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O ROMANCE ROMÂNTICO

I - ORIGENS

Os romances dos autores românticos europeus como Victor Hugo, Alexandre Dumas,
Walter Scott e outros tornaram-se populares no Brasil através de sua publicação em jornais,
depois de 1830, criando no público o gosto por um gênero ainda desconhecido entre nós.

Típica cena romântica


Tanto na Europa quanto nas traduções brasileiras, essas narrativas eram primeiramente
publicadas na imprensa, na forma de capítulos diários ou semanais, aumentando de maneira
extraordinária a tiragem dos periódicos. Os leitores não escondiam seu entusiasmo pelo
desenvolvimento das histórias, seduzidos pela sucessão de acontecimentos trepidantes,
pelas emoções desenfreadas, pela linguagem acessível e pela ausência de qualquer
abstração intelectual.

Tais romances receberam o nome de folhetins. Ao escrever um folhetim, o artista submetia-


se às exigências do público leitor e dos diretores de jornais. O francês Eugène Sue chegou a
ressuscitar um personagem porque os leitores não haviam se conformado com sua morte.
Ou seja, o que determinava o desenvolvimento e o desfecho de uma narrativa era o gosto
popular. Desta forma, ao criar um folhetim o escritor se sujeitava aos valores culturais e
ideológicos do público, que desejava histórias melodramáticas e alienadas da realidade.

Por razões econômicas, quase todos os ficcionistas do período passaram a produzir


primeiro para a imprensa. Mesmo alguns dos maiores novelistas do século XIX, como
Dostoievski e Machado de Assis, se viram compelidos a lançar suas obras em fascículos.
Todavia, eles não aceitavam a concepção folhetinesca da narrativa, mantendo sua
independência estética. Outros, mais interessados na venda e na popularidade
subordinavam seus textos à estrutura típica do folhetim, que é a seguinte:

Harmonia
· felicidade
· ordem social burguesa Desarmonia
· conflito
· desordem
· crise da sociedade burguesa Harmonia final
· reestabelecimento da felicidade
· reordenação definitiva da sociedade burguesa, com o triunfo de seus valores

Com o tempo, os ficcionistas passaram a utilizar uma série de truques narrativos, repetidos
até a exaustão. Exemplo disso são os conflitos mais óbvios e recorrentes, vividos pelos
protagonistas, e suas soluções quase sempre idênticas:
E foram felizes
· a falta de dinheiro - o pobre casa com a rica e vice-versa, movido apenas pelo amor; ou
um deles recebe grande herança de parente desconhecido, etc.

· a ausência de identidade - aparecem amuletos, retratos, objetos ou sinais corporais que


provam o que se deseja provar, geralmente a origem nobre ou burguesa de um plebeu.

· a inexistência de testemunhos - surgem personagens, muitas vezes vindos das sombras,


que ouvem conversações secretas ou recebem confissões proibidas, e que então confirmam
uma identidade perdida ou inculpam alguém por um crime cometido.

Como regra geral, no último capítulo, após intensos tormentos, maldade e desolação, os
obstáculos são removidos e o amor vence. Em vários romances, contudo, a ordem social é
mais forte que a paixão e os amantes acabam destruídos pelas conveniências e pelos
preconceitos. De qualquer maneira, o final de um folhetim tem sempre um caráter
apoteótico e desmedido, seja na felicidade, seja na dor.

II - O SURGIMENTO NO BRASIL

A jovem e a luta contra a paixão física


O sucesso do folhetim europeu, em jornais brasileiros, foi resultado da emergência de um
novo público leitor, composto basicamente por estudantes e mulheres. Era um público
urbano, mas não raro procedente do campo: em geral, filhos e esposas de senhores rurais
que haviam se estabelecido na Corte, depois da Independência.

As mensagens sentimentais libertadoras dos folhetins serviram como uma luva às


necessidades daquela gente asfixiada pelas regras intolerantes de uma sociedade
economicamente agrária e culturalmente arcaica. E isso estimulou o aparecimento de
vulgares adaptações dos relatos românticos, feitas por escritores de segunda categoria.
Teixeira e Sousa, em 1843, publicou O filho do pescador, tornando-se o pioneiro desse
subgênero.

No entanto, em 1844, veio à luz A moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo. Pelo enredo
melhor articulado, pelo registro do ambiente carioca e pela sutil harmonização entre amor
juvenil e preceitos conservadores, esta narrativa ultrapassava a dimensão de simples cópia
de folhetins europeus. Sob certos aspectos, estava nascendo o romance brasileiro.

III - OS ROMANCISTAS ROMÂNTICOS

1. JOAQUIM MANUEL DE MACEDO (1820-1882)

Vida: Nasceu em Itaboraí (RJ), filho de uma família de posses. Jovem ainda, formou-se em
Medicina, a qual não praticaria, seduzido pela carreira literária, pelo magistério (foi
preceptor dos filhos da princesa Isabel e professor de História no colégio Pedro II) e pela
política (tornou-se deputado pelo Partido Liberal em várias legislaturas), além de fazer
constantes incursões pelo jornalismo. Foi o primeiro escritor brasileiro a conhecer grande
popularidade, deixando uma obra bastante vasta de mais de quarenta títulos. Morreu no Rio
de Janeiro.

Obras principais: A moreninha (1844); O moço loiro (1845); Memórias do sobrinho de meu
tio(1867); A luneta mágica (1869)

A importância de Joaquim Manuel de Macedo resulta de uma percepção do próprio


escritor: o público leitor nacional, centralizado na capital federal e devorador de folhetins
europeus, estava disposto a aceitar um romance adaptado a cenários brasileiros, desde que a
conservado o modelo de enredo das narrativas inglesas e francesas.
Além disso, o escritor deu-se conta de que precisava vencer a barreira moral - imposta pela
estrutura patriarcalista - que não via com bons olhos a explosão de sentimentos naquelas
histórias que afirmavam o direito da paixão sobre a obediência e sobre a hierarquia social.
A adaptação que Macedo fez, portanto, era uma necessidade, podendo ser assim resumida:

Romance brasileiro
(Romance romântico europeu + cenários brasileiros + valores patriarcais)
O produto desse esforço foram relatos desprovidos de grande valor artístico, mas que
possibilitavam ao leitor várias identificações. Tropeçava-se a todo instante em ruas, praças,
praias e outras paisagens conhecidas. Aqui e ali, sob algum disfarce, topava-se com uma
figura típica da sociedade carioca (fluminense, se dizia então). Um nome era lembrado, um
costume coletivo evidenciado, de tal forma que a alegria do reconhecimento tornava-se
contínua - como se, atualmente, alguém descobrisse o seu mundo e a si próprio num filme
ou numa telenovela.

A adequação moral aos valores locais

Em frente ao espelho, por Georg Frierich Kersting


Outro fator de identificação resulta do processo de abrandamento do folhetim europeu.
Embora o tema predileto de Macedo fosse o amor, as aventuras sentimentais que imaginou
não possuíam nem a violência nem o velado amoralismo das histórias dos romances
europeus de então. Afinal, aqui era o Brasil, país em que a burguesia não tinha expressão e
a ideologia patriarcal dominava completamente os espíritos.

Afetos sim, mas afetos mantidos nos limites do decoro, para não ferir os leitores, nem com
a tragédia, nem com a revolta. Mais açúcar do que sangue. Em vez de paixões
intempestivas, respeitáveis namoros que, passando pelo noivado, terminam obviamente no
casamento.

Não por casualidade, na obra de Macedo os impulsos íntimos dos enamorados sempre se
enquadram nas normas da família patriarcal. Nada de vulcões, nada de protestos, nada de
desrespeito. O universo pré-capitalista brasileiro ainda não podia conviver com a liberdade
sentimental. Até os vilões sabem adaptar-se às conveniências sociais. Como disse um
crítico, só praticam a vilania na medida em que o enredo assim o exige. Quer dizer, o
mundo narrativo de Macedo não tem abismos.

