejam sob a égide de nenhum heterônimo,
como sói ocorrer com as principais vertentes pessoanas, os poemas
desse livro constroem uma identidade lírica que se faz parecer
popular, que se quer fazer derivar de uma realidade outra bem
diferente, oriunda de uma sociedade do passado e possuidora de uma
consciência de mundo dada a um coletivismo popular.
Não se pode esquecer que estamos diante de uma das
consciências literárias mais marcantes do século XX, aquela que
eternizou uma concepção moderna do fazer poético nos seguintes
versos: “O poeta é um fingidor./Finge tão completamente./Que chega
- 200 -
a fingir que é dor./A dor que deveras sente”. Mais do que uma visão
teórica de poesia, os versos de Pessoa podem ser lidos como uma
análise crítica sobre sua própria poética, esse universo em que o
fingimento não só se torna um tema, mas um modo de conceber a arte
e talvez a própria condição existencial, pensamento que fica registrado
em uma das quadras: “Não há verdade na vida/Que se não diga a
mentir” (PESSOA, 2008, p.106).
Um olhar sobre os escritos produzidos por essa identidade
lírica de origem popular pode revelar, porém, que o fingimento
almejado pela consciência que se encontra trás desses textos não
condiz exatamente com a máscara criada. Os dois versos citados acima
o comprovam, pois o conteúdo deles relaciona-se mais a uma postura
moderna do que a uma concepção expressa por um conhecimento
popular ou folclórico.
A estrutura de versificação arcaica, os traços linguísticos, em
alguns pontos, simplórios e certos temas retomados do passado são
artifícios usados na tentativa de construir, ou melhor, de fingir outra
voz, ela seria uma construção lírica semelhante àquela do passado
encontrada nas antigas trovas derivadas da uma cultura popular
medieval. Em meio a esse fingimento, percebem-se traços e marcas
que apontam para as falhas dessa máscara, isso porque, em mais de
um aspecto, podem ser identificados índices de sofisticado pensar e
requintada expressividade linguística.

- 201 -
Não é raro encontrarem-se frases longas, em que
uma delas ocupe dois versos, ou frases
subordinadas. Neste aspecto vê-se que as quadras
de Fernando Pessoa foram escritas por um poeta
culto, e muito bem elaboradas, destinadas para
serem lidas e não declamadas ou cantadas, como
acontece com os poemas populares (MARINOVIC,
s/d, p. 7).

Não só nos elementos estruturais podem ser percebidas as


atualizações promovidas pelo poeta moderno no interior dessa forma
antiga. Promove-se assim uma simbiose entre constituintes
pertencentes a dois momentos distintos de nossa trajetória cultural,
esse choque entre o olhar do presente e o do passado, a concepção
diferenciada que cada um deles tem do mundo e da própria escrita,
podem ser rastreados nos seguintes versos:

Vem lá do monte verde


A trova que não entendo.
É um som bom que se perde
Enquanto se vai vivendo” (PESSOA, 2008, p. 55).

A intensão de resgatar a memória dessa forma tão cara à


história da cultura e da Língua Portuguesa é nobre, mas se faz
perpassada por dificuldades, isso porque, ao fingir uma consciência do
passado, a voz do presente não se encontra norteada pelos mesmos
valores tão comuns às vilas e cidadelas de “montes verdes” de outrora.
Não sendo possível essa total adesão ao universo temático de
outrora, essa máscara lírica que se quer de origem coletiva e popular,

- 202 -
insere em seu poetar temas e concepções do mundo moderno,
características também rastreadas na escrita dos secularíssimos
heterônimos pessoanos. Dentre elas, analisaremos aqui aquela que
discute o fazer poético, abordagem que recebe, dentro do discurso
crítico específico, a alcunha de metapoesia. Nesse afã de engendrar a
elaboração de uma máscara poética popular, é na abordagem dessa
temática que mais se faz perceber um abismo, é aqui o ponto em que
o fingimento se frustra porque se faz perceptível como impossível e
incoerente. A teorização que a poesia faz sobre si, nesse processo de
autorreferenciação, não constitui uma realidade do passado, ela é
uma constante pertencente à poesia moderna e, principalmente,
modernista, sendo impensada em uma manifestação derivada de uma
cultura popular ou folclórica, sendo assim, representa mais um
distanciamento do que uma aproximação em relação às trovas.
A quadra a seguir é um exemplo de metapoesia em que o fazer
poético é explorado, a simplicidade da estrutura não denota
superficialidade na discussão do tema. Percebe-se que estão expostos
preceitos de íntima relação com as tendências em vigor na ideologia
artística do século XX.

Tenho uma pena que escreve


Aquilo que eu sempre sinta
Se é mentira, escreve leve.
Se é verdade, não tem tinta”(2008, p.81).

- 203 -
Não só marcas modernas e modernistas percebidas na
construção e na temática fazem com que essa trova seja incoerente
com a cultura popular que ela tenta representar, pode-se perceber
que se faz presente nesses versos a sombra do fingimento poético
característico da poética de Fernando Pessoa. No seu caso específico,
podemos dizer que tornam-se metapoéticas todas as estrofes em que
se faz alusão aos atos de mentir, fingir, enganar, isso porque tais
termos possuem uma estreita relação com a concepção que Pessoa
tem do seu ofício de criador. De diferentes modos, a partir de vozes
diferenciadas e plurais, o que percebemos na escrita de Pessoa é esse
constante refletir sobre a criação poética, essa possibilidade de se
expressar as verdades, usando para isso o recurso da mentira, é o que
encontramos expresso em outra das quadras:

Mas que grande disparate


É o que penso e o que sinto
Meu coração bate, bate
E se sonho minto, minto” (2008. p.100).

As supostas incoerências ou fendas percebidas na construção


dessa identidade poética representante de um espírito popular não
devem jamais ser entendidas como falha ou equívoco do indivíduo
artista Fernando Pessoa, antes disso, elas denunciam a total
consciência crítica sobre o fazer artístico e a aguçada técnica estilística
do poeta para refletir sobre sua arte. Em vez de ingenuidade, é a

- 204 -
profundidade do ato criador e suas vicissitudes que se encontram ali
discutidas.

Isto é, mesmo após uma primeira leitura, é


evidente a falta da naturalidade, simplicidade e
espontaneidade da qual abundam as quadras
verdadeiramente populares. Nota-se que a
intelectualidade de Pessoa planeou e pensou
muito bem cada palavra, que elaborou a linguagem
e o estilo, os quais, ainda que recorram aos
mesmos recursos estilísticos que usa a poesia
popular (comparações, metáforas, trocadilhos,
repetições) são o reflexo do trabalho de um poeta
culto (MARINOVIC, s/d , p. 9).

A nosso ver, em Quadras ao gosto popular, o retorno à trova


não é feito de modo ingênuo ou guiado por anseios meramente
nacionalistas, remanescentes de uma antiga perspectiva romântica.
Promove-se na obra mais do que um mero resgate de uma antiga
forma de estrofação, trata-se de uma tentativa de ressignificação
dessa estrutura, o que é feito a partir do momento em que se insere
nesse elemento prosaico uma célula pertencente ao tecido ideológico
moderno, com traços de postura ideológica modernista. Acreditamos
que, de modo um pouco diferenciado, Mario Quintana engendre algo
parecido. Ao retomar as quadras, ele lhes concede outro valor, mas
não usando os mesmo recursos de Pessoa, trata-se de um expediente
outro que deve ser cuidadosamente analisado em seus textos, é o que
tentaremos fazer a seguir.

- 205 -
Como em sua maioria as quadras de Pessoa foram compostas
nos anos finais de sua vida, iremos relacioná-las às últimas produções
do poeta. O oposto se dá com aquelas elaboradas por Mario Quintana;
no caso do brasileiro, seus poemas de vertente popular vinculam-se a
uma fase ainda inicial de sua trajetória literária – consideramos inicial
por ter sido o terceiro livro dele, mesmo entre os primeiros exercícios
de escrita, esse trabalho já representa um momento mais complexo
do que os dois livros anteriores, sendo considerado por alguns
estudos27 uma fase de transição em especial do ponto de vista da
forma, porque quanto ao temático, já se pode encontrar ali o que se
define como a poética quintaneana.

[...] é possível vislumbrar desde estas primeiras


composições, a mesma visão crítica, mista de
ironia, ceticismo e humor com que o poeta
contempla, à distância, as pessoas, coisas e os
pequenos eventos do dia-a-dia, e que tão bem
caracterizam a sua linguagem poética
(BITTENCOURT, 2006, p. 51).

O livro foi publicado em 1948, mas algumas de suas 111


quadras já tinham vindo a publico em edições da revista Ibirapuitan,
de Alegrete, no período entre janeiro e setembro de 1939. Diante
disso, pode ser percebida uma distância de, pelo menos, nove anos
entre a elaboração dos textos e a publicação do livro.

27
-É assim que Vera Lúcia Cardoso Medeiros avalia o livro em “A poesia transitiva de
Mario Quintana”.

- 206 -
Se do ponto de vista da estrofação há uma homogeneidade
entre os textos − todos escritos em quadras − o mesmo não acontece
quanto à métrica. Os poemas apresentam tanto versos curtos de 3 ou
4 sílabas poéticas, quanto versos longos que chegam a possuir 14,
além de se estruturarem também em redondilhas maiores e versos
decassílabos. As quadras apresentam diferentes métricas em
construções que podem apresentar ora uma versificação isométrica,
ora não. Esse compromisso com aspectos formais, ainda que variados,
concede à obra uma marca muito bem analisada por Gilberto
Mendonça Telles em seu livro Retórica do silêncio, nele o poeta, em
sua vertente de crítico, afirma que:

[...] o Espelho mágico é o livro mais rígido de Mário


Quintana, constituído inteiramente de quartetos e,
portanto, mais sintético do que o livro de sonetos.
Mas é, do ponto de vista metalinguístico, o mais
evoluído, embora a sua concepção literária esteja
coerentemente muito presa às concepções do
passado (TELLES, 1989, p. 257).

Além das palavras de Telles, em que são tecidos elogios à carga


metalinguística do livro − traço que será retomado e analisado adiante
−, também é digna de nota a percepção que Vera Lúcia Cardoso
Medeiros faz do livro. Mais do que apontar a retomada de traços
formais populares, a pesquisadora defende um possível sentido ou
uma intenção nessa atitude. Segundo ela:

- 207 -
É nítido, portanto, o aproveitamento de modelos
de composição tradicionais e de origem popular no
livro Espelho Mágico, e, assegurando unidade
entre forma e conteúdo, tais modelos tradicionais
de composição prestam-se ao estabelecimento de
um diálogo entre o eu lírico e o outro, entre a
poesia e o leitor, sinalizando uma possibilidade de
reversão do quadro de anulamento do ser e de
silenciamento da palavra que se nota na poesia
moderna (MEDEIROS, 2006, p. 40).

Considerando que a visão defendida por Medeiros seja


verdadeira, podemos dizer, então, que, por trás da suposta singeleza
da estrutura, esconde-se um posicionamento ideológico bastante
nobre, ainda que pouco convencional, por parte de um poeta
moderno. Postura nobre porque, de certa forma, retoma
características que outrora eram os lugares comuns de uma lírica de
caráter popular, dentre eles aquele traço de intimidade comunicativa
com o público leitor, mas que, como explica Hugo Friedrich:

É justamente esta intimidade comunicativa que a


poesia moderna evita. Ela prescinde da
humanidade no sentido tradicional, da
“experiência vivida”, do sentimento e, muitas
vezes, até mesmo do eu pessoal do artista. Este não
mais participa em sua criação como pessoa
particular, o irreal porém como inteligência que
poetiza, como operador da língua, como artista que
experimenta os atos de transformação de sua
fantasia imperiosa ou de seu modo irreal de ver
num assunto qualquer, pobre de significado em si
mesmo (FRIEDRICH, 1991, p. 17).

- 208 -
Na explanação feita por Friedrich sobre o que é a lírica
moderna, pode-se perceber uma suposta oposição em relação ao que
representa ou intenta a escrita de Mario Quintana. A leitura das
quadras de Espelho mágico nos transporta para um universo lírico em
que tanto podemos encontrar a presença do indivíduo Quintana,
quanto com ele podemos estabelecer uma ponte comunicativa, isso
construído por um discurso em que reina a simplicidade: “A mesma
simplicidade que encontramos ao longo de toda a sua obra poética, e
que constitui muito mais do que apenas um traço, ou uma
característica de sua poesia, mas pode mesmo ser compreendida
como um modo de fazer poético, programaticamente defendido pelo
escritor” (SCHMIDT, 2006, p. 67). Se o modo poético de Fernando
Pessoa se fundamenta no conceito estético de fingimento, o de
Quintana se realiza enquanto estética de leveza, de sutileza.
Quando ratificamos a simplicidade formal e temática da poesia
de Mario Quintana, não pode ser compreendido, porém, que ela não
traga em seu bojo as linhas de força da estética moderna e, em alguns
pontos, modernista. Na realidade, as marcas dos dois movimentos ali
se fazem presentes, contudo são apenas traduzidas, ou melhor,
mascaradas por artifícios estéticos peculiares a ponte de camuflar a
profundidade do estético e ideológico neles explorados.
Para exemplificar o que acabamos de afirmar, lançaremos mão
de uma intertextualidade entre Fernando Pessoa e Mario Quintana.
Como já foi exposto anteriormente, Pessoa sintetizou a sina e o ofício

- 209 -
do poeta em seu inigualável Autopsicografia, cujos versos citamos
acima. Toda a carga desse poema, sua densidade e complexidade
reflexiva podem ser conferidas em um quintanar28 pertencente ao
livro Caderno H, de 1973. Na promoção de uma paráfrase sobre o texto
pessoano, percebe-se o trabalho minucioso de Quintana em
reproduzir a carga ideológica do original, contudo concedendo-lhe um
tratamento diferenciado, uma forma de tradução com marcas de sutil
ironia e sublime humor, recursos utilizados para estruturar as bases de
seu modo poético. Em “Destino atroz”, nos deparamos com uma
consciência pessoana retomada em uma síntese reflexiva em verso de
estrutura mais narrativa do que expressiva, mas que, em tudo, reflete
a complexidade dos versos rimados do poema português, vejamos:
“Um poeta sofre três vezes: primeiro quando os sente, depois quando
os escreve e, por último, quando declamam os seus versos”
(QUINTANA, 2005, p. 280). A abordagem desse “destino atroz de
poeta” e de seu complexo ofício perpassa toda a produção de Mario
Quintana, tornando-se um dos lugares comuns de sua poética. Sob a
alcunha técnica de metapoesia, os campos crítico e teórico do universo
poético são explorados amplamente pelo poeta brasileiro, tão
recorrente se faz que a pesquisadora Solange Fiuza Cardoso Yokozawa,
num trabalho em que estuda o caráter autocrítico de Quintana, sobre
esse traço, afirma:

28
-Termo usado pelos quintalólogos para se referirem às peças poéticas de Mario
Quintana.

- 210 -
A atitude crítica é inerente à sua produção, onde
um olhar vigilante acompanha o desenvolvimento
das poesias e faz do autor o primeiro leitor de si
mesmo; um leitor que se antecipa à crítica
propriamente dita e não apenas se esclarece, mas
evidencia as suas contradições. Além da
autocrítica, faz também uma crítica da tradição
literária, do leitor e constrói uma vasta e
significativa reflexão teórica no interior de sua obra
(YOKOZAWA, 2008, p.71).