Por isso, não devemos procurar no simpático "Dr. Macedinho" (assim o tratavam) reflexões
adultas ou conflitos comovedores. Tudo nele é relativamente raso. Satisfaz-se com o que vê
e vê apenas as aparências. E, enquanto colecionador de aparências, é um cronista razoável
dos hábitos, da moda, dos tiques e - num certo sentido - da mediocridade das classes altas e
médias urbanas, retratadas numa ótica bastante ingênua.
A importância histórica
O crítico Antônio Candido diz, com ironia, que Macedo parece ceder "a um irresistível
impulso de tagarelice". Tagarelice comprovada na quantidade de sua produção: em pouco
mais de trinta anos de carreira, escreveu dezoito romances, quinze peças de teatro, dois
livros de poemas e sete volumes de variedades. Mesmo assim, forneceu as bases para a
criação do romance brasileiro. Ao focalizar os costumes patriarcais, inventariou as
dificuldades e os fuxicos próprios dos afetos juvenis, invariavelmente centrados no namoro
e na promessa de casamento, e acabou mostrando (sem teor crítico), a pequenez de nossa
vida urbana.

Acima de tudo, a sua importância na história literária advém do fato de conquistar os


leitores para uma ficção voltada para temas e cenários locais, abrindo caminho a escritores
de maior significado.

A Moreninha até hoje é a sua obra mais conhecida. Apesar da superficialidade da trama, há
no texto um tom alegre e descompromissado que ainda diverte.

A MORENINHA

Costumes do Rio de Janeiro, gravura de M. Rugendas


Resumo
O estudante Filipe convida seu amigo e também estudante, Augusto, para um fim de
semana em sua casa, na ilha de Paquetá. Augusto é famoso pela inconstância em relação à
namoradas. Filipe aposta que desta vez ele se apaixonará por uma de suas primas. Na ilha,
Augusto descobre a adolescente Carolina (a Moreninha), irmã de Filipe, que lhe desperta
sentimentos contraditórios.

Em seguida, defendendo-se da acusação de leviano com as donzelas, explica a dona Ana,


avó da jovem, o motivo de sua volubilidade. Quando tinha treze anos estava brincando na
praia com uma linda e desconhecida menina. Na ocasião, aparecera um rapazinho, dizendo
que o pai estava prestes a morrer. As crianças visitam o moribundo e, constatando a
pobreza da família, dão-lhe o dinheiro que possuíam. O doente pede um objeto pessoal de
cada um: Augusto entrega-lhe o camafeu da gravata, a garota um anel. Os objetos são
embrulhados em pedaços de pano e cosidos por sua esposa. Depois, o moribundo entrega a
cada um a jóia do outro, dizendo que eles se amariam e no futuro se tornariam marido e
mulher. Portanto, o rapaz ficara preso a esta promessa juvenil.
O jogo entre o juramento do passado e o amor do presente - pois, obviamente, Augusto
acaba gostando de Carolina - se alterna com brincadeiras marotas, erotismo negaceado,
vinganças adolescentes, bilhetes secretos, problemas nos estudos, proibições paternas, etc.
Tudo é bastante pueril e inocente, embora se possa perceber nessa ciranda de namoricos um
retrato aproximado dos folguedos sentimentais permitidos na época. No fim da narrativa,
Carolina entrega a Augusto o pacotinho contendo o camafeu: ela era a menina da praia.
Assim, o namoro pode ser concretizado, sem que o estudante quebre a promessa feita cinco
anos antes.

. JOSÉ DE ALENCAR (1829-1877)

José de Alencar
Vida: Filho de tradicional família da elite cearense, José Martiniano de Alencar nasceu em
Mecejana, no interior do Ceará. Seu pai, homem culto, liberal extremado, participou de
várias revoluções, como a chefiada por Frei Caneca, em 1817, e a Confederação do
Equador, em 1824, exercendo também cargos políticos importantes, como o de senador do
Império. O menino viveu, portanto, em um ambiente familiar intelectualizado e favorável à
formação cultural. Tinha nove anos quando se mudou com os pais para a Corte (Rio de
Janeiro), onde fez seus estudos primários, seguindo depois para São Paulo com o objetivo
de concluir o secundário e matricular-se em Direito, curso no qual se formou em 1851, com
vinte e dois anos de idade.

De volta à Corte, trabalhou como advogado e jornalista. Em 1856, sob pseudônimo de Ig,
teceu duras críticas ao poema Confederação dos tamoios, de Gonçalves de Magalhães, que,
por seu turno, foi defendido pelo próprio Imperador, também sob pseudônimo. No mesmo
ano, Alencar publicou seu romance de estréia, Cinco minutos. Em 1857, lançou no jornal O
Diário do Rio de Janeiro, sob a forma de capítulos, o folhetim O guarani, que teve uma
repercussão jamais conhecida por qualquer outro escritor até então no país. Com trinta e
cinco anos, casou-se com a sobrinha do Almirante Cochrane, herói da Independência. O
casal teve quatro filhos.

Obras principais:

Romances urbanos: Cinco minutos (1856); A viuvinha (1857); Lucíola (1862); Diva
(1864); A pata da gazela (1870); Sonhos d'ouro (1872); Senhora (1875); Encarnação
(1877).
Romances regionalistas ou sertanistas: O gaúcho (1870); O tronco do ipê (1871); Til
(1872); O sertanejo (1875);
Romances históricos: As minas de prata (1862); Alfarrábios (1873); A guerra dos mascates
(1873)
Romances indianistas: O guarani (1857); Iracema (1865); Ubirajara (1874)

Estas categorias comprovam a amplitude geográfica, histórica e social do projeto literário


de José de Alencar. Sua ambição era desmedida: cogitou fazer aqui o que Balzac fizera na
França, ou seja, um painel gigantesco dos múltiplos aspectos da realidade nacional. Quis
construir o romance brasileiro, a partir de um projeto que abrangesse a totalidade da nação,
tanto na sua diversidade física-geográfica quanto em seus aspectos sócio-culturais; tanto em
suas origens históricas gloriosas quanto nos mitos dos heróis fundadores da nacionalidade.

Regiões, história, costumes e mitos: eis a sua fórmula.


A LITERATURA COMO ALMA DA PÁTRIA

Em conseqüência, a idéia chave para a compreensão da obra de Alencar talvez esteja na sua
célebre frase: "A literatura nacional que outra coisa é senão a alma da pátria?" Ou seja, cabe
ao texto literário expressar a nação. Ele é o espelho no qual os brasileiros devem
reconhecer-se como povo e como unidade cultural e territorial. Nele, os leitores desse país
jovem, (que ainda não tivera nem sua geografia, nem sua alma, nem seus costumes
registrados) poderiam encontrar uma identidade, uma auto-imagem favorável.

A LINGUAGEM BRASILEIRA

Mais tarde, Alencar percebeu que, para criar de fato o romance nacional não bastava apenas
o uso explícito da temática brasileira e "cor local". Era preciso também tomar posição
diante da questão da linguagem. Romper com os cânones estilísticos da literatura
portuguesa passou a ser, para ele, um imperativo. Sem essa ruptura não se fundaria uma
estética verdadeiramente autóctone. Por isso, ele foi atacado sistematicamente por
gramáticos e escritores portugueses.

O esforço máximo de Alencar em torno da criação dessa linguagem brasileira ocorreu em


Iracema. Entre os aspectos mais significativos que ali encontramos destacam-se:

- A utilização de períodos curtos, sintéticos, vinculando a prosa à concisão expressiva da


poesia lírica. A isso se acrescenta a intensa musicalidade e o ritmo inovador da frase.
Justifica-se assim a designação da narrativa como um "verdadeiro poema em prosa".

- Um estilo que se vale de inumeráveis comparações e metáforas, usadas na narração, nas


descrições e nos diálogos. O estilo metafórico representaria uma espécie de tradução para o
vernáculo nacional das formas básicas de expressão indígena, centrada em analogias e
referências ao mundo natural.

- As comparações sempre vinculadas a elementos da paisagem física e animal do ambiente


tropical brasileiro, sublinhando a dicção nacionalista do escritor.

- O uso permanente de vocábulos indígenas, obrigando o autor a explicá-los através de


numerosas notas ao pé de página.

UM PAINEL INCOMPLETO DO PAÍS

Na celebração exaltada do nacional está a grandeza, mas também o principal problema do


espelho alencariano. O Brasil que ele mostra tende à idealização da realidade humana e
social. É um espelho opaco, que não reflete nem as mazelas da escravidão nem a
brutalidade das camadas senhoriais. Reflete quase tão somente as luzes fulgurantes do
trópico, e o destemor, a generosidade e o altruísmo de sua gente.
Assim, as imagens que aparecem nos romances de Alencar, em regra, são positivas e
idealizadas. Elas transmitem uma certa sensação de irrealidade e, às vezes, nos parecem
retorcidas e falsas. Correspondem menos aos fundamentos românticos da época e mais à
necessidade das elites letradas apresentarem o país sob uma ótica benigna e autoelogiosa.
Mesmo assim, em várias obras, o autor cearense consegue ultrapassar os limites ideológicos
que o aprisionavam à sua época, revelando qualidades de grande ficcionista.
DIVISÃO DOS ROMANCES

ROMANCES URBANOS

Numa Corte em que a imitação de costumes europeus convivia com a mediocridade da vida
cotidiana, Alencar percebeu a existência de uma tensão: "a luta entre o espírito local
(rasteiro, provinciano, patriarcal) e a invasão da cultura estrangeira (modismos românticos,
paixões extremadas, etc.) ", como bem observa Roberto Schwarz.

O Rio de Janeiro - na metade do século XIX - era uma capital limitada e pouco cosmopolita
e, portanto, insuficiente para um romancista seduzido pela idéia de grandeza. O autor
cearense viu-se, pois, obrigado a inventar histórias complicadas, conversões mirabolantes,
renúncias sublimes, amores violentos, etc., para sobrepô-los à pobreza humana e intelectual
da sociedade brasileira de então.

Alencar tenta retratar este conflito entre a vulgaridade nativa e o sublime universo
romântico. Contudo, suas narrativas acabam não se definindo entre a estrutura do folhetim
e a percepção pré-realista do universo urbano brasileiro. São tão contraditórias quanto a
realidade que procuram refletir.

Assim, em muitas de suas ficções, o aspecto folhetinesco supera completamente o registro


da existência comum, do que resulta o aspecto quase inverossímil de personagens e
acontecimentos. No entanto, duas narrativas permaneceram como modelares e ainda hoje
merecem ser lidas, seja por sua relativa complexidade psicológica, seja pela novidade de
incorporarem a questão econômica aos relacionamentos afetivos.

Nestes relatos, Alencar - além de traçar alguns de seus melhores "perfis femininos"(1) -
relaciona o drama dos indivíduos com o organismo social. Em Lucíola a impossibilidade de
união entre dois grupos sociais distintos, o popular e o senhorial. Em Senhora o casamento
por interesse, um dos poucos instrumentos de ascensão na sociedade brasileira da época.

LUCÍOLA

Madame Récamier, por Francois Gérard


Resumo
Paulo, jovem bacharel pernambucano, escreve cartas à senhora G. M., para narrar-lhe a
história de seu relacionamento com uma cortesã, já que o assunto não poderia ser exposto
oralmente, dada a presença da neta da destinatária, uma moça inocente de apenas dezesseis
anos. Nestas cartas conta que, recém chegado de Olinda, conhecera uma jovem e bela
mulher, Lúcia, apaixonando-se à primeira vista por ela. Só mais tarde um amigo iria
informá-lo de que Lúcia exercia a alta prostituição, sendo famosa por certas
excentricidades, como vender todas as jóias que recebia de presente e jamais aceitar ser a
amante exclusiva de alguém.

Já abalado com a terrível revelação, Paulo se deprime ainda mais ao presenciar o espetáculo
que Lúcia promove na casa de Sá, um homem dado a orgias. Lúcia exibe-se nua sobre uma
mesa, imitando as cenas libertinas dos quadros que decoram as paredes da casa. Paulo
sente, ao mesmo tempo, raiva, piedade e paixão pela cortesã mas, ao sair para o jardim da
casa, reencontra-a e obtém da mesma a promessa de nunca mais repetir a cena. Em seguida,
os dois declaram-se apaixonados e terminam se amando sobre a relva.

A partir de então, Lúcia abandona a profissão e Paulo passa a sustentá-la em nível modesto.
O relacionamento entre os dois , entretanto, continua muito complicado. O rapaz percebe-se
fraco para enfrentar as pressões da sociedade e a jovem, por seu turno, não se considera
merecedora de tal afeto, vendo objetivamente os terríveis impedimentos sociais colocados
diante de ambos.

Após uma injustificada crise de ciúmes de Paulo, Lúcia enfim conta-lhe sua vida anterior,
revelando que se prostituíra para ajudar sua família, de classe média, mas duramente
empobrecida durante uma epidemia de febre amarela. Expulsa de casa pelo pai, trocara
mais tarde seu verdadeiro nome, Maria da Glória, pelo de Lúcia, nome de uma amiga sua,
morta de tuberculose. Depois de passar um ano na Europa, retornara ao Brasil, descobrindo
que seus pais já tinham falecido. Internara, então, sua última parente, a irmã Ana, num
colégio e seguira a profissão de cortesã.

Tempos depois, abandonando a prostituição, Lúcia busca Ana no internato e as irmãs


passam a viver juntas. Paulo tenta novamente conquistar o amor da jovem, mas esta -
embora correspondendo aos sentimentos do rapaz - recusa-se ao relacionamento, alegando
que para destruir a sua condição de prostituta, precisava renunciar inclusive a seus
sentimentos. Em seguida, pede a Paulo que se case com a irmã, porém este, desesperado, se
nega a realizar o pedido. Subitamente, Lúcia desmaia, revelando-se a sua gravidez: estava
esperando um filho do amante. O feto, contudo, morre no ventre materno. Dias depois,
Lúcia faz Paulo jurar que seria um legítimo pai para Ana, e , em seguida, também morre.

Ao encerrar a correspondência dirigida à senhora G. M., Paulo informa-lhe que - conforme


a promessa - servira de pai para Ana, que se casara.

(1) Alencar enquadrou como "perfis femininos" os romances Senhora, Lucíola e Diva
ROMANCES INDIANISTAS

Os romances de temática indianista são três: O guarani (que Alencar preferia classificar
como romance histórico), Iracema e Ubirajara. Todos apresentam um mesmo substrato
estético e ideológico:
· Forte influência de relatos de Chateaubriand (Atala) e, em especial, de Fenimore Cooper
(O último dos moicanos), embora Alencar tivesse consciência de que suas obras eram
diferentes, conforme ele próprio afirmou:

Cooper considera o indígena do ponto de vista social, e na descrição dos seus costumes foi
realista; apresentou-o sob o aspecto vulgar.

N´O Guarani é um ideal que o escritor intenta poetizar, despindo-o da crosta grosseira de
que o envolveram os cronistas, e arrancando-o ao ridículo que sobre ele projetam os restos
embrutecidos da quase extinta raça.