Por ser uma constante em todo seu poetar, as reflexões sobre


a escrita e o ofício de versador são explorados também pelas quadras,
gênero que, devido à singeleza formal e pelo seu caráter popular, não
representaria um bom arcabouço estrutural para a inserção de
temática com tamanha intensidade reflexiva e ideológica. Entretanto,
em inúmeros versos de Espelho mágico, essa autorreferencialidade da
sofisticada poesia moderna e modernista manifesta-se em sua
plenitude, indiferente à estrutura que lhe veicula.
Nessas quadras de conteúdo metapoético, são expressos
valores e concepções variadas sobre a arte da escrita e da poesia em
especial. Em diálogo com diferentes perspectivas, ora se encontram
conteúdos que apontam para uma postura mais tradicional e clássica
sobre o assunto, como acontece em “Do Estilo”,

Fere de leve a frase... E esquece ...Nada


Convém que se repita...
Só em linguagem amorosa agrada

- 211 -
A mesma coisa cem mil vezes dita (QUINTANA,
2005, p. 211)

Ora as trovas se tornam arautos de um posicionamento


moderno, transgressor e subversivo de arte, como pode ser percebido
em “Do Belo”. Nele se desconstrói por completo o valor e o culto ao
ideal de beleza clássica.

Nada, no mundo, é, por si mesmo feio.


Inda a mais vil mulher, inda o mais triste poema,
Palpita sempre neles o divino anseio
Da beleza suprema... (QUINTANA, 2005, p. 213).

Tal como ocorre com as trovas de Fernando Pessoa, as de


Mario Quintana também nos expõem uma incoerência. Ainda que
preze pela simplicidade e pela leveza, instaurando sobre elas os pilares
de seu fazer poético, Mario Quintana não produz uma poesia simples,
mas uma poesia expressa em modos e meios de simplicidade. Em
quadras ou não, o que compreendemos é existir uma máscara de
singeleza que, tão bem construída, torna eclipsado o teor profundo
com que o estar-no-mundo moderno é discutido.
O caráter pouco simplório das quadras de Espelho mágico pode
ser denunciado também se consideradas as fontes usadas na
composição dos textos. É próprio autor que, ao fim do livro, expões as
evidencia. Oriundas de composições artísticas, de discursos filosóficos,
enfim, de importantes nomes ligados ao conhecimento, as trovas
constantes dessa obra não representam uma manifestação artística

- 212 -
que se possa definir como singela, pelo contrário, denotam a erudição
da consciência criativa por trás delas. Está no manejo de toda essa
carga erudita o verdadeiro e original esplendor típico da poesia de
Quintana, em vez de uma mera exibição de conhecimento, o que se vê
uma forma de agregação – agregação nos termos nietzschianos,
quando essa palavra é entendida como sinônimo de aprimoramento.
De modo preciso, Yokozawa define de que modo essa tal agregação
acontece no interior do livro: “No decorrer do livro, a relação que o
poeta estabelece com as fontes anunciadas e outras não proclamadas,
enfim, com a tradição cultural ocidental, não é de apropriação passiva,
mas de transformação, reescritura, retomada com distanciamento
irônico, enfim, de crítica” (YOKOZAWA, 2008, p.71).
As análises de poemas pertencentes aos livros Quadras ao
gosto popular e Espelho mágico se justificaram pelo fato de, a partir
delas, se contestar o valor de “pouca literatura” que a eles já foi
relacionado. Deve-se dizer que a explanação promovida por nós
precisa ser considerada como rasteira e de perspectiva metonímica,
muitos outros pontos poderiam ser considerados e amplamente
estudados com o propósito de esmiuçar com maior rigor toda a
literariedade desses dois importantes trabalhos. Assumimos a
limitação de nossa análise, se não houvesse a limitação do espaço,
muito mais rica e abrangente ela seria, concorrendo mais
intensamente para o reconhecimento e para a ressignificação das duas
obras selecionadas para o estudo.

- 213 -
Ainda algumas palavras
Na lírica moderna, em todo seu traço de hermetismo e de
incomunicabilidade, não há ingenuidade por parte do poeta. Ainda
que possam parecer singelas e populares, as quadras dos dois poetas
aqui estudados foram geradas em contexto dentro do qual nenhuma
manifestação pode ser subestimada, elas constituem parte de um
plano ideológico maior, do qual constituem apenas uma possibilidade
de realização engendrada pela mente criativa do poeta.
É na figura dele que se encontra a conexão para o universo
misterioso da poesia contemporânea. Neste caso, podemos relacionar
a problemática aqui abordada com a crise da subjetividade lírica
testemunhada no mundo atual. A retomada de elementos populares
e o desapego a valores canônicos que isso representa foi uma das
bases do Romantismo, mas, ainda que queiramos relacionar a esse
movimento as duas obras por nós estudadas, isso incorre num erro
grave de interpretação.
Rosenfeld e Guinsburg (1978) afirmam que, no Romantismo,
instaura-se um modo de ver as coisas a partir de um prisma irracional
e anárquico, isso porque se processa de modo destemperado e sem
disciplina, forma de percepção observável tanto no campo de uma
cosmovisão quanto nos modos de sua manifestação.
Não é assim que compreendemos a proposta de Fernando
Pessoa e Mario Quinta no diálogo com o popular. No caso deles,

- 214 -
distanciados das ideologias e percepções existências românticas, a
consciência da criação e do sujeito envolvido nessa criação têm outro
valor.

A percepção da linguagem e o aprofundamento de


sua compreensão como matéria fundamental do
fazer poético, a invenção como valor estético da
obra, articulada à formulada autonomia da arte,
além de instauração do sujeito como lugar de
alteridade, tudo isso distancia a poesia moderna
daquela da arte romântica estudada por Hegel, que
diz de si própria, sincera e confessional, e confinada
às cercanias do eu (CAMARGO, 2016, p. 59).

A visão romântica via, no elemento primitivo, o encontro com


o elementar e inconsciente, o estar-no-mundo ainda puro, não
marcado pela cisão nem pelo fracionamento que os românticos
testemunham na cultura de seu tempo (ROSENFELD. GUINSBURG,
1978, p.281). Bem diferenciado é o valor do primitivo ou do
memorialístico para a poesia moderna. Retomados, esses elementos
passam a ser considerados como espaços de possibilidades em que as
vicissitudes próprias da subjetividade lírica atual encontram meios de
dar prosseguimento na discussão de sua problemática,

descrevendo movimentos de reconstituição de


fragmentos, de deslocamento do eu e de
deslocamento em direção a uma realidade fora dos
limites do sujeito propriamente dito [...], se
representando nas coisas, no que resta de
memória que lhe assegura uma identidade incerta
(CAMARGO, 2016, p. 59).

- 215 -
Nesse projeto de retomada do elemento popular, dessa
suposta voz ou cosmovisão coletiva, tanto a obra de Fernando Pessoa
quanto a de Mario Quintana podem ser entendidas como espaços
abertos pela linguagem, frestas em que a subjetividade lírica se
estende no desejo de fazer-se outra, de construir-se como outro. Não
estando presa a uma arte que se quer reflexo da realidade, nessa
poesia não há incoerências, apenas criação.
Essa possibilidade de compreensão nos faz perceber que pouco
populares realmente são as poesias encontradas nos dois livros,
demostrando que as críticas a eles dirigidas podem ser realmente
equivocadas. Além disso, é possível dizer também que Quadras ao
gosto popular e Espelho mágico não exatamente estavam na
contramão da ideologia de seu tempo, mas que essas ideologias
encontravam-se sublimadas, sob a égide de uma suposta máscara
popular.

- 216 -
Referências

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curto e do humor em Mario Quintana. In: Ciências&letras. Porto
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- 217 -
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Araraquara: Laboratório Editorial da Faculdade de Ciências e Letras da
UNESP, 2008, v. 1, p. 89-107.

- 218 -
Teoria e ficção em Uno, nessuno e centomila

Andrea Quilian de Vargas

Nascido no Caos, uma pequena aldeia próxima a Agrigento, na


noite do dia 28 de junho de 1867, o escritor e dramaturgo siciliano
Luigi Pirandello é o exemplar articulador de uma produção artística
constituída por poesias, novelas, romances, peças de teatro e textos
teóricos. Inserido, no início da carreira, no contexto do Verismo29
italiano, Pirandello criou obras em que personagens, estratégias
narrativas, temas e ensaios críticos se complementam, reaparecem
em estruturas textuais distintas e adquirem, desta forma, novas
significações. Esse entrelaçamento temático e estrutural é percebido,
particularmente, na interligação entre teoria e experimentação
artística, prática comum em algumas das produções do escritor
siciliano.
A base teórica mais precisa e que mais claramente explica a
obra de Pirandello é, sem dúvida, o ensaio L’Umorismo, publicado em
1908 por ocasião de um concurso para docente realizado por ele.
Nesse longo texto, Pirandello aborda, inicialmente, a complexa

29
Verismo é o movimento literário italiano fundado pelo siciliano Giovanni Verga, na
segunda metade do século XIX, que tinha como base o Naturalismo do escritor
francês Émile Zola.

- 219 -
definição da palavra umorismo, difícil em função das inúmeras
interpretações e definições do termo utilizadas desde a antiguidade.
Para esclarecer o ponto, Pirandello cita Alessandro d’Ancona como um
dos críticos que confessa a dificuldade de definição da palavra
humorismo. Em Studi di critica e storia letteraria (D’ANCONA, 1880)
d’Ancona afirma:

É certo que a definição não é fácil, porque o


humorismo tem infinitas variedades, segundo as
nações, os tempos, os engenhos, e o de Rabelais e
de Merlin Coccajo não é a mesma coisa que o
humorismo de Sterne, de Swift ou de Jean-Paul, e
a veia humorística de Heine e de Musset não é de
igual sabor. [...] Queremos apenas assinalar desde
o princípio que há uma confusão babilônica na
interpretação da palavra humorismo. Para a
maioria, o escritor humorístico é o escritor que faz
rir: o cômico, o burlesco, o satírico, o grotesco, o
trivial – a caricatura, a farsa, o epigrama, o
trocadilho são batizados de humorismo
(PIRANDELLO, 2009, p. 46-47).

Não se pode dizer, segundo Pirandello, que o senso comum


tenha mudado. Ainda nos primórdios do século XX, para um número
considerável de pessoas o escritor humorístico era aquele que fazia rir,
no sentido estritamente cômico da palavra. Todavia, em L’Umorismo,
o siciliano elabora uma fundamental distinção entre o cômico e o
humorístico. Para elucidar a questão, Pirandello cita o exemplo de uma
velha senhora, vestida e maquiada torpemente. Frente a essa estranha
figura, a reação inicial é o riso cômico, oriundo do descompasso entre

- 220 -
a imagem desarmônica e a imagem “esperada”. A essa impressão
inicial Pirandello denomina advertimento do contrário: há algo na
figura da velha senhora que destoa das generalizações, tão caras aos
seres humanos.
Em Advertência sobre os escrúpulos da fantasia, ensaio
publicado pela primeira vez em 22 de junho de 1921 no jornal romano
L’Idea nazionale, e incluído nas edições posteriores de O falecido
Mattia Pascal, Pirandello afirma que há, na história natural, um mundo
repleto de animais estudados pela zoologia. Dentre esses animais está
o homem, que não é um quadrúpede, mas um bípede, e que não tem
cauda, como o macaco ou o burro. A esse homem, segundo Pirandello,
não pode acontecer nenhuma desgraça, como perder uma perna ou
um olho, pois:

O homem do zoólogo tem sempre duas pernas,


nenhuma delas de pau; tem sempre dois olhos,
nenhum deles de vidro. E é impossível contradizer
o zoólogo. Porque o zoólogo, se lhe apresentarmos
um fulano com uma perna de pau ou com um olho
de vidro, responderá que não o conhece, porque
aquele não é o homem, mas um homem. É
verdade, porém, que todos nós, por nossa vez,
podemos responder ao zoólogo que o homem que
ele conhece não existe e que [...] existem os
homens, nenhum dos quais é igual ao outro, e que
podem, inclusive, por uma desgraça, ter uma perna
de pau ou um olho de vidro (PIRANDELLO, 1891, p.
315).

- 221 -
As generalizações pretendidas pelo zoólogo, entendido de
forma genérica, no excerto, como o ser humano, não passam de
construções ilusórias, tendo em vista que, de acordo com Pirandello,

Hoje somos, amanhã não. Que rosto nos deram


para representar parte da vida? Um nariz feio? Que
triste ter que carregar um nariz torto por toda a
vida... Sorte que, a longo prazo, não nos damos
mais conta disso. Notam os outros, é verdade,
quando chegamos a acreditar que temos um nariz
bonito; e então não sabemos por que os outros
riem nos olhando. São tão idiotas! Consolamo-nos
observando que orelha tem aquele e que boca tem
aquele outro, os quais não percebem e têm a
coragem de rir de nós. Máscaras, máscaras... Um
sopro e passam, para dar lugar a outro. [...] Cada
um se ajusta à máscara como pode – a máscara
exterior. [...] E nada é verdadeiro! Verdadeiro é o
mar, sim, verdadeira é a montanha; verdadeira é a
pedra; verdadeiro é um talo de grama; mas o
homem? Sempre mascarado, sem que o queira,
sem que o saiba, daquilo que de boa fé tal coisa se
lhe afigura ser: bonito, bom, gracioso, generoso,
infeliz etc. etc. E isso faz rir tanto, se se pensa. [...]
Mas o homem? [...] não pode deixar de posar,
mesmo diante de si próprio, de algum modo, e
imagina uma porção de coisas que ele tem
necessidade de crer como verdadeiras e tomar a
sério (PIRANDELLO, 2009, p. 171).

Partindo dessa concepção, qualquer espécie de generalização


será sempre equivocada, levando-se em conta que tudo que vemos,
somos ou pensamos está embasado em construções que variam de
acordo com o tempo, as circunstâncias e os casos.