· A ação narrativa transcorre no passado remoto: O guarani e Iracema, no século XVII, e


Ubirajara no período anterior ao descobrimento.

· A apresentação de heróis inteiriços e modelares. Se o romancista chegou de fato a estudar


certas particularidades da cultura indígena, a exemplo da língua, dos valores religiosos e de
alguns costumes, os personagens destas obras, em sua psicologia e em suas ações, são
verdadeiros cavaleiros medievais, perdidos em bravias florestas, com um destino épico a
cumprir.

· Acima de tudo, os índios são os heróis da nascente nacionalidade pós-colonial. Através


desses guerreiros audaciosos e sem mácula (Peri, Jaguarê, Poti) e dessa mulher disposta a
qualquer sacrifício (Iracema), os leitores do século XIX podiamm se orgulhar de suas
supostas origens americanas e de sua ancestral nobreza.

· A poetização da vida aborígene, em contraponto - na sagaz observação de Nelson


Werneck Sodré - com o silêncio absoluto sobre o papel do negro na formação social
brasileira. Da mesma forma que a Independência não incluiu a abolição da escravatura em
seu processo, os artistas da primeira geração romântica a ignoraram o problema dos negros.
Assim, a temática indianista desempenhou o papel de compensação às misérias do presente
histórico desses escritores.

· Por outro lado e paradoxalmente - como mostrou Alfredo Bosi - não foi o índio rebelde o
celebrado por Alencar mas sim o índio que "entrou em íntima comunhão com o
colonizador". Esta conciliação - diz o crítico - "violava abertamente a história da ocupação
portuguesa", feita, como todos sabemos, de violência e destruição dos primitivos
habitantes. Por isso, a exaltação dos índios ocorre somente quando os mesmos perdem a sua
identidade e os seus valores, integrando-se (sempre na condição de súditos) à cultura dos
conquistadores brancos. No caso de Iracema, soma-se ainda o viés patriarcal da época no
elogio do comportamento da indígena feito de submissão, conformismo e renúncia.

· Tanto O guarani quanto Iracema podem ser designados como romances fundadores, ou
seja, obras ficcionais que representam metaforicamente o início de um mundo e / ou de uma
raça. No primeiro esta intenção é mais ou menos velada, embora a hipotética sobrevivência
do casal Peri-Ceci, no final do romance, expresse (como mito) a fusão étnica que alicerçaria
o novo país. Já em Iracema (anagrama de América) esta junção simbólica entre
conquistadores e conquistados é explícita. Desta forma, Moacir, o filho da índia com o
português Martim Soares expressa, simbolicamente, o início da raça cearense.

· No seu conjunto, os romances de temática indígena de José de Alencar apresentam


méritos inegáveis. Iracema resiste à passagem do tempo pela espetacular força de seu estilo
poético. Ubirajara - o único relato em que não ocorre o encontro do branco com o índio -
apresenta uma trama envolvente, repleta de aventuras e de observações curiosas sobre os
costumes nativos. Mesmo O guarani - em que pese sua falsidade social e psicológica - tem
um enredo trepidante que deixa o leitor quase sem fôlego.
GUARANI

Resumo
No início do século XVII, um dos fundadores do Rio de Janeiro, o fidalgo português D.
Antônio de Mariz, em protesto contra a dominação espanhola (1580-1640), estabelece-se
em plena floresta, construindo um verdadeiro solar medieval junto a um rochedo
inexpugnável. Vive com sua mulher, o filho, D. Diogo, a filha, Cecília e uma mestiça,
Isabel, apresentada como sobrinha, mas que na realidade é sua filha natural. Junto à casa
dos Mariz, vive um bando de mais ou menos quarenta aventureiros. Estes homens entram
no sertão, fazendo o contrabando de ouro e pedras preciosas e deixando um percentual para
D. Antônio.

Logo em seguida à chegada da nobre família portuguesa, um jovem e hercúleo cacique,


Peri, salva Cecília de enorme pedra prestes a desabar sobre ela. Ao receber o agradecimento
dos brancos pelo gesto, (exceto da mulher de D. Antônio, que abomina índios), Peri
abandona sua tribo e passa a viver junto a eles, numa pequena choupana. Desta maneira, o
indígena confirma uma visão que tivera com Nossa Senhora, a qual lhe ordenara que a
servisse. E Cecília (a quem Peri chama de Ceci) tinha as mesmas feições da Virgem Maria.
Era a ela, portanto, que o índio devia obediência e proteção.

Em princípio, Ceci manifesta um pouco de medo e repugnância pelo guarani. Este, entre
outras façanhas, captura uma onça viva para mostrá-la a sua Iara (senhora). Também desce
ao fundo de um penhasco, tomado por répteis e cascavéis, para apanhar um estojo com uma
jóia da heroína. Apoiada pelo pai, que percebera a nobreza do índio ("É um cavalheiro
europeu no corpo de um selvagem"), a jovem começa a simpatizar com seu estranho
protetor.

Entre os aventureiros que vivem sob a égide dos Mariz, dois merecem destaque. Álvaro de
Sá, rapaz de impulsos nobres e gestos superiores e que ama respeitosamente Ceci, embora,
por seu turno, seja amado por Isabel. E o antigo frade carmelita, Angelo di Lucca - hoje
Loredano - que abandonara o hábito depois de se apossar de um mapa de riquíssimas minas
de prata, pertencente a um moribundo. Homem cruel e decidido, quer, antes de alcançar as
hipotéticas minas, possuir Ceci, pela qual professa um desejo animalesco.

Simultaneamente, por um terrível equívoco (que aliás não lhe causa nenhum trauma), D.
Diogo, o filho de D. Antônio, mata a filha do cacique dos aimorés, pensando se tratar de
um animal. Os aimorés ("povo sem pátria e sem religião") querem vingança, exigindo em
troca a vida da doce Ceci. Desejada impuramente por Loredano e perseguida pelos ferozes
aimorés, quem poderia salvá-la de tantas adversidades?

Peri revela então a extensão de sua fidelidade aos portugueses. À medida em que centenas
de aimorés iniciam o cerco final ao casarão, o herói - desobedecendo a sua "senhora" -
parte para o acampamento dos inimigos e após derrubar vários deles, é preso e levado para
o ritual antropofágico. Na hora da cerimônia, ingere poderosa dose de curare, um veneno
terrível. Assim, quando os selvagens o devorassem, morreriam todos. Desta forma, Peri
propõe o genocídio dos índios para que os brancos continuassem a viver livremente.

No entanto, quando o veneno já corrói as entranhas do bravo guerreiro, Álvaro de Sá


irrompe de surpresa no acampamento, com alguns amigos, e o resgata. Peri volta para Ceci
mais morto do que vivo, mas a heroína do romance (já se sentido afetivamente ligada ao
índio) exige que ele tente se salvar. Cambaleante, Peri vaga pela floresta até encontrar o
antídoto para o curare.

Quanto ao pérfido ex-padre, Loredano, acaba sendo desmascarado pelo herói, do mesmo
modo que os seus principais asseclas. No final da narrativa, por causa de seus crimes e de
sua monstruosidade moral, arderá em uma fogueira.

O cerco dos aimorés torna-se cada vez mais terrível. Álvaro morre ao buscar víveres na
floresta, confessando antes à Isabel que lhe retribuía a paixão. Peri consegue recuperar o
corpo do rapaz. Desesperada, Isabel pede que o índio o deposite em seu quarto. Depois,
fecha todas as frestas do quarto e asfixia-se com a fumaça de resinas aromáticas, morrendo
por amor, na cena mais bela do romance.
este se tornasse cristão, lhe confiaria a filha para que tentasse levá-la à civilização. O herói
responde: "Peri quer ser cristão!", e ajoelha-se diante do fidalgo que o batiza.

Enquanto as flechas incendiárias dos aimorés transformam a casa-forte num inferno, Peri
pula o precipício - que cercava o casarão - com o auxílio de um galho de árvore, levando
Ceci adormecida por uma bebida soporífera. Rapidamente alcança o rio Paquequer onde
escondera uma canoa. Ouve-se uma grande explosão: D. Antônio colocara fogo no paiol e
todos, os remanescentes brancos e centenas de aimorés desaparecem, numa espécie de
apocalipse.

Ao acordar, Ceci chora muito a morte dos parentes e diz querer o índio para sempre a seu
lado, na cidade. Peri rejeita a idéia de morar na civilização, porém a jovem não pode mais
viver sem ele e, aproveitando-se de uma parada para descanso, corta as amarras da canoa.

Estão agora sozinhos, e como Adão e Eva, no começo do mundo, prontos para o amor. Eis
quando uma grande enxurrada os surpreende (Alencar está atento aos preconceitos de seus
leitores). O casal refugia-se em cima de uma palmeira, mas as águas continuam subindo.
Em um último gesto heróico, Peri arranca a palmeira (incluindo raízes e tudo),
transformando-a em canoa. O índio e a jovem branca são arrastados, então, pela correnteza.
Em direção ao quê? Da morte? Do início da felicidade conjugal? Da simbólica construção
de um novo mundo nos trópicos? O que acontece após o grande dilúvio? O leitor que
decida.
Observe-se a antológica cena final do romance:

Então passou-se sobre esse vasto deserto d'água e céu uma cena estupenda, heróica, sobre-
humana; um espetáculo grandioso, uma sublime loucura.

Peri alucinado suspendeu-se aos cipós que se entrelaçavam pelos ramos das árvores já
cobertas d'água, e com esforço desesperado, cingindo o tronco da palmeira nos seus braços
hirtos, abalou-o até as raízes.

Três vezes os seus músculos de aço, estorcendo-se, inclinaram a haste robusta; e três vezes
o seu corpo vergou, cedendo à retração violenta da árvore, que voltara ao lugar que a
natureza lhe havia marcado.

Luta terrível, espantosa, louca, desvairada; luta da vida contra a matéria; luta do homem
contra a terra; luta da força contra a imobilidade.

Houve um momento de repouso em que o homem, concentrando todo o seu poder, estorceu
distensão horrível.

Ambos, árvore e homem, embalançaram-se no seio das águas: a haste oscilou; as raízes
desprenderam-se da terra já minada profundamente pela torrente.

A cúpula da palmeira, embalançando-se graciosamente, resvalou pela flor d'água como um


ninho de garças ou alguma ilha flutuante, formada pelas vegetações aquáticas.

Peri estava de novo sentado junto de sua senhora quase inanimada; e, tomando-a nos
braços, disse-lhe com um acento de ventura suprema:

- Tu viverás!...

Cecília abriu os olhos e, vendo seu amigo junto dela, ouvindo ainda suas palavras, sentiu o
enlevo que deve ser o gozo da vida eterna.

-- Sim?...murmurou ela; viveremos!...lá no céu, no seio de Deus, junto daqueles que


amamos! (...) Sobre aquele azul que tu vês, continuou ela, Deus mora no seu trono, rodeado
dos que o adoram. Nós iremos lá, Peri! Tu viverás com tua irmã, sempre!...

Ela embebeu os olhos nos olhos de seu amigo, e lânguida reclinou a loura fronte.

O hálito ardente de Peri bafejou-lhe a face.

Fez-se no semblante da virgem um ninho de castos rubores e lânguidos sorrisos: os lábios


abriram como as asas purpúreas de um beijo soltando o vôo.

A palmeira arrastada pela torrente impetuosa fugia...


E sumiu-se no horizonte...
IRACEMA

Iracema, óleo de Antônio Parreiras


Nos primórdios da colonização, o português Martim Soares, perdido na mata, encontra
abrigo junto ao pajé dos tabajaras, Araquém. A filha deste, Iracema, apesar de ser uma
espécie de sacerdotisa, se apaixona pelo branco e o protege das investidas do guerreiro
Irapuã, terminando por fugir com Martim para o lado dos potiguaras, chefiados por Poti.
Esses, ao contrário dos tabajaras, eram aliados dos portugueses. Iracema e Martim vivem o
amor nas florestas e praias do Ceará. A guerra dos tabajaras e os franceses afasta Martim e
seu amigo, Poti, de Iracema. Ao regressar, encontra a índia às portas da morte, ainda que
tenha gerado uma criança, filho de Martim, Moacir, cujo nome significa o filho do
sofrimento. Iracema, exaurida, morre e o branco leva a criança rumo à civilização.

Veja-se o exemplo dos múltiplos recursos líricos e rítmicos que presidem a linguagem de
Iracema. A começar pela chegada do barco de Martim:

Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba;

Verdes mares, que brilhais como líquida esmeralda aos raios do sol nascente, perlongando
as alvas praias ensombradas de coqueiros;

Serenai, verdes mares, e alisai docemente a vaga impetuosa, para que o barco aventureiro
manso resvale à flor das águas.

Onde vai aflouta jangada, que deixa rápida a costa cearense, aberta ao fresco terrala grande
vela?

Onde vai como branca alcíone buscando o rochedo pátrio nas solidões do oceano?

Ou, ainda, a famosa descrição metafórica da heroína:

Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema. Iracema, a
virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais
longos que seu talhe de palmeira.

O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu
hálito perfumado.

ROMANCES HISTÓRICOS

A exemplo dos romances indianistas, dos quais são muito próximos, os romances históricos
apresentam como características:

- A ação localizada no passado colonial


- Uma intenção simbólica, pois devem, no plano literário, representar poeticamente (isto é,
miticamente), as nossas origens e a nossa formação como povo. Porém, em geral, o relato
histórico romântico (Walter Scott, Alenxandre Dumas) tende a sublinhar apenas um
conjunto de peripécias escassamente verossímeis, deixando os fatos sociais e concretos do
passado em segundo plano. Alencar não foge à regra

- Assim, os episódios "históricos" que sustentam vagamente os romances alencarianos (a


descoberta de minas, a guerra dos Mascates, etc.) não passam de pretexto para as mais
frenéticas e improváveis aventuras.
ROMANCES REGIONALISTAS (OU SERTANISTAS OU DE TEMÁTICA RURAL)

Os chamados romances regionalistas ou sertanistas (na verdade, romances de temática


rural) parecem, à primeira vista, nascer da nostalgia do autor em relação ao rústico mundo
interiorano, onde passara a infância, conforme se pode observar nesta passagem de O
sertanejo:

Quando te tornarei a ver, sertão da minha terra, que atravessei há muitos anos, na aurora
serena e feliz da minha infância? Quando tornarei a respirar tuas auras impregnadas de
perfumes agrestes, nas quais o homem comunga a seiva dessa natureza possante?

Contudo, são razões de ordem ideológica que predominam na elaboração destas narrativas.
No prefácio de um romance urbano, Sonhos d'ouro, Alencar explica o que pretendia ao
revelar o interior do País:

Onde não se propaga com rapidez a luz da civilização que de repente cambia a cor local,
encontra-se ainda em sua pureza original, sem mescla, esse viver singelo de nosso país,
tradições, costumes e linguagem, com um sainete* todo brasileiro.