- 222 -
Retomando o exemplo da velha senhora, Pirandello explica que
ela se veste daquela forma para agradar ao marido, anos mais jovem.
A partir do instante em que tomamos consciência dos reais motivos
que levam a mulher a se vestir e se comportar de maneira ridícula, o
riso cômico se transforma em algo que vai além da comicidade. Aí está
a grande diferença entre o cômico e o humorístico: o primeiro ri, o
segundo se compadece. A esse compadecimento pela triste vida da
velha senhora Pirandello denomina sentimento do contrário. O riso, a
partir da reflexão crítica sobre o fato, perde completamente o sentido.
O cômico, por outro lado, jamais ultrapassa a barreira da primeira
impressão, não faz brotar o sentimento do contrário, limitando-se à
superficialidade de uma aparência risível.
Portanto o umorismo, nos termos de Pirandello, é a atividade
reflexiva do artista que busca enxergar além daquilo que está visível
aos olhos. Destarte, ultrapassa a superficialidade da aparência para
descobrir, a partir da suposta comicidade, feiúra ou loucura das
pessoas comuns, submetidas compulsoriamente a seu cotidiano
enfadonho, os dramas que carregam.
Em Uno, nessuno e centomila, um dos mais importantes
romances de Pirandello, há um claro diálogo entre a teoria
(L’Umorismo) e a ficção. Iniciada provavelmente em 1909, a
elaboração do romance, o último de Pirandello, foi bastante longa e
laboriosa. O tema de Vitangelo Moscarda, o protagonista, foi
esboçado em uma pequena novela intitulada Stefano Giogli uno e due

- 223 -
(1909), a qual narra o drama de uma personagem que não se
reconhece na imagem dele mesmo “construída” pela esposa. A
primeira edição de Uno, nessuno e centomila surge dezesseis anos
depois do esboço inicial (entre os meses de dezembro de 1925 e junho
de 1926) na Fiera Letteraria, revista semanal fundada em Milão, em
1925, que publicava textos de literatura, arte e ciência. A primeira
publicação do romance em volume ocorreu pela editora Bemporad,
algum tempo depois, com poucas alterações. Dentre as modificações
efetuadas está a exclusão do longo subtítulo da versão em fascículos
(Considerazioni di Vitangelo Moscarda, generali sulla vita degli uomini
e particolari sulla propria, in otto libri), o qual reporta explicitamente
ao conhecido romance A vida e opiniões de Tristram Shandy, de
Laurence Sterne, indicado várias vezes como modelo por Pirandello
em L’Umorismo.
Um, nenhum e cem mil é articulado em oito livros, subdivididos
em pequenos capítulos que podem ser lidos isoladamente. Cada um
dos capítulos tem um título, estratégia que torna evidente tanto a
decomposição do tecido narrativo quanto a desestruturação da
personagem protagonista: Vitangelo Moscarda, sujeito que descobre,
já no primeiro capítulo do livro I, que seu nariz “caía” para a direita. A
triste notícia foi dada por Dida, a esposa do jovem e ocioso banqueiro
que, durante vinte e oito anos, acreditou que seu nariz, se não era
belo, pelo menos era decente. Além disso, Dida acrescentou que,
dentre outras imperfeições, as sobrancelhas do marido pareciam dois

- 224 -
acentos circunflexos, a perna direita era um pouco mais arqueada que
a esquerda e as orelhas não eram bem grudadas. A irritação inicial de
Moscarda ao admitir todos aqueles defeitos, nunca antes percebidos,
foi substituída por um abatimento e um desconforto profundos:

A descoberta repentina e inesperada daquele


defeito me irritou como um castigo imerecido. [...]
Mas dei um peso extraordinário ao fato de ter
vivido por tantos anos sem nunca ter trocado de
nariz, sempre com aquele, e com aquelas
sobrancelhas e aquelas orelhas, aquelas mãos e
aquelas pernas. E dizer que precisei ter uma mulher
para me dar conta de que eram defeituosos!
(PIRANDELLO, 2010, p. 20-21)

Para Moscarda, a revelação daquelas pequenas irregularidades


no próprio corpo desencadeou um penoso processo de
autoconhecimento e de desconfiança em relação à realidade. Ele
nunca mais foi o mesmo. Como era possível que a esposa o visse com
maior clareza do que ele mesmo? Além dela, como as outras pessoas
o viam? O demônio da reflexão, a partir da descoberta do nariz torto,
apossou-se do espírito de Moscarda para sempre. A partir desse
ponto, romance e ensaio crítico desenvolvem um interessante diálogo,
sendo que, em L’umorismo, Pirandello explicita a ideia que resume o
drama de Moscarda:

O que nós conhecemos de nós mesmos, não é


senão uma parte, talvez uma pequeníssima parte
daquilo que nós somos. E tantas e tantas coisas, em
certos momentos excepcionais, são por nós

- 225 -
surpreendidas em nós mesmos, percepções,
raciocínios, estados de consciência, que estão
verdadeiramente além dos limites de nossa
existência normal e consciente (PIRANDELLO,
2009, p. 168).

Partindo da colocação de Pirandello, é possível afirmar que


Moscarda enlouqueceu justamente em função da tomada de
consciência da superficialidade da percepção que possuía sobre si
mesmo. Quem era ele para Dida? E para os amigos? Quem era
Vitangelo Moscarda para ele mesmo? Acompanhando o pensamento
de Pirandello, constatamos que não há uma única resposta, pois as
formas nas quais o ser humano pretende se prender são puramente
noções abstratas e temporárias, são ideais em relação aos quais se
quer manter alguma coerência, mas que não passam de eternas
ficções.
A reflexão é a palavra-chave do umorismo e, ao mesmo tempo,
a atividade mental que desencadeia o pesadelo de Moscarda. A partir
do momento em que o ato de refletir passa a fazer parte do cotidiano
do protagonista e interferir na sua forma de se relacionar com o
mundo, todos os movimentos espontâneos e irrefletidos começam a
ser submetidos ao filtro da reflexão crítica. Esta, agindo sobre
Moscarda, interrompe o fluxo natural e espontâneo da vida, antes
harmonioso, gerando um forte sentimento de inadequação, dúvida e
instabilidade.

- 226 -
No segundo capítulo do primeiro livro de Um, nenhum e cem
mil, o título E o seu nariz? é uma provocação dirigida ao leitor e a um
amigo que Moscarda encontra durante uma caminhada pelas ruas de
Richieri. Ao perguntar se o rapaz já havia observado que seu nariz
pende para a direita, Moscarda se surpreende com a resposta
afirmativa: o amigo já havia notado sua deformidade. Quantas e
quantas vezes, questiona-se o banqueiro, ele não havia falado mal do
nariz de alguém, sendo que os outros o conheciam como “um
Moscarda de nariz torto”? (PIRANDELLO, 2010, p. 23) Para provocar e
vingar-se do amigo, nosso protagonista pergunta se ele sabe que tem
uma cova que divide seu queixo ao meio de forma desigual. “Eu? Que
nada! - exclamou o amigo. – Sei que tenho uma covinha, mas não
como você diz”. (PIRANDELLO, 2010, p. 24). Convidado por Moscarda
para irem ao barbeiro esclarecer a questão, o amigo vê que, de fato,
há uma assimetria em seu rosto nunca antes percebida por ele. Entre
uma provocação e outra, Vitangelo Moscarda conclui que

É verdade que eu poderia me consolar com a ideia


de que, afinal de contas, o meu caso era óbvio e
banal, mais uma prova de um fato extremamente
notório, isto é, que todos notamos facilmente os
defeitos dos outros e não percebemos os nossos.
Mas o primeiro germe do mal já começara a lançar
raízes no meu espírito, e não pude me consolar
com essa reflexão. Em vez disso, fixou-se no meu
pensamento a ideia de que eu não era para os
outros aquilo que até agora, dentro de mim, havia
imaginado que fosse (PIRANDELLO, 2010, p. 24) .

- 227 -
O desconsolo e a perplexidade do protagonista, provocados
pela descoberta de que sua percepção sobre si mesmo era equivocada
e ilusória, conduzem-no por um caminho sem volta de reflexões e de
tentativas de autoconhecimento. Há um trecho em L’Umorismo que
resume o problema existencial de Moscarda. Vejamos o que escreve
Pirandello:

Vemo-nos nós em nossa verdadeira e lhana


realidade, tal como somos, ou não
preferencialmente como quiséramos ser? Por um
espontâneo artifício interior, fruto de secretas
tendências ou de inconscientes imitações, não nos
cremos de boa fé diferentes do que
substancialmente somos? E pensamos, atuamos,
vivemos segundo essa interpretação fictícia e, no
entanto, sincera de nós mesmos? (PIRANDELLO,
2009, p. 165)

A “boa fé” de Moscarda é plausível, retomando o termo


empregado por Pirandello no excerto, tendo em vista que, após a
descoberta de que sua existência era o somatório das inúmeras
imagens que ele e os outros construíram, o protagonista dá início a
uma série de atos insanos que deixam perplexos os moradores da
pequena Richieri. O desatino de suas ações, dentre elas a doação de
parte de sua fortuna para pessoas estranhas, está intrinsecamente
relacionado ao desejo de libertar-se das tantas e tantas máscaras que
ele havia vestido durante uma vida inteira.

- 228 -
A partir do terceiro capítulo do primeiro livro, intitulado Uma
bela maneira de estar só, a vida de Vitangelo Moscarda muda
completamente, a presença da esposa o incomoda e ele só tem um
desejo: estar só e mirar-se no espelho, ficar na companhia de si
mesmo, sem nenhum estranho por perto. Podemos entender o desejo
de isolamento de Moscarda como uma angustiada tentativa de livrar-
se da obrigação do “mentir social”, citada por Pirandello em
L’Umorismo. Assim escreve o escritor siciliano no referido ensaio:

Como no mundo social dominam a simulação e a


dissimulação, tanto menos advertidas quanto mais
se tornam habituais, assim também nós simulamos
e dissimulamos conosco mesmos, desdobrando-
nos e amiúde também multiplicando-nos.
Sentimos em nós mesmos aquela vaidade de
parecermos diferentes do que somos, que é uma
forma consubstanciada na vida social; e furtamo-
nos daquela análise que, desvelando a vaidade, iria
excitar o remorso da consciência e nos humilharia
perante nós mesmos (PIRANDELLO, 2009, p. 167).

Dentro da galeria dos protagonistas perturbados e deslocados


de Pirandello, Vitangelo Moscarda representa o mais perfeito
representante da personagem que tenta desatinadamente livrar-se
das mentiras sociais, buscando refúgio na solidão. No quarto capítulo
do primeiro livro, no entanto, Moscarda modifica sua ideia inicial de
“estar só” e começa a refletir sobre a possibilidade de estar
desenvolvendo uma espécie de loucura. A partir desse ponto da
narrativa, sua intenção é estar sem ele mesmo, ou, usando a

- 229 -
terminologia empregada pelo próprio Moscarda, na companhia do
“estranho inseparável de mim” (PIRANDELLO, 2010, p. 29). E tem
início, destarte, sua fixação desesperada em conhecer aquele
desconhecido que vivia nele, mas que lhe escapava, pois somente os
outros o viam vivendo, tarefa impossível para ele mesmo:

E desde então me fixei neste propósito


desesperado: de perseguir aquele estranho que
estava em mim e que me escapava, que eu não
podia fixar diante do espelho porque logo se
transformava em mim, tal como eu o conhecia –
aquele um que vivia pelos outros e que eu não
podia conhecer, que os outros viam vivendo, e eu
não. Também eu queria vê-lo e conhecê-lo tal
como os outros o viam e conheciam (PIRANDELLO,
2010, p. 31).

Até esse ponto, Moscarda acredita que o estranho que há nele


é somente um. Todavia, seu drama se acentua com a descoberta da
existência de cem mil Moscardas, todos com o mesmo nome, o mesmo
nariz torto, as mesmas sobrancelhas estranhas, as mesmas pequenas
deformidades, mas um Moscarda diferente para cada conhecido.
Em Perseguindo o estranho, o quinto capítulo do primeiro livro,
Moscarda deseja estar sozinho em casa para poder estudar as próprias
reações livremente, surpreender a si próprio fazendo caras e
expressões sem parecer um comediante diante da esposa. Não
obstante a tentativa de ver-se como os outros o viam, as conclusões
de Moscarda, no oitavo e último capítulo do primeiro livro, foram

- 230 -
devastadoras: jamais conseguiria enxergar-se como os outros o
faziam; estava condenado a carregar aquele corpo visível para os
outros, todavia invisível para ele mesmo; cada um poderia dar àquele
corpo a realidade que quisesse; aquele corpo não era nada.
A partir do segundo livro de Um, nenhum e cem mil, as
incessantes reflexões do protagonista provocam o total esmagamento
do eu, efetuado por intermédio da destruição completa da imagem de
Vitangelo Moscarda, o jovem rico e ocioso, casado com Dida. Ademais,
ocorre o abandono das relações de verossimilhança com o mundo
exterior ao texto narrativo. O fim do suporte mimético se dá em
função da progressiva loucura de Moscarda, ou, usando outros
termos, sua tentativa fracassada de encontrar a verdadeira essência
de si mesmo.
Segundo o professor e crítico literário Wladimir Krysinski (1988,
p. 48), nas reflexões de Moscarda se reconhece o peso do social, do
outro e dos outros. Paradoxalmente, a intersubjetividade do sujeito é
colocada em xeque pela superficialidade do olhar do outro, pois a
visão externa não equivale à percepção do próprio indivíduo sobre si
mesmo. A crença em ser “alguém”, um indivíduo único, é contradita
pelas imagens e os inúmeros sentidos que os outros constroem. No
caso de Moscarda, a busca de significados para si mesmo resulta em
uma série de certezas negativas: não é para Dida e para os outros o
que é para ele mesmo; nem mesmo sabe quem ele é.

- 231 -
Leonardo Sciascia (1953, p. 20) afirma que a obra de Pirandello
estava quase completa antes da guerra, mas é justamente o primeiro
grande conflito mundial o fato que modifica o comportamento da
crítica em relação a ele. Pirandello é efetivamente descoberto depois
de vinte e cinco anos de trabalho. Mas por que tanto atraso?-
questiona Sciascia. A resposta é simples: é a guerra que cria condições
efetivas para compreender Pirandello e suas personagens; são os
homens que voltam atônitos dos campos de batalha que alertam para
a completa dissolução da identidade, a trágica fragmentação do eu, o
perplexo jogo de espelhos em torno da individualidade perdida. O
horror do qual foram os protagonistas aflorava nas suas consciências.

Davam-lhes um fuzil, um uniforme, um número; e


os jogavam na lama, no sangue – matar e ser
morto. [...] E a carnificina continua, um dia após o
outro, um ano após o outro: até que alguém diz que
basta, que o direito foi restabelecido, a fé foi salva
e todos os homens são irmãos. Assim se retorna a
casa. Mas o que é a casa, os afetos que a compõe,
o sujeito mesmo que retorna? É aquele de antes,
ou um outro? E os outros, quem são? (SCIASCIA,
1953, p. 20-21)

A estupefação diante de tudo que foi visto e vivido na guerra


gera um sentimento de desconfiança e instabilidade que modifica
consideravelmente a relação do homem consigo mesmo e com os
outros. Sciascia (1953, p. 22) complementa que a cultura italiana,
depois da guerra, inicia um processo de europeização, de libertação da

- 232 -
estreita provincianidade e de visualização, mesmo que de forma
incipiente, daquilo que acontecia do lado de fora de suas fronteiras
geográficas e sociais. Mas é, sobretudo, aquilo que ocorre no coração
do homem que transforma a obra de Pirandello em instrumento eficaz
para compreender os mecanismos da vida em uma Europa antes
cômoda, tranquila e equilibrada, todavia convulsiva depois da grande
guerra. A perplexidade de quem viu ou viveu o horror, o massacre, a
morte, a instabilidade e a dúvida em relação à própria identidade está
refletida nos textos de Pirandello e, de forma especial, em Vitangelo
Moscarda, um sujeito atônito diante da inconsistência da própria
identidade e da incomensurável distância entre o ideal (as projeções
generalizantes acerca do homem) e o real (um caleidoscópio de
imagens distorcidas).
Pirandello afirma que o humorismo não se limita ao contraste
entre o ideal e o particular, mas que enxerga na idealização algo a ser
decomposto. É justamente essa a estratégia de Moscarda: a
desintegração completa de todas as imagens, os ideais e os conceitos
que a alteridade e ele mesmo haviam construído. É possível afirmar
que o protagonista de Um, nenhum e cem mil atingiu radicalmente seu
objetivo: abandonou a casa, a família, as roupas e a identidade. Nem
mesmo do nome fazia questão, pois não era mais Vitangelo Moscarda
e não havia necessidade de sê-lo no hospício onde foi morar.
Antes disso, no primeiro capítulo do livro VII, uma personagem
antes citada superficialmente por Moscarda adquire um importante

- 233 -
papel no desenrolar da trama. Trata-se de Anna Rosa, uma amiga de
Dida, a ex-esposa de Moscarda. Ao receber um convite da moça para
ir até a sua casa, o protagonista do romance estava certo que a única
intenção era promover a reaproximação do casal. Moscarda
comparece ao encontro, mas um tanto desconfiado. A cisma se devia
ao fato de que, em algumas ocasiões, Moscarda a surpreendera
esboçando um sorriso nos lábios ao fitá-lo. Ao chegar à casa de Anna
Rosa, foi comunicado que ela se encontrava na Abadia Grande, uma
espécie de mosteiro, e foi para lá. A moça o recebeu, convidou-o a
segui-la e, minutos depois, ouviu-se um estrondo. Anna Rosa cai,
ferida acidentalmente no pé por um tiro do revólver que ela mesma
trazia na bolsa. A notícia se espalhou rapidamente pela cidade:
Moscarda saiu da Abadia com Anna Rosa nos braços. A ex-esposa, a
partir daquele fato, só conseguia acreditar que seu Gengê era
apaixonado pela amiga. Dessa forma, Vitangelo Moscarda se viu, pelo
olhar dos outros, apaixonado por Anna Rosa. Aturdido, mas
conformado, reflete:

Mas, pensando bem, esse tipo de coisa é o melhor


que se pode esperar das tantas realidades bizarras
que os outros nos conferem. Superficialmente,
costumamos chamá-las de falsas suposições, juízos
errôneos, atribuições infundadas. Porém, tudo
aquilo que se pode imaginar sobre nós é realmente
possível, conquanto não sejam verdades para nós.
E os outros nem se abalam, pouco se importando
se são ou não verdades para nós: são verdades para
eles. Tão verdadeiras que, muitas vezes, os outros

- 234 -
chegam a nos convencer de que a verdade que eles
nos atribuem é mais verdadeira que a sua própria
realidade, caso vocês não se agarrem com força à
realidade que vocês mesmos se deram por conta
própria (PIRANDELLO, 2010, p. 178).