Desta afirmativa e da leitura dos quatro romances sertanistas (O sertanejo, O gaúcho, O


tronco do ipê e Til) pode-se chegar a duas conclusões:

a) A condição brasileira (isto é, o cerne da nação), na sua forma mais pura e singela,
localiza-se no mundo rural.

b) A extensão geográfica dos romances (do sertão ao sul do país, passando por fazendas
fluminenses) indica que a ânsia de Alencar em abranger o núcleo básico do território
nacional corresponde ao desejo das elites imperiais (das quais o autor é o principal
intérprete) em integrar todas as regiões ao corpo de uma nação centralizada e unificada. **

Significativo sob este ângulo é o elogio, em O gaúcho, da pretensa dimensão monarquista e


anti-separatista dos chefes da Revolução Farroupilha.

Ora, como o autor está interessado em mostrar, acima de tudo, a unidade do país, os
aspectos originais da vida regional reduzem-se a algumas descrições poéticas da natureza, a
alguns costumes típicos e à capacidade heróica /aventureira dos protagonistas, os quais
parecem representar, de maneira mais ou menos primitiva, à bravura e a generosidade do
homem rural brasileiro.

Ao se tornar o porta-voz artístico da unificação nacional, Alencar acaba tendendo a uma


literatura que apenas celebra os encantos rurais, sem analisá-los, enquanto no plano do
enredo a estrutura convencional de folhetim impõe-se completamente.

Observe-se ainda que a linguagem mantém o padrão culto urbano, pouco valorizando as
particularidades lingüísticas de cada região enfocada.

* Sainete: gosto, sabor.

A IMPORTÂNCIA DE JOSÉ DE ALENCAR

As estruturas do folhetim, o predomínio da ação sobre os caracteres, o nacionalismo


ufanista e a visão idealizada da existência - que compõem a obra de Alencar - não fascinam
mais os leitores. Sob este ângulo, seus romances pertencem a outra época, desgastaram-se
com o passar do tempo e oferecem dificuldades de leitura, sobretudo aos jovens. Não
obstante, por várias razões, o autor cearense continua tendo uma importância histórica
extraordinária:

· Consolidou o romance brasileiro ao escrever movido por um sentimento de missão


patriótica (durante toda a sua carreira, parece que nada mais quis senão descobrir a essência
da nacionalidade.)

· Discutiu incessantemente a questão da autonomia de nossa literatura, procurando eliminar


as influências portuguesas sobre a mesma (ainda que às vezes caísse em padrões franceses e
ingleses).

· Preocupou-se em construir um painel, o mais abrangente possível, da realidade brasileira.


Seu esforço de totalização fracassou, é verdade. Contudo, a idéia de um romance, ou de um
conjunto de romances, capazes de representar a nação (ou o povo) ainda encontraria eco
nos escritores do século XX, como Mário de Andrade, Antônio Callado e João Ubaldo
Ribeiro, entre outros.

· Foi o primeiro ficcionista a perceber a vastidão e a diversidade do país, intuindo algumas


especificidades regionais e abrindo um filão (a narrativa de temática rural) que continua
presente na ficção contemporânea.

· Nos momentos mais felizes (Iracema, Senhora e Lucíola), alcançou a análise psicológica,
quase à maneira realista, além de mostrar o peso da sociedade nas relações pessoais.

· Problematizou a questão da língua brasileira e ele próprio criou uma linguagem literária
original, muitas vezes de grande densidade poética.
· Em muitos de seus romances demonstrou um esforço estético, uma "vontade de forma",
uma capacidade de elaboração artística que não encontramos em nenhum outro prosador do
período.

Por todos estes motivos, José de Alencar pode ser considerado o fundador do romance
brasileiro.
IV - OUTROS SERTANISTAS (OU REGIONALISTAS)

Os romances de temática rural de José de Alencar abriram um rico veio para o surgimento
de um grupo de romancistas também denominados sertanistas (ou regionalistas). São
escritores preocupados em revelar o Brasil agrário, distanciado do litoral, com seus
costumes específicos e seus protagonistas que oscilam entre a ingenuidade psicológica e a
prepotência patriarcal.

O ponto de partida dessa literatura é geralmente uma visão nacionalista, mesclada à


estrutura narrativa do folhetim e à busca de certa autenticidade poética ou documental na
fixação da vida interiorana. Há uma intenção realista, inclusive, mas é um realismo que se
detém em exterioridades: descrições da natureza, algo do acento lingüístico, dos costumes e
dos valores morais da região. Esta procura da realidade concreta é prejudicada, no entanto
pela construção totalmente romântica e melodramática dos personagens.

1. BERNARDO GUIMARÃES (1825-1884)

Vida: Nasceu em Ouro Preto, onde passou a infância e os primórdios da adolescência, indo
depois para São Paulo estudar Direito. Foi colega de Álvares de Azevedo e na faculdade
tinha fama de boêmio e satírico, tendo inclusive produzido uma lírica (Cantos da solidão)
identificada com o satanismo byroniano e com humorismo. Também escreveu poemas
pornográficos que obtiveram muito sucesso na época Foi nomeado juiz no interior de
Goiás, onde mostrou seu lado boêmio até ser exonerado da função. Passou rapidamente
pelo Rio de Janeiro, voltou a Ouro Preto, casou-se e se tornou professor secundário. A
publicação de A escrava Isaura, em 1875, garantiu-lhe prestígio nacional, a ponto do
próprio Imperador visitá-lo na antiga capital mineira. Morreu aos cinqüenta e nove anos.

Obras principais O ermitão do Muquém (1864); O garimpeiro (1872); O seminarista


(1872); A escrava Isaura (1875).

Nenhum autor expressou tão amplamente a tendência sertanista como Bernardo Guimarães.
Vivendo, alguns anos, no interior (oeste de Minas e sul de Goiás), conheceu-o bem,
descrevendo-o com certa minúcia e com um estilo mais ou menos trivial, pontilhado por
algumas falas pitorescas da região.

A exemplo dos demais ficcionistas de temática rural, suas narrativas variam entre um
modesto realismo e o melodrama romântico mais inverossímil. Quando a primeira
tendência domina, ele escreve um romance aceitável, O seminarista; quando o folhetim
impera, seus relatos tornam-se risíveis, caso de O garimpeiro e A escrava Isaura.
A ESCRAVA ISAURA

Este é um dos livros cuja importância se situa fora da literatura, pela incrível recepção que
obteve e por sua importância na luta abolicionista.. Milhares de brasileiros se comoveram
com as desventuras da escrava submetida à perfídia de seu dono e engrossaram o grupo dos
que defendiam o fim da escravatura. Até porque Bernardo Guimarães soube impregnar de
denúncia social o mais elementar uso dos arquétipos do Bem e do Mal, que sempre
fascinam o grande público.

Resumo
Isaura é filha de uma escrava e de um feitor português de uma enorme fazenda, no interior
do Rio de Janeiro. Após a morte da mãe, a menina é adotada pela fazendeira que a trata
como se fosse sua própria filha. Vem daí a esmerada educação da escrava que conversa
sobre todos os assuntos, toca piano, canta e sabe línguas estrangeiras. Ainda por cima, é
branca. Paradoxalmente branca:

Acha-se ali sozinha e sentada ao piano uma bela e nobre figura de moça (...) A tez é como
marfim do teclado, alva que não deslumbra, embaçada por uma nuança delicada, que não
sabereis dizer se é leve palidez ou cor-de-rosa desmaiada...

No entanto, com a morte da fazendeira, Leôncio, seu filho, assume a propriedade e começa
a perseguir obsessivamente Isaura, assediando-a com propostas indecorosas. O pai da
escrava, que agora trabalhava em outra fazenda, sabedor da situação, rapta a filha e ambos
vão morar no Recife. Isaura adota o nome de Elvira. Um pernambucano riquíssimo, Álvaro,
a vê e se apaixona loucamente por ela. Mas, no primeiro baile a que vão juntos, Elvira é
desmascarada e sua condição de escrava fugida vem à tona.