A aproximação com Anna Rosa foi fundamental para que


Moscarda constatasse que, da mesma forma como ele era cem mil
para os outros, Dida também era. A amiga confessa que a intenção da
ex-esposa era interditá-lo, impedi-lo de administrar os próprios
negócios e que já havia juntado provas suficientes de sua loucura. Essa
revelação ratificou todas as conclusões às quais Moscarda havia
chegado nos últimos tempos: ele só sabia quem era Dida para ele
mesmo, mas não tinha conhecimento sobre quem ela era para Anna
Rosa, para o pai, para os amigos e para os outros.
Após o incidente com o revólver, Anna Rosa e Moscarda
passaram a se ver com frequência até o dia em que, estando ela
acamada em função do ferimento no pé, após uma longa conversa em
que parecia fascinada pelas palavras do amigo, desfecha contra ele um
tiro, usando o mesmo revólver que a havia ferido anteriormente e que
estava debaixo de seu travesseiro. No julgamento, a jovem alegou que
o ímpeto de querer matar Moscarda foi causado “pelo horror
instintivo e repentino de um ato para o qual ela se sentia atraída, pelo
estranho fascínio de tudo aquilo que [ele] lhe dissera naqueles dias”
(PIRANDELLO, 2010, p. 196). Anna Rosa supôs que Moscarda estava
prestes a atacá-la apaixonadamente, ideia que a agradava, e que por

- 235 -
esse motivo atirou. A ausência de uma explicação mais exata para a
inesperada atitude de Anna Rosa não é de todo estranha, pois faz
parte da estratégia literária de Pirandello deixar que o leitor, em alguns
casos, permaneça na dolorosa escuridão das perguntas sem respostas.
A importância dos episódios que envolvem a personagem Anna Rosa
não está no desfecho, mas na confirmação de que o ser humano é
movido por paixões nem sempre compreensíveis, sendo inúteis os
esforços para compreender tudo racional e logicamente. Em
L’Umorismo, Pirandello defende a ideia de que a lógica

é uma espécie de bomba com filtro que põe em


comunicação o cérebro com o coração. O cérebro
bombeia com ela os sentimentos do coração e
extrai daí ideias. Através do filtro, o sentimento
deixa tudo quanto tem em si de quente, de turvo:
se refrigera, se purifica, se i-de-a-li-za. Assim, um
pobre sentimento, desperto por um caso
particular, por uma contingência qualquer, às vezes
dolorosa, bombeado e filtrado pelo cérebro por
meio daquela maquininha [a lógica], converte-se
em ideia abstrata e geral; e o que se segue daí?
Segue-se daí que não devemos afligir-nos somente
por aquele caso particular; [...] mas devemos
também intoxicar nossa vida com o extrato
concentrado, com o sublimado corrosivo da
dedução lógica.[...] até que seu coração fique árido
qual um pedaço de cortiça e seu cérebro esteja
como uma prateleira de farmácia cheia daqueles
potezinhos que levam sobre o rótulo uma caveira
entre duas tíbias cruzadas e a legenda: VENENO (
PIRANDELLO, 2009, p. 172).

- 236 -
Usando outros termos, a lógica, ao tentar abstrair o sentimento
das ideias, pretende fixar aquilo que é móvel, dar valor absoluto àquilo
que é relativo. Todavia, não há lógica capaz de explicar o sentimento,
a visão individualizada do sujeito sobre o mundo e a loucura que
advém da tentativa de encontrar uma única verdade, uma única
resposta. Essa busca desenfreada pelas respostas e a tentativa de
livrar-se das máscaras são o estopim da loucura de Vitangelo
Moscarda. Sua transformação, no decorrer da narrativa, é bastante
clara, especialmente se levarmos em conta que o início de todo o
processo de dissolução do eu da personagem foi a descoberta do nariz
torto, defeito físico completamente sem importância ao final da longa
trajetória existencial percorrida por ele.

Nunca mais me olhei no espelho e nem me passa


pela cabeça querer saber o que aconteceu com o
meu rosto e a minha aparência. Aquela que eu
apresentava diante dos outros deve ter mudado
muito, e de modo bastante cômico, a julgar pelo
espanto e pelas risadas com que fui acolhido30.
Todos, no entanto, continuavam me chamando de
Moscarda, embora a palavra Moscarda agora
tivesse para cada um deles um significado bem
diferente daquele de antes, tanto que eles
poderiam ter poupado aquele pobre coitado,
barbudo e sorridente, em tamancos e camisolão
azul, do sofrimento de ter que se voltar todas as
vezes que proferiam aquele nome, como se

30
Moscarda se refere ao dia em que compareceu ao tribunal para o julgamento de
Anna Rosa em decorrência do tiro disparado contra ele.

- 237 -
realmente ainda lhe pertencesse (PIRANDELLO,
2010. p. 206).

Segundo Leonardo Sciascia (1968, p. 30-33), o último romance


de Pirandello pode ser entendido como a suma de toda a visão do
escritor sobre a vida. O próprio Pirandello havia intuído a função de
fechamento de Uno, nessuno e centomila em algumas entrevistas
concedidas antes da publicação do romance. Na primeira, de 1919,
declarou: “Estou concluindo um romance que deveria ter surgido
antes de todas as minhas comédias. [...] Neste romance está a síntese
completa de tudo que eu fiz e a fonte de tudo que eu farei” (VICENTINI,
1970, p. 239). Na segunda entrevista, realizada em 1922 pela revista
Época com o título Conversando con Pirandello, o romance aparece
definido como o esforço teórico que indaga, partindo do pressuposto
da inconstância e da instabilidade da vida, a possibilidade de uma
solução. Vicentini reproduz a entrevista em L’estetica di Pirandello:

Espero que Um, nenhum e cem mil possa sair antes


do final do ano. Deveria ser o prefácio de toda a
minha produção teatral e será, ao contrário, o
epílogo. É o romance da decomposição da
personalidade. Ele chega às conclusões mais
extremas, às mais longínquas consequências.
Espero que nele apareça, mais claro do que tudo
que apareceu até agora, o lado positivo do meu
pensamento. De fato, o que predomina aos olhos
de todos é somente o lado negativo: apareço como
um diabo destruidor, que retira a terra debaixo dos
pés das pessoas. Em vez disso! Eu não recomendo,
talvez, onde se devem pousar os pés quando retiro

- 238 -
a terra debaixo deles? A realidade, digo eu, somos
nós que criamos: e é indispensável que seja assim.
Mas o problema é firmar-se em uma única
realidade: nela se pode acabar sufocando,
atrofiando, morrendo. É necessário variar, mudar
continuamente, continuamente mudar e variar a
nossa ilusão (VICENTINI, 1970, p. 239).

Uno, nesssuno e centomila, nesses termos, pode ser entendido


como o romance/fechamento de um longo percurso criativo teorizado
em L’Umorismo. O valor que o nariz adquire no romance está
intrinsecamente relacionado ao ato crítico-reflexivo que Pirandello
denomina umorismo: um fato corriqueiro e banal, a descoberta de um
nariz torto, tem o poder de revirar uma existência inteira.
Segundo Giuseppe Bonghi,31 o “fato” está no centro tanto da
concepção verista, vertente literária da qual Pirandello é um filho
rebelde, quanto da umoristica. No primeiro caso, o fato é sempre o
resultado das leis de causa e efeito que movimentam as narrativas
veristas, não sendo necessário indagar sobre os porquês, pois as
consequências de cada ação independem da vontade do ser humano.
Pirandello, não obstante, toma consciência, desde o início de sua
carreira, que os fatos não podem ser rigidamente interpretados,
levando-se em conta que nem sempre as causas que geram
determinadas consequências são verdadeiras ou indiscutíveis.

31
Disponível em:
http://www.classicitaliani.it/pirandel/critica/Bonghi_poetica_Pirandello.htm.
Acesso em 20 ago 2016.

- 239 -
L’Esclusa, o primeiro romance de Pirandello, publicado em
1901, registra o paradoxo de um “efeito sem causa” e uma “causa sem
efeito”, como afirma Giorgio Patrizi ( 1996, p. 39), em função da
expulsão de casa da protagonista Marta Ajala por um adultério
inexistente e de um perdão, em seguida, apesar da culpa. Tal
estratégia narrativa contrasta com as bases do Verismo, levando-se
em conta que as leis de causa e efeito subvertidas em A excluída eram
a mola propulsora das narrativas veristas.
A excluída foi escrito no período em que Pirandello estava sob
forte influência do Verismo, cuja base estava no apego aos fatos, à
causalidade e à intenção dos escritores em retratar fiel e
objetivamente a realidade siciliana da época. Não obstante a
influência verista, Pirandello inicia sua carreira de romancista
colocando em xeque a realidade e a veracidade dos fatos por
intermédio de uma obra que sugere a coexistência de perspectivas
distintas em relação a um mesmo acontecimento. O “fato”, dessa
forma, passa a ser entendido como algo relativo e sujeito a indagações,
possíveis somente por intermédio da atividade reflexiva do autor que
pretende ir além daquilo que parece.
É o fato em si, independente das prováveis consequências, que
interessa a Pirandello. Todavia, o interesse é pela possibilidade de
revertê-lo, questioná-lo. No caso de L’Esclusa, a história parece
simples: Marta Ajala é surpreendida pelo marido Roque Pentágora
enquanto lia a carta de Gregório Alvignani, seu admirador. Em função

- 240 -
disso, é considerada adúltera, é expulsa de casa e vê sua família
arruinada. Todavia, a protagonista jamais tivera qualquer
envolvimento afetivo com Alvignani além de um interesse
exclusivamente intelectual. Agradava-lhe trocar correspondências
com um homem culto que a desafiava intelectualmente. Após a
expulsão, entretanto, Marta se vê em uma situação bastante difícil e
se envolve, de fato, com o jovem advogado. Algum tempo depois, é
convidada pelo marido a retornar a casa. Em L’Esclusa, portanto, o
“fato” ( o adultério) só ocorreu, inicialmente, na mente de Roque
Pentágora e de toda a cidade, mas não era verdadeiro. Dessa forma,
Pirandello desestabiliza as certezas veristas e atenta para a existência
de múltiplas perspectivas sobre um mesmo “fato”, estritamente
relacionadas às vivências de cada um. A atividade reflexiva umoristica
é, para ele, o olhar do artista sobre essas múltiplas possibilidades de
interpretar o mundo. A tarefa do escritor umorista é desmascarar as
falsas verdades ou os engodos que envolvem a existência, mesmo que
esse complexo processo inicie com a simples descoberta de um nariz
torto.
Muitos dirão que esse “fato” (o defeito no nariz) é algo risível
e sem importância. Entretanto, são esses pequenos e insignificantes
detalhes que, caso sejam submetidos à atividade reflexiva umoristica
proposta por Pirandello, podem desencadear um doloroso e ineficaz
processo de busca pelo autoconhecimento. Em Um, nenhum e cem
mil, a questão vai além do defeito físico, mas abrange a certeza da

- 241 -
incerteza, o saber que nada se sabe. Um dos maiores umoristas,
segundo Pirandello, foi Copérnico, que com sua teoria heliocêntrica,
não somente desmontou a máquina do universo, mas a orgulhosa
imagem que o homem tinha dele mesmo. Nesse sentido, o umorismo
não acredita em heróis, mas seres errantes que vagam pelo mundo,
ora rindo, ora sendo motivo de graça, sempre desorientados, mas
constantemente esperançosos de, algum dia, encontrar alguma
certeza sobre qualquer coisa.

Eu estou vivo e sem conclusão. A vida não tem conclusão [...]


(Pirandello, 2010, p. 207)

- 242 -
Referências

BONGHI, Giuseppe. Introduzione generale alla poética di Luigi


Pirandello. Disponível em:
http://www.classicitaliani.it/pirandel/critica/Bonghi_poetica_Pirande
llo.htm. Acesso em: 20 ago. 2016.

D’ANCONA, Alessandro. Studi di critica e Storia Letteraria. Bolonha:


Zanichello Editori, 1880.

KRYSINSKI, Wladimir. Il paradigma inquieto. Pirandello e lo spazio


comparativo della modernità. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane,
1988.

PATRIZI, Giorgio. Prose contro il romanzo. Antiromanzo e


metanarrativa nel Novecento italiano. Napoli: Liguori Editore, 1996.

PIRANDELLO, Luigi. O falecido Mattia Pascal/ Seis personagens à


procura de um autor. Trad. Mário da Silva, Brutus Pedreira e Elvira
Rina Ricci. São Paulo: Abril Cultural, 1981.

______. Pirandello: do teatro no teatro. Trad. J. Guinsburg. São Paulo:


Perspectiva, 2009.

______. Um, nenhum e cem mil. Trad. Mauricio Santana Dias. São
Paulo: Cosac Naify, 2010.

SCIASCIA, Leonardo. Pirandello e il pirandellismo. Palermo: Edizioni


Salvatore Sciascia, 1953.

______. Pirandello e la Sicilia. Roma: Salvatore Sciascia Editore, 1968.

VICENTINI, Claudio. L’estetica di Pirandello. Milano: Mursia, 1970.