Álvaro e Leôncio enfrentam-se pela posse da moça, porém esta acaba voltando á fazenda
como cativa, embora resistindo a todo o assédio do cruel fazendeiro. Este então promete
libertá-la desde que ela casasse com o jardineiro, um ser monstruoso, "cabeludo como um
urso e feio como um macaco". Na hora do casamento, ocorre a surpresa final: Álvaro
aparece na fazenda, dizendo que havia comprado todos os bens que Leôncio penhorara por
estar enredado em dívidas. Entre esses bens estavam todos os escravos, inclusive a linda
Isaura, que evidentemente vai se casar com Álvaro. Neste momento, Leôncio sai da sala e
se suicida, encerrando a narrativa com o mais desbragado final feliz .

O SEMINARISTA

Em O seminarista vemos narrando o drama de Eugênio e Margarida, que, na infância,


passada no sertão mineiro, estabelecem uma amizade que logo vira paixão. O pai de
Eugênio, indiferente aos sentimentos do filho, o obriga a ir para um seminário. Dilacerado
entre o amor e a religiosidade, Eugênio segue para o mosteiro.

Embora todo o sofrimento da perda amorosa, o jovem dedica-se à vida espiritual e acaba se
ordenando sacerdote. Volta então à aldeia natal para rezar a sua primeira missa. Lá encontra
a sua antiga paixão, Margarida, que está à beira da morte. Os dois não resistem ao impulso
afetivo e mantêm relações. Em seguida, a heroína morre. Eugênio, ao saber da notícia,
pouco antes de iniciar a missa, enlouquece de dor afetiva e moral, tanto pelo
desaparecimento da amada quanto pela quebra do voto de castidade.

Apesar de sua dimensão melodramática, o romance apresenta uma das mais veementes
críticas ao patriarcalismo, em toda a literatura do século XIX.
2. VISCONDE DE TAUNAY (1843-1899)

Vida: Alfredo d'Escragnolle-Taunay nasceu no Rio de Janeiro, no seio de uma família


aristocrática e dada às artes. Seu avô paterno, Nicolau Antônio, viera da França para fundar
a Academia de Belas Artes do Rio de janeiro. Seu pai, o também pintor Félix Taunay,
tornara-se preceptor de d. Pedro II. Induzido pelos familiares a abraçar a carreira das armas,
Alfredo cursou engenharia na Escola Militar e como segundo tenente participou da
expedição que tentou repelir os paraguaios que dominavam o sul da província de Mato
Grosso. A derrota militar que se seguiu, ocasionada pela falta de víveres e pelo cólera, seria
retratado de forma pungente em A retirada de Laguna, relato escrito em francês, já que o
futuro visconde era bilíngüe.

Finda a Guerra do Paraguai tornou-se professor de geologia da Escola Militar. Em 1872,


publicou Inocência, espécie de Romeu e Julieta sertanejo, certamente a sua principal obra.
Foi nomeado presidente da província de Santa Catarina e depois presidente do Paraná. Em
1886, alcançou o Senado, mas por fidelidade ao Imperador, abandonou a política após a
proclamação da República. Diabético, morreu na capital federal com cinqüenta e seis anos
incompletos.

Obras principais A retirada da Laguna (1871); Inocência (1872).

Visconde de Taunay é o mais interessante dos ficcionistas do sertanismo romântico,


embora tenha publicado apenas um romance dentro da referida linhagem.

INOCÊNCIA

Resumo
Cirino, um rapaz de boa índole e muito curiosidade, viaja pelo sertão do Mato Grosso,
apresentando-se como médico e dando consultas, quase sempre bem sucedidas, embora seja
apenas um "prático"* , com experiência de farmacêutico. Em determinado momento,
conhece Pereira, um pequeno proprietário rural que está voltando para casa e que possui
uma filha doente.

Cirino aceita a hospitalidade oferecida por Pereira e cura a febre da jovem (Inocência),
causada pela maleita. Só que ao vê-la, impressiona-se profundamente com a sua beleza e se
apaixona pela sertaneja. No entanto, Inocência já estava prometida por seu pai a um
vaqueano, Manecão, caracterizando-se assim a temática nuclear do romance: a do amor
impossível.

Simultaneamente, um naturalista alemão, Meyer, que vaga pelos sertões, caçando


borboletas, apresenta-se na pequena fazenda sertaneja, acompanhado de um cômico servo e
trazendo uma carta de recomendação do próprio irmão de Pereira. Este recebe o cientista de
braços abertos mas, por ser muito rústico, não entende que as galanterias que o alemão
destina a Inocência são apenas frutos de sua educação e passa a temê-lo e vigiá-lo. Conta
para isso com um fiel serviçal, um anão mudo chamado Tico. Sem entender nada do que
está se passando, Pereira pede a Cirino que permaneça em sua casa até a partida do alemão
para ajudar na guarda da filha, inclusive arranjando-lhe alguns pacientes.

Inocência e Cirino mal conseguem se falar até que, numa noite, o rapaz bate à janela da
jovem e confessa-lhe a paixão. Ela responde da maneira mais simplória que alguém pode
imaginar:

Mas por que é que mecê gosta tanto de mim? Mecê não é meu parente, nem primo, longe
que seja, nem conhecido sequer... Eu lhe vi apenas pouco tempo... e tanto se agradou de
mim?

Em seguida, acusa o falso médico de virar-lhe o juízo através de algum feitiço. Mas este a
convence da sinceridade de seu amor e Inocência descobre-se igualmente apaixonada por
ele. Os dois jovens voltam a se encontrar mais uma vez às escondidas, quando então Cirino
propõe a fuga como alternativa para a realização amorosa. Inocência, entretanto, se recusa a
isso com medo que o pai a amaldiçoasse e sugere que o namorado buscasse o apoio de um
padrinho dela, Antônio Cesário, por quem o Pereira tinha muito respeito.

Enquanto isso, o naturalista alemão descobrira uma espécie desconhecida de borboleta e


resolvera batizá-la com o nome de Inocência, deixando Pereira indignado e cada vez mais
vigilante. Porém logo o cientista parte, dissipando as suspeitas do pai da sertaneja. Também
Cirino viaja em busca do auxílio de Antônio Cesário. Ao mesmo tempo, Manecão, o noivo
prometido chega à casa de Pereira. Inocência se recusa a validar o compromisso entre
ambos e é espancada pelo pai. Através da mímica, o anão mudo indica o pseudo médico
como o responsável pela insubordinação da garota. Exasperado, Manecão vai atrás de
Cirino e o assassina.

O romance tem seu desfecho com o sábio Meyer recebendo grande homenagem na
Alemanha pela descoberta da borboleta (Papilio Innocentia), sem saber que dois anos antes
Inocência preferira desaparecer a se casar com Manecão, encontrando na morte a sua
própria salvação.
O QUE OBERVAR EM INOCÊNCIA

1) É o romance sertanista onde mais se percebe a divisão entre o enredo central -


folhetinesco e ultra-romântico - e as histórias secundárias, quase todas realistas.

2) Este mesmo descompasso é visível entre o tom trágico da intriga amorosa e as passagens
hilariantes das tramas paralelas.

3) Apesar do excesso melodramático final, os caracteres de Cirino e Inocência nos são


mostrados de forma muito mais verossímil que os personagens de outros romances
românticos da época.
4) Há uma forte crítica de Taunay em relação ao implacável patriarcalismo do mundo rural.
O curioso é que durante quase toda a narrativa, o autor ironiza a visão machista, como nesta
cômica exposição de Pereira sobre o comportamento das mulheres: "Eu repito, isto de
mulheres, não há que fiar. Bem faziam os nossos do tempo antigo. As raparigas andavam
direitinhas que nem um fuso... Uma piscadela de olho mais duvidosa, era logo pau. (...) Cá
no meu modo de pensar, entendo que não se maltratem as coitadinhas, mas também é
preciso não dar asas às formigas..."