- 243 -
Eu sou um lobo! Um lobo? Chapeuzinho Vermelho, de
Jacob e Wilhelm Grimm (Irmãos Grimm); e
Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque: Literatura
Infantil, Recontos e Comparatismos

Sílvio Takeshi Tamura

Compilado do imaginário popular, Chapeuzinho Vermelhou


ganhou inúmeras versões, interpretações e traduções pelo mundo
todo. Historieta secular, contada e recontada ao longo do tempo, a
narrativa de uma menina que usava um capuz vermelho nunca
desapareceu entre o público. Gerações inteiras perpetuaram a fábula
de uma pequena garota e sua vovozinha, ameaçadas por um lobo.
Escrita como conto infantil pela primeira vez por Charles Perrault, em
1697, Chapeuzinho Vermelho teve sua narração modificada pelos
Irmãos Grimm, reeditada no início do século XIX. E de lá para cá, não
parou mais de ganhar novas variantes.
Chapeuzinho Amarelo foi vencedor do Prêmio Jabuti de
Ilustração, condecorado pela Câmara Brasileira do Livro, em 1998, e
recebeu o timbre de livro altamente recomendado para crianças pela
Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, em 1979. Chapeuzinho
Amarelo reúne dois grandes nomes da literatura brasileira: Chico
Buarque (escritor) e Ziraldo Alves Pinto (ilustrador), ambos laureados

- 244 -
com premiações literárias importantes, reconhecidos mundialmente
pela qualidade de suas publicações.
Este capítulo tem por objetivo fazer algumas reflexões sobre o
par literário: Chapeuzinho Vermelho, dos Irmãos Grimm, e
Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque de Hollanda. Inicialmente,
fez-se mister apresentar os autores envolvidos, para se entender o
contexto histórico, social e cultural de ambas as produções. A
princípio, o texto discorre brevemente sobre a vida dos escritores,
incluindo o ilustrador de um dos exemplares, visto que pelo gênero
literário infantil, as imagens fazem parte da obra.
Peculiaridade marcante na literatura infantil é a multiplicidade
textual: as composições apresentam tanto textos quanto ilustrações.
Portanto, as imagens são constituintes do texto; e vice-versa. Assim,
muitos pesquisadores defendem a ideia de que o ilustrador assumiria
a posição de coautor, conquanto que participa diretamente da
estruturação literária.
Em seguida, discorrem-se algumas discussões sobre os
aspectos didáticos, estéticos e literários dos contos infantis dos Grimm
e de Buarque de Hollanda. Algumas versões são apresentadas,
exemplificando situações de como Chapeuzinho Vermelho fora
reescrito ao longo da história, em várias perspectivas e enfoques. A
linguagem também é contextualizada a partir da estrutura narrativa:
Chapeuzinho Vermelho é narrado em prosa, e Chapeuzinho Amarelo
em poética.

- 245 -
Ao longo do capítulo, igualmente são abordados os recursos de
linguagem utilizados em ambos os contos. Chapeuzinho Amarelo, em
relação à Chapeuzinho Vermelho, demonstra feição mais complexa,
concernente a trocadilhos, metáforas e inversões palavras.

Jacob e Wilhelm Grimm (os Irmãos Grimm)


Jacob Ludwig Karl Grimm e Wilhelm Karl Grimm, conhecidos
artisticamente como Irmãos Grimm, eram naturais de Hanau, cidade a
leste de Frankfurt, Alemanha. Jacob nasceu em 4 de janeiro de 1785;
e Wilhelm em 24 de fevereiro do ano seguinte, em 1786 (CANTON,
2006, p. 8). Tempos depois, ambos se mudaram para Kassel – local em
que estudaram e posteriormente trabalharam como bibliotecários.
Atualmente, Kassel é ponto turístico, apelidada de “Rota de Contos de
Fadas”, especialmente devido aos Irmãos Grimm. Neste povoado, há
o museu Brüder Grimm-Museum Kassel, em homenagem a estes dois
irmãos (CANTON, 2006, p. 12).
No início do século XIX, a Alemanha era constituída por
centenas de principados – herança do período denominado Sacro
Império Romano-Germânico (KITCHEN, 2013, p. 9). Nesta época,
sobretudo nas primeiras décadas dos Oitocentos, o exército
comandado por Jêrome Bonaparte – então imperador francês –
invadiu o território alemão, permanecendo de 1807 a 1813,
exatamente na região de Kassel – vilarejo em que moravam os irmãos
Jacob e Wilhelm Grimm. Tal fato refletiu diretamente no

- 246 -
comportamento nacionalista dos Grimm, bem visto no teor de suas
escritas (CANTON, 2006, p. 9).
Jacob e Wilhelm eram os primeiros filhos de uma família de
classe média. Philipp Grimm – pai dos Grimm – era um advogado bem
sucedido e faleceu quando o primogênito, Jacob, tinha apenas onze
anos de idade. A partir da perda do progenitor, a família entrou em
situação financeira delicada, tendo que assumir os dois irmãos mais
velhos a responsabilidade do sustento do lar. Os Grimm foram criados
em regime rigoroso de educação religiosa, da Igreja Calvinista
Reformada; estudaram no Ginásio Friedricks, dedicavam-se com
afinco aos estudos e destacavam-se entre alunos (CANTON, 2006, p.
9).
Os Grimm ingressaram na faculdade de Direito por influência
do pai, porém não concluíram o curso. Posteriormente, iniciaram os
estudos nas áreas da literatura e filologia, campos em que mais tarde
se tornariam professores. Em 1837, os Grimm foram expulsos da
Universidade de Göttingen, acompanhado de outros cinco docentes,
acusados de contrariarem o rei da Alemanha, Ernst Augustus I,
protestando contra a abolição da Constituição Liberal do Estado de
Hannover e o direito à liberdade civil. Nesta eventualidade, estes
revoltosos ficaram conhecidos como “Os Sete de Göttingen”
(CANTON, 2006, p. 12). Wilhelm Grimm morreu em 16 de dezembro
de 1859; e Jacob Grimm, em 20 de setembro de 1863, quatro anos

- 247 -
depois. Ambos estão enterrados no cemitério de St Matthaus Kircholf,
nas proximidades de Berlim (CANTON, 2006, p. 13).
Característica marcante nos Irmãos Grimm é o fato de
compilarem estórias do cotidiano, muitas delas do folclore europeu,
transformando-as em contos infantis. Durante muito tempo, as
narrativas eram transmitidas por meio da oralidade, de geração em
geração, de pai para filho, de filho para neto, de neto para bisneto, e
assim por diante. O grande desígnio dos Grimm foi registrar estas
historietas populares em forma de livros, voltados para o público
infantil. Além disso, outro diferencial de Jacob e Wilhelm Grimm foi
mudar o final triste e trágico das narrações, criando desfechos felizes,
com epílogos maniqueístas, nos quais o bem e o mal se enfrentavam,
saindo sempre o bom caráter, a virtude e a moral vencedores.32
Pouco antes dos Grimm, Charles Perrault publicara a primeira
versão de Chapeuzinho Vermelho, em 1697. No entanto, esta
preambular narrativa apresentava um final muito violento,
terminando a história com a vovozinha e a pequena Chapeuzinho
Vermelho devoradas pelo Lobo Mau. Na interpretação dos Grimm, a
conclusão foi modificada, surgindo a figura do Caçador, que as tira de
dentro da barriga vilão, salvando-as. Para mais, na versão popular
havia cenas eróticas, impróprias para crianças. Na exposição de

32
ARAÚJO, Felipe. Irmãos Grimm. Infoescola. Disponível em:
<http://www.infoescola.com/biografias/irmaos-grimm/> Acesso em: 11 fev. 2017.

- 248 -
Perrault e dos Grimm, as passagens ganharam tons totalmente lúdicos
e pueris. (BORGES, 2013, p. 33).
Os Irmãos Grimm publicaram inúmeras obras para o público
infantil, entre elas, as mais conhecidas: A Bela Adormecida (GRIMM,
2011), A Guardiã dos Gansos (GRIMM, 2009), Chapeuzinho Vermelho
(GRIMM, 2013), João e Maria (GRIMM, 2006), O Alfaiate Valente
(GRIMM, 2011), O Pequeno Polegar (GRIMM, 2015), Rapunzel
(GRIMM, 2008) e tantas outras.

Chico Buarque de Hollanda


Francisco Buarque de Hollanda nasceu no Rio de Janeiro (RJ)
em 19 de junho de 1944. É quarto filho do renomado historiador,
jornalista e professor Sérgio Buarque de Holanda e de Maria Amélia
Cesário Alvim. Buarque mudou-se para São Paulo na ocasião em que
seu pai fora convidado para dirigir o Museu do Ipiranga. No início da
década de 1950, a família Buarque de Holanda transferiu-se para a
Itália, permanecendo por lá durante dois anos, período em que Sérgio
Buarque lecionava na Universidade de Roma (HOMEM, 2009, p. 11).
Intelectual versátil, Chico Buarque produziu obras de extrema
qualidade em diferentes áreas artísticas, desde música, poesia e
contos, até letras de canções, teatros e romances. Buarque também
tem irmãs cantoras e compositoras, entre elas: Heloísa – conhecida
como Miúcha –, Ana Maria e Cristina. Além delas, também são irmãos
de Chico: Maria do Carmo, fotógrafa; Sérgio, economista e professor

- 249 -
universitário; e Álvaro, advogado. Chico Buarque de Hollanda é pai de
três filhas: Helena, Luísa e Sílvia – esta última seguira a carreira de atriz
(ZAPPA, 2011, p. 22).
Quando jovem, Chico Buarque recebeu influências musicais
eminentes, como: Pixinguinha, Dorival Caymmi, Ary Barroso, Dalva de
Oliveira, Sílvio Caldas, dentre outrem. Havia também grande
admiração de Chico por outro cantor, sambista e compositor: Noel
Rosa. Chico Buarque faz parte de uma geração de novos intérpretes, a
exemplo de Leci Brandão, Joe Cocker, Jeff Beck e Jimmy Page (ZAPPA,
2011, p. 32).
Chico Buarque de Hollanda apresenta-se atualmente como um
dos grandes músicos, compositores, dramaturgos e escritores
brasileiros. Em 2010, com a obra Leite Derramado (BUARQUE, 2009),
foi vencedor do Prêmio Jabuti, na categoria Livro de Ficção. É também
autor de diversos títulos, entre eles: Benjamim (BUARQUE, 1995),
Budapeste (BUARQUE, 2003), Chapeuzinho Amarelo (BUARQUE,
2013), Estorvo (BUARQUE, 1991), Fazenda Modelo (BUARQUE, 1979),
Irmão Alemão (BUARQUE, 2015) e muitos outros.

Ziraldo
Ziraldo Alves Pinto nasceu em 24 de outubro de 1932, em
Caratinga (MG), interior do estado, localizada na região do Vale do Rio
Doce. Desde criança, apresentava talento para desenhar, tornando-se
ilustrador profissional na fase adulta. Em 1.º de outubro de 1960,

- 250 -
Ziraldo criou a primeira revista em quadrinhos infantil a cores do Brasil
– A Turma do Pererê – de circulação mensal, editada pela Gráfica
Cruzeiro. (Cf. PINTO, 1960).
Em 1969, Ziraldo publicou FLICTS, outro grande sucesso. O
Menino Maluquinho, seu personagem mais conhecido, surgiu na
década de 1980, marcando para sempre sua carreira de escritor e
cartunista. Ziraldo iniciou sua profissão como chargista e produzia
caricaturas com temáticas políticas. Além de artista gráfico, é também
dramaturgo, jornalista, humorista e bacharel em Direito. Suas obras
foram adaptadas para o cinema, teatro e televisão.
Em 1998, Ziraldo ganhou o Prêmio Jabuti de Ilustração, com o
livro Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque, publicado pela editora
José Olympio. Em 2003, foi vencedor do Prêmio ABL de Literatura
Infantojuvenil, com a obra Menina Nina, concedido pela Academia
Brasileira de Letras (ABL).
Ziraldo é autor de inúmeros títulos, entre eles: 25 Anos do
Menino Maluquinho (PINTO, 2006), A Turma do Pererê (PINTO, 1960),
As Aventuras da Professora Maluquinha (PINTO, 2010), Flicts (PINTO,
2009), Histórias da Carolina (PINTO, 2007), Maluquinho por Bichos
(PINTO, 2005), Maluquinhos por Festas (PINTO, 2008), Uma Menina
Chamada Julieta (2003) e tantos outros.
Além dos trabalhos para o público infantil, Ziraldo também
desenvolveu projetos voltados para outras áreas, como a revista
Bundas (sátira) e O Pasquim (semanário). O prenome Ziraldo é a

- 251 -
junção das sílabas dos nomes dos pais: dona Zizinha e sr. Geraldo. (cf.
PINTO, 1960). Ziraldo é irmão de Zélio Alves Pinto, também
caricaturista, artista gráfico e jornalista.

Chapeuzinhos, Recontos e Comparatismos


Não é a primeira vez que a narrativa de uma menina chamada
Chapeuzinho Vermelho é recontada no corredor da história. Há
tempos, este enredo é relatado por diversos populares e escritores do
mundo todo. De criação anônima e advinda da memória comum,
Chapeuzinho Vermelho ultrapassa gerações, encantando e entretendo
expectadores dos quatro cantos do planeta.
Segundo um antigo ditado popular: “Quem conta um conto,
aumenta um ponto”. E tal adágio faz sentindo, quando o público
encontra à disposição quantidade expressiva de publicações de
Chapeuzinho Vermelho, produzida por inúmeros autores, de
diferentes países. No mundo, mais de trezentas versões desta ficção
são catalogadas até o presente momento.
Lynn Roberts (2009) apresenta a interpretação de Chapeuzinho
Vermelho na atuação de um menino. Observa-se que o ambiente, as
circunstâncias e a estética narrativa são modificados em relação à
versão clássica.

Há não muito tempo, em um país bem parecido


com o nosso, vivia um menininho. Seu nome era
Tomás, mas – por alguma razão – todos os

- 252 -
chamavam de Chapeuzinho Vermelho. Os pais de
Chapeuzinho Vermelho eram donos de uma
acolhedora pensão, e as pessoas vinham de longe
para provar seu borbulhante e famoso
refrigerante. Chapeuzinho Vermelho adorava
encontrar os viajantes e ouvir histórias dos
perigosos confrontos com audaciosos salteadores
lobos. (ROBERTS, 2009, p. 8)

Garcia-Roza (2009) reconta Chapeuzinho Vermelho


incorporando ao texto um diálogo por telefone:

— Alô! Quem fala?


— Eu.
— Eu quem?
— Chapeuzinho Vermelho.
— Aqui quem está falando é o lobo.
— O lo...
— O Lobo Mau. Tá fingindo que não me conhece?
Olha aí, garota, não estou a fim de te comer nem
de comer a sua vovozinha caquética, está me
ouvindo? Sou um lobo, porra! Agora vai chamar sua
mãe que eu não converso com criança.
— O que é, Chapeuzinho? Não vê que estou
assando um bolo pra sua avó? Tira o gato daqui...
— O lobo está no telefone!
— Quem?
— O Lobo Mau.
— Vá colher flores, minha filha.
(GARCIA-ROZA, 2009, p. 26)

Portanto, Chapeuzinho Vermelho é retratada em diferentes


conjunturas, ambientada em inúmeras situações, composta por

- 253 -
tramas variadas, cada qual com suas conexões com o tempo,
localidade e estética literária.
Para Antonio Candido (2006, p. 32) existem intrínsecas
relações entre obra, autor e público; e neste âmbito, as experiências
coletivas exercem fortes influências na produção dos títulos ao longo
das gerações. Para mais, Candido (2006, p. 34) acrescenta que as
narrativas são reflexos da cultura de um povo; e neste ínterim, há
posições sociais levadas em consideração na criação do artista.
Chapeuzinho Vermelho, pois, é uma invenção coletiva, criada
e recriada no sentido semântico, estético e literário, perpetuando o
imaginário global, unificando interpretações de diferentes povos do
mundo.
Este capítulo tem por objetivo fazer algumas observações
sobre as obras: Chapeuzinho Vermelho, dos Irmãos Grimm – autores
europeus, publicada em meados do século XIX – e Chapeuzinho
Amarelo, do escritor brasileiro Chico Buarque de Hollanda, produzida
no século XX, com ilustrações de outro grande nome da literatura
infantojuvenil: Ziraldo Alves Pinto.

Chapeuzinho Vermelho e Chapeuzinho Amarelo: Estrutura Textual e


Figuras de Linguagem
Chapeuzinho Vermelho, dos Grimm, apresenta estrutura
textual em prosa, narrada em terceira pessoa. Em razão do público-
leitor, o enredo é descrito em tons lúdicos, apoiado em palavras

- 254 -
serenas, denotando percursos pitorescos, despertando expectativas
de suspense, prendendo a atenção dos expectadores. A linguagem é
clara, direta e concisa, composta por orações curtas, evitando
vocábulos redundantes e desnecessários, expondo locuções de fácil
entendimento.

Era uma vez uma menininha encantadora. Todos


que batiam os olhos nela a adoravam. E, entre
todos, quem mais a amava era sua avó, que estava
sempre lhe dando presentes. Certa ocasião ganhou
dela um pequeno capuz de veludo vermelho.
Assentava-lhe tão bem que a menina queria usá-lo
o tempo todo, e por isso passou a ser chamada de
Chapeuzinho Vermelho. (GRIMM, 2013)

Ao contrário dos Irmãos Grimm, Chapeuzinho Amarelo, de


Chico Buarque (2013) não é estruturado em prosa, e sim em poesia. O
texto é constituído por versos e trovas, com métricas e rimas entre
palavras e estrofes. No entanto, a entonação lúdica e afável é
semelhante à versão original, bem como os demais itens da obra.

Cai, levanta, se machuca,


vai à praia, entra no mato,
trepa em árvore, rouba fruta,
depois joga amarelinha
com o primo da vizinha,
com a filha do jornaleiro,
com a sobrinha da madrinha
e o neto do sapateiro.
(BUARQUE, 2013, p. 14) (Grifos meus)

- 255 -
Nas referências grifadas, notam-se rimas entre as locuções:
machuca e fruta; amarelinha, vizinha e madrinha; e jornaleiro e
sapateiro. Em relação às figuras de linguagem, em Chapeuzinho
Amarelo atenta-se para o fato de haver muitas repetições propositais
de palavras.
Fiorin (2014, p. 115) adverte que muitos professores ensinam
aos alunos, desde crianças, que repetições de verbetes são
consideradas vícios de linguagem. Entretanto, este linguista ressalta
que nem sempre a reiteração de vocábulos caracteriza-se como tal,
pois em muitos casos, a frequência do uso destes termos é necessária,
em vista do sentido textual. Fiorin (2014, p. 116) também destaca que
a repetição do predicado, por vezes, tem a finalidade de aumentar a
extensão do texto, reforçando ideias e salientando intenções. A
exemplo disso, transcrevem-se os versos abaixo:

E Chapeuzinho Amarelo,
de tanto pensar no LOBO,
de tanto sonhar com o LOBO,
de tanto esperar o LOBO,
um dia topou com ele
que era assim:
carão de LOBO,
olhão de LOBO,
jeitão de LOBO,
e principalmente um bocão
tão grande que era capaz
de comer duas avós,
um caçador,
rei, princesa.

- 256 -
Sete panelas de arroz
e um chapéu
de sobremesa.
(BUARQUE, 2013, p. 7) (Grifos meus)

No extrato acima, as sentenças grifadas de tanto e lobo têm por


disposição reforçar estes dois termos, tonificando, respectivamente,
as expressões de intensidade (de tanto) e o sujeito da ação (o lobo).
Ao longo da obra, outras passagens têm este sentido, repetindo
expressões, conforme a epígrafe abaixo:

Ele gritou: sou um LOBO!


Mas a Chapeuzinho, nada.
E ele gritou: sou um LOBO!
Chapeuzinho deu risada.
E ele berrou: EU SOU UM LOBO !!!
Chapeuzinho, já meio enjoada,
com vontade de brincar
de outra coisa.
Ele então gritou bem forte
aquele seu nome de LOBO
umas vinte e cinco vezes,
que era pro medo ir voltando
e a menininha saber
com quem não estava falando:
EU SOU UM LOBO!
LOBO LOBO LOBO LOBO LOBO LOBO
LOBO LOBO LOBO LOBO LOBO LOBO
LOBO LOBO LOBO LOBO LOBO LOBO
(BUARQUE, 2013, p. 12) (Grifos meus)

Ainda em relação à estrutura textual, Chapeuzinho Amarelo


utiliza-se de trocadilhos, claramente visto em vários trechos da obra.

- 257 -
As inversões de sílabas, formando novas palavras, têm por objetivo,
metaforicamente, representar mudanças de comportamento da
protagonista, que antes tinha medo do lobo, e posteriormente, não
sentia mais pavor dele.

Aí,
Chapeuzinho encheu e disse:
“Para assim! Agora! Já!
Do jeito que você tá!”
E o lobo parado assim
do jeito que o lobo estava
já não era mais um LO-BO.
Era um BO-LO.
Um bolo de lobo fofo,
tremendo que nem pudim,
com medo da Chapeuzim.
Com medo de ser punido
com vela e tudo, inteirim.
(BUARQUE, 2013, p. 13) (Grifos meus)

A inversão de sílabas, de lo-bo para bo-lo, simboliza a


transfiguração semântica de um substantivo: antes era adjetivado pela
perversidade, pois era um lobo. Em seguida, converte-se numa
designação positiva, “gostosa ou saborosa”, visto que doravante,
refere-se a uma guloseima: um bolo.
Noutros trechos, muitos fragmentos são encontrados neste
sentido, como: Gãodra – inverso de Dragão (BUARQUE, 2013, p. 16);
Barão-Tu – inverso de Tubarão (BUARQUE, 2013, p. 16); Pão Bichôpa
– inverso de Bicho Papão (BUARQUE, 2013, p. 17); e Trosmons –
inverso de Monstros (BUARQUE, 2013, p. 17).

- 258 -
Em Chapeuzinho Amarelo, é frequente o uso de figuras de
linguagem na composição de trocadilhos, inversão de sentidos e
demais estratagemas textuais. Em contrapartida, em Chapeuzinho
Vermelho, dos Irmãos Grimm, não há qualquer artifício neste sentido,
caracterizando-se convencionalmente como uma escrita culta, de
acordo com a norma padrão.

Medo, Perigo e Narrativas do Mal


A literatura infantil oferece à criança um arcabouço
extremamente amplo, desde contatos com seres imaginados,
realidades idealizadas e liberdades criativas. Ademais, desenvolve
fantasias e o processo lúdico, constituindo-se como atividades
essenciais para a formação do ser humano (ANDRADE, 2014, p. 96).
A qualidade literária em grandes escritores como os Irmãos
Grimm e Chico Buarque reside em não tratar a criança como “boba”,
e sim como um indivíduo inteligente, em constante evolução e
aprendizado, capaz de perceber as situações em que estão inseridas.
Tanto Chapeuzinho Vermelho, dos Grimm, quanto
Chapeuzinho Amarelo, de Buarque de Hollanda, são obras destinadas
ao público infantil; porém, claramente, são publicações que instigam
a imaginação da criança-leitora, lhe desenvolvendo o senso criativo,
como se estivessem palavreando com um adulto.
Segundo Costa (2013, p. 23), a literatura apresenta
características sociais, relacionada aos temas humanísticos,

- 259 -
representando o homem em sua realidade, provocando processos de
socialização. Ademais, citando Vygotsky, a autora também ressalta
que o uso da linguagem favorece o direcionamento da criança,
estimulando-a e alimentando sua imaginação. E neste bojo, a
literatura infantil é determinante na familiarização tanto da linguagem
oral quanto escrita (COSTA, 2013, p. 27).
Chapeuzinho Vermelho e Chapeuzinho Amarelo narram medos
e perigos aos quais as crianças estão expostas no dia a dia. As angústias
sentidas pelos pequenos são fatos que se repetem ao longo do tempo.
A violência contra crianças se manifesta de diferentes maneiras: medo
de bicho-papão, bruxas, fantasmas, duendes, criaturas, etc. Medo do
escuro, medo de ficar só... O medo do lobo mal se traduz na aversão
ao desconhecido, tudo aquilo que aterroriza o universo infantil.
Ao mesmo tempo, Chapeuzinho Vermelho exprime a inocência
da criança frente às situações do cotidiano. Andar pela floresta sem
saber dos perigos, caminhar desatentamente por veredas insólitas ou
passear pelo bosque ignorando as circunstâncias.

O lobo caminhou ao lado de Chapeuzinho


Vermelho por algum tempo. Depois disse:
“Chapeuzinho, notou que há lindas flores por toda
parte? Por que não para e olha um pouco para
elas? Acho que nem ouviu como os passarinhos
estão cantando lindamente. Está se comportando
como se estivesse indo para a escola, quando é
tudo tão divertido no bosque”.
O lobo pensou com seus botões: “Esta coisinha
nova e tenra vai dar um petisco e tanto! Vai ser

- 260 -
ainda mais suculenta que a velha. Se tu fores
realmente matreiro, vais papar as duas”. (GRIMM,
2013, p. 37)

Medo e inocência caminham lado a lado em Chapeuzinho


Vermelho. Lúdico e suspense misturam-se, gerando sensações de
alternâncias narrativas para o leitor. Ora pureza, ora maldade,
Chapeuzinho Vermelho denota impressões intermitentes. Em
contrapartida, Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque, expõe o
medo exagerado da personagem principal; medo sem explicação,
medo do conhecido, medo de tudo.

Era a Chapeuzinho Amarelo.


Amarelada de medo.
Tinha medo de tudo,
aquela Chapeuzinho.
Já não ria.
Em festa, não aparecia.
Não subia escada
nem descia.
Não estava resfriada
mas tossia.
Ouvia conto de fada
e estremecia.
Não brincava mais de nada,
nem de amarelinha.
(BUARQUE, 2013, p. 6)

Não obstante, Chapeuzinho Amarelo, posteriormente, muda


seu comportamento. Doravante, decide enfrentar o lobo. Por
seguinte, perde o medo. Psicologicamente, a transição de sentimentos

- 261 -
representa a passagem da infância para a fase adulta. Ou melhor, há a
substituição da fantasia pela racionalidade. Noutras palavras, ocorre a
perda da ingenuidade e a chegada da razão.

Mas o engraçado é que,


assim que encontrou o LOBO,
a Chapeuzinho Amarelo
foi perdendo aquele medo
de um dia encontrar um LOBO.
Foi passando aquele medo
do medo que tinha do LOBO.
Foi ficando só com um pouco
de medo daquele lobo.
Depois acabou o medo
e ela ficou só com o lobo.
(BUARQUE, 2013, p. 16)

Em Chapeuzinho Amarelo, o lobo simboliza o medo das


crianças durante a infância. Do nascimento a pré-adolescência, tudo é
novo, tudo é descoberta. E aquilo que é desconhecido, gera medo. E
quando o indivíduo começa a entender os fatos, os antigos medos vão
se esvaindo, à medida que o ser humano vai crescendo.

Considerações Finais
Muitas são as variações temáticas de Chapeuzinho Vermelho
encontradas no corredor do tempo. Diversos escritores, de diferentes
países, produziram versões da estória de uma menina que se vestia
com um capuz vermelho, ora traduzido como chapéu, manta ou

- 262 -
adorno semelhante. “Quem conta um conto, aumenta um ponto”.
Assim diz um antigo bordão popular. E Chapeuzinho Vermelho, não foi
diferente.
No Brasil, muitas interpretações foram editadas a partir da
narrativa original. Mas Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque
ganhou destaque especial. Vencedor de prêmios importantes,
Chapeuzinho Amarelo é duplamente assinado por escritores
brasileiros renomados: Buarque de Hollanda (autor) e Ziraldo
(ilustrador).
Em verdade, não importa a versão, interpretação ou tradução.
O importante, de fato, é a capacidade inventiva de modificar,
acrescentar e recriar a ficção: instigar a imaginação do leitor.
Chapeuzinho Vermelho e Chapeuzinho Amarelo, efetivamente, são
potencialidades de criação e recriação de um mesmo enunciado. Em
meio às assertivas, este capítulo teve o objetivo de refletir sobre estas
duas obras literárias, especialmente sob o enfoque comparatista.

- 263 -
Referências

OBRAS LITERÁRIAS

BORGES, Maria Luiza Xavier de Almeida (Trad.). Contos de Fadas. Rio de


Janeiro: Zahar, 2013.

BUARQUE, Chico. Benjamim. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

______. Budapeste. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

______. Chapeuzinho Amarelo. Ilustrações de Ziraldo. Rio de Janeiro: José


Olympio, 2013.

______. Estorvo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

______. Leite Derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

______. Fazenda Modelo. São Paulo: Civilização Brasileira, 1979.

______. Irmão Alemão. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

GARCIA-ROZA, Livia. Era Outra Vez. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

GRIMM, Jacob; GRIMM, Wilhelm. (Os Irmãos Grimm). A Bela Adormecida.


Porto Alegre: L&Pm Pocket, 2011.

______. A Guardiã dos Gansos. São Paulo: Rideel, 2009.

______. Chapeuzinho Vermelho. In: BORGES, Maria Luiza Xavier de Almeida


(Trad.). Contos de Fadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

______. João e Maria. São Paulo: Rideel, 2006.

______. O Alfaiate Valente. São Paulo: Rideel, 2001.

______. O Pequeno Polegar. São Paulo: Rideel, 2015.

______. Rapunzel. São Paulo: Rideel, 2008.

- 264 -
PINTO, Ziraldo Alves. 25 Anos do Menino Maluquinho. São Paulo: Globo,
2006.

______. A Turma do Pererê. São Paulo: Cruzeiro, 1960.

______. As Aventuras da Professora Maluquinha. São Paulo: Globo, 2010.

______. Flicts. Edição Comemorativa. São Paulo: Globo, 2009.

______. Histórias da Carolina. São Paulo: Globo, 2007.

______. Maluquinho por Bichos. São Paulo: Globo, 2005.

______. Maluquinho por Festas. São Paulo: Globo, 2008.

______. Menina Nina. São Paulo: Globo, 2004.

______. Uma Menina Chamada Julieta. São Paulo: Globo, 2003.

ROBERTS, Lynn. Chapeuzinho Vermelho: uma aventura borbulhante. São


Paulo: Zastras, 2009.

OBRAS TEÓRICAS

ANDRADE, Gênese. Literatura Infantil. São Paulo: Pearson, 2014.

CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul,


2006.

CANTON, Katia. Era Uma Vez Irmãos Grimm. São Paulo: DCL, 2006.

COSTA, Marta Morais da. Metodologia do Ensino da Literatura Infantil.


Curitiba: Intersaberes, 2013.

FIORIN, José Luiz. Figuras de Retórica. São Paulo: Contexto, 2014.

HOMEM, Wagner. Histórias de Canções: Chico Buarque. São Paulo: Leya,


2009.

KITCHEN, Martin. História da Alemanha Moderna: de 1800 aos dias de Hoje.


São Paulo: Cultrix, 2013.
- 265 -
ZAPPA, Regina. Para seguir minha jornada: Chico Buarque. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2011.

WEBGRAFIA

ARAÚJO, Felipe. Irmãos Grimm. Infoescola. Disponível em:


<http://www.infoescola.com/biografias/irmaos-grimm/> Acesso em: 11 fev.
2017.

Chico Buarque. Site Oficial. Disponível em:


<http://www.chicobuarque.com.br/> Acesso em: 12 fev. 2017.

Ziraldo. Site Oficial. Disponível em <http://www.ziraldo.com/> Acesso em: 11


fev. 2017.

- 266 -
“Sirvo-me de Animais para Instruir os Homens”.
Fábulas: Jean de La Fontaine, Monteiro Lobato e a
Moral da História.