No final do relato, contudo, esta crítica amena e humorística transforma-se quase em um


panfleto contra o domínio absoluto que, dentro do código patriarcalista, os pais tinham
sobre os filhos.

5) Importante ressaltar que o simplório Pereira, além de possuir boa índole, ama
desesperadamente a filha. Portanto, também ele nos é mostrado como vítima dos costumes
patriarcais.

6) Meyer, o naturalista alemão, sábio das coisas da ciência, porém incapaz de perceber a
estreiteza moral do mundo em que está metido, é um dos protagonistas mais engraçados da
ficção brasileira do século XIX. Suas trapalhadas são impagáveis.

7) O romance apresenta uma curiosa mescla de linguagem culta urbana e termos regionais
(arcaísmos, corruptelas, provérbios, expressões típicas). Estes "regionalismos", na sua
maioria, são explicados pelo próprio autor, em notas ao pé das páginas. O resultado dessa
junção é uma prosa bastante viva, colorida e com acentos humorísticos na sua formulação.
Veja-se um exemplo:

E mulher, prosseguiu o mineiro (Pereira) com raivosa volubilidade, é gente tão levada da
breca, que se lambe toda de gosto com ditinhos e requebros desta súcia de embromadores.
Com elas, digo eu sempre, não há que fiar...Má hora me trouxe este alamão...Mil raios o
rachem!...Tenho agora que ficar de alcatéia...meter-se em tocaia e fazer fogos para que o
braicá não me entre no galinheiro. Ora que tal! (...) Já estou enfernizado com o tal homem...

A RETIRADA DE LAGUNA

Incursões paraguaias no sul de Mato Grosso, no início da Guerra do Paraguai (1865-1870)


levaram o comando militar do Império a enviar uma coluna para manter incólume a
fronteira brasileira e, dependendo das circunstâncias, invadir o território inimigo. Ao
acompanhar a expedição, como tenente de engenharia, Taunay não podia imaginar o horror
que os aguardava.

Por erro fatal do comandante - acusado de covardia em outro episódio - que contrariando
toda a lógica, decidiu-se pela invasão do Paraguai. Sem cavalaria, sem retaguarda, com
poucas munições e víveres, a tropa de cerca de mil e setecentos homens penetrou num
sertão inóspito, numa vastíssima região de pantanais, febres e campinas que os paraguaios
incendiavam, colocando a soldadesca brasileira dentro de um inferno. Ao fogo somou-se a
fome. E a estes, a terrível doença da cólera, causada pela região insalubre. A campanha -
que durou apenas um mês transformou-se m grande desastre. Em condições lamentáveis,
sobreviveram tão somente setecentos homens.

A visível inépcia do comandante, intensificado pelo desconhecimento das condições


adversas do meio, o heroísmo de oficiais e soldados no dia a dia da expedição e,
principalmente, a carnificina da guerra e da peste aparecem numa prosa simultaneamente
objetiva e dramática. A retirada da Laguna não tem o vigor trágico de Os sertões, de
Euclides da Cunha, mesmo assim possui força descritiva, interesse documental e, muitas
vezes, emociona os leitores. Tome-se, como exemplo, este fragmento sobre as primeiras
manifestações da cólera:

Caiu à noite uma chuva abundante que agravou todos os nossos sofrimentos. Os coléricos,
amontoados junto da pequena barraca dos médicos, ao ar livre e sem abrigo, recebiam no
corpo enregelado os aguaceiros, que se sucediam a intervalos. Penalizava-nos ver aqueles
desgraçados, extremamente agitados, rasgando os farrapos com que procurávamos cobri-
los, rolando uns sobre os outros, contorcendo-se de cãibras, vociferando, lançando urras
que se confundiam num único grito articulado: "Água!"

| |3. FRANKLIN TÁVORA (1842-1888)

Vida: Nasceu em Baturité, no interior do Ceará. Formou-se em Direito, na célebre


Faculdade do Recife. Em 1874 mudou-se para o Rio de Janeiro e ingressou na vida
burocrática onde desempenhou funções mais ou menos modestas. O gosto pela história
acabou levando-o ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Morreu na pobreza aos
quarenta e seis anos.

Obras principais O Cabeleira (1876); O matuto (1878); Lourenço (1881).

Em Franklin Távora, o regionalismo mais do que o assunto é polêmica, conforme se vê no


prefácio de O Cabeleira:

As letras têm, como a política, um certo caráter geográfico; mais no Norte, porém, do que
no Sul, abundam os elementos para a formação de uma literatura propriamente brasileira,
filha da terra. A razão é óbvia: o Norte ainda não foi invadido como está sendo o Sul de dia
em dia pelo estrangeiro. (...)

Temos o dever de levantar ainda com luta e esforço os nobres foros dessa região, exumar
seus tipos legendários, fazer conhecidos seus nomes, suas lendas, sua poesias máscula,
nova, vívida e louçã...

Os desígnios do romancista não se realizaram, no entanto. No caso de seu relato mais


conhecido, O Cabeleira, a intenção de realismo esgota-se na reconstituição do ambiente e
na escolha de uma história de cangaço, ocorrida objetivamente no século XVIII. Nem o
assunto nem a distância histórica garantiram verossimilhança à narrativa, perturbada pela
contradição permanente dos sertanistas românticos: observações realistas dentro de um
arcabouço exagerado e melodramático de folhetim.

O CABELEIRA

Resumo
Ao acompanhar a trajetória do bandido, Franklin Távora oscila entre a análise objetiva e o
recurso idealizante. José Gomes, o Cabeleira, nos é mostrado como fruto de circunstâncias
ambientais e há registros interessantes sobre a vida nordestina, principalmente sobre a seca.
Igualmente a pesquisa histórica que realizou acerca do cangaceiro é séria e confere valor
documental ao texto. Aliás, todos os seus relatos têm um substrato no passado nordestino e
não seria equivocado rotulá-los também de romances históricos.

Fora isso, Távora apresenta uma visão progressista sobre o cangaço, pois acredita que um
bom sistema educacional resolveria muitos dos problemas do banditismo do mundo agrário.
Revela assim a sua proximidade com aquela ideologia "ilustrada" que Castro Alves e outros
românticos da última geração expressavam: a crença de que o progresso e a harmonia social
viriam através do livro e da escola. Verdade que isso se dá no relato através de insistentes
interrupções do narrador. Esses comentários marginais tornam-se, completamente inúteis à
seqüência da ação romanesca.

Contudo, o pior problema do texto - no desenvolvimento da intriga e dos caracteres dos


personagens - é o triunfo do mais rasteiro convencionalismo romântico. Levado ao crime
"pelas baixas paixões que à sombra da ignorância e da impunidade haviam crescido sem
freio", o cruel Cabeleira reencontra uma antiga de infância, a jovem Luisinha. De imediato,
apaixona-se por ela e dispõe-se a mais completa regeneração, abandonando as armas e as
forças do mal em troca da companhia da heroína. O amor que ambos vivem no sertão -
enquanto a polícia persegue o cangaceiro - é de uma ênfase melodramática inverossímil.
Mas Luisinha morre por causa de ferimento provocado por um incêndio e o Cabeleira acaba
preso sem resistência. É julgado pelos seus crimes e enforcado.

O narrador aproveita-se desse final para manifestar sua indignação com a pena de morte e
acusar a sociedade:

A justiça executou o Cabeleira por crimes que tiveram sua principal origem na ignorância e
na pobreza.

Mas o responsável de males semelhantes não será primeiro que todos a sociedade que não
cumpre o dever de difundir a instrução, fonte da moral, e de organizar o trabalho, fonte de
riqueza?

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