Sílvio Takeshi Tamura

Este artigo tem por finalidade fazer uma análise comparatista


entre dois autores que se destacaram, notadamente, como fabulistas:
Jean de La Fontaine e Monteiro Lobato. Primeiramente, há uma breve
descrição biográfica, abordando informações sobre ambos os
escritores. Há na historiografia certa ausência sobre o exato
surgimento das fábulas. Alguns indícios levam a crer que tais
historietas tenham seu limiar no Oriente, porém nada confirmado.
Tempos depois, por intermédio de itinerantes, estas narrativas teriam
chegado à Grécia Antiga.
O registro do primeiro fabulista consta em Esopo. Este
contador de estórias teria vivido aproximadamente entre os séculos
VII a V a.C. Alguns historiadores argumentam que ele teria sido um
escravo, capturado no período entre guerras; e liberto por seu ex-
dono, ao vê-lo em desmedida habilidade para narrar fatos. Tamanha
importância, Esopo é intitulado o Pai das Fábulas. Estes contos
apresentam narrativa curta, interpretada por personagens animais, e
por fim, há uma moral da história. Dessa forma, este gênero literário

- 267 -
demonstra, certamente, aspectos educativos, instruindo atos que
deveriam ou não ser feitos.
Na França do século XVII, surge Jean de La Fontaine, outro
grande fabulista. De família nobre, utilizava-se das fábulas para tecer
duras críticas à sociedade, especialmente, à burguesia. Embora de
origem abastada, La Fontaine desaprovava a aristocracia, que
praticava autobenefícios, explorando a população. Em sua
homenagem, Jean de La Fontaine foi empossado na Academia
Francesa e condecorado como Pai das Fábulas Modernas.
No início do século XX, Monteiro Lobato publica Fábulas (Cf.
LOBATO, 2008), destinada ao público infantil. Sucesso entre as
crianças, Lobato baseou-se nas escritas de Esopo e La Fontaine para
produzir tal obra. O grande diferencial lobatiano era acrescentar
comentários dos personagens do Sítio do Pica-Pau Amarelo, com
fortes críticas da boneca Emília.

Monteiro Lobato

Um País se faz com Homens e Livros.


Monteiro Lobato (1882-1948)

Monteiro Lobato nasceu em Taubaté, cidade do Vale do


Paraíba, interior de São Paulo, em 18 de abril de 1882. Era neto de José
Francisco Monteiro, ilustre político, cafeicultor e proprietário de
grandes extensões de terras, conhecido na região como Visconde de

- 268 -
Tremembé ou Barão de Tremembé. Lobato sentia imensa admiração
pelo avô, e a fim de homenageá-lo, criou o personagem Visconde de
Sabugosa – uma espiga de milho falante, extremamente inteligente e
amante da leitura. Monteiro Lobato via na figura do avô a
representação de um grande sábio.
Quando criança, Lobato ficava boa parte do tempo na
biblioteca do avô, localizada na fazenda Buquira. Neste ínterim, tomou
gosto pelos livros, dedicando longas horas de leitura aos clássicos da
literatura infantil. Este era seu ambiente preferido, onde mergulhava
no mundo da fantasia. Nalgumas das obras de Lobato, há cenas que se
passam dentro dessa biblioteca, com diálogos entre Visconde de
Sabugosa e os personagens do Sítio do Pica-Pau Amarelo.
Nesta época, não havia escritores nem obras relevantes no
país. Todos os títulos eram de escritores estrangeiros, muitos deles de
períodos bem anteriores, como Hans Christian Andersen, Irmãos
Grimm e Charles Perrault. Observam-se nas publicações infantis de
Lobato evidentes influências destes, bem visto na forma clara e sucinta
de escrever.
Monteiro Lobato é um marco na literatura infantil brasileira.
Tamanha importância, em 18 de Abril comemora-se o Dia Nacional do
Livro Infantil, em homenagem à data de seu aniversário. Antes, não
havia no Brasil um escritor que se destacasse neste gênero. Existiam
alguns autores, porém nada comparado a Lobato. Inúmeros
pesquisadores reportam-se a Monteiro Lobato como o verdadeiro

- 269 -
pioneiro, a exemplo da professora doutora Nelly Novaes Coelho (Cf.
COELHO, 2006), na dedicatória de seu Dicionário Crítico da Literatura
Infantil e Juvenil Brasileira:

A Monteiro Lobato, o iniciador.


Para todas as crianças, alegres aprendizes
e continuadoras da vida.
(COELHO, 2006, p. 3)

Monteiro Lobato é uma insigne não apenas como escritor, mas


também como empresário editorial. Lobato fundou a primeira editora
no Brasil, denominada Monteiro Lobato & Companhia. Empreendeu
nos setores agrícola, siderúrgico e petrolífero. Exerceu profissão de
jornalista, tradutor e funcionário público. Lobato sentia necessidade
da literatura infantil nacional. A quase totalidade das obras vinha de
outros países. Diversas traduções de títulos estrangeiros foram feitas
por Monteiro Lobato, a exemplo da tão conhecida Alice no País das
Maravilhas, de Lewis Carroll (Cf. CARROLL, 2007).
Lobato influenciou uma série de escritores posteriores da
literatura infantil. Defendia que as crianças deveriam ter contato com
culturas regionais, e não estrangeiras. Anteriormente, o público
nacional relacionava-se com obras europeias, em razão da quase
ausência de livros produzidos aqui. Os personagens do Sítio do Pica-
Pau Amarelo representavam a regionalidade do país, assim como
outras figuras do acervo lobatiano.

- 270 -
Por meio do personagem Saci Pererê, Monteiro Lobato trouxe
para as páginas dos livros infantis o folclore nacional (Cf. LOBATO,
2007). De modo divertido, a boneca Emília, Pedrinho, Narizinho e
outras crianças do Sítio acompanhavam as peripécias de uma
criaturinha que usava um gorro vermelho e andava pela floresta,
contando lendas milenares.
Lobato escreveu para os públicos adulto e infantil. Na literatura
adulta, publicou contos, textos jornalísticos, memórias, romances,
correspondências e impressões de viagens, entre as mais conhecidas:
 Urupês (LOBATO, 2005);
 Cidades Mortas (LOBATO, 2009a);
 América (LOBATO, 2002);
 Ideias de Jeca Tatu (LOBATO, 2001);
 entre tantos outros.

Na literatura infantil, destacam-se:


 Fábulas (LOBATO, 2008);
 O Saci (LOBATO, 2007a);
 Reinações de Narizinho (LOBATO, 2004);
 A Reforma da Natureza (LOBATO, 2010);
 Emília no País da Gramática (LOBATO, 2009b);
 Memórias da Emília (LOBATO, 2009c);
 Viagem ao Céu (LOBATO, 2007b);
 e demais títulos de sucesso.

- 271 -
Marca característica nas publicações de Monteiro Lobato é o
fato de não tratar a criança como “boba” ou “infantilizada”, não a
subestimando. Lobato tratava-a capaz de entender o mundo que a
rodeava. As histórias tinham temas significativos, como a Segunda
Grande Guerra – bem visto em A Chave do Tamanho (Cf. LOBATO,
2012), publicado na década de 1940, em pleno período bélico.
Monteiro Lobato morreu em 4 de julho de 1948, aos sessenta
e seis anos de idade. Entra ano e sai ano, há décadas, suas obras
continuam lidas na contemporaneidade. Sucesso editorial, Lobato
consagra-se como um dos maiores escritores da literatura infantil do
país.

Jean de La Fontaine

Sirvo-me de animais para instruir os homens.


Jean de La Fontaine (1621-1695)

Jean de La Fontaine nasceu em Château-Thierry, região da


Picardia, na França, em 8 de julho de 1621. De família nobre, era filho
de Charles de La Fontaine, funcionário de alto escalão do Governo,
responsável pela inspetoria de águas e florestas da época. Quando
jovem, dedicou-se aos estudos da Teologia e Direito, porém foi na
literatura que encontrou sua verdadeira vocação. Aos vinte e seis anos,
por recomendação do pai, casou-se com a jovem Marie Héricart, de

- 272 -
apenas quinze anos. Aos trinta e um anos, assume o cargo
administrativo do progenitor, na superintendência de recursos
hídricos.
Participante do círculo de poetas, La Fontaine escrevia poemas
e versos líricos. No entanto, as fábulas foram sua grande obstinação.
Por meio destas publicações, tecia pesadas críticas à sociedade,
condenando diversas práticas, sobretudo da burguesia. Suas temáticas
pairavam sobre diferenças sociais, vícios, luxúria e questões
correlatas. La Fontaine é considerado um dos maiores fabulistas da
história da literatura. A escrita leve e fluída conquistou uma legião de
leitores e admiradores. Ainda hoje, três séculos após a publicação do
primeiro ensaio, continua sendo um dos fabulistas mais lidos no
mundo.
A partir de personagens animais, La Fontaine apresentava
ideias contraditórias e pontos de vista refutativos. Por meio de suas
publicações, denunciava a podridão da classe dominante, que impedia
avanços da sociedade, em decorrência de interesses próprios, e não
populares. Embora referido como fabulista, La Fontaine também
produziu outros gêneros, entre romances, poemas e contos.
Consagrado um dos escritores mais importantes da literatura, Jean de
La Fontaine fora empossado na Academia Francesa, ao cabo do século
XVII. Morreu em 13 de abril de 1695, aos setenta e quatro anos,
deixando um dos acervos mais primorosos da literatura francesa. Em

- 273 -
razão da eminente atuação, foi laureado com o título de Pai das
Fábulas Modernas.

Esopo: A Origem das Fábulas


Não é possível saber, ao certo, a origem das fábulas. Diversos
historiadores acreditam que, possivelmente, tenham suas raízes na
Grécia Antiga, aproximadamente há seis mil anos a.C. Outros
defendem que as fábulas iniciaram-se no Oriente, e que
posteriormente, por meio de viajantes, tenham chegado à Grécia. O
registro mais antigo refere-se a Esopo, considerado o Pai das Fábulas,
e maior fabulista da história.
Alguns pesquisadores argumentam que Esopo teria sido um
escravo, vivendo por volta dos séculos VI e VII a.C. Alguns livros
descrevem que seu último dono, encantado com sua capacidade de
narrar histórias, libertou-o, para que seguisse o ofício de fabulista.
Outrem, alegam que ele não existiu, que seria uma figura inventada
pelo imaginário popular, reverenciada como contador de casos
populares. Há relatos que Esopo seria um cidadão analfabeto, que
perambulava por territórios longínquos, de cidade em cidade,
contando eventos. Reza a lenda que Esopo tinha a capacidade de
aglomerar multidões, prendendo a atenção do público, interessados
em ouvir as historietas.
Há informes de que Esopo dominava várias línguas, facilitando
a comunicação dele com diferentes povos. As fábulas apresentavam

- 274 -
no fim uma moral da história, salvaguardando o cunho educativo. Para
não citar nomes, Esopo utilizava-se de personagens animais, como
leões, sapos, tigres, ratos, cachorros e outros bichos. Porém, quando
narrava um evento, todos sabiam a quem estava se referindo.
Portanto, metaforicamente, era possível relacionar animais e
pessoas. O leão, por ser considerado o rei da selva, representava
alegoricamente a monarquia, entre reis e rainhas, que detinham o
poder. A raposa demonstrava atributos matreiros, aludindo-se aos
espertos, malandros e astutos. As ovelhas, sempre dóceis,
interpretavam a bondade e a pureza, indivíduos virtuosos e
benevolentes.
Muitos ditados populares da contemporaneidade têm
ascendência nas máximas de Esopo, entre algumas delas:

 Quem avisa amigo é;


 Quem desdenha quer comprar;
 Quem com ferro ferra, com ferro será ferido;
 Quem ri por último, ri melhor;
 Melhor um pássaro na mão que dois voando;
 Quem fala demais, dá bom dia a cavalo;
 Quem vê cara, não vê coração;
 Antes tarde do que nunca;
 Diga-me com quem andas que direi quem és;
 Quem não tem cão, caça com gato;

- 275 -
 É pelo fruto que se conhece a árvore;
 E tantos outros adágios.

Estudiosos teorizam que muitos filósofos foram influenciados


por Esopo. Frases curtas, concisas e bem elaboradas são
características de pensadores conhecidos, como Francis Bacon,
citando seus aforismos (Cf. BACON, 1984). Nada deixou escrito, mas
em oralidade, as fábulas de Esopo atravessaram séculos, perdurando
até a Modernidade.
Não é possível calcular exatamente o número das fábulas de
Esopo. Sabe-se que são milhares, muitas delas, retiradas do folclore
popular, travestidas de ensinamentos, interpretadas por personagens
animais. As fábulas de Esopo foram traduzidas para mais de cento e
cinquenta países, tornando-se obras-primas da história oral, passadas
de geração em geração, resistindo às barreiras do tempo. Tanto Jean
de La Fontaine quanto monteiro Lobato fundamentaram-se em Esopo
para escreverem suas fábulas, assim como tantos outros autores.

Jean e La Fontaine e Monteiro Lobato: fábulas e Comparatismos


As fábulas de La Fontaine são estruturadas em versos e prosas,
conforme verificado no exemplo abaixo:

A Galinha que Punha Ovos de Ouro

Um homem tinha

- 276 -
Uma galinha,
Que juno bela
Por desenfado
Tinha falado

Vivia ela
Dentro dum covo,
E punha um ovo,
D’ouro luzente
Em casa uma dia,
Que valeria
Seguramente
Dobrão e meio;

Mas o patrão
Um dia cheio
D’ímpia ambição
Foi-se à galinha
E degolou-a.

Examinou-a;
Porque supunha
Que em si continua
Rico tesouro,
Visto que punha
Os ovos de ouro;

Mas nada achou!


E por avaro
Se despojou
Do rico amparo
Que nela tinha.

Outra galinha
Jamais topou
Com tal condão;
E assim pagou
Sua ambição.
(LA FONTAINE, 2005, p. 354-355)

- 277 -
As fábulas de La Fontaine estão dispostas em poesias,
estruturadas em versos. Há presença de rimas, bem visto entre as
palavras:

 Tinha e galinha;
 Desenfado e falado;
 Covo e ovo;
 Dia e valeria;
 Patrão e ambição;
 Tesouro e ouro;
 Topou e pagou;
 Condão e ambição.

No extrato abaixo, verificam-se outras análises semelhantes:

O Cavalo e o Lobo

Na linda estação das flores,


Às horas do meio-dia,
Brioso, esperto cavalo
A verde relva pascia.

Dum bosque vizinho um lobo


Botando-lhe o luzio, diz:
“Quem te comer essas carnes
É por extremo feliz!”

Ah! Que se foras carneiro,

- 278 -
Ou mesmo burro, ou vitela,
Já marchando me andarias
Pelo estreito da goela;

Mas és um castelo! E assaz


Temo a tua artilheria
Vou bloquear-te, e do engano
Fazer fogo à bateria.

Então do bosque saindo


Em passo lento e miúdo,
De largo diz o cavalo:
Camarada, eu te saúdo;

Respeita em mim um Galeno


Que passa a vida a curar,
Que das ervas as virtudes
Sabe aos morbos aplicar;

Aposto que tens moléstias,


E porque na cura erraram,
Tomar ares para o campo,
Como é uso te mandaram.

Se quiseres que eu te cure,


Ficarás são como um pero;
Grátis, que, bem entendido,
Paga, de amigos, não quero.

O cavalo, conhecendo
A malícia do impostor,
Diz-lhe: O céu lhe pague o bem
Que me faz, senhor doutor;

É verdade que eu padeço,


Há nove dias ou dez,
Um tumor e uma ferida,
Tudo nas unhas dos pés,

- 279 -
— Bem que essa doença toque
À cirurgia somente,
Diz o lobo, eu nesse ramo
Sou um prático eminente!

Torna-lhe o fingido enfermo:


Pois, então, senhor doutor,
Chegue-se a mim, que eu me volto,
Venha apalpar-me doutor o tumor.

Pois não, filho, diz-lhe o lobo,


E a fim de o filar se chega;
Mas de repente o cavalo
Dois grandes coices lhe prega:

Acerta-lhe pela frente,


Faz-lhe o focinho num lobo;
E o lobo exclama: É bem feito!
Quem me manda a mim ser tolo?

Mete pernas como pode,


Dizendo, um tanto enfadado:
Como a breca as armas! Fui
Buscar lã; vim tosqueando!

De carniceiro a ervanário
Quis passar sem que estudasse;
Levei da toleima o prêmio;
Cada qual para o que nasce!
(LA FONTAINE, 2005, p. 483-485)

Percebem-se, similarmente, idênticas considerações acerca


das rimas entre expressões, conforme visto nos pares vocabulares:
 Dia e pascia;
 Diz e feliz;

- 280 -
 Vitela e goela;
 Miúdo e Saúdo;
 Erraram e mandaram;
 Impostor e doutor;
 Chega e prega;
 Lobo e tolo;
 Estudasse e nasce;
 Curar e aplicar.
Em contrapartida, comparado a La Fontaine, verifica-se que
Monteiro Lobato publica suas escritas não em versos, mas sim em
prosa. Além disso, em Lobato não há a presença de rimas, como no
escritor francês, conforme visto na fábula abaixo:

O Galo que Logrou a Raposa


Um velho galo matreiro, percebendo a
aproximação da raposa, empoleirou-se numa
árvore. A raposa, desapontada, murmurou
consigo: “Deixe estar, seu malandro, que já te
curo!...”. E em voz alta:
— Amigo, venho contar uma grande novidade:
acabou-se a guerra entre os animais. Lobo e
cordeiro, gavião e pinto, onça e veado, raposa e
galinhas, todos os bichos andam agora aos beijos,
como namorados. Desça desse poleiro e venha
receber o meu abraço de paz e amor.
— Muito bem! – Exclamou o galo. — Não imagina
como tal notícia me alegra! Que beleza vai ficar o
mundo limpo de guerras, crueldades e traições!
Vou já descer para abraçar a amiga raposa, mas...
como lá vêm vindo três cachorros, acho bom

- 281 -
esperá-los, para que também eles tomem parte na
confraternização.
Ao ouvir falar em cachorro, Dona Raposa não quis
saber de histórias e tratou de pôr-se ao fresco,
dizendo:
— infelizmente, amigo Có-ri-có-có, tenho pressa e
não posso esperar pelos amigos cães. Fica para
outra vez a festa, sim? Até logo.
E raspou-se.
Contra esperteza, esperteza e meia.
(LOBATO, 2008, p. 34)

Observando a epígrafe acima, constata-se que tal qual em La


Fontaine, há diálogos entre animais, discorrendo a narração. E no fim,
o leitor depara-se com a moral da história, bem especificado no grifo:
“Contra esperteza, esperteza e meia.” (LOBATO, 2008, p. 34). Atenta-
se para outro exemplo, publicado na mesma obra:

A Rã Sábia
Como a onça estivesse para casar-se, os animais
todos andavam aos pulos, radiantes, com olho na
festa prometida. Só uma velha rã sabidona torcia o
nariz àquilo.
O marreco observou-lhe o trejeito e disse:
— Grande enjoada! Que cara feia é essa, quando
todos nós pinoteamos alegres no antegozo do
festão?
— Por um motivo muito simples – respondeu a rã.
— Porque nós, como vivemos quietas, a filosofar,
sabemos muito da vida e enxergamos mais longe
do que vocês. Responda-me a isto: se o sol se
casasse e em vez de torrar o mundo sozinho o
fizesse ajudado por dona sol e por mais vários sóis
filhotes? Que aconteceria?

- 282 -
— Secavam-se todas as águas, está claro.
— Isso mesmo. Secavam-se as águas e nós, rãs e
peixes, levaríamos a breca. Pois calamidade
semelhante vai cair sobre vocês. Casa-se a onça, e
já de começo será ela e mais o marido a
perseguirem os animais.
Depois aparecem as oncinhas – e os animais terão
de aguentar com a fome de toda a família. Ora, se
um só apetite já nos faz tanto mal, que será quando
forem três, quatro e cinco?
O marreco refletiu e concordou:
— É isso mesmo...
Pior que um inimigo, dois; pior que dois, três...
(LOBATO, 2008, p. 39)

Novamente, nas fábulas de Lobato, verificam-se narrativas em


prosa e interlocuções entre animais. Por fim, desfecha-se em tom
conclusivo e educativo, asseverando um ensinamento. Em Jean de La
Fontaine, a frase final apresentada como moral da história é ausente.
Nota-se somente a narração da fábula, porém sem a sentença da
moralidade, ao cabo da estória. Em Monteiro Lobato, o leitor
defronta-se com uma proposição de aprendizado. Em Jean de La
Fontaine, não. Neste último, fica à critério do expectador tirar suas
próprias conclusões.
Ademais, há outra diferença marcante entre as fábulas de La
Fontaine e Lobato. No caso do escritor brasileiro, após a explanação
da narrativa, a estória é debatida entre os personagens do Sítio do
Pica-Pau Amarelo, sobretudo, por Dona Benta, que passa a impressão
de ser a leitora das narrativas. Em conclusão, as fábulas de Lobato

- 283 -
caracterizam-se pelas ácidas críticas da boneca Emília, que não
poupava comentários ásperos e irônicos sobre fatos, atitudes e
personagens.
A citação anteriormente transcrita (A Rã Sábia) tem como
anexo a seguinte observação:

— Esta fábula nos mostra – disse Dona Benta – que


quem só enxerga um palmo adiante do nariz está
desgraçado. As criaturas verdadeiramente sábias
olham longe. Antes de fazer uma coisa, refletem
sobre todas as consequências futuras de seu ato.
— Eu enxergo cem metros adiante do meu nariz! –
gabou-se Emília.
Narizinho fez um muxoxo.
— Gabola! Vovó já disse que louvor em boa boca
própria é vitupério.
— Mas é verdade! – insistiu Emília. — Naquele caso
da compra das fazendas para aumentar o Sítio do
Pica-Pau Amarelo, quem viu mais longe? Dona
Benta, Pedrinho ou eu? Eu...
— Perfeitamente, não nego – disse a menina. –
Mas o feio é andar se gabando. Espere que os
outros te gabem. Posso dizer assim, vovó — Espere
que os outros te gabem?
Dona Benta riu-se.
— Pode, minha filha, porque não há nenhuma
gramática por perto...
(LOBATO, 2008, p. 40)

Portanto, na realidade, as fábulas de Lobato estão diretamente


relacionadas às opiniões do autor. Diversos pesquisadores defendem
que a personagem Emília seria um alter ego de Lobato. Noutras

- 284 -
palavras, quando Emília falava, era Monteiro Lobato quem estava
expressando seu ponto de vista, por meio das fábulas.

Considerações Finais
Este artigo teve como objetivo fazer uma análise comparatista
entre as obras de dois grandes escritores: o primeiro, Jean de La
Fontaine, francês; e o segundo, Monteiro Lobato, brasileiro. Há três
grandes nomes que se destacam universalmente nas fábulas: Esopo,
Jean de La Fontaine e Monteiro Lobato, cada qual em seu tempo e
espaço. No entanto, constata-se que cada um deles abordou este
gênero literário de maneira diferente. O pioneiro, Esopo, considerado
o Pai das Fábulas, utilizou-se da linguagem oral para transmitir seus
adágios. O segundo, Jean de La Fontaine, passou a grafá-los a partir da
estrutura poética, organizando-as em trovas. No Brasil, no século XX,
surge Monteiro Lobato, acrescentando-lhes comentários incisivos,
discordando de temas e posturas, com a ajuda da turma do Sítio do
Pica-Pau Amarelo.
Observa-se que as fábulas assumiram diferentes estéticas ao
longo da história. Começando pela oralidade, passando pela poesia e
chegando até as crianças, estas narrativas sobreviveram ao tempo,
perpetuando-se de geração em geração. Poucos sabem, mas diversos
ditados populares tiveram suas origens em Esopo. Utilizando
personagens animais, nota-se que é possível retratar eventos,
extraindo deles alguns ensinamentos. Tanto para o público adulto

- 285 -
quanto o infantil, as fábulas imortalizaram-se, denotando a
capacidade de narrar o cotidiano fundamentando-se em variadas
estéticas.

- 286 -
Referências
BACON, Francis. Novum Organum. São Paulo: Editoral Cultural, 1984.

CARROLL, Lewis. Alice no País das Maravilhas. São Paulo: L&Pm


Pocket, 2007.

COELHO, Nelly Novaes. Dicionário Crítico da Literatura Infantil e Juvenil


Brasileira. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2006.

ESOPO. Fábulas de Esopo. São Paulo: MartinClaret: 2012.

______. Fábulas. São Paulo: L&Pm Pocket: 2014.

LA FONTAINE, Jean de. Fábulas. São Paulo: Landy, 2005.

LOBATO, Monteiro. A Chave do Tamanho. São Paulo: Globo, 2012.

______. A Reforma da Natureza. São Paulo: Globo, 2010.

______. América. São Paulo: Globo, 2002.

______. Cidades Mortas. São Paulo: Globo, 2009a.

______. Emília no País da Gramática. São Paulo: Globo, 2009b.

______. Fábulas. São Paulo: Globo, 2008.

______. Ideias de Jeca Tatu. São Paulo: Globo, 2001.

______. Memórias da Emília. São Paulo: Globo, 2009c.

______. O Saci. São Paulo: Globo, 2007a.

______. Reinações de Narizinho. São Paulo: Globo, 2004.

______. Urupês. São Paulo: Globo, 2005.

______. Viagem ao Céu. São Paulo: Globo, 2007b.


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Sobre os Autores

Alessandra Zelinda Sousa Bessa (Organizadora)


http://lattes.cnpq.br/2926029314347680
Possui graduação em LETRAS pela Universidade Estadual Vale do Acaraú
(2010). Especialização em Literatura e Língua Portuguesa pela mesma
instituição (2011). Atualmente é Mestranda em Literatura Comparada da
UFC.

Andrea Quilian de Vargas


http://lattes.cnpq.br/6112538992333166
Doutoranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM), possui graduação em Letras Licenciatura - Habilitação Língua
Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa - pela Universidade Luterana
do Brasil (ULBRA), campus Cachoeira do Sul. Professora nas redes privada e
pública (municipal e estadual) em Cachoeira do Sul e Santa Maria, no período
compreendido entre 1993 e 2011. Mestre em Estudos Literários pela
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Ênfase da pesquisa, no período
de Mestrado, no estudo das manifestações literárias que privilegiam
questões de alteridade em contextos ditatoriais e fragmentados, relação
entre história e literatura, memória e crítica da cultura. O tema do projeto
de doutoramento é a obra do escritor e dramaturgo italiano Luigi Pirandello,
sendo destacadas questões concernentes à antirrepresentação, à ruptura
com a mímesis e à desumanização da arte.

Andréia Vieira Netto


http://lattes.cnpq.br/7888463614686357
Possui graduação em LICENCIATURA PLENA EM LETRAS pela Universidade do
Estado de Mato Grosso (2001) e graduação em LICENCIATURA PLENA EM
CIÊNCIAS BIOLÓGICAS pela Universidade do Estado de Mato Grosso (2008),
cursa Mestrado em Literatura brasileira pela Universidade do Estado de
Mato Grosso. Atualmente é professora de Ciências naturais e biologia da
COOPERATIVA DE PROFESSORES DE PONTES E LACERDA, tecnico
administrativo - SECRETARIA DE EDUCAÇÃO DE MATO GROSSO.

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Denise Menin Tortelli
http://lattes.cnpq.br/4014041457676548
Possui curso técnico em Processamento de Dados pela Escola de Educação
Básica da URI - Campus de Erechim. Licenciatura plena em Letras -
Habilitação Português/Espanhol e Respectivas Literaturas pela Universidade
Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões URI - Campus de
Erechim/RS e Pós-graduação a nível de Especialização em Metodologia do
Ensino de Línguas: Português, Inglês e Espanhol, pelo Instituto de
Desenvolvimento do Alto Uruguai - IDEAU - Faculdade de Getúlio Vargas/RS.
Atuou como professora de língua portuguesa e espanhola na rede pública
Municipal de Jacutinga/RS de 05 de março de 2004 a 21 de fevereiro de 2012.
Participou de diversos simpósios, congressos, cursos de formação
continuada e aperfeiçoamento relacionados à educação. Concluiu o 10º
semestre do curso de Língua Inglesa do Centro de Línguas POSITIVO em
Erechim/RS. Tem experiência em ministrar aulas de língua portuguesa,
espanhola, inglesa e na disciplina de artes. Atualmente é professora
nomeada na Escola Estadual de Educação Básica Professora Margarida
Lopes, em Santa Maria/RS, desde novembro de 2012, e é mestranda no
Programa de Pós-Graduação em Letras, Área de concentração em Estudos
Linguísticos, linha de pesquisa Linguagem e Interação, pela Universidade
Federal de Santa Maria (UFSM, RS).

Kelio Junior Santana Borges


http://lattes.cnpq.br/7100462200512642
Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da UFG.
Mestre em Letras e Linguística (Estudos Literários) pela Universidade Federal
de Goiás - UFG (2009). Autor da Dissertação intitulada "Fios de vida. Tramas
de história: a ficção de Lygia Fagundes Telles. Licenciado em Letras com
habilitação em Português pela UFG (2005). Professor do Instituto Federal de
Goiás - Campus Aparecida de Goiânia.

Maria Aparecida Barros de Oliveira Cruz


http://lattes.cnpq.br/8742959462843319
Possui graduação em Letras pela Faculdade de Educação, Ciências e Letras
de Porangatu (1997). É mestra em Letras e Linguística, com área de
concentração em Estudos Literários (UFG/2013) e doutoranda em Estudos
Literários (UFG). Atualmente é professora titular - Colégio Estadual Stellanis
Kopanakis Pacheco- e professora efetiva da Universidade Estadual de
Goias/campus Porangatu. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em

- 289 -
Literaturas de Língua Portuguesa, atuando principalmente nas seguintes
linhas de pesquisa: Literatura, História e imaginário. Poéticas da
modernidade. Literatura Comparada.

Sílvio Takeshi Tamura


http://lattes.cnpq.br/2814451067343705
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História (PPGHis), Linha de
Pesquisa: Ensino de História, Patrimônio e Subjetividades; Instituto de
Ciências Humanas e Sociais (ICHS), Universidade Federal de Mato Grosso
(UFMT). Graduado em Comunicação Institucional pela Universidade do Sul
de Santa Catarina (UNISUL). Atualmente dedica-se a pesquisar temas
relacionados à História da Literatura, Teoria Literária, Educação e Literatura,
Comunicação e Literatura, Literatura e Sociedade.

Thamires dos Santos M. Fassura


http://lattes.cnpq.br/0456603641248371
Possui graduação em Letras pela Universidade Estácio de Sá (2013) e
especialização em Pós-graduação em Estudos Literários pela Faculdade de
Formação de Professores - FFP (UERJ)(2015). Atualmente é da Faculdade de
Formação de Professores - FFP (UERJ) e Membro de comitê assessor do
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.

Warleson Peres
http://lattes.cnpq.br/3101898299435523
Possui graduação em Letras - Habilitações: Língua Portuguesa, Italiana e
Espanhola (e suas respectivas literaturas) pela Universidade Federal de Juiz
de Fora (2001), graduação em Secretariado pelo Centro Universitário
Internacional (2012) e mestrado em Gestão e Avaliação da Educação Pública
pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2013). Atualmente é professor
regente da Prefeitura de Juiz de Fora e Secretário Executivo da Universidade
Federal de Juiz de Fora. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em
Estudos Literários, atuando principalmente nos seguintes temas: Línguas
Mestiças, Hibridação Linguística, Culturas Híbridas, Portunhol.

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